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COM O CRIME EM MENTE Antologia de Contos Policiais pelas melhores escritoras do século xx Livros publicados Um Gosto a Cinzas Na Presença do Inimigo Decepção Fatal Perseguindo o Seu Pecado A PUBLICAR Com o Crime em Mente, Vol. 2 Memória Infiel ELIZABETH GEORGE COM O CRIME EM MENTE Antologia de Contos Policiais pelas melhores escritoras do século xx Volume I PLANETA EDITORA Título original: Crime from the Mind of a Woman 26 compelling crime stories from some of the 20th century's best women writers 2002 by Susan Elizabeth George Reservados todos os direitos desta obra para publicação em Portugal de acordo com a legislação em vigor por:

COM O CRIME EM MENTE Antologia de Contos Policiais pelas

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COM O CRIME EM MENTE

Antologia de Contos Policiais pelas melhores escritoras do séculoxx

Livros publicados

Um Gosto a Cinzas

Na Presença do Inimigo

Decepção Fatal

Perseguindo o Seu Pecado

A PUBLICAR

Com o Crime em Mente, Vol. 2

Memória Infiel

ELIZABETH GEORGE

COM O CRIME EM MENTE

Antologia de Contos Policiais pelas melhores escritoras do séculoxx

Volume I

PLANETA EDITORA

Título original: Crime from the Mind of a Woman 26 compellingcrime stories from some of the 20th century's best women writers2002 by Susan Elizabeth George

Reservados todos os direitos desta obra para publicação emPortugal de acordo com a legislação em vigor por:

PLANETA EDITORA, LDA.

Travessa do Noronha, 21-1.? F - 1250-170 Lisboa

Telefone: 213978756 - Fax: 213951026

Apartado 2657 - 1117 Lisboa Codex - Portugal

www.planetaeditora.pt

e-mail: [email protected].

Tradução: Isabel Andrade e Ana faria

Revisão: Frederico Sequeira

Capa: Concepção gráfica dos estúdios da Planeta EditoraComposição, impressão e acabamento: Grafitexto, Lisboa

Depósito legal n.? 181808/02 ISBN 972-731-129-6

Proibida a reprodução no todo, ou em parte, por qualquer meio,sem prévia autorização do editor

índice

Introdução

Elizabeth George 7

Julgada pelos Seus Pares

Susan Glaspell 15

O Homem Que Sabia Como

Dorothy L. Sayers 41

Eu Descubro a Saída Sozinho

Ngaio Marsh 59

Os Veraneantes

Shirley Jackson 91

A Manhã do Dia de St. Patrick

Charlotte Armstrong 109

O Carmesim É o mais Importante

Dorothy Salisbury Davis 137

Dinheiro para Queimar

Margery Allingham 153

Um Belo Sítio para Viver

NedraTyre 167

Rápida e Inteligente

Christianna Brand 181

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Amantes Campesinos

Nadine Gordimer 197

A Ironia do Ódio

Ruth Rendell 209

Doce Baby Jenny

Joyce Harrington 227

Mostarda-dos-Campos

Marcea Muller 251

Jemima Shore no Túmulo Banhado de Sol

Antonia Fraser 265

Introdução

Quer estejamos perante uma história de mistério, uma narrativa desuspense, um estudo psicológico de personagens afectadas por um

acontecimento devastador, um relato de um crime famoso, umdrama de tribunal, uma apresentação pública de uma investigaçãopolicial ou uma descrição exacta e fidedigna de um delito real, apergunta é sempre a mesma. Porquê um crime? Quer aspersonagens envolvidas sejam agentes do FBI, polícias - homensou mulheres -, cientistas forenses, jornalistas, militares, o maiscomum dos cidadãos ou cidadãs, detectives particulares, ou asenhora idosa que mora na casa ao lado da nossa, a perguntacontinua a ser: Porquê um crime? Trate-se, ou não, de umassassínio (singular, em série ou em massa), de tumultos, de umroubo, de uma agressão, de um sequestro, de um assalto, de umasituação de extorsão ou de chantagem, havemos de continuar aquerer saber a resposta às perguntas: Porquê um crime? Porquêeste fascínio pelo crime, e sobretudo porquê este fascínio pelocrime por parte de tantas escritoras?

Julgo existirem várias respostas para estas perguntas.

A escrita policial é quase tão antiga como a própria escrita, sendopor isso parte integrante da nossa tradição literária. As mais antigashistórias sobre crimes chegaram até nós através da Bíblia. Numacesso de raiva, Caim mata Abel; movidos pela inveja, os irmãos deJosé vendem-no aos Egípcios como escravo, simulando depois asua morte diante do pai inconsolável; o ciúme e o desejo levamDavid a enviar

o marido da formosa Betsabé para a frente de batalha, ficandoassim livre para a seduzir sem entraves; cegos pelo desejo nãocorrespondido, dois respeitáveis anciãos testemunham em falsocontra a virtuosa Susana, condenando-a à morte por adultério, anão ser que alguém se disponha a desmascará-los. As narrativasbíblicas falam de pais que se deitam com as filhas, de irmãos quese matam, guerreiam e difamam, de mulheres que exigem ascabeças dos maridos em salvas de prata. Judite decapitaHolofernes, Judas trai Jesus de Nazaré, Herodes ordena a matançade todos os filhos recém-nascidos dos Hebreus... O Antigo e o NovoTestamentos estão cheios de episódios terríveis e violentos que hámuito constituem para nós uma fonte de inspiração.

O crime acontece sempre que os homens se encontram numasituação-limite, in extremis. Mais do que isso, o crime significa umainfracção das normas por parte dos homens. Por cada Caim, houvemilhares de milhões de irmãos que coexistiram em harmonia aolongo dos séculos. Por cada David, houve dezenas de milhões dehomens que se afastaram das mulheres que desejavam aosaberem que elas estavam comprometidas com outra pessoa. Éisto, no entanto, que torna o crime tão interessante, não aquilo queas pessoas fazem normalmente.

Que bom seria poder acreditar que os carros abrandam na auto-estrada sempre que há um acidente, devido a um acrescido sentidode prudência por parte dos condutores. Todos eles conseguem veras luzes intermitentes na estrada à sua frente, o fumo, o aparato, asambulâncias e os carros dos bombeiros. Por isso travam a fundopara não terem um fim idêntico ao dos infelizes que naquele precisomomento estão a ser desencarcerados de uma amálgama de metalretorcido. Todavia, não é por esta razão que os condutorescostumam abrandar. Fazem-no, sim, para poderem observar a cenaembasbacados, espicaçados pela curiosidade. Porquê? Porque umacidente na auto-estrada é um desvio da normalidade, e os desviosda normalidade interessam-nos. Despertam sempre o nossointeresse. Assim é desde o início dos tempos e sempre assim será.

Os crimes brutais costumam ter honras de primeira página. Raptos,desaparecimentos, distúrbios, acidentes rodoviários fatais, quedasde aviões, ataques terroristas, assaltos à mão armada, atiradoresque disparam sobre alvos desprotegidos... tudo isto faz parte donosso quotidiano, alertando-nos para a fragilidade das nossasexistências individuais e, simultaneamente, estimulando o nossoapetite por ficar a saber. A nação americana parou para ouvir overedicto do caso de O. J. Simpson, porque fosse o que fosse quetivesse acontecido na Bundy Drive, estavam em jogo emoçõesprimárias, e foram as emoções primárias envolvidas neste duploassassínio que despertaram as nossas próprias emoções primárias.O derramamento de sangue implica mais derramamento de sanguecomo represália. Procuramos uma punição que seja adequada a

cada crime. O crime é tão antigo como a própria humanidade, comotambém o são o sensacionalismo e a vingança.

A literatura policial proporciona-nos uma satisfação que nos éconstantemente negada nas nossas vidas. Na vida real, nuncahaveremos de saber quem de facto matou Nicole e Ron,suspeitamos apenas que havia um segundo homem armadoescondido entre os arbustos. Nada mais podemos fazer a não serinterrogar-nos sobre a mulher do Dr. Shepherd e sobre acapacidade de Jeffrey MacDonald para mentir ou dizer a verdade. Oassassino de Green River dilui-se no magma inicial de onde surgiu,o assassino do Zodíaco também, e a nós resta-nos apenasperguntar: quem era esta gente e por que motivo mataram? Naficção policial, porém, os assassinos enfrentam a justiça. Pode ser ajustiça no sentido exacto do termo, uma justiça poética ou umajustiça psicológica, mas enfrentam-na. São desmascarados e anormalidade é reposta. Para o leitor, isto é uma grande satisfação,certamente maior do que a que retira da própria investigação e dapunição aplicada a um crime real.

Para o escritor que deseja aprofundar os contornos daspersonagens, nada há de mais catastroficamente catalítico do que aintromissão de um crime numa paisagem que de outro modo seriatranquila e harmoniosa. Um crime representa uma prova severapara todos os envolvidos: os investigadores, o autor do crime, asvítimas e os que se relacionam com os investigadores, com o autordo crime e com as vítimas. Esta prova severa imposta pelos maismonstruosos actos da vida constitui um teste ao temperamento daspersonagens. É quando as personagens são confrontadas com osmaiores desafios às suas crenças, à sua tranquilidade, à suasanidade e ao seu modo de vida que a sua patologia sedesencadeia. E é a partir do confronto entre a patologia dapersonagem e a patologia de todas as outras personagens que seconstitui a matéria do drama e a catarse.

Alguns dos textos mais memoráveis da nossa literatura têm umcrime hediondo como pano de fundo. O extraordinário dilemamental vivido por Hamlet para vencer a sua consciência erepresentar o papel de Nemesis jamais poderia acontecer se o seu

pai não tivesse sido envenenado na sequência de um acto brutal defratricídio. Édipo não poderia cumprir o seu destino sem primeiromatar o rei Laio na estrada de Tebas. Medeia não estaria nasituação em que se encontra em Corinto - uma pária prestes a serexpulsa por um Creonte nervoso e demasiado ciente das suascapacidades como feiticeira - se não fosse conhecida como sendo océrebro por detrás da morte do rei Pélias. Assim, não deveráconstituir nenhuma surpresa ficar a saber que os crimes continuamnão só a fascinar os escritores, como a servir de suporte para muitada sua prosa.

Um crime desempenha duas funções num texto literário. Primeiro,serve de fio condutor da história: o crime tem de ser investigado edesvendado através das reviravoltas e maquinações contidas noenredo. Em segundo lugar, e talvez mais importante ainda, o crimefunciona também como o esqueleto do corpo da história que aescritora quer contar. Sobre este esqueleto, ela pode colocar tudoquanto queira, muito ou pouco. Pode manter o esqueleto totalmentedescarnado e contar uma história que se desenvolve lentamente, deforma concisa e sem desvios nem devaneios até culminar narevelação e conclusão. Ou pode cobrir o esqueleto com osmúsculos, os tecidos, as veias, os órgãos e o sangue quecaracterizam a imensa diversidade de elementos narrativos comosejam o tema, a análise das personagens, os símbolos literários eos que pertencem à esfera do vivido, os enredos secundários, etc.,bem como de elementos específicos de uma história policial comoas pistas, os elementos de diversão, o suspense e uma lista demotivos próprios das histórias de mistério, como a câmara de mortehermeticamente fechada (ou um quarto fechado), o local maisóbvio, o rasto de pistas falsas deixadas pelo verdadeiro assassino,a ideia fixa, etc., etc. Assim, as suas personagens podem caminharde mãos dadas em direcção a uma conclusão inelutável oudesviarem-se do seu caminho por força de uma miríade depossibilidades que é colocada à sua disposição por um fio condutorda narrativa mais abrangente e uma estrutura mais complicada.

Por que motivo, então, deverá a escritora considerar a possibilidadede fazer outra coisa qualquer? A meu ver, não existe nenhuma

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razão para tal. Porque, desde que ela aceite a ideia de que a únicaregra que existe é que não existem regras, o céu passa a ser olimite.

A questão da atracção que as autoras sentem pela literatura policialcontinua sem resposta. Esta é, de facto, uma pergunta que me temsido colocada vezes sem conta pelos jornalistas e com umaregularidade muito fastidiosa.

A Idade de Ouro das Histórias de Mistério na Grã-Bretanha e noespaço da Commonwealth - cuja época eu definiria como sendo operíodo compreendido entre os anos 20 e 50 do século xx - édominada pelas mulheres. De facto, os seus nomes constituem umpanteão ao qual todo o escritor moderno aspira pertencer. AgathaChristie, Dorothy L. Sayers, Ngaio Marsh, Margery Allingham... Nãoé muito difícil compreender por que motivo, ao longo do século xx,tantas escritoras se esforçaram por se juntar a tão distintacompanhia. Uma mulher que fizesse uma incursão num campo daliteratura, seria rapidamente seguida por outras. O fascínio pelaescrita policial por parte das mulheres pode, então, ser facilmenteexplicado do seguinte modo: as mulheres optaram por escreverhistórias policiais, porque foram bem-sucedidas. O êxito de umadelas fez nascer nas outras o mesmo desejo de sucesso. O mesmoé válido para os EUA. A diferença, porém, reside no facto de, nestepaís, a Idade de Ouro das Histórias de Mistério ser dominada porhomens e as mulheres só tardiamente terem feito a sua estreia nogénero. Quando nos referimos à Idade de Ouro na América,pensamos em Dashiell Hammet e em Philip Marlowe, cujasnarrativas na primeira pessoa são protagonizadas por detectivesprivados cínicos e empedernidos, que fumam, bebem bourbon,vivem em apartamentos sebentos e se referem desdenhosamenteàs mulheres como "ripas". Usam os revólveres e os punhos. Sãocriaturas solitárias e é assim que gostam de viver.

Entrar neste mundo dominado por homens requer coragem etenacidade por parte das escritoras. Algumas optaram por escreverhistórias de mistério mais suaves e simpáticas de modo a

oferecerem algo que estivesse mais de acordo com as delicadassensibilidades das leitoras femininas que esperavam atrair. Outrasdecidiram-se por uma entrada de rompante no círculo masculino,criando detectives privados do sexo feminino tão duros eimplacáveis como os homens que procuravam substituir. SueGrafton e Sarah Paretsky provaram

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de forma irrefutável que uma detective privada podia ser aceitetanto por um público masculino como feminino, tendo sido seguidaspor um grande número de outras escritoras. Deste modo, a arenafoi igualmente alargada nos EUA, oferecendo às mulheres outromercado para as suas energias criadoras.

A criação da ficção policial proporciona às escritoras uma amplapaisagem, tão vasta e variada quanto o próprio crime. Uma vez quenão há regras fixas e porque as poucas com que nos deparamosexistem para ser subvertidas (testemunham-no a excitação emtorno de The Murder of Roger Ackroyd quando foi publicado pelaprimeira vez em 1926), a escritora pode escolher qualquer cenáriopossível e depois povoá-lo com adolescentes como detectives,crianças como detectives, velhinhas como detectives, animais comodetectives, presos e agora fóbicos como detectives, professorescomo detectives, médicos como detectives, astronautas comodetectives, etc., até onde a imaginação a consiga levar. Partindodeste princípio básico da escrita policial, a verdadeira questãodeveria ser não por que motivo tantas mulheres escrevem históriaspoliciais, mas sim por que razão nem toda a gente as escreve?

Este livro não pretende responder a esta questão. Ele apresenta,todavia, para vosso entretenimento, uma vasta colectânea dehistórias policiais e de suspense escritas por mulheres. Como irãoreparar, esta colectânea inclui nomes estreitamente associados àescrita policial

- Dorothy L. Sayers, Minette Walters, Sue Grafton, PatriciaHighsmith e outras - a par de outros que normalmente não sãorelacionados com a escrita de policiais, como o de Nadine Gordimere Joyce Carol Oates. Tentei reunir um conjunto tão vasto quanto

possível de autoras, porque só ele reflecte as minhas maioresconvicções acerca da escrita policial. Ou seja, que a escrita policialnão tem de ser considerada um género literário. Ela não serestringe à existência de alguns executantes medianamentetalentosos. E mais importante ainda, é de facto algo que poderesistir, e resistirá, como sempre resistiu, à prova do tempo.

Para mim, como escritora, um dos maiores motivos de irritação é aquantidade de pessoas que obstinadamente consideram os policiaisuma forma literária menor. Ao longo dos anos, desde que escrevopoliciais, tenho conversado inúmeras vezes com pessoas quepartilham

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este estranho ponto de vista. Numa conferência sobre literatura, umhomem disse-me que iria escrever policiais para praticar e sódepois escreveria um "verdadeiro romance". ("Como se começassepor fazer rissóis até conseguir ter habilidade suficiente parapreparar um bolo de chocolate?", perguntei-lhe inocentemente).Certa vez, na Alemanha, uma jornalista perguntou-me o quepensava do facto de os meus romances não terem recensõescríticas num jornal intelectual do qual eu nunca ouvira falar. ("Ora,não sei. Acho que o jornal não tem muito impacte nas vendas",disse-lhe eu). Já por diversas vezes, no final das minhasintervenções, as pessoas me têm perguntado por que razão "umaescritora como a senhora não escreve romances sérios". ("Euconsidero os policiais ficção séria", costumo responder.) Contudo,por parte de alguns leitores e de alguns críticos existe sempre acrença subjacente de que o policial é algo que não deverá serlevado a sério.

Este é um ponto de vista despropositado. Embora seja verdade quealguns policiais são de fraca qualidade, escritos com frases feitas esem grande mérito, o mesmo se pode afirmar em relação aqualquer texto publicado. Alguns livros são bons, outros provocamindiferença e outros ainda são francamente maus. Todavia, arealidade é que um grande número de policiais fez o que a ficção"literária" instituída apenas sonhou fazer, ou seja, superou com êxito

a prova do tempo. Por cada Sir Arthur Conan Doyle, cujo SherlockHolmes continua a ser objecto de devoção e entusiasmo passadosmais de cem anos sobre a sua criação, existem milhares deescritores cuja obra de carácter ostensivamente literário caiu noesquecimento completo. Se me fosse dado escolher entre ser umaescritora "literária" conhecida e desaparecer dez anos depois de terdeixado de escrever ou ser rotulada "apenas como uma escritora depoliciais" e conseguir que as minhas histórias e romances fossemlidos cem anos depois, eu sei qual seria a minha escolha, e estoupersuadida que qualquer escritor de bom senso faria a mesma queeu.

Na minha opinião, a literatura é tudo o que perdura. Enquanto foivivo, ninguém afirmou que William Shakespeare escrevia boaliteratura. Era um dramaturgo popular que povoava as suas peçascom personagens representativas de todos os níveis possíveis deeducação e experiência que compunham o seu público. CharlesDickens escreveu folhetins para jornais, redigindo-os tão depressaquanto

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possível a fim de poder sustentar a família, que não parava deaumentar. E o já referido Arthur Conan Doyle, um jovemoftalmologista em início de actividade, escrevia histórias de mistériopara passar o tempo, enquanto esperava a visita dos seuspacientes. Nenhum deles se preocupava com a imortalidade nemse questionava sobre se a sua obra seria considerada literatura,ficção comercial ou lixo. Todos eles estavam preocupados emcontar uma história fantástica, em contá-la bem e em apresentá-la aum público. O resto, entregavam - como fazem os homens emulheres de bom senso - nas mãos do tempo. Esta colectânea deautoras ilustra essa mesma filosofia: escrever aquilo que se quer efazê-lo bem. Algumas fizeram-no, morreram e alcançaram umpouco de imortalidade. As restantes continuam vivas, escrevendoainda, à espera para ver que destino o tempo lhes reserva. Todaspartilham de um mesmo desejo de estudar e analisar ocomportamento da humanidade perante uma situação-limite. A

situação-limite corresponde ao crime cometido. E a história é omodo como as personagens lidam com essa situação-limite.

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Julgada pelos Seus Pares

ôu-san Glaspell

& CiUéAN KEATING GLAÔPELL (1876-1948) nasceu emDavenport, Iowa, frequentou as Universidades de Drake e deChicago e trabalhou como jornalista antes de se dedicarexclusivamente à ficção, em 1901. O seu primeiro romance, TheGlory of the Conquered, foi publicado em 1909 e a sua primeiracolectânea de contos, Lifted Masks, em 1912. Seria, no entanto,como autora dramática que ela alcançaria grande notoriedade,culminando na controversa atribuição de um Prémio Pulitzer porAlison's House (1930), inspirado na vida de Emily Dickinson. Entre1914 e 1921, fez parte dos "Provincetown Players", um grupo deteatro boémio fundado pelo marido, George Cram Cook, umidealista. Entre os outros membros encontravam-se Edna et.Vincent Millay, Djuna Sarnes, Edna Ferber, John Ctaed e o escritorque viria a tornar-se o maior dramaturgo americano da época,Eugene O'Neill. Depois das primeiras histórias, populares intrigasromanescas bem ao gosto da tradição literária da época, Glaspelladoptou uma abordagem mais naturalista, a par das atitudespolíticas socialistas do seu marido, por influência deste e de FloydDell. A rebelião das mulheres contra o domínio de homens dementes obtusas era um tema constante. Uma das suas peças deum só acto, Trifles (1916), tornou-se a base da sua história maisfamosa, Julgada pelos Seus Pares (1917). Esta é, sem dúvida, umahistória policial - uma história em que, obedecendo ás regras daépoca, os detectives amadores revelam maior discernimento do queos profissionais -, ainda que singular e muito pouco convencional,onde a investigação serve para fazer passar um aspecto temáticosério.

Quando Martha Hale abriu a porta exterior e foi atingida por umarajada de vento norte, voltou atrás para ir buscar o seu grandecachecol de lã. Enquanto o enrolava apressadamente em volta dacabeça, os seus olhos percorreram a cozinha escandalizados. Asrazões que a levavam a sair estavam longe de ser vulgares -provavelmente eram até muito mais invulgares do que qualqueroutra coisa que tivesse acontecido em Dickson County. O que osseus olhos retiveram, porém, foi que a cozinha não estava emcondições de ser abandonada: o pão estava pronto a ser misturado,com metade da farinha peneirada e a outra metade por peneirar.

Odiava deixar coisas por acabar, mas era o que estava a fazerquando o grupo vindo da cidade passara para vir buscar Mr. Hale. Edepois, o xerife entrara a correr dizendo que a mulher gostava queMrs. Hale os acompanhasse, acrescentando com um sorriso quesupunha que ela estivesse assustada e desejasse a companhia deoutra mulher. Por isso, deixara tudo como estava.

- Martha! - ouvia agora a voz impaciente do marido. - Não deixes aspessoas aqui fora ao frio.

Voltou a abrir a porta, e desta vez juntou-se aos três homens e àmulher que esperavam por ela dentro do grande buggy de doisbancos corridos.

Depois de aconchegar bem a roupa ao corpo, lançou outro olhar àmulher sentada no banco de trás ao seu lado. Conhecera Mrs.Peters

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no ano anterior na feira do condado, e dela apenas se lembrava quenão tinha nada ar de mulher de um xerife. Era pequena e magra enão tinha uma voz forte. Mrs. Gorman, a mulher do xerife Gorman,que Peters viera substituir, tinha uma voz que de alguma formaparecia avalizar a lei a cada palavra que proferia. Contudo, se Mrs.Peters não se parecia com a mulher de um xerife, Peters, por seuturno, era a imagem viva de um xerife. Era exactamente o tipo dehomem que podia ser eleito xerife - um homem corpulento com umavoz sonora, particularmente afável para quem respeitasse e

cumprisse a lei, como se quisesse deixar claro que conhecia adiferença entre criminosos e não-criminosos. E naquele momentoveio à cabeça de Mrs. Hale que aquele homem, tão agradável ealegre com todos eles, se dirigia agora para casa dos Wright naqualidade de xerife.

- O campo não é muito agradável nesta época do ano - arriscou, porfim, Mrs. Peters, como se sentisse que ambas deviam conversarcomo os homens.

Mrs. Hale quase não teve tempo de retorquir, já que entretantochegaram ao cimo de uma pequena colina de onde conseguiamavistar a casa. E ao vê-la não lhe apeteceu conversar. Aquela friamanhã de Março parecia muito sombria. Aquele sempre fora umlugar sombrio. A casa estava encaixada numa depressão, e osálamos que a rodeavam eram árvores sombrias. Os homensolhavam e falavam sobre o que acontecera. Inclinado sobre um doslados do buggy, o delegado do Ministério Público para o condadoolhava fixamente para a casa à medida que avançavam na suadirecção.

- Estou contente que tenha vindo comigo - disse Mrs. Petersnervosa, quando as duas mulheres se preparavam para seguir oshomens que entravam pela porta da cozinha.

Mesmo quando já tinha um pé no degrau junto à porta e a mão nopuxador, houve um momento em que Martha Hale sentiu que nãoconseguiria transpor o umbral. E a razão para isso parecia dever-seao facto de não o ter feito anteriormente. Vezes sem conta, viera-lheà ideia a frase: "Tenho que ir ver Minnie Foster." Ainda pensava nelacomo Minnie Foster, apesar de ela ser Mrs. Wright havia mais devinte anos. Só que tinha sempre alguma coisa para fazer, acabandopor se esquecer de Minnie Foster. Agora, porém, podia ir.

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Os homens dirigiram-se para o fogão e as mulheres permaneceramà porta muito juntas. O jovem Henderson, o delegado do condado,virou-se e disse:

- Aproximem-se do calor, minhas senhoras. Mrs. Peters avançou umpasso, depois parou.

- Não tenho... frio - afirmou.

E continuaram as duas junto à porta. No início, não se atreviamsequer a percorrer a cozinha com o olhar.

Os homens fizeram um comentário breve sobre como fora boa ideiaque o xerife tivesse pedido ao seu adjunto que viesse acender-lheso lume naquela manhã. Depois, o xerife Peters afastou-se do fogão,desabotoou o casaco e apoiou as mãos na mesa da cozinha comose assim quisesse assinalar o início de uma sessão de trabalhosoficial.

- Ora muito bem, Mr. Hale - disse ele num tom semioficial -, antesde começarmos a mexer nas coisas, conte a Mr. Henderson o queviu quando aqui chegou ontem de manhã.

O delegado percorria a cozinha com o olhar.

- A propósito - perguntou ele -, alguma coisa foi mudada? - Voltou-se para o xerife. - Está tudo exactamente como estava ontem?

Os olhos de Peters fitaram primeiro o louceiro, depois o lava-loiça,detendo-se em seguida numa cadeira de baloiço, pequena e gasta,que estava um pouco afastada da mesa da cozinha.

- Está tudo na mesma.

- Ontem devia ter cá ficado alguém - afirmou o delegado.

- Ah... ontem - tornou o xerife com um pequeno gesto como se"ontem" fosse para ele um pensamento insuportável. - Quando tiveque mandar Frank ao Morris Center por causa daquele homem queenlouqueceu... deixe-me que lhe diga, ontem tive mais que a minhaconta. Sabia que você podia regressar hoje de Omaha, George, ese conseguisse tratar de tudo sozinho...

- Bem, Mr. Hale - disse o delegado, como se afirmasse "o que lá vailá vai" -, conte-nos exactamente o que aconteceu quando aquientrou ontem de manhã.

Ainda encostada à porta, Mrs. Hale sentiu-se invadida pela mesmasensação de ansiedade que assalta uma mãe cujo filho está prestesa declamar um poema em público. Lewis dispersava-se comfrequência e conseguia baralhar uma história. Ela tinha esperançaque ele

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dissesse o essencial e não se perdesse com pormenoresdesnecessários, que apenas tornariam a situação de Minnie Fosterainda mais difícil. Não começou logo a falar, e ela reparou que omarido tinha um ar estranho... como se o facto de estar de pénaquela cozinha prestes a contar o que ali vira na manhã davéspera o deixasse quase indisposto.

- Sim, Mr. Hale? - tornou o delegado.

- Harry e eu tínhamos saído para ir à cidade levar um carregamentode batatas - começou o marido de Mrs. Hale.

Harry era o filho mais velho de Mrs Hale. Não estava ali com elesnaquele momento pela simples razão de que como as batatas nãotinham chegado à cidade na véspera tivera de ir entregá-lasnaquela manhã. Era por isso que não se encontrava em casaquando o xerife lá fora pedir a Mr. Hale que o acompanhasse atécasa dos Wright e contasse ao delegado a sua história no própriolocal, onde podia ir indicando todos os pormenores. Às outrasemoções que perturbavam Mrs. Hale veio juntar-se o receio de queHarry não tivesse vestido roupas suficientemente quentes - nenhumdeles se apercebera de como o vento norte estava cortante.

- Vínhamos por esta estrada - prosseguiu Hale erguendo a mão nadirecção da estrada pela qual tinham vindo -, e assim queavistámos a casa eu disse para Harry: "Vou ver se consigoconvencer John Wright a arranjar um telefone." É que, sabe... -explicou ele a Henderson -, a menos que eu consiga arranjaralguém que me acompanhe, ninguém se mete por esta estradasecundária a não ser por um preço que eu não posso pagar. Játinha falado sobre isso com Wright uma vez, mas ele despachou-me, dizendo que de qualquer maneira as pessoas falavam de mais

e que tudo o que ele queria era paz e sossego... o senhor devesaber, suponho, que ele falava muito. Mas pensei que se viesse cáa casa e tocasse no assunto à frente da mulher dele, dizendo quetodas as mulheres da cidade gostavam do telefone, e que seria útilter um neste pedaço de estrada isolado... bem, eu disse a Harryque era isto que lhe ia dizer, embora também lhe tivesse dito quenão sabia se aquilo que a mulher dele queria contava alguma coisapara John...

Pronto, lá estava ele a dizer coisas desnecessárias! Mrs. Haletentou atrair a atenção do marido, mas felizmente o delegadointerrompeu-o.

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- Sobre isso falamos um pouco mais tarde, Mr. Hale. Eu quero falarsobre esse aspecto, mas agora estou ansioso por saber o queaconteceu quando o senhor aqui chegou.

Ao retomar a palavra desta vez, o marido mostrou-se muitocircunspecto e cauteloso.

- Não vi nem ouvi nada. Bati à porta e continuou tudo em silêncio cádentro. Eu sabia que eles deviam estar levantados, porque jápassava das oito horas, por isso voltei a bater com mais força epareceu-me ouvir alguém a mandar-me entrar. Na altura não tive acerteza disto, e neste momento continuo sem a ter. Mas abri aporta... esta porta - e fez um gesto brusco com uma das mãos nadirecção da porta junto à qual as duas mulheres continuavam de pé- e ali, naquela cadeira de baloiço - apontou para a cadeira -, estavasentada Mrs. Wright.

Todos os que se encontravam na cozinha olharam para a cadeirade baloiço. Mrs. Hale pensou que ela não combinava nada comMinnie Foster... a Minnie Foster de há vinte anos atrás. Era de umvermelho carregado com travessas de madeira ao longo das costas.Faltava-lhe a do meio e o assento estava descaído para um doslados.

- Como é que ela... lhe pareceu? - perguntou o delegado.

- Bom - respondeu Hale -, ela parecia... estranha.

- Estranha? Estranha, como?

Enquanto fazia a pergunta agarrou num bloco de notas e num lápis.Mrs. Hale não gostou de ver aquele lápis. Manteve o olhar fixo nomarido, como que para o impedir de dizer coisas desnecessáriasque seriam escritas naquele bloco de notas e causariam problemas.

Hale falou de facto com prudência, como se o lápis também otivesse perturbado.

- Bom, como se não soubesse o que ia fazer a seguir. E como seestivesse... pronta para sair.

- Como reagiu ela à sua chegada?

- Ora, acho que não se importou nada com isso. Não me deu muitaatenção. Eu perguntei: "Como está, Mrs. Wright? Está frio, nãoestá?", e ela respondeu: "Ai está?" e continuou a torcer o avental.

"Bom, eu fiquei admirado. Ela não disse para me aproximar dofogão nem para me sentar, ficou apenas ali sentada sem sequerolhar para mim. Então, eu disse: "Venho falar com John."

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E foi então que ela... deu uma gargalhada. Acho que se podechamar àquilo uma gargalhada. Lembrei-me de Harry e da parelhaque estavam lá fora e tornei a perguntar um pouco mais alto:"Posso falar com John?", "Não", respondeu ela... meio apagada."Ele não está em casa?", perguntei-lhe. Então, ela olhou para mim edisse: "Está em casa, sim." Naquele momento, já sem paciênciapara ela insisti: "Então, porque é que não posso falar com ele?", eela respondeu-me no mesmo modo calmo e apagado... continuandoa torcer o avental: "Porque está morto." "Morto?", repeti, comofazemos quando não acreditamos no que ouvimos.

"Ela limitou-se a abanar a cabeça afirmativamente sem qualquerreacção. Só se baloiçava para trás e para diante.

""Porquê... onde está ele?", perguntei-lhe sem saber o que havia dedizer.

"Ela limitou-se a apontar... assim... para o andar de cima. Levantei-me com a ideia de lá ir. Só que naquele momento, eu... eu nãosabia o que fazer. Caminhei daí para aqui e depois perguntei-lhe:,"Como? Morreu de quê?"

""Morreu com uma corda em volta do pescoço"", disse ela, semparar de torcer o avental.

Hale calou-se e manteve-se de pé junto da cadeira de baloiço,como se continuasse a ver a mulher que ali estivera sentada namanhã do dia anterior. Todos permaneceram em silêncio. Era comose estivessem a ver a mulher que ali se sentara na manhã do diaanterior.

- E depois o que fez? - por fim, o delegado quebrou o silêncio.

- Saí e chamei Harry. Achei que iria... precisar de ajuda. Pedi aHarry que entrasse e subimos ao primeiro andar. - A sua vozdesvaneceu-se até tornar-se quase um sussurro. - E ali estava ele...deitado em cima da...

- Creio que vai ter que contar isso lá em cima - interrompeu odelegado -, onde pode mostrar-nos tudo. Agora prossiga com oresto da história.

- Bem, a minha primeira ideia foi tirar-lhe aquela corda. Parecia... -calou-se, franzindo o rosto. - Mas Harry aproximou-se dele e disse:"Não, está morto e bem morto, e é melhor não tocarmos em nada."Foi então que descemos. Ela continuava sentada na mesmaposição, e eu perguntei-lhe se tinha chamado alguém. "Não",respondeu ela, indiferente.

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""Quem fez isto, Mrs. Wright?" perguntou Harry. Falou com um arsério, e ela parou de torcer o avental. "Não sei", respondeu. "Asenhora não sabe?", inquiriu Harry. "Mas a senhora não estava adormir ao lado dele na mesma cama?" "Sim", afirmou, "mas euestava virada para o outro lado." "Alguém lhe passou uma corda emvolta do pescoço e o estrangulou, e a senhora não acordou?"contestou Harry. "Não acordei, não", retorquiu ela.

"Acho que nós não devíamos estar a ver como aquilo podia teracontecido, porque passados alguns instantes ela disse: "Eu tenhoo sono pesado."

"Harry preparava-se para lhe fazer mais perguntas, mas eu disseque se calhar aquilo não nos dizia respeito, e talvez fosse melhordeixá-la contar primeiro a sua história ao juiz ou ao xerife. Então,Harry correu o mais que pôde até à High Road... até à casa dosRiver, onde há um telefone.

- E que fez ela quando se apercebeu que o senhor ia chamar o juiz?- o delegado pegou no lápis preparando-se para escrever.

- Levantou-se dessa cadeira e sentou-se nesta - Hale apontou parauma cadeira pequena que se encontrava num dos cantos da sala -e deixou-se ficar ali sentada com as mãos cruzadas a olhar para ochão. Tive a sensação que devia dizer alguma coisa, por isso disseque tinha ido ali para ver se John queria instalar um telefone. Aoouvir isto, ela começou a rir, depois calou-se e olhou para mim...assustada.

Ao tomar consciência do som produzido pelos movimentos do lápis,o homem que contava a história levantou os olhos.

- Não sei... talvez não estivesse assustada - apressou-se ele aemendar. - Não posso dizer que estava. Harry regressou logo aseguir e depois chegou o Dr. Lloyd e o senhor, Mr. Peters, e achoque é tudo o que sei e vocês não.

Foi com alívio que proferiu estas últimas palavras, mexendo-se umpouco como se se quisesse descontrair. Todos fizeram o mesmo. Odelegado caminhou na direcção da porta que dava para asescadas.

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- Acho que o melhor é irmos lá acima primeiro... depois, podemosver o celeiro e os arredores.

Fez uma pausa e os seus olhos percorreram a cozinha.

- O senhor está convencido de que aqui não há nada deimportante? - perguntou ele ao xerife. - Nada que... indicie ummóbil?

O xerife também olhou em volta, como se pretendesse assegurar-se disso uma vez mais.

- Aqui só há utensílios de cozinha - afirmou, soltando uma pequenagargalhada perante a insignificância dos objectos que havia naquelacozinha.

O delegado observou o louceiro - um móvel esquisito e sem graça,parte armário pequeno e parte louceiro com a metade superiorencaixada na parede e a inferior semelhante aos antigos louceirosde cozinha. Como se a sua estranheza o atraísse, agarrou numacadeira, abriu a parte de cima do armário e espreitou para o interior.Um instante depois, afastou a mão pegajosa.

- Bela confusão que para aqui vai - afirmou, irritado.

As duas mulheres tinham-se aproximado, e quem falou foi a mulherdo xerife.

- Oh... a fruta dela - exclamou, olhando para Mrs. Hale à espera dasua cumplicidade. Depois, virou-se para o delegado e explicou. -Ela ficou preocupada com isto quando a temperatura desceu ontemà noite. Disse que o fogão ia apagar-se e que os frascos decompota podiam estalar.

O marido de Mrs. Peters desatou a rir.

- Se há alguém que consiga perceber esta mulher! Está presa porhomicídio e preocupa-se com as compotas!

O jovem delegado comprimiu os lábios.

- Creio que antes de darmos a questão por encerrada, ela talvezvenha a ter mais com que se preocupar do que as compotas.

- Ora - disse o marido de Mrs. Hale com uma superioridadebonacheirona -, as mulheres costumam preocupar-se comninharias.

As duas mulheres aproximaram-se um pouco mais uma da outra,mas nenhuma se manifestou. De repente, o delegado pareceutomar consciência dos seus modos... e pensar no seu futuro.

- Porém - disse ele com a galanteria de um jovem político -, apesarde todas as suas preocupações, que seríamos nós sem elas?

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As duas mulheres continuaram sem falar e sem se separar. Eledirigiu-se para o lava-loiça e começou a lavar as mãos. Virou-separa as secar na toalha encaixada num suporte rotativo, rodando-oaté encontrar uma zona mais limpa.

- Porcaria de toalhas! Não era uma grande dona de casa, nãoacham, minhas senhoras?

Bateu com o pé nalguns tachos sujos que estavam por baixo dolava-loiça.

- Há muito a fazer numa quinta - afirmou Mrs. Hale, rispidamente.

- Sem dúvida que há. E, no entanto -...fez uma pequena vénia nasua direcção... - sei que em algumas quintas de Dickson Countrynão existem toalhas cilíndricas como estas. - Deu-lhe um puxãopara mostrar um novo pedaço de tecido.

- Ficam sujíssimas num instante. As mãos dos homens nem sempreestão tão limpas como deviam.

- Ah, fiel ao seu sexo, ao que estou a ver - riu-se ele. Deteve-se eolhou-a fixamente. - Mas a senhora e Mrs. Wright eram vizinhas.Creio que também eram amigas.

Martha Hale abanou a cabeça.

- Nos últimos anos contactei pouco com ela. Há mais de um anoque não vinha a esta casa.

- E por que motivo? A senhora não gostava dela?

- Gostava dela, sim - respondeu ela, espirituosa. - As mulheres dosfazendeiros estão sempre ocupadas, Mr. Henderson. E, alémdisso... - os seus olhos percorreram a cozinha.

- Sim? - insistiu ele, em tom encorajador.

- Nunca me pareceu um lugar muito alegre - disse ela, mais para siprópria do que para ele.

- Com efeito - concordou ele. - Duvido que alguém o considerassealegre. Eu diria que ela não tinha alma de dona de casa.

- Bem, não sei se Wright também a teria - resmoneou ela.

- Quer dizer que eles não se davam bem? - ele foi rápido a fazer apergunta.

- Não, não quero dizer nada - respondeu, decidida. Afastando-seum pouco dele, acrescentou: - Mas não acredito que nenhum lugarfosse mais alegre só pelo facto de John Wright lá estar.

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- Mais tarde, gostaria de falar um pouco mais sobre isso consigo,Mrs. Hale - disse ele. - Agora estou ansioso por esclarecer ascoisas lá em cima.

Dirigiu-se para a porta que comunicava com as escadas seguidopelos dois homens.

- Suponho que não haja nenhum problema se Mrs. Peters mexerem algumas coisas? - inquiriu o xerife. - Ficou combinado que elalevava algumas roupas, sabe?... e mais algumas coisitas. Ontemsaímos tão à pressa.

O delegado olhou para as duas mulheres que se preparavam paradeixar ali sozinhas, rodeadas pelos utensílios de cozinha.

- Claro que não Mrs. Peters - disse ele, olhando para a mulher

que não era Mrs Peters, a fazendeira corpulenta que permanecia depé atrás da mulher do xerife. - Claro, Mrs. Peters é uma das nossas- disse, confiando-lhe a responsabilidade. - E mantenha-se bem

atenta a tudo o que possa ser útil, Mrs. Peters. Nunca se sabe, assenhoras podem descobrir uma pista sobre o móbil... e é disso queprecisamos.

Mr. Hale passou a mão pelo rosto, num gesto que fazia lembrar umartista preparando-se para interpretar uma cena jocosa.

- Mas será que as mulheres seriam capazes de reconhecer umapista se a vissem? - perguntou ele; seguindo depois atrás dosoutros que transpunham já a porta de acesso às escadas.

As mulheres permaneceram de pé, imóveis e silenciosas, ouvindoapenas os passos, primeiro escada acima e depois percorrendo oquarto por cima delas.

Então, como se quisesse libertar-se de algo estranho, Mrs. Halecomeçou a arrumar os tachos sujos por baixo do lava-loiça que odesdenhoso pontapé do delegado desarrumara.

- Detestaria ter homens na minha cozinha - disse ela, irritada...sempre a meterem o nariz em tudo e a criticarem.

- Claro que eles não fazem mais do que a sua obrigação - disse amulher do xerife no seu jeito de tímida aquiescência.

- Está bem, é a obrigação deles - respondeu Mrs. Hale,bruscamente -, mas calculo que o ajudante do xerife que veioacender o fogão, talvez tenha também uma parte deresponsabilidade nisto. - Deu um puxão no rolo da toalha. - Quemme dera ter pensado nisto antes!

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Parece-me mesquinho criticá-la por não ter as coisas num brincoquando teve que sair tão à pressa.

Os seus olhos percorreram a cozinha. Era óbvio que não estava"um brinco". Os seus olhos detiveram-se numa caixa de açúcarcolocada numa prateleira baixa. A tampa estava separada da caixade madeira e ao seu lado estava um saco de papel... meio cheio.

Mrs. Hale aproximou-se dele.

"Ela estava a pôr isto aqui", disse para consigo... devagar.

Pensou na farinha que deixara na sua cozinha - uma partepeneirada, outra por peneirar. Fora interrompida e deixara as coisasa meio. O que interrompera Minnie Foster? Por que motivo aqueletrabalho ficara por terminar? Fez um gesto como se fosse acabá-lo -as coisas inacabadas sempre a haviam incomodado - e depoisolhou em volta e viu que Mrs. Peters a observava... e ela não queriaque Mrs. Peters ficasse com a impressão de que começara umtrabalho e depois, por qualquer razão, não o acabara.

- É uma pena esta fruta - disse ela, e aproximou-se do louceiro queo delegado abrira. Subiu para a cadeira, murmurando: - Estará tudoestragado?

Era um espectáculo suficientemente desolador, mas:

- Cá está uma boa, sim senhora - disse ela por fim. Observou-a àtransparência, virando-a para a luz. - Isto também são cerejas -fitou-as mais uma vez. - Aviso desde já que me parecem ser asúnicas.

Com um suspiro, desceu da cadeira, dirigiu-se ao lava-loiça elimpou o frasco.

- Ela vai ficar muito triste depois do trabalho todo que teve no Verão.Lembro-me perfeitamente da tarde em que preparei as minhascerejas, este Verão que passou.

Colocou o frasco em cima da mesa e, com outro suspiro, preparou-se para se sentar na cadeira de baloiço. Não chegou a fazê-lo,porém. Algo a deteve. Endireitou-se... recuou e, de lado, ficou aolhar para a cadeira, vendo a mulher que ali se sentara "a torcer oavental".

A voz fina da mulher do xerife ressoou subitamente nos seusouvidos.

- Tenho que tirar aquelas coisas de dentro do armário do quarto dafrente - abriu a porta que comunicava com o outro quarto, entrou

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e recuou logo a seguir. - Não quer vir comigo, Mrs. Hale? -perguntou, nervosa. - Podia ajudar-me a escolhê-las.

Regressaram rapidamente... a temperatura gélida daquele quartofechado não era nada convidativa.

- Meu Deus! - exclamou Mrs. Peters colocando as coisas em cimada mesa e correndo para junto do fogão.

Mrs. Hale conservou-se de pé examinando as roupas pedidas pelamulher que estava presa na cidade.

- Wright era um homem fechado! - exclamou ela, segurando umasaia preta coçada onde eram bem visíveis as marcas de um usoextensivo. - Acho que talvez tenha sido por isso que ela se isoloutanto. Se calhar sentiu que não conseguia ter o seu quinhão. Alémdisso, não apreciamos bem as coisas quando nos sentimosmaltrapilhos. Ela costumava usar coisas bonitas e era uma pessoacheia de vida... quando era Minnie Foster, uma das raparigas dacidade que cantavam no coro. Mas isso... oh, isso foi há vinte anosatrás.

Com gestos cuidadosos que deixavam transparecer alguma ternura,dobrou as roupas usadas e empilhou-as num dos cantos da mesa.Olhou para Mrs. Peters e viu no olhar daquela mulher algo que airritou.

"Ela não se importa", disse para consigo. "Que diferença faz queMinnie Foster tivesse ou não roupas bonitas quando era jovem?"

Depois voltou a olhá-la e já não teve tanta certeza disso. De facto,em nenhum momento tivera certezas absolutas acerca de Mrs.Peters. Ela tinha aqueles modos retraídos, e, no entanto, os seusolhos pareciam mostrar que conseguia ver as coisas de uma formabem profunda.

- É só isto que vai levar? - perguntou Mrs. Hale.

- Não - respondeu a mulher do xerife -, ela disse que queria umavental. Um pedido estranho - ousou dizer no seu jeito um pouconervoso -, porque sabe Deus que na prisão não temos muito comque nos sujarmos. Mas penso que foi apenas para se sentir mais

natural. Quando se está habituada a usar um avental... Ela disseque estavam na gaveta de baixo deste louceiro. Sim... aqui estãoeles. E o xailinho dela, que estava sempre pendurado na porta quedá para as escadas.

Retirou o pequeno xaile cinzento de trás da porta que comunicavacom as escadas e ficou a olhar para ele durante alguns instantes.

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De repente, Mrs. Hale deu um passo rápido em direcção à outra

mulher.

- Mrs. Peters!

- Sim, Mrs. Hale?

- Acha que ela... acha que ela o fez?

Uma expressão assustada turvou o olhar de Mrs. Peters, quecontinuava a fitar as outras coisas.

- Oh, não sei - respondeu ela num tom de voz de quem pareciaquerer esquivar-se do assunto.

- Bem, eu acho que não - afirmou Mrs. Hale decidida. - Pedir oavental e o xaile, preocupar-se com a fruta.

- Mr. Peters diz... - ouviram-se passos no quarto do piso de cima; eela calou-se, levantando os olhos antes de prosseguir em voz baixa.- Mr. Peters diz... que as coisas estão feias para o lado dela. Mr.Henderson fala de uma maneira muito sarcástica e vai fazer troçadela por ela ter dito que não... acordou.

Por instantes, Mrs. Hale ficou calada. Depois, disse:

- Bem, pelos vistos John Wright não acordou... quando lhe estavama passar a corda pelo pescoço - murmurou ela.

- Pois não, é estranho - sussurrou Mrs. Peters. - Eles acham que foiuma... forma estranha de matar um homem.

Ela começou a rir, calando-se depois abruptamente; ao ouvir o somdo seu próprio riso.

- Foi exactamente o que Mr. Hale disse - confessou Mrs. Hale numtom de voz decididamente natural. - Havia uma arma em casa. Elediz que é isso que não compreende.

- Quando saímos, Mr. Henderson disse que o que era necessáriopara haver um caso era um motivo. Alguma coisa que mostre ira...ou uma emoção repentina.

- Bem, por aqui não vejo nenhum sinal de ira - afirmou Mrs. Hale. -Eu não...

Calou-se. Era como se a sua mente tivesse tropeçado nalgumacoisa. A sua atenção recaiu sobre um pano da loiça pousado nocentro da mesa da cozinha. Lentamente, dirigiu-se para ela. Metadeestava limpa e a outra metade estava imunda. Os seus olhosviraram-se devagar e quase involuntariamente para a caixa doaçúcar e para o saco meio vazio colocado ao seu lado. Coisascomeçadas... e deixadas por acabar.

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Instantes depois recuou e disse naquele seu jeito desprendido:

- Como será que eles encontraram as coisas lá em cima? Esperoque ela tivesse a casa um pouco mais arranjada lá em cima. Sabe...fez uma pausa e, sentindo-se depois com alento... - parece quaseuma traição; deixá-la presa na cidade e vir aqui a casa dela àprocura de alguma coisa para a incriminar!

- Mas, Mrs. Hale - disse a mulher do xerife -, lei é lei.

- Também acho o mesmo - respondeu Mrs. Hale, concisamente.Virou-se para o fogão, fazendo um comentário vago sobre o lume

não ser nada de que pudessem orgulhar-se. Remexeu-o durantealguns instantes e, quando se endireitou, disse agressiva:

- Lei é lei... e um mau lume é um mau lume. Como é que alguémconseguia cozinhar com isto? - apontou com o atiçador para orevestimento partido. Abriu a porta do forno e começou a expressar

a sua opinião sobre ele. Contudo, depressa se perdeu nos seuspróprios pensamentos, imaginando o que seria ter de lidar comaquele fogão ano após ano. A ideia de Minnie Foster tentandocozinhar nele... e a ideia de nunca mais voltar a ver Minnie Foster...

Sobressaltou-se ao ouvir Mrs. Peters dizer:

- Uma pessoa perde a coragem... e a cabeça.

A mulher do xerife desviara o olhar do fogão para o lava-loiça, parao balde com água que fora trazido do exterior. As duas mulherespermaneceram de pé em silêncio. Por cima delas, ouvia-se ospassos dos homens que procuravam provas que incriminassem amulher que trabalhara naquela cozinha. Aquela expressão de quemvia o interior das coisas, de quem distinguia mais do que aaparência de algo perpassava agora nos olhos da mulher do xerife.Quando Mrs. Hale voltou a dirigir-lhe a palavra fê-lo comdelicadeza.

- É melhor separar as suas coisas, Mrs. Peters. Não vamos tertempo de o fazer quando estivermos para sair.

Mrs. Peters dirigiu-se para o quarto das traseiras para pendurar aestola de pele que trouxera. Um instante depois, exclamou:

- Veja, ela estava a fazer uma colcha! - e levantou um grande cestode costura onde estavam pedaços do tecido da colcha.

Mrs. Hale espalhou alguns dos retalhos por cima da mesa.

- É o desenho de uma cabana feita de toros - disse juntando algunspedaços. - Bonito, não é?

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Estavam tão absortas com a colcha que nem ouviram os passosnas escadas. E foi justamente quando a porta das escadas se abriu,que Mrs. Hale perguntou:

- Acha que ela ia acolchoá-la ou apenas cosê-la? O xerife ergueu asmãos.

- Elas querem saber se ela ia acolchoá-la ou apenas cosê-la! Oshomens riram da atitude das mulheres, aqueceram as mãos

sobre o fogão, e depois o delegado disse com brusquidão:

- Bem, vamos então lá fora ao celeiro para esclarecer tudo isto.

- Não vejo que seja assim tão estranho - disse Mrs. Hale,ressentida, depois de a porta se ter fechado atrás dos trêshomens... - o facto de nós estarmos aqui a falar de ninhariasenquanto esperamos que eles descubram provas. Não perceboonde está a graça.

- Claro que eles têm coisas muitíssimo importantes em que pensar -disse a mulher do xerife em tom de desculpa.

Voltaram a inspeccionar os retalhos para a colcha. Mrs. Hale olhavapara o trabalho de costura perfeito e bonito e pensava compreocupação na autora daquele trabalho, quando a mulher do xerifedisse num tom estranho:

- Ah, olhe para este.

Virou-se e agarrou no retalho que a outra lhe estendia.

- O trabalho de costura - disse Mrs. Peters num jeito perturbado. -Todos os outros estão tão bonitos e perfeitos, mas este.... Ora, atéparece que não sabia o que estava a fazer!

Os seus olhares encontraram-se, e um lampejo passou atravésdeles. Depois, como se fizessem um esforço, pareceram quererafastar-se uma da outra. Mrs. Hale sentou-se por instantes, asmãos dobradas em cima daquele trabalho de costura tão diferentede todos os outros. Depois desfez um nó e puxou os fios.

- Oh, que está a fazer, Mrs. Hale? - perguntou a mulher do xerife,surpreendida.

- Estou só a tirar um ou dois pontos que não estão muito bemcosidos - afirmou Mrs. Hale, calmamente.

- Acho que não devíamos mexer nas coisas - disse Mrs. Peters umpouco impotente.

- Vou só acabar esta fileira - respondeu Mrs. Hale ainda naqueleseu jeito brando e prático.

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Enfiou uma agulha e começou a refazer os pontos imperfeitossubstituindo-os por outros bem feitos. Durante alguns instantescoseu em silêncio. Depois tornou a ouvir aquela voz fraca e tímida,sussurrando:

- Mrs. Hale!

- Sim, Mrs. Peters?

- Porque acha que ela estaria tão... nervosa?

- Oh, não sei - respondeu Mrs. Hale, como se rejeitasse algo semimportância suficiente para a ocupar por muito tempo. - Não sei seela estava muito... nervosa. Às vezes, coso pessimamente quandoestou apenas cansada.

Cortou um fio e levantou os olhos, olhando de soslaio para Mrs.Peters. O rosto miúdo e magro da mulher do xerife parecia maistenso. Os seus olhos tinham aquela expressão perscrutadora.Instantes depois, porém, mexeu-se e disse no seu jeito delicado eindeciso:

- Bem, tenho que embrulhar estas roupas. Talvez eles acabem maiscedo do que pensamos. Onde será que posso encontrar uma folhade papel... e fio?

- Talvez naquele louceiro - sugeriu Mrs. Hale depois de lançar umrápido olhar em volta.

Uma parte do tecido ficou por coser. Com Mrs. Peters de costasvoltadas para ela, Martha Hale observava atentamente o tecido,comparando-o com o ponto delicado e preciso dos outros retalhos.A diferença era abissal. Segurar naquele retalho fazia-a sentir-seestranha, como se os pensamentos dispersos da mulher que talvezse tivesse virado para a costura tentando ter algo seu, estivessem acomunicar com ela.

A voz de Mrs. Peters despertou-a.

- Está aqui uma gaiola - disse ela. - Ela tinha algum pássaro, Mrs.Hale?

- Bem, se tinha não sei - virou-se para olhar para a gaiola que Mrs.Peters segurava. - Há tanto tempo que não vinha cá - sussurrou. -No ano passado, andou por aí um homem a vender canários

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baratos... mas não sei se ela comprou algum. Talvez. Ela própriacostumava cantar muito bem.

