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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
CONFLITOS AMBIENTAIS NO USO DO ESPAÇO MARÍTIMO DO LITORAL NORTE DO RS
HELLEBRANDT, LUCENI. (1); WALTER, TATIANA. (2); MOURA, DANIELI VELEDA. (3); HADRICH SILVA, RAQUEL. (4); ANELLO, LÚCIA DE FÁTIMA
SOCOOWSKI DE. (5)
1. UFSC. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas
2. FURG. Docente e Pesquisadora do Instituto de Oceanografia [email protected]
3. FURG. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental
4. FURG. Graduanda do Curso de Oceanologia [email protected]
5. FURG. Docente e Pesquisadora do Instituto de Oceanografia
RESUMO
O tema dos conflitos ambientais se destaca com o surgimento de discussões sobre justiça ambiental, que passam a dar visibilidade para grupos sociais subjugados e marginalizados em alguns processos decisórios. Um desses conflitos surge no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, numa discussão opondo pescadores artesanais profissionais e praticantes de surf. Este embate levou à promulgação de uma Lei Estadual que proibiu a prática da pesca artesanal profissional com o uso de tarrafa. Sob a ótica da justiça ambiental, esta pesquisa buscou, de forma interdisciplinar, fornecer subsídios científicos para que os pescadores artesanais profissionais e a Secretaria de Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo do Rio Grande do Sul pudessem questionar a normativa proibitiva desta atividade tradicional no litoral. Assim, apresentamos a caracterização da pesca com tarrafa e os aspectos socioeconômicos da atividade, a análise de risco da atividade para usuários do espaço marítimo e riscos ao ambiente, através de revisão de literatura científica, jornalística e legislação, o que resultou na demonstração que a Lei Estadual promulgada estava em desacordo com as normativas ambientais e prejudicando a reprodução social dos pescadores profissionais artesanais do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: conflito ambiental. pesca artesanal. Litoral Norte do RS
A análise sobre os conflitos ambientais se constitui tema central à problemática
ambiental. Para Acselrad (2004) os conflitos ambientais são oriundos de modos diferenciados
de apropriação, uso e significação do território, e se originam quando um ou mais grupos têm
ameaçada a continuidade de suas formas de apropriação/ reprodução social devido à atuação
de outros grupos. Estes conflitos podem advir da disputa por apropriação de uma mesma
base de recursos, ou de bases distintas, interconectadas por relações ecossistêmicas.
Ademais, possuem dimensão econômica, política, social, cultural, cognitiva e simbólica,
resultando em diversidade e complexidade de estratégias entre os atores sociais envolvidos.
Gradativamente, o tema passa a fazer parte da agenda de diversos Movimentos
Sociais, incorporando a problemática ambiental às lutas por justiça social. Assim, surge no
final da década de 1980, nos Estados Unidos, o conceito de Justiça Ambiental, quando
movimentos sociais operários e população negra deflagram que a poluição e os riscos do
processo industrial não estão igualmente distribuídos na sociedade (Acselrad et. al, 2004).
No Brasil, o Movimento por Justiça Ambiental surge em 2001. Com proposta ampla,
incorpora um conjunto de princípios para assegurar que nenhum grupo de pessoas (sejam
grupos étnicos, raciais ou de classe) suporte uma parcela desproporcional de consequências
ambientais negativas, geradas a partir de operações econômicas, ou de políticas e programas
de governo, ou ainda, resultantes de sua ausência.
A compreensão sobre os conflitos ambientais, na perspectiva das Ciências Sociais
Críticas, concomitantemente ao debate em torno da Justiça Ambiental, aponta para a
necessidade de readequação dos instrumentos de gestão ambiental, como forma de romper
com o paradigma da adequação tecnológica, inserindo mecanismos que se pautam no
paradigma da sustentabilidade. Surge o entendimento que a mediação promovida pela gestão
ambiental, por meio do Estado, deve ser conduzida na perspectiva de promover à justiça
ambiental, focando em grupos que sofrem injustiças sociais oriundas do modelo de
desenvolvimento vigente. Assim, reconhece assimetrias em torno dos processos políticos e
econômicos, demandando da Gestão Ambiental Pública uma negociação social conduzida
com intencionalidade e direcionalidade, que muda o foco de reproduzir desigualdades sociais
para atender ao seu papel perante a sociedade.
