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QUADERNI FIORENTINI per la storia del pensiero giuridico moderno 45 (2016)

Constituição e Poder Constituinte no Brasil pós-64: O processo de constitucionalização brasileiro entre \"transição\" e \"ruptura\"

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QUADERNI FIORENTINIper la storia del pensiero giuridico moderno

45(2016)

MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA - RAFAEL DILLY PATRUS

CONSTITUIÇÃO E PODER CONSTITUINTE NO BRASILPÓS-1964: O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO

BRASILEIRO ENTRE « TRANSIÇÃO E RUPTURA » (*)

1. Introdução. — 2. Revolução e Constituição no regime militar: o poder constituintepermanente. — 3. A Assembleia Constituinte de 1987/1988 e o significado do poderconstituinte democrático. — 4. Considerações finais.

1. Introdução.

O constitucionalismo traduz, na modernidade ocidental, « ummétodo específico de exercício do poder político », isto é, uma « teorianormativa da política » (1), baseada nomeadamente nas exigências doEstado de Direito, da separação dos poderes e da proteção dos direitosfundamentais. Na concepção procedimental do Estado Democráticode Direito, historicamente construída ao longo de um processo deaprendizado político e social com o direito, o aparato de juridicizaçãodo poder e de respeito a um cabedal de direitos é conjugado à fundaçãodo espaço público-decisório com arrimo nos princípios da soberaniado povo e do autogoverno (2). Perceber a tensão existente entre essasduas dimensões e problematizá-la no campo político-institucionalconstituem desafios revestidos de grande atualidade (3).

(*) Aos Professores Paolo Cappellini, Emilio Peluso Neder Meyer, CristianoPaixão e Leonardo Augusto de Andrade Barbosa.

(1) J. J. G. CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,Almedina, 2009, p. 51.

(2) J. HABERMAS, Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtsund des demokratischen Rechtsstaates, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1992,pp. 109-165.

(3) G. PALOMBELLA, Constitución y Soberanía: el sentido de la democracia cons-titucional, trad. J. C. González, Granada, 2000, p. 5.

Uma noção central para tal discussão é a do poder consti-tuinte. A sua concepção tradicional coloca em xeque a ideia dopapel exercido pelo direito em face das instâncias de intervençãopopular, extenuando a problemática relativa à apropriação da Cons-tituição ao longo do tempo, à sua legitimação e ao reconhecimentodas relações existentes entre as culturas políticas do passado e dopresente. Por isso, compreender o fenômeno constitucional em suadimensão histórica é entender a maneira como se movimentam e serelacionam a soberania popular e o Estado de Direito (4).

A distinção clássica aloca o poder constituinte como uma forçainicial (antecedente e, portanto, não pertencente ao ordenamentojurídico por ela delineado) e juridicamente desvinculada (livre parafazer tudo como se partisse do nada político, jurídico e social), comaptidão para organizar e limitar a ordem estatal e estabelecer osdireitos fundamentais (5). Um questionamento que tal concepçãocoloca salta aos olhos já à primeira vista: é possível impor limites aesse poder? A partir daí, outras indagações, correlatas à primeira,exsurgem de forma não menos drástica: como um poder inicial ejuridicamente desvinculado, o que o qualifica, ao menos em umprimeiro momento, como ilimitado e incondicionado, pode encon-trar restrições ao exercício de seu objeto sem que sua natureza restecomprometida? E mais: é realmente desejável que a vontade políticade toda uma comunidade resuma-se aos desígnios de um poderdelimitado, encerrado no tempo? É possível que uma Constituiçãofechada à reconstrução interpretativa, porquanto restrita à intençãomomentânea dos constituintes, perdure, resistindo aos anos e àsmudanças verificadas na identidade dos indivíduos submetidos à suaforça normativa?

Em Brennan and democracy, Frank Michelman critica a pre-tensão de reconstrução da prática constituinte a partir da noção, no

(4) E.W. BÖCKENFÖRDE, Il potere costituente del popolo: un concetto limite deldiritto costituzionale, in ID., Stato, costituzione, democrazia: studi di teoria della costi-tuzione e di diritto costituzionale, Milano, Giuffrè, pp. 113-145.

(5) É da referida teorização que nasce a diferenciação fundamental entre opoder constituinte e os poderes constituídos, essencial ao advento das Constituiçõesrígidas, bem como o dogma do exercício da soberania mediante instrumentos constitu-cionais de limitação do poder. Sobre tal concepção em Sieyès, cf. M. FIORAVANTI,Costituzionalismo: percorsi della storia e tendenze attuale, Roma, Laterza, 2009, p. 30.

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marco da Teoria do Discurso, de que há uma coesão interna entredireito e democracia. Segundo ele, o critério da política deliberativanão seria capaz de equacionar o paradoxo existente entre Estado deDireito e soberania popular, não explicando a maneira como seestabeleceria comunicativamente a institucionalização jurídica darede complexa de comportas e eclusas discursivas pressupostas peloparadigma do Estado Democrático de Direito. Isso porque o para-doxo reemergiria sempre que se questionasse se a formação daopinião e da vontade constituintes obedeceu aos requisitos de umprocesso concebido como democrático, resultando em um « re-gresso ao infinito », pela via de uma « autoconstituição circular » (6).

No marco dessa problematização, a partir da percepção daimpossibilidade de raciocinar o fenômeno fundacional dentro doesquema lógico-estrutural dos regimes constitucionais contemporâ-neos, alguns autores chegaram a defender que o poder constituintehavia se esgotado (7). Embora quase sempre de maneira deturpada,tal visão repercute ainda hoje na institucionalidade concreta dosordenamentos jurídicos ocidentais. Em seu voto apresentado nojulgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-mental nº 153, por exemplo, o Ministro Gilmar Mendes afirma que« talvez os modelos a que nos aferramos (principalmente esse mo-delo dualista ou binômio entre poder constituinte originário e poderconstituinte derivado) estejam, na prática, sendo superados porsoluções de compromisso, as quais abrem espaço para transaçõespolíticas que levam a uma determinada solução » (8).

Na presente reflexão, busca-se demonstrar, com fulcro naexperiência constituinte brasileira pós-1964 e na resposta apresen-tada por Habermas em artigo intitulado Constitutional democracy: aparadoxical union of contradictory principles?, publicado em 2001 naRevista Political Theory, que a provocação de Michelman resulta

(6) F. MICHELMAN, Brennan and democracy, Princeton University Press, 1999,pp. 4-11 e 33-34.