Mrs. Peters percorreu a cozinha com o olhar.

- Parece um pouco estranho pensar num pássaro aqui - soltou umapequena gargalhada... numa tentativa para erguer uma barreira. -Mas deve ter tido um... caso contrário, por que motivo teria umagaiola? Pergunto-me o que lhe terá acontecido.

- Se calhar foi comido pelo gato - sugeriu Mrs. Hale, prosseguindo oseu trabalho de costura.

- Não, ela não tinha nenhum gato. Tinha aquele sentimento quemuita gente tem em relação aos gatos... tinha medo deles. Quandoa levaram para nossa casa ontem, o meu gato entrou na sala e elaficou muito perturbada e pediu-me que o tirasse dali.

- A minha irmã Bessie era assim - riu-se Mrs. Hale.

A mulher do xerife não respondeu. O silêncio levou Mrs. Hale avirar-se. Mrs. Peters examinava a gaiola.

- Olhe para esta porta - disse ela devagar. - Está partida. Uma dasdobradiças foi forçada.

Mrs. Hale aproximou-se.

- É como se alguém a tivesse... puxado com força.

Uma vez mais os seus olhos encontraram-se... surpreendidos,inquisidores e apreensivos. Durante alguns instantes nenhumadelas se pronunciou nem se mexeu. Depois, Mrs. Hale virou-se edisse de repente:

- Se é para encontrarem alguma prova, era bom que fosse já. Estesítio não me agrada nada.

- Mas eu estou muito contente que tenha vindo comigo, Mrs. Hale -Mrs. Peters colocou a gaiola em cima da mesa e sentou-se. - Teriasido muito solitário para mim... ficar aqui sentada, sozinha.

- Pois era - concordou Mrs. Hale com uma certa naturalidadedeterminada na voz. Agarrou no retalho, mas depois colocou-o nocolo e murmurou numa voz diferente: - Mas vou dizer-lhe o querealmente gostava, Mrs. Peters. Gostava de cá ter vindo mais vezesquando ela estava aqui. Quem dera... ter vindo.

- Mas com certeza esteve muito ocupada, Mrs. Hale. Tinha a suacasa... os seus filhos.

Eu podia ter vindo - replicou Mrs. Hale, laconicamente. - Mantive-me afastada, porque eles não eram pessoas alegres... e é por

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isso que eu devia ter vindo. Eu... - olhou em volta... - nunca gosteideste sítio. Talvez porque fica cá em baixo num buraco e daqui nãose vê a estrada. Não sei porquê, mas é um lugar solitário, e semprefoi. Quem me dera cá ter vindo algumas vezes ver Minnie Foster.Agora compreendo... - não o expressou por palavras.

- Bem, não deve recriminar-se - aconselhou Mrs. Peters. - Sempercebermos porquê, não vemos o que se passa com as outraspessoas até... por vezes, elas se revelarem.

- Quando não se tem filhos, tem-se menos trabalho - concluiu Mrs.Hale, depois de alguns instantes em silêncio -, mas torna uma casasilenciosa... e Wright passava o dia todo fora a trabalhar... e não lhefazia companhia quando regressava. Conhecia John Wright, Mrs.Peters?

- Não o conhecia, mas via-o na cidade. Diziam que era um homembom.

- Era bom... sim - concordou a vizinha de John Wright,severamente. - Não bebia, era um homem de palavra, tanto quanto

possível, creio, e pagava as suas dívidas. Mas era uma pessoasevera, Mrs. Peters. Ter que passar um dia com ele... - calou-se eestremeceu um pouco. Era como uma rajada de vento que chegaaos ossos. - Os seus olhos fitaram a gaiola que estava em cima damesa à sua frente e acrescentou quase amargamente: - Não é"para admirar que ela quisesse ter um pássaro!

De repente, inclinou-se para a frente, olhando para a gaiola comuma expressão decidida.

- Mas o que acha que aconteceu com ele?

- Não sei - retorquiu Mrs. Peters -, talvez tivesse adoecido emorrido.

Mas logo de seguida agarrou na porta partida e empurrou-a. Asduas mulheres observaram-na como se de alguma formaestivessem hipnotizadas por ela.

- A senhora não a... conhecia? - perguntou Mrs. Hale num tom devoz mais suave.

- Só a conheci ontem quando a trouxeram - disse a mulher doxerife.

- Ela... por falar nisso, ela própria era como um pássaro. Muito ternae bonita, mas um pouco tímida e... esvoaçante. Como... ela...mudou.

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Este pensamento absorveu-a durante bastante tempo. Por fim,como se tivesse sido atingida por um pensamento feliz e sesentisse aliviada por voltar às coisas do quotidiano, exclamou:

- Porque não leva a colcha consigo, Mrs. Peters? Pode ser que elaconsiga sentir-se ocupada.

- Acho que é uma excelente ideia, Mrs. Hale - concordou a mulherdo xerife, como se também ela tivesse ficado contente por partilharum sentimento de simples amabilidade. - Não há nenhum mal nisso,pois não? Ora, então o que vou eu levar? Será que os retalhos delaestão aqui... e as suas coisas.

Ambas se aproximaram do cesto de costura.

- Há aqui um vermelho - disse Mrs. Hale, retirando um rolo detecido. Por baixo estava uma caixa. - Talvez haja aqui umatesoura... e as coisas dela - levantou-a. - Que caixa tão bonita!Aposto que ela a tem há muito tempo... desde menina.

Segurou-a numa das mãos por instantes, e depois, com um brevesuspiro, abriu-a.

Instintivamente, levou a mão ao nariz.

- Meu Deus...!

Mrs. Peters aproximou-se, afastando-se de seguida.

- Há alguma coisa envolvida nesse pedaço de seda - balbuciou Mrs.Hale.

- E não é a tesoura - afirmou Mrs. Peters numa voz receosa. Com amão pouco firme, Mrs. Hale levantou o pedaço de seda.

- Oh, Mrs. Peters! - gritou. - É...

Mrs. Peters curvou-se para se aproximar.

- É o pássaro - sussurrou.

- Mas, Mrs. Peters! - gritou Mrs. Hale. - Olhe para ele! O pescoçodele... olhe para o pescoço dele! Está todo... caído para o outrolado.

Afastou a caixa.

A mulher do xerife voltou a aproximar-se.

- Alguém lhe torceu o pescoço - disse ela numa voz baixa e cava. Euma vez mais os olhos de ambas se encontraram... desta vez comuma expressão de compreensão e horror crescentes. Depois, Mrs.Peters desviou os olhos, que passaram do pássaro morto para aporta da gaiola partida. E de novo os olhos das duas mulheres se

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encontraram. Naquele mesmo instante, ouviu-se um barulho noexterior da casa.

Mrs. Hale escondeu a caixa debaixo dos retalhos da colcha queestavam dentro do cesto e afundou-se na cadeira colocada à suafrente. Mrs. Peters manteve-se de pé, encostada à mesa. Odelegado e o xerife entraram.

- Bem, minhas senhoras - disse o delegado, como quem troca osassuntos sérios por gracejos sem importância -, já chegaram aalguma conclusão? Ela ia acolchoá-la ou cosê-la?

- Pensamos - começou por dizer a mulher do xerife num tom de vozperturbado -, que ela ia... cosê-la.

Ele estava demasiado preocupado para reparar na mudança que severificara na sua voz quando proferiu aquela última palavra.

- Bem, isso é muito interessante, tenho a certeza - afirmou ele,tolerante. Reparou na gaiola. - O pássaro fugiu?

- Julgamos que o gato o matou - disse Mrs. Hale numa vozcuriosamente segura.

Ele caminhava de um lado para o outro, como se reflectisse sobrealguma coisa.

- Há por aí algum gato? - perguntou ele, ausente.

Mrs. Hale levantou rapidamente os olhos para a mulher do xerife.

- Bem, agora não - afirmou Mrs. Peters. - Eles são supersticiosos,sabe, vão-se embora.

Afundou-se na cadeira.

O delegado não lhe prestou atenção.

- Não há sinais que indiquem que alguém tenha entrado em casa -disse ele a Peters como se continuasse uma conversa interrompida.- A corda era deles. Vamos voltar lá acima e recapitular tudo, passopor passo. Teria que ser alguém que sabia exactamente o...

A porta de acesso às escadas fechou-se atrás deles e as suasvozes deixaram de se ouvir.

As duas mulheres permaneceram sentadas e imóveis sem seolharem. Parecia, no entanto, que estavam a pensar nalguma coisae ao mesmo tempo a conter os seus pensamentos. Quandovoltaram a falar foi como se tivessem medo do que estavam a dizer,mas não pudessem deixar de o dizer.

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- Ela gostava do pássaro - disse Martha Hale em voz baixa edevagar. - Ia enterrá-lo naquela bonita caixa.

- Quando eu era garota - disse Mrs. Peters falando baixinho -, aminha gatinha... houve um rapaz que agarrou numa machadinha eà minha frente... mesmo antes que eu conseguisse alcançá-lo... -tapou a cara por instantes. - Se não me tivessem segurado, eu ter-lhe-ia...recompôs-se, olhou para o andar de cima onde se ouvia osom de passos e terminou com esmorecimento... - batido.

Depois permaneceram caladas e imóveis.

- Pergunto-me como seria - começou então Mrs. Hale, tentandosentir como suas as experiências alheias... - nunca aqui ter havidocrianças - os seus olhos percorreram a cozinha, como se tentassever o que ela significara ao longo de todos aqueles anos. - Não,Wright não podia gostar do pássaro - acrescentando a seguir... -nem de algo que cantasse. Ela costumava cantar. Ele tambémdestruiu isso. - A sua voz esmoreceu.

Mrs. Peters mexeu-se nervosamente.

- Claro que não sabemos quem matou o pássaro.

- Eu conheci John Wright - foi a resposta de Mrs. Hale.

- Algo horrível aconteceu nesta casa naquela noite, Mrs. Hale dissea mulher do xerife. - Matar um homem enquanto dormia... passar-lhe uma coisa pelo pescoço e tirar-lhe a vida.

A mão de Mrs. Hale afastou-se da gaiola.

- O pescoço dele. Tirar-lhe a vida.

- Não sabemos quem o matou - sussurrou Mrs. Peters,irreflectidamente. - Não sabemos.

Mrs. Hale não se mexera.

- Ao fim de anos sem... nada, aparecer um pássaro que cantassepara ela, deve ter sido horrível depois de o pássaro ter morrido.

Foi como se algo dentro dela tivesse falado e tivesse encontradoem Mrs. Peters algo que ela não conhecia como sendo seu.

- Eu sei o que é a quietude - num tom de voz estranho e monótono.- Quando morávamos no Dakota e o meu primeiro filho morreu, aosdois anos, e eu que não tinha outro na altura...

Mrs. Hale mexeu-se.

Durante quanto tempo acha que eles continuarão à procura deprovas?

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- Eu sei o que é a quietude - repetiu Mrs. Peters naquele seu jeito.Depois, reclinou-se para trás. - A lei existe para punir o crime, Mrs.Hale - afirmou no seu modo tenso.

- Gostava que tivesse conhecido Minnie Foster - respondeu ela -,quando ela usava um vestido branco com fitas azuis e ficava ali depé no coro a cantar.

A imagem daquela rapariga, o facto de ter morado perto deladurante vinte anos e de a ter deixado morrer por falta de vida era,de repente, mais do que conseguia suportar.

- Oh, quem me dera cá ter vindo de vez em quando! - lamentou-se.- Aquilo foi um crime! Foi um crime! Quem vai ser punido?

- Não nos podemos deixar abalar - disse Mrs. Peters, olhandoassustada para as escadas.

- Eu podia ter percebido que ela precisava de ajuda! É estranho,Mrs. Peters, só lhe digo. Vivíamos próximo uma da outra e

estávamos tão afastadas. Todas nós passámos pelas mesmascoisas... são apenas variações da mesma coisa! Se assim nãofosse... como poderíamos, a senhora e eu, compreender! Porquesabemos... o que sabemos neste momento?

Passou a mão pelos olhos. Depois, ao ver o frasco de compota emcima da mesa, pegou nele e desabafou.

- No seu lugar não lhe dizia que a compota dela se estragou! Diga-lhe que está boa. Diga-lhe que está tudo bem... tudo. Tome... leve-lhe isto para comprovar! Ela... ela pode nunca vir a saber se defacto se estragou ou não.

Afastou-se.

Mrs. Peters agarrou no frasco da compota como se ficasse contentepor levar-lho... como se tocar numa coisa familiar e ter alguma coisapara fazer pudesse impedi-la de pensar em algo mais. Levantou-se,olhou em volta à procura de algo para embrulhar o frasco, retirouuma combinação da pilha de roupa que trouxera do quarto da frentee, nervosa, começou a enrolá-la em volta do frasco.

- Meu Deus! - exclamou numa voz elevada e artificial. - Ainda bemque os homens não conseguem ouvir-nos! Todas agitadas porcausa de uma ninharia como um... canariozinho morto. - Continuou,rápida. - Como se isso tivesse alguma coisa a ver com... com...Credo, como eles se iam rir?

Ouviram-se passos no andar de cima.

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- Talvez sim - resmoneou Mrs. Hale -, talvez não.

- Não, Peters - afirmou o delegado decidido -, é tudo muito claro,excepto o motivo para o fazer. Mas você sabe como são os juradosquando se trata de mulheres. Se houvesse algo de definido... algoque se pudesse mostrar. Alguma coisa que contasse uma história.Algo que tivesse uma ligação com esta forma desajeitada decometer o crime.

Sub-repticiamente, Mrs. Hale olhou para Mrs. Peters, que olhavapara ela. Rapidamente desviaram os olhos. A porta da rua abriu-see Mr. Hale entrou.

- Já dei uma vista de olhos na parelha - disse ele. - Está imenso friolá fora.

- Vou ficar aqui um pouco sozinho - anunciou de repente odelegado. - Pode pedir ao Frank que me venha buscar, por favor? -pediu ele ao xerife. - Quero recapitular tudo. Não me convenço deque não conseguimos melhor.

Uma vez mais, os olhos das duas mulheres voltaram a encontrar-sedurante alguns instantes. O xerife aproximou-se da mesa.

- Quer ver o que Mrs. Peters vai levar? O delegado agarrou noavental e riu-se.

- Oh, não me parece que as senhoras tenham descoberto coisasmuito incriminatórias.

A mão de Mrs. Hale estava pousada no cesto de costura onde acaixa estava escondida. Embora sentisse que devia retirar a mão docesto, parecia não conseguir fazê-lo. Ele pegou num dos retalhosda colcha que ela empilhara para tapar a caixa. Sentiu os olhosarderem como fogo. Tinha a sensação que se ele agarrasse nocesto ela lho arrancaria das mãos.

Ele, porém, não o fez. Soltando outra gargalhada breve afastou-se,dizendo:

- Não; Mrs. Peters não precisa de ser supervisionada. Não hádúvida que a mulher de um xerife está casada com a autoridade.Nunca tinha pensado nisto desta forma, Mrs. Peters?

Mrs. Peters estava de pé ao lado da mesa. Mrs. Hale levantou osolhos rapidamente para ela, mas não conseguiu ver-lhe a cara. Mrs.Peters tinha-se virado. Quando voltou a falar, a sua voz soouabafada.

- Não... propriamente nesses termos - disse ela.

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- Casada com a autoridade! - riu o marido de Mrs. Peters.Encaminhou-se para a porta do quarto da frente e disse aodelegado:

- Quero que venha aqui um instante, George. Temos que dar umaolhadela nestas janelas.

- Ah, as... janelas - disse o delegado com escárnio.

- Vamos já embora, Mr. Hale - disse o xerife ao fazendeiro, que oaguardava junto à porta.

Hale foi ocupar-se dos cavalos. O xerife seguiu o delegado até aooutro compartimento. Uma vez mais... durante alguns instantes... asduas mulheres ficaram sozinhas na cozinha.

Martha Hale levantou-se de repente, as mãos bem juntas e os olhoscolados na mulher com quem ali ficara. Inicialmente não conseguiraver-lhe os olhos, porque a mulher do xerife mantivera-se de costasvoltadas para ela até à sugestão de estar casada com a autoridade.Agora, no entanto, Mrs. Hale obrigou-a a virar-se. Os seus olhosobrigaram-na a voltar-se. Lenta e involuntariamente, Mrs. Petersvirou a cabeça até os seus olhos encontrarem os da outra mulher.Durante um instante mantiveram-se estáticas, o olhar fixo ebrilhante no qual não transparecia nenhum subterfúgio nemvacilação. Depois, os olhos de Martha Hale desviaram-se para ocesto onde estava escondido aquilo que ditaria sem margem paradúvidas a condenação da outra mulher... daquela mulher queestava ausente e, contudo, estivera ali com elas ao longo daquelahora.

Por instantes, Mrs. Peters manteve-se imóvel. Depois, mexeu-se.Dando um passo em frente, afastou os retalhos da colcha, agarrouna caixa e tentou metê-la na carteira. Mas era demasiado grande.Desesperada, abriu-a e preparava-se para retirar o pássaro quandose deteve... não conseguia tocar nele. Permaneceu de pé semsaber o que fazer, confusa.

Ouviu-se o som de um puxador rodando na porta de dentro. MarthaHale arrancou a caixa das mãos da mulher do xerife e enfiou-a no

bolso do seu casaco largo no preciso momento em que o xerife e odelegado voltavam a entrar na cozinha.

- Bem, Henry - gracejou o delegado -, pelo menos ficámos a saberque ela não ia acolchoá-la. Ia... o que foi que disseram, minhassenhoras?

A mão de Mrs. Hale apertava o bolso do seu casaco.

- Cosê-la... foi isso que dissemos, Mr. Henderson.

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O Homem Que Sabia Como

Dorothy L. ôayers

De J-VOBOTHY LEIGH ÔAYEBÔ (1893-1957), nascida em Oxford,é uma das figuras mais notáveis e influentes da história da ficçãopolicial. Diplomada pelo ôomerville College, em Oxford, foiprofessora de Inglês, revisora literária e copywriter numa agência depublicidade antes de se tornar escritora a tempo inteiro. Em WhoseBody? (1923), deu vida a um dos mais famosos detectivesaristocratas, Lorde Peter Wimsey, uma personagem algowodehousiana, afectado na expressão e nos modos, com tiques depronúncia tendencialmente "imbecis", que se tornaria uma figuramuito mais profunda e trabalhada à medida que a sua carreira foievoluindo. Em Strong Poison (1930), Wimsey encontra a romancistaHarriet Vane, que ele salva da acusação de assassínio. Depois(numa prova de total desrespeito pelas regras que proibiam osenvolvimentos sentimentais durante a Idade de Ouro da literaturapolicial) corteja-a ao longo de vários romances, incluindo o clássicoe académico Gaudy Night (1935), acabando por casar-se emBusman's Honeymoon (1937), o último romance policial terminadopor ôayers. (O fragmentário Thrones, Dominations seria concluído,muitos anos mais tarde e com uma fidelidade notável por Jill PatonWalsh e publicado em 1998 como um romance de co-autor)

ôayers, que se tornou um símbolo feminista nos anos 70 do séculopassado, por um lado, devido à independência que personificava nasua própria vida e, por outro, pela sua criação de Harriet Vane, foi

objecto de estudo de mais obras biográficas e análises críticas doque qualquer outra figura da Idade de Ouro, à excepção de AgathaChristie. Certamente poucos a igualaram na sua dedicação àcomponente ardilosa da história policial. No entanto, na última parteda sua vida, abandonou a ficção policial em beneficio de outrostrabalhos literários, que incluíram algumas peças religiosas muitoconceituadas e uma tradução de Dante.

Apesar de Dorothy L. ôayers ter escrito bastantes contos sobreLorde Peter Wimsey, os seus melhores trabalhos parecem ser osque não se incluem nas sagas deste detective. Em O Homem QueSabia Como, ôayers consegue fazer observações humorísticassobre a sua competência na escrita de policiais, enquantodesenvolve uma situação que podia ter tido o mesmo título de outrodos seus melhores contos, Suspeição. O Homem Que Sabia Comoé o tipo de história policial que se adapta de forma perfeita àtransmissão radiofónica, tal como aconteceu na memorável peçaradiofónica Suspense, interpretada por Charles Laughton no papelde Pender e Hans Conreid no papel principal.

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Pela vigésima vez desde que o comboio partira de Carlisle, Penderlevantou os olhos pousados nas páginas de Murder at the Manse edeparou-se-lhe com o olhar do homem sentado à sua frente.

Franziu um pouco o sobrolho. Era irritante sentir-se observado tãode perto, e sempre com aquele sorriso tímido e sardónico. Maisirritante ainda era permitir que o sorriso e a avaliação lhe causassetanta perturbação. Com um movimento súbito, Pender baixou acabeça sobre o seu livro decidido a concentrar-se na questão doministro assassinado na biblioteca.

Contudo, a história obedecia a um modelo académico,concentrando todos os incidentes emocionantes no primeirocapítulo e prosseguindo com uma longa série de deduções atéchegar a uma solução científica no final. Por duas vezes, Pendertivera de voltar atrás para se certificar de aspectos que lhe haviamescapado durante a leitura. Depois apercebeu-se que não estavade todo a pensar no ministro assassinado... em vez disso, ganhava

cada vez mais consciência do rosto do outro homem. "Um rostoestranho", pensou Pender.

Não havia nada de particularmente singular nas características emsi mesmas. Era a sua expressão que intimidava Pender. Era umrosto secreto, o rosto de alguém que sabia muito, para grandedesvantagem das outras pessoas. A boca era um pouco arqueada emuito franzida nos cantos, como se se deleitasse com umdivertimento oculto. Os olhos, escondidos atrás de um par delunetas sem armação,

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brilhavam curiosamente, o que talvez ficasse a dever-se ao reflexoda luz nas lentes. Pender perguntou a si próprio, intrigado, qualseria a profissão daquele homem. Vestia um fato de passeio escuro,um impermeável e um chapéu mole coçado, e andaria talvez pelos40 anos.

Pender tossiu desnecessariamente e recostou-se no seu canto,levantando bem a história policial diante do rosto como se fosseuma barreira. A estratégia provou ser perfeitamente inútil. Teve asensação que o homem percebera a manobra e estavasecretamente a deliciar-se com ela. Queria mostrar inquietação,mas sem que fosse capaz de explicar porquê sentiu que se ofizesse estaria de alguma forma a conceder uma vitória ao outrohomem. Sentia-se de tal modo constrangido que todo o seu corpoestava rígido, e prestar atenção à leitura transformou-se numa totalimpossibilidade física.

Já não havia mais paragens antes de Rugby, e era improvável quealgum passageiro entrasse, vindo do corredor, e interrompesseaquela desagradável solitude à deux. Claro que Pender podia sairdo compartimento e não voltar, mas isso seria um reconhecimentoda derrota. Pender baixou Murder at the Manse e os seus olhosvoltaram a encontrar os do outro homem.

- Está a ficar cansado dele? - perguntou-lhe o outro.

- As viagens nocturnas são sempre um pouco enfadonhas -respondeu Pender, num misto de alívio e relutância. - Quer umlivro?

Retirou The Paper-Clip Clue da pasta e estendeu-lho confiante. Ooutro olhou de relance para o título e abanou a cabeça.

- Muito obrigado - respondeu -, mas nunca leio policiais. São tão...despropositados, não acha?

- Claro que são bastante parcos em termos de caracterização e deinteresse humano - respondeu Pender -, mas numa viagem decomboio...

- Não me refiro a isso - afirmou o outro homem. - Não é o aspectohumano que me interessa, mas sim a incompetência de todosesses assassinos... aborrecem-me.

- Oh, não sei - respondeu Pender. - Em todo o caso, normalmenteeles são muito mais imaginativos e engenhosos do que osassassinos da vida real.

- Do que os assassinos descobertos na vida real, sim - admitiu ooutro homem.

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Até mesmo alguns desses fazem coisas incríveis antes de seremapanhados - objectou Pender. - Crippen, por exemplo, nunca teriasido apanhado se não tivesse perdido a cabeça e fugido para aAmérica. George Joseph Smith abandonou incólume pelo menosduas noivas até à intervenção do destino e do News of the World.

- Sim - concordou o outro homem -, mas veja a inépcia de tudo isso;a elaboração, as mentiras, a parafernália. Absolutamentedesnecessário.

- Oh, por favor! - exclamou Pender. - Não acha, com certeza, quealguém possa cometer um crime e conseguir safar-se com a maiordas simplicidades.

- Ah! - exclamou o outro homem. - É essa a sua opinião, então?

Pender aguardou que ele meditasse sobre aquela observação, masnão obteve qualquer resposta. O homem recostou-se e sorriu noseu jeito secreto olhando para o tecto da carruagem. Parecia acharque não valia a pena continuar aquela conversa. Penderapercebeu-se de que observava as mãos do seu companheiro.Eram brancas e tinham uns dedos surpreendentemente longos.Estudou-as com atenção enquanto tamborilavam suavemente nosjoelhos do seu dono, depois virou uma página com gestos decididose, em seguida, pousou o livro uma vez mais, dizendo:

- Bem, se é assim tão fácil, como é que você planearia um crime?

- Eu? - repetiu o homem.

Para Pender, a luz que lhe incidia sobre as lentes tornava os seusolhos inexpressivos, mas a sua voz soou calmamente divertida.

- Isso é diferente; eu não pensaria duas vezes sobre isso.

- Porque não?

- Porque acontece que eu sei como o faria.

- Ai sabe? - resmoneou Pender em tom de censura.

- Sei, pois e não é nada de especial.

- Como pode ter a certeza disso? Não tentou, suponho?

Não é uma questão de tentar - disse o homem. - O meu métodonada tem de contingente. É simplesmente perfeito.

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- Isso é fácil de dizer - retorquiu Pender -, mas que métodomaravilhoso é esse?

- Não está à espera que eu lhe diga, pois não? - perguntou o outrohomem, baixando os olhos até se encontrarem com os de Pender. -Pode não ser seguro. Você parece inofensivo, mas quem podiaparecer mais inofensivo do que Crippen? Ninguém é digno deconfiança, e não se deve pensar que ninguém detém controloabsoluto sobre a vida dos outros.

- Disparate! - exclamou Pender. - Não me passaria pela cabeçaassassinar alguém.

- Claro que passaria - respondeu o outro homem -, se estivesseplenamente convencido de que não era apanhado. Qualquer um ofaria. Porque julga que existem essas enormes barreiras artificiaiserguidas tanto pela Igreja como pela lei em torno do assassínio?Porque é um crime que diz respeito a todos e é tão natural comorespirar.

- Mas isso é ridículo! - gritou Pender com vivacidade.

- Acha que sim, não é? Isso é o que a maioria das pessoas diria,mas eu não confiaria nelas. Não quando se pode adquirir sulfato detanatol por dois pence em qualquer farmácia.

- Sulfato de quê? - perguntou Pender rispidamente.

- Ah! Está convencido que lhe vou revelar alguma coisa. Bem, éuma mistura disso e de mais uma ou duas coisas... todas elasigualmente comuns e baratas. Por nove pence pode fabricar venenosuficiente para matar todos os membros do Governo. Apesar, claro,de ninguém pensar em despachar todos eles de uma só vez. Podiaparecer estranho se morressem todos ao mesmo tempo enquantotomavam banho.

- Porquê enquanto tomavam banho?

- Seria isso que os mataria. É a acção da água quente que favoreceo efeito da substância, compreende? Actua entre algumas horas aalguns dias depois de ter sido ingerida. Trata-se de uma reacçãoquímica muito simples que não é detectável nas análises. Tem aaparência de um ataque cardíaco.

Pender olhava-o inquieto. Não gostava do seu sorriso. Não só eraridículo, como presunçoso, era quase maldoso, triunfante! Tinhadificuldade em defini-lo.

- Sabe - continuou o homem, retirando um cachimbo do bolso ecomeçando a enchê-lo -, é muito estranha a frequência com que

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podemos ler que foram encontradas pessoas mortas nas banheiras.Deve ser um acidente muito comum. E também muito tentador.Afinal, o crime exerce um fascínio. A coisa chega a um ponto... ouseja, calculo que chegue, sabe como é.

- Muito provavelmente - respondeu Pender.

- Tenho a certeza disso. Não, eu não confiaria esta fórmula aninguém... nem sequer a um jovem virtuoso como o senhor.

Os dedos longos e brancos comprimiram o tabaco com firmeza nointerior da concavidade e riscaram um fósforo.

- E quanto a si, nesse caso? - perguntou Pender, irritado. (Ninguémgosta de ser chamado jovem virtuoso.) - Se ninguém é digno deconfiança...

- Se eu sou, é isso? - retorquiu o homem. - Bem, é verdade, masagora já não há nada a fazer, não é? Tenho conhecimento disto enão posso esquecê-lo. É lamentável, mas é assim. Em momentoalgum terá o consolo de saber que nada de desagradável estáprestes a acontecer-me. Ena! Já chegámos a Rugby. Saio aqui.Tenho ums negócios a tratar aqui em Rugby.

Levantou-se e sacudiu-se, abotoou o impermeável, ajustando-o aocorpo, e ajeitou o chapéu coçado enterrando-o com mais firmezasobre os óculos enigmáticos. O comboio abrandou e parou. Comuma despedida breve e um sorriso matreiro o homem desceu paraa plataforma da estação. Pender observou-o enquanto ele seafastava a passos largos sob o chuvisco, desaparecendo para lá docírculo de luz dos candeeiros.

- Deve ser tolo - disse Pender estranhamente aliviado. - Até queenfim, parece que vou ter o compartimento só para mim.

Voltou a concentrar-se em Murder at the Manse, mas a sua atençãocontinuava a desviar-se do livro que segurava entre as mãos.

Como se chamava aquilo de que o fulano falara? Sulfato de quê?Por mais que tentasse, não conseguia lembrar-se.

Foi na tarde do dia seguinte que Pender viu as manchetes dasnoticias. Comprara o Standard para ler ao almoço e a palavra"Banho"

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chamou a sua atenção. De outro modo, talvez não tivesse reparadono parágrafo, já que o mesmo era breve.

FABRICANTE ABASTADO MORRE NO BANHO, TRAGICAMENTEDESCOBERTO PELA MULHER

Esta manhã, Mrs. John Brittlesea, mulher do conhecido director daBrittlesea's Engineering Works de Rugby, fez uma descobertamacabra. Apercebendo-se que o seu marido, que ela vira com vidamenos de uma hora antes, não descia para o pequeno-almoço, foiprocurá-lo, encontrando-o já sem vida na banheira. Segundo omédico legista, a morte ocorrera cerca de meia hora antes e pareceter-se ficado a dever a uma paragem cardíaca. O fabricante morto...

- Ora aqui está uma estranha coincidência - disse Pender. EmRugby. Parece-me que o meu amigo desconhecido ficariainteressado... se é que ainda lá está a tratar do seu negociozinho. Apropósito, qual será o ramo dele?

Quando a nossa atenção é captada por um conjunto particular decircunstâncias, é muito curioso ver como elas parecem obcecar-nos. Tem-se uma apendicite e de imediato os jornais se enchem deparágrafos com depoimentos de pessoas que a tiveram e de outrasque estão prestes a morrer na sequência de uma crise. Ficamos asaber que todos os nossos conhecidos tiveram uma crise ou quecertos amigos a tiveram e alguns até morreram dela ourecuperaram de forma mais surpreendente e com maior rapidez doque nós. Não se abre uma revista conhecida sem que nela não seencontre uma referência à sua cura como sendo um dos triunfos dacirurgia moderna. Não passamos os olhos por um tratado científicosem que encontremos por acaso uma comparação entre o apêndicevermiforme no homem e no macaco. Provavelmente estasreferências à apendicite são igualmente frequentes em todas as

épocas, mas só nos apercebemos delas quando a nossa menteestá dirigida para aquele assunto. Em todo o caso, foi

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desta forma que Pender se apercebeu da extraordinária frequênciacom que as pessoas pareciam morrer no banho naquela época.

O facto perseguia-o constantemente. Era sempre a mesmasequência de acontecimentos: o banho quente, a descoberta docadáver, a investigação. O veredicto médico era sempre o mesmo:ataque cardíaco que se seguia à imersão em água demasiadoquente. Pender começou a achar que era muito pouco seguroentrar num banho quente. Ele próprio começou a tomar banhoscada vez mais frios à medida que os dias se sucediam, até atemperatura da água quase deixar de ser agradável.

Todas as manhãs, folheava rapidamente o jornal à procura detítulos sobre banhos antes de começar a ler calmamente asnotícias, e sentia-se ao mesmo tempo aliviado e vagamentedesapontado se passasse uma semana sem ouvir falar de umamorte trágica num banho quente.

Uma das mortes inesperadas que ocorreram daquele modo foi a deuma mulher jovem e bonita, cujo marido, um químico analítico,tentara sem sucesso divorciar-se dela alguns meses antes. O oficialda polícia mostrou-se inclinado a suspeitar de crime e submeteu omarido a um rigoroso interrogatório. Contudo, o resultado nãopareceu ter qualquer influência no veredicto médico. Cismandosobre a possibilidade improvável, como acontecia todos os dias,semana após semana, Pender quis lembrar-se do nome da drogade que o homem do comboio lhe falara.

Foi então que o próprio bairro onde vivia Pender entrou emefervescência. O velho senhor Skimmings, que vivia sozinho comuma governanta, na rua logo ao virar da esquina, foi encontradomorto na banheira. O seu coração sempre fora fraco. A governantadisse ao leiteiro que sempre esperara que algo semelhanteacontecesse, porque o senhor tomava sempre o banho tão quente.Pender decidiu investigar o caso.

A governanta testemunhou. Mr. Skimmings fora o mais bondoso dospatrões, e ela estava desolada por perdê-lo. Não, ela não sabia queMr. Skimmings lhe deixava uma avultada quantia em dinheiro, masisso era típico do seu coração bondoso. Claro que o veredicto foimorte acidental.

Naquela noite, Pender saiu para dar o habitual passeio com o cão.Uma certa sensação de curiosidade levou-o a passar pela antigacasa

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de Mr. Skimmings. Enquanto se aproximava dela lentamente eerguia os olhos para as janelas sem vida, o portão do jardim abriu-se e um homem saiu. Sob a luz do candeeiro da rua, Penderreconheceu-o imediatamente.

- Como está! - cumprimentou.

- Ah, é você? - exclamou o homem. - Vem inspeccionar o local datragédia, hein? O que acha de tudo isto?

- Oh, não tenho grande opinião - disse Pender. - Não o conhecia.Estranho que voltemos a encontrar-nos assim.

- É, não é? Vive aqui perto, creio.

- Sim - respondeu Pender; e logo depois desejou que isso não fosseverdade. - Também mora por aqui?

- Eu? - perguntou o homem. - Oh, não. Estou aqui apenas emnegócios.

- Da última vez que nos vimos - disse Pender -, estava a tratar denegócios em Rugby.

Caminhavam agora ao mesmo ritmo, avançando devagar pela ruaem direcção à esquina que Pender tinha que contornar para ir paracasa.

- Assim foi - concordou o outro homem. - Percorro o país inteiro emnegócios. Compreende, nunca sei para onde posso ser requisitadoa seguir.

- Foi enquanto esteve em Rugby que o velho Brittlesea foiencontrado morto no banho, não foi? - observou Pender,casualmente.

- Foi, sim. A coincidência é uma coisa estranha - o homem olhoupara ambos os lados através das suas lentes reluzentes. - Deixoutodo o dinheiro à mulher, não foi? Agora ela é uma senhora rica.Uma rapariga bonita... muito mais nova do que ele.

Naquele momento alcançavam o portão da casa de Pender.

- Entre e tome uma bebida - disse Pender, e de novo se arrependeuimediatamente da sua impulsividade.

O homem aceitou e entraram no estúdio de Pender.

- É notável a quantidade de mortes no banho que têm acontecidoultimamente - observou Pender enquanto deitava soda nos copos.

- Acha isso notável? - perguntou-lhe o homem com aquele hábitoirritante de questionar tudo o que lhe era dito. - Bem, não sei, talvezseja, mas sempre se revelou ser um acidente bastante comum.

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- Julgo que tenho estado mais alerta por causa daquela conversaque tivemos no comboio. - Pender riu-se um pouco embaraçado. -Faz-me pensar... sabe como é... se mais alguém descobriu oproduto de que me falou... como se chama ele?

O homem ignorou a pergunta.

- Oh, não me parece - disse ele. - Julgo que sou a única pessoa quesabe disso. A mim próprio ele deparou-se-me por acaso quandoprocurava outra coisa qualquer. Não creio que pudesse ter sidodescoberto simultaneamente em tantos sítios no país. Porém, estesveredictos só provam quão simples é livrarmo-nos de uma pessoa.

- Então, o senhor é farmacêutico? - perguntou Pender, recorrendo àúnica designação que lhe parecia susceptível de fornecer algumainformação.

- Ah, sou um pouco de tudo. Sou o tipo de homem útil, de umamaneira geral. Também faço muita pesquisa por conta própria.Estou a ver que tem aqui um ou dois livros interessantes.

Pender sentiu-se lisonjeado. Para um homem na sua posição -estivera num banco até herdar aquela quantiazinha - sentiu que seaperfeiçoara com uma finalidade, e sabia que a sua colecção deprimeiras edições modernas um dia valeriam um bom dinheiro.Examinou a estante envidraçada e retirou um volume ou dois paramostrar à sua visita.

O homem parecia ser inteligente e imediatamente se juntou a eleem frente das prateleiras.

- Estes, por exemplo, revelam o seu gosto pessoal? - retirou umvolume de Henry James e os seus olhos passaram rapidamentepela página em branco do início. - É o seu nome? E. Pender?

Pender confirmou.

- Está em vantagem sobre mim - acrescentou.

- Oh! Pertenço ao grande clã dos Smith - disse o outro com umagargalhada -, e trabalho para me sustentar. Parece estar muito beminstalado aqui.

Pender falou-lhe no seu emprego no escritório e na herança.

- É muito simpático, não é? - disse Smith. - Solteiro? Não, é umdaqueles sortudos. Não tem nada ar de quem precisa de sulfatode... de nenhuma droga útil num futuro próximo. E nunca iráprecisar. Se se ficar por aquilo que possui e se mantiver afastadodas mulheres e das especulações.

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Sorriu, olhando de soslaio para Pender. Agora que estava semchapéu, Pender via que ele tinha uma quantidade de cabelogrisalho muito encaracolado, que o fazia mais velho do que lheparecera na carruagem do comboio.

- Não, para já não irei ao seu encontro para lhe pedir ajuda - dissePender a rir. - Além disso, como poderia eu encontrá-lo sequisesse?

- Não precisará de o fazer - respondeu Smith. - Eu encontro-o. Nãotenho dificuldade nenhuma em fazê-lo. - Sorriu mostrando osdentes de um modo estranho. - Bem, é melhor ir andando. Obrigadopela hospitalidade. Não creio que voltemos a encontrar-nos... mas,claro que pode acontecer. As coisas acontecem de forma tãoinvulgar, não é?

Depois de ele sair, Pender voltou para a sua poltrona. Agarrou nocopo de whisky, que estava quase cheio.

- Que estranho! - disse para consigo. - Não me lembro de encheristo. Devo ter-me entusiasmado e fi-lo mecanicamente. - Esvaziou ocopo devagar enquanto pensava em Smith.

Que diabo estaria Smith a fazer em casa de Skimming? Tudo aquiloera muito estranho. Se a governanta de Skimming soubesse dodinheiro... Mas não sabia, como podia ela ter sabido da existênciade Smith e do seu sulfato de... tinha a palavra debaixo da língua."Não precisará de me encontrar. Eu encontro-o." Que teria elequerido dizer? Mas tudo aquilo era ridículo. Presumivelmente, Smithnão era o demónio. Contudo, se de facto tivesse tido aquele secretocomportamento disparatado e quisesse estabelecer o seu preço.

- Negócios em Rugby... um negociozinho em casa de Skimming.Ora, que absurdo! - Ninguém é digno de confiança. Poder absolutosobre a vida das outras pessoas... cresce dentro de nós. Isto é,creio que seja isso que acontece.

Que ideia disparatada! E se ali houvesse alguma coisa, o homemestaria desejoso por falar a Pender sobre aquilo. Se Pender optassepor falar, podia deixar o indivíduo em maus lençóis. A própria vidade Pender estaria em perigo.

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Aquele whisky!

Quanto mais pensava no assunto, mais se convencia de que nãofora ele quem o servira. Smith devia tê-lo feito enquanto ele estiverade costas. Porquê aquele súbito interesse pelas estantes? Nãotivera qualquer relação com o que se passara até então. Agora quePender pensava naquilo, aquele whisky era muito forte. Seriaimaginação sua ou notara algo diferente no sabor da bebida?

Pender sentiu a testa molhada com suores frios.

Um quarto de hora mais tarde, depois de tomar uma boa dose demostarda com água, Pender voltou a descer as escadas, trémulo echeio de frio e encolheu-se junto à lareira. Escaparia por pouco... seconseguisse escapar. Não sabia como a substância actuava, mastinha a certeza que não voltaria a tomar um banho quente nos diasseguintes. Nunca se sabia.

Quer a mostarda e a água tivessem actuado a tempo, quer o banhoquente fosse um elemento essencial para o efeito, certo era que avida de Pender estava salvaguardada, por enquanto. Ele, contudo,continuava preocupado. Passou a pôr sempre a corrente desegurança na porta e avisou a empregada para não deixar entrarestranhos em sua casa.

Pediu para lhe entregarem mais dois matutinos e o News of theWorld às segundas-feiras, lendo com atenção todas as colunas. Asmortes no banho tornaram-se uma obsessão para ele. Esqueceu-sedas suas primeiras edições e dedicou-se ao acompanhamento dasinvestigações.

Três semanas mais tarde, deslocou-se a Lincoln. Um homemmorrera de ataque cardíaco nuns banhos turcos... um homem fortee com hábitos sedentários. O júri acrescentou uma recomendação:morte acidental, referindo que o gerente devia exercer umavigilância mais apertada sobre os utentes dos banhos, não devendonunca deixá-los sozinhos na sauna.

Assim que Pender saiu do vestíbulo, viu à sua frente um chapéuoçado que lhe pareceu familiar. Precipitou-se para ele e conseguiuapanhar Mr. Smith quando este se preparava para entrar num táxi.

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- Smith - gritou ele, arfando um pouco. Agarrou-o furiosamente peloombro.

- O quê, você de novo? - inquiriu Smith. - Está a tirar notas sobre ocaso, é? Posso ajudá-lo em alguma coisa?

- Seu monstro! - disse Pender. - Você está metido nisto! No outrodia tentou matar-me.

- Eu? Por que motivo o faria?

- Vai pagar por isto - gritou Pender ameaçador.

Um polícia abriu passagem por entre a multidão que se juntava.

- Ora vejamos! - exclamou. - O que se passa aqui? Smith tocou natesta de modo significativo.

- Está tudo bem, senhor guarda - respondeu. - Parece que estesenhor julga que ando a fazer-lhe mal. Aqui tem o meu cartão. Ojuiz conhece-me. Mas como ele me atacou, o melhor é vigiá-lo.

- É verdade - disse um transeunte.

- Este homem tentou matar-me - defendeu-se Pender. O políciaabanou a cabeça.

- Não se preocupe com isso, homem - respondeu ele. - Pense bemnisto. O calor ali dentro perturbou-o um pouco. Está tudo bem, tudobem.

- Mas eu quero apresentar queixa contra ele - informou Pender.

- No seu lugar não o faria - disse-lhe o polícia.

- Estou a dizer-lhe - insistiu Pender -, que este sujeito, Smith, tentouenvenenar-me. É um assassino. Já envenenou muita gente.

O polícia piscou o olho a Smith.

- É melhor ir-se embora - disse ele. - Eu resolvo isto. Agora, meujovem - agarrou Pender com firmeza pelos braços -, acalme-se efale baixo. Aquele senhor não se chama Smith nem nada que separeça. O senhor está um pouco confuso.

- Então, como se chama ele? - perguntou Pender.

- Não importa - respondeu o polícia. - Deixe-o em paz ou ainda semete nalgum sarilho.

O táxi já partira. Pender olhou em volta para o círculo de rostosdivertidos e cedeu.

- Está bem, senhor guarda - disse ele. - Não lhe arranjo problemas.Acompanho-o à esquadra e lá conto-lhe tudo.

- E que me diz a isto? - perguntou o inspector da polícia ao sargentodepois de Pender sair da esquadra.

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- Na minha opinião, não bate bem da caixa dos pirolitos - respondeuo subordinado. - Sofre de ideias fixas ou lá como lhe chamam.

- Hum! - respondeu o inspector. - Bem, ficámos com o seu nome emorada, o melhor é guardá-los aí. Pode ser que volte a aparecerpor cá. Envenenar pessoas de modo que morram no banho, hein?Esta é boa. Fantástico como estes malucos pensam em tudo, nãoé?

Naquele ano, a Primavera estava fria e enevoada. Em Março,Pender foi a Deptford por causa de uma investigação judicial, masum espesso banco de nevoeiro pairava sobre o rio como se fosseNovembro. O frio penetrava até aos ossos. Ao sentar-se napequena sala de tribunal, perscrutando-a por entre o crepúsculodourado e o nevoeiro, mal conseguia ver as testemunhas quandoestas se aproximavam da mesa. Todos os que estavam na salapareciam tossir, inclusivamente Pender. Doía-lhe os ossos e sentia-se como se estivesse prestes a constipar-se.

Semicerrando os olhos, pensou reconhecer um rosto do outro ladoda sala, mas a grande quantidade de névoa, que penetrava portodas as frestas fazia-lhe arder os olhos e não o deixava ver. Meteua mão no bolso do sobretudo e fechou-a com um sentimentoreconfortante em volta de uma coisa volumosa e pesada. Desdeaquele dia em Lincoln que andava armado para se proteger. Nãocom um revólver, porém... não queria nada com armas de fogo. Um

saco de areia era bem melhor. Comprara-o a um velho queempurrava um carrinho de mão. Era suposto conter as correntes dear que entravam por debaixo das portas... um método eficaz eantigo.

O inevitável veredicto foi pronunciado. Todos quantos compunham aaudiência começaram a empurrar-se para sair. Naquele momentoPender tinha de se apressar para não perder o homem de vista.Abriu caminho com os cotovelos, murmurando desculpas. À portaquase tocou no homem, mas uma mulher corpulenta barrou-lhe apassagem. Lançou-se para diante passando por ela e levando-a asoltar um pequeno guincho de indignação. O homem que seguia àfrente olhou para trás, e a luz por cima da porta reflectiu-se nassuas lentes.

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Pender puxou o chapéu para a frente dos olhos e seguiu-o. Os seussapatos tinham solas de borracha e não faziam barulho nopavimento. O homem continuou, subindo calmamente uma rua edescendo outra sem nunca olhar para trás. O nevoeiro era tãodenso que Pender foi obrigado a manter-se apenas a alguns metrosde distância do outro. Para onde iria ele? Para as ruas iluminadas?Para casa de autocarro ou de eléctrico? Não. Virou à esquerda edesceu uma rua estreita.

Ali o nevoeiro era ainda mais denso. Pender deixara de conseguirver o foragido, mas ouvia passos à sua frente caminhando sempreno mesmo ritmo. Pareceu-lhe que estavam sozinhos no mundo -perseguidor e foragido, assassino e vingador. A rua iniciava agorauma subida mais íngreme. Deviam estar muito próximo do rio.

De repente, as formas difusas das casas desapareceram de ambosos lados. Encontrava-se num espaço aberto, no centro do qualhavia um candeeiro envolto na penumbra. Deixara de ouvir ospassos. Quando se apressava a continuar a sua perseguição semfazer barulho, Pender viu o homem de pé junto ao candeeiro,aparentemente consultando qualquer coisa num bloco de notas.

Quatro passos mais e Pender alcançou-o. Retirou o saco de areiaque tinha no bolso.

O homem levantou os olhos.

- Desta vez apanhei-te - disse Pender, e bateu-lhe com toda a forçaque tinha.

Pender tinha toda a razão. Apanhou mesmo uma constipação. Foiuma semana antes de voltar a sair já restabelecido. O tempomudara e o ar estava fresco e agradável. Apesar da fraquezadeixada pela doença, sentiu como se lhe tivessem tirado umenorme peso dos ombros. Caminhou devagar até uma das suaslivrarias favoritas no Strand e comprou uma "primeira" de D. H.Lawrence por uma pechincha. Satisfeito com a aquisição, entrounum pequeno restaurante barato frequentado sobretudo porjornalistas e pediu uma costeleta grelhada e uma caneca decerveja.

Na mesa ao seu lado estavam sentados dois jornalistas.

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- Vais ao funeral do velho Buckley? - perguntou um deles.

- Vou - respondeu o outro. - Pobre diabo. É incrível a enormepancada que levou na cabeça. Devia ir a caminho da entrevista coma viúva daquele indivíduo que morreu no banho. Este é um bairroperigoso. Talvez um dos rapazes de Jimmy Cardeal tivesse umascontas a ajustar com ele. Era um grande repórter criminologista...eles não vão arranjar outro como Bill Buckley tão depressa.

- Era um tipo impecável. Um grande companheiro. Não ia emfarsas. Lembras-te da fantástica invenção dele do sulfato detanatol?

Pender estremeceu. Aquela era a palavra que lhe escapara aolongo de tantos meses. Sentiu uma estranha vertigem.

-...olhando para a pessoa tão sério como um juiz - dizia o jornalista.- Não eram coisas dessas, claro, mas ele costumava impingi-las

àqueles tolos que encontrava nos comboios para ver a reacçãodeles. Acreditas que um fulano lhe ofereceu de facto...

- Olha só! - interrompeu-o o amigo. - Aquele sujeito ali desmaiou.Bem me parecia que estava um bocado lívido.

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Eu Descubro a Saída Sozinho

Ngaio Marsh

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INGAIO (naiu) MARSH (1895-1982) nasceu e viveu a maior parteda sua vida na Nova Zelândia. Isso não a impediu, porém, deobedecer ao costume anti-regionalista da época e escolher aInglaterra, que visitou pela primeira vez em 1928, como cenáriopara a maioria dos seus contos policiais. Durante a sua lucrativacarreira como romancista, manteve uma actividade paralela noramo artístico que primeiro a conquistou, o teatro, tendo trabalhadocomo actriz, produtora, encenadora, aderecista e dramaturga. Apartir de

1941, e ao longo de trinta anos, passou a encenar peças e emdigressão com a Student Drama Society do Canterbury UniversityCollege em Christchurch, na Nova Zelândia. (Segundo a tradiçãoteatral, a data oficial do nascimento foi durante muitos anos 1899,retirando-lhe assim quatro anos à sua idade real)

O primeiro romance de Marsh, A Man Lay Dead (1934), passa-senum ambiente teatral como aconteceu com vários dos textos quelhe sucederam, incluindo o seu último livro, Light Thickens (1982).Dando expressão, de forma subtil, ao seu entusiasmo pelo teatro, amaioria dos seus crimes ocorre no decurso de uma representação,seja ela de que tipo for. Ironicamente, conforme a biógrafa MargaretLewis escreveu em St James Guide to Crime & Mystery Writers (4.?edição, 1996), Marsh não conseguiu imitar o sucesso de AgathaChristie nas adaptações teatrais dos seus romances, porque"perdeu o sentido cénico e tentou preservar as características

gerais dos romances com todos os seus inquéritos, perguntas erespostas".

Numa época em que os detectives amadores eramsimultaneamente aristocratas, Marsh afirmou o carácter invulgar dasua escrita ao ceder a boca de cena a um polícia - embora, naverdade, em termos de estilo pessoal e profissional, Roderick Alleynda Scotland Yard tivesse mais em comum com o Lorde PeterWimsey, de Dorothy L. Sayers, e o Albert Campion, de MargeryAlligham, do que com um verdadeiro agente da lei. Alleyn tinhaainda em comum com Wimsey e Campion um casamento acidental,no seu caso com Agatha Troy, uma personagem que seassemelhava à própria Marsh e era uma pintora de sucesso, umaprofissão que Marsh idealizara para si própria no início da sua vida.

Marsh teve uma carreira extremamente consistente como escritorade ficção policial. Desde o início que o enigma ocupava o centro dasua obra, e ela era magistral na criação da ilusão na mente dosleitores. Se a sua escrita e caracterização de personagens setornaram mais ricas, o modelo essencial constituído pelo crime, ainvestigação e a resolução do caso nunca se alterou. Notável é ofacto de os seus últimos romances, publicados quando ela teriacerca de

85 anos, não revelarem indícios de qualquer declínio perceptível emtermos de qualidade em relação aos anteriores. Incluem-se, aliás,entre os seus melhores trabalhos, uma afirmação que infelizmentenão é válida em relação a autoras de renome como Agatha Christiee Eric Stanley Gardner.

Um dos raros contos desta autora, Eu Descubro a Saída Sozinho, éum romance de Roderick Alleyn em miniatura, cuja acção decorreno meio teatral tão característico da ficção de Marsh.

Quando já passavam trinta minutos das seis horas daquela tarde,Anthony Gill, incapaz de comer fosse o que fosse, de se manterquieto, de pensar, falar ou agir de forma coerente, saiu dos seusaposentos e dirigiu-se ao Jupiter Theatre. Sabia que não estaria

ninguém nos bastidores, que nada tinha para fazer no teatro, quedevia ficar calmamente em casa e a seguir vestir-se, jantar echegar, digamos, às oito menos um quarto. Porém, era como sealgo o impelisse vigorosamente para dentro do fato, o forçasse asair para a rua e o compelisse a correr através do West End até aoJúpiter. A sua mente estava toldada por uma fina película de inércia.Lembrara-se de estranhas falas da peça, mas sem nenhumsignificado particular. Dera por si a repetir diligentemente uma frasetotalmente irrelevante: "Ela tem uma maneira de rir que faz ocoração de um homem palpitar."

Piccadilly, Shaftesbury Avenue. "Aqui vou eu", pensou ele, ao virarpara a Hawke Street, "a caminho da minha peça. Falta uma hora evinte e nove minutos. Está a um passo de distância. Está aprecipitar-se na minha direcção. A primeira peça de Tony. Pobre ejovem Tony Gill. Não faz mal. Volta a tentar."

O Júpiter. Escrito em néon: EU DESCUBRO A SAÍDA SOZINHO deAnthony Gill. E à entrada os cartazes e as fotografias. CoralieBourne c?m H. ]. Bannmgton, Barry George e Canning Cumberland.

Canning Cumberland. A película que lhe toldava a mentedesvaneceu-se e ali estava Aquilo. Ia ter de pensar no assunto.Seria assim

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tão mau se Canning Cumberland chegasse bêbado? Seriabrilhantemente mau, dizia-se. Ele faria apelo a todos os seustruques. Recursos de um actor esperto, superando toda a gente eridicularizando a harmonia dramática. "Nas mãos de Mr. CanningCumberland o diálogo mais banal e as situações menosconvincentes parecem quase reais." O que se pode fazer com umactor bêbado?