Nesta perspectiva, o presente trabalho apresenta um conflito ambiental ocasionado
pelo uso do espaço marítimo por pescadores artesanais e demais usuários, no Litoral Norte
do estado do Rio Grande do Sul, divisa com o estado de Santa Catarina (Fig. 1). Este conflito
culminou na proibição da atividade de pesca artesanal através de uma lei estadual (Lei nº
13.660/2011), levando a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural, Pesca e
Cooperativismo (SDR/RS) a buscar elementos científicos como subsídios para pautar a
revisão da normativa pelo Ministério Público, com a finalidade de assegurar aos pescadores
artesanais seu direito à reprodução social.
Fig. 1: Área da pesquisa: Litoral Norte do RS
Fonte: equipe do Projeto Cadeia Produtiva/RS utilizando Google Earth (2013)
Na busca por estes subsídios científicos, a SDR/RS contatou a equipe que desenvolve
o projeto “Análise das cadeias produtivas do pescado oriundo da pesca artesanal e/ou
aquicultura familiar no estado do Rio Grande do Sul” (convênio 2401/2011 – SDR/FURG).
Para conduzir esta pesquisa, a equipe multidisciplinar do projeto reuniu conhecimentos
oriundos das áreas de oceanografia, ciências sociais, direito e educação ambiental, utilizando
metodologias específicas descritas mais à frente, com a finalidade de produzir um relatório
técnico que respondesse sobre as implicações da atividade pesqueira artesanal neste conflito
ambiental.
Caracterização do conflito
O histórico deste conflito envolve pescadores artesanais profissionais e surfistas e
centra-se, inicialmente, na “pesca de cabo”. Segundo Cotrim (2008), esta pesca envolve uma
estrutura formada por uma poita, corda, bóia e um ponto de praia, e é montada na beira-mar
no início de cada temporada e desfeita no final do período de veraneio. Funciona com uma
demarcação entre pontos para colocação de cabos pelos pescadores na extensão de praia,
de forma que a praia comporta um número fixo de pescadores. Por esta característica, há um
acordo social entre os pescadores, que repercute na hora da retirada da rede do mar, pois é
necessária a tração do cabo através da ação de vários pescadores, ou ainda, com carros. As
espécies-alvos são: papa terra, tainha, anchova e corvina. Durante o inverno, o cabo é
utilizado para a pesca do camarão sete barbas.
Na pesca de cabo, o uso das praias por turistas ou surfistas fica prejudicado, e há
registros de mortes por afogamento de esportistas que ficaram presos em cabos ou redes.
Como consequência, duas normas foram criadas para o seu ordenamento. Uma obrigou a
retirada de toda estrutura de pesca no período de veraneio, para que o espaço fosse utilizado
por banhistas. A outra demarcou espaços para uso exclusivos, tanto de pesca, como da
prática de surf. Como alternativa, neste período e nas áreas delimitadas para o lazer, os
pescadores artesanais passaram a utilizar redes de espera ou tarrafa.
Entretanto, o conflito não desapareceu. Como desdobramento e por pressão de
surfistas, foi promulgada a Lei Estadual no 13.660/2011, que obriga os municípios a ordenar
os locais destinados aos desportos de diferentes modalidades, à recreação e ao lazer em
geral, proibindo a pesca profissional em todas as suas modalidades com redes, inclusive a
tradicional pesca de tarrafa.
Dada esta situação, pescadores artesanais do Litoral Norte, em conjunto com a
SDR/RS, demandaram a elaboração de uma pesquisa que apresentasse uma análise
científica sobre a tarrafa, em que pese ela se constitui uma arte de pesca danosa ao meio
ambiente, ou se gera riscos de incidentes aos outros usuários da praia.