(7) Cf., por todos, M. DOGLIANI, Potere costituente e revisione costituzionale, in« Quaderni costituzionali », 1995, 1, p. 9.

(8) SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Acórdão na arguição de descumprimento depreceito fundamental nº 153/DF, 29 de abril de 2010, p. 235. Para uma análise críticadessa decisão, ver E.P.N. MEYER. Ditadura e responsabilização: Elementos para umajustiça de transição no Brasil, Belo Horizonte, Arraes, 2012.

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inconsistente, uma vez que se escora em impressões incompletasacerca da legitimidade e da legitimação constitucionais, desconside-rando o processo complexo, a longo prazo, de apreensão e recons-trução da identidade constitucional. Além disso, conforme se querdefender, a percepção de Michelman pode perder de vista a com-preensão adequada da Constituição como conexão interna entrepolítica e direito, ignorando que o fenômeno constituinte (que étambém constitucional) estipula as opções políticas fundamentais e,ao mesmo tempo, finca as bases da vigência do direito e da proteçãodos direitos, cuja substância normativa inesgotável será atualizadapelas gerações futuras (9).

Nesse referencial, a articulação entre o constitucionalismo e ademocracia, inclusive — e sobretudo — na reconstrução do poderconstituinte, constitui medida impositiva à efetivação de objetivospolíticos contingentes (10). Por isso mesmo, mostra-se fundamentalque a Constituição permaneça aberta à interpretação pluralista, a umprojeto constituinte permanente de Estado Democrático de Direito– o que só é possível a partir da busca conscientemente inalcançávelde preenchimento da identidade do sujeito constitucional (11).

Com base nessas elocuções, este estudo propõe uma aborda-

(9) J. HABERMAS, Constitutional democracy: a paradoxical union of contradictoryprinciples?, in « Political Theory », 29 (2001), 6, pp. 766-781. Ver também: C. PAIXÃO,A constituição em disputa: transição ou ruptura?, in História do Direito e construção doEstado, org. A. Seelaender, São Paulo, Quartier Latin, 2012, p. 2.

(10) PALOMBELLA, Constitución y Soberania, cit., p. 7.(11) Não se podendo permitir o enclausuramento da identidade constitucional

em um determinado momento histórico, afigura-se indispensável que a Constituição sereconstrua à luz de um discurso instrumental vivificado e erigido pelo próprio sujeitoconstitucional, cuja identidade deve permanecer incerta e mutável. Michel Rosenfelddisseca o processo de reconstrução de tal identidade com foco na fenomenologiahegeliana do ‘eu’ em face do outro, posteriormente trabalhada pelas análises lacanianasa respeito da emergência do sujeito em sua carência fundamental e sua busca subse-quente por identidade. Conclui o professor que o sujeito constitucional só pode adquiriridentidade dentro das circunscrições do domínio do discurso, tecendo correlatosrelevantes entre o construir e o reconstruir da identidade constitucional, este levado acabo por intermédio de um aparato instrumental baseado nos mecanismos discursivos danegação, da metáfora e da metonímia, tendo sempre em vista que o discurso constitu-cional reclama uma articulação própria entre a narrativa constitucional aplicável e oslimites advindos do constitucionalismo (cf. M. ROSENFELD, The identity of the constitu-tional subject: selfhood, citizenship, culture, and community, New York, Routledge, 2010).

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gem nova do poder constituinte, reinterpretado frente às imposiçõesdo constitucionalismo contemporâneo, que devem se prestar àafirmação da democracia e não se apresentar como limites à suaimplementação. A partir do aprendizado extraído da vivência cons-titucional brasileira durante a ditadura civil-militar de 1964 e aAssembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, pretende-se pro-blematizar tanto a concepção tradicional de poder constituintequanto o entendimento recente de que tal poder se encontra esgo-tado, de forma a apresentar, ao final, uma leitura procedimentalistado fenômeno.

Em síntese, defende-se que o Estado de Direito e os direitosfundamentais consistem em exigências democráticas, nascidas doberço da soberania popular e das ideias de autogerência e autorre-gulação (12). Por tal razão, o exercício do poder constituinte, que sóse completa na noção de autolegislação democrática, não pode seconfundir com qualquer manifestação de arbítrio capaz de desesta-bilizar a ordem vigente. O poder constituinte só é ele própriolegitimamente constituinte se for democrático, e não pode haverdemocracia plena e efetiva sem o respeito às imposições do consti-tucionalismo.

A compreensão da maneira como os poderes constituídos e opoder constituinte se separam e se relacionam no seio da democraciaconstitucional, principalmente a partir da apropriação da Consti-tuição como um todo que nos impõe reconhecer, exige, contudo,que voltemos os olhos para a história. Nesse ínterim, é indispensávelreler a memória do período ditatorial e do processo de transiçãopolítica brasileira, em prol de uma teoria constitucional reconstru-tiva. Para os filiados ao projeto constituinte de um Estado Demo-

(12) Como os direitos fundamentais são, em verdade, garantias democráticas,certamente que não poderão ser rotulados como limites externos à democracia. Anegação da liberdade de expressão e de crença, do direito de voto e do direito àscondições mínimas de subsistência constitui, como é fácil concluir, uma negativa àprópria edificação democrática e à proposta da autolegislação (cf. PALOMBELLA, Consti-tución y Soberania, cit., p. 10). A inteligência de tal raciocínio é quase intuitiva: aoindivíduo que não goza do exercício de seus direitos básicos não é dado participar efetivae plenamente da vida social e política de sua comunidade. Sobre o assunto, cf. HABERMAS,Faktizität und Geltung, cit.

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crático de Direito, na perspectiva de uma democracia sem espera (13),o tempo, na verdade, é de reconstruir.

2. Revolução e Constituição no regime militar: o poder constituintepermanente.

No dia 9 de abril de 1964, cerca de dez dias após o golpecivil-militar que depôs o presidente João Goulart, foi editado o AtoInstitucional, marco da inauguração da institucionalidade autocrá-tica do regime ditatorial, marcada por um discurso legalista-autori-tário (14). A « legalidade autoritária », « vestimenta colorida » da« Constituição semântica » (15) ou da constitucionalização instru-mental (16), diria respeito à manipulação do sistema jurídico peloaparato ditatorial, com o intuito de reforçar o poder e revesti-lo de

(13) M.A. CATTONI DE OLIVEIRA, Democracia sem espera e processo de constitu-cionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasi-leira”, in Constitucionalismo e história do direito, org. M.A. Cattoni de Oliveira, BeloHorizonte, Pergamum, 2011, pp. 207-247.