Parou junto à entrada sentindo o coração a bater e um aperto noestômago. Porque, claro, a peça era má. Naquele momento e pelaprimeira vez, estava verdadeiramente convencido disso. Erahorrível. Tinha apenas um aspecto positivo, que não se devia a ele.Fora-lhe sugerida por Coralie Bourne: "Não creio que a peça que

me enviou funcione tal como está, mas ocorreu-me..." Fora umaideia brilhante. Reescrevera a peça e quase de imediato e de formamuito inocente começara a pensar nela como tendo sido ideia sua,embora tivesse dito timidamente a Coralie Bourne: "Devia aparecercomo co-autora." Ela recusara de imediato e de modoexcessivamente enfático. "Não fiz nada de mais", dissera. "Se quertornar-se um dramaturgo terá que aprender a aproveitar ideias quelhe chegam de toda a parte. Uma situação isolada não é nada.Pense em Shakespeare", acrescentara ela, em tom ligeiro."Enredos inteiros! Não seja tolo", dissera ela mais tarde, ainda como mesmo ar despachado e nervoso. "Não ande por aí a falar nisto atoda a gente. Vão pensar que por detrás da minha sugestãozinhase esconde mais alguma coisa, e não menos. Prometa-me, porfavor." Ele prometeu, pensando que cometera um pequeno erro aosugerir que Coralie Bourne, uma actriz tão famosa, aparecessecomo co-autora ao lado de um jovem desconhecido. "E comoestava certa", pensou ele, "porque claro que vai ser um rotundofiasco. Ela ainda vai arrepender-se por ter aceite participar napeça."

De pé em frente ao teatro, contemplou algumas hipótesestormentosas. O que fazem os espectadores quando uma primeirapeça é um fracasso? Será que aplaudem um pouco, o suficientepara deixarem o pano subir e descer rapidamente diante de umgrupo incomodado de actores? Quão escassos têm de ser osaplausos para que ele não seja chamado ao palco? E em seguidaera suposto irem ao Chelsea Arts Ball. Um panorama horrível.Pensando que daria tudo para poder interromper a representaçãoda peça, entrou no átrio. Havia luzes nos escritórios, e parou,hesitante, diante de uma prancha

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com fotografias. Entre elas, em muito menor tamanho do que asdos actores principais, estava Dendra Gay com os seus olhosfitando directamente os dele. Ela tinha uma maneira de rir que faziao coração de um homem palpitar. "Bem", pensou, "estouapaixonado por ela, é o que é." Afastou-se da fotografia. Umhomem saiu do escritório.

- Mr. Gill? Telegramas para si.

Anthony agarrou neles e ao sair ouviu o homem atrás de si dizer:

- Muito boa sorte para esta noite, senhor.

Havia filas de pessoas que aguardavam na rua lateral a aberturadas portas.

Às seis e meia, Coralie Bourne marcou o número de CanningCumberland e aguardou. Ouviu a sua voz.

- Sou eu - disse ela.

- Oh, meu Deus, querida, tenho estado a pensar em ti - faloudepressa e excessivamente alto. - Coral, tenho estado a pensar emBen. Não devias ter colocado o rapaz naquela situação.

- Já falámos sobre isso uma dúzia de vezes, Cann. Porque nãohaveria de tê-la dado a Tony? Ben nunca saberá - aguardou uminstante e depois disse nervosa: - Ben foi-se embora, Cann. Nuncamais voltaremos a vê-lo.

- Tenho um mau pressentimento sobre isso. Afinal, ele é teu marido.

- Não, Cann, não.

- Supõe que ele aparece. Seria típico dele.

- Ele não vai aparecer.

Ela ouviu-o rir-se. "Estou farta disto tudo", pensou de repente, "jáesgotei a paciência há muito tempo. Já não aguento mais..."

- Cann - disse ela para o bocal do telefone. Ele, porém, desligara.

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Às vinte para as sete, Barry George olhou-se ao espelho da suacasa de banho. "Tenho melhor aspecto do que Cann Cumberland",pensou. "A minha cabeça tem uma forma bonita, os meus olhos sãomaiores e o contorno dos meus maxilares é mais bem definido.Nunca comprometi um espectáculo. Não bebo. Sou melhor actor."Virou um pouco a cabeça, revirando os olhos para ver o efeito. "Na

hora da verdade", pensou "sou eu a estrela. Ele é o actor que dá asdeixas. Foi assim que foi produzido e é essa a vontade do autor. Ascríticas deviam ser para mim."

Vieram-lhe à memória críticas antigas. Reviu os textos impressos, otamanho dos parágrafos. Um longo parágrafo sobre CanningCumberland com uma fala transcrita no final. "Será indelicadoacrescentar que Mr. Barry George foi seguindo a reboque dovirtuosismo de Mr. Cumberland com uma expressão de confiançaarquejante?" E ainda: "É algo penoso para Mr. Barry George ver-seforçado a funcionar como contraponto para realçar esta brilhanteactuação." Pior ainda: "Mr. Barry George conseguiu, de formatolerável, evitar fazer de palhaço, feito este que evidentementeesgotou os seus recursos."

- Inconcebível! - disse em voz alta para a sua própria imagem,observando o belo lampejo de indignação nos seus olhos.

"O álcool", disse para consigo, "tinha dois efeitos sobre CannCumberland." Levantou um dedo. Era uma mão bela e expressiva. Amão de um actor. "O álcool destruía a integridade artística deCumberland. Além disso, dotava-o de uma astúcia demoníaca.Ébrio, dava cabo dos elementos unificadores de uma peça, destruíao seu equilíbrio, arruinava a sua forma e ele próprio emergiaesfuziante na sua arte de representar levando os espectadores atomarem-no erradamente por um génio."

- Enquanto eu - disse ele em voz alta -, muito simplesmentecompenso o autor com a honra de uma interpretação fiel. Bah!

Voltou para o seu quarto, acabou de se vestir e inclinou o chapéupara o lado direito. Uma vez mais aproximou o rosto do espelhonum movimento impetuoso e observou minuciosamente a suaimagem. "Por Deus!", disse para consigo, "ele ultrapassou todos oslimites, meu caro. Esta noite ficaremos quites, não é verdade? PorDeus, é o que faremos."

Em parte satisfeito, mas também um pouco envergonhado, porqueafinal a cena saíra um pouco forçada, agarrou na bengala com

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uma das mãos e numa caixa onde tinha o fato para o Arts Ball coma outra, e saiu para o teatro.

Quando faltavam dez minutos para as sete, H. J. Banningtonpassou pela fila de público que se aglomerava junto à entradaprincipal a caminho da rua estreita que conduzia à porta de entradapara os bastidores, retirando o chapéu e dizendo um "Muitoobrigado" às simpáticas senhoras que o deixaram passar. Ouviu-asmurmurar o seu nome. Percorreu a rua em passo apressado,cumprimentou o porteiro, passou por baixo do candeeiro sombrio,transpôs uma das entradas e pisou o palco. Só as luzes de serviçoestavam acesas. As paredes de um cenário de interiores erguiam-se indistintamente na penumbra. Bob Reynolds, o contra-regra,surgiu na entrada da caixa do ponto.

- Õlá, meu rapaz - disse ele -, mudei os camarins. O seu é o terceiroà direita. Já lhe mudaram as coisas. Pode ser?

- Pelo menos é melhor do que um buraco escuro do tamanho deuma casa de banho, mas sem o equipamento - disse H. J. comazedume. - Suponho que o grande Mr. Cumberland continue a ter oseu camarim de estrela.

- Bem, continua sim, meu rapaz.

- E diga-me, por favor, quem fica ao lado dele? No camarim ondeestá o outro radiador a gás?

- Pusemos lá Barry George, meu rapaz. Sabe como ele é.

- Bem de mais, meu rapaz, e receio que o público esteja a começara descobrir. - H. J. entrou na passagem de acesso aos camarins. Ocontra-regra voltou para o palco, onde encontrou a sua assistente.

- Que bicho lhe mordeu? - perguntou-lhe ela.

- Queria um camarim com aquecimento.

- Nada mais natural - disse a assistente, maldosamente.

- Começou a ganhar a vida a ler contadores de gás.

À esquerda e à direita do corredor, mais próximo do fundo do palco,havia duas portas, cada uma com uma estrela pintada numa tintabaça. A porta da esquerda estava aberta. H. J. espreitou o interior efoi recebido com um odor a maquilhagem, pó-de-arroz, roupa

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húmida e flores. Um aquecimento a gás zumbia confortavelmente. Aassistente de guarda-roupa de Coralie Bourne estendia algumastoalhas.

- Boa-tarde, Katie, minha jóia - disse H. J. - La Belle ainda nãodesceu?

- Vamos já - disse ela.

H. J. cantarolou com elegância Bella filia dei amore e voltou a entrarna passagem. O camarim da direita estava fechado, mas eleconseguia ouvir a assistente de guarda-roupa de Cumberland nointerior. Continuou até à porta seguinte, deteve-se, leu o cartão "Mr.Barry George", entoou uma nota alta e ridícula em trinado, abriu aterceira porta e acendeu a luz.

Definitivamente não era um camarim digno de uma segunda figura.Não tinha aquecimento. Porém, tinha uma bacia para se lavar eespelhos na parede oposta. Uma pilha de telegramas havia sidocolocada sobre a mesa do camarim. Ainda a cantarolar agarrouneles, descobrindo algumas contas, que haviam sidodiplomaticamente colocadas por baixo e uma carta escrita numacaligrafia vistosa.

A sua voz podia estar a ser activada por processos mecânicos e tersido arbitrariamente silenciada, dada a forma tão abrupta como acanção foi interrompida a meio de um trilo. Deixou cair ostelegramas em cima da mesa, agarrou na carta e abriu-a com umrasgão. O seu rosto, deploravelmente pálido, reflectia-seinfinitamente nos espelhos.

Às nove horas tocou o telefone. Roderick Alleyn foi atender.

- Daqui Sloane 84405. Não, é engano. Não. - Desligou e voltou parajunto da mulher e do convidado de ambos. - É a quinta vez em duashoras.

- Temos mesmo que mudar de número.

- Há coisas bem piores. O telefone voltou a tocar.

- Daqui não é do 84406 - avisou Alleyn. - Não, não posso levar trêsmalas grandes a Victoria Station. Não, daqui não é da Instant AllNight Delivery, não.

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- O número deles é o 84406 - explicou Mrs. Alleyn a Lorde MichaelLamprey. - Creio que seja apenas um erro na marcação do número,mas não imagina como as pessoas ficam zangadas. Porque querser polícia?

- É um trabalho monótono e duro, sabe... - começou Alleyn.

- Oh - disse Lorde Mike esticando as pernas e olhando criticamentepara os sapatos -, nem por um instante me imaginei a enfiarimediatamente suíças postiças e disfarces. De forma nenhuma. Massou revoltantemente saudável. Forte como um touro. E não creioque seja tão estúpido como possa ser tentado a pensar...

O telefone tocou.

- Olhe, deixe-me atender - sugeriu Mike, e fê-lo.

- Está? - disse num tom de voz insinuante. Prestou atenção,sorrindo para a sua anfitriã. - Receio... - começou. - Ouça, aguardeum momento... Sim, mas... - a sua expressão tornou-se impessoal ecomplacente. - Posso - disse ele de imediato - repetir o seu pedido,senhor? Nunca se sabe, não é verdade? Ir a 11 Harrow Gardens,Sloane Square buscar uma mala para ser entregue imediatamenteno Júpiter Theatre a Mr. Anthony Gill. Muito bem. Obrigado. Pagono destino. Absolutamente.

Pousou o auscultador e fez um sorriso rasgado para os Alleyns.

- Que diabo está você a tramar? - perguntou-lhe Alleyn.

- A pessoa simplesmente não queria ouvir a voz da razão. Tenteifalar com ele.

- Mas pode ser urgente - irrompeu Mrs. Alleyn.

- Na verdade não podia ser mais urgente. É uma mala para TonyGill do Jupiter.

- Bem, então...

- Estudei em Eton com este rapaz - disse Mike relembrando opassado. - Tem mais quatro anos do que eu, por isso era muitíssimoimportante, claro, enquanto eu não passava de um grão de areia.Isto ensinar-lhe-á uma lição.

- Acho melhor comunicar imediatamente esse pedido - disse Alleyncom firmeza.

- Preferia considerar a hipótese de lhe dar seguimento, sabe? Seriauma forma incrivelmente engenhosa de ver o espectáculo à socapa,não era? Tentei comprar um bilhete, mas estava esgotado.

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- Se vai entregar essa mala é melhor despachar-se.

- Mas é claramente uma oportunidade para me vestir a preceito,não é? Permita-me que lhe pergunte - disse Mike, modestamente: -Consideraria um grande descaramento da minha parte se eu... bem,se eu prometesse voltar e devolver tudo. Quero dizer...

- Está a sugerir que as minhas roupas se assemelham mais às deum moço de entregas do que as suas?

- Julgava que tinha peças...

- Por amor de Deus, Rory - disse Mrs. Alleyn -, deixa-o vestir-se e irembora. O mais importante é entregar essa mala àquele infeliz.

- Eu sei - disse Mike, diligente. - É muitíssimo simpático da suaparte. É o que sinto.

Alleyn afastou-se com ele e enfiou-lhe um impermeável velho esujo, um boné de tecido e um cachecol.

- Não conseguiria enganar um idiota de aldeia em dia de eclipsetotal - disse ele -, mas ponha-se daqui para fora.

Ficou a ver Mike afastar-se no carro e voltou para junto da mulher.

- O que vai acontecer? - perguntou-lhe ela.

- Conhecendo Mike como conheço, diria que vai acabar na primeirafila da plateia e irá jantar com a actriz principal. A propósito, ela éCoralie Bourne. Amorosa e vinte anos mais velha do que ele; peloque é provável que se apaixone por ela. - Alleyn agarrou na caixado tabaco e fez uma pausa. - Pergunto-me o que terá acontecido aomarido dela - disse.

- Quem era ele?

- Um indivíduo extraordinário. Benjamin Vlasnoff. Tinha um génioviolento. Parecia um bandido. Escreveu duas peças muito boas e foipreso três vezes por pequenos assaltos. Ela tentou divorciar-sedele, mas nunca o conseguiu. Julgo que depois disso ele foi para aRússia - Alleyn bocejou. - Parece-me que ela viveu tempos terríveiscom ele - acrescentou.

- All Night Delivery - disse Mike num tom rouco, tocando no boné. -Uma mala.

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- Aqui a tem - disse a mulher que o atendeu. - Agora leve-a comcuidado, não está fechada e o fecho está solto.

- Sim, minha senhora - disse Mike. - Muito agradecido. Tá frio, nãoé?

Levou a mala para o carro.

Estava uma noite fresca de Primavera. A neblina descia sobreSloane Square em farrapos e todos os candeeiros tinham auréolasem volta do foco de luz. Era o tipo de noite em que os ruídosespecíficos se individualizavam da vozearia de Londres. O somestridente das sirenes ecoava imperiosamente no rio e uma cornetatocou em Chelsea. Barracks. "Uma noite feita para a aventura",pensou Mike.

Abriu a porta de trás do carro e colocou a mala no seu interior. Ofecho abriu-se, a tampa foi projectada para trás e o seu conteúdoespalhou-se.

- Bolas! - exclamou Mike, acendendo a luz do interior. No chão docarro estava uma barba postiça.

Era espessa, de um ruivo vivo e estava colocada num suporte,tendo incorporado um bigode hirto. O conjunto tinha uns ganchosde arame que eram presos atrás das orelhas. Mike colocou-a comcuidado em cima do assento. Depois, agarrou num chapéu preto deabas largas, num grande sobretudo com uma gola de pêlo e, porfim, num par de luvas pretas.

Mike soltou um assobio pensativo e enfiou as mãos nos bolsos doimpermeável de Alleyn. Os dedos da sua mão direita encontraramum cartão. Retirou-o. "Inspector-Chefe", leu. "C.I.D. New ScotlandYard."

"Francamente", pensou Mike radiante, "isto é uma dádiva doscéus."

Dez minutos depois, um carro estacionou junto ao passeio,ocupando a vaga de estacionamento mais próxima do JupiterTheatre. Do seu interior saiu uma figura que transportava uma mala.Percorreu rapidamente a Hawke Street e virou para a rua estreitaque ia dar à entrada

de bastidores. Ao passar por um candeeiro parou, e iluminado pelaluz ténue fazia lembrar uma ilustração de uma história deespionagem eauardiana. O seu rosto estava envolto na penumbra,e a única nota de cor era uma caverna negra da qual sobressaía umquadrado de barba escarlate.

O porteiro, que apanhava ar fresco com um dos ajudantes de cena,deu um passo em frente examinando atentamente o estranho.

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- Deseja alguma coisa?

- Venho entregar esta mala a Mr. Gill.

- Ele está na parte da frente. Pode deixá-la comigo.

- Lamento muito - disse a voz por trás da barba -, mas prometi queeu próprio lha levaria aos bastidores.

- Então, esqueça. Lamento, mas não pode entrar ninguém semcartão.

- Cartão? Muito bem. Aqui está um cartão.

Exibiu-o, na sua mão enluvada de preto. Relutante, o porteiro daentrada de bastidores afastou os olhos da barba, agarrou no cartãoe examinou-o à luz.

- Esta agora! - exclamou ele. - O que se passa, chefe?

- Não importa. Não comente nada disto.

A figura acenou com a mão e transpôs a porta.

- Olha-me só pra isto! - disse o porteiro excitado para o ajudante decena. - Aquele era um polícia à paisana, é o que é.

- À paisana! - exclamou o ajudante de cena. - Aquilo!

- Tá disfarçado - disse o porteiro. - É o que é. Tá disfarçado.

- Ele tá é afogado atrás daquelas suíças, se queres saber o que euacho.

No palco, alguém dizia numa voz baixa e maravilhosamentearticulada:

- Sempre detestei a vista destas janelas. Contudo, se este é o tipode coisa que tu admiras. Apaga as luzes, que diabo. Olha paraaquilo.

- Cuidado agora, cuidado - sussurrou uma voz tão próximo de Mikeque ele deu um salto.

- Está bem - disse uma segunda voz algures por cima da suacabeça. As luzes do palco ficaram azuis.

- Corta essa luz de presença.

- Luz de presença apagada.

Os cortinados do cenário foram corridos para um dos lados e umajanela abriu-se de rompante. Apareceu um actor, que se debruçouaté ficar muito próximo de Mike, parecendo escrutinar o seu rosto edizendo de forma muito distinta:

- Meu Deus, é horrível!

Mike recuou na direcção de um corredor iluminado apenas por umaporta aberta. Um som estridente irrompeu atrás do palco.

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- Luzes - disse a voz dura. Mike entrou na passagem. Nessemomento, alguém saiu por uma porta e deparou-se-lhe com CoralieBourne, magnificamente vestida e muito pintada.

Por instantes ela ficou ali de pé, parada; depois fez um gestocurioso com a mão direita e produziu um pequeno som aspirado,caindo aos pés dele.

Anthony rasgava o seu programa em longas tiras e atirava-as parao chão da caixa do ponto. No seu lado direito, em cima e em baixoestava o público; umas vezes rindo, outras vezes calado, outrasainda levantando as mãos como um ser colectivo e batendo-as umana outra em uníssono. Como naquele momento em que, no fundodo palco, com uma voz estranha e inspirado por um qualquerdemónio interior, Canning Cumberland abria violentamente a janelae dizia, "Meu Deus; é horrível!"

"Está mal! Está mal!", gritou Anthony interiormente, odiandoCumberland, odiando Barry George, porque este se deixaraultrapassar por uma fala de quatro palavras, odiando a assistênciapor ter gostado. A cortina desceu devagar no final do segundo acto,e um som semelhante a chuva forte espalhou-se pelo teatro,cresceu prodigiosamente e continuou depois de as luzes seacenderem.

- Ao que parece - disse uma voz atrás de si -, gostaram da suapeça.

Era Gosset, o dono do Júpiter e financiador do espectáculo.Anthony virou-se para ele e gaguejou:

- Ele está a destruí-la. A cena devia ser do outro actor e ele está aroubar-lha.

- Meu rapaz - disse Gosset -, ele é um actor.

- Ele está bêbado. É inadmissível. Sentiu a mão de Gosset no seuombro.

- Estamos a ser vistos. Você faz parte do espectáculo. É ummomento muito importante para si; a sua primeira peça e está asair-se de forma brilhante. Venha beber um copo, meu caro. Queroapresentá-lo...

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Anthony levantou-se e Cosset, com o braço em volta dos seusombros, distribuindo sorrisos e dando-lhe palmadinhas, conduziu-opara a parte de trás do fosso.

- Lamento - disse Anthony. - Não posso. Por favor, solte-me. Vouvoltar para os bastidores.

- É melhor não, meu rapaz - a mão apertou-lhe o ombro. - Ouça,meu rapaz... - Mas Anthony, que conseguira libertar-se, afastava-sejá pelo corredor que ligava o fosso ao palco.

Dendra Gay aguardava junto às escadas íngremes.

- Calculei que viesses - disse ela.

- Ele está bêbado - retorquiu Anthony. - Está a dar cabo da peça.

- É apenas uma cena, Tony. No próximo acto ele acaba mais cedo.Vai ser colossal.

- Mas, não percebes...

- Percebo. Tu sabes que percebo. Mas tu és um sucesso, Tony,querido! Consegues ouvi-lo, sentir-lhe o cheiro e senti-lo nas tuasentranhas.

- Dendra... - disse ele, inseguro.

Apareceu alguém que desatou a apertar-lhe a mão, sem fazertenções de a largar. O cenário estava a ser montado, e umcandelabro era içado na escuridão. "Luzes", disse o contra-regra, eo cenário foi inundado por elas. Uma voz distante começou a entoar"Último acto, por favor. Último acto."

- Miss Bourne está bem? - perguntou de repente o contra-regra.

- Ela vai ficar bem. Não entra nos próximos dez minutos - disse umavoz feminina.

- Que se passa com Miss Bourne? - perguntou Anthony.

- Tony, eu tenho que ir e tu também. Tony, vai ser magnífico. Porfavor, pensamento positivo. Por favor.

- Dendra... - começou Tony, mas ela tinha-se ido embora. Atrás dacortina, o som das trombetas e flautas anunciava o

último acto.

- Todos fora do palco, por favor. Os ajudantes de cena saíram.

- Luzes.

- Luzes apagadas.

- Atenção.

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E enquanto Anthony ainda hesitava no canto do ponto, a cortinasubiu. Canning Cumberland e H. J. Bannington abriram o últimoacto.

Quando Mike se ajoelhou junto a Coralie Bourne, ouviu alguém nocorredor atrás de si. Virou-se e viu uma silhueta recortada pela luzdo palco. Era o actor que olhara para ele através da janela docenário. A silhueta pareceu repetir o gesto de Coralie Bourne eespalmar-se de encontro à parede.

Uma mulher com um avental saiu pela porta aberta.

- Olhe... aqui! - disse Mike.

Três coisas sucederam quase em simultâneo. A mulher gritou eajoelhou-se ao seu lado e o homem desapareceu pela porta àdireita.

Segurando Coralie Bourne nos braços, a mulher perguntouagressivamente:

- Porque voltou?

Depois, as luzes do corredor acenderam-se e Mike disse:

- Eu lamento imenso - e tirou o chapéu preto de abas largas. Aassistente de guarda-roupa olhou para ele boquiaberta, CoralieBourne proferiu um murmúrio em crescendo e abriu os olhos.

- Katie? - chamou.

- Está tudo bem, minha querida. Não é ele, querida. Está tudo bem.- A assistente fez um movimento brusco com a cabeça na direcçãode Mike. - Vá tirar isso - disse ela.

- Sim, claro, lamento muito... - ele recuou para a saída do corredorchocando com um jovem, que anunciou: "Cinco minutos, por favor."

- Diz-lhes que ela não está bem. Diz-lhes que mantenham a cortinafechada - gritou a assistente.

- Não - disse Coralie Bourne determinada. - Eu estou bem, Katie.Não digas nada, Katie. O que foi que aconteceu?

Desapareceram ambas na sala à esquerda.

Mike manteve-se de pé protegido pela sombra de um monte decenários junto à entrada do corredor. Havia uma grande agitação noPalco. Viu Anthony Gill de relance no extremo mais afastadofalando

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com uma rapariga. O rapaz que chamava os actores falava com ocontra-regra que agora gritava para o ar:

- Miss Bourne está bem?

A assistente apareceu no corredor e gritou:

- Ela recompõe-se. Só entra daqui a dez minutos. O jovem começoua entoar:

- Último acto, por favor.

O contra-regra deu uma série de ordens. Um homem com ummonóculo e uma barba arruivada desceu pela passagem e ficou depé fora de cena, os braços em volta do corpo, dando pequenosbeliscões no próprio fato. Ouviu-se o som das trombetas e dasflautas. Canning Cumberland saiu do camarim à direita e quando sedirigia para o palco passou junto a Mike, deixando um cheirointenso a álcool atrás de si. A cortina subiu.

No seu abrigo, Mike retirou sub-repticiamente a barba e enfiou-a nobolso do sobretudo.

Um grupo de ajudantes de cena mantinha-se de pé ali próximo. Umdeles disse num sussurro rouco:

- Tá tocado. Mas tá a ir bem.

- E porque não havia de ir? - perguntou outro.

- Por causa de estar tocado.

Passaram-se dez minutos. "Definitivamente, isto não correuconforme o planeado", pensou Mike. Pôs-se à escuta. Uma espéciede tensão parecia estar a crescer no palco. A voz de CanningCumberland elevou-se numa nota alta mas difusa. Abriu-se umaporta no cenário. "Não se incomode a acompanhar-me", disseCumberland. "Adeus. Eu descubro a saída sozinho." A porta fechou-se com estrondo. Cumberland estava de pé próximo de Mike.Depois, muito perto dali, ouviu-se uma enorme explosão. O cenáriovibrou, a carne de Mike estremeceu sobre os seus ossos eCumberland entrou no seu camarim. Mike ouviu a chave rodar nafechadura. O odor a álcool confundia-se com o cheiro a pólvora. Umajudante de cena aproximou-se de uma prateleira de parede e

pousou uma pistola. O actor do monóculo saiu. Por instantes, faloucom o contra-regra, passou por Mike e desapareceu no corredor.

Cheiros. Havia todo o tipo de cheiros. Inconscientemente, ainda aprestar atenção à peça, começou a seleccioná-los. Cola. Tela.Maquilhagem. O rapaz que chamava os actores bateu às portas."Mr. George,

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por favor." "Mrs. Bourne, por favor." Saíram ambos. Coralie Bournevinha acompanhada pela sua assistente. Mike ouviu-a rodar opuxador de uma porta e dizer qualquer coisa. Um voz indistintarespondeu-lhe. Depois, ambas passaram por ele. Os outrosfalaram-lhe e ela acenou com a cabeça, parecendo depois entrarem auto-recolhimento, aguardando com a cabeça baixa, prontapara entrar. Em seguida, endireitou-se, caminhou rapidamente até àporta do cenário, abriu-a energicamente e entrou majestosa,seguida um instante depois por Barry George.

Cheiros. Pó, tinta bafienta, roupas. Gás. O cheiro a gás era cadavez mais intenso.

O grupo de ajudantes de cena recuou para trás do cenário ao ladodo palco. Mike saiu do seu refúgio. Conseguia ver o canto do ponto.O contra-regra estava ali de pé, observando a cena com os braçoscruzados. Atrás dele estavam reunidos os actores que não estavama actuar. Duas assistentes de guarda-roupa observavam o palco umpouco mais afastadas. A luz de cena incidiu directamente sobre osseus rostos. A voz de Coralie Bourne fazia as frases voarem comopássaros até à plateia.

Mike começou a olhar atentamente para o chão. Teria ele batidocom o pé nalguma parte da instalação do gás soltando-a? O rapazque chamava os actores passou por ele, fitou-o por cima do ombroe seguiu pelo corredor fora dando pancadinhas nas portas. "Cincominutos para o descer do pano, por favor. Cinco minutos." O actormaquilhado para parecer já de certa idade seguia atrás do rapaz.

- Meu Deus, que pivete a gás - sussurrou ele.

- O costume, não é? - retorquiu o rapaz.

Ambos olharam fixamente para Mike e depois cruzaram-se com ogrupo que aguardava o final da peça. O homem disse alguma coisaao contra-regra que voltou a cabeça, aspirando o ar. Fez um gestoimpaciente e virou-se de costas para a caixa do ponto, tocando nacabeça do homem que a ocupava. Uma campainha soou algurespor cima deles, e Mike viu um ajudante de cena subir para aplataforma da cortina.

O pequeno grupo próximo do canto do ponto estava agitado.Olhavam para trás na direcção da entrada do corredor. O rapaz quechamava os actores abanou afirmativamente a cabeça e voltou acorrer. Bateu na primeira porta da direita.

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- Mr. Cumberland! Mr. Cumberland! É a sua vez. - Experimentou opuxador da porta. - Mr. Cumberland! £ a sua vez de entrar em cena.

Mike correu pelo corredor fora. O rapaz teve um ataque de tosseacompanhado de vómitos e agitou a mão na direcção da porta.

- Gás! - exclamou. - Gás!

- Arrombem-na.

- Vou chamar Mr. Reynolds.

Ele desapareceu. O corredor era estreito. Recuando até ao meio docamarim em frente, Mike tomou balanço e, cabeça baixa e ombropara diante, correu em direcção à porta. Esta cedeu ligeiramente eo cheiro tornou-se mais intenso e enjoativo, atacando-lhe ospulmões. Ouviu-se um barulho enorme, e ao tomar novo impulsopensou: "Está a cair granizo lá fora."

- É só um minuto, por favor.

Era um ajudante de cena que trazia um martelo e uma chave defendas. Prendeu a cunha da chave de fendas entre a fechadura e aombreira da porta, empurrou-a e torceu-a violentamente. Osparafusos rangeram, a madeira voou em farpas e o gás começou asair pela abertura.

- Não há nenhum exaustor - tossiu o ajudante de cena. Mikeenrolou o cachecol de Alleyn à frente da boca e do nariz.

Instruções quase esquecidas de antigas aventuras do génerovieram-lhe à memória. A divisão estava num desalinho, mas eleconseguia ver muito distintamente o homem afundado na cadeira.Curvou-se e entrou a correr.

Ao sair foi batendo de encontro a várias coisas, arrastando comdificuldade o peso morto. Sentia um formigueiro nos braços. Umavoz sonora e insistente ecoava-lhe na cabeça. Flutuou durante umacurta distância e aterrou num chão de cimento entre vários pares depernas. Bem longe dali, alguém disse em voz alta:

- Resta-me agradecer a vossa amabilidade em relação a algo queeu sei, demasiado bem, aliás, ser uma peça muito imperfeita,

Depois, voltou a ouvir-se o som dos "bravos". Houve uma correntede ar fresco divina, que penetrou na sua boca e narinas. "Estavacapaz de o comer", pensou, endireitando-se.

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O telefone tocou.

- E se - sugeriu Mrs. Alleyn -, desta vez o ignorasses? Pode ser daYard - respondeu Alleyn, e atendeu.

- É de casa do inspector-chefe Alleyn? Estou a ligar do JúpiterTheatre para informar que o senhor inspector-chefe está aqui e teveum pequeno contratempo. Ele está bem, mas creio que seriamelhor alguém vir buscá-lo e levá-lo para casa. Não há motivo parapreocupações.

- Que tipo de contratempo? - perguntou Alleyn.

- Eh... bem... eh, ele sofreu uma pequena intoxicação com gás.

- Gás! Está bem. Obrigado, eu vou até aí.

- Que maçada para ti, querido - disse Mrs. Alleyn. - Que tipo decaso é esse? Suicídio?

- À luz da lei é um disfarce, conforme me parece. Mike está metidoem sarilhos.

- Que tipo de sarilhos, meu Deus?

- Sofreu uma intoxicação com gás. Ele está bem. Boa-noite,querida. Não esperes por mim.

Ao chegar ao teatro viu que a fachada estava às escuras. Percorreua rua lateral até à entrada dos bastidores onde foi interpelado.

- Yard - disse ele, e mostrou o seu cartão oficial.

- Quantos mais de vocês há afinal - quis saber o porteiro.

- O homem que está aí dentro trabalha para mim - respondeu Alleyne entrou. O porteiro seguiu-o, protestando.

À direita da entrada estava um grande banco de réus improvisado,cujas portas duplas haviam sido abertas e travadas. Mike estava alisentado numa cadeira de braços, com a zona em volta da bocamuito branca. Três homens e duas mulheres, todos com os rostospintados, estavam de pé junto dele. Atrás, estava um grupo deajudantes de cena acompanhados por Reynolds, o contra-regra, e,um pouco mais afastados, três homens em fato de cerimónia, quepareciam inexpressivamente chocados. As mulheres tinham estadoa chorar.

- Lamento imenso, inspector - disse Mike -, eu tentei explicar, este -acrescentou para todos os presentes - é o inspector Alleyn.

- Não estou a perceber nada - disse o mais velho dos três homensem fato de cerimónia, já irritado. Virou-se para o porteiro. - Vocêdisse...

- Eu vi o cartão dele...

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- Eu sei - disse Mike -, mas compreende...

- Este senhor é Lorde Michael Lamprey - disse Alleyn -, um novofuncionário do Departamento da Polícia. O que se passou aqui?

- Dr. Rankin, o senhor pode...?

O segundo homem em fato de cerimónia aproximou-se.

- Está bem, Gosset. É uma história feia, inspector. A única coisa quetenho dito é que a polícia tinha que ser informada. Se me quiseracompanhar...

Alleyn seguiu-o, transpondo uma porta que dava directamente parao palco. A luz era fraca. Uma mesa fora colocada no centro e sobreela, coberta com um lençol, estava uma forma inconfundível. Ocheiro a gás, ainda intenso por todo o teatro, era mais acentuadojunto à mesa.

- Quem é?

- Canning Cumberland. Trancou a porta do camarim. Oaquecimento é a gás. O seu jovem amigo arrastou-o para fora commuita bravura, mas não foi a tempo. Eu estava aqui à frente.Gosset, o empresário, convidara-me para cear. É um caso evidentede suicídio, como poderá comprovar.

- É melhor dar uma vista de olhos pelo camarim. Esteve aquialguém?

- Oh, não. Foi uma trabalheira para purificar o ar. Desligaram o gásno contador e como aqui não há janelas tiveram que abrir as portasduplas nas traseiras do palco e uma pequena porta exterior, situadano extremo do corredor. Agora pode ser que se consiga entrar.

Ele foi à frente até ao corredor dos camarins para mostrar ocaminho.

- O ambiente ainda está muito pesado - afirmou. - É o primeirocamarim à direita. Forçaram a fechadura. É melhor baixar-se ecaminhar o mais próximo do chão possível.

Os potentes focos por cima do espelho estavam acesos, e ocamarim ainda parecia estar ocupado. O aquecimento a gás estavaencostado à parede da esquerda. Alleyn baixou-se para observá-lo.A torneira continuava aberta com o manipulo paralelo ao chão. Aparte de cima do aquecimento, o próprio manipulo e o tapete

próximo dele estavam cobertos por um pó aveludado. No fundo daprateleira da mesinha do toucador mais próxima do aquecimentoestava uma caixa com aquele pó, e, na mesma prateleira, um poucomais adiante, por baixo do

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espelho, via-se uma fila de caixinhas com maquilhagem prontas aserem usadas. Ao lado havia uma bacia e à sua frente uma cadeiravoltada de pernas para o ar. Alleyn conseguia ver a marca detacões deixada nos pêlos do tapete até à porta, situadaexactamente em frente. Ao lado da bacia estava uma garrafapequena de whisky, quase vazia, e um copo. Alleyn decidiu que jávira o suficiente e voltou para o corredor.

- Um caso evidente - repetiu o médico hesitante -, não é?

- Acho que vou ver os outros camarins.

O que se encontrava ao lado do de Cumberland era igual mas maispequeno e disposto de forma inversa. O aquecedor partilhava amesma parede do de Cumberland e a prateleira do camarim exibiapraticamente a mesma variedade de produtos de maquilhagem. Atorneira do aquecedor também estava aberta, sendo eleexactamente da mesma marca que o outro, e Alleyn, agora menosincomodado com os vapores, conseguiu fazer uma análise maisprolongada. Era um tipo de aquecimento a gás muito comum. Aalimentação era feita a partir de um cano, atravessado por um tubometálico flexível com uma ligação de borracha. Havia duastorneiras, uma no cano e outra na junta do tubo do próprioaquecimento. Alleyn desligou o tubo e examinou a ligação. Eraperfeitamente sólida com um corte oculto e uma mancha vermelhana extremidade. Alleyn reparou num fio metálico feito de ummaterial vermelho semelhante a cordame que ainda estava preso aele. O bocal e a torneira eram de latão. Para ligar o aquecimentobastava rodar a torneira até ficar paralela ao chão. Ali não foraespalhado pó nenhum.

Percorreu toda a sala com o olhar, dirigiu-se para a porta e leu ocartão: "Mr. Barry George."

O médico seguiu-o até aos outros camarins, situados no ladooposto, ao longo da parede esquerda do corredor. Em termos dedisposição, eram uma repetição dos dois anteriores, mas tinhamroupas femininas penduradas e uma maior variedade de produtosde maquilhagem e de cosmética.

Havia imensas flores no camarim da estrela. Alleyn leu os cartões eum, em particular, chamou a sua atenção: "De Anthony Gill: Paraexpressar um insuficientíssimo "obrigado" pela ideia genial." Emfrente do espelho estava uma jarra de rosas vermelhas: "Ao teu

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enorme sucesso, querida Coralie. C. C." No camarim de Miss Gayhavia apenas dois ramos de flores, um da gerência e outro "deAnthony com amor".

Retirou a fonte de alimentação do aquecimento de cada um doscamarins e observou a ligação.

- Estão bem, não é? - perguntou o médico.

- Bastante bem. Encaixe apertado, uma borracha cinzenta bemconsistente.

- Bem, então...

A seguir, à esquerda, havia um camarim vazio, em frente do qualficava o de Mr. H. J. Bnnnington. Nenhum tinha aquecimento a gás.Sobre a mesinha do toucador de Mr. Bannington havia a habitualmiscelânea de produtos de maquilhagem, apetrechos para a barba,muitos telegramas e cartas e várias contas.

- Acerca do corpo - começou o médico.

- Traremos um carro funerário da Yard.

- Mas... Certamente que em caso de suicídio...

- Não creio que isto tenha sido um suicídio.

- Mas, santo Deus...! Quer dizer que houve um acidente?

- Não houve acidente nenhum - afirmou Alleyn.

À meia-noite, as luzes dos camarins do Jupiter Theatre brilhavamcom grande intensidade, enquanto um grupo de homens afadigadosfazia o seu trabalho. À porta da entrada dos bastidores estava umpolícia e uma carrinha aguardava no pátio. A plateia estava poucoiluminada, e aí, por entre as cadeiras cobertas, estavam sentadosCoralie Bourne, Basil Cosset, H. J. Bannington, Dendra Gay,Anthony Gill, Reynolds, Katie, a assistente de guarda-roupa e orapaz que chamava os actores. Outro polícia estava sentado atrásdeles e um outro encontrava-se de pé junto às portas do átrio daentrada. Todos olhavam fixamente para a cortina de fumo, atrás dascostas das cadeiras. Espirais de fumo subiam dos cigarros, eespalhados pelo chão viam-se alguns programas abandonados."Basil Cosset apresenta EU DESCUBRO A SAÍDA SOZINHO, deAnthony Gill."

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No escritório do director, Alleyn perguntava:

- Tem a certeza que tudo se passou como nos contou, Mike?

- Tenho, inspector, com toda a franqueza. Eu estava justamenteencostado à entrada para o corredor. Eles não me viram, porque euestava na penumbra. Fora do palco estava tudo muito escuro.

- Vai ter que afirmar isso em tribunal.

- Eu sei.

- Bom, está bem, Thompson. Miss Gay e Mr. Cosset podem ir paracasa. Peça a Miss Bourne para entrar.

Assim que o sargento Thompson saiu, Mike disse:

- Não tive oportunidade de dizer que sei que fiz o papel de um tontoconsumado. Usar o seu cartão e tudo o mais.

- A diversão irresponsável não é muito bem vista no serviço, Mike.Você portou-se como um idiota.

- Eu sou um tonto - disse Mike, infeliz.

A barba ruiva estava em frente de Alleyn em cima da secretária deGosset. Ele pegou nela e estendeu-lha.

- Ponha-a - pediu-lhe.

- Ela pode voltar a desmaiar.

- Não creio. Agora, o chapéu. Sim... sim, estou a perceber. Entre. Osargento Thompson mandou entrar Coralie Bourne, e depoissentou-se na beira da secretária empunhando o bloco de notas.

As lágrimas haviam deixado um rasto no seu rosto coberto de pó-de-arroz, arrastando rímel e lápis preto e deixando ficar amaquilhagem que brilhava como o trilho aberto por um caracol. Elaficou parada na entrada olhando para Michael.

- Ele voltou para Inglaterra? - perguntou ela. - Foi ele que lhe pediupara fazer isso? - Fez um gesto de impaciência. - Tire-a - pediu ela-, é uma barba muito desagradável. Se ao menos Cann parecesse...- Os seus lábios tremiam. - Quem lhe disse para fazer isso?

- Ninguém - Mike gaguejou, enfiando a barba no bolso -, ou seja...na verdade, Tony Gill...

- Tony? Mas ele não sabia. Tony não o faria. A menos que... Amenos que? - repetiu Alleyn.

Ela disse franzindo o sobrolho:

- Tony não queria que Cann representasse o papel daquela forma,estava furioso.

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- Ele disse que fazia parte do seu fato para o baile do Chelsea Arts -resmoneou Mike. - Eu trouxe-o cá. Pensei apenas em pôr a barba...foi idiota, eu sei... por graça. Não fazia a mínima ideia que asenhora e Mr. Cumberland ficariam tão perturbados.

- Peça a Mr. Gill para entrar - disse Âlleyn.

Anthony estava pálido e parecia desorientado e sem saber o quefazer.

- Eu já disse a Mike - disse ele. - Era o meu fato para o baile.Enviaram-no esta tarde da loja de aluguer de fatos, mas esqueci-medele. Dendra lembrou-mo e telefonou para a Delivery... ou paraMike, como veio a verificar-se... no intervalo.

- Porquê? - perguntou Âlleyn. - Porque escolheu este disfarcepropositadamente?

- Não escolhi. Eu não sabia o que havia de vestir e estavademasiado confuso para pensar. Eles disseram que estavam aalugar coisas para vestir e que arranjariam alguma coisa para mim.Disseram que seríamos todos personagens de um melodramarusso.

- Quem lhe disse isso?

- Bem... bem, na verdade, foi Barry George.

- Barry - disse Coralie Bourne. - Foi Barry.

- Não estou a perceber - disse Anthony. - Por que razão havia umfato de fantasia perturbar toda a gente?

- Acontece - disse Âlleyn - que era uma réplica do trajo usadonormalmente pelo marido de Miss Bourne, que também tinha umabarba ruiva. Foi isso, não foi, Miss Bourne? Lembro-me de o tervisto...

- Oh, sim - respondeu ela -, o senhor viu-o. Ele era conhecido dapolícia.

De repente, foi-se completamente abaixo. Estava sentada numacadeira de braços próximo da secretária, mas fora do alcance doquebra-luz do candeeiro. Contorceu-se e estremeceu, batendo coma mão no braço acolchoado da cadeira. O sargento Thompsonestava sentado com a cabeça inclinada e a mão em cima das suasnotas. Depois de um olhar angustiado para Âlleyn, Mike virou-lhe ascostas. Anthony Gill inclinou-se na direcção dela.

- Não o faça - disse ele, violentamente. - Não! Por amor de Deus,pare.

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Rodando o corpo, ela afastou-se dele e, agarrando-se àextremidade da secretária, começou a falar com Alleyn,recuperando aos poucos o autodomínio.

- Quero contar-lhe. Quero que o senhor compreenda. Ouça-me. Omarido fora incrivelmente cruel, disse ela.

- Era uma espécie de escravidão.

Todavia, quando ela pedira o divórcio, ele arranjara provas deadultério contra ela e Cumberland. Ambos julgavam que ele nãosabia de nada.

- Houve uma cena execrável. Ele disse-nos que se ia embora, quese manteria em contacto e que se eu tentasse divorciar-menovamente voltaria para casa. Naquela época, ele era muito amigode Barry.

Ao partir, deixara o primeiro esboço de uma peça que pensaraescrever para ela e Cumberland e que tinha uma cena magnificapara os dois.

- E agora nunca a terão - dissera ele -, porque além de mim não hánenhum outro dramaturgo que consiga fazer esta peça para ti.

Era um homem melodramático, continuou ela, mas nunca ridículo.Voltou para a Ucrânia, onde nascera, e não voltaram a saber maisnada dele. Em pouco tempo, -podia dá-lo como morto. Contudo, osanos de espera não combinavam com Canning Cumberland. Bebiaconstantemente, e, nas piores alturas, costumava imaginar que omarido dela estava prestes a voltar.

- Tinha um verdadeiro pavor de Ben - disse ela. - Parecia viver numpesadelo.

Anthony Gill disse.

- Esta peça... era...?

- Sim. Havia uma extraordinária semelhança entre a sua peça e adele. Vi imediatamente que a cena principal de Ben valorizariamuitíssimo a sua peça. Cann não queria que eu lha desse a si.Barry sabia. "Porque não?", perguntou ele. Queria o papel de Cann

e ficou furioso por não o conseguir. Por isso, compreende, quandoele lhe sugeriu que fosse vestido e maquilhado como Ben... - virou-se para Alleyn. - Está a perceber?

- O que fez Cumberland quando o viu? - perguntou Alleyn a Mike.

- Fez um movimento estranho com as mãos como se... bem, comose esperasse que eu me dirigisse a ele. Depois, fechou-sesimplesmente no camarim.

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- Ele pensou que Ben regressara - afirmou.

- Alguma vez a senhora ficou sozinha depois de ter desmaiado? -perguntou-lhe Alleyn.

- Eu? Não, não fiquei. Katie levou-me para o meu camarim e ficou lácomigo até eu voltar a subir ao palco para a última cena.

- Mais uma pergunta. Por acaso, consegue lembrar-se se oaquecimento do seu camarim se comportou de modo estranho?

Ela olhou-o com uma expressão cansada.

- Sim, fez um barulho semelhante a uma rolha a saltar, parece-me.Fez-me dar um salto. Eu estava nervosa.

- Foi directamente do seu camarim para o palco?

- Sim. Com Katie. Eu quis ir ter com Cann. Tentei abrir a portaquando saímos, mas estava fechada e ele disse: "Não entres." Eurespondi-lhe: "Está tudo bem. Não era Ben", e fomos para o palco.

- Eu ouvi Miss Bourne - afirmou Mike.

- Nessa altura já ele devia ter tomado a decisão. Estavaterrivelmente bêbado quando representou a sua última cena. -Afastou o cabelo da testa, puxando-o para trás. - Posso ir-meembora? - perguntou a Alleyn.

- Eu chamei um táxi. Mr. Gill, pode ver se já aí está? Entretanto,Miss Bourne, pode aguardar no vestíbulo?

- Posso levar Katie comigo?

- Claro. Thompson, vê onde ela está. Quer que chamemos maisalguém?

- Não, obrigada. Só a querida Katie.

Alleyn abriu-lhe a porta e ficou a vê-la afastar-se em direcção aovestíbulo.

- Entreviste a ajudante de guarda-roupa, Thompson - murmurou ele-, e traga-me Mr. H. J. Bannington.

Viu Coralie Bourne sentar-se no degrau inferior das escadas doprimeiro balcão e inclinar a cabeça, encostando-a à parede.Próximo, num cavalete dourado, uma fotografia enorme de CanningCumberland sorria com elegância para ela.

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H. J. Bannington parecia bastante pálido. Esfregou o rosto com amão e borrou a maquilhagem. A tinta vermelho-viva que lhe tingiaos lábios manchara-lhe o cabelo escuro, que havia sido preso emoldado numa barba. O monóculo ainda permanecia colado aoolho esquerdo, dando-lhe uma aparência extraordinariamente jovial.

- Ouça - queixou-se ele -, já estou farto desta reunião. Quando éque nos vamos embora?

Alleyn proferiu algumas frases apaziguadoras e fê-lo sentar-se.Observara os movimentos de H. J. depois de Cumberland terabandonado o palco, e descobrira que a sua descrição coincidiacom a de Mike. Perguntou se H. J. visitara algum dos outroscamarins, ao que ele respondeu asperamente que H. J. sabiaocupar o seu lugar na companhia.

- Fiquei no meu casinhoto frio e esquálido, obrigado.

- Sabe se Mr. Barry George seguiu o seu exemplo?

- Não sei, meu rapaz. Ele nem sequer se aproxima de mim.

- Tem alguma teoria sobre esta infeliz ocorrência, Mr. Bannington?

- O senhor refere-se ao motivo pelo qual Cann o fez? Bem, não épara dizer mal dos mortos, mas parecia-me demasiado evidenteque ele era um bêbado inveterado. No final do segundo acto, estavaa cair de bêbado. Pergunte ao grande Mr. Barry George. Cannroubou-lhe a sua grande cena com as duas mãos e deixou-o a fazerfigura de parvo. Artisticamente, correu tudo mal, mas Cann eraassim quando estava ébrio. - Os olhos pequenos e malévolos de H.J. estreitaram-se. Neste momento, o grande Mr. George - disse ele -deve estar a sentir-se muito mal. Pode dizer-se que ele andava amatutar no suicídio, não é? Ou não têm a certeza disso?

- Não foi suicídio.

O monóculo caiu do olho de H. J.

- Santo Deus! - exclamou. - Meu Deus, eu disse a Bob Reynolds!Disse-lhe que era preciso verificar a instalação toda.

- Está a referir-se à instalação do gás?

- Claro. Trabalhei no sector do gás há uns anos atrás. Posso dizerque ainda estou ligado a ele, com algumas diferenças, certo!

- Certo, certo! - concordou Alleyn educadamente. Inclinou-se para afrente. - Ouça - disse ele. - A esta hora da noite, não conseguiremosdescobrir ninguém ligado a esse sector e não há dúvida queprecisamos da opinião de um especialista. O senhor pode ajudar-nos.

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- Bem, meu rapaz, eu estava desejoso por encontrar um sítio ondepudesse passar pelas brasas. Mas, claro...

- Não vou retê-lo por muito tempo.

- Por amor de Deus, espero bem que não! - exclamou H. J. com umar sério.

O rosto de Barry George estava lívido, conforme fora maquilhadopara o último acto. Lábios sem cor e sombras por baixo das maçãsdo rosto e dos olhos haviam realçado habilidosamente as suascaracterísticas de prisioneiro de guerra repatriado, mas doente.

Agora, sob o brilho intenso do candeeiro do escritório, parecia umafigura saída de um velório. Começou de imediato a dizer a Alleyn oquão pesaroso e horrorizado estava. Toda a gente tem os seusdefeitos, foram as suas palavras, e o pobre Cann não era excepção,mas não era horrível pensar no que podia acontecer a um homemque se deixava ir abaixo? Ele, Barry George, era invulgarmentesensível e não acreditava que alguma vez fosse de facto capaz deultrapassar o terrível choque que aquela situação lhe causara.Questionava-se sobre o que poderia estar por detrás de tudo aquilo.Por que motivo decidira o velho Cann acabar com tudo?

- A teoria de Miss Bourne - começou Alleyn por dizer. Mr. Georgeriu-se.

- Coralie? - perguntou ele. - Então, ela tem uma teoria! Bom, nãoimporta.

- Â teoria dela é a seguinte. Cumberland viu um homem que julgouser o marido dela e, por ter um pavor terrível do seu regresso,bebeu quase uma garrafa de whisky e suicidou-se com gás. Asroupas e a barba que o afligiram foram, segundo me constou,encomendadas por si para Mr. Anthony Gill.

Esta declaração produziu resultados surpreendentes. Barry Georgeirrompeu numa torrente de admoestações e desculpas. Não lhepassara pela cabeça ressuscitar o pobre Ben, que sem dúvidaestava morto, mas, note-se, ele fora um dos melhores. Estavamtodos a preparar-se para ir para a festa como personagensexageradas de um

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melodrama. Nem pensar... gesticulou e protestou. Um fio de suorsurgiu ao longo da linha do seu cabelo.

- Não sei o que está a insinuar - gritou. - O que está a sugerir?

- Estou a sugerir, entre outras coisas, que Cumberland foiassassinado.

- Você enlouqueceu! Ele fechou-se lá dentro. Tiveram que arrombara porta. Aquele camarim não tinha janelas. Você está doido!

- Não - disse Alleyn cansado -, deixemo-nos de disparates acercade salas fechadas. Agora, Mr. George, o senhor conhecia muitobem Benjamin Vlasnoff. Vai dizer-nos que ao sugerir a Mr. Gill quevestisse um casaco com gola de pêlo, um chapéu preto de abaslargas, luvas pretas e uma barba ruiva, nunca lhe ocorreu que estaaparência pudesse chocar Miss Bourne e Cumberland?

- Não fui o único - barafustou ele. - H. J. sabia-o. E se isso oassustou assim tanto, o mesmo não aconteceu com ela. Estavafarta dele. Em todo o caso, se se tratou de um assassínio, o fatonada teve a ver com isso.

- Isso - disse Alleyn, levantando-se -, é o que esperamos descobrir.

No camarim de Barry George, o detective Bailey, um especialistaem impressões digitais, estava de pé junto ao aquecimento a gás. Osargento Gibson, um fotógrafo da polícia, e um guarda fardadoestavam próximo da porta. No centro do camarim, Barry Georgemantinha-se de pé, desviando os olhos de um homem para o outroenquanto mordiscava os lábios.

- Não sei por que motivo ele quer que eu assista a tudo isto disse. -Estou exausto. Emocionalmente, estou esgotado. O que está ele afazer? Onde se meteu?

Alleyn estava no compartimento ao lado, no camarim deCumberland, com H. J., Mike e o sargento Thompson. Naquelemomento já não havia fumo e o aquecimento a gás funcionava semproblemas. O sargento Thompson estava indolentemente reclinadonuma cadeira de braços próximo do aquecimento com a cabeçacaída e os olhos fechados.

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- A ideia do que se passou é a seguinte, Mr. Bannington - disseAlleyn. - O senhor e Cumberland acabam de sair do palco depois davossa última cena; Miss Bourne, Mr. George e Miss Gay continuamno palco. Lorde Michael está exactamente à entrada do corredor, dolado de fora. As assistentes de guarda-roupa e o pessoal de cenaassistem à peça na zona lateral. Cumberland fecha-se no seucamarim e aí fica perdido de bêbado, profundamente adormecido,

com o aquecimento a gás ligado no máximo. No início da noite eleestivera a empoar-se e uma camada espessa de pó permaneceintacta na torneira do aquecimento. Ora.

Bateu ao de leve na parede.

O aquecimento apagou-se com uma explosão violenta, ao que seseguiu o silvo da fuga de gás. Alleyn rodou a torneira, fechando-a.

- Como vê - disse ele -, deixei uma óptima impressão digital nasuperfície coberta de pó. Agora, venha aqui ao lado.

No camarim contíguo, Barry George dirigiu-se-lhe, gaguejando.

- Mas eu não sabia. Não sei nada disso. Não sei.

- Bailey, mostre a Mr. Bannington, sim?

Bailey ajoelhou-se. A fonte de alimentação do aquecimento estavadesligada da torneira. Ele rodou a torneira do tubo e soprou para ointerior.

- A entrada de ar está bloqueada, está a ver? Funcionaperfeitamente.

H. J. olhava fixamente para Barry George.

- Mas eu não percebo nada de mecanismos a gás, H. J., H. J., diga-lhes...

- Um momento - Alleyn afastou as toalhas que haviam sidocolocadas na prateleira do camarim, descobrindo uma folha depapel imaculado onde estava a válvula de ligação de borracha.

- Bannington, pegue neste óculo e observe isto. Verá que estátingido de um vermelho-vivo. É uma mancha muito pequena, mas éindiscutivelmente maquilhagem. E mesmo por cima da mancha veráum cabelo hirsuto. Parece mais um bocado de cordame, mas não é.Trata-se de um cabelo escuro, não será?

O óculo oscilou por cima do papel.