Assim, o objetivo do trabalho foi de subsidiar os pescadores artesanais do Litoral
Norte, através da SDR/RS, na negociação junto ao Ministério Público, analisando o risco
gerado pelo uso de tarrafa aos demais usuários do espaço marítimo. Ou seja, buscamos
verificar se a proibição desta arte de pesca se justifica, considerando: i) seus impactos sobre o
ambiente, ii) em relação ao risco de incidentes com outros usuários do espaço marítimo; iii) a
importância como atividade produtiva e reprodutiva das famílias de pescadores que com o uso
dela se sustentam.
A fundamentação teórica da justiça ambiental e dos conflitos ambientais orientou os
pesquisadores na formulação da análise, dado que os mesmos ocorrem sob relações de
poder assimétricas e que a dependência sobre o ambiente não é a mesma nos diversos
grupos sociais que fazem uso do território.
Procedimentos para a pesquisa
Para a realização dessa tarefa, utilizamos como metodologia a sistematização de
dados secundários através de revisão de literatura científica, leitura e análise de artigos de
cunho jornalístico (não acadêmico) via internet, pesquisa nos sites oficiais dos órgãos
competentes e relação à pesca, bem como a leitura e análise dos instrumentos legais, dentre
eles, legislação, doutrina e jurisprudências, envolvendo a tarrafa.
Para realizar a análise de artigos jornalísticos, foi necessário limitar o universo a ser
investigado. Optamos por utilizar os jornais brasileiros impressos que possuem também
versão digital, permitindo verificação na internet. Desta foram, a pesquisa ocorreu a partir da
base de jornais cadastrados na Associação Nacional de Jornais – ANJ (http://www.anj.org.br)
para os cinco jornais pagos de maior circulação no país, adicionando todos os jornais
associados dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, todos de circulação diária.
Para complementar a base de jornais a serem investigados, adicionamos os jornais que
encontramos em versões também digitais das cidades específicas que compõem o Litoral
Norte do estado do Rio Grande do Sul, geralmente de circulação semanal da edição impressa.
Após a seleção de jornais, realizamos uma pesquisa pela palavra “tarrafa” nas edições
que correspondem a um período amostral de cinco anos, de 15/12/2007 até 14/12/2012.
Sempre que houve ocorrência da palavra “tarrafa”, o artigo foi separado para posterior análise
de conteúdo (Duarte, 2006). Os jornais pesquisados, a área de abrangência e o número de
ocorrências da palavra “tarrafa” estão compilados na Tabela 1.
Tabela 1 – Relação de Jornais investigados e ocorrências do termo pesquisado
Jornal Endereço eletrônico Ocorrências Gerais - Tarrafa
Jornais de maior circulação nacional, associados da ANJ – circulação diária
O Tempo (Super Notícia)
http://www.otempo.com.br 2
Folha de São Paulo http://www.folhaonline.com.br 0
Extra http://www.extra.inf.br 0
O Estado de São Paulo
http://www.estadao.com.br 1
O Globo http://www.oglobo.com.br 0
Jornais associados da ANJ do estado de Santa Catarina – circulação diária
A Notícia http://www.an.com.br 0
Correio Lageano http://www.correiolageano.com.br 0
Diarinho http://www.diarinho.com.br 0
Diário Catarinense http://www.diario.com.br 0
Jornal de Santa Catarina
http://santa.com.br 0
Notícias do Dia http://clickric.com.br 0
Jornais associados da ANJ do estado do Rio Grande do Sul – circulação diária
Correio do Povo http://www.correiodopovo.com.br 5
Diário da Manhã http://www.diariodamanha.net 1
Diário Popular http://www.diariopopular.com.br 0
Gazeta do Sul http://www.gazetadosul.com.br 0
Jornal do Comércio http://www.jornaldocomercio.com.br 0
Jornal do Povo http://www.jornaldopovo.com.br 0
Jornal NH http://www.jornalnh.com.br 2
Jornal VS http://www.jornalvs.com.br 0