(14) Inicialmente chamado de Provisório, o Ato Institucional « não tinha nú-mero, pois seria o único » (E. GASPARI, A Ditadura envergonhada, São Paulo, EditoraCompanhia das Letras, 2002, p. 136). Assinado pela junta militar composta pelo generalArtur da Costa e Silva, pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo epelo vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, o AI põe em evidência,em sua exposição de motivos, a indispensabilidade de « fixar o conceito do movimentocivil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro »,afirmando que « o que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito eno comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é umaautêntica revolução ». Conclui com a declaração de que a revolução vitoriosa, investidano exercício do Poder Constituinte, traduz o interesse e a vontade da Nação, nãoprocurando legitimar-se por meio do Congresso, já que « este é que recebe deste AtoInstitucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revo-luções, a sua legitimação ».

(15) K. LÖWENSTEIN, Verfassungslehre, Tübingen, Mohr, 1975, pp. 151-157. Parauma crítica a K. Löwenstein, ver M.A. CATTONI DE OLIVEIRA, Teoria da Constituição, BeloHorizonte, Initia Via, 2014, pp. 39-46.

(16) M. NEVES, A constitucionalização simbólica, São Paulo, Martins Fontes,2013, pp. 105-110. Para uma crítica a M. Neves, ver J. SOUZA, Niklas Luhmann, MarceloNeves e o « culturalismo cibernético » da moderna teoria sistêmica, in Dossiê NiklasLuhmann, orgs. R. Dutra e J. P. Bachur, Belo Horizonte, UFMG, 2013, pp. 149-182.

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uma roupagem de legitimidade (17). Tratar-se-ia de dimensão queenvolve uma série de aspectos da institucionalidade material de umregime autoritário, tais como a preservação controlada (ainda queparcial) e paradoxal de instituições próprias do Estado de Direito, ajudicialização dos processos por crimes políticos e a relação entre arepressão e o sistema de justiça, em especial o Judiciário (18).

Especificamente a respeito da legalidade autoritária no Brasil,dada a heterogeneidade da aliança social que permitiu a vitória dogolpe em 1964, e em vista da tentativa bem-sucedida do amálgamaburocrático-judicial-militar de impor soluções institucionais aos pro-blemas da organização da repressão, o manejo do aparato jurídicoatingiu um grau relativamente elevado de estabilidade. Tal estabili-dade, até certo ponto e até certo momento (19), teria cumprido afunção de desmobilizar a contestação político-social, angariar legi-timação ao regime, criar imagens políticas positivas em favor dogoverno e negativas da oposição, e contribuir para a consolidação da

(17) « [...] uma das características do regime militar brasileiro foi a preocupaçãocom a elaboração de normas jurídicas que sustentassem as medidas de arbítrio. Muitasdessas normas eram precedidas por sofisticadas exposições de motivos que procuravamlegitimar a adoção de medidas de exceção » (C. PAIXÃO, Direito, política, autoritarismo edemocracia no Brasil: da Revolução de 30 à promulgação da Constituição da República de1988. In « Araucaria Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades », 13(2011), 26, p. 158).

(18) A. PEREIRA, Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito noBrasil, no Chile e na Argentina, trad. P.Q.C. Zimbres, São Paulo, Paz e Terra, 2010, pp.36-40. Com vistas a não se perder em arquétipos, Anthony Pereira estipula umadiferenciação entre « direito do Estado » e « Estado de Direito »: o primeiro se pautapela produção do direito pela vontade daqueles que controlam os meios de força, emcontraposição ao segundo, baseado em um tipo de estruturação político-jurídica no qualo exercício do poder se dá segundo os limites plasmados em uma Constituiçãodemocraticamente promulgada. Em referência ao « direito do Estado » nos contextosautoritários do Brasil, da Argentina e do Chile, Pereira disseca o modus operandi dosregimes ditatoriais à luz dos processos de consenso, cooperação e integração entre aselites militares e a alta burocracia decisória dos sistemas de justiça. Especialmente sobrea Argentina, ver J. P. BOHOSLAVSKY. Usted también, doctor? Complicidad de jueces, fiscalesy abogados durante la dictadura. Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 2015.

(19) Acerca do caráter de paradoxo de uma « legalidade autoritária », ver,sobretudo, C. PAIXÃO, L.A. BARBOSA, A memória da ditadura militar: cláusula de exclusãoda apreciação judicial observada como paradoxo, in « Revista do Instituto de Hermenêu-tica Jurídica », 1 (2008), 6, pp. 57-78.

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repressão (20). Nessa linha de raciocínio, a ditadura no Brasil seriavista como singular não apenas em função da ampla e profundacomunhão estabelecida entre os militares e as elites empresariais,técnicas e administrativas, mas nomeadamente pela capacidadeconstitutiva do regime de « administrar a sociedade », exercendohabilmente o chamado « poder infraestrutural » (21).

A preocupação inicial dos dirigentes do golpe de 1964 com aedição de um ato legitimador evidencia o quão urgente era oproblema jurídico-constitucional. No dia 07 de abril, quarenta e oitohoras antes do nascimento do Ato Institucional, e dias após a quedade João Goulart, o jurista Francisco Campos, autor intelectual daCarta de 1937, chegou ao gabinete de Costa e Silva, no Ministério daGuerra, e deu a ele e ao general Castello Branco, que se fariapresidente em menos de uma semana, uma aula sobre o poderconstituinte revolucionário. Percebendo a inquietude dos militares,ávidos pela adoção de medidas de violência poli´tica, mas temerososde transgredir a ordem constitucional, o jurista mineiro tentoutranquilizà-los: « Os senhores estão perplexos diante do nada! », eledisse (22). A lição que apresentou està sintetizada no preâmbulo do

(20) « Este livro, portanto, sugere uma dupla resposta à pergunta sobre por queos regimes autoritários se dão ao trabalho de judicializar a repressão. Em primeiro lugar,todos os outros fatores permanecendo constantes, é vantajoso para os regimes autoritá-rios legitimar seu poder com algum grau de embasamento legal. [...] A segunda parte daresposta é que os regimes autoritários judicializam a repressão porque têm condições defazê-lo. Uma vez que a judicialização traz vantagens para os regimes autoritários, os queconseguem judicializar a repressão são aqueles que podem contar com tribunais ‘dignosde confiança’ — tribunais civis ou militares cujos veredictos se harmonizam com aconcepção de legalidade adotada pelo regime, e que não irão contestar as bases do poderautoritário » (PEREIRA, Ditadura e repressão, cit., p. 284).