- Deixe-me segurar-lho - disse Alleyn. Pôs a mão por cima do ombrode H. J. e, com um movimento rápido, arrancou um pêlo do

seu bigode postiço e pousou-o no papel. - Como vê, é idêntico e éruivo. Parece estar preso à válvula de ligação com cola.

O óculo caiu. H. J. virou-se, encarou Alleyn por instantes e depoisagrediu-o em cheio no rosto. Era um homem pequeno, mas foramprecisos três pessoas para o segurar.

- De certa forma, inspector, dá jeito quando eles tentam agredir-nos- disse o detective Thompson meia hora depois. - Podemos prendê-los imediatamente sem qualquer diligência do tipo "importa-se de virà esquadra prestar declarações".

- Exactamente - disse Alleyn, massajando os maxilares.

- Ele deve ter ido para o camarim depois de Barry George e MissBourne terem sido chamados - disse Mike.

- Foi isso mesmo. Teve que agir rapidamente. O rapaz que chamaos actores regressaria dentro em pouco e ele tinha que estar já noseu camarim.

- Mas, ouça... e em relação ao móbil?

- É justamente por isso, meu caro Mike, que à uma e meia damanhã ainda estamos neste miserável teatro. Você começa aperceber a faceta mais monótona do homicídio. Quer ir para casa?

- Não, confie-me outra tarefa.

- Muito bem. A cerca de três metros da caixa do ponto está umaespécie de caixote do lixo. Examine-o.

Quando faltavam dezassete minutos para as duas, depois de oscamarins e o corredor já estarem arrumados e de Alleyn teranunciado uma pausa, Mike foi ter com ele com as mãos imundas.

- Eureka - exclamou -, espero eu.

Dirigiram-se todos ao camarim de Bannington e Alleyn espalhousobre a mesa os pedaços de papel que Mike lhe dera.

- Foram empurrados para o fundo do caixote - disse Mike.

Alleyn deslocou os fragmentos de um lado para o outro. Thompsonassobiou entre dentes e Bailey e Gibson murmuraram ao mesmotempo.

- Apanhei-te - disse Alleyn por fim.

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O grupo comprimiu-se à sua volta. A carta que H. J. Banningtonabrira naquela mesma mesa seis horas e quarenta e cinco minutosantes encaixava na perfeição, era a última peça de um puzzle.

"Querido H. J.

Ao ver o extracto mensal da minha conta, dirigi-me ao meu bancoesta manhã e mostraram-me um cheque que é sem qualquerdúvida uma falsificação. A tua versatilidade histriónica, meu queridoH. J., apenas é igualada pela tua audácia como caligrafista.Contudo, a fama tem as suas desvantagens. O caixa reconheceu-te. Sugiro que tomes uma atitude."

- Não está assinado - disse Bailey.

- Repare que o cartão que acompanhava as rosas vermelhas queestão no camarim de Miss Bourne está assinado C. C. E uma letramuito particular. - Alleyn virou-se para Mike. - Ainda quer serpolícia?

- Quero, sim.

- Que Deus o valha. Amanhã venha ter comigo ao meu escritóriopara conversarmos.

- Muito obrigado, inspector.

Saíram, deixando um polícia de serviço. A manhã estava fria. Mikelevantou os olhos para a fachada do Júpiter, mal conseguindodistinguir os contornos do reclamo luminoso: EU DESCUBRO ASAÍDA SOZINHO, de Anthony Gill.

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Os Veraneantes

ôhirley Jackson

CiffllKLEY HAQDIE JACKSON (1916-1965) foi uma romancista econtista prolífica. O seu nome, no entanto, surge mais frequente eprontamente associado a uma história em particular.- The Lottery(1948). Tendo nascido em são Francisco, cresceu em urlingame, naCalifórnia, e frequentou as Universidades de Bochester e deCiracusa. O seu primeiro grande sucesso literário foi o conto "MyLife with D. H. Macy", publicado em The New Republic, em 1941. Oseu primeiro romance. The Road Through the Wall, foi publicado em1948, no mesmo ano em que "The Lottery" surgiu na revista TheNew Yorker, suscitando enorme controvérsia. De acordo com oensaio de Jackson, Biography of a Story (1960), ninguém (incluindoo seu agente e o editor que o publicou) gostava de The Lottery.Harold Doss, o editor-chefe da New Yorker, não o compreendia,tendo sido objecto de inúmeras cartas de leitores indignados.Jackson foi rotulada de especialista do terror e do sobrenatural porcausa desta história que se tornou bem conhecida. Na verdade,porém, era uma escritora muito mais versátil. A sua obra inclui livrosinfantis e possuía um sentido de humor jovial e caseiro como o queestá presente nas suas autobiografias Life Among the Savages(1953) e Raising Demons (1957).

O famoso talento de Jackson para o terror camuflado desenvolveu-se bastante cedo. Veja-se, por exemplo, o seu primeiro conto Janice(1938) onde se nos depara a descrição feita por uma estudanteuniversitária, num tom dilacerantemente casual, da sua tentativa desuicídio. Tal como afirma o seu marido, ôtanlej Edgar Hyman, naintrodução da sua antologia póstuma Come Along with Mc (1968), ahistória foi redigida enquanto ela estava no segundo ano do cursoem Ciracusa, tendo conduzido ao primeiro encontro entre ambos.

Os Veraneantes é uma história subtil, perturbadoramente insolúvel,onde perpassa a percepção de uma ameaça crescente que assolao quotidiano. Será uma alegoria, uma história de terror ou umpolicial? Estarão os Allison prestes a desaparecer ou haverá algumaoperação montada para os aterrorizar? A autora transforma osleitores em detectives, embora não sancione necessariamente assuas conclusões.

A casa de campo dos Allison, a cerca de onze quilómetros dacidade mais próxima, ficava agradavelmente situada numa colina.De três dos seus quatro lados, via-se árvores frondosas eextensões de relva que, mesmo em pleno Verão, raramente estavahirta e seca. No quarto lado havia um lago, encostado ao molhe demadeira que os Allison tinham de ir reparando e que proporcionavauma vista agradável quer fosse contemplado da varanda da frentequer da varanda lateral quer de qualquer ponto das escadas demadeira que desciam até à água. Apesar de gostarem muito da suacasa de campo, de estarem sempre ansiosos por lá se instalaremno início do Verão e detestarem partir no Outono, os Allison não setinham dado ao trabalho de fazer quaisquer remodelações,encarando tanto a casa como o lago em si mesmos comomelhoramentos suficientes para o tempo de vida que lhes restava. Acasa não tinha aquecimento nem água corrente - valendo-lhes oabastecimento precário da bomba colocada no pátio -, nemelectricidade. Ao longo de dezassete Verões, Janet Allisoncozinhara no fogão a querosene, que aquecia toda a água queutilizavam; todos os dias, Robert Allison trazia da bomba baldescheios de água e à noite lia o seu jornal à luz do querosene. Ambos,citadinos asseados como eram, assumiam uma atitude apática eterra-a-terra relativamente à sua casinha das traseiras. Nos doisprimeiros anos, tinham esgotado todo o repertório de piadas devaudeville e anedotas de revista sobre casinhas das traseiras, eagora, que já não

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tinham visitas frequentes a quem impressionar, haviam cedido auma segurança confortável, que fazia da casa das traseiras, dabomba e do querosene um conjunto de bens indefiníveis da suavida estival.

Os Allison eram pessoas vulgares. Mrs. Allison tinha 58 anos e Mr.Allison, 60. Tinham visto os filhos crescer até ultrapassarem emidade a casa de campo, constituírem as suas famílias e irem paraestâncias balneares. Os amigos ou tinham morrido ou se tinham

instalado em casas confortáveis para o ano inteiro, e quanto aossobrinhos e sobrinhas não passavam de uma presença vaga. NoInverno, diziam um ao outro que conseguiam suportar oapartamento de Nova Iorque enquanto esperavam pelo Verão, e noVerão diziam um ao outro que valia bem a pena viver o Invernoenquanto esperavam voltar ao campo.

Uma vez que já tinham idade suficiente para não se envergonharemdos seus hábitos, os Allison deixavam invariavelmente a sua casade Verão na terça-feira a seguir ao Dia do Trabalhador, einvariavelmente se arrependiam quando o tempo acabava por serevelar agradável durante os meses de Setembro e inícios deOutubro e quase insuportavelmente secos na cidade. Todos osanos reconheciam que não havia nada que os fizesse regressar aNova Iorque, mas só naquele ano conseguiram vencer a sua inérciahabitual e decidiram ficar na casa de campo depois do Dia doTrabalhador.

- Não existe nada suficientemente forte que nos faça voltar para acidade - disse Mrs. Allison ao marido, pensativa, como se aquelafosse uma ideia nova, ao que ele respondeu, como se aindanenhum deles a tivesse considerado:

- Já agora podíamos usufruir do campo o maior tempo possível. Foiassim que, sentindo-se muito satisfeita e algo aventureira, Mrs.Allison voltou à povoação um dia depois do Dia do Trabalhador ecomunicou aos habitantes locais que a abasteciam, com o perfeitoar de quem estava a romper uma tradição, que ela e o maridohaviam decidido ficar pelo menos mais um mês na casa de campo.

- Não há nada que nos obrigue a voltar para a cidade - disse ela aMr. Babcock, o seu merceeiro. - E já agora usufruímos do campoenquanto podemos.

- Nunca ninguém ficou no lago depois do Dia do Trabalhadorrespondeu Mr. Babcock. Colocava as mercearias de Mrs. Allison

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numa grande caixa de cartão e deteve-se por instantes, olhandopensativamente para um pacote de biscoitos, - Ninguém -acrescentou.

- Mas a cidade! - Mrs. Allison sempre falara a Mr. Babcock dacidade como se o sonho dele fosse lá ir. - É tão quente... nem fazideia. Arrependemo-nos sempre quando partimos.

- Odeio partir - disse Mr. Babcock. Um dos tiques mais irritantes doshabitantes locais em que Mrs. Allison reparara era o de pegaremnuma afirmação trivial e refazerem-na noutra ainda mais corriqueira.

- Eu próprio odiaria partir - disse Mr. Babcock, depois de reflectir umpouco, e ambos sorriram. - Mas nunca soube de ninguém quetivesse ficado depois do Dia do Trabalhador.

- Bem, nós vamos tentar fazê-lo - disse Mrs. Allison. Ao que Mr.Babcock respondeu solenemente:

- Nunca se sabe até experimentar.

Fisicamente, concluiu Mrs. Allison, como fazia sempre ao sair dasua mercearia, depois de mais uma das suas conversasinconclusivas com Mr. Babcock, fisicamente, Mr. Babcock podiaservir de modelo a uma estátua de Daniel Webster, masmentalmente... era horrível pensar o quanto degenerara a antigaraça ianque da Nova Inglaterra. Foi o comentário que fez a Mr.Allison ao entrar no carro, e este disse-lhe:

- É o resultado de gerações sucessivas de casamentosconsanguíneos. Isso e terras de má qualidade.

Uma vez que aquela era a sua grande viagem à povoação, quefaziam apenas de duas em duas semanas para comprarem aquiloque não lhes levavam a casa, ocuparam o dia todo com ela,parando para comer umas sandes num ponto de venda de jornais ebebidas e deixando um monte de embrulhos no banco de trás docarro. Uma vez que recebia regularmente as mercearias queencomendava por telefone, Mrs. Allison nunca conseguia ter umaideia muito precisa de todos os artigos que Mr. Babcock tinhadisponíveis na loja, pelo que nas listas das compras avulsas

acabavam sempre por ser acrescentados, quase para além dassuas necessidades, os frescos e viçosos legumes frescos que Mr.Babcock vendia ocasionalmente ou os pacotes de bombonsacabados de chegar. Naquela viagem, Mrs. Allison também foitentada pelo conjunto de travessas de vidro de ir ao forno,

que se encontrava à venda, inteiramente por acaso, na loja de

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ferramentas, roupas e artigos de primeira necessidade e queparecia estar apenas à espera de alguém como Mrs. Allison, já queos habitantes dali, com a sua desconfiança instintiva em relação atudo o que não parecesse tão permanente como as árvores, aspedras e o céu, só recentemente tinham começado a usartravessas de ir ao forno em alumínio em vez das de ferro, tendo já -algo que aparentemente estava ainda na memória de todos os queali viviam - substituído o grés pelo ferro.

Mrs. Allison pediu que lhe embrulhassem cuidadosamente astravessas de ir ao forno de forma que resistissem ao desconfortávelpercurso pela estrada pedregosa que subia até à sua casa decampo. E enquanto Mr. Charley Walpole que, juntamente com oirmão mais novo, Albert, geria a loja de ferramentas, roupas e deartigos de primeira necessidade (a loja chamava-se Johnson's,porque ficava no local onde outrora estivera a cabana do velhoJohnson, que ardera cinquenta anos antes de Charley Walpolenascer) ia desdobrando com gestos laboriosos jornais paraembrulhar as travessas, Mrs. Allison disse informalmente: "

- É claro que eu podia ter esperado para comprar estas travessasem Nova Iorque, mas este ano nós não regressamos tão cedo.

- Ouvi dizer que os senhores iam ficar por cá mais algum tempo -disse Mr. Charley Walpole. Os seus dedos já idosos atrapalhavam-se de forma exasperante com as finas folhas de papel de jornal aotentar separar cuidadosamente uma única folha de cada vez, e,sem levantar os olhos para Mrs. Allison, acrescentou: - Não sei deninguém que tenha ficado no lago depois do Dia do Trabalhador.

- Bem, sabe - disse Mrs. Allison, como se ele merecesse umaexplicação -, é que nos apercebemos de que todos os anos nosapressamos a voltar para Nova Iorque, quando não há necessidadenenhuma de o fazermos. Sabe como é a cidade no Outono - esorriu decidida para Mr. Charley Walpole.

Ritmicamente, ele enrolou um fio em volta do embrulho. "Vai dar-mefio em quantidade suficiente para guardar", pensou Mrs. Allison edesviou o olhar rapidamente para evitar dar mostras de qualquersinal de impaciência.

- Tenho a sensação que pertenceremos mais a este sítio - disse ela.- Se ficarmos mais algum tempo depois de todos terem partido.

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Para o comprovar, dirigiu um sorriso rasgado a uma mulher com umrosto familiar, que estava no lado oposto da loja, e que talvez fossea mesma que um ano vendera frutos silvestres aos Allison ou aoutra que esporadicamente ajudava na mercearia e parecia ser a tiade Mr. Babcock.

- Bem - disse Mr. Charley Walpole e empurrou um pouco oembrulho ao longo do balcão para mostrar que tinha terminado eque depois de uma boa venda e de um embrulho bem feito, estavapronto a receber o dinheiro. - Bem - repetiu -, nunca houveveraneantes no lago depois do Dia do Trabalhador.

Mrs. Allison estendeu-lhe uma nota de cinco dólares e ele fez otroco metodicamente, tomando o peso até dos trocos miúdos.

- Nunca depois do Dia do Trabalhador - disse ele e despediu-se deMrs. Allison com um aceno de cabeça. Depois, caminhoucalmamente pela loja ao encontro de duas senhoras queprocuravam camisas de noite de algodão.

No momento em que Mrs. Allison passou por elas a caminho dasaída, uma das mulheres perguntou com vivacidade.

- Porque é que uma destas camisas custa um dólar e trinta e novecentimes e esta é só noventa e oito centimes?

- São excelentes pessoas - disse Mrs. Allison ao marido enquantocaminhavam ao longo do passeio depois de se terem encontrado àporta da loja. - Tão firmes, sensatos e tão honestos.

- Faz-nos sentir bem, saber que ainda existem cidades assim disseMr. Allison.

- Sabes, em Nova Iorque - disse Mrs. Allison -, talvez tivesse pagomenos alguns centimes por estas travessas, mas a compra nãoteria sido nada pessoal.

- Vão ficar no lago mais algum tempo? - perguntou-lhes Mrs. Martindo ponto de venda das sandes e dos jornais. - Ouvi dizer que iamficar mais algum tempo.

- Pensámos aproveitar o belíssimo tempo que tem feito este ano -respondeu Mr. Allison.

Mrs. Martin era quase uma recém-chegada à cidade. Vinda de umaherdade próxima, casara com o dono do ponto de venda dos jornaise das sandes e ali permanecera depois da morte do marido, serviabebidas não alcoólicas, ovos estrelados e sandes de ovosestrelados

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e cebola em grossas fatias de pão, que ela própria cozia no seuforno colocado nas traseiras da loja. Esporadicamente, quando Mrs.Martin servia uma sandes, esta exalava a fragrância intensa dacarne estufada ou das costeletas de porco que cozinhava aomesmo tempo para o seu jantar.

- Acho que nunca ninguém ficou tanto tempo - disse Mrs. Martin. -Em todo o caso, não depois do Dia do Trabalhador.

- Julgo que normalmente é no Dia do Trabalhador que as pessoasse vão embora - disse-lhes mais tarde Mr. Hall, o seu vizinho maispróximo, em frente à loja de Mr. Babcock, quando os Allisonentravam no carro para voltarem para casa. - Fico admirado pelofacto de os senhores ficarem mais algum tempo.

- É uma pena partirmos tão cedo - disse Mrs. Allison.

Mr. Hall vivia a cerca de cinco quilómetros de distância. Forneciaaos Allison manteiga e ovos, e, por vezes ao princípio da noite, docimo da sua colina, conseguiam ver as luzes da casa dos Hall antesde estes se irem deitar.

- Normalmente, partem no Dia do Trabalhador - disse Mr. Hall.

O percurso até casa era longo e acidentado. Começava aescurecer, e Mr. Allison tinha de conduzir com muito cuidado pelaestrada de terra batida paralela ao lago. Mrs. Allison reclinou-se nobanco do carro, agradavelmente descontraída depois do que lheparecia ter sido um dia de compras infernal, comparado com o ritmoda sua vida quotidiana. As novas travessas de vidro de ir ao fornovieram-lhe agradavelmente ao espírito, bem como os dois quilos desaborosas maçãs vermelhas e o saquinho de tachas coloridas queia usar para pendurar a nova prateleira de canto na cozinha.

- Sabe bem voltar para casa - disse ela devagar assim queavistaram a casa de campo, cuja silhueta aparecia recortada contrao céu.

- Ainda bem que decidimos ficar mais algum tempo - concordou Mr.Allison.

Mrs. Allison passou a manhã seguinte a lavar dedicadamente assuas travessas de ir ao forno, apesar de, na sua inocência, CharleyWalpole não ter reparado na falha que uma delas apresentava numdos cantos. Perdulariamente, decidiu usar algumas das saborosasmaçãs vermelhas para fazer uma tarte para o jantar, e, enquantoesta estava no forno e Mr. Allison descera para ir buscar o correio,sentou-se no

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pequeno relvado que haviam plantado no cimo da colina, eobservou as variações de luz no lago, alternando entre o cinzento eo azul à medida que as nuvens deslizavam rapidamente diante dosol.

Mr. Allison voltou algo fora de si. Irritava-o sempre ter de percorrer adistância de um quilómetro e meio até à caixa do correio, colocada

na estrada principal, e voltar sem nada, apesar de considerar acaminhada benéfica para a sua saúde. Naquela manhã haviaapenas o prospecto de uma loja de Nova Iorque e o jornal nova-iorquino, que chegava irregularmente pelo correio um a quatro diasdepois da data certa, havendo dias em que os Allison podiam tertrês jornais em simultâneo e outros, muitos, em que não recebiamnenhum. Se bem que Mrs. Allison partilhasse com o marido oaborrecimento de não terem correio quando o esperavam com tantaansiedade, leu atentamente o prospecto e registou mentalmenteuma ida à loja quando por fim voltassem para Nova Iorque a fim dedar uma vista de olhos pelos cobertores de lã. Era tão difícilencontrar uns que fossem de boa qualidade e em cores bonitas.Pensou guardar o prospecto para se lembrar, mas depois de pensarque tinha de se levantar e entrar em casa para o guardar num sítioseguro, atirou-o para cima da relva junto à sua cadeira e reclinou-secom os olhos semicerrados.

- Parece que hoje vamos ter alguma chuva - disse Mr. Allison,olhando para o céu.

- É bom para as colheitas - disse Mrs. Allison, laconicamente, eambos deram uma gargalhada.

O homem do querosene veio na manhã seguinte, enquanto Mr.Allison fora buscar o correio. Já estavam com pouco querosene, eMrs. Allison recebeu-o calorosamente. Ele vendia querosene e gelo,e, no Verão, recolhia o lixo dos veraneantes. Um homem para arecolha do lixo era necessário apenas para cidadãos citadinosimprevidentes, porque as pessoas do campo não tinham lixo.

- Prazer em vê-lo - disse-lhe Mrs. Allison. - Estávamos já com muitopouco.

O homem do querosene, cujo nome Mrs. Allison nunca soubera,usava uma mangueira de ligação para encher o tanque de setenta ecimco litros que fornecia luz, aquecimento e alimentava oselectrodomésticos dos Allison. Contudo, naquele dia, em vez dedescer do Seu camião com um movimento oscilante e dedesenganchar a

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mangueira do sítio onde estava bem enrolada em volta da cabinado camião, o homem fitou Mrs. Allison com embaraço, mantendo omotor do veículo ainda ligado.

- Julgava que os senhores estivessem a preparar-se para partirdisse ele.

- Vamos ficar mais um mês - disse Mrs. Allison vivamente. O tempoestá tão bom, e parece que...

- Foi o que me disseram - disse o homem -, mas não vos possodispensar combustível nenhum.

- Não compreendo. - Mrs. Allison ergueu as sobrancelhas. - Nós sóvamos manter a nossa habitual...

- Depois do Dia do Trabalhador - disse o homem. - Não consigoarranjar muito combustível depois do Dia do Trabalhador.

Mrs. Allison lembrou-se, como tantas vezes acontecia quandodiscordava dos seus vizinhos, que os modos citadinos de nadaserviam com as pessoas do campo. Não se podia esperar levar amelhor sobre um empregado rural como se fazia com umtrabalhador citadino, e Mrs. Allison sorriu de maneira cativante aodizer:

- Mas o senhor não pode arranjar mais algum combustível, pelomenos, para o tempo em que cá estamos?

- Bem vê - disse o homem. Exasperado, tamborilava com o dedo novolante enquanto falava. - Bem vê - disse ele devagar -,encomendei este combustível a oitenta ou talvez noventaquilómetros de distância. Foi em Junho que encomendei aquilo queprecisava para o Verão. Agora, volto a encomendar outra vez... ah,só lá para Novembro. Nesta altura é um bocado apertado.

Como se achasse que o assunto estava encerrado, parou detamborilar com o dedo e agarrou o volante com firmeza,preparando-se para partir.

- Mas não nos pode dispensar nada? - perguntou Mrs. Allison. Nãohá mais ninguém que possa?

- Não estou a ver como podem conseguir arranjar combustívelnoutro sítio nesta altura - disse o homem, com ar pensativo. -Eu nãoposso dispensar-lhes nenhum.

Antes que Mrs. Allison conseguisse dizer alguma coisa, o camiãopôs-se em movimento. Em seguida deteve-se um instante e eleolhou para ela através da janela traseira da cabina.

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- Gelo? - perguntou. - Posso deixar-lhe algum gelo.

Mrs. Allison abanou a cabeça. Tinham gelo suficiente, e estavafuriosa. Correu alguns passos para acompanhar o camião, gritando:

- Pode tentar arranjar-nos algum, na próxima semana?

- Não tou a ver como - disse o homem. - Depois do Dia doTrabalhador é mais difícil.

O camião afastou-se, e Mrs. Allison, reconfortada apenas pela ideiade que talvez conseguissem arranjar querosene na loja de Mr.Babcock ou, na pior das hipóteses, em casa dos Hall, ficou a vê-lopartir furiosa.

"No próximo Verão", disse ela para consigo, "deixa-o aparecer cá nopróximo Verão"!

Uma vez mais, não havia correio, só o jornal, que agora pareciachegar persistentemente no dia certo, e Mr. Allison estavavisivelmente maldisposto quando regressou. Quando Mrs. Allisonlhe contou o que se passara com o homem do querosene ele nãoficou particularmente impressionado.

- Provavelmente retêm-no à espera que o preço aumente noInverno - comentou ele. - Imaginas o que possa ter acontecido aAnne e a Jerry?

Anne e Jerry eram os filhos. Estavam ambos casados. Uma viviaem Chicago e o outro no Oeste. As suas obedientes cartas

semanais estavam atrasadas, tão atrasadas que o aborrecimentode Mr. Allison pela falta de correio podia ser entendido como umaofensa legítima.

- Têm a obrigação de saber que esperamos pelas suas cartas -disse ele. - Filhos descuidados e egoístas. Deviam estar fartos desaber.

- Ora, meu querido - disse Mrs. Allison conciliadora. Zangar-se comAnne e Jerry não iria atenuar o que sentia em relação ao homem doquerosene. Alguns minutos depois, disse: - O correio não vai chegarmais depressa só pelo facto de o desejarmos. Vou telefonar a Mr.Babcock e encomendar-lhe algum querosene.

- Ao menos um postal - disse Mr. Allison quando ela saiu. Tal comosucedia com a maior parte dos inconvenientes da casa de

campo, os Allison já não davam particular importância ao telefone,embora se rendessem às suas excentricidades sem reclamarem deforma consciente. Tinham um telefone de parede, daqueles que sevêem apenas em alguns locais. Para conseguir estabelecer aligação com a operadora, Mrs. Allison tinha de rodar a manivelalateral e deixar tocar

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uma vez. Normalmente, eram necessárias duas ou três tentativasaté que a telefonista atendesse, e independentemente do tipo dechamada telefónica que tinha para fazer, Mrs. Allison aproximava-sedo telefone com resignação e uma espécie de paciência misturadacom desalento. Naquela manhã, teve de dar à manivela por trêsvezes antes que a operadora atendesse, e depois ainda demoroumais tempo até Mr. Babcock levantar o auscultador do telefonesituado no canto da sua mercearia por trás da tábua da carne edizer "Loja?" com uma inflexão ascendente que parecia mostrarsuspeição em relação a quem estaria a tentar comunicar com eleatravés daquele instrumento nada fiável.

- Fala Mrs. Allison, Mr. Babcock. Pensei fazer a minha encomendaum dia antes, porque queria ter a certeza... e comprar algum...

- Diga, Mrs. Allison?

Mrs. Allison levantou um pouco mais a voz e viu Mr. Allison, queestava no relvado, virar-se na sua cadeira e olhar para ela com umaexpressão compreensiva.

- Estou a dizer, Mr. Babcock, que pensei telefonar-lhe a pedir aminha encomenda um dia mais cedo do que o habitual para osenhor me mandar...

- Mrs. Allison? - disse Mr. Babcock. - Vem cá buscá-la?

- Buscá-la? - a surpresa fez com que Mrs. Allison deixasse a vozesmorecer até ao seu tom normal. Mr. Babcock tornou a perguntarmuito alto:

- Como disse, Mrs. Allison?

- Pensei que viesse cá trazer-me as compras como é habitual -respondeu Mrs. Allison.

- Bem, Mrs. Allison - disse Mr. Babcock, e houve uma pausaenquanto Mrs. Allison aguardava olhando fixamente o céu para ládo telefone e por cima da cabeça do seu marido. - Mrs. Allisoncontinuou, por fim, Mr. Babcock -, é que o meu filho que tem estadoaqui a ajudar-me voltou ontem para as aulas e agora não tenhoninguém que me faça as entregas. Compreende, só tenho um rapazpara entregas no Verão.

- Pensei que fazia entregas sempre - disse Mrs. Allison.

- Depois do Dia do Trabalhador não, Mrs. Allison - disse Mr.Babcock com firmeza. - Os senhores nunca cá ficaram depois doDia do Trabalhador, por isso claro que não podiam saber.

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- Bem - disse Mrs. Allison impotente. Intimamente repetia vezessem conta que não se podia utilizar os modos citadinos com aspessoas do campo. De nada valia aborrecer-se. - Tem a certeza?perguntou ela por fim. - Não pode entregar-me hoje um pedido, Mr.Babcock?

- Tenho a certeza - disse Mr. Babcock -, que não, Mrs. Allison.Compensa muito pouco fazer apenas uma entrega, sem outrosclientes no lago.

- E Mr. Hall? - perguntou Mrs. Allison de repente. - A família quemora a cerca de cinco quilómetros daqui? Mr. Hall podia trazer aminha encomenda quando regressasse a casa.

- Hall? - repetiu Mr. Babcock. - John Hall? Eles foram visitar unsfamiliares que moram a norte do estado, Mrs. Allison.

- Mas são eles que nos fornecem a manteiga e os ovos - disse Mrs.Allison, atónita.

- Eles partiram ontem - informou Mr. Babcock. - Se calhar nãopensaram que os senhores fossem cá ficar mais algum tempo.

- Mas eu disse a Mr. Hall... - começou a dizer Mrs. Allison, e depoiscalou-se. - Eu peço a Mr. Allison que vá aí buscar algumasmercearias amanhã - respondeu ela.

- Nesse caso, tem tudo o que precisa para amanhã - disse Mr.Babcock, satisfeito.

Não era uma pergunta, mas uma confirmação. Depois de desligar,Mrs. Allison caminhou devagar, indo sentar-se novamente ao ladodo marido.

- Ele não faz entregas - disse ela. - Tens que lá ir amanhã e sótemos querosene suficiente até voltares.

- Devia ter-nos dito isso mais cedo - disse Mr. Allison. Peranteaquele dia, não era possível ficar-se aborrecido por

muito tempo. O campo nunca parecera tão convidativo e as águasdo lago moviam-se calmamente aos seus pés, por entre as árvores,com a brandura quase irreal de uma paisagem estival. Mrs. Allisonsuspirou profundamente, regozijando-se com a possibilidade defruírem sozinhos aquela vista do lago, com as distantes colinasverdes para lá da margem oposta e a brisa leve e serena quesoprava por entre as árvores.

O tempo continuava agradável. Na manhã seguinte, Mr. Allison,convenientemente munido da lista de compras, com o "querosene"

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para a garagem e Mrs. Allison começou a fazer outra tarte num dosseus novos pratos de ir ao forno. Misturara já a massa e começavaa descascar as maçãs quando Mr. Allison subiu apressado ocaminho e abriu violentamente a porta dupla que dava para acozinha.

- A porcaria do carro não pega - anunciou ele com a voz de umhomem que depende do carro como do seu braço direito e que estáno limite da paciência.

- O que é que ele tem? - perguntou Mrs. Allison, parando dedescascar a maçã e ficando a olhar para ele com a faca numa dasmãos e a maçã na outra. - Na terça-feira estava bom.

- Ora - disse Mr. Allison entre dentes -, não está bom na sexta-feira.

- Consegues arranjá-lo? - perguntou Mrs. Allison.

- Não - respondeu ele -, não consigo. Tenho que chamar alguém.

- Quem? - perguntou Mrs. Allison.

- Talvez o gerente da estação de serviço. - Mr. Allison encaminhou-se para o telefone, decidido. - Chegou a arranjá-lo uma vez noVerão passado.

Um pouco apreensiva, Mrs. Allison continuou a descascar as maçãsparecendo ausente, enquanto ouvia Mr. Allison ao telefone, oraesperando, ora ligando, ora esperando até, por fim, dar o número àoperadora, depois esperando novamente e voltando a dar onúmero, e tornando a dar o número uma terceira vez, e, finalmente,desligando com estrondo.

- Não está lá ninguém - anunciou ele ao entrar na cozinha.

- Talvez tenha saído por pouco tempo - disse Mrs. Allison, nervosa.Não tinha a certeza do que a pusera nervosa, a menos que fosse apossibilidade de o marido perder completamente a cabeça. - Deve

lá estar sozinho, suponho, por isso, quando sai não fica ninguémpara atender o telefone.

- Deve ser, deve - disse Mr. Allison com ironia evidente. Sentou-sepesadamente numa das cadeiras da cozinha e ficou a observar Mrs.Allison a descascar as maçãs. Alguns minutos depois, Mrs. Allisonperguntou-lhe consoladora:

- Porque não vais lá abaixo buscar o correio e lhe telefonasnovamente quando voltares?

Mr. Allison reflectiu e depois disse:

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- Acho que é isso que vou fazer - levantou-se com esforço e aochegar à porta da cozinha voltou-se e disse: - Mas, se não houvercorreio... - e deixando um horrível silêncio atrás de si saiu e desceuo caminho.

Mrs. Allison apressou-se a fazer a tarte. Por duas vezes foi à janelaolhar para o céu, tentando ver se surgiam nuvens.Inesperadamente, a cozinha parecia ter escurecido, e ela própriasentia o estado de tensão que precede uma tempestade. Todavia,das duas vezes que olhou para o céu ele estava claro e limpo,sorrindo com indiferença para a casa de campo dos Allison e para oresto do mundo. Quando Mrs. Allison, com a tarte pronta para irpara o forno, foi até à janela uma terceira vez, viu o marido a subir ocaminho. Parecia mais animado e, ao vê-la, acenou comentusiasmo, empunhando uma carta.

- É do Jerry - gritou ele quando já estava suficientemente perto paraque ela o ouvisse. - Finalmente... uma carta! - Mrs. Allison reparoucom preocupação que ele já não conseguia subir a suave ladeirasem parar para respirar fundo. Logo de seguida, porém, estava àporta, estendendo-lhe a carta. - Controlei-me para não a ler antesde aqui chegar - disse ele.

Mrs. Allison olhou com uma ansiedade que a surpreendeu para aletra familiar do seu filho. Não conseguia perceber por que motivo acarta provocava nela tanta agitação, além do facto de ser a primeira

que recebiam em muito tempo. Devia ser uma carta agradável,respeitadora e cheia de acontecimentos relacionados com Alice eas crianças, a informar dos progressos no seu trabalho e a tecercomentários sobre o tempo que ultimamente fazia em Chicago,acabando com beijos de todos. Mr. e Mrs. Allison podiam, sequisessem, recitar uma carta-padrão para ambos os filhos.

Mr. Allison abriu a carta com grande ponderação, depois desdobrou-a em cima da mesa da cozinha e ambos se debruçaram para a lerem conjunto.

"Queridos Pai e Mãe", começava ela, na letra familiar e bastanteinfantil de Jerry. "Estou contente por esta carta ser remetida para Olago, como habitualmente. Nós sempre pensámos que vocêsvoltavam demasiado cedo e deviam ficar aí o maior tempo possível.Alice diz que agora que não são tão novos como dantes e, nacidade, não têm compromissos, os amigos já são menos, etc.,deviam aproveitar

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aquilo de que gostam enquanto podem. Uma vez que ambos sesentem bem aí, é boa ideia ficarem por mais tempo."

Constrangida, Mrs. Allison olhou de lado para o marido. Ele estavaa ler, absorto, e ela estendeu a mão e agarrou no envelope vaziosem saber exactamente o que queria fazer com ele. A moradaestava escrita como habitualmente na letra de Jerry e tinha ocarimbo dos correios de Chicago. "Claro que eram os correios deChicago", pensou ela rapidamente, "por que motivo haviam eles dequerer um carimbo de outro sítio qualquer?" Quando voltou a olharpara a carta, o marido já tinha virado a página, e ela continuou a lercom ele: "...e claro que se eles apanharem sarampo e as outrasdoenças agora, mais tarde já estarão imunes. Alice está bem, claro,e eu também. Ultimamente tenho jogado muito bridge com unsamigos que vocês não conhecem. São os Carruthers, um casaljovem e simpático, mais ou menos da nossa idade. Bem, vouterminar, porque acho que vos aborrece ouvir falar de coisas tãodistantes como estas. Papá, o velho Dickson, do nosso escritório de

Chicago, morreu. Costumava perguntar muito por si. Divirtam-se aíno lago e não se apressem a voltar. Beijos de todos nós, Jerry."

- É estranho - comentou Mr. Allison.

- Não parece o Jerry - disse Mrs. Allison em voz baixa. - Ele nuncaescreveu nada como... - ela calou-se.

- Como quê? - perguntou Mr. Allison. - Nunca escreveu nada comoquê?

Mrs. Allison voltou a carta a franzir o sobrolho. Era impossívelencontrar uma frase, até mesmo uma palavra que não soasse comoas das habituais cartas de Jerry. Talvez fosse apenas por ela terchegado tão tarde ou pelo número invulgar de dedadas sujas noenvelope.

- Não sei - disse ela impaciente.

- Vou tentar fazer novamente aquela chamada - disse Mr. Allison.Mrs. Allison releu a carta por duas vezes, tentando encontrar umafrase que soasse indevida. Depois, Mr. Allison voltou e disse muitosereno:

- O telefone não funciona.

- O quê? - exclamou Mrs. Allison, deixando cair a carta.

- O telefone está avariado - respondeu-lhe o marido.

O resto do dia passou rapidamente. Depois de almoçarem bolachase leite, os Allison foram sentar-se na relva ao ar livre, mas a sua

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tarde foi encurtada pelas nuvens prenunciadoras de tempestadeque, cada vez mais espessas, avançavam pelo lago até à casa decampo, fazendo com que às quatro horas parecesse ser já o cair danoite. A tempestade, no entanto, foi retardada, como que em ternaantecipação do momento em que se abatesse sobre a casa deVerão. Viu-se o esporádico lampejo de um relâmpago, sem que noentanto houvesse sinal de chuva. A noite, Mr. e Mrs. Allison,sentados lado a lado em casa, ligaram o rádio a pilhas que tinham

trazido de Nova Iorque. Não tinham nenhuma luz acesa, e a suaúnica fonte de iluminação consistia apenas na luz emitida pelosrelâmpagos, no exterior, e pelo pequeno quadrado luminoso dobotão do rádio.

A débil estrutura da casa de campo não era suficientemente fortepara resistir aos barulhos da cidade, à música e às vozes quesoavam no rádio, pelo que os Allison ouviam-nos ecoar muito aolonge do outro lado do lago. Eram os saxofones da orquestra debaile de Nova Iorque soando em tom de queixume por sobre aságuas e a voz monótona da vocalista desvanecendo-se, inexorável,na atmosfera límpida do campo. Até mesmo o apresentador, quefalava entusiasticamente das virtudes das lâminas de barbear, nãoera mais do que uma voz inumana projectada até à casa de campodos Allison, ecoando como se o lago, as colinas e as árvores adevolvessem por considerá-la supérflua.

Durante uma pausa entre os anúncios, Mrs. Allison virou-se e sorriubrandamente para o seu marido.

- Será que devíamos... fazer alguma coisa? - perguntou-lhe ela.

- Não - respondeu Mr. Allison, meditando -, não me parece. Vamosesperar.

Mrs. Allison susteve a respiração abruptamente, e Mr. Allisonperguntou-lhe ao som da popular melodia da orquestra de baile,que recomeçara a tocar:

- Sabes que mexeram no carro? Até eu consigo perceber isso. Mrs.Allison hesitou um instante, e depois disse em voz muito

baixa:

- Presumo que os fios do telefone foram cortados.

- Julgo que sim - confirmou Mr. Allison.

Algum tempo depois, a música de baile parou e eles ouviramlentamente o noticiário e a voz grave do jornalista informá-los de

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um só fôlego sobre o casamento que se realizara em Hollywood,sobre as últimas classificações do basebol e a previsível subida dospreços dos produtos alimentícios no decurso da semana seguinte.Falou-lhes para a casa de campo, justamente como se eles aindamerecessem ouvir notícias de um mundo que já não chegava atéeles, a não ser através das pilhas pouco fiáveis do rádio, quecomeçavam já a falhar, quase como se ainda pertencessem,embora tenuamente, ao resto do mundo.

Mrs. Allison olhou de relance pela janela para a superfície lisa dolago, a massa escura das árvores e a tempestade aguardada edisse em tom de conversa:

- Estou mais descansada em relação à carta de Jerry.

- Percebi isso quando vi as luzes apagadas em casa dos Hall ontemà noite - disse Mr. Allison.

De repente, o vento levantou-se por cima do lago, varreu asimediações da casa de campo em fortes rajadas e atingiu as janelascom violência. Involuntariamente, Mr. e Mrs. Allison aproximaram-seum do outro, e ao primeiro e súbito ribombar do trovão Mr. Allisoninclinou-se e apertou a mão da mulher. Depois, enquanto os clarõesdos relâmpagos cintilavam lá fora e o volume do rádio diminuíaprogressivamente emitindo sons distorcidos, os dois idososaconchegaram-se ainda mais um ao outro dentro da sua casa decampo e esperaram.

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A Manhã do Dia de St. Patrick

Charlotte Armstrong

(1905-1969) faz parte do magnífico grupo de escri toras quecontradiz a máxima da história revisionista segundo a qual asescritoras de policiais americanas dos anos 50 e 60 eram vítimasoprimidas e não reconhecidas do insensível domínio masculino. AMystery Writers of America premiou-a com um Edgar pelo texto ADram of Poison (1956), e os seus dois títulos publicados em 1967,The Gift Shop c Lemon m the Basket, receberam uma nomeação

para o melhor romance desse mesmo ano. No auge do seureconhecimento, nem mesmo Cornell Woolnch conseguiu superá-lana categoria de maior criador do suspense puro.

Depois de duas peças sem sucesso (não obstante terem sidoencenadas em Nova Iorque) e de três romances policiaisrelativamente convencionais, em que uma das personagens sechama MacDougall Duff, a escritora Charlotte Armstrong, oriunda doMichigan, causou enorme sensação e suscitou muita controvérsiaentre admiradores e críticos com a publicação de The Unsuspected(1946) Howard Haycraft, autor da corrente tradicionalista e oescritor da narrativa-modelo Murder for Pleasure (1941), admirou aforça do romance, mas insistiu que teria sido ainda melhor se C.Armstrong tivesse ocultado a identidade do vilão, à boa maneira dospoliciais clássicos, em vez de partilhar o segredo com o leitor. Oromance passou para a tela em 1947. com um argumento daprópria autora, ao qual se seguiu The Chocolate Cobweb (1948),Mischief (WG), The black-Eyed Stranger (1951) e muito maisromances publicados postumamente em The Protege (1970).

A escrita de Charlotte Armstrong era tão eficaz nos contos como emromances extensos. Em "A Manhã do Dia de Oatinck", ela não sórevela o seu talento como criadora de ansiedade no leitor comotambém expõe o seu forte sentido de interdependência eresponsabilidade humanas, sem esquecer os problemas que daípodem advir. Igualmente presente neste texto está a sua afinidadecom Woolrich, no recurso à invulgar variante de uma das situaçõesfavoritas do escritor (a da mulher desaparecida), e com o teatro, jáque a personagem principal é um dramaturgo e a história é simplesde imaginar em termos dramatúrgicos.

Com muito cuidado, e tomado por um misto de prazer e receio, pôstodas as folhas de papel por ordem. Colocou uma cópia domanuscrito num envelope e endereçou-o, guardando as restantesnuma mala vazia. Depois, telefonou para uma companhia aérea eteve sorte. Um bilhete para Nova Iorque de manhã. De manhã? Quemanhã? Na manhã do dia de St. Patrick.

Estivera fora do mundo, mas agora espreguiçava-se, inspirava,pestanejava e apalpava aquilo que conhecemos como realidade.

Ora vejamos. Ele era Mitchel Brown, dramaturgo (com a graça deDeus), e acabara o trabalho de revisão que trouxera para fazer nacasa de Los Angeles. Bestial! Acabado!

Passava um quarto de hora da uma da manhã, por isso já era dia17 de Março. Encontrava-se no seu apartamento do rés-do-chão,que estava uma confusão: cheio de fumo, sujo e totalmentedesarrumado... Ora, o mais importante viera em primeiro lugar.Doía-lhe as costas, sentia um ardor nos olhos e a cabeça vazia.Teria de fazer algumas limpezas, comer, dormir, tomar banho,barbear-se, vestir-se e fazer as malas; mas, primeiro...

Com uma pancada breve e seca, colou uma fila de selos de correioaéreo no envelope e saiu. A rua estava escura e deserta. Algunscarros sucediam-se, desalinhados, ao longo dos passeios. Omanuscrito deslizou ao longo das paredes interiores do marco docorreio com

1 St. Patrick é o santo padroeiro da Irlanda. Comemora-se a 17 deMarço. [N. do E.]

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um ruído surdo até parar... em segurança no seio do Serviço Postal.Agora, mesmo que ele, o avião e as outras cópias fossemdestruídos...

Mitch disfarçou um sorriso e virou a esquina, sentindo-sesubitamente desiludido, deprimido e desamparado.

Reparou, satisfeito, que o Parrakeet Bar and Grill ainda estavaaberto. Percorreu o quarteirão e entrou. O Bar ocupava toda umaparede e o Grill, composto por oito compartimentos com mesas ecadeiras, preenchia a totalidade da outra. A sala estreita eacanhada estava imersa na penumbra e parecia vazia. Mitchprocurou um banco.

- Olá, Toby. O negócio está fraco?

- Olá, Mr. Brown - o empregado do bar parecia satisfeito por vê-lo.Era um homem baixo com uma poupa de cabelo escuro, queixoazul e uma coloração azulada no branco dos olhos. - A esta horanum dia de semana, nunca estamos cheios.

- A cozinha já fechou, foi? - perguntou Mitch. A cozinha não era oforte daquele estabelecimento.

- Sim, Mr. Brown. Se quer comer alguma coisa o melhor é ir a outrosítio.

- Contento-me com uma bebida - disse Mitch com um suspiro.Posso sempre voltar para casa e fazer mais uns ovos mexidos.

Toby aproximou-se das garrafas. Quando regressou com a bebidahabitual de Mitch, disse num queixume ansioso:

- A verdade é que tenho que fechar cedo e não sei o que fazer.

- Não estou a perceber o que quer dizer com isso de não saber oque fazer?

- Olhe para ela. - Toby olhou por cima do ombro esquerdo de Mitch.Mitch olhou para trás e viu, surpreendido, uma mulher sentada auma das mesas. Ou mais propriamente deitada, porque a suacabeça loira e descoberta estava pousada em cima da toalhavermelha axadrezada. Mitch tornou a virar-se com uma expressãoinquiridora.

- Nem dá conta dela - disse Toby num sussurro rouco. - Ouça, eunão quero chamar a polícia, porque não é bom para oestabelecimento, mas tenho um filho doente, a minha mulher estáexausta e eu quero ir para casa.

- Já tentou dar-lhe um café forte?

- Claro que tentei - Toby deixou descair os ombros.

- Como terá ela chegado a este ponto?

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- Aqui não foi - disse Toby rapidamente. - Não percebo como possater sido. Palavra, duas bebidas puseram-na neste estado. Oproblema é que não é uma rameira. Vê-se isso. Que vou eu fazer,então?

- Ponha-a num táxi - disse Mitch com jovialidade. - Mande-a devolta para o sítio onde pertence. Porque não? Deve ter algumaidentificação com ela.

- Não quero remexer-lhe na carteira - disse Toby receoso.

- Hum. Ora bem, deixe-me ver... - Mitch desceu do banco. Játerminara a bebida, que escorregara com facilidade, fazendo-osentir-se alegre e amistoso para com o mundo inteiro. Além disso,sentia-se muito inteligente e sabia que nascera para compreendertoda a gente.

Toby também se aproximou e ambos levantaram o tronco damulher.

O seu rosto estava mergulhado num profundo sono alcoólico, masmesmo assim não era um rosto feio. Não era nova, mas tambémnão era velha. As roupas eram caras. Não, não era umavagabunda.

Nesse momento, ela abriu os olhos e disse, com elegância:

- Perdão.

Não estava propriamente consciente. Todavia, a reacção nãodeixava de ser encorajadora. Os dois homens puseram-na de pé ecom o seu auxílio, ela conseguiu permanecer nessa posição. Naverdade, conseguiu até caminhar. Mitch passou o braço esquerdopela alça da mala de aspecto fino, e os dois homens levaram-na atéà porta.

- Um pouco de ar, talvez? - disse o empregado do bar confiante.

- Sim - concordou Mitch. - Ouça, há uma praça de táxis junto aocinema. Enquanto caminhamos com ela até lá...

- Tenho que fechar - retorquiu Toby num tom de voz agudo. Tenhoque tratar do estabelecimento.

- Então vá - disse Mitch, enquanto permanecia de pé, aspirando oar ameno da noite com uma estranha a pesar-lhe nos braços. - Euseguro-a.

Ouviu o estalido da fechadura atrás de si quando começou acaminhar pelo passeio fora. A mulher colaborava tanto quantopodia, pondo um pé à frente do outro. Reflectindo nas qualidadespeculiares e surpreendentes da "realidade", Mitch conduziu-a atémeio do quarteirão antes de se aperceber que o empregado do baro levara literalmente à certa e não voltara para o ajudar.

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Ora, paciência. Mitch não ficou aborrecido. Pelo contrário, sentiu umenorme sentimento de compaixão por todos os seres humanos.Aquela mulher era humana e, no entanto, frágil. Sentia-se contentepor estar a tentar ajudá-la a chegar a algum sítio que ela sentissecomo seu.

A área comercial das imediações estava deserta, pelo quepenetraram num mundo vazio. Quando, depois de muito esforço,Mitch alcançou a esquina seguinte, viu que não havia nenhum táxijunto do cinema em frente. Devia ter-se lembrado que àquela horada noite o cinema estava fechado e às escuras. Ao que parecia,ainda não conseguira engrenar completamente na roda do tempouniversal.

Fosse como fosse, não podia entregá-la aos cuidados de umtaxista, nem à polícia, já que não havia nenhum agente daautoridade por perto. Havia apenas o passeio, os poucos pedaçosde metal abandonados à beira do passeio para aí passarem a noite,e nem sombra de trânsito.

Em todo o caso, Mitch não pensaria sequer em mandar parar ummotorista. A maioria deles era desconfiada e receosa. Por isso, feza única coisa que podia fazer... continuou a andar.

Guiou os passos que ela dava automaticamente e, juntos,contornaram a esquina e desceram a rua, porque, de certeza,pensou, se não a deixasse parar de andar, ela começaria a voltar asi e nessa altura perguntar-lhe-ia de que modo poderia ajudá-la?

Era o raciocínio mais acertado, achava ele. Talvez pudesse usar oseu próprio carro...

Porém, o ar não estava a ter o resultado desejado. Ela começou acaminhar aos tropeções e o peso do seu corpo fê-la cair para cimadele. Mitch apercebeu-se que quase a carregava. Depois, deuconsigo de pé, segurando-a com os dois braços para a manterdireita, exactamente em frente do seu prédio. Obviamente, a únicacoisa que podia fazer era levá-la para dentro. Aí poderia verificar asua identidade e chamar um táxi pelo telefone.

O apartamento não se arrumara a si próprio na sua ausência.Deixou-a cair e ela afundou-se no sofá. Colocou a cabeça lourasobre uma almofada e ela ali ficou deitada, sem dar conta de si,uma completa estranha. Para lhe endireitar o corpo e colocá-lanuma posição mais confortável, levantou-lhe as pernas. Um dossapatos - uns sapatos lindos de um bom cabedal verde com umsalto alto afilado e uma pequena fivela de bronze - saiu-lhe do pé.

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Mitch agarrou no outro sapato e também o descalçou. Com acabeça cheia de ideias acerca de mulheres e saltos altos, arrumouos sapatos por baixo da sua secretária e retirou do seu própriobraço a carteira feita do mesmo cabedal verde de boa qualidade.

Parecia-lhe, de facto, pouco ofensivo estar a devassar apropriedade de uma estranha. Contudo, tinha de o fazer.

O nome dela, conforme constava da carta de condução, era NatalieMaxwell e morava em Santa Barbara. Mitch deu um assobio. Issodemoveu-o da ideia de a mandar para casa de táxi, já que elaestava a cento e sessenta quilómetros de casa. Depois, Mitchencontrou uma carta dirigida a Mrs. Julius Maxwell e voltou aassobiar. Com que então era casada!

E com um homem conhecido. Julius Maxwell. A única coisa queveio à memória de Mitch foi um vago cheiro a dinheiro. Nesse caso,talvez não estivesse sem dinheiro. Espreitou para dentro da carteirae viu algumas notas. Não muitas. Abriu o livro de cheques eassobiou uma terceira vez. Bem! Esta não é nenhuma pobretana.

Mitch passou a mão pelo cabelo e reflectiu na situação difícil emque se encontrava. Ali estava ele, dando guarida a uma matronarica de Santa Barbara que bebera até à inconsciência. Que iria elefazer com ela?

Não havia nada na carteira dela que lhe dissesse onde estavahospedada na cidade. A carta, enviada por alguém de SãoFrancisco, continha apenas conversa de mulheres.

Que podia ele fazer, então?

Bem, podia telefonar para a polícia e livrar-se dela. Não, nãoconseguia imaginar-se a fazê-lo. Ou podia telefonar para aresidência de Julius Maxwell, em Santa Barbara, e se o marido láestivesse perguntar-lhe o que fazer; ou então, se ele não estivesseem casa, de certeza que haveria alguém a quem Mitch poderiaperguntar onde Mrs. Maxwell estava hospedada em Los Angeles edeixá-la lá. Tudo isto lhe passou pela cabeça e foi rejeitado.

Porquê provocar a humilhação e causar embaraço a outro serhumano? Em sua opinião, ela não estava doente, apenas bêbadaque nem um cacho. Mais tarde ou mais cedo, os vaporesdesapareceriam e ela voltaria a si. Entretanto, ali estava em perfeitasegurança. Deus era testemunha em como não tivera um maupensamento que fosse.

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Além disso, ele - Mitchel Brown, dramaturgo, artista, apóstolo dacompaixão -, ele não era nenhum burguês conformista quereceasse covardemente manchar a sua reputação caso sedecidisse a fazer o que "não podia ser feito". Sendo o que era, seriaele capaz de colocar este ser humano a contas com a Autoridadeou até com o seu próprio marido? Quando este ser humano, poruma qualquer razão humana, apenas bebera um pouco de álcool amais? Não conseguia fazê-lo.

Está bem, o seu estado de espírito e a traiçoeira deserção de Toby,o empregado do bar, levara-o a fazer a parte do bom samaritano.Nesse caso, porque não ser, de facto, o bom samaritano e deixá-laem paz?

A ideia agradou-lhe. Pareceu-lhe adequado fazê-lo. Deixá-la empaz. "Só Deus sabe como todos precisamos disso", pensou elepiedosamente.

Então, Mitch escrevinhou um recado. Cara Mrs. Maxwell: Sedesejar pode usar o meu telefone ou ser minha hóspede o tempoque precisar.

Assinou-o, foi até ao quarto buscar uma manta leve e estendeu-apor cima dela. Ela ressonava baixinho. Ele observou o seu rostouma vez mais e colocou o recado no tapete por baixo dos sapatosdela, onde tinha a certeza que ela o veria. Depois, foi para o quarto,fechou a porta e deitou-se.

Mitchel Brown acordou no dia de St. Patrick, bem cedo e cheio defome. Esquecera-se de comer qualquer coisa. De repente lembrou-se. Nova Iorque! Apanhar o avião! Fazer a mala!

Dirigiu-se para a cozinha, mas quando transpunha a porta do quartolembrou-se da senhora. Por isso, voltou atrás e vestiu um roupãoantes de aparecer à frente dela.

Não precisava de se ter incomodado, porém, porque ela já lá nãoestava. Os sapatos tinham desaparecido, a carteira tinhadesaparecido e o bilhete que lhe deixara também. Na verdade, nãohavia qualquer vestígio dela.

Não se questionou sobre se teria sonhado. Ela tinha simplesmenterecuperado os sentidos e partido. Hum, sem sequer deixar um"Obrigada"? "Ora, ficou em pânico", pensou ele. Ah, a fragilidadehumana! Mitch encolheu os ombros. Tinha muito que fazer e otempo não lhe chegava para tudo.