O Sul http://www.osul.com.br 0
Pioneiro http://www.clickrbs.com.br 0
Zero Hora http://www.clicrbs.com.br 17
Jornais do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, não associados da ANJ e de circulação semanal
Rota do Mar http://www.jornalrotadomar.com.br 0
Folha do Litoral http://folhadolitoral.blogspot.com.br/ 0
Costa do Mar & Serra http://www.jornalcostadomar.ors.com.br 0
Litoral Notícias www.lnjornal.com.br/ 0
Dimensão www.jornaldimensao.com.br/ 7
Jornal da Cidade http://www.jctorres.com.br 1
A Folha http://www.afolhatorres.com.br/ 0
Bons Ventos http://www.jornalbonsventos.com.br/ 0
Jornal Revisão http://www.jornalrevisao.com.br/ 0
Resultados
Caracterização da pesca de tarrafa:
Não há muitos estudos sobre esta arte de pesca e a importância de sua utilização na
pesca artesanal profissional no Litoral Norte do estado do Rio Grande do Sul. O estudo de
Cotrim (2008) apresenta alguns dados: segundo o autor, a tarrafa reproduz a técnica utilizada
pelos primeiros moradores da região, portugueses, índios e negros que ali pescavam e
confeccionavam suas redes. A espécie-alvo é a tainha e a atividade é realizada
individualmente, com uma rede circular que tem pesos de chumbo nas extremidades e um
cabo de resgate no centro.
O pescador lança a tarrafa na água, através de um movimento coordenado, após
identificar o melhor local, baseado no reflexo do sol sobre os peixes, que indica a existência do
cardume. Portanto, a técnica requer prática, experiência, e conhecimentos passados através
de gerações.
Segundo orientações de um fabricante de tarrafas (Figura 2), as maiores possuem 25
metros de circunferência e aproximadamente 8 metros de diâmetro, no momento de maior
abertura, e três metros e meio de altura. Consequentemente, o pescador lança a tarrafa até
sete metros de distância do seu corpo em direção ao alvo, cobrindo uma área de doze metros.
Nesta área, ele possui total controle no momento do içamento, pois o centro da tarrafa está
presa a sua mão por uma corda.
A tarrafa é então içada na direção do pescador. Este movimento faz com que ela se
feche pelo fundo, aprisionando os peixes. Deste modo, a tarrafa não fica à deriva e nem
trabalha em regime de espera. O pescador está todo o tempo segurando a rede, e dela tem
controle. Ou seja, há pouco risco de que a tarrafa seja levada pelas correntes ou ondas na
direção de um banhista.
Fig. 2: Forma de manusear a tarrafa conforme orientações do fabricante.
(http://www.artpesca.com.br/tarrafas.html).
A figura 3 apresenta uma foto demonstrando o caimento da tarrafa na água,
elucidando como a mesma captura o pescado.
Figura 3 – Foto do caimento de uma tarrafa na água. Observe que a mesma é lançada no campo de
visão do pescador. Fonte: Wikipédia.
Atualmente, 20% dos pescadores artesanais profissionais do Rio Grande do Sul
encontram-se no Litoral Norte, e utilizam, sobretudo, o período de veraneio para escoar sua
produção. O pescado é processado em casa e armazenado em congeladores, e a
comercialização é realizada diretamente para o consumidor. Essa forma de comercialização
direta fortalece o contexto turístico litorâneo.
Cotrim (2008) ainda observou que um grande número de veranistas pesca com o uso
de tarrafas na barra do Rio Tramandaí, situação que não gera conflito por uso de espaço, mas
sim uma relação amistosa entre pescadores profissionais e amadores, sendo que estes
turistas são os principais compradores de tainhas capturadas pelos profissionais.
Análise do risco de seu uso a outros usuários:
Para guiar nossa pesquisa, três perguntas foram fundamentais: 1) Em quais contextos
a “tarrafa” é citada na mídia? 2) Ela é citada enquanto arte de pesca perigosa? 3) Para quem
ela é uma arte de pesca perigosa?