(21) M. MANN, The sources of social power: the rise of classes and nation-states,1760-1914, New York, Cambridge University Press, 1993, pp. 59-63. Para o contextobrasileiro, cf. BRASIL, Relatório da Comissão Nacional da Verdade, disponível em www.c-nv.gov.br; D.A. REIS, Ditadura e democracia no Brasil, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2014;Brasil, violação dos direitos humanos — Tribunal Russell II, G. Tosi e L.F.G. Ferreira(orgs.), João Pessoa, UFPB, 2014. E para a América Latina, ver As multinacionais naAmérica Latina — Tribunal Russell II, G. Tosi e L.F.G. Ferreira (orgs.), João Pessoa,UFPB, 2014; Contrarrevolução na América Latina. Subversão militar e instrumentalizaçãodos sindicatos, da cultura, das igrejas — Tribunal Russell II, G. Tosi e L.F.G. Ferreira(orgs.), João Pessoa, UFPB, 2014.

(22) GASPARI, A Ditadura envergonhada, cit., p. 123.

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AI, segundo o qual « a Revolução vitoriosa se investe no exercício doPoder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pelaRevolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do PoderConstituinte » (23).

O impasse constitucional deu vida a um momento constituintecontínuo (24). No preâmbulo do Ato Institucional nº 2, « certidão denascimento da doutrina do poder constituinte permanente da revo-lução » (25), o regime afirma que « não se disse que a revolução foi,mas que é e continuará ». Mesmo a edição posterior de umaConstituição (26) não representou o estabelecimento da normalidadeconstitucional. Em meio à edição sequencial de atos institucionais eemendas constitucionais, o discurso autoritário se equilibrou entre

(23) No referido preâmbulo está anotado, ainda, que « o que houve e continuaràa haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas,como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução ». O « comando » afirma,porém, que não objetiva a radicalização dessa revolução: « Para demonstrar que nãopretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente daRepública, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordemeconômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsãocomunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nassuas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que seacha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o CongressoNacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente AtoInstitucional ».

(24) M.A. CATTONI DE OLIVEIRA, R. DILLY PATRUS, O poder constituinte no Brasilpós-1964: contribuição à problematização da teoria do fenômeno constitucional no limiarentre constitucionalismo e democracia, in « Revista da Faculdade de Direito da Univer-sidade Federal de Minas Gerais », 63 (2014), pp. 535-540.

(25) L.A. BARBOSA, História constitucional brasileira: mudança constitucional,autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964, Brasília, Câmara dos Deputados, 2012,p. 80.

(26) « Órgão apenas tolerado mas indefeso, com sua composição representativamutilada pelas cassações revolucionárias, o Congresso Nacional fez a obra constituintede 67 em clima de desconfiança política e repressão social, obedecendo a prazos que lheforam prefixados no ato convocatório por uma vontade estranha e ilegítima, qual eraentão a vontade do Executivo revolucionário, convertendo-se assim em co-autor, poroutorga, conforme dissemos, do efêmero texto de 1967 » (P. BONAVIDES, Constituinte eConstituição: a democracia, o federalismo, a crise contemporânea, Fortaleza, Editora daUniversidade Federal do Ceará, 1985, p. 204).

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alguns pares conceituais: revolução e reforma, permanência e rup-tura, Estado de Direito e Estado de Exceção (27).

Essas dicotomias repercutiram no modus operandi da reformaconstitucional e da elaboração das leis. Além de enfraquecer oCongresso Nacional, centralizando o cerne político-decisório nasmãos do Executivo, com intervenções excessivas no Judiciário,providências dissolutivas das agremiações partidárias e restrições àsgarantias e aos direitos fundamentais, as medidas adotadas peloregime também alimentaram a instrumentalização de uma institu-cionalidade que desde o início esteve marcada pela lógica da rup-tura. A reelaboração periódica da relação entre direito e política foijustificada a partir de uma elocução focada na legitimidade dasoberania popular: o discurso do povo, da revolução e do poderconstituinte.

Com essa construção, a ditadura logrou êxito em estabelecerum espaço justificado (em uma acepção cultural-política) de reali-zação autoritária — sem, todavia, abrir mão da « farda democrá-tica », que representava (mediante o uso de imagens e símbolos) agarantia de legitimação do regime. A promiscuidade entre a norma-lidade constitucional e as medidas de exceção, com a « tintura »posteriormente dada pelo Ato Institucional nº 5 e pela Emenda nº 1,permitiu que o manuseio abstrato do fenômeno constituinte al-cançasse o pico da deturpação conceitual, com a possibilidade de aConstituição ser excepcionada segundo a livre vontade do gover-nante. Em síntese,

[...] o regime ditatorial foi marcado pela suspensão e alteração de normasconstitucionais por força de atos institucionais editados pelo governo ou de

(27) « O termo ‘constituição’ não poderia ser mais receptivo à formação depares conceituais. Forma-matéria, permanência-mudança, rígida-flexível, sintética-analítica, as expressões poderiam se multiplicar. Há alguma influência da prática jurídica— e de sua história — nessa receptividade: na vigência do direito, outros pares seapresentam: regra-exceção, ser-dever-ser, norma-fato, e muitos outros. Como se sabe, asconstituições modernas significam, antes de tudo, a confluência entre dois caminhoshistóricos diferentes: por um lado, elas são a realização e a positivação das principaisbandeiras da Modernidade, plasmadas nas ideias de liberdade e igualdade. Por outrolado, elas também são normas que compõem — habitualmente no plano superior — oordenamento jurídico de uma dada comunidade » (PAIXÃO, A constituição em disputa,cit., p. 1).

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emendas à Constituição ora outorgadas, ora votadas por um Congressorigidamente controlado. Essas medidas procuraram assegurar aos militares ocontrole das principais instituições republicanas, de forma a permitir oadimplemento dos ‘objetivos nacionais’ permanentes ou conjunturais e agarantia da ‘paz e tranquilidade social’ (28).

Essa ambiguidade foi percebida e retratada por alguns agentesda época. Em 1973, ao lançar sua « anticandidatura » à presidênciada República, Ulysses Guimarães fez o seguinte pronunciamento:

Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, paradenunciar a antieleic¸a˜o, imposta pela anticonstituição, que homizia o AI-5,submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões des-amparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevas-sabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveisas vozes discordantes, porque ensurdece a nação pela censura à imprensa, aorádio, à televisão, ao teatro e ao cinema.