Limpou furiosamente a casa, retirou do frigorífico tudo o que podiaestragar-se e deitou fora, colocou toda a roupa suja num saco

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da lavandaria, pôs tudo o que podia vestir numa mala e foi por umtriz que não perdeu o avião.

Uma vez instalado, começou a sofrer. Percorreu todo o manuscritomentalmente e deixou-se dominar pelas dúvidas. Tentou dormitarmas não conseguiu, até que, de repente, adormeceu... Depoisdescobriu que se encontrava em Nova Iorque, Deus mostrou-sesolícito para com ele e o seu produtor continuava entusiasmado eimpaciente.

Seis semanas mais tarde, Mitchel Brown, dramaturgo, descia doavião em Los Angeles. Tinha uma peça na Broadway. O veredictofora óptimo. Horas, bilheteira, passa palavra... pessoalmente, já nãoaguentava mais. Não fora suplantado, mas sabia que o seria, amenos que chegasse a casa e começasse a trabalhar em qualqueroutra coisa, e rapidamente.

Estivera fora deste mundo durante todo aquele tempo, pois duranteos ensaios de uma peça não há tremor de terra, nem catástrofegigantesca nem declaração de guerra que tenha qualquersignificado para um autor. Absolutamente nenhum.

Chegou ao apartamento por volta das cinco horas da tarde e, com opé, afastou uma pilha de jornais, cuja entrega se esquecera desuspender. A casa cheirava a bafio e não estava muito limpa, masnão importava. Abriu todas as janelas, preparou um whisky comgelo e sentou-se, pegando no primeiro jornal da pilha, decidido ainteirar-se das voltas que dera o mundo ocidental desde que ele odeixara. Na última semana na Costa Leste, dera uma vista de olhospelos assuntos internacionais, mas claro que os acontecimentoslocais lhe eram completamente desconhecidos.

O último crime, hum... Os jornais de Los Angeles têm sempreesperança que um assassínio se transforme em algo de extremaimportância, por isso todos eles saem com grande destaque. Aquelenão parecia prometedor. "Uma mera rixa", considerou ele. "Seriaesquecida em dois dias."

Deu uma vista de olhos pela segunda página onde haviainformações actualizadas sobre os crimes mais antigos. Perderadois ou

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três. Uma mulher esfaqueada por um ex-marido, um homemalvejado no próprio vestíbulo. Banalidades. Mitch bocejou. Sairia decarro e iria a qualquer lado comer uma refeição decente, decidiuele. No dia seguinte meteria mãos à obra.

Às 18:30, entrou no seu restaurante favorito, pediu uma bebida epreparou-se para consultar a ementa.

Ela entrou discretamente cerca de dez minutos mais tarde e sentou-se sozinha na mesa exactamente em frente à de Mitch. A primeiracoisa em que ele reparou, pelo canto do olho, foi nos sapatos. Já osvira antes. Sim, e segurara neles... tivera-os nas suas própriasmãos.

Levantou os olhos e viu Mrs. Julius Maxwell. (Lembrou-se que o seunome próprio era Natalie.) Não era apenas Mrs. Julius Maxwell emcarne e osso, mas Mrs. Julius Maxwell e exactamente com amesma roupa que usara na ocasião anterior! Com o mesmo fatoverde, a mesma blusa de um tom pálido e sem chapéu. Era umasenhora, bem arranjada, com posses, bonita e séria - e naquelemomento perfeitamente sóbria.

Mitch manteve a cabeça inclinada e os olhos fixos nela, aguardandoque ela sentisse a intensidade do seu olhar e reagisse a ele.Rapidamente, os seus olhos encontraram os dele. Eram frios,todavia, e não mostraram qualquer reconhecimento.

"Bem, claro", pensou ele, "como podia ela reconhecer-me? Nuncame viu." Desviou os olhos, algo divertido, depois voltou a olhar paraela. Natalie Maxwell fazia o seu pedido. Ela reclinou-se,descontraída, e o seu olhar voltou a cruzar-se com o dele, detendo-se por instantes para avaliar o interesse dele e desviando-se emseguida para mostrar que da parte dela não havia nenhum.

Mitch não conseguiu deixar de sentir que aquilo não era justo.Levantou-se e dirigiu-se a ela.

- Como está, Mrs. Maxwell? - perguntou de forma agradável. Ficocontente por ver que está melhor.

- Perdão? - retorquiu ela.

Ele lembrou-se de já a ter ouvido dizer aquilo e nada mais.

- Chamo-me Mitchel Brown.

Aguardou a sua reacção com um sorriso, observando-a.

- Não creio... - murmurou ela numa perplexidade cortês. Tinha umbonito nariz rectilíneo e, apesar de estar a olhar para

ele de um plano inferior, parecia fazê-lo olhando por cima do nariz.

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- Estou certo que se recorda do nome - disse Mitch. - Foi no diadezasseis de Março. Não, na verdade foi na manhã do dia de St.Patrick.

- Não estou bem a...

Era estúpida ou quê? Então, Mitch perguntou, deixandotransparecer uma ponta de azedume no seu tom de voz.

- Foi pesada a ressaca?

- Lamento muito - disse ela com uma pequena gargalhada deirritação -, mas não faço a mínima ideia do que está a falar.

- Oh, por favor, Natalie - disse Mitch, começando a sentir-seofendido -, o apartamento era meu.

- O quê? - perguntou ela.

- Foi no meu apartamento que ficou nessa noite... aqui em LosAngeles.

- Receio que esteja a fazer confusão - disse ela, distante. Mitch nãopensava o mesmo.

- A senhora não é Mrs. Julius Maxwell?

- Sim, sou.

- De Santa Barbara?

- Bem, sim, sou - franziu um pouco o sobrolho.

- Então, o apartamento no qual a senhora acordou, na manhã dodia de St. Patrick, era meu - disse Mitch, irritado. - E a que se devea amnésia?

- O que vem a ser isto? - perguntou uma voz masculina. Mitch viroua cabeça e percebeu imediatamente que se tratava

de Mr. Julius Maxwell. Era de estatura mediana, bem musculado,um homem de meia-idade com uma espessa cabeleira grisalha euns olhos negros cruéis sob umas sobrancelhas muito pretas. Tudonaquele homem revelava agressividade e posse. Exalavadinamismo e poder, e Meu.

Mitchel Brown, dramaturgo, artista e apóstolo da compaixão, reuniutodas as suas forças, como se estivesse a enfiar um par de asas.

- Julius - disse a mulher loura -, este senhor sabe o meu nome.Insiste em falar na manhã do dia de St. Patrick.

- Ai é? - exclamou o marido.

- Ele diz que eu estive no apartamento dele, aqui em Los Angeles.Mitch Brown lembrou-se de uma teoria que explicaria tudo aquilo.Obviamente, o marido de Natalie nunca ficara a saber onde

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ela estivera naquela noite. Por isso, tinha de fingir que não conheciaMitch, porque ela sabia, e ele não, que Julius Maxwell estava porperto e iria aparecer. Contudo, algo nos modos daquela mulher nãose encaixava naquela teoria. Ela parecia não estar suficientementepreocupada. Olhava em frente e a sua desorientação era apenassuperficial. Mesmo assim, achou que devia comportar-se de formagalante.

- Devo ter-me enganado - disse ele -, mas a semelhança é notável.Talvez tenha uma sósia, minha senhora.

Pensou que era uma atitude simpática da sua parte e que lhe dariaa ela uma saída.

- Uma sósia? - perguntou Julius Maxwell de forma desagradável. -Quem pode andar a usar o nome da minha mulher?

Bem, claro que se ele ia ser assim tão esperto em relação aoassunto, deitaria por terra todos os seus argumentos.

- Desculpe - disse Mitch frivolamente.

- Sente-se e fale-me disso - ordenou Maxwell - Mr... er...?

- Brown - respondeu Mitch concisamente. A sua vontade era darmeia volta e ir-se embora, mas olhou de soslaio para Natalie. Elaabrira a carteira e retirava o estojo do pó-de-arroz. Ou se tratava deum gesto de indiferença ofensiva ou de uma atitude de confiançapatética. Se não era isso, que mais podia ser? Mitch sentiu acuriosidade aumentar... e sentou-se.

- Bem, acontece que entrei num bar onde estava uma senhora quebebera de mais - disse ele, como se aquilo fosse comum. - Ofereci-me para a levar até um táxi, mas não havia nenhum nasredondezas. Acabei por a depositar, desmaiada, no meu sofá. Namanhã seguinte, ela tinha desaparecido. Foi isto que se passou.

- E isso foi no dia de St. Patrick? - perguntou Maxwell resoluto.

- Às primeiras horas da madrugada.

- Então, essa senhora não era a minha mulher. Nessa noite, elaestava comigo em Santa Barbara, em nossa casa.

- Consigo? - perguntou Mitch cauteloso, sentindo-se um poucochocado.

- Claro - o tom de voz de Maxwell era belicoso.

Mitch começava a ficar surpreendido. A mulher pusera pó-de-arrozno nariz e permanecia sentada com uma expressão de extremadespreocupação.

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- Não apenas no mesmo edifício - continuou Mitch - tal como osenhor pode ter presumido?

- Não apenas no mesmo edifício - disse Julius Maxwell -, e nãohouve suposições. Ela estava comigo, falou comigo, tocou-me, sequiser saber - os seus olhos pretos eram hostis.

"Oh, oh", pensou Mitch, "então você também é um mentiroso. Quese passa aqui, de facto?" Aquele Maxwell era-lhe perfeitamenteindiferente.

- Talvez eu a tenha tomado por outra senhora - disse ele com lisonja-, mas não é estranho que ela use neste momento exactamente asmesmas roupas que usava no dia de St. Patrick?

("Depois desta, mostra o que vales", pensou Mitch, presunçoso.)Julius perguntou ameaçador:

- O senhor sabe quem eu sou?

- Já ouvi falar no seu nome - respondeu Mitch.

- O senhor sabe que sou um homem influente?

- Ah, sim - disse Mitch em tom aprazível. - Na verdade, daqui sinto ocheiro a dinheiro.

- Quanto quer para se esquecer que viu a minha mulher em LosAngeles nessa noite?

As sobrancelhas de Mitch ergueram-se.

- Na manhã do dia de St. Patrick - acrescentou Julius comsarcasmo.

Mitch sentiu os cabelos eriçarem-se e a sua calma inflamar-sebruscamente.

- Porquê? Quanto é que isso vale? - perguntou ele. Entreolharam-se fixamente. Era ridículo. Mitch sentiu-se como

se estivesse perdido num filme de categoria B. Então, Maxwelllevantou-se da mesa.

- Com licença - deteve firmemente Mitch com um olhar penetranteque parecia dizer, "Quieto", como se Mitch fosse um cão. Depois,afastou-se.

Sozinho com a mulher loura, Mitch indagou rapidamente:

- O que quer que eu faça ou diga?

Ele olhava para a sua mão de dedos longos e unhas pintadas decor-de-rosa pousada sobre a mesa. Não estremeceu. Tão-pouco semexeu.

- Não compreendo - disse ela mecanicamente.

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- Muito bem - disse Mitch desgostoso -, eu vim aqui para jantar enão vejo nenhuma utilidade nesta discussão, por isso peçodesculpa.

Levantou-se, atravessou a sala até à sua mesa e encomendou ojantar.

Julius Maxwell regressou alguns instantes depois e ficou a olharpara Mitch com um brilho triunfante nos olhos. Mitch brandiu obastão da razão acima da actividade tipicamente humana das suasglândulas. Era imperioso para a dignidade de Mitch que jantasse ali,conforme planeara, e que se mantivesse imperturbável diante dapresença daquela gente estranha.

O seu bife chegou no preciso instante em que um homem entrou nasala e se dirigiu à mesa de Maxwell. Houve uma troca de palavras.Julius levantou-se e ambos se dirigiram para Mitch.

Julius disse:

- É este o homem, senhor tenente.

Mitch viu o estranho sentar-se no lugar vago ao seu lado, seguidode Julius, que se instalou também ao seu lado mas na cadeiraoposta. Rejeitou a sensação de estar a ser apanhado numaarmadilha.

- O que vem a ser isto? - perguntou ele calmamente, passando oguardanapo pelos lábios.

- Chamo-me Prince - disse o estranho. - Pertenço ao Departamentoda Polícia de Los Angeles. Mr. Maxwell disse-me que o senhor andaa contar uma história sobre Mrs. Maxwell ter estado aqui na cidadena noite do dia dezasseis de Março e na manhã do dia dezassete?

Vigilante e prudente, Mitch bebericou do seu copo de água. JuliusMaxwell disse:

- Este homem estava a tentar chantagear-me com uma históriadisparatada.

- Eu estava a fazer o quê - explodiu Mitch.

O tenente da polícia, ou quem quer que ele fosse, tinha um rostolongo e magro, ligeiramente curvo no queixo, e umas pálpebrasonde estava estampado o cansaço.

- A sua história foi inventada para destruir o álibi de Mrs. Maxwell? -inquiriu.

- O seu álibi relativamente a quê? - Mitch recostou-se.

- Oh, deixe-se disso, Brown - disse Julius Maxwell -, ou seja qual foro seu nome. Você reconheceu a minha mulher por ver a fotografiadela no jornal.

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O cérebro de Mitch trabalhava velozmente.

- Há seis semanas que não leio jornal nenhum - afirmou eleagressivamente.

Os olhos pretos de Julius Maxwell reluziam com o mesmo brilhotriunfante.

- Ora, isso - disse ele terminantemente - é impossível.

- Ah, é? - retorquiu Mitch bastante devagar.

O seu papel de apóstolo da compaixão estava a sumir-serapidamente. Mitch era agora um ser humano em desacordo comoutro ser humano e percebeu que tinha de se acautelar. Sentiu assuas asas retraírem-se na coluna.

- Álibi relativo a quê? - insistiu ele, enquanto olhava resolutamentepara o polícia.

O polícia suspirou.

- O senhor quer que eu lhe conte? Muito bem. Ao final da tarde dodia dezasseis de Março - começou ele com enfado -, um homemchamado Joseph Carlisle foi morto a tiro no vestíbulo da sua casa -(Subitamente atento, Mitch lembrou-se do parágrafo que leranaquela mesma tarde). - O homem vivia num vale junto ao rio emHollywood Hills - continuou o tenente. - Uma estrada sinuosa e umlocal isolado. Parece que alguém tocou à campainha, ele abriu aporta e estiveram a conversar no vestíbulo. Foi morto com a suaprópria pistola, que guardava numa mesa que tinha na entrada.Quem quer que o tenha baleado, fechou a porta da frente,trancando-a, e atirou o revólver para um matagal próximo. Depois,foi-se embora. Não foi visto... por ninguém.

- E que tem isso que ver com Mrs. Maxwell? - perguntou Mitch.

- Mrs. Maxwell foi casada com este Carlisle - afirmou o polícia. -Nós tínhamos que a investigar, e ela tinha este álibi.

- Estou a ver - afirmou Mitch.

- Mrs. Maxwell - disse Julius entre dentes - esteve comigo em nossacasa em Santa Barbara nessa tarde e durante toda a noite.

Mitch percebeu. Percebeu que Maxwell estava a tentar livrar amulher do embaraço da suspeição ou... que a compaixão era umsentimento elevado, mas podia deixar em apuros uma pessoa bem-intencionada. E algumas bebidas podiam despertar a alma de umaassassina de forma rápida e indubitável. Mitch percebeu queindependentemente

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do que Maxwell continuasse a dizer, estaria a mentir com quantosdentes tinha sobre aquele álibi, porque a mulher, que continuavasentada à sua frente naquele restaurante, era a mesma mulher queMitch levara para casa e a quem dera uma oportunidade. Porém,ninguém ia dar uma oportunidade a Mitch Brown. E porquê todo

aquele disparate sobre a chantagem? Com as asas bem abertas,Mitch disse ao tenente:

- E se eu lhe contar a minha história? E fê-lo, fria e concisamente.

No final, Maxwell deu uma gargalhada.

- O senhor acredita nisto? Acredita que ele levaria uma mulher ébriapara casa e... depois fecharia a porta e dormiria descansado?

No seu íntimo, Mitch Brown sentiu o fumo da aversão irromper emchamas de ódio.

- Não, não - disse Maxwell. - O que deve ter acontecido foi oseguinte: ele viu a minha mulher aqui. Oh, ele leu o jornal... nãoacredite que não o tenha feito. Sabia que ela fora casada com JoeCarlisle. Então, aproveitou o impulso do momento e refinou a suamentirinha. Sempre podia lucrar alguma coisa com isto... quemsabe? Oiça o que lhe vou dizer: quando lhe perguntei quanto é queele queria para ficar de bico calado, perguntou-me quanto é queisso valia.

Mitch mordiscava os lábios.

- O senhor deturpa aquilo que lhe dizem. Não foi esse o sentido dasminhas palavras.

- Ora! - exclamou Maxwell, sorrindo.

O tenente franzia os lábios de forma reservada. Mitch dirigiu-se-lhe.

- Que outras pessoas comprovam o álibi de Mrs. Maxwell?

- Os criados - afirmou o tenente melancolicamente.

- Os criados? - inquiriu Mitch com vivacidade.

- É perfeitamente natural - afirmou o tenente, ainda maismelancólico.

- Muito bem - disse Mitch Brown. - Quer dizer que é possível quequando um casal está em casa só os criados os vejam, mas já nãoé possível que um estranho dê guarida a uma mulher ébria e adeixe entregue a si própria... simplesmente porque lhe apetece dar

uma oportunidade a um ser humano. Estamos, então, perante umcálculo de probabilidades?

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O tenente moveu os lábios e Mitch disse rapidamente:

- Mas o senhor pretende factos, não é? Está bem. A única coisa quetemos a fazer é ir falar com o empregado do bar.

- Parece-me que é justamente isso que devemos fazer - disse otenente prontamente. - Muito bem.

Maxwell repetiu:

- Muito bem. Esperem por nós.

Levantou-se e foi ao encontro da mulher. Mitch pôs-se de pé epermaneceu ao lado do tenente.

- Havia impressões digitais? - murmurou ele. O tenente encolheu osombros. Por detrás daquelas pálpebras cansadas, Mitch perscrutouuns olhos humanos. - Ela tem algum carro? O carro dela estava narua? - O tenente voltou a encolher os ombros. - Quem mais matariaesse Carlisle? Tinha inimigos?

- Quem não os tem? - perguntou o tenente. - É melhor irmos falarcom o empregado do bar.

Partiram os quatro no carro do tenente. Naquela noite, TheParrakeet Bar and Grill tinha bastantes clientes. Parecia mais alegree próspero. Toby, o empregado do bar, estava de serviço.

- Viva, Mr. Brown - disse ele. - Há muito tempo que não o via.

- Estive na Costa Leste. Toby, conte a este homem o que aconteceupor volta da uma e meia da manhã de dezassete de Março.

- Como? - perguntou Toby.

A carne das suas bochechas pareceu distender-se e os seus olhosperderam o brilho. De repente, Mitch percebeu o que ia passar-se.

- Viu este homem ou esta mulher aqui entre a uma e as duas horasda manhã do dia dezassete de Março? - perguntou-lhe o tenente, eacrescentou: - Eu sou o tenente Prince do Departamento da Políciade Los Angeles.

- Não, senhor - disse Toby. - Claro que eu conheço Mr. Brown. Elecostuma cá vir de vez em quando. Vive aqui perto. É escritor. Masnão me lembro de alguma vez ter visto aqui esta senhora.

- E Brown? Esteve aqui nessa noite ou naquela madrugada?

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- Não creio - respondeu Toby. - Nessa noite, agora me lembro... sim,o meu filho estava doente e fechei mais cedo do que é habitual.Pergunte à minha mulher - disse Toby, o empregado do bar com oolhar fixo e directo típico do mentiroso.

O tenente Prince virou o seu rosto longo de pálpebras pesarosaspara Mitch Brown.

Mitch Brown exibia um sorriso rasgado.

- Oh, não! - exclamou. - A velha piada da Exposição de Paris! Essanão! - Debruçou-se sobre o balcão e soltou uma gargalhadaabafada.

-Está a falar de quê? - perguntou-lhe o tenente Prince irritado.Comprove-me a sua história. Quem é que pode confirmá-la? Quemo viu a si e a esta senhora nessa noite?

- Ninguém, ninguém - afirmou Mitch com amabilidade. - As ruasestavam vazias. Não se via vivalma. Bem! Eu não teria acreditado!A velha piada da Exposição de Paris!

O tenente emitiu um som exasperado. Mitch disse com jovialidade:

- Não se lembra desta? É a história de uma rapariga e da mãe quese hospedam num hotel em Paris, em quartos separados. Demanhã, quando a rapariga acorda, a mãe tinha desaparecido. Todosdizem que nunca viram a mãe. O seu nome não consta do livro deregistos do hotel, nenhum quarto tem o número que a filha afirma

ser o do quarto da mãe. Espere. Não... não era assim. Havia umquarto com esse número, mas o papel de parede era diferente.

- Um escritor... - disse Julius Maxwell, como se isso explicasse tudo.

- Porque não nos sentamos - sugeriu Mitch, animado - econversamos um pouco?

A sua sugestão foi aceite. Natalie Maxwell foi a primeira a sentar-sea uma das mesas. Era loira e tinha uma aparência distinta,protegida... e entorpecida. ("Estaria ela anestesiada comtranquilizantes?", considerou Mitch.) O marido sentou-se à suadireita e o polícia à sua esquerda. Mitch deslizou para o outro ladoda Autoridade, de frente para o seu adversário.

A disposição de Mitch Brown não era de modo nenhum tão boacomo as suas palavras haviam dado a entender. Não lhe agradavaa ideia de ser alvo da velha piada da Exposição de Paris. Todavia,

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não estava confuso nem apavorado. Pelo contrário, a sua mentecomeçou a reconhecer o inimigo. Julius Maxwell,extravagantemente bem-sucedido... Mitch sentiu o sabor dareputação daquele homem. Do tipo pirata, implacável e temerário.Julius Maxwell... as mãos cheias de dinheiro, a preparar-se parafazer Mitchel Brown passar por tolo. Além disso, havia aquestãozinha da justiça. Ou da clemência. Mitch sentiu as suasasas restolharem de novo.

- Deseja alguma coisa? Um whisky com soda? - perguntoudelicadamente à mulher.

- Eu não bebo - respondeu Natalie com afectação. Baixou aspestanas e tocou com a língua nos lábios.

Mitch Brown passou a língua pelo lábio superior, pensativamente.Naquele local, Julius Maxwell mal conseguia conter a sua energia.

- Deixe lá as bebidas - disse ele. - Vamos directamente ao assunto.Este jovem, quem quer que ele seja, viu a minha mulher ereconheceu-a pela publicidade que houve em torno do assunto.

Sabe que eu sou um homem rico. Por isso, pensou em inventaruma grande mentira. Para evitar maçadas, pensou que eu lhepagaria alguma coisa. Em suma, um oportunista - disse Julius comum sorriso maldoso. - Eu compreendo.

- Duvido que me compreenda - afirmou Mitch serenamente. Tenho acerteza que não faz a mínima ideia de quão antiga é essa históriada Exposição de Paris.

- O que tem uma Exposição de Paris qualquer a ver com isto?perguntou Julius com brusquidão. - Oiça bem o que lhe vouperguntar, tenente Prince: posso processar este homem?

- O senhor não pode provar a extorsão - disse o tenentesombriamente. - Devia tê-lo deixado aceitar o dinheiro diante detestemunhas.

- Ele nunca o faria - disse Mitch -, porque sabe que nunca mepassou pela cabeça extorquir-lhe dinheiro.

O tenente fechou completamente os olhos, revelando uma enormefadiga. Voltou a abri-los e era evidente que não acreditava em nadanem em ninguém.

- Quero tirar isto a limpo. Ora, o senhor estava a dizer, Mr.Maxwell...

- Eu dizia que nessa tarde e durante toda a noite a minha mulheresteve em casa, tal como dizem os criados e conforme asautoridades

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têm conhecimento. Por isso, este homem é um mentiroso. Quempode comprovar o que ele diz? É óbvio que não consegue arranjarninguém nem nada que corrobore esta patranha que anda a contar.O empregado do bar nega-o. E se quer saber, o mais ridículo detudo é ele afirmar que não lê os jornais há seis semanas. Só revelao espírito fantástico que possui.

Sem fazer qualquer comentário, o tenente virou-se para Mitch.

- E o senhor afirma que...

- Eu afirmo - disse Mitch - que estive na cidade de Nova Iorquedesde o dia dezassete de Março a assistir aos ensaios da minhapeça e à noite da estreia.

- Um autor de peças de teatro - disse Julius.

- Um dramaturgo - corrigiu Mitch. - Creio que o senhor não sabe oque isso é. Para que saiba, é uma pessoa empenhada em tentarcompreender os seres humanos, o que para si é uma coisaestranha. - Mitch debruçou-se sobre a mesa. - Segundo meconstou, o senhor é o pirata destemido. Andou por aí a roubardinheiro e agora julga que o dinheiro compra tudo o que pretende.Quer que eu lhe conte a sua história?

Julius Maxwell exibia agora um pálido sorriso escarninho, mas Mitchreparou que Natalie tinha os olhos muito abertos. Talvez os seusouvidos também estivessem atentos. Mitch prosseguiu sem rodeios.

- A sua mulher veio até aqui de automóvel e baleou o ex-marido -disse ele de forma brutal. (Natalie nem sequer pestanejou.) - Bem,então... - a imaginação de Mitch começava a funcionar, alimentadapela longa prática. - Creio que Natalie se sentiu bastante mal,bastante perturbada, talvez até arrependida o suficiente paraprecisar de uma bebida e para tomar demasiadas bebidas até seesquecer dos seus problemas. - Natalie olhava para ele. - Contudo,ao acordar no meu apartamento, fugiu... correu para o carro, quedevia ter arrumado algures por ali, e dirigiu-se velozmente paracasa. E que mais podia ela fazer? - Mitch pensava em voz alta. -Cometera aquele acto horrível. Alguém tinha de a ajudar.

(Estaria Natalie a suster a respiração?)

- Quem a podia ajudar? - perguntou Mitch rapidamente. - Você,Maxwell. Porquê? Eu digo-lhe porquê. O senhor não é do género dedeixar que a sua mulher, e sublinho a sua... morra na câmara degás por ter cometido um assassínio. O que ela fizera fora umapatetice.

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presumo que a tenha censurado pela estupidez do acto em si. Osenhor, porém, disse-lhe que não se preocupasse. Ela pertencia-lhe, por isso o senhor resolveria o assunto. O dinheiro podiacomprar qualquer coisa. Ela teria que fazer exactamente aquilo queo senhor lhe ordenasse, e depois podia esquecer o incidente - Mitchhesitou. - O senhor achou que ela ia conseguir esquecer o caso? -murmurou ele.

Ninguém se mexeu nem disse nada, por isso, Mitch prosseguiu:

- Bem, o senhor pôs mãos à obra. Subornou os criados, subornouToby aqui no restaurante e andou por aí a investigar, descobrindoque havia apenas uma pessoa que podia demonstrar que ela nãotinha de facto nenhum álibi. Essa pessoa era um dramaturgo. Oh, osenhor também andou a fazer investigações sobre mim, claro.Sabia muito bem onde eu estava e o que estava a fazer. Descobriuo dia e a hora em que eu regressaria a Los Angeles.

O tenente Prince suspirou.

- Isto é de loucos - interrompeu ele. - Você está a dizer que ele temsubornado toda a gente? Por que motivo não o subornou ele a si?

Mitch virou para ele os olhos cheios de espanto.

- O problema foi eu não ter lido os jornais. Eu não tinhaconhecimento que sabia. Por isso, como podia ele subornar-me?Tomou-me por um idiota - afirmou Mitch. - Porque que pessoa noseu perfeito juízo passa seis semanas sem ler o jornal? Foi entãoque pensou num estratagema. - Mitch dirigiu-se a Maxwell. - Osenhor contratou alguém para vigiar o meu apartamento e,acompanhado por Natalie, aguardou num local muito próximo. -Mitch apercebeu-se que o polícia estava prestes a encolher osombros e apressou-se a acrescentar: - De outro modo, como seexplica que exactamente no mesmo dia em que eu chego à cidadeencontre Natalie, e ela esteja com a mesma roupa?

- Quem mais pode afirmar que é a mesma roupa - perguntouMaxwell brandamente -, além do senhor?

- Ela entrou no restaurante - disse Mitch - sozinha.

- Porque eu tinha ido fazer uma chamada telefónica...

- Sozinha - insistiu Mitch, ignorando a interrupção -, e porquê? Parame levar a aproximar-me e a falar com ela. Daí as mesmasroupas... para terem a certeza que eu a reconheceria. Depois defingir que não se lembrava de mim, Maxwell entra em cena.Sabendo que

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tinha subornado as testemunhas, colocou-me no papel dooportunista... possivelmente do extorcionista. "Brown é um escritor",disse o senhor para consigo. O que, na sua concepção, é igual a"doido". Ninguém vai acreditar numa única palavra do que eledisser. Preparava-se para me desacreditar. Arquitectaria umapequena cena e chamaria um polícia a sério para servir detestemunha.

- Porquê? - interveio o tenente. Mitch estava surpreendido.

- Porquê o quê?

- Por que motivo engendraria ele tudo isto e depois me chamaria?

- É simples - disse Mitch. - E se eu tivesse de facto lido os jornais ereconhecido o nome dela? E se eu tivesse ido falar consigo? Queseria eu então? Um bom cidadão. Não é assim? Deste modo, elefez com que parecesse que eu é que tinha ido ter com eles.Forçando-me a parecer um oportunista. Ele seria então o bomcidadão que o tinha chamado a si.

O tenente expeliu ar, sem que isso significasse alguma coisa.

- Que plano mais maluco! - exclamou Mitch em primeiro lugar.(Bolas, era uma loucura. Não parecia possível.) - Como o senhor éirrealista! - provocou ele desesperadamente.

Maxwell permaneceu sentado com uma expressão afectada.

- Não há dúvida que você tem imaginação - disse ele com umsorriso perverso. - E descontrolada.

Foi então que o polícia os surpreendeu.

- Espere aí, Brown. Você está a dizer que Maxwell sabia que amulher era a assassina? Que ele está a agir como cúmplice? Foiisto o que o senhor quis dizer?

Mitch hesitou. Maxwell afirmou:

- Ele não pensou bem no que disse. Ouça, ele está apenas ainventar uma história, tenente. Foi desafiado a fazê-lo, está a provarque é esperto. E é, de facto... para a ficção. Digamos que foi umaboa tentativa.

Mitch viu o caminho que lhe estava reservado.

- Ou então - disse Maxwell alguns instantes depois -, talvez eleestivesse apenas a tentar conquistar uma mulher bonita - Maxwellsorriu-lhe mostrando os dentes.

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Mitch compreendeu... estavam a mostrar-lhe uma maneira desalvaguardar a sua reputação, o que era bastante tentador. Masnão era apenas isso, ele tinha consciência de que se cedesse, opoder, o dinheiro, a influência ali ou em qualquer outro sítiofuncionariam em proveito da vantagem comercial de Mitchel Brown.

Por isso, disse devagar:

- Eu sei que ele é um mentiroso. Acredito que seja cúmplice. Sim,foi isso o que eu quis dizer.

O rosto de Julius Maxwell tornou-se sombrio.

- Prove-o - desafiou ele com brusquidão. - Porque se o afirma semprovas, terei que recorrer ao tribunal, e aí esfolo-o vivo. Eu não medeixo ficar quieto quando me chamam mentiroso.

Mitch levantou os olhos e disse com um ar de pura curiosidadedesinteressada:

- O que o fez pensar que eu o faria?

- Ouça, dê-me qualquer coisa - disse o tenente com uma irarepentina -, dê-me qualquer coisa para prosseguir.

Maxwell disse com desdém:

- Não pode. São tudo fantasias.

Mitch procurava alguma coisa que o ajudasse.

- Um carro, nunca tal me passou pela cabeça - murmurou ele. Masdevia ter calculado, pelos sapatos que usa, que não teria chegadoaqui a pé. Presumo que ela não tenha andado muito desde que secasou com tamanha fortuna.

Mitch apercebeu-se que Maxwell inchava de raiva, real ou simulada.Todavia, lembrou-se que Natalie estava a ouvi-lo. Veio-lhe à ideia,convictamente, que apesar de tudo ela era um ser humano.

Por isso, olhou para ela e disse:

- Pergunto-me por que razão deixou esse Joe Carlisle. Que tipo dehomem era ele? Costumavam discutir? A senhora odiava-o? Eleainda conseguia magoá-la assim tanto?

Surpreendida, ela olhou para ele com os lábios entreabertos e osolhos brilhantes. O marido começara a levantar-se e preparava-separa bater em alguém, e Mitch sabia em quem.

O tenente Prince ordenou:

- Sente-se, Maxwell - e disse a Mitch: - E o senhor, tenha tento nalíngua. Não me venha com análises de personagens nem encenemotivos.

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Enquanto não conseguir deitá-lo por terra, esta senhora tem umálibi, e tudo o que a justiça precisa é de provas.

- Então, e em relação às minhas razões para mentir? - perguntouMitch. - Dinheiro? Isso é ridículo! - Calou-se com o olhar fixo.Natalie Maxwell abrira a carteira e retirava um batom. Assassínio,prisão... e ela pintava os lábios. Difamação, chantagem... e elapintava os lábios. Quais seriam as probabilidades?

- Dê-me provas - disse o tenente irritado.

- É para já - respondeu Mitch, ao mesmo tempo que o seu coraçãoestremecia. Recostou-se. - Deixe-me continuar com a questão dodinheiro. Presumo que Natalie tenha tudo o que o dinheiro podecomprar. Tem tudo pago. Tem uma conta própria.

Maxwell disse:

- Vamos embora. Agora, ele está a delirar.

O tenente começou a empurrar a coxa de Mitch, dando-lhepequenos toques com o cotovelo para que se levantasse.

- Sabe o que consigo provar? - perguntou-lhe Mitch.

- O quê? - inquiriu o tenente.

- Que estive a trabalhar no meu apartamento durante todo aqueledia e na noite de dezasseis para dezassete de Março. Aquelasparedes são finas como cartão e eu sou um chato... bem conhecidono prédio.

- Então, o senhor esteve a trabalhar - disse o polícia. - E depois?

- Não estive em Santa Barbara - disse Mitch animadamente. Esticouo braço e levantou a carteira verde de Natalie que combinava comos sapatos.

- Ora, espere aí um momento - roncou Maxwell.

- Veja se ela aí tem o livro de cheques - disse Mitch, entregando acarteira ao tenente. - É volumoso. O nome dela está impresso nelese tudo. Julgo que não tenha muitas oportunidades de passarcheques. O primeiro ainda deve ser o mesmo.

O tenente segurava a carteira, mas parecia não estar a perceber oque se passava.

- Olhe para ele. É uma prova - disse Mitch.

As mãos do tenente moveram-se e Maxwell disse:

- Não me parece que tenha o direito... - contudo, as pálpebrascansadas do polícia elevaram-se, quase imperceptivelmente, eMaxwell calou-se.

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O tenente retirou um livro de cheques.

- É volumoso - disse ele. - A primeira data é 21 de Fevereiro. E daí?

Mitch Brown inclinou a cabeça na direcção da imitação de cabedalvermelho mas não baixou os olhos.

- Ninguém à face da terra... a menos que Natalie se lembre, o queduvido... mas mais ninguém no mundo sabe qual era o saldo do seulivro de cheques na manhã do dia de St. Patrick. Nem mesmo o seubanco podia saber. E se eu soubesse? Como podia eu sabê-lo?Porque espreitei enquanto ela dormia no meu sofá, porque tinha dedescobrir quem ela era para assim poder ajudá-la e ver se elaprecisava de dinheiro.

A mão do tenente folheou rapidamente os canhotos dos cheques.

- E então?

- Quer que eu lhe diga? Até ao último centime? - Mitch transpirava. -Quatro mil seiscentos e catorze dólares e sessenta e um centimes -disse ele devagar e cuidadosamente.

- Está certo - irrompeu o tenente, levantando os olhos muito abertose sinistros para Julius Maxwell.

Contudo, Mitch Brown não deu grande importância ao sucedido enão se sentiu triunfante.

- Natalie - disse ele -, lamento. Eu quis ajudá-la. Desconhecia asimplicações. Quem dera que me tivesse contado.

Os seus lábios acabados de pintar de vermelho tremiam.

- Não podia ter anulado as consequências - afirmou Mitch. - Teriachamado a polícia, mas tê-la-ia ouvido.

Natalie pousou a cabeça loura sobre a toalha vermelha axadrezadaonde já uma vez repousara.

- Eu não queria fazê-lo - soluçou ela -, mas o Joe não parava de meatormentar e cheguei a um ponto em que já não conseguiaaguentar mais.

Julius Maxwell, que estivera a reflectir sobre as provas, disse,embora tarde de mais:

- Cala-te!

O tenente dirigiu-se para o telefone.

Agora, Mitch permanecia sentado e em silêncio. A mulher chorava.Maxwell disse num tom frio e severo:

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- Natalie, se tu... - tentava evitar ser implicado. Começava a fingirque desconhecia o que se passara.

Ela, porém, gritou:

- Cala-te! Cala-te! Eu disse-te vezes sem conta e tu nem sequerquiseste ouvir. Dizias simplesmente para eu lhe dar mil dólares.Que com isso ele me deixava em paz. Disseste que era tudo o queele queria. Nem sequer querias saber aquilo por que eu estava apassar, e o Joe falava, falava sobre a nossa bebé que morrera... àfome, dizia ele, porque não tinha mãe. A minha bebé - gritou ela -,que tu não aceitaste, porque não era tua.

Agora, as suas unhas pintadas de cor-de-rosa fincavam-se-lhe nocrânio e os anéis que trazia nos dedos enleavam-se nos seuscabelos.

- Lamento - chorava ela. - Nunca foi minha intenção disparar apistola. Só queria que ele parasse. Já não aguentava mais. Eleestava a matar-me aos poucos... a enlouquecer-me... e o dinheironão o detinha.

Mitch sentiu pena dela.

- O que achava o senhor que era importante? - gritou ele paraMaxwell. - Passou-lhe pela cabeça que fossem as peles, osdiamantes... esse tipo de coisas?

- A criança morreu - disse Julius Maxwell - de causas naturais.

- Sim, ele pensava que eram as peles - gritou Natalie. - E, oh, meuDeus... era isso! Agora compreendo. Por isso disse que ia tratar doassunto... mas não pode fazer-me esquecer aquilo que eu sei, e sóme apetece morrer.

Depois, permaneceu em silêncio, como se já estivesse de factomorta, debruçada sobre a toalha vermelha axadrezada.

O rosto de Julius Maxwell empalideceu ainda mais quando o políciavoltou e murmurou:

- Temos que esperar.

Mas o tenente estava inquieto.

- Diga-me, Brown - disse ele -, como é que você consegue lembrar-se de uma sequência de seis números durante seis semanas? Vocêé um génio em matemática ou quê? Tem aquilo a que se chamamemória fotográfica?

Mitch sentiu o cérebro estimulado e disse em tom despreocupado:

- Ficou-me na cabeça. Primeiro, repete-se, quer ver? Quatro, seis,um; quatro, seis, um. Para mim, é uma soma exorbitante dedinheiro.

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- Para mim também - concordou o tenente. - Acho que toda a genteaqui presente ouviu o que ela disse.

- Claro que ouviram a sua confissão e a implicação dele comocúmplice. Olhe Toby, por exemplo. Foi forçado a fazê-lo. Haverámuitas provas.

O tenente reflectiu sobre a desonra dos Maxwell.

- Suponho que sim - disse ele com firmeza.

-Mais tarde, nessa mesma noite, Mitch Brown ficou até tarde numnovo bar.

- Ouça, sabe que o dia dezassete de Março não foi o dia em que St.Patrick nasceu? - perguntou ele ao empregado do bardesconhecido.

- Quem diria? - murmurou o empregado do bar educadamente.

- Não. Foi o dia em que ele morreu - afirmou Mitch. - É que euescrevo, sabe? Por isso, leio alguma coisa e retenho pequenasinformações como esta. Não tenho cabeça para números e, noentanto... Sabe em que ano St. Patrick morreu? Foi em 461.

- Ai sim? - retorquiu o empregado do bar.

- Fixe quatro e sessenta e um duas vezes e coloque o númerodecimal no sítio correcto. Claro que isso não é muito verosímil -disse Mitch -, apesar de aquilo ter mesmo acontecido... na manhãdo dia de St. Patrick. Como é que eu sabia o ano da morte dosanto, eu que nem sempre leio os jornais? Bem, uma pessoa nãoquer fazer figura de parvo, não é? E o provável é provável e oimprovável é improvável... mas por vezes é tudo de que dispomospara prosseguir. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa - Mitch deu ummurro no balcão. O dinheiro não o podia ter comprado.

O empregado do bar disse em voz suave e calma:

- Pelos vistos não, Mac.

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O Carmesim É o mais Importante

Dorothy (Salisbury Davis (1916), nascida em Chicago e diplomadapelo Sarat College, é sem dúvida uma personalidade de grandefôlego. Casada com o actor Harry Davis de 1946 até à morte desteem 1993, continua a dar o seu contributo para o mundo da escritapara o qual entrou há mais de meio século com o romance TheJudas Cat (1949). O seu trabalho mais recente faz parte daantologia Murder Among Friends (2OOO). Davis é, por si própria,uma personalidade invulgar no género do policial. Expressou já amágoa que sente por não ter sido capaz de criar uma personagemde série memorável, apesar de a Julie Hayes dos seus últimosromances se ter revelado uma tentativa bem-sucedida, e não gosta

nem de violência nem de crimes. [Uma das antologias que editoupara a Mystery Writers of America chama-se Crime Without Murder(1970).] No entanto, o seu entusiasmo confesso pelos vilões emdetrimento dos heróis também ajuda a explicar o seu sucesso comoficcionista. Entre os seus livros mais conhecidos contam-se oclássico regionalista The Clay Hand (1950), A Gentle Murderer(1951) que aborda um tema católico-romano e o grande sucesso devendas publicado em 1969, Where the Dark Streets Go.

Na introdução da sua colectânea Tales for a Storm Night (1984),Davis atribui à recém-falecida Margaret Manners, sua amiga ecompanheira de escrita de histórias de mistério, o método de roubode um quadro usado no texto candidato ao prémio Edgar, "OCarmesim é o Mais Importante". "Até me lembro do sítio ondeestávamos", escreveu Davis. "Foi na esquina da Sexta Avenida coma rua Vinte e Quatro, a poucos passos, naquele tempo, dorestaurante Guffanti." Apesar de ser indubitavelmente uma históriapolicial, o texto está imbuído das preocupações morais da autora e,pela sua qualidade, podia perfeitamente ter sido publicada narevista The New Yorker ou na Ellery Queen's Mystery Magazine.

Ao ler a história de Mary Gardner, provavelmente dirá que aconhecia ou que em tempos conheceu alguém como ela. E é bempossível que assim tenha sido, porque apesar de as mulheres doseu género não serem muito numerosas, a verdade é queperduram, por vezes contra a maioria instituída.

Encontrará Mary Gardner, ou alguém parecido com ela, nosconcertos sinfónicos, nas galerias de arte, nos teatros, sempre bemvestida, senão mesmo na moda, umas vezes sozinha, outras vezesna companhia de outras mulheres, todas elas com uma aura, nãode uniformidade, mas de reciprocidade. Cada uma delas construiupara si própria - bem, se não uma vida boa, pelo menos a melhorque estava ao seu alcance.

Nessa altura, Mary Gardner vivia numa grande cidade da CostaLeste. Tendo já passado dos 30 anos, era uma mulher alta e esguia,solteira, discretamente feminina, amável, até mesmo um pouco

irresoluta nos modos, mas determinada nos gostos. Mary eradesenhadora numa loja de papel de parede muito conhecida. O seusalário permitia-lhe comprar roupas de qualidade, viver sozinha numapartamento encantador, próximo do seu local de trabalho, e ir comregularidade ao teatro e aos concertos da Filarmónica. E tantoassistia a produções de grande sucesso como frequentava osteatros mais pequenos e as encenações experimentais. Não faziaparte daqueles que acreditavam que uma peça tinha de dizeralguma coisa. O que a interessava eram os "valores submersos".Este mesmo gosto prevalecia na abordagem

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que fazia às artes visuais, uma vantagem evidente no negócio dopapel de parede, cujos clientes preferiam, na sua maioria, que assuas paredes fossem vistas mas não ouvidas.

Naquele tempo, Mary tinha o hábito de aproveitar a sua hora doalmoço - ou, por vezes, quando precisava de se afastar daprancheta de desenho - para ir ao Instituto de Arte Moderna, situadoa menos de um quarteirão do seu escritório. Apaixonara-se por umpequeno Monet da primeira fase, intitulado Árvores Próximo doHavre, e quando Mary se apaixonava tornava-se uma pessoa dedevoção profunda. Quase diariamente descobria novas vozes napaisagem arborizada com as árvores e o céu reflectidos nas águascintilantes. O céu, achava ela, era mais profundo do que as águas.

Quanto mais reflectia sobre esta observação mais convencidaficava de que a galeria pendurara o quadro ao contrário.Desenvolveu uma teoria sobre a assinatura - fora feita à pressa peloautor, concluiu, muito tempo depois de ter acabado o quadro etalvez numa altura em que a luz do dia estaria a desvanecer-se.Teria falado sobre o assunto com um especialista de um museu, setivesse conhecido algum.

Mary obteve autorização do Instituto para fazer um esboço nopróprio local onde o quadro estava exposto, e muitas vezespermanecia de pé diante daquele Monet durante uma hora com oseu caderno de esboços na mão. Enquanto fazia alguns riscos nopapel, sentia-se conspicuamente inconspícua entre visitantes e

guardas. Nunca fora sua intenção copiar a pintura e sentia-sebastante irritada com os estudantes de arte que eventualmente ofizessem.

Estava tão absorta na contemplação da cena campestre de ClaudeMonet que na manhã do famoso incêndio do museu, quando sentiuo cheiro a queimado, pensou que este vinha do interior do próprioquadro. Ficou imediatamente furiosa, e, recorrendo a uma antigaassociação de ideias, acusou um único tipo de pessoas: odescuidado turista americano em terra estranha. Não estava muitolonge da verdade, todavia, embora não se tivesse apercebido deimediato que havia de facto um incêndio no edifício.

Algumas vozes deram o sinal de alarme nos corredores e, derepente, havia homens a correr de um lado para o outro. Osguardas arrastavam mangueiras vazias pelo chão e depoislargavam-nas, deixando-as ficar estendidas como grandes cobrasmirradas, por cima das

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quais as pessoas saltavam como num qualquer rito tribal. O fumoazul cobria o tecto e depois começou a descer em tiras peloscantos, como panos de cena que estivessem fora de posição. Aolonge soaram as sirenes dos bombeiros.

Mary Gardner observou as movimentações, calada e presa ao sítioonde se encontrava, enquanto homens e mulheres, visitantes comoela, passavam a correr transportando quadros emoldurados; e, numdos casos, dois homens carregavam um enorme Chagall com umacena nocturna em que as pequenas criaturas pareciam saltar paradentro e para fora da tela, deslocando-se em grande tumulto. Umamulher retirou o Rouault da parede, que estava ao lado do Monet eseguiu apressadamente os que transportavam o Chagall.

Mary ainda hesitou. Aquele dever moral devia impeli-la a tocar noque durante tanto tempo a consciência lhe proibira. O conflito fezaumentar a sua confusão. A invasão da sala por outro rolo de fumoimpôs claramente uma questão de sobrevivência: a do quadro e a

dela própria. Com uma prontidão movida pelo desespero, tentouretirar o Monet da parede, mas ele não cedeu.

Ela forçou-o, puxando com todas as suas forças... e uma tamanhaforça que quando o fio metálico se partiu, ela foi projectada paratrás e caiu em cima do banco para os visitantes, batendo com todaa força com a cabeça no quadro. Uma vez que a tela estavaajustada à moldura, o único problema - à parte o galo na cabeça, oque não tinha qualquer importância - foi que a tela se soltou damoldura. Nessa altura, porém, Mary já pouco se importava com amoldura. Agarrou na pintura, estreitou-a nos braços e procurouhesitante a porta de saída da galeria.

Chegou ao corredor cheio de fumo no exacto instante em que apressão da água restituía violentamente a vida às mangueiras.Irrompiam jactos de água de todas as ligações. Mary protegeu oquadro com o seu corpo até conseguir colocá-lo devagar ecuidadosamente no interior do impermeável que vestira naquelamanhã chuvosa.

Correu ao longo do corredor, sendo aparentemente o último dosvoluntários que se tinham prontificado a salvar os quadros. Osguardas guardavam aquela ala do edifício, fechando a porta corta-fogo. Mostraram estar pouco disponíveis para ouvir os seusprotestos, empurrando-a na direcção das escadas. Ao chegar àentrada, viu que a polícia

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formava um cordão forçando os civis a saírem. Tão autoritárioquanto impassível, um polícia acompanhou-a até ao meio damultidão, e uma vez aí, sem usar os braços - que continuavamcingidos em volta do quadro -, foi acotovelada e empurrada emdirecção à porta e depois impiedosamente atirada para a rua. Nopasseio não teve qualquer esperança de encontrar alguém no meiodaquela multidão ondulante e boquiaberta a quem pudesse confiaro seu tesouro artístico.

As pessoas gritavam e falavam alto, dizendo que conseguiam veras chamas. Mary não olhou para trás. Apressou-se a ir para casa,

caminhando orgulhosa mas furiosa, pensando que afinal a cidadeera uma selva. Apertou ainda mais o quadro de encontro ao seucorpo, tendo como única protecção o impermeável e pronta agarantir a sua segurança com a própria vida.

A primeira ideia que lhe passou pela cabeça foi telefonar para osescritórios do Instituto. Todavia, uma vez chegada ao apartamento,com o quadro apoiado nas almofadas do sofá, concluiu que até oincêndio estar extinto ela não conseguiria falar com ninguém.Telefonou para o escritório e alegou uma indisposição repentina...algo que comera ao almoço, ainda que não tivesse comido nada aseguir ao pequeno-almoço.

As paredes do seu apartamento estavam decoradas com aquilo aque ela chamava o seu "potpourri": reproduções e litografias acores... todas, tinha ela orgulho em dizer, edições limitadas ouobras assinadas. Por vezes, pensava em comprar alguns quadros,mas era evidente que não tinha recursos para adquirir os que eramdo seu agrado. Naquele momento, movida por um impulso, retirouda parede uma litografia italiana e extraiu-lhe o vidro e a moldura demadeira. O Monet ajustava-se mesmo bem. E para sua própriasatisfação, agora podia pendurá-lo direito, como devia ser. Comoque por vontade própria, a pintura reclamava aquele lugar na suaparede, muito favorecida pela luz do dia.

Não há palavras que descrevam o prazer sentido por Mary naquelatarde na sua companhia. Não tiraria os olhos do quadro, a não serpara sentir a alegria renovada que cada novo olhar lheproporcionava. Relutante, ligou o rádio às cinco horas para ouvir asnotícias sobre o incêndio no Instituto. Fora extenso e destruidor...toda uma ala do edifício fora consumida pelas chamas.

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Ouviu as notícias com a solicitude remota e de algum modopresunçosa de quem ouve as tragédias alheias até ao momento daenumeração dos quadros que haviam sido destruídos. A referênciaa Arvores Próximo do Havre espantou-a. Algum tempo depois,percebeu o significado explícito das palavras proferidas pelo locutor.

Desligou o rádio e permaneceu sentada durante muito tempo,mergulhada num silêncio profundo.

Depois, ensaiou em voz alta:

- És uma ladra, Mary Gardner - e alguns instantes depois repetiu: -Ai isso é que és, uma ladra.

Contudo, não se importou minimamente com isso. Nunca nada detão prodigioso havia sido dito sobre ela, nem mesmo por elaprópria.

Jantou num tabuleiro sentada em frente do quadro, acompanhandoa refeição com uma garrafa de vinho francês. Muitas vezes nessanoite fez o percurso do quarto até à porta da sala de estar atéadormecer profundamente entre tantos despertares.

Porém, as primeiras luzes da manhã despertaram a consciência deMary mais cedo, fazendo-a lembrar-se imediatamente do quadro.Depois de uma breve visita à sala de estar, organizou os seusplanos com o cuidado de uma noviça bem ciente da constância dodemónio. Vestiu-se de forma mais austera do que o habitual,recorrendo a um fato de padrão em espinha. Ao olhar-se ao espelhoda entrada para uma última apreciação do resultado, concluiu quese assemelhava a uma directora de uma escola feminina inglesa, oque, segundo ela, era uma aparência satisfatória para a tarefa quetinha pela frente.

Imediatamente antes de deixar o apartamento, usufruiu de umúltimo instante a sós com o Monet. Mais tarde, no entanto, onde ecomo o Instituto decidisse pendurá-lo, ela podia ter esperanças desentir que uma pequena parte dele era para sempre sua.

Já na rua, comprou um jornal e confirmou a inclusão de ÁrvoresPróximo do Havre na lista dos quadros desaparecidos. Apesardaquela ala do Instituto ter sido destruída, muitos dos seus quadrostinham sido levados para um local seguro através do corredor dosegundo andar.

Parte da rua em frente do Instituto ainda estava fechada com umcordão de segurança quando ela lá chegou, congestionando assim

o trânsito matutino. Os polícias de serviço não eram menos bruscosdo que os que Mary encontrara na véspera. Foi tomada peloimpulso

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de adiar a sua missão... uma tentação quase irresistível, sobretudoao ser impedida de entrar no museu a menos que mostrasse umpasse igual ao que fora distribuído a todas as pessoas autorizadas.

- Claro que não sou uma pessoa autorizada - exclamou ela. - Se ofosse não estaria cá fora.

O polícia encaminhou-a para o sargento de serviço. Naquelemomento, ele discutia com o representante da seguradora queparte da rua podia ser usada para a operação de rescaldo.

- A questão desta rua é mera rotina - disse o sargento -, e isso estáa meu cargo.

Mary aguardou até o homem da seguradora se dirigirpomposamente para a entrada do edifício, reparando que ele nãoprecisara de passe.

- Desculpe, senhor guarda, eu tenho um quadro...

- Minha senhora... - ele inspirou longamente para se encher depaciência. - Diga, minha senhora?

- Ontem, durante o incêndio, supostamente foi destruído umquadro... um pequeno Monet amoroso intitulado...

- Ah sim? - interrompeu o sargento. Na verdade, se havia algo que ocomovesse eram pequenos Monets amorosos.

Mary começava a irritar-se contra sua vontade.

- Consta de uma lista que vem no jornal da manhã como tendo sidodestruído, mas não foi. Eu tenho-o em minha casa.

Pela primeira vez, o polícia olhou para ela com uma certacompaixão.

- Na parede da sua sala de estar, certamente - disse ele com um arde profundo entendimento.

- Sim, na verdade é mesmo aí que está.

Ele agarrou-a pelo braço delicadamente mas com firmeza.

- Vou dizer-lhe o que deve fazer. Dirija-se à esquadra da polícia daRua 57. Sabe onde fica, não sabe? Porte-se bem e conte-lhes essahistória toda.

Empurrou-a para o meio da multidão e só aí a libertou. Depois,levantou a voz e ordenou: "Circulem, por favor! Vão ver tudo natelevisão."

Mary não tencionava ir à esquadra da polícia onde, presumia ela,era ainda menos provável que um grupo de homens preocupados

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com assaltos à mão armada, distúrbios e outras coisas piorescompreendesse a delicadeza do seu problema. Dirigiu-se para oseu escritório e, ao longo da manhã, tentou por várias vezestelefonar para o escritório do conservador do museu. Nas tentativasque fez, ou a ligação não era estabelecida ou a sua extensãoestava ocupada por mais tempo do que ela podia esperar.