A amostra total englobou 31 jornais pesquisados, sendo 5 de abrangência nacional, 6
para o estado de Santa Catarina, 11 para o estado do Rio Grande do Sul, e outros 9
específicos para a região deste estudo. Durante o período de cinco anos compreendido pela
amostra selecionada, encontramos 36 artigos que traziam em seu corpo o termo “tarrafa”.
Fizemos análise de conteúdo nos 36 artigos, de forma a classificá-los em categorias.
Geramos quatro categorias, conforme a Tabela 2, que informa a categoria criada, o número
de artigos na categoria, e um exemplo de notícia que foi classificado conforme esta categoria.
Das 36 ocorrências, a categoria sobre acidentes possui apenas seis ocorrências,
tratando de quatro casos distintos, todos com morte. Apesar das mortes, todos os acidentes
foram com pescadores amadores que não dominavam a arte de pesca e se afogaram em
virtude disso. Em nenhum momento foi relatado algum acidente que envolvesse outro grupo
social, tais como veranistas, surfistas ou outros praticantes de esportes náuticos, nem
pescadores profissionais.
Por outro lado, a maior parte das notícias evidencia a tarrafa como elemento cultural,
associando-a como atributo turístico.
Tabela 2: Categorias, ocorrência e exemplos de notícias.
Categoria
Nº de
ocorrências N=36
Exemplo de notícia
Fiscalização e apreensão de tarrafas em épocas de pesca proibida –defeso das espécies
7
“Patram realiza novas apreensões na região” http://www.diariodamanha.net/noticias.asp?a=view&id=5228
Acidentes com tarrafas
6
“MORTE EM PESCARIA” http://www.clicrbs.com.br/dsm/rs/impressa/4,38,3957297,20849
Ações para o ordenamento da orla com zoneamento para pesca com tarrafa, sobretudo pesca amadora
3
“Demarcações das áreas de pesca e surf seguem gerando polêmica em Imbé” http://www.jornaldimensao.com.br/?id=5&n=40211
Notícias gerais sobre a cultura pesqueira, incluindo promoção ao turismo utilizando o diferencial da pesca com tarrafa
20
“PRAIA DO SONHO: UM PARAÍSO PERDIDO
NO MEIO DA MATA NATIVA” http://www.jornalnh.com.br/litoral/346918/praia-do-sonho-um-paraiso-perdido-no-meio-da-mata-nativa.html
Análise da legislação ambiental sobre pesca artesanal de tarrafa e sua
‘nocividade’ ao ambiente:
Conforme especifica o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBIO), a pesca
artesanal tem características bastante diversificadas, tanto em relação aos diferentes habitats
explorados, quanto aos estoques pesqueiros e às técnicas de pesca utilizadas. Um fator
adicional de complexidade nesta categoria de pesca são os diferentes tipos de usuários, com
diferentes estratégias e conhecimentos da arte. É com base na complexidade das pescarias,
que o ICMBIO apresenta algumas das principais artes de pescas relativas à pesca artesanal,
nos interessando aqui, particularmente, a tarrafa (Fonte:
http://www.icmbio.gov.br/cepsul/artes-da-pesca.html), especificamente no que diz respeito ao
modo como o seu uso está regulamentado no ordenamento ambiental pesqueiro.
Desse modo, iniciamos nosso propósito de compreender o uso da tarrafa no
ordenamento ambiental, - a permissão ou a proibição da mesma -, afirmando que o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) esclareceu que a
proibição do uso de tarrafas, conforme a Portaria nº 30/2003, atingia apenas a atividade de
pesca amadora1, ou seja, a pesca com fins de lazer e desporto. “A proibição do uso de tarrafas
em atividades de pesca amadora a partir da publicação da Portaria nº 30 deve-se ao fato de
que esse apetrecho coleta peixes em maior quantidade e tamanhos impróprios. Além disso,
não permite a sobrevivência do animal depois da captura” (Fonte: Ambiente Brasil).