No manejo descriterioso das normas constitucionais, o regimereduziu o aparato da Constituição a um instrumento frágil, por-quanto inteiramente disponível às intempéries momentâneas e àsarbitrariedades sazonais. Sob a epígrafe dos discursos do abadeSieyès, para o qual « só a nação tem direito de fazê-la (a Consti-tuição) » (29), as aspirações constituintes do governo militar resulta-ram em providências de inspiração profundamente autoritária. Opoder absoluto corporificado na nação, esse « macro-sujeito capazde querer e de agir e no qual residiam, ao mesmo tempo, a origemdo poder e a fonte das leis » (30), consistia em ferramenta de arbítrio,

(28) BARBOSA, História constitucional brasileira, cit., p. 139.(29) E.J. SIEYÈS, A Constituinte burguesa, trad. N. Azevedo, Rio de Janeiro, Lumen

Juris, 2009, p. 51. Sieyès inaugura a doutrina moderna do poder constituinte com a acepçãode que a Constituição, produto político da autoridade por ele descrita, presta-se à con-formação do poder, do governante, mas ainda assim se submete às vontades da nação. Oabade sustenta o seguinte: « O poder só exerce um poder real enquanto é constitucional.Só é legal enquanto é fiel às leis que foram impostas. A vontade nacional, ao contrário, sóprecisa de sua realidade para ser sempre legal: ela é a origem de toda legalidade. Não sóa nação não está submetida a uma Constituição, como ela não pode estar, ela não deve estar,o que equivale a dizer que ela não está » (2009, p. 56).

(30) M.A. CATTONI DE OLIVEIRA, D.F.L. GOMES, A Constituição entre o direito ea política: novas contribuições para a teoria do poder constituinte e o problema da fundaçãomoderna da legitimidade, in Constitucionalismo e História do Direito, org. M. A. Cattonide Oliveira, Belo Horizonte, Pergamum, 2011, p. 156.

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apesar das contradições internas do regime, da resistência inerente àsobrevivência das instituições e dos instrumentos democráticos e daprópria impressão ambivalente dos militares com relação ao arqué-tipo da ditadura.

Acima de tudo, a apropriação discursiva do poder constituintepelo Estado autoritário coloca em evidência o quão receptivo otermo é a pares conceituais. Cristiano Paixão lança luzes sobre adisputa em torno do vocábulo « Constituição » no Brasil recente,expondo o conflito que se esconde por trás da dicotomia transição-ruptura (31). A ambiguidade da postura assumida em relação àConstituição é visível na fala do General Amaury Kruel, comandantedo II Exército, que, ao explicitar seu apoio ao golpe de 1964, afirmaque o passo dado pelas Forças Armados é um de fidelidade àConstituição, « no sentido da manutenção dos poderes constituídos,da ordem e da tranquilidade » (32), e também no discurso doGeneral Castelo Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército,que, em instrução reservada endereçada ao alto oficialato, renega oprojeto pré-1964 de Leonel Brizola para convocação de uma Assem-bleia Constituinte com a alegação de que o povo brasileiro nãoparecia querer lançar mão do recurso legítimo da insurreição (33).

Discurso defensivo em relação à Constituição de 1946 combinado com aremoção, pela força das tropas, de um Presidente da República com man-dato obtido nas urnas. Evocação da democracia, da liberdade, da dignidadeda pessoa humana aliada à disseminação da tortura, supressão de direitos,fechamento do Congresso. Edição de atos de exceção, insuscetíveis derevisão judicial, coligada à insistente justificação desses mesmos atos pelo‘poder constituinte’ de uma ‘revolução vitoriosa’ desencadeada por ‘chefes’que ‘representam o povo’ (34).

Enquanto isso, a lógica de arbítrio prosseguiu, com as conse-quências conhecidas (35). Em seguida ao governo Médici, que « não

(31) PAIXÃO, A constituição em disputa: transição ou ruptura?, cit.(32) C. FICO, Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura

militar, Rio de Janeiro, Record, 2004, p. 82.(33) Ibid., p. 310.(34) PAIXÃO, A constituição em disputa: transição ou ruptura?, cit., p. 13.(35) « A partir de 1968, as parcas possibilidades de exercício de direitos ligados

à liberdade de expressão e manifestação vão se esvaindo, no rastro das mortes de

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só se orgulhou de-ter namorado o AI-5 desde antes da sua edição,como sempre viu nele um verdadeiro elixir » (36), período de apogeudo aprofundamento do regime e do Estado de exceção, as « des-venturas constitucionais » do governo militar retornaram à pauta dodia, no governo do general Ernesto Geisel, desta vez para que sepromovesse o rompimento gradual com a ordem autoritária. Oprocesso de democratização e constitucionalização do Brasil, sob aótica da manifestação constituinte, é o tema que se passa a analisar.

3. A Assembleia Constituinte de 1987/1988 e o significado dopoder constituinte democrático.

Com o processo de gestação, formação e desenvolvimento dostrabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988,inaugurou-se no Brasil uma nova prática constituinte, resultado deum longo período de reformulação da mentalidade constitucionaldo governo e dos segmentos sociais. Para Leonardo Augusto deAndrade Barbosa,

Se observarmos as circunstâncias que cercam a reivindicação de uma novaConstituição na década de 70, seu enredamento com os movimentos pelaanistia e pelo restabelecimento das eleições diretas, o processo de convo-cação da Assembleia Constituinte e, finalmente, o biênio de seu funciona-mento, algo de novo pode ser percebido. Debatendo-se contra uma longatradição de ‘transições pelo alto’, uma nova prática começa a se articular,propondo para a pergunta acerca do fundamento da autoridade da Consti-tuição respostas ao mesmo tempo inesperadas e criativas (37).

O projeto de transição do regime militar, sobretudo a partir de1974, era inteiramente outro: o da abertura « lenta, segura e gra-dual ». « O que presenciamos, nos mandatos de Geisel e Figueiredo,é a tentativa do regime (em grande parte bem-sucedida) de controlar

opositores e repressão ao movimento estudantil, a diversos segmentos da sociedade civil,aos trabalhadores, servidores públicos e militares contrários ao golpe. O ponto deinflexão é o AI-5, medida de exceção que permite o imediato fechamento do CongressoNacional, dissemina as cassações e suspende a garantia constitucional do habeas corpusem casos de crime contra a segurança nacional » (ibid., p. 11).