Por fim, teve a ideia de telefonar para o departamento de RelaçõesPúblicas do Instituto. E quando conseguiu falar com alguém de lá,que estava obviamente desconcentrado - Mary conseguiu ouvirpartes de três conversas que ocorriam em simultâneo -, explicoucomo durante o incêndio conseguira salvar o quadro de MonetÁrvores Próximo do Havre.

- Próximo do quê, minha senhora? - perguntou a outra voz.

- Do Havre - soletrou Mary. - De Monet - acrescentou.

- São duas palavras ou uma? - perguntou a mesma voz.

- Por favor, passe a chamada para o escritório do conservador domuseu - pediu Mary, e deslizou os dedos ao longo da lapela docasaco do seu fato em padrão de espinha.

Mary achou que era uma precaução sensata encontrar-se com orepresentante do Instituto no átrio do seu prédio, onde lhe pediuprimeiro para ver o seu cartão. Ele identificou-se como o homem aquem ela dera o seu nome e morada ao telefone. Mary fez sinal nadirecção do elevador e reflectiu sobre a sua identificação: RobertAttlebury III. Vira o seu nome no plano da escala de serviço domuseu: Conservador de... não se lembrava do resto.

Cada centímetro dele correspondia à imagem de um conservadorde museu, muito direito e distante, enquanto o elevador os levavalentamente para cima. Talvez fosse o conservador do museu, masela não o consideraria um conhecedor. "Com uma cara e umaaparência destas só pode ser alguém a quem nada agrada", pensouela. Conseguia imaginar o seu menosprezo pelas coisas queconsiderava desagradáveis, e, instintivamente, apercebeu-se queela própria lhe desagradava.

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Não que lhe importasse de todo o que ele achava dela. Ela não eraninguém. Mas o que sentiria o jovem artista desconhecido ao ladoda sua obra diante de tamanha arrogância? Ou teria ele uma atitudediferente para com as pessoas do seu género? Nesse caso, elateria pago um preço elevado pela mais trivial das suas cortesias.

- Parece tudo tão extraordinário... retrospectivamente - disse Marypara quebrar o silêncio da sua subida, que parecia não ter fim.

- Que sorte a sua - disse ele, e Mary pensou que talvez fosse.Quando chegaram à porta do seu apartamento, ela fez uma pausa

antes de dar a volta à chave.

- O senhor não devia ter trazido um guarda... ou alguém? Elebaixou os olhos para ela como se estivesse no Olimpo.

- Eu sou alguém.

Mary resolveu não dizer mais nada. Abriu a porta e não a fechou.Ele seguiu-a e atravessou o vestíbulo entrando na sala de estar eparando diante do Monet. Estranhamente, a sua indelicadafranqueza confortou-a. Afinal, interessava-se pela pintura. Não

devia julgar os homens, concluiu, dada a pouca experiência quetinha em relação a eles.

Ele olhou fixamente para o Monet durante alguns instantes edepois, muito devagar, inclinou a cabeça ora para um lado ora parao outro. O coração de Mary começou a bater de forma irregular.Durante meses quisera falar com alguém que compreendesse defacto aquelas coisas e ouvisse a sua teoria sobre o que pertencia àreflexão e o que era a realidade em Árvores Próximo do Havre.Porém, agora que tinha essa oportunidade, faltavam-lhe as palavrasexactas.

Mesmo assim, tinha que dizer alguma coisa - alguma coisa...casual.

- A moldura é minha - disse ela -, mas para proteger o quadro podelevá-la. Posso trazê-la da próxima vez que for ao museu.

Surpreendentemente, ele riu-se.

- Isso pode ser o melhor de tudo isto - disse ele.

- Perdão?

Ele olhou directamente para ela.

- A sua história é engenhosa, minha senhora, mas só é justificadapela ocasião.

- Não compreendo de todo o que está a dizer - disse Mary.

- Tenho visto cópias melhores do que esta - afirmou ele. - É umapena a sua ingenuidade não combinar com uma melhor imitação.

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Mary estava demasiado atónita para falar. Ele preparava-se parasair.

- Mas... está assinado - explodiu Mary, e debilmente tentou dirigir asua atenção para o nome inscrito no canto superior.

- O que faz dele uma falsificação, não é? - retorquiu ele quasesolícito.

A sua meticulosidade, o seu sangue-frio perante as palavrashorríveis que proferia transformaram um pormenor num pesadelo.

- O problema não é meu! - gritou Mary, dizendo coisas que nãoqueria dizer, dizendo aquilo que para ela era uma traiçãorelativamente à pintura de que tanto gostava.

- Mas claro que é. Na verdade é, e posso garantir-lhe que teria umgrande problema se eu fosse avante com o assunto.

- Nesse caso, faça o favor de ir avante com o assunto! - gritou Mary.

Ele esboçou de novo um ligeiro sorriso.

- Essa não é a forma como o Instituto lida com estas coisas.

- O senhor não gosta de Monet - desafiou-o Marydesesperadamente, porque ele começara a encaminhar-se para aporta.

- Não é propriamente isso que está em questão, não é verdade?

- O senhor não conhece Monet. Não pode conhecer! É impossível!

- Como poderia eu não gostar dele se não o conhecesse? Deixe-meque lhe diga uma coisa sobre Monet - virou-se de novo para oquadro e arrastou um dedo sobre uma zona de tonalidades maisvivas. - Em Monet o carmesim é o mais importante.

- O carmesim? - perguntou Mary.

- Agora começa a compreender, não é? - O tom da sua voz roçouos limites da entoação pedagógica.

Mary fechou os olhos e disse:

- Eu só sei como é que este quadro aqui chegou.

- Prefiro mil vezes não ser seu confidente em relação a essaquestão - disse ele. - Agora tenho assuntos bem mais importantes atratar.

E uma vez mais tomou a direcção da porta. Mary apressou-se abloquear-lhe a passagem.

- Não importa o que o senhor pensa de Monet, ou de mim, ou sejalá do que for. O senhor tem que levar este quadro novamente parao museu.

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- E ser objecto de chacota quando o logro for descoberto? Colocouum braço tão rígido como um escudo de ferro entre

eles e saiu do apartamento.

Mary seguiu-o até ao elevador, agora completamente fora de si.

- Eu vou para os jornais! - gritou ela.

- Julgo que irá arrepender-se disso.

- Agora já percebo. Compreendo! - Mary viu a porta do elevadorabrir-se. - O senhor ficou satisfeito por saber que o Monet tinha sidodestruído pelo fogo.

- Selvagem! - disse ele.

Depois, a porta fechou-se entre os dois.

Com o passar do tempo, Mary conseguiu convencer - e não foi fácil- alguns especialistas, até mesmo um crítico de arte, a irem ao seuapartamento para verem "o seu" Monet. Era um empreendimentomais dispendioso do que ela podia comportar - todos eles pareciamestar à espera de aperitivos, incluindo bebidas alcoólicas caras. Osseus amigos alinharam no "embuste de Mary", conforme eraconhecida a sua história, e ela passou a ser muito admirada numcírculo cada vez mais esotérico e alargado que se juntava para aouvir contar em tom decidido como lhe chegara às mãos um "Monetgenuíno". Apesar da virtude da simplicidade, uma característica deinfância, deu por si a usar palavras em combinações simbólicas - alinguagem das companhias que ela agora tinha - enquanto pessoasmuito mais conhecedoras se referiam a ela, dizendo: "Queperspicácia!" ou "Que discernimento!"... e depois serviam-se demais uma bebida.

Um dia, o seu patrão, um homem excelente, que antes da sua"aquisição" não sabia se ela vivia no respeito pela moral e os bons

costumes ou em pecado, chegou ao seu apartamento à hora dococktail trazendo consigo um famoso historiador de arte.

O especialista sorriu satisfeito para o seu segundo whisky, enquantoMary voltava a contar a história do incêndio no Instituto e de comosimplesmente viera a pé para casa com o quadro por não terencontrado

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ninguém a quem o pudesse entregar. Enquanto falava, os seusolhos conhecedores vagueavam entre o rosto dela, o quadro, o seucopo, novamente o quadro, voltando a deter-se no seu rosto.

- Oh, eu consigo acreditar nisto - disse ele quando ela terminou. - Éo tipo de aventura maluca que de facto pode acontecer. - pousoucuidadosamente o copo num sítio onde ela pudesse ver que estavavazio. - Deduzo que saiba que nunca houve um catálogo completoda obra de Monet?

- Não - disse ela, e voltou a encher-lhe o copo.

- Pois assim é, infelizmente. E a triste verdade é que muitos museusestão hoje a expor quadros com o seu nome que não estão de factoautenticados.

- E o meu? - perguntou Mary, levantando o queixo que se esforçavaem vão por impedir que tremesse.

O seu convidado sorriu.

- A senhora tem mesmo que saber?

Algum tempo depois disto, Mary tentou evitar olhar para o Monet.Não que gostasse menos dele, mas agora em certa medida gostavamenos de si na companhia dele. O que acontecera, compreenderaela, fora que, à semelhança dos especialistas, ela agora não via apintura, mas sim a si própria.

Era uma autodescoberta extraordinária para alguém que nuncativera de lidar seriamente com a sua própria psique. Até então, paraMary, a principal função de um espelho era determinar o ângulo deum chapéu. A descoberta da imperfeição, porém, não tinha como

consequência em si mesma a cura; agravando muitas vezes aprópria condição. O mesmo se passava com Mary.

Passava cada vez menos tempo em casa, e constava entre algunsdos seus recentes amigos que eles pensavam ser simplesmentejusto retribuírem-lhe a hospitalidade de uma anfitriã tãoenigmaticamente inteligente, e que eles tanto tinham apreciado.Quantas vezes, na sua juventude, ela fora aconselhada pelos pais eprofessores a sair mais, a encontrar-se com mais pessoas. Bem,finalmente, Mary estava a sair mais. E ia a casa das pessoas quese sentiam à vontade para fazerem comentários sobre a sua casa eas suas coisas, sentindo-se também ela livre para fazercomentários semelhantes. Quanto mais estranho fosse O seucomentário - quanto mais maldoso, chegou ela a dizer em certa

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ocasião - mais popular ela se tornava. Ah, sim. Mary estava aencontrar-se com mais pessoas, muito mais pessoas.

Na verdade, o seu agente de seguros - que tinha o hábito deaparecer sem avisar para efectuar a cobrança trimestral - tivera dese levantar cedo num sábado para ter a certeza que a apanhariaem casa.

Era um dia claro e quente, e aquela era a hora em que o Monetestava mais luminoso. O homem sentou-se contemplando-o,fascinado. Mary estava divertida, lembrando-se de como ele ficavasempre magoado pelo facto de os clientes nunca dependurarem ocalendário da sua companhia de seguros em local visível. Enquantoela saiu da sala para ir buscar o livro de cheques, ele levantou-se etocou na superfície da pintura.

- Nunca pensou segurar este quadro? - perguntou-lhe quando elavoltou a entrar na sala. - Posso perguntar-lhe qual é o seu valor?

- Foi... muito caro - disse Mary, e ambos sentiram imediatamenteum certo desconforto.

- Sabe uma coisa - disse o agente -, tenho um amigo que fazavaliações destes objectos de arte para algumas das melhores

galerias. Importa-se que eu o traga cá para ver quanto é que eleacha que este quadro vale?

- Não, não me importo - disse Mary com uma resignação absoluta.E foi assim que o avaliador foi ao seu apartamento e observoucuidadosamente a pintura. Hesitou antes de se decidir por um valor.Não tinha a última palavra sobre estes Impressionistas do século xixe queria reflectir sobre o assunto. No entanto, naquela mesmatarde, voltou quando Mary se preparava para sair, acompanhadopor um senhor de barba que nem uma única vez se dirigiu a Maryou ao avaliador, embora falasse constantemente sozinho enquantoexaminava minuciosamente a pintura. Depois, soltando brevesexclamações, retirou o quadro da parede, examinou-o por trás evoltou a pendurá-lo... mas de pernas para o ar.

Mary sentiu aquela antiga agitação alterar-lhe as pulsações, masestas rapidamente voltaram ao normal.

Nem mesmo ao sair o senhor de barba falou com ela. Era como seela fosse invisível. Foi o avaliador que murmurou osagradecimentos, mas ela não ouviu nem uma palavraesclarecedora. Como o

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perito não bebera o seu whisky, Mary deduziu que ele não davaimportância a cortesias do género.

Estava preparada para o esquecer como acontecera com osoutros... agora era fácil esquecê-los a todos. Contudo, ao voltar acasa para mudar de roupa entre uma marine e um cocktail,encontrou outra visita à sua espera. Viu-o na entrada do prédio e,ao ver o porteiro dizer-lhe qualquer coisa enquanto ela fechava aporta do elevador, percebeu que o assunto era com ela. A viagemseguinte do elevador levou-o até à sua porta.

- Venho por causa do quadro, Miss Gardner - disse ele, oferecendo-lhe o seu cartão. Ela abrira a porta apenas até onde a corrente lhepermitia. Vinha como representante da Continental AssuranceCompany, Limited.

Ela fez deslizar a lingueta da corrente.

Cortês e formal no seu fato assertoado, aguardou que Mary sesentasse primeiro. Depois, imitou-a com movimentos elegantescolocando-se diante dela, de frente para o quadro, já que ela sesentara por baixo dele, direita e, esperava ela, espantosa.

- Que maravilha - disse ele, olhando fixamente para o Monet.Depois, forçou-se a afastar os olhos do quadro. - Mas eu não souespecialista - acrescentou, e, delicadamente, clareou a garganta."Sente-se contrariado", pensou ela, "por se ter permitido sequeruma breve manifestação de sentimentos."

- Mas o senhor é uma pessoa autorizada?

Fez esta observação no tom em que outrora teria pensado mas nãoverbalizado a expressão "Devia ter vergonha!".

- O suficiente para as exigências da minha companhia - disse ele. -Mas não me interprete mal... nós não estamos a propor que se façanenhum inquérito. Em negociações delicadas como esta, ficamossempre satisfeitos apenas por recuperarmos as pinturas.

Mary não interpretara mal, mas sem dúvida que também não estavaa perceber o que ele queria.

Ele retirou de um bolso interior do casaco um pedaço de papel quecolocou em cima da mesa de café, e com os dedos esguios de umartista - ou de um banqueiro... ou de um carteirista - manuseou-odelicadamente até Mary conseguir ver que estava a oferecer-lhe umcheque autenticado.

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Não olhou para ela, não vendo por isso o espasmo que lhecontorceu a boca. "No dia do incêndio", pensou ela, mas aspalavras nunca chegaram a transpor os seus lábios.

Agarrou no cheque: vinte mil dólares.

- Posso usar o seu telefone, Miss Gardner?

Mary anuiu com a cabeça e dirigiu-se à cozinha onde voltou a olharpara o cheque. "É uma quantia muito elevada", pensou elaperversamente, "para ser oferecida por ter tomado conta de umamigo durante alguns meses."

Ouviu a voz do seu visitante enquanto falava ao telefone... agoraparecia um entendido a avaliar pelo tom da sua voz. Alguns minutosdepois, ouviu a porta da entrada fechar-se. Quando voltou a entrarna sala, tanto o seu visitante como o Monet tinham desaparecido...

Algum tempo depois, Mary assistiu à abertura da nova ala doInstituto. Reconheceu muitas das pessoas que antes não conheciae com quem, julgava ela, provavelmente não voltaria a encontrar-sepor muito mais tempo.

Tinham voltado a pendurar o Monet de pernas para o ar.

Mary pensou naquilo ao chegar a casa, e como duas acções certasdevem certamente corrigir um possível erro, virou o cheque aocontrário enquanto o queimava dentro do lava-loiça na cozinha.

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Dinheiro para Queimar

Margery Allingham (1904-1966) foi um prodígio literário que viu oseu primeiro romance, uma aventura de capa e espada intituladaBlackkcrehieí Dick (1923), ser publicado pelas maiores editorasamericanas e inglesas quando ela era ainda uma adolescente. Aautora londrina, que descendia de uma família ligada à literatura,fez a sua aprendizagem como escritora de ficção para revistasantes de se tornar uma das figuras chave da Idade de Ouro daInvestigação no período entre guerras. O seu primeiro romance demistério, The White Cottage Mystery (1928), antecipou a técnica dosuspeito mais improvável, mais tarde usada por Ellery Queen eAgatha Christie, e o seu segundo romance, The Crime at BlackDudley (1929), introduziu o inconspícuo e discreto Albert Campion,um dos mais famosos detectives aristocratas do seu tempo e, comalgum sangue real a correr-lhe nas veias, talvez o mais bemnascido socialmente. À semelhança do detective aristocrata deDorothy L. ôayers, lorde Peter Wimsey, Campion desenvolveu a

personagem gradualmente, que passou de uma caricaturasemicómica "idiota" a uma personagem perfeita.

Entre os escritores de policiais da Idade de Ouro, algumas (comoAgatha Christie e Ngaio Marsh) ficaram presas à pura fórmulanovelesca do policial durante décadas a fio, outros (como ôayers eAnthony Berkeley) trocaram-na por outros tipos de escrita ousimplesmente retiraram-se, e poucos (como a equipa de ElleryQueen), mantendo-se fiéis ao formato base, aprofundaram a análisedas personagens e dos temas. Alligham, cujo entendimento dospontos fracos do ser humano e cujas perspicazes observações decarácter social eram sempre manifestas, pertence a este terceirogrupo. Embora a personagem de Campion esteja presente ao longoda maior parte da sua carreira, os seus romances do pós-guerraatribuíram menos importância ao enigma formal, e nalgunsCampion chegou até a ser relegado para segundo plano. (Campionconheceu a notoriedade apenas depois da morte da sua criadoraem dois romances escritos pelo seu marido e colaboradorocasional, Philip Youngman Cárter.) Dos primeiros romances deAllingham, Death of a Ghost (1934) e The Fashion in Shrouds(1938) são muitas vezes citados como pontos altos; do grupo deobras do pós-guerra, The Tiger in the Smoke (1952), com a suaanálise inabalável da maldade pura, é considerado um clássico doromance policial.

É compreensível que Allingham, com o seu conhecimento dacomplexidade do carácter humano, tivesse escrito Dinheiro paraQueimar, uma história de

1957, da qual Campion está ausente e que representa o mais rarodos subtipos do policial: o puro whydunnit.

Alguma vez viram um homem queimar dinheiro? Dinheiroverdadeiro, usá-lo como fósforo para acender um cigarro, por puroexibicionismo? Eu já. E é por isso que ainda hoje, quando ouço apalavra "psicólogo", sinto um nó no estômago e um súbito aperto nagarganta. Talvez pensem que sou demasiado susceptível.Pergunto-me se assim será.

Nasci nesta rua. Em criança frequentei a escola que ficava mesmoao virar da esquina, e, mais tarde, depois de ter feito a minhaaprendizagem nas grandes casas de costura aqui e em França,renovei o arrendamento desta casa antiga e transformei-a na bonitalojinha de roupa de senhora que conhecem hoje. Foi quandoregressei para iniciar o meu negócio que reparei na mudança quese operara em Louise.

Quando íamos juntas para a escola, ela era muito bonita. Tinhacabelo louro e o sorriso rasgado e espertalhão típico das criançascockney. Todos os miúdos costumavam meter-se com ela, porqueera mais bonita do que nós. A rua continua exactamente como eranaquela altura. Adelaide Street, Soho: pobre e suja, e, no entanto,romântica, onde todas as entradas a todo o seu comprimentodesgarrado conduziam a um restaurante. Aqui pode comer-se emtodas as línguas do mundo. Alguns sítios são tão caros como o Ritze outros tão baratos como o Lê Coq au Vin, que pertence ao pai daLouise, com a sua sala de jantar e a sua palmeira solitária colocadaà entrada na selha caiada de branco.

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Louise tinha uma irmã mais nova e um pai que mal falava inglês,mas que olhava para as pessoas com uns olhos de estrangeiroorgulhoso sob umas sobrancelhas arqueadas. Eu não sabia que elatinha mãe até ao dia em que aquela mulher grisalha emergiu dacave, situada por baixo do restaurante, para mostrar firmeza, e emvez de Louise ir comigo usufruir da magia das lojas, teve de descerpara as cozinhas de Lê Coq au Vin.

Durante muito tempo ainda trocámos cartões de parabéns, masdepois até esse contacto se perdeu. Porém, de alguma forma, eununca me esqueci de Louise, e quando regressei a esta rua fiqueisatisfeita por ver que o nome Frosné ainda continuava por baixo doletreiro de Lê Coq au Vin. Aquele local parecia muito mais claro doque eu me lembrava e pareceu-me ter bastantes clientes. Claro quejá não sofriam tanto com a comparação com o dispendioso GlassMountain, que Adelbert tinha em frente. Hoje em dia já não hánenhum restaurante com esse nome nesta rua, nem existe nenhum

proprietário de restaurante chamado Adelbert, mas os clientes de háuns anos atrás talvez o recordem... se não pelos seus pratos, pelomenos pela sua presunção e pelos dois rolos brancos de gorduraque eram as suas pálpebras.

Entrei para ir ver Louise assim que me foi possível. Foi um choque,porque mal a reconheci. Porém, ela reconheceu-me imediatamentee saiu de trás da mesa onde estava a caixa registadora para me daras boas-vindas num jeito patético. Foi como se visse uma finacamada de gelo estalar por todo o seu rosto... como se, ao apanhá-la desprevenida, eu tivesse derrubado uma barreira.

Nos primeiros dez minutos, ouvi todas as novidades. Os doisvelhotes tinham morrido. A mãe morrera primeiro, mas o velhote sóa seguira alguns anos depois, e, entretanto, Louise tomara conta detudo, inclusivamente dos caprichos dele. Todavia, ela não sequeixava. Agora, as coisas estavam um pouco mais facilitadas.Violetta, a irmã mais nova, tinha um jovem interessado nela queprovava o seu valor trabalhando ali por uma ninharia e iaaprendendo o negócio.

Era uma história com um final feliz, mas pensei que Louise pagarabem caro por ela. Era um ano mais nova do que eu, contudo tinha oar de quem sente que a vida já terminou para ela, deixando-ainsensível e luzidia como um osso ao sol. O dourado dos cabelos

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desaparecera e até mesmo as suas pestanas longas pareciamesbranquiçadas e cor de estopa. Havia nela ainda outra coisa. Algoque eu captara, mas não conseguia compreender de maneiranenhuma.

Depressa adquiri o hábito de lá ir jantar com ela uma vez porsemana, e durante estas pequenas refeições ela costumava falar.Era evidente que nunca abrira a boca para falar de nenhumaquestão pessoal a outra pessoa, mas por uma qualquer razãoconfiava em mim. Mesmo assim, levei meses para descobrir o quese passava com ela. Quando mo contou, pareceu-me óbvio.

Lê Coq au Vin tinha uma dívida pendente. No tempo da MamãFrosné, a família nunca tivera um chavo, mas no período de cercade um ano que decorrera entre a sua morte e a dele, o Papá Frosnéacabara não só por pedir emprestadas cerca de quatro mil libras aAdelbert, do Glass Mountain, como também por perder todo odinheiro em meia-dúzia de esquemazecos senis.

Louise estava a devolver o dinheiro em prestações de quinhentaslibras. A primeira vez que ela me contou isto, eu olhei de relancepara os seus olhos e vi neles uma espécie de inferno interior.Sempre me parecera que há pessoas que conseguem ficar emDívida da mesma forma que alguns homens conseguem aguentar aBebida. Pode minar as suas constituições, mas não os tornavisivelmente andrajosos. Contudo, para outros, a Dívida é algoinqualificável. De certeza que o Diabo só podia estar a receber osjuros do dinheiro de Louise.

Claro que não argumentei com ela. Não me cabia fazê-lo. Fiquei alisentada manifestando a minha solidariedade para com ela até queme surpreendeu ao dizer de repente:

- Não é tanto o trabalho e a preocupação, nem tão-pouco asquantias pequenas que eu mais odeio, mas a hedionda cerimóniaquando tenho que lhe pagar. Fico apavorada com aquilo.

- És demasiado sensível - disse-lhe eu. - Uma vez que tens odinheiro no banco, podes pôr um cheque num envelope, enviar-lhopelo correio e esquecer o assunto, não é?

Ela olhou-me de relance com uma expressão estranha nos olhosquase cor de chumbo por entre as pestanas descoloradas.

- Não conheces Adelbert - disse ela. - Ele é um exemplar muitoestranho. Tenho que lhe pagar em dinheiro e ele gosta de fazer umaencenaçãozinha durante o pagamento. Vem aqui com encontromarcado,

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toma uma bebida e gosta de ter Violetta como testemunha à laia depúblico. Se eu não lhe mostro que estou um bocadinho aborrecida,

ele continua a falar até eu o demonstrar. Acha-se um psicólogo... dizque sabe tudo aquilo que eu estou a pensar.

- Eu não lhe chamaria isso - disse-lhe eu. Estava indignada.Detestava aquele tipo de coisas. Louise hesitou.

- Vi-o queimar a maior parte do dinheiro só para ver o efeito queisso tinha em mim - admitiu ela. - Ali, à minha frente.

Senti as sobrancelhas subirem-me até ao cabelo.

- Não podes estar a falar a sério! - exclamei. - O homem não estábom da cabeça.

Ela suspirou e eu fitei-a com toda a atenção.

- Ora, ele tem mais vinte anos do que tu, Louise - comecei. - Decerteza que nunca houve nada entre vocês? Nada... percebes?

- Não, não, não houve, Ellie, palavra.

Acreditei nela... ela estava a ser muito franca em relação a isso, eobviamente estava tão confusa como eu.

- Uma vez, quando eu ainda era uma criança, ele falou com o Papásobre mim. Pediu-lhe formalmente a minha mão, sabes, como aindafaziam por aqui naquele tempo. Eu nunca soube o que o velhote lhedisse, mas ele nunca falou com modos elegantes, pois não? Tudodo que me recordo é que me mantiveram lá em baixo fora da vistade toda a gente durante algum tempo e depois a Mamã tratou-mecomo se eu andasse a tramar alguma. Mas eu nunca sequer falaracom esse homem... ele não era o tipo de pessoa em quem umarapariga reparava, pois não? Mas, isto foi há muitos anos. Acho queAdelbert podia ter-se lembrado disto durante todos estes anos...mas não seria razoável, pois não?

- Essa é a única coisa que de certeza ele não é - disse-lhe eu. - Dapróxima vez, serei eu a testemunha.

- Adelbert havia de gostar - disse Louise de modo sinistro. - Não seise não é isso que vou fazer. Devias vê-lo!

Abandonámos aquele assunto, mas eu não conseguia esquecê-lo.Via-os aos dois por detrás das cortinas da janela da minha loja eparecia que sempre que olhava, lá estava a mulher calada e delábios cerrados a ganhar com dificuldade todos os tostões e láestava o

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homem gordo a observá-la à porta de casa, do outro lado da rua,com uma satisfação secreta estampada no seu rosto lívido.

Acabei por ficar irritada, e quando isso acontece tenho que falar...não consigo evitar.

Não havia ninguém naquela rua com quem eu conseguisse manterconversas frívolas, mas referi a história a uma cliente. Tratava-se deuma mulher chamada Mrs. Marten, de quem eu gostara emparticular mal ela entrara na minha loja para me fazer perguntasacerca do primeiro vestido que eu pusera na montra. Fazia-lhe amaioria dos vestidos e ela recomendara-me a uma ou duassenhoras do bairro onde morava, que era Hampstead, bem longedo Soho. Um dia, estava eu a fazer-lhe uma prova quando ela dissequalquer coisa sobre os homens e as coisas que eles se dignamfazer quando o seu orgulho é ferido, e antes de me perceber do queestava a fazer, falei-lhe na história que Louise me contara. Claroque não referi nomes, mas devo ter confessado que tudo sepassava naquela mesma rua. Mrs. Marten tinha uma alma bondosae amável e um rosto doce, e ficou chocada.

- Mas que horror - não parava de dizer -, que coisa perfeitamentehorrível! Queimar o dinheiro à sua frente, depois de ela trabalhartanto para o ganhar. Ele deve ser doido varrido e perigoso.

- Bem - disse eu apressadamente -, quando ele o faz, o dinheiro jálhe pertence, e não creio que destrua grandes quantias. Apenas osuficiente para transtornar a minha amiga.

Eu estava arrependida por lhe ter falado no assunto. Não esperavaque Mrs. Marten ficasse tão horrorizada.

- Isso mostra-nos simplesmente como vivem outras pessoasrematei e tive esperança que ela deixasse de falar no assunto.

Ela, porém, não o fez. A ideia parecia fasciná-la ainda mais do quea mim. Não conseguia fazer com que ela passasse a outro assunto,e tagarelou sobre aquilo durante toda a prova. Depois, no precisomomento em que punha o chapéu e se preparava para sair, dissede repente:

- Miss Kaye, estive a pensar. Ò meu cunhado é comissário-adjuntona Scotland Yard. Talvez ele se lembre de alguma maneira de fazercom que esse homem horrível deixe de torturar essa pobre senhorade quem me falou. Quer que lhe fale no assunto?

- Oh, não! Peço-lhe, não! - exclamei. - Ela nunca me perdoaria. Nãohá nada que a polícia possa fazer para a ajudar. Espero que me

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desculpe por dizer isto, minha senhora, mas peço-lhe que não façanada disso.

Pareceu-me que ela ficara bastante magoada, mas deu-me a suapalavra. Naturalmente que não acreditei nela. Quando uma mulherpõe a hipótese de falar sobre uma coisa, é certinho que o fará.Fiquei muito aborrecida durante um ou dois dias, porque a últimacoisa que queria era envolver-me, mas nada aconteceu e comecei asentir-me novamente descontraída até ao dia em que tive de ir aoVaughan, a grande loja de venda de acessórios por atacado nastraseiras da Regent's Street. Vinha a sair com os meus embrulhosquando um homem me abordou. Percebi que ele era detective,porque tinha todo o ar disso. Tinha um corte de cabelo muito curto,um impermeável castanho e aquele ar de quem tem uma actividadefixa e no entanto não está ligado a nada em particular. Pediu-meque o acompanhasse ao seu escritório, acrescentando que não mepodia recusar a ir. Percebi que fora seguida por ele até estarsuficientemente distante de Adelaide Street onde ninguém podiareparar na sua aproximação.

Levou-me até junto do seu superior, que era um tipo com umaaparência bastante simpática... ao contrário de todos os outros,

como é habitual na polícia. Fiquei com a sensação que era honesto,o que não se pode dizer de certas pessoas. Ele apresentou-secomo sendo o inspector Cumberland, mandou-me sentar e pediuque me trouxessem uma taça de chá. Depois, fez-me perguntassobre Louise.

Entrei em pânico, porque quando se tem um negócio em AdelaideStreet, tem-se de facto um negócio, e a última coisa que devemosfazer é meter-nos em sarilhos com os nossos vizinhos. Neguei tudo,claro, insistindo que mal conhecia aquela mulher.

Cumberland não engoliu aquilo. Devo dizer que ele sabia como lidarcomigo. Deixou que eu deambulasse pelos meus assuntos até lheestar grata por poder falar sobre outra coisa qualquer. No fim, cedi,porque, afinal de contas, ninguém estava a cometer nenhum crime,tanto quanto eu conseguia perceber. Contei-lhe tudo o que sabia,deixando-o esmiuçar cada ponto, e quando cheguei ao fim ele riu-se de mim, fitou-me atentamente com os pequenos olhos brilhantessob as sobrancelhas tão espessas como o pêlo prateado de umaraposa.

- Bem - disse ele -, não é assim tão difícil, pois não?

- Não - respondi-lhe aborrecida. Ele fizera-me sentir uma tola-

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Suspirou e reclinou-se na cadeira.

- Vá-se embora e esqueça esta conversazinha - disse-me ele.Porém, justamente para que não comece a imaginar coisas, deixe-me que lhe diga uma coisa. De certa forma, a polícia tambémfunciona em termos de negócio. No seu próprio ramo, claro, equando um oficial na minha posição inicia um inquérito que lhe foientregue a partir de cima, tem que o investigar, não é? Ele bempode pensar que o crime de destruir notas... "estragar a moeda doreino", como lhe chamamos... não é muito sério, comparado comalgumas das coisas com que tem que lidar, mas, mesmo assim, selhe fizerem perguntas sobre isso, ele tem que mostrar algumamovimentação e apresentar um qualquer tipo de relatório. Só então,tudo pode ser... eh... arquivado e esquecido, não é?

- Sim - concordei, bastante aliviada. - Sim, julgo que sim.Acompanharam-me até à saída, e aquele pareceu-me ser o final

da história. No entanto, aprendi a lição, e nunca mais voltei a abrir aboca sobre o assunto com ninguém. Chegou mesmo a afastar-mede Louise, e, durante algum tempo, evitei-a. Inventei desculpas enão voltei a ir jantar com ela. No entanto, continuava a vê-la pelajanela... via-a sentada na mesa da caixa registadora, e também viaAdelbert a observá-la da porta de casa.

Durante um ou dois meses tudo correu sem sobressaltos. Depois,constou-me que o namorado de Violetta se tinha cansado do ramoda restauração e arranjara outro emprego no Norte. Ele propusera àrapariga casarem-se e levá-la com ele, e partiram quase sem sedespedirem. Tive pena de Louise, por a deixarem sozinha daquelaforma; por isso, tive de ir ter com ela.

Ela estava a encarar aquilo muito bem... na verdade, tinha muitasorte, porque arranjara outro empregado quase de imediato e arapariga que era o seu braço direito na cozinha tinha ficado ao seulado e estavam a conseguir dar muito boa conta do recado. Noentanto, Louise estava muito sozinha, por isso readquiri o hábito delá ir uma vez por semana tomar uma refeição. Eu pagava, claro,mas ela costumava sentar-se na minha mesa e comer comigo.

Evitava falar-lhe no assunto de Adelbert, mas um dia, em plenoVerão, na data de pagamento das rendas trimestrais ela referiu-se aele abertamente e perguntou-me directamente se eu me lembrava

que lhe prometera servir de testemunha no dia do pagamentoseguinte. Uma vez que Violetta partira, ela falara de mim a Adelberte ele parecera ter ficado satisfeito com a sugestão.

Bem, eu não podia escapar-me sem ferir os sentimentos dela e umavez que nada parecia contrariá-lo, concordei. Não digo que nãoestivesse curiosa. Tanto quanto me era dado perceber, aquele eraum caso de amor, sem amor de nenhum tipo.

O momento do pagamento foi marcado para meia hora depois dahora do fecho, no dia de S. João, e, quando saí para a rua e medirigi para a esquina, vi os estores de Lê Coq au Vin corridos e a

porta fechada. O novo empregado estava a apanhar ar nos degrausda cave e deixou-me entrar pelas cozinhas. Subi as escadas deserviço às escuras e encontrei os dois já ali sentados à minhaespera.

A sala de jantar estava praticamente às escuras, tenuamenteiluminada apenas por uma lâmpada fraca colocada por cima damesa do canto onde ambos se encontravam. Olhei bem para elesenquanto caminhava pela sala. Faziam um par extraordinário.

Já alguma vez viram um daqueles deuses chineses pequenos egordos que as pessoas colocam sobre as prateleiras dos seusfogões para lhes trazerem sorte? É suposto estarem todos a rir,mas só alguns o fingem, e as pregas dos seus rostos chineses sãoseveras e impiedosas em todas as linhas ascendentes. Adelbertlembrava-me um deles. Sempre usara um smoking preto paratrabalhar, mas como era muito magro ficava-lhe muito folgado.Ocorreu-me que quando o tirava devia parecer um vestido. Estavasentado envolto nele, parecendo atarracado e sem energia,contrastando com os painéis brancos da parede.

Por seu lado, Louise, no seu vestido preto e no seu justo casacocurto de lã preta, era tão seca e firme como um ramo seco. Porinstantes, apercebi-me de como ela estaria a pô-lo furioso por nãose mostrar dócil nem receosa. Ela não dava mais do que aquilo queera obrigada... nem um milímetro a mais. Nunca na vida conhecininguém tão resoluto. Enfrentou-o todo o tempo.

Havia uma garrafa de Dubonnet em cima da mesa e um pequenocopo em frente de cada um. Quando apareci, Louise tambémencheu um para mim.

Toda a representação foi muito formal. Apesar de ambos sempreterem vivido em Londres, o sangue francês que lhes corria nasveias

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era bem notório. Ambos me apertaram a mão e Adalbert afastouuma cadeira com o pé para eu me sentar, simulando apenas que ialevantar-se.

Louise tinha o grande envelope do banco na sua mala preta, queembalava nos braços como se fosse um animal de estimação, e,mal dei um pequeno trago na minha bebida, ela mostrou o envelopee empurrou-o por cima da mesa na direcção do homem.

- Quinhentos - disse ela. - O recibo está aí dentro, já pronto. Faça ofavor de o assinar.

Estava tudo correcto, sabem, mas o ambiente era de cortar à faca.Ela odiava-o e ele recebia o que lhe era devido e nada mais.

Por instantes, ele permaneceu sentado, fitando-a com um olharduvidoso. Parecia estar à espera de alguma coisa... um simplesindício de remorso ou indignação, presumo, mas não conseguiuobter nada, e pouco depois segurou no envelope com os dedosroliços e abriu-o com o polegar. Os cinco maços verdes caíram emcima da toalha branca que cobria a mesa. Olhei para eles comatenção, como fazemos quando se trata de dinheiro. Claro queaquilo não era uma fortuna, mas para pessoas como eu e Louise,que tinham de ganhar cada tostão da forma mais difícil, era umabela soma em dinheiro, que representava horas de sofrimento,maquinações e privações.

Não gostava da forma como os dedos daquele homem brincavampor cima do maço de notas, e a secreta centelha de simpatia quecomeçara a sentir por ele desapareceu por completo abruptamente.Então, percebi que se ele tivesse levado a sua avante e se tivessecasado com Louise quando ela era pouco mais do que uma criança,há tantos anos, tê-la-ia tratado de forma abominável. Era uma bestacruel; era daquela maneira que ele se comportava.

Olhei de relance para Louise e vi que estava imóvel. Permaneciasimplesmente sentada com as mãos entrelaçadas à espera do seurecibo.

Adelbert começou a contar o dinheiro. Sempre admirei a formacomo os caixas dos bancos manuseiam as notas, mas o modocomo Adelbert o fazia deixou-me espantada. Os seus dedospercorriam-nas da mesma forma que um jogador manipula um

baralho de cartas... como se cada nota tivesse vida e fizesse partedas suas mãos. Percebia-se que ele adorava aquilo.

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- Está certo - disse ele e colocou os maços no bolso interior docasaco. Depois, assinou o recibo e entregou-lho. Louise agarrounele e pô-lo na mala. Julguei que estava tudo resolvido, equestionei-me por que motivo fora toda aquela confusão em voltado assunto. Ergui o meu copo para Louise, que me manifestou oseu apreço, e preparava-me para me levantar quando Adelbert medeteve.

- Espere - disse ele. - Temos que fumar um cigarro e talvez bebermais um copinho... se Louise o puder pagar.

Ele sorriu, mas ela não. Ela serviu-lhe outro copo e ficou alisentada, impassível, à espera que ele o bebesse. Ele não tinhapressa. Pouco depois retirou o dinheiro do bolso e pousou uma mãogorda em cima dele enquanto ia passando a sua cigarreira à nossafrente. Eu retirei um cigarro, mas Louise não. Havia um daquelesacendedores de metal em cima da mesa e ele inclinou-se paradiante. Eu também me mexi, esperando que ele me desse lume,mas ele soltou uma gargalhada e encostou-se.

- Isto dá-lhe um melhor sabor - disse ele, e, puxando para fora doprimeiro maço uma das notas, incendiou-a e ofereceu-me a suachama. Eu calculara o que iria passar-se, por isso não demonstreinenhuma surpresa. Se Louise conseguia manter um rostoimpassível, eu também conseguiria. Olhei para a nota a consumir-se, depois ele agarrou noutra e também a ateou.

Ao ver que não conseguia influenciar-nos, começou a falar. Falounormalmente do negócio da restauração... sobre como os temposeram difíceis e como era tão penoso ter de se levantar demadrugada para ir ao mercado com o chefe e como os clientesgostavam de se deitar tarde, ficando acordados noite dentro aconversar e a mandriar como se nunca houvesse um amanhã. Tudoaquilo era dirigido a Louise, continuando a insistir e forçando-a abaixar os olhos exactamente para aquilo que ele estava a fazer. Ela,

porém, permanecia absolutamente impassível com os olhos negroscomo chumbo e a boca tensa.

Como também isso falhou, tornou-se mais pessoal. Disse que selembrava de nós as duas quando éramos gaiatas, e como otrabalho e as preocupações nos tinham modificado. Eu fiqueiirritada, mas não demasiado transtornada, porque rapidamente setornou evidente que ele não se lembrava absolutamente nada demim. Com Louise

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era diferente. Ele lembrava-se dela - com todos os pormenores - ede mais qualquer coisa.

- O teu cabelo parecia ouro - disse ele - e os teus olhos eram azuiscomo se fossem de vidro e tinhas uma boquinha macia e sorridente,tão atrevida. Onde está tudo isso agora, ha? Aqui. - O brutamontesdeu palmadinhas no dinheiro. - Está tudo aqui, Louise. Eu soupsicólogo, vejo estas coisas. E para mim o que é digno? Nada.Justamente nada.

Ele estava a tornar-me insensível. Fitava-o fascinada, e, de repentevi-o levantar um maço intacto de dinheiro e amarfanhá-lo atéparecer uma alface. Louise não pestanejou nem disse nada.Permaneceu sentada a olhar para ele como se ele não fosse nada,como se não passasse de um mero transeunte na rua.Absolutamente ninguém. Virei a cabeça para olhar para ela e não ovi riscar outro fósforo... por isso quando as notas se incendiaram fuiapanhada completamente desprevenida.

- Cuidado! - disse eu involuntariamente. - Tenha cuidado com o queestá a fazer!

Ele riu-se como uma criança perversa, triunfante e satisfeita.

- E tu, Louise? O que tens tu a dizer?

Ela continuava com uma expressão enfastiada e permaneceram alisentados a olharem um para o outro com ar decidido. Entretanto,claro, o dinheiro ardia.

Tudo aquilo não tinha para mim qualquer significado; talvez tenhasido por isso que fui eu quem perdeu o controlo.

Seja como for, arranquei-lhe o dinheiro da mão. Com um movimentorepentino fiz com que as centenas de notas voassem da sua mão ese espalhassem por toda a parte - pelo chão, pela mesa, por todo olado. A sala estava cheia de notas a arder.

Ele correu a apanhá-las como um louco... nunca nos passou pelacabeça que um homem com aquela gordura se mexesse tãodepressa.

Foi a que fez uma malha na minha meia que pôs o jogo a nu. Umanota queimou o nylon e quando o senti olhei para baixo e deiteirapidamente a mão à nota chamuscada, levantando-a na direcçãoda luz. Todos olhámos para a sua imperfeição ao mesmo tempo. Atinta escorrera e havia uma enorme mancha no seu centro,semelhante a um veio numa laje de mármore.

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Houve um longo silêncio, e o primeiro som que voltou a ouvir-seveio, não de nós, mas da porta de serviço. Esta abriu-se e o novoempregado, que parecia bastante diferente agora que trocara o seucasaco por outro com o distintivo da polícia, entrou na sala seguidodo inspector Cumberland.

Ambos caminharam até junto de Adelbert, e o homem mais novo emais pesado pôs uma mão no seu ombro. Cumberland ignoroutudo, excepto o dinheiro. Bateu nas chamas fumegantes para asapagar e juntou os restos daquele maço e os outros quatro de notasintactas que formavam um monte em cima da mesa. Depois, fez umbreve sorriso.

- Apanhei-te, Adelbert, com a boca na botija. Temos andado apensar quem é que anda a ter actividades ilícitas nesta rua equando nos chegou aos ouvidos que alguém andava a queimardinheiro achámos que devíamos dar uma vista de olhos.

Só em parte eu percebia o que se estava a passar, e estendi a notapara a qual tínhamos estado a olhar.

- Passa-se algo de estranho com esta - disse eu estupidamente. Eletirou-ma da mão e resmoneou.

- Passa-se algo de estranho com todas elas, minha querida. Odinheiro de Miss Frosné está a salvo no bolso dele onde o viu pô-lo.Estas são algumas das que saíram mal à quadrilha. Acontece comtodo o falsificador de notas... regra geral, nunca abandonam o localde impressão. Estas, em particular, não têm qualquer valor.Pergunto-me porque correu ele o risco para as queimar. Você nãogosta de desperdícios, suponho, Adelbert. Que alma cuidadosavocê me saiu.

- Como é que o senhor descobriu? - os olhos de Louise desviaram-se deles para mim.

Cumberland salvou-me.

- Um polícia, minha senhora - disse ele a rir-se -, também pode serpsicólogo.

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Um Belo Sítio para Viver

Nedra Tyre (1912-1990), natural da Georgia, escreveu, entre 1952 e1971, mais de meia dúzia de romances policiais e cerca dequarenta contos para a Ellery Queen s Mystery Magazine e outraspublicações. Especialista em histórias passadas em pequenascidades do Sul dos Estados Unidos, granjeou o aplauso da críticaainda em vida. Todavia, em parte devido â sua produção reduzida, éfrequentemente ignorada pela maioria das obras de referência dogénero. O seu primeiro e mais conhecido romance, cuja acçãodecorre em Atlanta, Mouse in Eternity (1952), teve como fonte deinspiração a sua experiência pessoal como assistente sócia! eantecipou a tendência regionalista que mais tarde viria a marcar ospoliciais americanos.

Tyre vivia em Richmond, Virgínia, quando reconheceu noContemporary Authors (volume 104, 1982): "Trabalhei emescritórios, fui assistente social, bibliotecária, funcionária na secçãode livros de uma loja, copy numa agência de publicidade e ensinei

Sociologia. Fiz de tudo e tenho a sensação que nunca sequercheguei a ganhar o ordenado mínimo. A vida é real e séria, mas,acima de tudo, é ridícula. Hoje, pertenço ao corpo redactorial deuma agência que presta assistência financeira às criançasdesesperadamente pobres de vinte e cinco países.

"Há quatro anos que estou totalmente surda. É espantosamenteinteressante ser-se surdo, apesar de ser incomodativo em termossociais. Politicamente, sou aquilo que se poderá chamar uma liberale em termos religiosos sou protestante com um "p" minúsculo.Quase tudo me vence e tudo me espanta."

A experiência de Tyre como assistente social a par da sua visão domundo atrás referida enformam Um Belo Sítio para Ficar,revelando-nos o seu conhecimento profundo da psicologia dos quenão têm recursos.

Durante toda a minha vida, quis ter um belo sítio para viver. Não merefiro a nada de grandioso, apenas um quartinho com as paredesacabadas de pintar e algumas peças de mobiliário bem feitas e umajanela que deixasse entrar o sol para que duas ou três plantasenvasadas pudessem crescer. Foi com isto que eu sempre sonhei.Não suspirava por amor, nem por dinheiro nem por roupas bonitas,apesar de ser uma rapariga bonitinha e de as roupas bonitas mepoderem tornar ainda mais bonita - não é para me gabar.

As coisas caíram-me em cima dos ombros quando tinha 15 anos.Foi quando a minha mãe adoeceu e eu passei a ter aresponsabilidade de tomar conta da casa e tratar do pai e dos meusdois irmãos mais velhos - e da minha mãe, claro. Não muito depoisdisso, o pai perdeu a quinta e mudámo-nos para a cidade. Nãogosto de me lembrar da casa onde vivíamos, perto dos caminhos-de-ferro C&R. Apesar de eu achar que tínhamos sorte por termosum tecto que nos abrigasse, aqueles foram os piores dias daDepressão, e muita gente nem sequer tinha um tecto, mesmo comburacos que deixassem passar a água e a lama. Em dias de chuvaintensa não havia nem tachos, nem panelas nem tigelas de vegetaissuficientes que espalhássemos pela casa para apanhar tanta água.

Era a mãe que era doente, mas foi o pai que morreu primeiro... viverna cidade não era para ele. Nessa altura, porém, os meus irmãos jáse tinham casado e a mãe e eu mudámo-nos para dois quartos nas

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traseiras de um edifício, que davam para uma álea e tinham vistapara os caixotes do lixo e pilhas de desperdícios de toda a gente.Os meus irmãos começaram a trabalhar com afinco e, todos osmeses, davam-me o suficiente para as despesas de nós as duas,apesar das reclamações e protestos das respectivas mulheres.

Tentei fazer com que a mãe vivesse confortável. Satisfazia-lhetodos os caprichos e fantasias. Eu gostava dela. Além disso, tinhaoutro motivo para querer conservá-la viva o maior tempo possível.Enquanto ela respirasse, eu sabia que tinha um sítio para viver.Ficava aterrorizada só de pensar no que me aconteceria quando aminha mãe morresse. Não acabara o liceu e não tinha experiêncianenhuma de um emprego fora de casa, e sabia que as minhascunhadas não me aceitariam em suas casas nem deixariam que osmeus irmãos me sustentassem um dia que a mãe morresse.

Chegou o dia em que a mãe soltou o último suspiro com um sorrisode agradecimento por tudo aquilo que eu fizera por ela.

Conforme esperara, Norine e Thelma, as mulheres dos meusirmãos, bateram o pé. A partir daquele momento, eu estava porminha conta. Foi então que aquela sensação assustadora de tentardescobrir um tecto sob o qual pudesse viver se apoderou de mim enunca mais me abandonou.

Senti algum alívio quando Mr. Williams, um viúvo vinte e quatroanos mais velho do que eu, me pediu para casar com ele. Levei ocompromisso a sério. Quis dedicar-me a ele e fi-lo. Mas a casaonde vivíamos! Aquelas paredes não podiam estar mais sujas setivessem sido besuntadas com fuligem. Já para não falar dacanalização, que era casmurra como uma mula. Fiquei com o meupé esquerdo dorido dos pontapés que tive de dar no cano por baixodo lava-loiça da cozinha para fazer a água correr.

Depois, Mr. Williams adoeceu e teve de desistir da sua loja dereparação de calçado, da qual tomava conta sozinho. Ele tinha umaconta com algumas economias e uns quantos daqueles Títulos doTesouro de vinte e cinco dólares e recebeu ainda algum dinheiro doseguro de invalidez durante cerca de seis meses, até terminar oprazo da apólice.

Fiz tudo o que podia para o ver confortável e bem-disposto. Apesarde ser eu quem lavava a roupa toda, mudava-lhe os lençóis e ospijamas de três em três dias e acho que foi só pela minha força devontade

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que consegui fazer com que florescesse uma begónia naquelequarto escuro das traseiras onde estava Mr. Williams. Cheguei aarreliar as suas duas filhas, dizendo-lhes para mandarem unspostais ao pai a desejar as melhoras, e elas ainda o fizeram uma ouduas vezes. Uma vez por outra, quando tínhamos mais algunstostões, eu comprava uns postais e rabiscava umas assinaturas queninguém percebia e metia-os no correio dirigidos a Mr. Williamspara que ele pensasse que alguns dos seus antigos clientes selembravam dele e lhe desejavam as melhoras.

Claro que quando Mr. Williams morreu as filhas ficaram todascontentes por receberem o seu quinhão do pouco que valia a casaem ruínas. Não regateei nada delas... não sou do género de lutarcontra a natureza humana.

Detesto pensar em todas as aflições por que passei depois damorte de Mr. Williams. A pior de todas foi encontrar um sítio paradormir. Tudo se resumia a ter um sítio para viver. Porque, dealguma maneira, consegue-se não morrer à fome. Há os caixotesdo lixo onde podemos vasculhar... é surpreendente o modo comoalgumas pessoas são esbanjadoras e a quantidade de comida boaque deitam fora. Se os camiões do lixo já tivessem passado e oscaixotes estivessem vazios, ia a um supermercado e ia provando ascerejas, por exemplo, a fingir que estava a escolher algumas paracomprar. Não eram as melhores que eu punha na boca, masaquelas que estavam tão rachadas que deviam ter sido deitadas

fora ou as que estavam só um pouco rachadas e não deviam estarem exposição para os clientes as comprarem. Podia roubar umafolha de couve já murcha ou uns pedacinhos de agrião ou algunsdaqueles tomates pequenos e redondos do tamanho de nozesamargas... nunca me lembro como se chamam. Não comia de tudocomo os porcos, só o suficiente para me acalmar a fome. E cá meia arranjando. Como costumo dizer, não tem de se passar fome.

Pelo único trabalho que eu podia fazer dificilmente me davamalguma coisa mais além do quarto e da comida. Eu não era umaverdadeira enfermeira, apesar de saber tomar conta de doentes, eas pessoas que me contratavam diziam que uma vez que eu nãotinha nem a prática nem as qualificações não podia esperar recebermuito. Eles só precisavam de alguém que passasse a noite com atia Myrtle ou a prima Kate, com a mamã ou com o papá. Nãoexigiam que

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cumprisse alguma tarefa em especial, diziam eles, e de facto nãoachavam que a minha ajuda valesse mais do que as refeições e umsítio para dormir. As combinações eram razoavelmente temporárias.Metade do tempo, eu não tinha um sítio para guardar as minhascoisas, não que tivesse roupas que merecessem ser referidas, e àsvezes dormia num alpendre junto à parede exterior do quarto dealgum doente ou numa espécie de cama improvisada no quarto dopaciente.

Mimava cada um daqueles doentes tal como mimara a minha mãe eMr. Williams. Não queria que eles morressem. Fazia tudo o quesabia para que soubessem que eu estava interessada emproporcionar-lhes bem-estar... primeiro, por atenção a eles, e,depois, por atenção para comigo, para que eu não tivesse de partirà procura de outro sítio para ficar.

Pronto, já falei em minha defesa, um termo que nunca pensei vir ausar em relação a mim própria, por isso, agora vou argumentarcontra mim.

Eu roubei.

Não me agrada dizê-lo, mas fui uma ladra.

Não tenho habilidade para o furto. Não queria nada quepertencesse a outras pessoas, mas houve uma altura em que mesenti forçada a roubar. Eu tinha de ter algumas coisas. Os meussapatos estavam a cair aos bocados e precisava de umas meias ede roupa interior. E quando pedia a um filho, a uma filha, a umaprima ou a uma sobrinha algum dinheiro para essas necessidadeseles reagiam como se eu estivesse a fazer chantagem com eles.Lembravam-me que eu não tinha as qualificações de umaenfermeira com experiência, que podia até meter-me nalgum sarilhocom as autoridades se descobrissem que eu andava a fazer-mepassar por enfermeira... coisa que não era e eles sabiam-no. Emtodo o caso, diziam que a combinação fora apenas em relação àdormida e à alimentação.

Por isso, comecei a tirar coisas... pequenas coisas que tinham sidometidas nos fundos das gavetas ou guardadas em caixas emprateleiras altas... coisas que não serviam ou não eram usadas háanos e provavelmente nunca mais voltariam a ter utilidade. O meumaior roubo fi-lo em casa de Mrs. Bick onde havia um sótão cheiode baús atulhados de roupas e quinquilharias desde os anos 20 atéao século xix - uniformes, leques em penas de avestruz, xailesespanhóis e

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sacos decorados com contas. Rapinei algumas destas coisas deuma só vez e corri logo a vendê-las num sítio chamado Way out,Hippie Clothiers.