Vemos que a proibição expressa no ordenamento em relação ao uso da tarrafa
referia-se ao pescador amador e, portanto, entendemos que “aqueles que, tradicionalmente,
pescam para a subsistência própria ou de suas famílias podem continuar a utilizar a tarrafa'”,
conforme explicou Rômulo Mello, diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do IBAMA (Fonte:
Ambiente Brasil).
O uso da tarrafa quando proibido aos pescadores profissionais (e aí, os pescadores
artesanais) deve-se ao período da piracema (ou defeso), uma vez que os estoques
encontram-se em período reprodutivo. Tal proibição ocorre independente do petrecho de
pesca utilizado.
No entanto, mesmo em relação aos pescadores amadores, a Portaria IBAMA n° 4, de
19 de março de 2009, a qual visa estabelecer normas gerais para o exercício da pesca
amadora em todo território nacional, inclusive competições e cadastros de entidades da pesca
amadora junto ao IBAMA, estabeleceu no seu art. 3º, alínea d que:
Art.3º Os pescadores amadores, inclusive os praticantes da pesca subaquática, obterão a Licença para Pesca Amadora mediante o pagamento de uma taxa, definida na legislação em vigor, a ser recolhida junto à rede bancária autorizada, em formulário próprio, para uma das seguintes categorias: I -Pesca Desembarcada (Categoria A): realizada sem o auxílio de embarcação e com a utilização de linha de mão, caniço simples, anzóis simples ou múltiplos, vara com carretilha ou molinete, isca natural ou artificial e puçá para auxiliar na retirada do peixe da água. d) Nas áreas litorâneas, o uso de tarrafas poderá ser autorizado com base em padrões e critérios técnicos estabelecidos por ato normativo das Superintendências do IBAMA, em cada Unidade da Federação, com anuência prévia da Diretoria de Biodiversidade e Florestas deste Instituto, não sendo
1 O Decreto-lei nº 221/67 e agora a Lei nº 11.959 de 2009, art. 2º, inciso XXI, definem como amador, a pessoa
física, brasileira ou estrangeira, que, licenciada pela autoridade competente (IBAMA), pratica a pesca sem fins econômicos.
permitido o uso destes petrechos em águas estuarinas e continentais. (grifos nossos)
Diante disso, se a pesca de tarrafa sofrendo os limites estabelecidos pela Portaria nº 4
de 2009 do IBAMA, pode até mesmo ser utilizada pelos pescadores amadores, outrora,
impedidos pela Portaria 30 de 2003 do mesmo órgão, depreende-se que não há
impedimento ao uso da tarrafa pelos pescadores profissionais, modalidade artesanal
(grifo nosso),desde que respeitados os demais dispositivos legais, tais como os expressos
na Lei nº 11.959 de 2009 e na Lei nº 9.605 de 1998, conforme respectivos destaques abaixo:
Art. 6O O exercício da atividade pesqueira poderá ser proibido transitória, periódica ou permanentemente, nos termos das normas específicas, para proteção: I –de espécies, áreas ou ecossistemas ameaçados; II –do processo reprodutivo das espécies e de outros processos vitais para a manutenção e a recuperação dos estoques pesqueiros; III –da saúde pública; IV–do trabalhador. § 1o Sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, o exercício da atividade pesqueira é proibido: VII –mediante a utilização de: d) petrechos, técnicas e métodos não permitidos ou predatórios.
Art. 36. Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico,ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora.