(36) E. GASPARI, A Ditadura escancarada, São Paulo, Editora Companhia dasLetras, 2002, p. 130.

(37) BARBOSA, História constitucional brasileira, cit., pp. 145-146.

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o tempo e a forma de sua extinção » (38). Em seguida à efetivação daanistia supostamente ampla, geral e irrestrita e à postergação daseleições presidenciais diretas, sobreveio ao governo José Sarney aseguinte pergunta: qual Constituinte? O caminho em direção a umaresposta foi longo e tortuoso. A disputa em torno da definição doque a Constituição de 1988 representa para o processo de constitu-cionalização brasileiro permaneceu viva e intensa durante muitotempo — e ainda hoje desperta debates e conflitos (39). CristianoPaixão coloca em evidência a contenda política e acadêmica sobre osignificado dos tempos que a Constituinte em 1987/1988 prenun-ciava (40): « uma Constituição soberana, elaborada livremente pelosRepresentantes do Povo, numa Assembleia Nacional Consti-tuinte » (41) ou « uma Constituição que não se levante contra aRevolução de Março e seus ideais, mas que se destine ainstitucionalizá-la de modo definitivo e duradouro » (42)? Umaruptura « dentro de uma Assembleia Constituinte », como rezavaRaymundo Faoro em pronunciamento no início de dezembro de1985, ou, nas palavras do Ministro Moreira Alves na sessão deinstalação da Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, « o termo finaldo período de transição com que, sem ruptura constitucional, e porvia de conciliação, se encerra o ciclo revolucionário »? A superaçãodemocrática da « anticonstituição » denunciada por Ulysses Gui-marães ou, como disse o deputado Pimenta da Veiga no CongressoNacional, em 28 de novembro de 1985, uma Constituinte que « nãoé fruto de uma ruptura, da qual o país sai traumatizado; vem num

(38) PAIXÃO, A constituição em disputa: transição ou ruptura?, cit., p. 13.(39) O exame das contendas políticas dos últimos cinquenta anos deixa entrever

o quão centrais ainda são a questão constitucional e a questão constituinte. Nesse lapsotemporal, o Brasil viveu as experiências do autoritarismo, da democracia e da alternânciaentre esses regimes. « Em todas essas circunstâncias, o debate em torno do poderconstituinte esteve presente, acompanhado de pares conceituais como autoritarismo/democracia, revolução/golpe e, após 1988, nacional/estrangeiro » (C. PAIXÃO, Autono-mia, democracia e poder constituinte: disputas conceituais na experiência constitucionalbrasileira [1964-2014], in « Quaderni fiorentini », XLIII (2014), p. 32).

(40) PAIXÃO, A constituição em disputa: transição ou ruptura?, cit., pp. 15-27.(41) G. TELLES JUNIOR, Carta aos brasileiros, in « Separata da Revista da Facul-

dade de Direito (USP) », LXXII (1977), 2, p. 422.(42) M.G. FERREIRA FILHO, A reconstrução da democracia, São Paulo, Saraiva,

1979, p. XVI.

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tempo de paz, onde não há vencidos nem vencedores »? Um poderoriginário ao qual coube « reedificar, totalmente, por sobre o vaziodecretado em 1964, e rompendo inteiramente com a obra normativaentão iniciada, uma nova e global estrutura constitucional » (43) ouuma Assembleia Constituinte « derivada » e com « poderes de re-forma » (44)?

Aspecto relevante da tensão que permeia a vivência dessasdisputas é o papel de destaque que a sociedade civil desempenhouno estabelecimento da nova ordem constitucional. Exemplo interes-sante dessa expressão diz respeito à amplitude do debate sobre asnormas relativas ao funcionamento interno da Assembleia NacionalConstituinte. « Nenhuma outra Constituinte brasileira discutiu asregras de funcionamento de forma tão aberta. Mesmo as normasatinentes ao funcionamento provisório da assembleia foram defini-das com a possibilidade de participação de todos os seus mem-bros » (45). Nessa perspectiva, a despeito da tentativa de algunssetores políticos de promover uma « transição pelo alto » — inclu-sive mediante a redução do fenômeno constituinte a um meroprocedimento reformador —, o que se vê, embora margeada porinúmeras tensões, é uma Assembleia ativa e autônoma, cujos trabal-hos contaram com a participação definitiva de representantes dasmais diversas frações sociais — de entidades sindicais a associaçõespatronais, de movimentos comunistas à Igreja Católica. A experiên-cia constitucional brasileira serve, portanto, de laboratório para oempreendimento da revisão conceitual do poder constituinte (46).Apenas uma reconstrução histórica verdadeiramente crítica podemostrar o que o poder comunicativo da participação popular foicapaz de produzir: um processo constituinte aberto, marcado peladefesa de interesses variados e contrapostos e, por esse motivo,comprometido com a fundação de uma ordem baseada na soberaniapopular, na justiça social e na proteção dos direitos fundamentais.

(43) B. CABRAL, O poder constituinte: fonte legítima, soberania e liberdade, in« Fórum administrativo », 8 (2008), 92, p. 24.

(44) J.S. RAMOS, Assembleia Constituinte: o que pode e o que não pode, natureza,extensão e limitação de seus poderes, Rio de Janeiro, Alhambra, 1987, p. 11.

(45) BARBOSA, História constitucional brasileira, cit., p. 217.(46) CATTONI DE OLIVEIRA, DILLY PATRUS, O poder constituinte no Brasil pós-1964,

cit., pp. 529-548.

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Contudo, tal registro não se mostra possível se a Constituiçãode 1988 não for compreendida como um projeto que transcende omomento de sua promulgação, um processo de constitucionalizaçãoreiniciado antes de 1988 e que se desdobra para além do marcoinaugural, no sentido de uma abertura à reconstrução democrá-tica (47). Para uma teoria vocacionada à reelaboração da democraciadeliberativa e, a partir disso, à problematização do conceito derepresentação política, o momento constituinte em 1987/1988 con-siste em um fenômeno discursivo que ganha legitimidade no tempo,como um acontecimento sem início nem fim definidos, e emerge dointerregno das lutas políticas e sociais, vivificando-se com a edifi-cação da identidade aberta, polissêmica e plural do sujeito consti-tucional brasileiro. A complexidade de tudo isso só é absorvida emuma historicidade que, todavia, não está fechada em si mesma.Assim,

Numa leitura reconstrutiva, o processo constituinte de 1987-88 resgata, poisnele também se expressam os princípios da autonomia e da emancipação dasgrandes revoluções do final do século XVIII — a liberdade, a igualdade e afraternidade — sobre o pano de fundo da história política brasileira: ele,assim, se faz ‘herdeiro sem testamento’ [...] de um processo de constitucio-nalização, perpassado por lutas por reconhecimento de atores e de direitos,que se desenvolve há pelo menos duzentos anos, todavia, de modo nãolinear, sujeito a tropeços e interrupções (48).