Tentei calcular a soma exacta que pediria pela venda das coisas.Não, e eu sei disso, que se possa compensar um roubo. Mas devoter conseguido um dólar por uma estola de penas que pertencia aMrs. Bick. Depois, regressava e fazia uma tarefa que a mulher-a-dias insistia em deixar por fazer, como encerar o vestíbulo do andarde cima, polir os trempes ou arrumar o armário da roupa branca emordem.

No entanto, eu continuava a roubar... não em todos os sítios ondeficava, nem tão-pouco na maioria dos lugares, só que quando eraforçada a isso, fazia-o. Admito.

Mas não roubei aquela caixa de prata.

Em relação a essa caixa, eu estava tão inocente como um bebé.Por isso, quando aquele polícia avançou para mim para ma tirar,afastei-me, e talvez até lhe tenha dado o encontrão que o matou.Ele não tinha o direito de me tratar assim, quando aquela caixa eraminha, diga a sobrinha de Mrs. Crowe o que disser.

Nem que fossem cinquenta mil sobrinhas, ninguém podia afirmarque não era minha.

De qualquer modo, o polícia morreu e, apesar de eu não o querermorto, não há dúvida que não lhe desejei bem nenhum. E depoiscomecei a pensar: bom, eu não roubei a caixa de Mrs. Crowe, masroubei-lhe outras coisas, e aquilo eram os moinhos de Deus amoerem demasiado fino, como uma vez ouvi um padre dizer, e euestava a ser obrigada a pagar pelas transgressões que já fizera.

Claro que eu consigo perceber um pouco melhor o que aconteceudo que aquilo que afirmo, apesar de tudo o que aconteceu nunca terficado muito claro na minha cabeça.

De todas as pessoas para quem trabalhei, Mrs. Crowe foi a quemais estimei. Estava presa à cama e mal conseguia mexer-se. Nãocreio que a enfermeira diplomada que estava de serviço durante odia achasse que fazia parte do seu trabalho massajar Mrs. Crowe.Por isso, à noite, eu massajava-a, e isso agradava-lhe e acalmava-a. Ela agradecia-me todas as pequenas coisas que eu lhe fazia...quando lhe afofava a almofada, quando lhe punha algumas gotasde perfume nos lobos das orelhas, quando alisava as pregas dascobertas da cama.

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Eu fazia uma pequena brincadeira. Fingia que sabia ler a sina,pegava na mão de Mrs. Crowe e dizia-lhe que ela ia ter um diamaravilhoso, mas tinha de ter cuidado com um desconhecido bonito

e loiro... ou qualquer disparate deste género que a fazia rir. Ela nãodormia bem e parecia sentir prazer em falar comigo a maior parteda noite sobre a sua infância ou sobre o marido já falecido.

Foi ficando cada vez mais fraca, e duas noites antes de morrerdisse-me que gostava de fazer qualquer coisa por mim, mas que aoficar inválida fizera um testamento a doar tudo à sobrinha. Sejacomo for, Mrs. Crowe quis que eu ficasse com a sua caixa de prata.Agradeci-lhe e fiquei contente por ela gostar de mim o suficientepara me dar aquela caixa. Eu não tinha uma verdadeira utilidadepara ela. Teria dado uma bonita caixa de jóias de fantasia, mas eunão tinha nenhuma. A caixa parecia ser o pertence mais querido deMrs. Crowe. Ela guardava-a em cima da mesa, que estava ao seulado, e os seus olhos brilhavam sempre que olhava para ela.Parecia uma rapariguinha que, na manhã do dia de Natal, vê pelaprimeira vez uma boneca novinha em folha.

Por isso, quando Mrs. Crowe morreu e a sobrinha, a quem eu viapela primeira vez, me mandou embora, juntei o pouco que tinha,agarrei na caixa e parti. Não fui ao funeral de Mrs. Crowe, porque ojornal dizia que era privado e eu não tinha sido convidada. Dequalquer modo, eu não teria nada de apresentável para vestir.

Ainda tinha alguns dólares das coisas que vendera para a lojahippie, por isso paguei uma semana de renda por um quarto, que foio pior onde eu já fiquei.

Estava um frio horrível e o calor do aquecimento não chegava aoterceiro andar onde eu estava. Estava eu sentada naquele quartocom o reboco a cair, o soalho deformado e as baratas a fugiremcomo setas, vestida com todas as malhas que tinha e um cobertorleve e uma colcha fina enrolados em volta do corpo à espera que ocalor subisse quando a sobrinha de Mrs. Crowe entrou de rompantemetida num casaco e num gorro de pêlo e numas botas altas decabedal reluzente até aos joelhos. O seu rosto ficou ruborizado pelairritação quando começou a dizer que me mandara seguir por umdetective privado e que eu tinha de lhe devolver o bem de famíliaque roubara.

As palavras dela fizeram-me esquecer o pouco que conhecia dalíngua inglesa. Eu não conseguia dizer nada, e ela continuava agritar

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que se eu devolvesse imediatamente a caixa não apresentariaqueixa na polícia contra mim. Depois, recuperei a fala e disse que acaixa era minha e que Mrs. Crowe tinha querido que eu ficasse comela, e ela perguntou-me se eu tinha provas disso ou se tinhatestemunhas dessa doação, e eu respondi-lhe que quando medavam um presente, agradecia e não pedia provas nem exigiatestemunhas, e que nada podia separar-me da caixa de Mrs.Crowe.

A sobrinha ficou ali de pé a arfar, a inspirar e a expirar, quase comose estivesse a contar as vezes que respirava, como alguém que fazum exercício para recuperar o autodomínio.

- Vais ver - gritou ela, e depois saiu.

O quarto estava mais frio do que nunca e os meus dentes tiritavam.

Pouco depois, ouvi passos pesados pelas escadas acima. Percebique a sobrinha levara a sua ameaça avante e que a polícia vinha àminha procura.

Fiquei apavorada. Corri pelo quarto como uma ratazana que foge àperseguição de um gato. Depois, pensei que se a polícia merevistasse o quarto e não encontrasse a caixa eu teria tempo paradecidir o que havia de fazer. Retirei a caixa da gaveta de cima doaparador e fugi apressadamente pelos fundos. Abri a porta dastraseiras com um empurrão. Acho que a minha ideia era correrpelas escadas de serviço e esconder a caixa em qualquer lado, nomeio de um arbusto ou talvez num caixote do lixo.

Os degraus das escadas de serviço eram íngremes e percorriamquase de forma contínua os três andares, além de serem poucoseguros e estarem cheios de gelo.

Comecei a descer, mas o meu pé direito escorregou. Foi o corrimãoque me salvou. Fiquei pendurada nele por uma das mãos,

segurando na outra a caixa de prata. Depois escolhicuidadosamente o sítio para pôr os pés por entre os pedaços degelo.

Quando ia a meio da descida, ouvi gritarem pelo meu nome. Olheiem volta e vi um homem corpulento a descer os degraus de dois emdois no meu encalço. Nunca vi tanta ira num rosto. Depressachegou ao pé de mim e estendeu o braço para me arrancar a caixadas mãos.

Desviei-me para lhe fugir e ele amaldiçoou-me. Talvez o tenhaempurrado. Não tenho a certeza... não tenho bem a certeza se o fiz.

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De qualquer modo, ele escorregou e caiu, caiu, caiu, e no fimdaquela queda enorme ficou completamente imóvel. Tinha o últimodegrau por baixo da cabeça como uma almofada e o resto do corpoestendido com os braços e as pernas afastados em cima dopasseio de tijoleira.

Depois, quase como um cachorro que quer seguir o seu dono, acaixa de prata saltou-me da mão e caiu pelos degraus abaixo até seimobilizar ao lado da orelha esquerda do homem.

Senti o cérebro dormente. Senti-me paralisada. Depois, gritei.

Os inquilinos do prédio e das casas do lado e da frente, no ladooposto da álea, abriram as janelas e as portas para saberem oporquê de toda aquela agitação, e então, alguns deles começarama correr para o pátio das traseiras. O outro polícia, que era colegado homem morto - acho que é assim que lhe chamam - ordenou-lhes que se mantivessem afastados.

Pouco depois, chegaram outros polícias para retirarem dali o corpodo morto e levaram-me para a esquadra onde fui presa.

Desde o início que não gostei do jovem advogado que me calhou.Na verdade, não havia nada que eu pudesse apontar. Só que nãome sentia à vontade com ele. O seu apelido era Stanton. Claro quetem um nome próprio, mas não me disse qual era; disse-me para otratar por Bat, como faziam todos os seus amigos.

Estava sempre a sorrir e a tranquilizar-me quando não havia razãonenhuma para sorrir nem para me tranquilizar, e devia ter-me ditologo tudo, em vez de me encher de falsas esperanças.

A única coisa em que conseguia pensar era que estava grata portanto a minha mãe, como o meu pai e Mr. Williams já terem morrido,porque assim a minha vergonha já não os afectaria.

- Vai correr tudo bem - o advogado não parava de me dizer atéaquilo terminar, e depois afirmou que estava indignado quando fuiconsiderada culpada por resistir à ordem de prisão, por homicídioinvoluntário e por roubo... Nessa altura levantou-se o maior dosalaridos a fim de se saber se eu era culpada de furto ou de roubo.Não que eu fosse culpada de algum deles, pelo menos neste casoespecífico, mas ninguém acreditaria em mim.

Pela forma como se comportava, dir-se-ia que era o advogadoquem tinha sido condenado em vez de mim. Ele chamou àquilo um

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terrível erro judiciário e afirmou que bem podíamos ter voltado aoséculo xviii quando enforcavam crianças.

Bem, aquilo era um exagero, se é que alguma vez aconteceu;ninguém estava a ser enforcado e ali não estava em questãonenhuma criança. Aquele polícia morrera e, em parte, eu tivera umaparticipação na sua morte. Talvez o tivesse empurrado. Não tinha acerteza. No meu íntimo, não tivera a intenção de lhe fazer mal. Eusó estava assustada. Contudo, ele acabara por morrer. E emrelação ao roubo, eu não tinha roubado a caixa, apesar de terroubado outras coisas mais do que

uma vez.

E depois aconteceu. Houve um milagre. Durante toda a minha vida,eu sonhara com um bonito quarto só para mim, um sítio confortávelpara viver, e foi exactamente isso que consegui ter.

O quarto era pequeno, mas tinha tudo o que eu precisava, até umabacia para me lavar com águas correntes quente e fria, e asparedes tinham sido pintadas há pouco tempo. Deixaram-me

escolher entre uma cadeira de baloiço com uma coberta de chita ouuma moderna cadeira de braços dinamarquesa e até tive de dizerqual era a cor da colcha que preferia. A janela dava para um bonitorelvado com uma sebe de arbustos, e a directora disse que eupodia ir à estufa escolher algumas flores para pôr no meu quarto.No dia seguinte, trouxe uma gloxinia branca e alguns crisântemoscastanho-avermelhados.

Não me importava nada com as grades nas janelas. Ora, nostempos que correm, algumas das mansões mais bonitas têm gradesnas janelas para afastar os ladrões.

As refeições - simplesmente não conseguia acreditar que houvessecomida tão deliciosa no mundo. A mulher que tratava da suaconfecção fizera um desvio de fundos numa das maiores empresasde catering do condado depois de ter subido de assistente decozinha a tesoureira.

As outras reclusas eram muito amistosas e a maioria tinha tidoumas vidas muito interessantes. Por vezes, algumas das senhorasusavam daquelas palavras que normalmente se vê escritas apenasem vedações ou gravadas em passeios antes de o cimento secar,mas quando eram repreendidas pediam desculpa. De vez emquando, havia uma que se irritava com outra o que dava azo aalguns arranhões ou puxões de cabelos, mas a coisa nunca ficavademasiado séria. Havia um coro - eu não sei cantar, mas adoromúsica - e todas as

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terças-feiras de manhã havia um concerto na capela, e às quintas-feiras à noite era noite de cinema. Não se pagava nada para ver ofilme. Só tínhamos de ir e sentarmo-nos onde nos apetecesse.

Todas tínhamos um trabalho específico e eu fui destacada para aenfermaria. O médico e a enfermeira elogiaram-me. O médico disseque eu devia ter tirado o curso de enfermagem, que transmitiaconfiança aos doentes e os ajudava a restabelecerem-se. Quanto aisso não sei, mas tinha anos de prática com doentes e gostava deajudar todos aqueles que não se sentiam bem.

Sentia-me tão feliz que às vezes nem conseguia dormir durante anoite. Costumava levantar-me, acender a luz e pôr-me a admirar amobília e as paredes. Era difícil acreditar que tinha um lugar tãobonito como aquele para viver. Lembrava-me da ceia dessa noite,como voltara ao balcão fumegante para me servir segunda vez deespargos com limão e molho de ervas, e comparava a minhaabundância com aqueles tempos terríveis em que me escapuliapelos supermercados e mordiscava fruta demasiado madura evegetais crus para acalmar a minha fome.

Então, um dia, aquele advogado veio ter comigo e nem sequer foi àhora habitual das visitas. Começou a vangloriar-se e a felicitar-meporque o meu recurso tinha sido deferido, ou lá como é que isso sediz, e que eu estava livre como um passarinho a partir daquelemesmo instante.

Disse à directora que podia enviar-me os meus pertences maistarde e arrastou-me para a rua onde as câmaras de televisão e osrepórteres dos jornais nos aguardavam.

Mal as câmaras começaram a rolar e os fotógrafos desataram adisparar as suas máquinas, o advogado beijou-me na face eprendeu-me uma flor ao peito. Fez um discurso, dizendo que umterrível erro judiciário fora rectificado. Conseguira encontrar aspessoas que haviam testemunhado que Mrs. Crowe me dera acaixa - ela falara sobre o assunto ao jardineiro e à mulher-a-dias.Eles não tinham querido testemunhar, por não quererem envolver-se com a polícia, mas o advogado convencera-os por uma questãode justiça e humanidade a apresentarem o seu testemunho.

O advogado também consultara a folha de serviço do polícia mortoe ficara a saber que ele fora considerado emocionalmente incapaz

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para a sua actividade profissional e que o psiquiatra avisara o chefeda Polícia que algo terrível podia acontecer a ele próprio ou a umsuspeito, se ele não fosse dispensado da sua actividade.

Enquanto o advogado falava para os microfones, agarrava-mecomo se eu fosse uma criança de três anos que pudesse fugir. Eu

apenas me deixei ficar ali, de pé e de olhos arregalados. Depois,quando terminou o seu discurso sobre mim, os repórteres disseram-lhe que, tal como o avô e o tio, ele chegaria sem dúvida agovernador, mas muito mais novo do que eles.

Ao ouvir isto, o advogado fez um sorriso rasgado diante da câmarae acenou, despedindo-se e puxando-me para dentro do seu carro.

Eu estava aterrorizada. O sítio simpático que eu encontrara paraviver já não me pertencia. O meu antigo pesadelo voltava...descobrir o que iria fazer para conseguir comer e quanto teria queroubar por dia para sobreviver.

As câmaras e os repórteres seguiram-nos.

Um fotógrafo pediu-me para abrir a janela do meu lado, e escuteicasualmente dois homens que conversavam atrás da multidão.Tenho bons ouvidos. O meu pai dizia sempre que eu conseguiaouvir um trovão a três estados de distância. Por cima doscumprimentos e do burburinho das vozes à minha volta ouvi umdeles dizer:

- Isto é um bocado de mais, não achas? Agora, o nosso Bataparece como o paladino da terceira idade. Ele já engaioloucatraios e outros com menos de trinta com métodos que deviam sersuficientes para expulsá-lo da Ordem de Advogados. Devia ter feitocom que o jardineiro e a mulher-a-dias testemunhassem logo noinício, e era também no início que devia ter verificado a história dopolícia. Isto nunca devia sequer ter-se transformado num caso,quanto mais numa condenação. Só que dessa forma, Bat nuncateria tido publicidade. Tinha que fazer as coisas de forma ínvia eespalhafatosa, como é seu hábito.

O outro homem só abanava afirmativamente a cabeça e dizia aseguir a cada frase: "Podes ter a certeza disso."

Depois, afastámo-nos e eu nem me atrevi a olhar para trás, porquetinha o coração destroçado pelo que estava a deixar.

O advogado levou-me para o seu escritório. Disse-me que esperavaque eu não me sentisse incomodada com uma certa agitação nos

dias seguintes. Ele organizara algumas aparições públicas comigo.Na manhã

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seguinte, eu tinha de ir cedo a um programa de televisão. Não tinhanada a recear. Ele estaria ao meu lado para me ajudar, tal como meajudara a sair do sarilho em que estivera metida. Nesse programade televisão, eu só tinha de dizer que era a ele que devia a minhaliberdade.

Acho que ele deve ter notado que fiquei sobressaltada ou confusa,porque apressou-se a dizer que até àquele momento eu não puderapagar-lhe os honorários, mas que agora podia compensá-lo, nãocom dinheiro, mas fazendo com que o público soubesse que ele erao paladino das vítimas da injustiça social.

Eu disse-lhe que sabia que o tribunal nomeava advogadosgratuitamente para representarem as pessoas que não podiampagar, e ele disse que era verdade, mas o que ele queria dizer eraque agora eu podia compensá-lo, contando às pessoas tudo aquiloque ele fizera por mim. Depois, disse que o principal eraconversarmos sobre a nossa próxima ida à televisão. Queriapreparar-me para aquilo que eu ia dizer, mas primeiro tinha de ir aoescritório do sócio pedir-lhe para atender todas as chamadas etratar dos seus outros compromissos.

Quando a porta se fechou atrás dele, pensei que ele tinha razão. Eudevia-lhe, de facto, a minha liberdade. Só a ele ela se devia. Oespertalhão. O arrogante. Quem lhe mandou intrometer-se earrancar-me do meu quarto tão bonito, do trabalho que eu adoravae daquela comida deliciosa?

Foi a primeira vez na minha vida que senti o que era desprezaralguém.

Odiava-o.

Da primeira vez, quando fui condenada por homicídio involuntário,falou-se muito em crime premeditado.

Desta vez, não haveria nenhum motivo para discussões.

Eu não queria fazer mal nenhum àquele polícia, mas quis mesmofazer mal àquele advogado.

Agarrei num corta-cartas que estava em cima da sua secretária edeslizei os dedos ao longo da lâmina, sentindo como ela eraaguçada. Esperei por ele atrás da porta e quando a transpôs reunitodas as minhas forças e espetei-o nele, uma, outra vez e aindaoutra.

Agora estou de novo no sítio onde queria estar - num belo sítio paraviver.

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Rápida e Inteligente

Christianna Brand

Muitos adeptos do romance de investigação pura e justa fariam

suas as palavras do grande crítico Anthony Boucher ao nomear otrio composto por John Dickson Carr, Ellery Queen e AgathaChristie como os seus três autores de eleição. Outros escritoreshouve, no entanto, que. embora não tão prolíficos, podemequiparar-se àqueles três na dedicação e talento com que criaramos seus enredos tortuosos e enigmáticos. Um deles foi a criadorado inspector Cockrill, Christianna Brand (1907-1988). MaryChristianna Milne, filha de pais ingleses que viviam na Malásia,Brand viveu a sua infância na índia. A semelhança de muitosescritores, teve uma grande variedade de empregos no início dasua vida activa, incluindo os de preceptora, modelo e bailarina. Asua experiência como vendedora numa loja de alta costura serviu-lhe de inspiração para o seu primeiro romance, Death in High Heels(1941). Brand provou que conseguia rivalizar com os melhores noque dizia respeito à construção de enigmas em romances comoGreen for Danger (1944), adaptado ao cinema de forma memorávele protagonizado por Alistair Sim, e Tour de Force (1955). Segundoela própria afirmava, era tão escrupulosa no refinamento do seuestilo como na revelação das pistas, procurando enganar o leitorsem abdicar da mais absoluta integridade. Em várias alturas da suacarreira, partiu da investigação pura para a especulação nas

histórias de mistério Marie Celeste (The Hone Charlot, 1948), emlivros infantis (Danger Unlimited, 1948) e numa trilogia, cujo primeirovolume se chamou Nurse Mathilda (1964), um relato sobre os factosde um crime (Heaven Knows Who, 1960) e em romances inseridosnas correntes literárias dominantes e publicados com pseudónimo.A sua preferência, no entanto, recaiu sempre no policial.

No final da sua vida tornou-se uma figura querida em congressossobre o romance de mistério, sendo recordada no meio tanto pelapersonalidade como pela escrita. Na introdução à sua colectâneade contos Buffet for Unwelcome Guests (1983), Robert E. Brineyrecorda o seu estilo eloquente: "Os temas e os episódios cómicosvariavam, apesar de alguns terem sido retomados devido àpopularidade alcançada. (A história de Dorothy L. ôayers e osangue no vão das escadas tornou-se um verdadeiro clássico dorepertório oral.) A reacção do público, porém, manteve-seinalterada. Os ouvintes ficavam deleitados com os retratos verbaisexactos e perspicazes; escutando-os atentamente sempre que umanota séria era introduzida; antecipavam exactamente o rumo deuma história tanto quanto lhes era permitido e reagiam com umdesgosto por onde perpassava a admiração quando o fio condutorda história se revelava diferente daquilo que tinham sido induzidos aesperar. Na verdade, reagiam como os leitores da ficção deChristianna Brand tinham reagido ao longo de cerca de quarentaanos."

Na forma de conto, Brand especializou-se menos na investigaçãopura e mais no policial imbricado cheio de reviravoltas, do qualRápida e Inteligente é um excelente exemplo.

Havia que manter as aparências. Por isso, o apartamento era muitovistoso, apesar de tudo ser de imitação, até mesmo o guarda-fogoem latão maciço, colocado em frente da lareira eléctrica. Contudo,manter as aparências era uma coisa e manter os pagamentos eraoutra; e da forma como o teatro estava naquela época, ambosestavam, "em repouso" há muito, muito tempo. Ora, a questão eraque, de facto, deviam deixar Trudi ir-se embora.

Trudi era a au pair e por razões diferentes nenhum deles queria queela se fosse embora.

De pé diante da lareira, travavam naquele momento uma discussãoacesa sobre o assunto. Ultimamente, discutiam em média de hora ahora - queixas e mais queixas, seguidas de mais malditas queixas.Colette estava a enlouquecer Raymond. E agora mais aquelahistória sobre Trudi. E se ele, secretamente (de alguma forma)complementasse o ordenado de Trudi?

- Tenta pagar-lhe um pouco menos pelo trabalho - sugeriu.

- Tenta tu oferecer-lhe um pouco menos... pelo prazer - disseColette. Como sempre, atingia-o no ponto fraco.

- Estás a sugerir...?

- Raymond, essa rapariga só pensa em dinheiro, e tu sabes que éassim.

Sim, sabia, e ao tomar consciência disso, sentiu um aperto nocoração. Se chegasse ao ponto de já não conseguir dar maispresentes a

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Trudi... estava louco por ela, aquela criaturinha oriunda da EuropaCentral, com o seu rosto vivo e olhar penetrante. E, no entanto, aliestava ele, apanhado, louco por ela, uma presa indefesa nas suasgarrazinhas vorazes. Ele, Raymond Gray, que durante toda a suavida, tanto no palco como fora dele, fora irresistível para asmulheres, caíra nas malhas de uma mulher. "Se estivesse umpouco menos activo", disse para consigo, "se o meu perfil não fosseo mesmo, se o meu cabelo e os meus dentes não fossem tãoperfeitos como antigamente...", mas estava a envelhecer de formamaravilhosa. Ora, até aquele monstro velho do apartamento dolado...

Ela não era nenhum monstro embora fosse uma mulher corpulenta,e apesar de outrora ter sido algo atlética, todos os seus belosmúsculos não passavam agora de uma massa de gordura branca eflácida. Mas chegar ao ponto de se embeiçar por ele? "Era

repugnante", pensava ela, fora de si..., "uma viúva idosa, gorda efeia aqui sentada, embeiçada por um ídolo de matinés em fim decarreira com pouco mais de metade da minha idade."

Contudo, tal como ele, também ela estava apanhada e se sentiaindefesa, ali sentada como uma colegial apatetada, ansiando por iraté à varanda ver se conseguia vislumbrá-lo através da janela. Doseu quarto, não conseguia ver o interior do dele, porque os doisapartamentos não ficavam exactamente em frente um do outro, massim na esquina do prédio, no mesmo andar.

Ela, porém, não se atrevia a espreitar. Os plátanos da rua, mesmopor baixo de si, estavam no auge da polinização e bastava umsimples movimento como limpar o nariz para fazer com que a suaalergia disparasse sem dó nem piedade. E ele não podia vê-la comos olhos e o nariz vermelhos e húmidos, nem mesmo quando secruzassem no corredor ou ao subir e descer no elevador.

Ela passava muito tempo nos corredores e no elevador.

- Raymond! - exclamava, admirada. - Mas que surpresa encontrá-lode novo aqui.

Há muito que travara conhecimento com ele e agora tratavam-sepor Raymond, Colette e Rosa. Eles não se mostravam nadarelutantes... em sua casa havia sempre cocktails com champanhe emartinis secos, muito caviar em tostas em forma de pequenostriângulos. Era podre de rica.

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Nesse preciso momento, Colette dizia:

- Não consegues arrancar nada à velha? Ela está cheia dele, ebastava que lhe beijasses a mão para ela a cortar de imediato edar-ta, com os anéis de diamantes e tudo.

A mão dela assemelhava-se ao dorso de uma rã, toda sarapintadacom as manchas verde-acastanhadas características da pele idosa.

- Mesmo assim, deixa-me que te diga uma coisa - disse ele. - Se tume deixasses o caminho livre, chata e rezingona como és, podester a certeza de que ela faria de mim um belo milionário.

- Sim, e onde entraria a tua querida Trudi nessa história toda?Porque - disse Colette, maldosamente - não me parece que aquerida Rosa tolerasse por muito tempo aquela cargazinha debanhas apaixonadas.

- Não chames nomes à Trudi! - gritou ele.

- Eu chamo-lhe o que ela é. Tenho todo o direito de o fazer, nãoachas?

Tinha uma mente depravada, uma mente depravada e uma línguaviperina que verbalizava o que ia no seu interior. Ocorreu-lhe desúbito, num momento breve e difuso, que em tempos a amara...nunca sonhando que por detrás daquela aparência estava umacriatura venenosa e obscena, nunca sonhando que um dia estariaali com uma mão levantada, precipitando-se para a frente para lhebater, pensando em calá-la para sempre.

A sua mão, no entanto, não tocou nela. Ela recuou e afastou-sedele e, tropeçando no tapete colocado sobre o chão polido dianteda lareira, caiu pesadamente, atirando-se para trás quase comviolência, fora do alcance dele. Soltou um grito breve, os seusbraços fustigaram o ar e ouviu-se o ruído funesto de uma pancadaquando a base do seu crânio bateu no puxador arredondado dopesado guarda-fogo de latão. E, de repente... fez-se silêncio.

Percebeu que ela estava morta.

Trudi permaneceu de pé na entrada, depois avançou até eledevagar e disse-lhe:

- Não te preocupes, eu vi. Não lhe tocaste - e procurou a palavrainglesa. - Foi um... acidente? - Aproximou-se mais dele, olhandofixamente para baixo. - Mas ela está morta - disse.

Estava morta. Não lhe tocara, fora um acidente. Porém, estavamorta... e ele estava livre.

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Levou algum tempo a perceber que Trudi não queria unir a sua vidaa um ex-actor desempregado, livre ou não.

- Mas, querriido, sabes bem que estás sem dinheiro e que embreve, de qualquer maneira, vou ter que partir. Foi Mrs. Gray quemmo disse.

E uma vez que Mrs. Gray estava ali, morta e estendida no chãosem poder contradizê-la, improvisou um apressado rol das dívidasque ele tinha para com ela.

- E isso eu tenho que receber, Raymond, em breve voltarei paracasa se não arranjar emprego.

Ser livre... ser livre para casar com ela e agora perdê-la!

- Não me amas nem um bocadinho? - perguntou, suplicante.

- Claro que amo! Mas como podemos nós casar, querriido, se tunão tens dinheiro nem para viver? Por isso, tenho que ter essedinheiro para poder voltar para casa.

- De qualquer forma, ainda não podes voltar. Vais ter que ficarcomigo por causa... dela - quase se esquecera do pobre cadáverdeselegantemente estendido no chão, aos seus pés. - Vais ter quetestemunhar em minha defesa.

Ela encolheu os ombros.

- Claro. Foi um acidente. Mas depois volto para casa.

- Deixas-me aqui, assim? Trudi, agora não tenho mulher nemdinheiro...

Novo encolher de ombros, um movimento tão cativante para umcoração enfeitiçado como o dele, entre o ridículo e o pesaroso;acompanhado de uma inclinação da bonita cabecita na direcção dajanela na esquina oposta.

- Quanto a mulheres e a dinheiro... tens ali os dois com fartura.

- Então, eu seria rico - disse ele, rapidamente. - E, assim, tu e eu...?Mas ela afirmou, como alguns minutos antes dissera Colette:

- Não creio que Mrs. Rosa Fox tolerasse disparates. Acho que, derepente, ela se agarrava ao porta-moedas... com toda a força.

Ter-lhe-ia a ideia ocorrido subitamente, como lhe parecera na altura,ou teria havido um lapso de tempo enquanto ele pensara...enquanto permanecera de pé junto ao cadáver da mulher,reflectindo cuidadosa e deliberadamente sobre tudo aquilo? A únicacoisa de que tinha consciência, mais tarde, era de estar a segurarTrudi pelo braço,

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de falar com ela insistentemente, puxando-a para baixo para que seajoelhasse enquanto ele, muito delicadamente, raspava do puxadorde latão arredondado do corta-fogo uma mancha de sangue querapidamente ali coagulara, desfazendo-a sobre o puxador redondode latão do atiçador, um puxador do mesmo tamanho, cobrindodepois as manchas com a sua própria mão. Por fim, atirou oatiçador de novo para dentro da lareira.

- Trudi, agora vai-te embora, não deixes que ninguém te veja.Compra qualquer coisa em qualquer lado. Volta logo em seguida e,nessa altura, deixa que o porteiro te veja.

Enquanto tentava pôr-se de pé não olhou para trás, para o corpoainda estatelado... não tinha sequer um momento que fosse parareflectir sobre o passado. Agora, o futuro abria-se à sua frente.Deus queira, desejava ele enquanto se esgueirava furtivamentepara o corredor, que Rosa esteja em casa! Sozinha!

Ela estava em casa, de facto, e sozinha. Nos últimos tempos,estava sempre em casa sozinha, afundada numa cadeira de braçosa sonhar como uma adolescente com o seu amor impossível. "Umamulher da minha idade", pensava, "aqui sentada a sonhar com omarido de outra mulher". Todavia, no seu tempo, fora um belopedaço de mulher e enviuvara há muito, muito tempo.

- Raymond... que querido! - exclamou, perguntando quase deimediato: - Mas que se passa, meu querido? Estás doente?

- Rosa - disse ele -, tens que me ajudar! - e caiu de joelhos à frentedela, agarrando-lhe na saia com as mãos trémulas... na verdade,com todo aquele talento, era absolutamente inacreditável que nãoconseguisse mais trabalho! Com um requebro rouco na voz,confessou:

- Matei-a.

Ela recuou, afastando-se dele.

- Mataste-a?

- Matei Colette. Ela não parava de me atormentar. Dizia coisashorríveis sobre... sobre ti, Rosa. Ela pensa que tu... ela sempredisse que tu... Rosa, eu sei que gostaste de mim...

- Eu amo-te - disse ela simplesmente.

Contudo, respirou bem fundo, enquanto o futuro se desenrolavadiante dos seus olhos... como há pouco o dele passara diante dosseus. A mulher estava morta e ele estava livre.

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Ele fingiu ficar surpreendido com a resposta... surpresa e gratidão.Todavia, era demasiado esperto para reivindicar de imediato umaretribuição dos seus sentimentos. Por fim, chegou ao ponto quequeria.

- Então, mais uma razão, Rosa, para me atrever a fazer-te apergunta que ia fazer. Estou à tua mercê, limitando-me a rezar paraque em nome da nossa amizade me ajudes. E agora, se estás defacto a ser sincera quando dizes que...

E acompanhou-a até ao sofá, sentou-se e, agarrando-lhe nas mãos,abriu o seu coração e contou-lhe tudo.

- Ela era tão perversa. Ela tinha... bem, ela morreu, mas Colettetinha uma mente suja, Rosa. Há semanas que não parava de meprovocar e, de repente, não consegui aguentar mais. Perdi a

cabeça. Eu... eu agarrei no atiçador. Não tencionava fazer-lhe mal...palavra, juro-te... só queria assustá-la, mas quando voltei a mim... -e implorou: - Oh, meu Deus, por favor, tenta compreender!

- Fizeste-o, porque ela andava a dizer coisas parvas sobre mim?

- A Rosa sempre foi tão boa para nós; revoltou-me ouvi-la falarassim, sempre a escarnecer e a troçar - e voltou a desabafar,representando a mesma cena e substituindo apenas o nome deTrudi pelo dela. Primeiro, o seu rosto muito sério tornou-se lívido,depois corado, depois, voltou a ficar lívido.

Ela agarrou-lhe na mão com firmeza.

- O que quer que eu faça?

- Rosa, reflecti muito depressa sobre isto... eu reflicto bastantedepressa quando estou metido em apuros. Parece-me horrívelagora, ela ali estendida sem vida e eu pensando unicamente emmim, lutando para me livrar de culpas, mas fui eu que o fiz. E depoisajoelhei-me e... bem, há dois puxadores de latão no guarda-fogoexactamente iguais ao do atiçador e eu... eu afastei a cabeça delapara que parecesse que tinha embatido num dos puxadores doguarda-fogo, e depois limpei o... o sangue e as manchas noatiçador...

Era uma mulher inteligente... rápida e inteligente. O corpo podia ter-se tornado mais lento, o corpo que outrora fora tão forte econtrolado, mas o seu espírito continuava a ser rápido e inteligente.

- Um acidente - disse ela.

- Sim, mas... as pessoas sabiam que nós estávamos sempre adiscutir. Claro que Trudi devia saber disso. Podem dizer que eu aempurrei,

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ou que lhe dei um encontrão - lançou-lhe um olhar angustiado, quenão era muito difícil de simular. - No mínimo... homicídio involuntário- disse ele.

Rápida e inteligente.

- Queres que diga que vi o que aconteceu? Que tu não a agrediste?

- Meu Deus - exclamou ele -, és maravilhosa! Sim. Podes dizer queviste tudo pela janela, que me viste ali de pé a falar com ela, podesdizer mesmo que parecia que estávamos a discutir, dando aentender que não estás declaradamente do meu lado, que meconsideras um mero vizinho. E depois... há um tapete, como sabes,muito sedoso e escorregadio... chegaste até a escorregar nele umavez, lembras-te? É perfeitamente possível que ao recuar ela tivesseescorregado e caído para trás; e, claro, isso seria tudo o que tusabias... da tua varanda não consegues ver o chão do nossoquarto.

- Mas eu teria que dizer que estava lá fora na varanda. Do interiornão consigo ver a tua janela.

Ele também pensara nisso.

- A tua varanda é visível apenas a partir de dois apartamentos, e aspessoas que lá moram não estão em casa, eu conheço-os.Ninguém pode dizer que não estavas lá.

- Está bem - disse ela.

- Fazes isso por mim?

- Claro, mas e em relação à rapariga, àquela rameirazinha, como éque ela se chama... a au pair?

Teve dificuldade em conseguir manter a firmeza da sua voz, mascontrolou-se.

- Tinha saído para ir às compras, graças a Deus! - E graças a Deustambém pelo facto de Rosa não poder ter estado na varanda a olharpara o apartamento deles, caso contrário teria visto Trudi com elena sala. Sabia tudo sobre a alergia dela, e um olhar rápido para oseu rosto confirmou-o... Rosa não estivera na varanda.

- Bem, agora volta para casa. Tens que chamar um médico,depressa. E não dizer nada sobre mim. Limita-te a contar a tuahistória e nem sequer penses em incluir-me nela. Eles aparecerão

por aqui daqui a pouco a perguntar-me se vi alguma coisa. Agoravai, que o tempo está a esgotar-se, tens mesmo que ir embora.

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Ele dirigiu-se rapidamente para a porta, mas, de repente, deteve-se.

- Rosa! - Adoptara um olhar envergonhado, suplantado no entantopor um brilho de regozijo. - Rosa, é horrível ter sequer pensadonisto, mas, de repente, ocorreu-me. Um julgamento por homicídio!Sabe como as coisas são no mundo do teatro, sabes como,ultimamente, as coisas se têm passado comigo. E se, de repente,eu fosse notícia! Acusado de assassínio... ali de pé no Old Bailey,nas primeiras páginas de todos os jornais, uma cause celebrei Edepois.... a interposição dramática, a testemunha que presencioutudo, a prova de última hora - permaneceu de pé diante dela, entreo envergonhado e o suplicante. - Rosa?

- Porque não apresentei as provas antes? Eles nem nunca o teriamacusado se eu tivesse falado logo.

- Bem, é essa a questão. Eu tenho que ser preso e julgado. Tensque dizer que não te apercebeste da gravidade do caso, que nãoquerias envolver-te nisto, mas que depois, claro, mal soubeste queeu era acusado...

- Mesmo assim, não irias além da primeira audiência, ou lá como éque lhe chamam. Com isso, não conseguirias publicidade nenhuma.

- Tu podias... ter estado no estrangeiro durante algum tempo semsaber o que se estava a passar por cá?

Ela abriu a boca para dizer que nada daquilo tinha importância, queele não precisaria de voltar a trabalhar, mas acabou por não semanifestar. Ele era actor e os actores precisam de trabalhar, têm dese expressar.

- Deixa tudo isso comigo. Eu trato do assunto - disse ela.

Os títulos das primeiras páginas não estavam mal, ainda que nadasensacionalistas. Depois veio o longo e monótono período queantecede o início do julgamento. Contudo, o dia chegou... por fim. E

ele sentou-se no banco dos réus, muito pálido e muito bonito. Nabarra das testemunhas estava um polícia.

- O réu declarou... - uma página de um bloco de notas foi viradadevagar. - O réu declarou: "Oh, meu Deus, foi horrível, devo ter-lhe

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acertado, devo ter perdido a consciência por instantes, porque elanão parava de me atormentar por eu não conseguir arranjartrabalho, mas nunca foi minha intenção fazer-lhe mal, juro que não."

E a prova forense.

- No punho do atiçador encontrei uma pequena mancha de sangue.

O sangue dessa mancha condizia com o da vítima e com omomento em que ela morrera. Testes realizados mostraram que oréu manipulou o atiçador depois de este estar manchado desangue. Sim, coincide com a tentativa que ele fez de remover asmarcas de sangue com a palma da mão, escapando-lhe apenasaquela pequena mancha. A lâmina do atiçador parece ter sidolimpa... não tinha impressões digitais.

Em resposta ao advogado de defesa: Sim, era verdade que emcondições normais a lâmina do atiçador não seria muito manuseadae a sua limpeza podia perfeitamente corresponder à última limpezade rotina. O médico testemunhou que a mulher morrera meia horaou uma hora antes de ele a examinar.

Trudi, calma e astuta, no banco das testemunhas para ointerrogatório da defesa. Chegara das compras e encontrara Mr.Grray ajoelhado ao lado do corpo; quase tivera de o levantarsozinha. Sim, era muito possível que ele tivesse tocado com a suaprópria mão no atiçador, coberta de sangue pelo facto de terexaminado a ferida. Não parou de gesticular enquanto ela o puxavapara cima. Tentara acalmá-lo; quisera chamar o médico, mas nãosabia o número dele, e Mr. Gray parecia tão desorientado que elanão conseguia percebê-lo. E, afinal de contas, qual era a pressa?,perguntou Trudi com um dos seus típicos encolher de ombros. Eraóbvio que Madame estava morta.

E, por fim, chegou a vez de Rosa Fox. Com uma extraordináriadedicação, despojara-se deliberadamente de todos os elementosindicadores da sua condição, optando por uma aparência menosvistosa. Não colocara jóias, vestira-se de forma solene, sacrificaraos cosméticos com os quais normalmente, pelo menos no caso dealguns, disfarçava as marcas da idade. Nem por um instante sequeras pessoas suspeitaram que ali estivesse uma mulher com quem oprisioneiro alguma vez pudesse ter tido algum tipo de relação.

A história foi a combinada. O conhecimento casual, a bebidaocasional em conjunto. As perguntas da polícia logo a seguir ao...acidente.

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Era certo que anteriormente insistira em afirmar que não vira nada.Não andava a passar bem, por causa de grandes tensões pessoaise quisera apenas passar algum tempo numas termas medicinais noestrangeiro, onde estivera até àquele momento. Não tinha queridoenvolver-se no caso. Claro que nunca pensara ser possível vir ahaver uma acusação contra Mr. Gray, sabendo, como sabia comtoda a certeza, que aquilo fora sem dúvida um acidente, porque, naverdade, vira como tudo acontecera.

- Da minha varanda vê-se justamente o quarto do casal. Olhei derelance nessa direcção quando os vi de pé. Pareciam estar adiscutir. Ele disse-lhe qualquer coisa zangado, ela afastou-se delecom um movimento brusco quando ele lhe levantou a mão...

- Mrs. Fox, ele tinha alguma coisa na mão?

- Na mão? Ah, está a referir-se ao atiçador? Não, nada, nem oatiçador nem nada. Ele nunca chegou a levantar a mão, aliás.

- Nunca levantou a mão? Pode atestá-lo sob juramento? O juizdisse solenemente:

- Mr. Tree, a senhora está sob juramento. Tudo o que está a dizer,está a dizer sob juramento.

- Bem, eu vi tudo muito bem e estou certamente pronta a jurar...bem, quero dizer que tenho a certeza absoluta que ele nunca lhe

levantou a mão. Ele disse qualquer coisa, ela recuou e depoispareceu tropeçar e cair de costas. Eu disse para comigo:"Escorregou naquele tapete!" Eu conheço aquele tapete... é muitotraiçoeiro sobre o chão de soalho. Eu mesma quase caí uma vez.Bem, depois entrei no meu quarto e nunca mais pensei no assunto.

- Não lhe ocorreu que ela pudesse ter-se magoado?

- Pensei que talvez tivesse batido com a cabeça nalgum lado, mas,claro, não mais do que isso. Como digo, eu própria escorreguei nelee não me aconteceu nada de mais - fez uma expressão mesquinhae admitiu que se a senhora tivesse ficado com algumas nódoasnegras, era apenas o que ela merecia. - Acho que ela não paravade o criticar, mas, claro, eu não os conhecia bem.

Títulos nos jornais, sim, mas não excessivos, e, na maioria doscasos, nem sequer nas páginas centrais, ficando-se apenas pelaprimeira página. Porém, havia uma grande fotografia dele, tiradapara o Sunday, acompanhando uma entrevista, celebrando comuma taça de champanhe

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erguida na direcção da vizinha, cujo testemunho confirmara a suainocência. Talvez não fosse do melhor dos gostos, já que afotografia fora tirada exactamente em frente da lareira onde amulher morrera, mas aquele também não era um jornal com omelhor dos gostos e uma pessoa tinha de se contentar com omelhor que conseguira arranjar.

Os repórteres saíram, e, finalmente, eles ficaram sozinhos noapartamento dele.

Ela estendeu-lhe as mãos:

- Bem, Raymond?

Ali, à frente dele, ela parecia ter cerca de cem anos, com o seurosto flácido sem maquilhagem, o vestido feio e carregado, openteado descaído e as mãos manchadas sem os habituaisdiamantes cintilantes. Sentiu repulsa.

- Bem, Rosa, fizeste um belo trabalho.

Ela não se apercebeu da frieza contida na sua voz ou não lhe deuimportância. Disse-lhe baixinho:

- E um dia destes... posso vir buscar a minha recompensa?

- Recompensa? - perguntou ele.

- Afinal, meu querido, eu cometi perjúrio por ti.

- Sim, foi o que fizeste, não foi? - retorquiu ele.

Naquele momento, a pele não empoada adquiriu uma estranha corpálida, e os olhos dela pareceram assustados e desgostosos.

- Raymond, que queres dizer com isso?

- Quero dizer que cometeste perjúrio, como dizes; e sabes,presumo, o que acontece àqueles que o fazem?

Uma mulher inteligente, rápida e inteligente, mas mesmo assiminsistiu:

- Não percebo.

- Eu preciso de dinheiro, Rosa - disse ele.

- Dinheiro? Mas, se nós fôssemos casados...

Ele afastou-se para o lado de modo que ela pudesse olhar, por cimado ombro dele, para o espelho que estava sobre a lareira.

- Tu? E eu? Casados? - disse.

Ela olhou demoradamente para o seu reflexo deplorável. Por fim,disse:

- Isto é chantagem?

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- Não se tratou de chantagem quando pensaste que ao salvar-meda prisão podias forçar-me a casar contigo?

- Sim - disse ela -, talvez fosse. - E, naquele momento, apercebeu-se de que fora vencida no seu próprio jogo. - Se me atraiçoares -disse ela -, terás que admitir que a assassinaste.

- Na verdade, eu não a assassinei. Posso dizer-te que aconteceuquase como afirmaste em tribunal.

- Muito bem, então - disse ela rapidamente -, posso alterar a minhahistória. Quem pode provar que eu não te vi assassiná-la?

- Eu posso provar que não viste. Não podias ter estado na varanda.Os plátanos estavam em plena época de polinização e qualquerpessoa pode confirmar à polícia o que aconteceria se abrissessequer a janela na altura em que o pólen andava no ar. Contudo, aprimeira vez que eles te viram, não tinhas quaisquer sinais de estara ter uma crise alérgica. Eu sei, porque eu próprio tinha estadocontigo pouco antes. Além disso, eles não podem tocar-me. Fui"ilibado" como eles dizem... autre fois acquit é o termo legalcorrecto. Uma vez absolvido, não posso ser julgado novamente pelomesmo crime. Podia gritar do alto do telhado que a matara econtinuaria a salvo.

- E a viver com essa reputação?

- Bem, claro que nunca diria que era culpado... o que, de qualquerforma, como continuo a dizer-te, não fui. Eu continuaria a dizer quefora um acidente. Tu, porém, estarias em maus lençóis.

- Estou a ver - reflectiu naquilo longa e cuidadosamente,continuando a olhar fixamente, sem o ver de facto, o seu tristereflexo no espelho. - Tramaste tudo isto desde o princípio, não foi?Em pormenor, desde o primeiro minuto?

- Uma bela pontinha de oportunismo - sugeriu ele, orgulhoso.

- Toda aquela história sobre a publicidade? O sanguedeliberadamente espalhado no atiçador? Sim, estou a ver. Tinhasque lhes dar alguma coisa, tinhas que ser acusado e condenado,tinhas que ser julgado e absolvido antes de poderes acusar-me semproblemas. Dois objectivos para o meu perjúrio: primeiro, fornecer aprova que te poria em liberdade e, segundo, para tornar-me

vulnerável à chantagem - disse aquilo quase com curiosidade,quase como se estivesse a ser humilhada por ele e não por siprópria: - Nunca gostaste de mim?

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- Não desgostava - disse ele com indiferença -, mas daí a casar-mecontigo... creio que sou um nadinha mais exigente do que isso - epegou na carteira dela, pegou no grosso maço de notas que estavano interior, enfiou-o dissolutamente na sua carteira e guardou-a. -Apenas um começozinho, minha querida - disse ele.

- Nem quero saber quanto estás a pedir. Claro que vais voltarsempre, não é? Mas para começar...?

- Aponta para os dez mil - disse ele. - Não demorarás muito aconsegui-los.

Sorriu-lhe, deixando transparecer um sentimento de triunfo cruel erepulsivo.

- E preciso dele depressa... para a minha lua-de-mel - afirmou.Rápida e inteligente. Suficientemente inteligente para nem sequerperguntar o nome dela, para resumir tudo num rasgo brilhante eintuitivo. E rápida. O atiçador com o seu puxador redondo em latãoestava ali, junto do guarda-fogo. Agarrou nele rapidamente... egolpeou-o.

Trudi abriu a porta de rompante, precipitou-se para fora do seuposto de escuta, abrandou os movimentos e depois percorreu oresto do caminho devagar e foi-se ajoelhar ao lado dele. Durante oque pareceu ser muito tempo, ambas olharam fixamente para baixo,tal como apenas alguns meses antes o próprio Raymond Graybaixara os olhos para o corpo da sua mulher. Agora chegara a suavez.

Aparentemente, os braços gordos e brancos de Rosa conservavamalgo da sua musculatura outrora magnífica. O treino anatómico deum tempo longínquo sugerira o ponto mais susceptível. A pesadabola do atiçador esmigalhara o delicado osso da têmpora deRaymond, reduzindo-o a uma teia de fracturas.

Trudi mexeu-se. Com uma pequena careta de repulsa, alterouligeiramente a posição da cabeça de Raymond para que a feridaficasse encostada ao puxador redondo de latão do guarda-fogo.

- Aquele tapete! - disse ela, voltando a levantar-se. - Sempre tãoperigoso! Vejam bem, uma segunda vez, exactamente como apobre mulher! - sorriu com uma complacência brutal para o rostolívido

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em cujos olhos transparecia um desespero inerte. - Que sorte euestar presente desta vez para ver que mais uma vez tudo nãopassou de um terrível acidente.

O casaco de Raymond ficara aberto. Inclinou-se para ele, e comdedos desdenhosos agarrou no maço de notas e enfiou-as no bolsodo avental.

- É apenas um começozinho, um começo muito pequenino - repetiuela e retirou o atiçador da mão inerte de Rosa. - Volte para o seuapartamento, minha senhora. Vá-se deitar. Eu tomo conta de tudo,depois telefono ao médico. - Trudi encolheu os ombros. - Desta vez,sei o número dele.

Rosa voltou para o seu apartamento. Porém, não se deitou.

- Polícia? - perguntou ela, segurando o auscultador numa mãofirme. Deu a morada de Raymond Gray. - É melhor irem ládepressa. Acabei de ver da minha varanda a au pair matá-lo comum atiçador. E, desta vez... não há dúvida nenhuma que não setrata de um acidente.

Ouviu com um sorriso de satisfação uma voz severa gritar algumasordens. A voz voltou a falar com ela.

- Bem, quanto a isso não sei... não consigo ver o chão da sala. Arapariga desapareceu do meu ângulo de visão por instantes, equando voltei a vê-la enfiava algum dinheiro no bolso do avental.Tenho quase a certeza que os senhores o encontrarão escondidoalgures no seu quarto. Tinham um caso, sabe, mesmo antes de a

pobre mulher morrer; Q agora, presumo eu, ele devia recusar-se acasar com ela.

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Amantes Campesinos

Nadine Gordimer

Galardoada com o Prémio Nobel, NADINE GORDIMER (1923)nasceu na região mineira da África do Sul. Filha de um joalheiro foieducada num convento e formou-se na Universidade deWitwatersrand, em Joanesburgo. À semelhança de muitosescritores, foi uma criança solitária, tendo interrompido os estudosentre os 11 e os 16 anos devido a um problema cardíaco,aparentemente imaginário. Durante esse período deixou decontactar com outras crianças, passando a ter como únicoscompanheiros a mãe e os seus amigos adultos. Publicou pelaprimeira vez aos 15 anos, acabando por vir a escrever contos parao importante mercado dos Estados Unidos através de revistas comoa The New Yorker, Harper's e Mademoiselle. A sua primeiraantologia, The Soft Voice of the Serpent and Other Stories, foipublicada em 1952 e o seu primeiro romance, The Living Days, em1955. As suas ideias sobre a igualdade racial e a sua glorificação dadiversidade humana, que viriam a resultar numa oposição declaradaàs políticas de apartheid do seu país, devem-se, na sua opinião,mais às leituras por ela efectuadas do que a qual quer exemplorecebido dos seus pais apoliticos. Entre os seus autores favoritosconta-se J D ôalmger, outro especialista na arte de retratar osexcluídos da sociedade.

Gordimer critica o regime da África do Sul tanto nas suas obras deficção como fora dela. Um dos seus romances, Burger's Daughter(1979), foi rapidamente banido no seu proprio país. O revisor do seusegundo romance, A World of Strangers (1958), que trabalhava paraa revista Time, tal como surge referido em Current Biography (livrodo ano de 1959), escreveu que Gordimer "não só diz a verdadesobre os seus concidadãos, como o faz tão bem que se tornouimediatamente a sua inspiração e a sua melhor escritora."Certamente que a sua oposição consciente, a par da de outros

escritores e pensadores da África do Sul, teve um pesoconsiderável no eventual termo do apartheid.

De uma maneira geral, Gordimer não é considerada, nem mesmode forma superficial, como uma escritora de policiais. Todavia,Amantes Campesinos, uma história penosamente real, que reflecteas suas preocupações relativa mente às políticas do seu país, aomesmo tempo que nos confronta com algumas das verdadesprimárias sobre o racismo, cabe certamente naquela categoria.

As crianças das herdades brincam juntas quando são pequenas,mas assim que os meninos brancos vão para a escola, rapidamentedeixam de partilhar as brincadeiras, mesmo durante as férias.Apesar de a maioria das crianças de cor receber alguma educação,a cada ano que passa se afastam mais das notas obtidas pelosmeninos brancos. O vocabulário infantil, a exploração infantil daspossibilidades aventurosas dos açudes, dos pequenos morros, doscampos de milho e da savana - chega uma altura em que ascrianças brancas as superam com o vocabulário adquirido noscolégios internos e as possibilidades oferecidas pelos jogosinterescolares e pelo tipo de aventuras que vêem na tela de cinema.Tudo isto coincide, bem a propósito, com os 12, 13 anos, pelo que,na altura em que atingem a adolescência, as crianças de cor, a pardas alterações corporais comuns a todas elas, fazem uma transiçãosem sobressaltos para as formas adultas de tratamento,começando a tratar os seus antigos companheiros de brincadeiraspor missus e baasie - patrõezinhos.

O problema era que Paulus Eysendyck parecia não compreenderque Thebedi não passava agora de mais uma no meio da multidãode crianças da herdade que viviam na pequena aldeia, reconhecívelapenas pelas roupas velhas das suas irmãs. Nas primeiras férias doNatal, depois de ter ido para o colégio interno, trouxe para casa,para oferecer a Thebedi, uma caixa pintada que ele próprio fizeranas aulas de carpintaria. Teve de lha oferecer às escondidas,porque não trazia

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nada para as outras crianças da aldeia. E, antes de ele voltar para aescola, ela deu-lhe uma pulseira que fizera com um fino arame delatão e com feijões brancos e encarnados da colheita de óleo derícino que o pai dele plantara. (Quando brincavam juntos, fora elaque ensinara Paulus a fazer bois de barro para as suas parelhas debonecos.) Era moda, até em cidades planas como aquela ondeficava a escola que ele frequentava, os rapazes usarem pulseirasde pêlo de elefante e outro tipo de braceletes ao lado dos relógios,e a sua foi cobiçada pelos amigos que lhe pediram que lhesarranjasse outras iguais. Ele disse que os nativos as faziam naherdade do seu pai e que tentaria arranjá-las.

Aos 15 anos, tinha um metro e oitenta de altura e dançava nosbailes da escola com as raparigas da escola de "freiras" da mesmacidade. Depois de ter aprendido a provocar, namoriscar e acariciarde forma bastante íntima estas raparigas, que eram filhas deprósperos agricultores como o seu pai, depois de ter até conhecidouma que, num casamento a que fora com os pais numa herdadepróxima, o deixara fazer aquilo que as pessoas fazem quandofazem amor, numa despensa fechada à chave... depois de estar játão longe da sua infância como de tudo isto, continuou a levar paracasa um cinto vermelho de plástico e uns brincos dourados deenfiar que comprava numa loja da cidade para a rapariga de cor,Thebedi. Dizia ao pai que o missus lhe dera aquilo comoreconhecimento por um trabalho que ela fizera para ele... e, naverdade, por vezes era chamada a ajudar na casa principal daherdade. Às raparigas da aldeia dizia que tinha um namorado queninguém conhecia que morava numa herdade muito, muito distante.E elas soltavam risadinhas abafadas, importunavam-na eadmiravam-na. Na aldeia havia um rapaz chamado Njabulo quedizia ter vontade de lhe oferecer um cinto e uns brincos.