Pela análise dos dispositivos, principalmente, os relativos às Portarias supracitadas,
nos parece que o motivo pelo qual a Portaria nº 30 limitava o uso da tarrafa pelos pescadores
amadores, qual seja, o de ser ela uma pesca, com risco de ser predatória, já não é mais
aceita, tendo em vista a sua atual permissão. Neste caso, se antes a tarrafa era proibida aos
pescadores amadores e não aos pescadores profissionais, entende-se que, com o advento da
Portaria nº 4 de 2009 que permite o uso de tal instrumento pela pesca amadora, estende-se tal
permissão também à pesca artesanal, tendo em vista que já não havia disposição expressa
proibindo-a. Aliás, o que há são disposições que vêm corroborar com este nosso
entendimento como as Instruções Normativas nº 171 de 09 de maio de 2008, do IBAMA e nº
17 de 17 de outubro de 2004, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
A Instrução Normativa nº 171 de 09 de maio de 2008 do IBAMA, visa estabelecer
normas, critérios e padrões para o exercício da pesca em áreas determinadas e,
especificamente, para a captura de tainha (Mugil Platanus e M. Liza), no litoral das regiões
Sudeste e Sul do Brasil. Em seu art. 2º tal lei estabelece que:
Art. 2º Proibir, anualmente, no período de 15 de março a 15 de agosto, a prática de todas as modalidades de pesca, em todas as desembocaduras estuarino-lagunares do Litoral das regiões Sudeste e Sul. Parágrafo 3º: A proibição de que trata o “caput” deste artigo não se aplica à pesca com tarrafa e não impede que o pescador exerça a atividade pesqueira nas áreas adjacentes às proibidas. (grifos nossos)
No mesmo sentido, trazemos como exemplo, o embasamento legal do uso da tarrafa
por pescadores artesanais, agora especificamente no que se refere à bacia hidrográfica do
Rio Tramandaí-RS, conforme dispõe a Instrução Normativa nº 17 de 17 de outubro de 2004, a
qual visa estabelecer critérios técnicos e padrões de uso para a atividade de pesca em tal
bacia, a qual dispõe:
Art. 8º Proibir a pesca nos rios e canais que interligam as lagoas da área definida no art. 1º desta Instrução Normativa, exceto para: III –a pesca profissional desembarcada ou embarcada com rede caída (tarrafa) com malha mínima de sessenta milímetros entre nós opostos de malha esticada, para pescadores detentores da licença ambiental concedida pelo IBAMA. (grifos nossos)
No entanto, embora todos os regramentos dispostos pelos órgãos ambientais tenham
considerado a tarrafa uma modalidade permitida, a Lei Estadual nº 13.660 de 2011, a qual
altera a Lei nº 8.676, de 14 de julho de 1988, veio a determinar a obrigatoriedade de
demarcação das áreas de pesca, lazer ou recreação, nos municípios com orla marítima,
lacustre ou fluvial:
Art. 1º - O art. 1º da Lei nº 8.676, de 14 de julho de 1988, que determina a obrigatoriedade de demarcação das áreas de pesca, lazer ou recreação, nos municípios com orla marítima, lacustre ou fluvial, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º - Os municípios que em seu território tiverem praias banhadas por lagoas ou rios deverão demarcar, nas áreas centrais de todos os seus balneários, no prazo de 60 (sessenta) dias, numa extensão de 450m (quatrocentos e cinquenta metros), os locais destinados aos desportos de diferentes modalidades, à recreação e ao lazer em geral. § 1º - Para os municípios que possuem em seu território praias banhadas por mar, a extensão mínima para a demarcação referida no “caput” deste artigo será de 2.100m (dois mil e cem metros). § 2º - Nas áreas mencionadas neste artigo, fica proibida a pesca profissional com redes, excluindo-se desta proibição a pesca amadora, praticada com linha de mão e caniços. (grifos nossos)
Esta lei estadual, ao contrário das instruções normativas dos órgãos ambientais, trata
o ambiente como um todo homogêneo, não considerando as peculiaridades de cada lugar.
Assim, ignora os espaços destinados ao pescador artesanal quando, por exemplo, procura
priorizar a pesca amadora e não a artesanal, tradicionalmente realizada em nossos litorais,
cujo litoral norte do estado do Rio Grande do Sul é um exemplo.
Ademais, a Lei Federal nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, em seu artigo 3º
considera como população tradicional àquela “população vivendo em estreita relação com o
ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural,
por meio de atividades de baixo impacto ambiental”. Nesta tipologia enquadram-se
perfeitamente os pescadores artesanais que exercem sua atividade em estreita harmonia com
os limites e possibilidades que o ambiente natural da região costeira lhes impõe, obedecendo
ainda as técnicas, regras e normas herdadas das gerações passadas (DIEGUES, 1983).