Em seu diálogo crítico com Michelman, Habermas esclareceque a relação aparentemente paradoxal entre Estado de Direito edemocracia se resolve na dimensão histórica. Nesses termos, o poderconstituinte não pode ser compreendido como um evento enclaus-trado comunicativamente, mas como um « processo de aprendiza-gem social capaz de corrigir a si mesmo, na compreensão daConstituição do Estado Democrático de Direito como um projetoque transforma o ato fundador em um trajeto constituinte queprossegue na linha das gerações sucessivas » (49).

(47) M.A. CATTONI DE OLIVEIRA, O projeto constituinte de um Estado Democráticode Direito, in Quinze anos de Constituição, org. J.A. Sampaio, Belo Horizonte, Del Rey,2004, pp. 131-154.

(48) CATTONI DE OLIVEIRA, Democracia sem espera e processo de constitucionali-zação, cit., p. 218.

(49) HABERMAS, Constitutional democracy, cit., p. 768.

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Nesse referencial, a Assembleia Constituinte de 1987/1988deve ser lida como o resultado da confluência de situações políticasinúmeras e diversas, as quais culminaram na concepção de umprocesso constituinte ilegível aos olhos da história brasileira atéentão. Em ojeriza à reiteração de modelos encanecidos e falidos, oprocesso constituinte foi marcado pela afirmação da soberania po-pular, do devido processo constitucional e dos direitos fundamentaiscomo marcos norteadores de um novo projeto de Estado e desociedade.

Todavia, o apego desvirtuado à teoria clássica do poder cons-tituinte permanece vivo. Alguns chegaram a refutar a legitimidadeda Constituição de 1988, com base em supostos vícios verificados nainstalação, na organização e na conclusão dos trabalhos do Con-gresso Nacional, convertido em Assembleia Nacional Constituintepor força de emenda à Constituição anterior (50). Para parte dadoutrina constitucional brasileira, partidária de um certo « com-plexo de inferioridade » pseudocrítico (51), a ilegitimidade do fenô-meno constituinte de 1987/1988 decorreria, entre outros aspectos,da insuficiência material de uma ruptura entre os momentos histó-ricos compreendidos antes e após a Assembleia. O argumento,arrimado na ideia de que o fundamento de autoridade da Consti-tuinte seria, em última instância, a Constituição ditatorial de 1967/1969, leva à conclusão de que o poder em manifestação seriameramente derivado ou reformador. Em grande parte, é deflagradaa invocação à revolução materialmente desestabilizadora como únicapossibilidade legitimadora de um processo de constitucionalização,ao fundamento de que transições sem armas nem sangue não são

(50) Exemplos de juristas partidários da noção de que a Constituição de 1988não é fruto de um processo genuinamente constituinte são Manoel Gonçalves FerreiraFilho (M.G. FERREIRA FILHO, O poder constituinte, São Paulo, Saraiva, 2007) e tambémo ex-ministro do STF Nelson Jobim (N. JOBIM, A Constituinte vista por dentro:vicissitudes, superação e efetividade de uma história real, in Quinze Anos de Constituição,cit., pp. 9-17).

(51) Esse complexo de inferioridade traduz falta de compreensão hermenêuticada realidade constitucional e, por outro lado, desconfiança autoritária em relação àdemocracia (CATTONI DE OLIVEIRA, Democracia sem espera e processo de constitucionali-zação, cit., pp. 207-247).

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capazes de promover alterações essenciais entre o velho regime e anova ordem (52).

Ocorre que reduzir a natureza do poder constituinte a umaautoridade amparada pela violência é negar a própria existência doconceito (53). A ilustração mítica de um poder ilimitado, incondi-cionado e absoluto atende — em um plano abstrato — ao esquemaarmado a partir da distinção clássica entre poder constituinte epoderes constituídos (54), o que de forma alguma explica a com-plexidade dos movimentos humanos ao longo dos tempos. A histó-ria contemporânea confirma que mesmo as transições pacíficascomportam, no plano das ideias, o alento necessário à desestrutu-ração do arquétipo político-jurídico antecedente. E mais: também nacarnificina das revoltas sangrentas há uma noção subjacente dedireito e justiça, imperativos determinantes da nova realidade insti-tucional a se construir.

Assim, não obstante a leitura formalista e limitadora feita porparcela dos constitucionalistas brasileiros, a longa gestação do pro-cesso constituinte de 1987/1988 indica o papel de destaque que ossegmentos sociais desempenharam no estabelecimento da nova or-

(52) Seria dizer que, nos limites da autoliquidação revolucionária, em que severifica a subjugação do jurídico pelo político, o protótipo do poder constituinte, comoforça que irrompe e desestabiliza o equilíbrio preexistente, afigura-se impassível de semanifestar por meio de transições negociadas.

(53) J.A. SAMPAIO, Teoria e prática do poder constituinte: como legitimar oudesconstituir 1988 — 15 anos depois, in Quinze Anos de Constituição, cit., pp. 18-62.

(54) A tentativa de conjecturar a legitimidade do poder constituinte, maisevidente a partir do século XVIII, ganha alento com as reflexões racionalistas eiluministas, a concepção de contrato social e o enfraquecimento do Antigo Regime faceao advento de ideias liberal-burguesas, bem como de noções fortalecidas de liberdadeindividual, igualdade formal, além de um pensamento mecanicista, cientificista, anti-historicista, anti-autoritário e refratário a intervenções ideológicas de cunho religioso.Trata-se de um movimento teórico em resposta a um tempo em que a Constituição e asoberania do povo eram institutos que se temiam mutuamente. Maurizio Fioravantiaponta que as revoluções do século XVIII, em especial a americana e a francesa,representaram um momento decisivo para história do constitucionalismo, porquantosituaram novos conceitos e novas práticas com o objetivo de pôr em discussão a oposiçãoentre a tradição constitucionalista e a soberania popular (M. FIORAVANTI, Costituzione,Bologna, il Mulino, 1999, pp. 99-117; ver também ID., Appunti di storia delle costituzionimoderne, Torino, Giappichelli, 1995, pp. 51-98).

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dem constitucional (55). A necessidade dessa percepção é atual. Nasidas e vindas do espaço político pós-1988, as muitas tentativas dereforma constitucional em desrespeito às balizas impostas peloprocedimento especial previsto na Constituição lançam boas luzessobre a vivacidade da articulação do par conceitual poder consti-tuinte originário/poder constituinte derivado no debate públicobrasileiro. Tendo como pano de fundo o histórico de lutas pordireitos e por reconhecimento ao longo do processo de constitucio-nalização brasileiro, « revela-se possível adotar esse par conceitualcomo guia na observação dos discursos, práticas e demandas porinclusão que marcam a relação entre política e direito na históriabrasileira ».

A concepção da Constituição como ferramenta de garantia dedireitos consiste em produto aberto de um processo difícil e lento deaprendizado. Por isso mesmo, pensar o poder constituinte traduz ta-refa de enorme complexidade, não porque o fenômeno se encontraesgotado, mas nomeadamente em razão de a compreensão da relaçãoentre projeto constituinte e poderes constituídos exigir que o processohistórico seja levado em consideração. A cada nova rodada delibe-rativa de densificação da Constituição exsurge, renovada e fortalecida,a necessidade de atualizar a proposta constituinte lançada em 1987/1988. Tal proposta resulta de um movimento que nasce muito antesda Assembleia Constituinte, mas traduz um espectro de possibilidadesque se propaga no futuro, manifestando-se como uma herança em faceda qual as gerações futuras devem assumir uma posição ativa e crítico-reconstrutiva.

4. Considerações finais.

A concepção clássica do poder constituinte como uma forçainicial (antecedente e, portanto, não pertencente ao ordenamentojurídico por ela delineado) e juridicamente desvinculada (livre parafazer tudo como se partisse do nada político, jurídico e social)estabelece um distanciamento rígido e inadequado entre o projetoplasmado no documento concebido quando da emergência do

(55) BARBOSA, História constitucional brasileira, cit., pp. 149-185.

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fenômeno constituinte e o espaço público-democrático de recons-trução da Constituição ao longo do tempo. A experiência históricado século XX evidencia a impossibilidade democrática do constitu-cionalismo autoritário e a inviabilidade constitucional da democra-cia totalitária (56). Nessa conjuntura, a tensão entre democracia econstitucionalismo, apenas aparentemente paradoxal, deve ser inin-terruptamente trabalhada e assimilada no marco de um debatepúblico aberto e plural. Cumpre às gerações futuras atualizar oprojeto constituinte de Estado Democrático de Direito.

A necessidade de uma teoria do poder constituinte que pro-blematize a tensão entre democracia e constitucionalismo subsiste. Ahistória nos mostra a inconsistência da conclusão de que o poderconstituinte se encontra esgotado frente à exigência da democraciaconstitucional. O poder constituinte só é constituinte de fato se fordemocrático. Face aos entraves semânticos à compreensão do fenô-meno constituinte em sua ambivalência de poder e direito, antes demera limitação ao poder constituinte, a institucionalização da de-mocracia constitucional consiste em condição da própria existênciadesse poder.

Destaque-se que a reconstrução que ora se propõe importaconsequentemente em um questionamento sobre a maneira pelaqual o Estado Democrático de Direito e sua existência no Brasiltornaram-se exigíveis, rompendo com a perspectiva tradicional deacordo com a qual a problemática da legitimidade e da efetividadeconstitucionais é pensada a partir de um hiato entre o idealismo daConstituição e uma realidade social recalcitrante. Tal postura secoloca voltada a uma recolocação historiográfica da racionalidadenormativa já presente e vigente nas próprias práticas político-constitucionais cotidianas (57). A falácia de uma identidade consti-tucional « autêntica » impõe a reconstrução de novas narrativas

(56) M. CARVALHO NETTO, A Impossibilidade Democrática do ConstitucionalismoAutoritário e a Inviabilidade Constitucional da Democracia Totalitária, in Constituição eProcesso: a resposta do Constitucionalismo às banalizações do terror, org. M. Cattoni e F.Machado, Belo Horizonte, Del Rey, 2009.

(57) CATTONI DE OLIVEIRA, Notas programáticas para uma nova história do pro-cesso de constitucionalização brasileiro, cit., pp. 40-41.

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sobre a redemocratização brasileira (58), o que pressupõe umareleitura do problema do fenômeno constituinte e da fundaçãomoderna da legitimidade constitucional, todavia como conquistanossa, a partir da nossa própria experiência histórica, calcada narecuperação do sentido de ruptura democrática da AssembleiaNacional Constituinte de 1987/1988 e no projeto constitucional doEstado Democrático de Direito entre nós.

(58) Exemplos de reflexão a respeito do processo de constitucionalização doEstado democrático de Direito e da sua legitimidade, tendo como parâmetro crítico aexperiência da chamada « transição política brasileira », são as já mencionadas obras deMarcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Cristiano Paixão e Leonardo Augusto AndradeBarbosa. Tais autores pontuam que a incontrolabilidade do fenômeno constitucional« denuncia a implausibilidade de compreender o processo de mudança constitucionalcomo ‘engenharia’, como técnica segura que conduz a resultados previsíveis e calcula-dos » (BARBOSA, História constitucional brasileira, cit., pp. 361-362). As relações que umaconstituição democrática desenvolve com o tempo histórico só « podem ser compreen-didas no sentido de um processo de constitucionalização, não linear e descontínuo, assimreconstruído como processo de lutas por reconhecimento e de aprendizagem social como Direito, que se realiza ao longo da história, todavia sujeito a interrupções e a tropeços,mas que também é capaz de se auto-corrigir » (CATTONI DE OLIVEIRA, Democracia semespera e processo de constitucionalização, cit., p. 236). Partindo, assim, de uma concepçãocairológica do tempo da Constituição, que dialoga com a obra de G. Marramao (verPassaggio a Occidente, Torino, Bollati Boringhieri, 2009; e La passione del presente,Torino, Bollati Boringhieri, 2008) é preciso rejeitar o discurso da democracia possível, deforma a permitir a afirmação, a partir da tese da democracia sem espera, de que a transiçãopolítica brasileira constitui processo constituinte democrático a longo prazo (CATTONI DE

OLIVEIRA, Democracia sem espera e processo de constitucionalização, cit., pp. 227-230).

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