Logo, negar o acesso desses trabalhadores a um bem comum do povo é uma questão
que fere os Princípios Fundamentais previstos no art. 1º da nossa Constituição Federal -
Princípio da Cidadania, Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Valores Sociais do
Trabalho, pois é destas águas que tais trabalhadores retiram o seu sustento e de suas
famílias, garantindo assim, sua sobrevivência enquanto seres humanos e sua reprodução
enquanto grupo social.
Salientamos também que pelo teor da referida lei estadual, entendemos que não há
impedimentos legais suficientemente expressos que impeçam o pescador de exercer a sua
atividade profissional em outras áreas, conforme o Princípio da Legalidade apregoado pelo
art. 5º, inciso II da Constituição Federal de 1988.
Conclusões
Buscando um ponto de equilíbrio da pesca artesanal com as demais atividades
exercidas, especialmente no litoral norte, área de conflito entre esta atividade e outras tantas
que movimentam essa região, nosso propósito foi defender o uso da tarrafa como instrumento
de pesca pelos pescadores profissionais artesanais, já que este instrumento não prejudicará
os demais usos das águas.
Fundamentamos nossa pesquisa em uma visão que o conflito é intrínseco ao sistema
social vigente, uma vez que o ambiente é parte da própria sociedade. Os conflitos ambientais
possuem dimensão social, econômica, política, cultural e cognitiva, devendo qualquer análise
compreender tais elementos. Não menos relevante é a relação entre ambiente e território,
uma vez que uma proposição de ordenamento territorial, como a Lei 13.660/2011, reverbera
sobre práticas sociais dependentes do ambiente.
Não obstante, os preceitos da justiça ambiental revelam a existência de uma
assimetria social pré-existente, fator que consubstancia para a reprodução de decisões que
desqualificam determinados grupos na manutenção de suas práticas, ainda que as mesmas
sejam consoantes à preservação ambiental.
A partir desta fundamentação e com base nos resultados da pesquisa realizada,
defendemos a permanência da prática com tarrafa pelos pescadores profissionais artesanais,
baseando-nos no estudo aqui relatado.
Em primeiro, pela pesca profissional artesanal de tarrafas consistir em uma atividade
tradicional no litoral norte, de importância socioeconômica, seja em relação à geração de
renda aos pescadores seja em relação à oferta de proteína de qualidade a veranistas e
moradores locais. Ademais, é parte da cultura local, sendo esta característica a mais
evidenciada nas veiculações midiáticas pesquisadas.
A prática da tarrafa não oferta risco aos demais usuários do espaço marítimo. Além da
ausência de incidentes relatados na mídia, para um período de cinco anos, a característica da
própria arte de pesca, cujos pescadores possuem campo de visão sobre sua circunferência,
denota que a mesma não oferta qualquer risco a outros usuários do espaço marítimo.
Ademais, esta arte é permitida ao longo de todo país, não consistindo em pesca
predatória a não ser que realizada em períodos indevidos, quando especificado em legislação
própria.
Não permitir a pesca profissional artesanal de tarrafas no litoral norte significa negar
aos pescadores o direito a sua reprodução social e a manutenção de uma atividade tradicional
inestimável ao país e não se justifica frente aos demais usos do espaço marítimo. Tendo em
vista que tal espaço é um bem comum, sua regulação deve de antemão, considerar aqueles
grupos de maior dependência a este ambiente, direito que a Lei 13.660/2011 nega aos
pescadores profissionais artesanais.
Posto isso, verificamos que em 05 de agosto de 2013 foi promulgada a Lei Estadual
14.285/2013 permitindo o uso de tarrafas pelos pescadores profissionais, fato que denota que
a pressão social dos pescadores com os subsídios formulados na presente pesquisa
reverberaram de forma positiva na negociação junto ao Ministério Público
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