Quando o filho do fazendeiro estava em casa de férias, eladeambulava longe da aldeia e das suas companheiras e ele davapasseios sozinho. Não combinavam nada; era um desejo intenso aque cada um obedecia por si próprio. Ainda a uma distânciaconsiderável, ele já sabia que era ela quem avistava e ela sabia queo seu cão não lhe ladraria. Lá em baixo, no leito seco do rio, onde

cinco ou seis anos antes, num dia fantástico, as crianças haviamapanhado um leguaan - uma criatura que combinava de forma idealo tamanho e a aparência feroz

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do crocodilo com a inocuidade do lagarto -, acocoravam-se ao ladoum do outro no outeiro de terra. Ele contava-lhe histórias deviajantes, falava-lhe da escola, em particular dos castigos,exagerando tanto a natureza de que se revestiam como a suaprópria indiferença em relação a eles. Ele falava-lhe da cidade deMiddleburg, que ela nunca vira. Ela não tinha nada para contar, masinstigava-o a continuar, fazendo-lhe muitas perguntas, comoqualquer bom ouvinte. Enquanto falava, torcia e arrancava as raízesde uma planta branca fedorenta e dos salgueiros do Cabo queirrompiam em laçadas da terra escavada à sua volta. Aquelesempre fora um bom local para brincadeiras de crianças, que alipodiam esconder-se entre os ramos antigos das velhas árvoresroídas pelas formigas e suportadas por outras mais vigorosas, pelosespargos selvagens que trepavam em arbustos por entre ostroncos, e aqui e ali pelos figos-do-inferno cavados e hirsutos comoo rosto de um velho, conservando inalterada a secura até à estaçãodas chuvas seguinte. Ela perfurava a pele seca de um figo-do-inferno uma e outra vez com um pau aguçado enquanto o ouvia.Ria-se muito com o que ele lhe contava, deixando, por vezes,descair o rosto até aos joelhos, partilhando o seu divertimento coma terra refrescada pela sombra por baixo dos seus pés nus.Calçava-se - usava umas sandálias brancas, demasiado brancaspor contrastarem com o pó da herdade - quando ele estava naquinta, mas tirava-as e punha-as de lado junto ao leito do rio.

Uma tarde de Verão em que a água corria livremente e estava muitocalor, ela fez um chumaço, como costumava fazer em criança, como vestido modestamente amarfanhado numa rodilha e comprimidoentre as pernas das cuecas. As meninas de colégio com quem eleia nadar nos açudes ou nos lagos das herdades vizinhas usavambiquinis, mas a visão das suas barrigas e coxas deslumbrantes aosol jamais o tinham feito sentir o que sentiu naqueles instantes emque viu a rapariga subir o outeiro e sentar-se ao seu lado, as gotas

de água cobrindo de pérolas as suas pernas escuras etransformando-as nos únicos pontos luminosos sob a sombraescura e cheirando a terra. Eles não tinham medo um do outro,conheciam-se desde sempre. Ele fez com ela aquilo que fizera nadespensa naquele casamento, mas daquela vez foi tão belo, tãobelo que ele ficou surpreendido... e ela também ficou surpreendidacom aquilo... ele conseguia ver no seu rosto negro,

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em parte na penumbra, com os seus grandes olhos negros ecintilantes como água pura, que ela o observava atentamente, comofazia quando costumavam comprimir-se por cima das parelhas debois de barro, como fazia quando ele lhe falava dos fins-de-semanade reclusão na escola.

Iam muitas vezes para o leito do rio durante as férias de Verão.Encontravam-se mesmo antes de o Sol se pôr, o que acontecia embreves minutos, e regressavam a suas casas já a noite caíra - elapara a choupana da sua mãe e ele para a casa da herdade - atempo da refeição da noite. Ele nunca mais lhe falou da escola nemda cidade. Ela nunca mais lhe fez perguntas. De todas as vezes,era ele quem dizia quando voltariam a encontrar-se. Uma ou duasvezes foi muito cedo pela manhã. O mugido das vacas, a caminhodo pasto, chegava até eles, até ao sítio onde estavam deitados,separando-os, em reconhecimento mudo do som lido nos olhos deambos, tão abertos e próximos um do outro.

Na escola, ele era um rapaz popular. Fizera parte da segunda edepois passara para a primeira equipa de futebol. Dizia-se que arapariga mais velha do colégio de "freiras" tinha um fraquinho porele, mas ele não gostava particularmente dela. No entanto, haviauma loira muito bonita que enrolava o cabelo comprido numaespécie de donut, prendendo-o com uma fita preta, que elecostumava levar ao cinema ao sábado à tarde quando ambas asescolas não tinham aulas. Conduzia tractores e outros veículosagrícolas desde os 10 anos de idade, e mal fez os 18 tirou a cartade condução. Nas férias, no último ano da sua vida escolar, levouas filhas dos vizinhos aos bailes e ao cinema ao ar livre, que

acabara de abrir a cerca de vinte quilómetros da herdade. Nessaaltura, as irmãs já eram casadas, e, aos fins-de-semana, os paisdeixavam muitas vezes a quinta ao seu cuidado, enquanto iamvisitar as jovens esposas e os netos.

Quando, num sábado à tarde, Thebedi viu o fazendeiro afastar-seno seu carro com a mulher dentro do Mercedes, cujo porta-bagagens abarrotava de aves domésticas acabadas de matar evegetais da horta, uma das incumbências do seu pai, percebeu quedevia ir não para o leito do rio mas para a casa. Esta era antiga,com paredes grossas e escuras por causa do calor. A cozinha era olocal mais vivo da casa com criados, alimentos, cães e gatossuplicantes, púcaros a ferver

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até transbordarem, roupas molhadas a serem abafadas pelo ferrode engomar e o grande congelador que o missus encomendara nacidade e sobre o qual estava um bordado de croché e um vaso deíris de plástico. Contudo, a sala de jantar com a pesada mesa depernas bojudas estava fechada, envolta no velho e rico aroma asopa e molho de tomate. As cortinas da sala de estar estavamcorridas e o televisor desligado. A porta do quarto dos pais estavafechada à chave e os quartos vazios onde as raparigas haviamdormido tinham revestimentos de plástico estendidos por cima dascamas. Era num destes que ela e o filho do fazendeiro ficavamjuntos noites inteiras... ou quase, porque ela tinha de se ir emboraantes da chegada dos criados da casa, que a conheciam, aodespontar o dia. Havia o risco de alguém a descobrir, a ela ouvestígios da sua presença, se ele a levasse para o seu quarto,apesar de ela o ter espreitado muitas vezes, quando dava umaajuda na casa, e conhecer bem a fila de taças de prata que eleganhara na escola.

Quando ela tinha 18 anos e o filho do fazendeiro 19 e trabalhavacom o pai na herdade, antes de entrar para uma escola veterinária,o jovem Njabulo pediu a mão dela em casamento ao seu pai. Ospais de Njabulo encontraram-se com os dela e o dinheiro que eleteve de lhes pagar em vez das vacas que era costume o noivo dar

aos pais da futura noiva foi determinado em conjunto. Ele não tinhavacas para oferecer, porque era um trabalhador da herdade dosEysendyck, como o pai dela. Um jovem esperto a quem o velhoEysendyck ensinara a assentar tijolos, usando-o para trabalhosocasionais de construção nas imediações. Ela não disse ao filho dofazendeiro que os pais lhe tinham arranjado o casamento. Antes deele partir para frequentar o seu primeiro ano lectivo na escolaveterinária, tão-pouco lhe disse que pensava estar grávida. Doismeses depois de se casar com Njabulo, deu à luz uma filha, semque houvesse alguma vergonha nisso. Era costume entre os seus,antes do casamento, um jovem certificar-se que a raparigaescolhida não era estéril, e Njabulo já fizera amor com elaanteriormente. No entanto, a criança tinha uma pele muito clara,que não escureceu rapidamente como acontece com a maioria dosbebés africanos. Já ao nascer ela apresentava na cabeça umaquantidade razoável de cardaço fino e liso, como o que têm assementes de certas ervas da savana. Quando abriu os olhos vagos,

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viu-se que eram cinzentos raiados de amarelo. Njabulo era do tipomate, da cor dos grãos de café opacos a que sempre se chamarapreto; as pernas de Thebedi, cheias de gotas de água, pareciamazuis da cor das conchas das ostras, da mesma cor que o seurosto, onde se destacava um par de olhos pretos sempre com umaexpressão interessada.

Njabulo não se lamentou. Com os seus proventos de trabalhador daherdade, levou de uma loja indiana um embrulho em papel decelofane, que continha uma banheira de plástico cor-de-rosa, seisbabetes, uma caixa de alfinetes-de-ama, um casaquinho de malha,uma touca e botinhas, um vestido e uma lata de pó de talcoJohnson para bebé, para a bebé de Thebedi.

Quando esta tinha duas semanas, Paulus Eysendyck veio a casade férias. Bebeu um copo de leite acabado de mugir ainda mornona atmosfera familiar da sua infância da cozinha da sua mãe eouviu-a falar com a velha criada de dentro sobre o sítio ondepodiam arranjar uma substituta de confiança para ajudar, agora que

a rapariga Thebedi tinha tido um bebé. Pela primeira vez desdecriança ele dirigiu-se à aldeia. Eram onze horas da manhã e oshomens estavam a trabalhar nas terras. Olhou em volta ansioso; asmulheres afastaram-se, sem que nenhuma quisesse aproximar-separa lhe apontar o sítio onde Thebedi morava. Thebedi surgiu,saindo devagar da choupana que Njabulo construíra ao estilo dosbrancos, com uma chaminé de folha e uma verdadeira janela comrectângulos de vidro tão direitos quanto as paredes de tijolo à provade fogo o permitiam. Ela saudou-o com as mãos juntas e ummovimento simbólico, que mostrava a respeitável cortesia queestava habituada a manifestar quando estava na presença do seupai ou da sua mãe. Ele baixou a cabeça ao transpor a porta de casadela e, ao entrar, disse-lhe:

- Quero vê-la. Mostra-ma,

Antes de sair para a luz do dia ao seu encontro, retirara a trouxadas suas costas. Movimentou-se entre a cama com armação deferro feita com os cobertores usados de Njabulo e a pequena mesade madeira onde estava a banheira cor-de-rosa no meio da comidae dos tachos e panelas, e retirou a trouxa da caixa da mercearia,confortavelmente forrada com um cobertor, onde a colocara. Acriança estava a dormir. Destapou o pequeno rosto fechado, pálidoe rechonchudo. Uma bolha

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de saliva acumulava-se no canto da boca e as mãos araneiformes ecor-de-rosa agitavam-se sem parar. Retirou-lhe a touca de lã e ocabelo fino e liso inteiriçou-se com a electricidade estática,mostrando fios de cabelo dourados aqui e ali. Ele manteve-secalado. Ela olhava para ele como fizera quando eram pequenos, e obando de crianças espezinhava uma colheita durante as suasbrincadeiras ou transgredia de alguma forma e era ele, como filhodo fazendeiro, o branco no meio deles, que tinha de interceder juntodo pai. Ela perturbou o rosto adormecido, acariciando-o ou fazendocócegas suavemente numa das faces com um dedo. Lentamente,os seus olhos abriram-se sem verem nada por causa do sono,

depois, acordaram, já sem se contraírem, e olharam para eles,cinzentos raiados de amarelo, iguais aos dele cor de avelã.

Por instantes, lutou para conter um esgar de comoção, raiva eautocomiseração. Ela não podia estender-lhe a mão. Ele perguntou-lhe:

- Não estiveste próximo da casa com ela? Ela abanou a cabeça.

- Nunca?

Ela voltou a abanar a cabeça.

- Não a leves lá para fora. Mantém-na cá dentro. Não podes levá-lapara qualquer lado? Tens que a dar a alguém...

Ela encaminhou-se para a porta com ele. Ele afirmou:

- Vou ver o que posso fazer. Ainda não sei. - E depois acrescentou:- Apetece-me matar-me.

Os olhos dela começaram a brilhar e toldaram-se de lágrimas. Porinstantes, ambos experimentaram o mesmo sentimento quecostumava surgir quando estavam sozinhos lá em baixo no leito dorio.

Ele saiu.

Dois dias mais tarde, depois de os pais terem deixado a quinta porum dia, ele voltou a aparecer. As mulheres estavam ausentes noscampos, na monda, como acontecia quando eram aproveitadaspara fazer um trabalho esporádico estival. Só as muito idosastinham ficado, escoradas ao chão, fora das suas choupanas, ao sole às moscas. Thebedi não o convidou a entrar. A criança não tinhapassado bem, tinha diarreia. Ele perguntou-lhe onde estava a suacomida, ao que ela lhe respondeu:

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- Dou-lhe o leite do meu peito.

Ele entrou em casa de Njabulo, onde a criança estava deitada; elanão o seguiu, permanecendo do lado de fora da casa a olhar, sem a

ver, para uma velha de pele murcha e rugosa, que perdera o juízo efalava sozinha e com as aves de capoeira, que a ignoravam.

Pareceu-lhe ouvir pequenos gemidos vindos da choupana, o tipo degemidos infantis que indiciam o estômago cheio ou um sonoprofundo. Algum tempo depois, longo ou curto, não sabia ao certo,ele saiu e afastou-se em largas e lentas passadas (o passo do pai),em direcção à casa do pai, até desaparecer.

O bebé não comeu durante a noite, e, apesar de ela não parar dedizer a Njabulo que a filha dormia, na manhã seguinte, ele viu comos seus próprios olhos que estava morta. Confortou-a com palavrase carícias. Ela não chorou, limitando-se a ficar ali sentada de olhosfitos na porta. As suas mãos estavam tão frias como os pés dacriança morta, em que ela tocava.

Njabulo enterrou o bebé onde os trabalhadores da herdade eramenterrados, no local da savana que o fazendeiro lhes dera. Algunsdos montes tinham sido abandonados às intempéries sem qualquermarca, outros estavam cobertos com pedras e poucos tinhamcruzes de madeira caídas. Ele ia fazer uma cruz, mas, antes de aterminar, a polícia apareceu, escavou a sepultura e levou o bebé.Alguém - seria um dos outros trabalhadores ou uma das suasmulheres? - afirmara que a criança era quase branca e que, apesarde ser robusta e saudável, morrera de repente, logo a seguir à visitado filho do fazendeiro. Testes patológicos realizados ao cadáver dacriança mostraram uma doença intestinal, que nem sempre eracompatível com a morte por causas naturais.

Thebadi foi pela primeira vez à cidade onde Paulus andara naescola para prestar o seu depoimento no exame preparatório dastestemunhas do caso de assassínio de que ele era acusado. Gritouhistericamente no banco das testemunhas, dizendo que sim, quesim (com os brincos dourados de enfiar baloiçando-lhe nas orelhas),que vira o réu despejar um líquido na boca da criança. Disse queele ameaçara matá-la com uma pistola se ela contasse a alguém.

Decorreu mais de um ano antes de, na mesma cidade, se realizar ojulgamento do caso. Chegou ao tribunal com outro recém-nascido

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às costas e usando uns brincos dourados de enfiar. Estava calma edisse que não vira o que o homem branco fizera dentro de casa.

Paulus Eysendyck afirmou tê-la visitado na choupana, masacrescentou que não envenenara a criança.

A defesa não contestou a existência de uma relação amorosa entreo réu e a rapariga nem que tinham existido relações sexuais entreeles, mas alegou não haver provas de que a criança era do réu.

O juiz comunicou ao réu que havia fortes suspeitas contra ele, masque não existiam provas suficientes de que fora ele quem cometerao crime. O tribunal não podia aceitar o testemunho da rapariga,porque era evidente que cometera perjúrio tanto durante ojulgamento como no exame preparatório das testemunhas. Eraconvicção do tribunal que ela podia ter agido como cúmplicenaquele crime; porém, uma vez mais, as provas eram insuficientes.

O juiz elogiou o comportamento honroso do marido (sentado notribunal com o boné de golfe aos quadrados castanhos e amarelosque usava aos domingos), por não ter rejeitado a sua mulher e "atéter comprado roupas para a infeliz criancinha com os seus parcosrecursos".

O veredicto do réu foi "inocente".

O jovem branco recusou-se a aceitar as felicitações da imprensa edo público e saiu do tribunal com o impermeável da mãe a tapar-lhea cara por causa dos fotógrafos. O pai disse à imprensa:

- Vou tentar continuar a viver o melhor possível para manter acabeça levantada no condado.

Entrevistada pelos jornais de domingo, que escreveram o seu nomede diversas formas, a rapariga negra, falando na sua própria língua,apareceu numa fotografia sob a qual aparecia uma citação quedizia: "Foi um episódio da nossa infância, nunca mais voltámos aver-nos."

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A Ironia do Ódio

Duth Dendell

Dentro de cinquenta ou cem anos, sempre que se fizerem listas dosmelhores escritores do nosso tempo, independentemente do géneroa que se refiram, Duth Dendell (1930) poderá muito bem vir a serum dos nomes mais bem colocados, apesar da sua longa carreiraidentificada com a escrita de policiais e histórias de detectives.Nascida em Londres e baptizada Duth Barbara Grasemann e filhade dois professores que encontraram na pintura uma forma deexpressar a sua criatividade. Tendo abandonado os estudos aos 18anos, trocou a Universidade por uma breve carreira como repórterde um jornal do Essex. Depois do casamento com um repórter seucolega, Donald Dendell, de quem teve um filho, deixou o jornalismopara se dedicar a tempo inteiro ao seu papel de mãe e a umaformação autodidacta através de um ritmo de leituras insaciável.

O primeiro romance de Dendell, From Doon with Death (1964),onde apresenta pela primeira vez a estranha dupla de polícias BegWexford e Mike Our den, segue um esquema inequivocamentetradicional, com a astúcia do enredo a convidar à inevitávelcomparação com Agatha Christie. Dendell nunca abdicou da suapredilecção por uma intriga marcada pelo sentido de justiça amedida que a densidade psicológica e temática dos seus romancesfoi ganhando em importância O seu segundo romance. To Fear aPainted Devil (1965), não pertence a uma série, e, ao longo da suacarreira, ela tem muitas vezes misturado os livros de Wexford eBurden, extremamente populares junto dos leitores, com policiaissombrios, que alcançaram ainda maior aclamação por parte dacritica. No volume Mystery and Suspense Writers (1998) da écnbnerWriters Series, B J Dahn descreve estes livros extra-série comoestando "centrados na consciência da personagem principal - querela seja vilão ou vítima -, cujos sentimentos de alienação,ansiedade, medo, ódio e angústia são experimentados em primeiramão pelo leitor" Dendeil, que era chamada Duth pelo pai e Barbarapela mãe, responde por ambos e é com eles que hoje escreve,tendo adoptado o pseudónimo Barbara Vine em The Dark-Adapted(1986) Segundo Dahn, os romances de Vine "sondam as

profundezas da psique humana mais ao jeito de Henry James doque de Patrícia Highsmith ou de Alfred Hitchcock. Os seusromances distinguem-se pela subtil manipulação do ponto de vistada narrativa e pela complexa sucessão de episódios complexos,que com frequência produzem surpresas inesperadamenteirónicas."

A par da sua prolífica produção de um ou dois livros por ano,Dendell também se tem dedicado à escrita de contos. A suaprimeira colectânea The Fallen Curtain and Other Stories (1976) foiseguida, pelo menos, por outras seis incluindo Piranha to Scurryand Other Stories (2000) "A Ironia do Ódio", ao revelar quem fez oquê na primeira frase, demonstra a perspicácia psicológica deDendell, bem como a sua habilidade para surpreender o leitor.

Assassinei Brenda Goring por aquele que creio ser o mais invulgardos motivos. Ela meteu-se entre mim e a minha mulher. Com isto,não quero dizer que houvesse algo fora do normal na relação delas.Eram simplesmente amigas muito próximas, apesar de"simplesmente" não ser a palavra mais adequada para descreveruma relação que afasta e exclui um marido outrora amado.Assassinei-a para voltar a ter a minha mulher só para mim, mas, emvez disso, separei-nos talvez para sempre e aguardo, com umpânico medonho e impotente, com a mais horrível sensação dedesamparo que jamais conheci, o julgamento que se aproxima.

Ao apresentar os factos - e a ironia, a horrível ironia que perpassapor eles como um fio nítido reluzente -, é possível que consiga veras coisas com maior clareza. Posso encontrar uma forma deconvencer esses poderes inexoráveis que existem sobre o modocomo as coisas realmente se passaram; posso fazer com que oadvogado de defesa acredite em mim e não levante o sobrolho nemabane a cabeça; posso garantir, de alguma forma, que se eu eLaura tivermos de viver separados ela saiba, quando me vir a sairdo tribunal a caminho do meu longo encarceramento, que a verdadefoi revelada e foi feita justiça.

Aqui sozinho sem mais nada para fazer, sem mais nada a esperardo que esse julgamento, podia escrever resmas sobre o carácter, aaparência e as neuroses de Brenda Goring. Podia escrever o maiorromance

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de ódio de todos os tempos. No entanto, neste contexto, muito doque escrevesse seria irrelevante, e serei tão breve quanto conseguirsê-lo.

Uma das personagens shakespeareanas afirma a propósito de umamulher: "Quem dera nunca a ter visto!", sendo a resposta: "Então,haveríeis perdido a ocasião de ver um belíssimo exemplar." Bem,quem me dera a mim nunca ter conhecido Brenda. Quanto a ela serum belíssimo exemplar, creio que também concordo com isso.Tinha sido casada em tempos. Sem dúvida para se ver livre delapara sempre, o ex-marido ter-lhe-á pago uma pensão de alimentosinaudita, optando por dar-lhe de uma só vez uma soma avultadacom que ela comprou a vivenda na rua estreita acima da nossacasa. Na nossa aldeia, ela provocou o impacte esperado de umarecém-chegada como ela. Era maravilhosa, uma espantosa lufadade ar fresco para todos aqueles casais reformados e turistas de fim-de-semana cautelosos, com as suas roupas, o seu longo cabelolouro, o seu carro desportivo, os seus talentos e o seu passado daalta roda. Pelo menos, por algum tempo. Até ela se revelar comomais do que eles podiam tolerar.

Desde o início que ela se ligou a Laura. Em certo sentido, eracompreensível, uma vez que a minha mulher era praticamente aúnica na localidade que tinha a idade dela, vivia alipermanentemente e não trabalhava fora. Era quase certo, todavia -ou assim pensava eu no início -, que ela nunca teria escolhidoLaura se o seu leque de opções tivesse sido mais abrangente. Paramim, a minha mulher é amorosa, é tudo o que eu sempre quis, aúnica mulher de quem gostei realmente, mas sei que, para osoutros, ela parece tímida, apagada, uma simples e discreta dona decasa. Que tinha ela, então, para oferecer àquela criatura

extrovertida, àquela vistosa borboleta coberta de jóias? Foi elamesma que me forneceu o início da resposta.

- Querido, não reparaste na forma como as pessoas estão acomeçar a evitá-la? Os Goldsmith não a convidaram para a festaque deram na semana passada e Mary Williamson recusa-se aaceitá-la na comissão de festas.

- Não posso dizer que fique surpreendido - respondi-lhe. - A própriamaneira como fala e os temas de conversa que escolhe.

- Estás a referir-te aos seus casos amorosos e a esse género decoisas? Mas, querido, ela viveu num tipo de sociedade onde isso é

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perfeitamente normal. Para ela é natural falar assim, é uma pessoaliberal e sincera.

- Neste momento, não vive nesse tipo de sociedade - respondi e, sequiser ser aceite, terá que se adaptar. Reparaste na cara de IsabelGoldsmith quando Brenda contou aquela história sobre uma dassuas idas para fora num fim-de-semana com um fulano qualquerque engatou num bar? Tentei evitar que ela nomeasse todos oshomens que o seu marido referira na acção de divórcio, mas nãoconsegui. E depois, ela está sempre a dizer: "Quando eu vivia comeste e aquele" e "Essa foi a época em que eu tive o meu romancecom o não-sei-quantos". Sabes que as pessoas mais velhas achamaquilo um bocado incomodativo.

- Bem, nós não somos velhos - disse Laura -, e espero quetenhamos uma mentalidade um pouco mais aberta. Tu gostas dela,não gostas?

Eu era sempre muito afável para com a minha mulher. Filha de paisinteligentes e dominadores que a depreciavam, cresceu com uminextirpável sentido da sua própria inferioridade. É uma vítima denascença, uma anfitriã do conflito, e, por isso, tentei nunca areprimir, nem sequer contrariá-la. Por isso, tudo o que disse foi queBrenda era boa pessoa e que eu ficava satisfeito, uma vez que

estava fora durante o dia, que ela tivesse encontrado uma amiga euma companhia da sua idade.

E se Brenda a tivesse ajudado e feito companhia apenas durante odia, creio que posso dizer que não teria levantado qualquerobjecção. Devia ter-me habituado à ideia de que, quase todos osdias, Laura ouvia histórias de um mundo que ela nunca conhecera,ficava a saber de episódios de sexo ilícito e glorificação daduplicidade, e devia ter-me sentido tranquilizado pela convicção deque ela era incorruptível. Contudo, eu mesmo tinha de partilhar asrefeições e os serões com Brenda quando chegava a casa depoisdas minhas longas viagens de comboio. Ela lá estava, refasteladano nosso sofá, com as suas calças de seda ou uma saia comprida ebotas altas, fumando cigarros uns atrás dos outros. Ou entãochegava com uma garrafa de vinho mal nos tivéssemos sentado àmesa para jantar e incluía-nos num daqueles seus debates favoritossobre temas como "Será o casamento uma instituição?" ou "Serãoos pais necessários?". E, para ilustrar alguns dos seus capciosospontos de vista, saía-se com uma qualquer

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experiência pessoal do tipo das que tanto perturbavam os nossosamigos mais velhos.

Claro que eu não era obrigado a ficar com elas. Nós temos umacasa muito grande, e eu podia esgueirar-me para a sala de jantarou para a saleta, a que Laura chamava o meu escritório. Todavia, aúnica coisa que eu queria era aquilo que tivera outrora: passar osserões sozinho com a minha mulher. E a situação ainda era piorquando éramos convidados para tomar um café ou uma bebida comBrenda na sua vivenda sumptuosamente mobilada e com umadecoração excessiva, a fim de que pudéssemos ver a última coisaque tinha feito: estava sempre a bordar, a tecer, a colocar flores emjarras e a fazer tolices com aguarelas - e para que ela nosmostrasse também os presentes que numa altura qualquerrecebera de Mark, Larry e Paul e das dúzias de outros homens quetinham povoado a sua vida. Quando me recusava a ir, Laura ficavanervosa e deprimida, para depois ficar pateticamente exultante

quando, depois de duas noites de ditosos serões sem Brenda, eusugeria, para lhe agradar, que fôssemos até casa da velha Brenda.

O que me confortava era a certeza de que mais cedo ou mais tardequalquer mulher aparentemente tão popular junto do sexo opostohaveria de encontrar um namorado e passar a ter menos tempo ouaté mesmo a não ter tempo nenhum para a minha mulher. Nãoconseguia compreender por que razão isso ainda não acontecera ecomentei o facto com Laura.

- Ela encontra-se com os seus amigos quando vai a Londres -afirmou a minha mulher.

- Nunca convida nenhum deles para vir até aqui - disse, admirado,e, nessa noite, quando Brenda nos presenteou com um relatoaltamente colorido sobre um pintor conhecido dela chamado Laszlo,que era terrivelmente atraente e a adorava, eu disse-lhe quegostava de o conhecer e perguntei-lhe por que razão ela não oconvidava para lá ir passar o fim-de-semana.

Brenda exibiu ostensivamente as suas longas unhas pintadas deverde e lançou a Laura um olhar conspirador, transbordante decumplicidade feminina.

- Pergunto-me o que teriam a dizer sobre isso os nossos botas-de-elástico.

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- Claro que você consegue colocar-se acima desse tipo de coisas,Brenda - disse-lhe eu.

- Claro que consigo. Dá-lhes um motivo para falarem. Estou bemconsciente de que são apenas amargos de boca. Se puder vir,Laszlo estará aqui num instante, apesar de ele odiar o campo e deisto certamente o aborrecer de morte.

Aparentemente, Richard, Jonathan e Stephen também odiavam ocampo, aborreciam-se ali ou não tinham conseguido arranjar tempo.Para Brenda era muito melhor ir a Londres e encontrar-se com elesna cidade, e eu reparei que depois da minha investigação sobreLaszlo, Brenda parecia ir a Londres com maior frequência e que as

histórias das suas escapadelas depois daquelas visitas se tornavamcada vez mais sensacionais. Considero-me um homem bastanteperspicaz, e foi assim que começou a tomar forma na minha cabeçauma ideia tão fantástica que por vezes me recusava a admiti-la, atépara mim próprio. No entanto, pu-la à prova. Em vez de ouvirapenas Brenda e intervir com uma réplica ocasional e bastanteamarga, comecei a fazer-lhe perguntas. Interpelava-a sobre datas enomes. "Pareceu-me que tinha dito que conheceu Mark naAmérica", dizia eu, ou então, "Mas tem a certeza que não passouessas férias com Richard antes de se divorciar?" Atei-acompletamente sem ela tão-pouco se aperceber disso, e a ideiacomeçou a parecer-me como não sendo assim tão fantástica, afinal.O último teste foi no Natal.

Eu reparara que quando estava sozinha comigo, Brenda era umamulher muito diferente do que quando Laura estava connosco. Porexemplo, se Laura estivesse na cozinha a fazer café ou se, comopor vezes acontecia aos fins-de-semana, Brenda aparecessequando Laura não estava em casa, mostrava-se bastante fria eenvergonhada comigo. Desapareciam os gestos ostensivos e oscomentários provocatórios e Brenda falava sobre assuntosrelacionados com a nossa aldeia de forma tão mundana comoIsabel Goldsmith. Não era exactamente o comportamento que seesperasse de uma pretensa Messalina sozinha com um homemnovo e razoavelmente atraente. Então, ocorreu-me que nos dias emque Brenda fora convidada para festas na aldeia, e mesmo quandoconhecera os vizinhos nas nossas festas, nunca tentara namoriscar.Seriam estes homens demasiado velhos, chegando ao ponto de aaborrecerem? Seria um homem bonito e elegante próximo dos 50

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demasiado velho para ser caçado por uma mulher que já passaraos 30? Claro que todos eles eram casados, mas também o eramPaul e Stephen, e, a acreditar nas suas palavras, ela não tinhaquaisquer pruridos em roubá-los às respectivas mulheres.

A acreditar nela. Esse era o busílis da questão. Nenhum delesquisera passar o Natal na sua companhia. Nenhum amante londrino

a convidara para uma festa nem se oferecera para sair com ela.Claro que no dia de Natal ela almoçou connosco, passou o dia todoem nossa casa e lá esteve também no dia 26 de Dezembroconnosco e com os nossos amigos e familiares. Pendurei umpunhado de visco-branco no nosso vestíbulo, e, na manhã do dia deNatal, fui eu mesmo quem a recebeu em nossa casa, uma vez queLaura estava ocupada na cozinha.

- Feliz Natal - disse eu. - Dê-me um beijo, Brenda - e tomei-a nosbraços debaixo do visco-branco e beijei-a na boca. Ela ficouimediatamente rígida. Posso jurar que um estremecimento de horrorlhe percorreu todo o corpo. Ficou tão incomodada, apreensiva erepugnada como uma adolescente de 12 anos na defensiva. E foientão que percebi. Casada, pode ter sido - e agora não era difícilperceber o motivo do divórcio -, mas nunca tivera um amante nemgostara de abraços, nem sequer estivera sozinha com um homemmais tempo do que o que não conseguira evitar. Era frígida. Umarapariga bonita, cheia de vida, rica e, no entanto, tinha aquelaincapacidade particular. Era fria como uma monja. Todavia, por nãoconseguir suportar a humilhação de o admitir, criou para si própriauma vida imaginária, um passado imaginário, no qual reinava comouma ninfomaníaca imaginária.

Inicialmente, encarei aquilo como uma enorme piada e malconsegui esperar pela ocasião de a contar a Laura. Todavia, sóconsegui ficar sozinho com ela a partir das duas da manhã, e,nessa altura, já ela estava a dormir quando me deitei. A minhaexaltação esmoreceu quando me apercebi que não tinha provasconcretas e que se contasse a Laura aquilo que andara a maquinar,a pôr à prova, a questionar e a testar, ela ficaria apenasamargamente magoada e ressentida. Como podia eu contar-lhe quea beijara de forma amigável e obtivera uma resposta gélida? Que,na sua ausência, tentara namoriscar com a sua melhor amiga e forarepelido? E, então, enquanto reflectia nisto, compreendi aquilo querealmente tinha descoberto, que Brenda odiava

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os homens, que jamais algum homem viria a sua casa e a levariaconsigo, casaria com ela, ficaria a viver com ela ou tomaria todo oseu tempo. Ela ficaria ali sozinha para sempre, vivendo a um passode nós, a entrar e a sair da nossa casa todos os dias, e ela e Lauraenvelheceriam juntas.

Claro que eu podia ter mudado de casa. Podia ter levado Laura dalipara fora. Para longe dos seus amigos? Fazê-la sair da casa e docampo de que ela tanto gostava? E que garantias tinha eu de queBrenda não se mudaria também para continuar perto de nós? É queagora eu compreendia o que Brenda via na minha mulher, umaingénua inocente, uma ouvinte eternamente crédula, em quem elapodia confiar e cuja inexperiência a impedia de ver os lapsos e asdiscrepâncias naquela balbúrdia de tolices e cuja determinaçãopatética em ser mundana a impedia de mostrar antipatia. À medidaque o dia amanhecia e quando olhei com amor e tristeza paraLaura, que dormia ao meu lado, apercebi-me do que tinha quefazer, da única coisa que podia fazer. Na época da paz e da boavontade, decidi matar Brenda Goring pela nossa paz e sossego,minha e de Laura.

Mais depressa o tivesse pensado, mais depressa o teria executado.Sentia-me salvaguardado por saber que aos olhos de toda a genteeu não tinha nenhum motivo para a matar. Os nossos vizinhosconsideravam-nos umas pessoas maravilhosamente caridosas etolerantes, já que até aturávamos Brenda. Decidi ser positivamentesimpático para com ela em vez de ser apenas negativamentebonacheirão, e como se aproximava o Ano Novo passei a visitarBrenda quando regressava do correio ou das compras que ia fazerà cidade. E se ao regressar do trabalho, encontrasse Laura sozinha,perguntava-lhe onde estava Brenda e sugeria-lhe que lhetelefonássemos de imediato para lhe perguntar se queria vir jantarconnosco ou aparecer para tomar uma bebida. Isto agradava muitoa Laura.

- Sempre pensei que não gostasses muito de Brenda, querido -disse ela -, e isso fazia-me sentir bastante culpada. É maravilhosoque comeces a ver como ela é, de facto, simpática.

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Na verdade, o que comecei a ver foi a forma como iria matá-la edespachar o assunto de uma vez por todas, já que algo aconteceuque pareceu entregar-ma de bandeja. Nos subúrbios da aldeia,numa pequena casa isolada, vivia uma idosa solteira, chamadaPeggy Daley. Num dia da última semana de Janeiro, esta casa foiassaltada e Peggy foi apunhalada até à morte com a sua própriafaca da cozinha. Obra de um psicopata qualquer, parecia julgar apolícia, porque nada fora roubado nem danificado. Como pareciaprovável que não conseguiriam encontrar o assassino, comecei amagicar como poderia eu matar Brenda da mesma forma para quea sua morte parecesse obra do mesmo perpetrador. Justamente naaltura em que planeava isto, Laura adoeceu com uma gripe queMary Williamson lhe pegou.

Claro que Brenda vinha tratar dela, cozinhar o meu jantar e limpar-nos a casa. Uma vez que toda a gente acreditava que o assassinode Peggy Daley ainda deambulava livremente pela aldeia, euacompanhava Brenda a casa à noite, apesar de ela morar aescassos metros de distância, no cimo da rua ou caminho estreitoque contornava a extremidade do nosso jardim. Aquilo eracompletamente escuro, porque todos nos havíamos opostoterminantemente à instalação da iluminação da rua. E, de repente,sentia um prazer irónico ao reparar como Brenda vacilava e sentiaaversão quando, nestas ocasiões, eu a obrigava a tomar o meubraço. Eu fazia sempre questão de entrar em sua casa com ela eacender todas as luzes. Quando Laura começou a melhorar e, ànoite, a querer apenas dormir, por vezes eu ia levar Brenda a casamais cedo e tomava uma bebida com ela. Certa vez, ao sair, dei-lheum beijo de amizade na soleira da porta da entrada para mostrar aqualquer vizinho que estivesse a observar-nos como éramosamigos e como eu apreciava a amabilidade de Brenda para com aminha mulher doente.

Depois, fui eu que apanhei uma gripe. No início, pareceu-me queiria interferir com os meus planos, porque não podia permitir-meadiar aquilo por muito tempo. As pessoas começavam já a estarmenos apreensivas em relação ao nosso assassino saqueador e a

voltar aos anteriores hábitos de deixarem as portas das traseirasdestrancadas. Porém, nessa altura, percebi como podia transformara minha doença num elemento vantajoso para mim próprio. Nasegunda-feira, quando estava confinado à minha cama havia já trêsdias, e Brenda, esse anjo protector, se mostrava

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quase tão preocupada comigo como a minha própria mulher, Lauracomentou que não iria a casa dos Goldsmith nessa noite, conformeprometera, porque parecia mal deixar-me. No entanto, se euestivesse melhor nessa altura, iria ajudar Isabel a cortar um vestidona quarta-feira. Claro que Brenda podia ter-se oferecido para ficarcomigo, e julgo que Laura ficou um pouco surpreendida por ela nãoo ter feito. Eu compreendi as suas razões, e ri-me sozinho porcausa disso. Uma coisa era Brenda gabar-se e deliciar-nos com ashistórias de todos os homens de quem tratara no passado, outra,muito diferente, era ver-se sozinha com um homem que nãoestivesse muito doente no quarto deste último.

Era por isso que eu tinha de estar suficientemente doente para terum álibi, mas não demasiado para que Laura não ficasse em casa.Na manhã de quarta-feira, sentia-me muito melhor. O doutorLawson passou por nossa casa para me ver quando regressava dassuas visitas da tarde, e, depois de um exame meticuloso, disse queeu ainda continuava com mucosidades no peito. Enquanto estavana casa de banho a lavar as mãos e a fazer qualquer coisa com oseu estetoscópio, agarrei no termómetro que ele me pusera na bocae mantive-o encostado ao aquecimento que estava por detrás dacama. Aquilo resultou melhor do que eu pensava, de facto, resultouquase com demasiada perfeição. O mercúrio subiu até aos trinta enove e quatro graus célsios e, por isso, menti, dizendo numa vozdébil, que me sentia tonto e continuava a alternar suores comarrepios de frio.

- Deixem-no estar na cama - disse o dr. Lawson -, e dêem-lhemuitas bebidas quentes. Duvido que consiga levantar-se, mesmoque tente.

Confessei algo envergonhado que tinha tentado e não conseguira, eque as minhas pernas pareciam de gelatina. Laura disseimediatamente que não sairia nessa noite, e eu abençoei Lawsonpor ele lhe dizer para não ser tola. Precisava simplesmente derepousar e que me deixassem dormir. Depois de mostrar umagrande inquietação, de se autocensurar e de prometer que não sedemoraria mais de duas horas, no máximo, ela saiu finalmente àssete horas.

Assim que o carro partiu, levantei-me. Da janela do meu quarto, viaa casa de Brenda, e vi que ela tinha as luzes acesas, mas não a doalpendre. A noite estava escura, sem luar nem estrelas no céu. Vestiumas calças e uma camisola por cima do pijama e dirigi-me para asescadas que conduziam à porta da rua.

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Quando já ia a meio das escadas, apercebi-me que não precisavade me fingir doente nem aborrecido com o estratagema dotermómetro. Eu estava doente. Tremia e vacilava, sentindo de vezem quando enormes vertigens, ao ponto de ter de me segurar aocorrimão para me amparar. Aquela não era a única coisa que estavaa correr mal. Depois de o ter feito e quando já voltava para casa, aminha intenção era trespassar o meu casaco e as minhas luvascom a tesoura eléctrica de Laura e queimar os bocados de tecidona lareira da nossa sala de estar. Contudo, não consegui encontrara tesoura e depreendi que Laura a tivesse levado consigo para asessão de provas. Pior do que isso era que a lareira estavaapagada. O nosso aquecimento central era muito eficaz e nós sóacendíamos a lareira pelo prazer e aconchego que nosproporcionava quando ali estávamos. Laura, porém, não seincomodara a acendê-la enquanto eu estivera doente no andar decima. Naquele momento, quase desisti, mas "era agora ou nunca".Não mais voltaria a ter aquelas circunstâncias e um álibisemelhante. "Ou a mato agora", pensei, "ou continuo a viver o restoda minha vida num odioso ménage à trois".

Guardávamos os impermeáveis e as luvas que usávamos najardinagem num armário da cozinha, próximo da porta das traseiras.

Laura deixara acesa apenas a luz do vestíbulo, e não me pareceusensato voltar a acendê-la. Na penumbra, procurei às apalpadelas omeu impermeável dentro do armário, encontrei-o e vesti-o. Pareceu-me apertado; o meu corpo estava demasiado hirto e transpirado,mas consegui abotoá-lo até cima e depois calcei as luvas. Leveicomigo uma das nossas facas da cozinha e saí pela porta dastraseiras. A noite não estava gelada, apenas húmida, fria e abafada.

Desci pelo nosso jardim, subi a rua estreita e entrei no jardim deBrenda. Tinha de seguir pelo caminho que contornava a partelateral da casa, porque aí estaria tudo completamente às escuras.Porém, a luz da cozinha estava acesa e a porta das traseirasdestrancada. Dei uma pancada leve e entrei sem esperar umaresposta. Brenda, vestida com um trajo de noite, com um colete eum colar dourados e uma saia comprida, cozinhava o seu jantarsolitário. E então, pela primeira vez, quando já não era importante,quando já era tarde de mais, senti pena dela. Ali estava ela, umamulher bonita, rica e prendada, com a reputação de sedutora, mas,na verdade, tão carente de pessoas que

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realmente gostassem dela como a pobre idosa, Peggy Daley. Aliestava ela, vestida para uma festa, a aquecer esparguete enlatadona cozinha de uma casa toda em desalinho.

Ela virou-se, parecendo apreensiva, mas, segundo creio, apenasporque quando estávamos sozinhos ficava sempre com medo queeu tentasse fazer amor com ela.

- O que estás a fazer fora da cama? - perguntou-me ela. E, depois: -Porque estás com essas roupas vestidas?

Não lhe respondi. Apunhalei-a no peito várias vezes. Ela nãoproferiu qualquer som, apenas um breve gemido abafado, e, já nochão, não resistiu. Apesar de eu saber como seria, assim oesperara, o choque foi tão grande e já me sentia tão inundado eestranho que tudo o que quis foi atirar-me também para o chão,fechar os olhos e dormir. Mas isso era impossível. Apaguei o lumedo fogão, verifiquei se não tinha sangue nas minhas calças nem nos

meus sapatos, embora, claro, tivesse muito no impermeável, edepois saí a cambalear, apagando a luz atrás de mim.

Não sei como consegui descobrir o caminho de regresso, estavatão escuro e eu sentia a cabeça oca e o coração a martelar-me nopeito. Só tive a presença de espírito para despir o impermeável,descalçar as luvas e metê-los no incinerador do nosso jardim. Namanhã seguinte, teria de me levantar com forças suficientes para osqueimar antes de o corpo de Brenda ser encontrado. Lavei a faca evoltei a colocá-la na gaveta.

Laura chegou cerca de cinco minutos depois de eu me ter deitadonovamente. Demorara-se menos de meia hora. Voltei-me econsegui soerguer-me para lhe perguntar porque voltara tão cedo.Pareceu-me ver-lhe no rosto um estranho ar furioso.

- O que se passa? - resmoneei - Estavas preocupada comigo?

- Não - disse ela -, não - mas não se aproximou de mim nem pôs asua mão na minha testa. - Foi... Isabel Goldsmith que me disse umacoisa... que me deixou indisposta... N... Não vale a pena falarmosdisso agora, estás demasiado doente - disse ela no tom maissarcástico que alguma vez eu a ouvira proferir. - Queres que te façaalguma coisa?

- Só quero dormir - respondi-lhe.

- Vou dormir no outro quarto. Boa-noite.

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Aquilo era bastante razoável, mas nunca tínhamos dormidoseparados, ao longo de todos aqueles anos em que estávamoscasados, e dificilmente ela tivera receio que eu lhe pegasse a gripe,porque ela própria fora a primeira a apanhá-la. No entanto, eu nãoestava em condições de me preocupar com isso, e caí num sonofebril povoado por um tumulto de pesadelos. Lembro-me de um dossonhos. Era aquele em que a própria Laura encontrava o corpo deBrenda, uma eventualidade provável.

Contudo, não foi ela que o encontrou, mas sim a empregada delimpeza de Brenda. Eu percebi o que tinha acontecido, porque da

minha janela vi o carro da polícia chegar. Cerca de uma horadepois, Laura veio ter comigo para me dar a notícia, que souberapor Jack Williamson.

- Deve ter sido o mesmo homem que matou Peggy - disse ela. Eu jáme sentia melhor. As coisas estavam a correr bem.

- Minha queridinha - disse-lhe eu -, deves estar a sentir-tepessimamente, vocês eram tão amigas.

Ela não disse nada. Esticou a roupa da minha cama e saiu doquarto. Percebi que tinha de me levantar e ir queimar o conteúdo daincineradora, mas não consegui levantar-me. Pus os pés de fora etentei chegar com eles ao chão, mas era como se o chão viesse aomeu encontro e voltasse a empurrá-los para cima. Não fiqueiexcessivamente preocupado. A polícia pensaria o que Laurapensou, o que toda a gente pensaria.

Nessa tarde, vieram a nossa casa um inspector e um sargento.Laura levou-os até ao nosso quarto e ambos falaram connosco. Oinspector disse que lhe constara que nós éramos muito amigos damulher assassinada e queria saber quando a tínhamos visto pelaúltima vez e o que tínhamos feito na noite anterior. Depois,perguntou se tínhamos alguma ideia sobre quem a pudesse termorto.

- Aquele louco que assassinou a outra mulher, claro - disse Laura.

- Vejo que não lêem os jornais - respondeu ele.

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Normalmente lemos. Eu costumava ler um jornal da manhã noescritório e trazer para casa um vespertino, mas estivera em casadoente. Acontecia que, na manhã anterior, fora preso um homempelo assassínio de Peggy Daley. O choque fez-me estremecer etenho a certeza que empalideci, mas não me pareceu que ospolícias tivessem reparado nisso. Eles agradeceram a nossacolaboração, pediram desculpa por terem incomodado um doente epartiram. Depois de saírem, perguntei a Laura o que lhe dissera

Isabel, na noite anterior, para a perturbar. Ela aproximou-se de mime pôs os braços em volta do meu corpo.

- Agora, já não importa - disse ela. - A pobre Brenda morreu e foiuma forma horrível de morrer, mas... bem, devo ter sido muitocruel... mas, desculpa. Não olhes para mim assim, querido. Amo-tee sei que tu me amas, e temos que a esquecer e sermos comocostumávamos ser. Sabes o que eu quero dizer.

Eu percebia, mas estava contente porque, fosse o que fosse,estava acabado. Eu já tinha muito em que pensar mesmo semaquela frieza entre mim e a minha mulher. Apesar de nessa noite tertido Laura de novo ao meu lado, mal consegui dormir por estarpreocupado com as coisas que estavam atafulhadas naincineradora. De manhã, levantei-me, mostrando o mais possívelque estava muito melhor. Vesti-me e anunciei, apesar dasadmoestações de Laura, que ia ao jardim. A polícia já lá andava ainspeccionar os nossos jardins, na verdade, a escavar o de Brenda.

Deixaram-me em paz nesse dia e no dia seguinte, mas voltaram aaparecer e interrogaram Laura, sozinha. Perguntei-lhe o que tinhameles dito, mas ela passou rapidamente a outro assunto. Julgo terpensado que eu ainda não estava completamente restabelecidopara saber que eles lhe tinham feito perguntas sobre os meusmovimentos e a minha atitude para com Brenda.

- Só um monte de perguntas de rotina, querido - disse ela, mas eutinha a certeza que ela receava por mim, e foi então que entre nósse ergueu a barreira do seu receio por mim e do meu por mimpróprio. Parece incrível, mas naquele domingo mal falámos um como outro e quando o fazíamos o nome de Brenda não era referido. Ànoite, sentámo-nos em silêncio e eu pus o meu braço em volta deLaura e ela pousou a cabeça no meu ombro e esperámos,esperámos...

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A polícia apareceu de manhã com um mandado de buscadomiciliária. Pediram a Laura para ir para a sala de estar e a mimpara aguardar no escritório. E então percebi que era apenas uma

questão de tempo. Eles encontrariam a faca, e, claro, encontrariamnela o sangue de Brenda. Sentia-me tão mal quando a limpei queagora já não me lembrava se a esfregara ou se a passarasimplesmente por água.

Algum tempo depois, o inspector entrou sozinho.

- O senhor disse-nos que era um amigo chegado de Miss Goring.

- Eu era simpático com ela - respondi, tentando manter a voz firme.- Ela era amiga da minha mulher.

Ele tomou nota disto.

- O senhor não nos disse que eram íntimos, que o senhor, naverdade, mantinha uma relação sexual com ela.

Nada do que ele pudesse ter-me dito me surpreenderia mais.

- Isso é um perfeito disparate!

- Ah, é? Soubemo-lo de fonte segura.

- Que fonte? - perguntei - Ou esse é o tipo de coisa que não podedizer?

- Não vejo mal nenhum em lho dizer - afirmou ele sem dificuldade. -A própria Miss Goring informou desse facto duas amigas deLondres. Confessou-o a uma das suas vizinhas, que conheceunuma festa em sua casa. O senhor foi visto a passar serões inteirossozinho com Miss Goring, enquanto a sua mulher estava doente, etemos uma testemunha que o viu despedir-se dela com um beijo.

Agora eu percebia o que essa Isabel Goldsmith contara a Laura eque tanto a perturbara. A ironia disso, a ironia... Conhecendo areputação de Brenda e as suas fantasias, por que motivo nãosuspeitara eu da maquinação que estava a ser orquestrada emvolta da minha presumível amizade com ela? Aqui estava o motivo,em cuja inexistência eu confiara como meu último recurso. Éverdade que os maridos matam as amantes por ciúmes, porfrustração, por medo de serem descobertos.

No entanto, poderia eu aproveitar as fantasias de Brenda em meuproveito?

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- Ela tinha dúzias de amigos, de amantes ou o que quer que queirachamar-lhe. Qualquer um deles podia tê-la morto.

- Pelo contrário - disse o inspector -, excepção feita ao ex-marido,que está na Austrália, não conseguimos encontrar nenhum homemna sua vida além de si.

Gritei desesperadamente.

- Eu não a matei! Juro que não a matei. Ele pareceu surpreendido.

- Ah, nós sabemos disso. - Pela primeira vez tratou-me por senhor. -Nós sabemos disso, senhor. Ninguém está a acusá-lo de nada.Temos a palavra do doutor Lawson em como estava fisicamenteincapaz de deixar a sua cama nessa noite, e o impermeável e asluvas que encontrámos na sua incineradora não lhe pertencem.

Tacteando no escuro, cambaleando com as mangas doimpermeável demasiado curtas, os ombros excessivamenteapertados...

- Porque estás com essas roupas vestidas? - perguntou-me elaantes de eu a apunhalar.

- Quero que tente manter-se calmo, senhor - disse ele com muitadelicadeza. Mas, desde então, nunca mais consegui ficar calmo.Confessei vezes sem conta, escrevi declarações, protestei,enfureci-me, apresentei todos os pormenores sobre o que fizeranaquela noite e chorei. Depois, fiquei calado. Só conseguia olhá-lofixamente.

- Eu vim aqui ter consigo, senhor - disse-me ele -, apenas paraconfirmar um facto sobre o qual já tínhamos a certeza e para lheperguntar se gostaria de acompanhar a sua mulher até à esquadrada polícia, onde ela irá ser formalmente acusada do assassínio deBrenda Goring.

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Doce Baby Jenny

Joyce Harrington, uma antiga actriz cuja verdadeira idadepermanece envolta em mistério, conforme manda a tradição teatral,começou a sua carreira como escritora de policiais. O seu primeiroconto, The Purple Shroud (fllcry Queen's Mystery Magazine,Setembro de 1972), ganhou o prémio Edgar. Edward D. Hoch, noseu St. James Guide to Crime & Mystery Writers (4.a edição, 1996).descreveu esse texto "como uma narrativa sóbria sobre umprofessor de arte que lecciona um curso de Verão e a esposa queele atraiçoou que se vai progressivamente transformando numahistória policial onde está presente uma componente de terror nãoexplícita. A segunda narrativa de Harrington, The Plastic Jungle éainda melhor, tratando-se da história macabra de uma rapariga quevive com a mãe na sociedade artificial do tempo presente".

Nascida em Jersey City, estado de New Jersey, Harrington estudouteatro no Pasadena Playhouse. Em entrevista à EQMM, revelou queteve muitos empregos e trabalhou para muitos patrões "desde umafábrica de puxadores de portas até à distribuição de víveres,vestuário e equipamento como elemento do Corpo do Exércitoamericano"; mais tarde, teve uma carreira de sucesso napublicidade e como relações públicas.

Harrington escreveu três romances notavelmente distintos e queforam muito bem acolhidos: No One Knows My Name (1980). umpolicial clássico passado no meio teatral; Family Reunion (1982),uma variante do gótico moderno, e Dreemz of the Night (1987),onde surge o ambiente raramente explorado dos graffiti enquantoforma de arte. É, no entanto, como escritora de contos que continuaa ser mais conhecida. Embora até hoje as suas histórias nãotenham sido reunidas numa colectânea, ela faz parte do grupo degrandes autores de contos policiais não ficando atrás de nomescomo os de Qoald Dahl e Stanley Ellin. Um dos seus atributos é otalento para escrever numa grande variedade de estilos, incluindonarrativas situadas em meios rurais como é o caso de Swett BabyJenny.

Eu nunca tive mãe, pelo menos que me lembre. Um dia devo tertido uma, porque tanto quanto sei não nasci de nenhum ovo. E atéos pintos se aconchegam debaixo da galinha à procura de umpequeno espaço onde possam encaixar-se antes de ela os enxotarpara fora do ninho. Mas eu nunca tive uma galinha a que meaconchegasse nem que me desse bicadas na cabeça se fizessealguma coisa errada. Não que alguma vez tivesse feito algo deerrado. Pelo menos, algo que eu soubesse que estava errado. Hámuitas coisas que se passam que para mim são uma completaconfusão, e eu não consigo dizer o que está bem e o que está malnelas. Por exemplo, lembro-me quando Ace - é o meu irmão maisvelho e o que tomou conta de nós quando o pai foi embora -,lembro-me que quando o trabalho dele era conduzir uma camionetade cerveja e distribuí-la por todas as lojas da cidade que a cavecostumava estar sempre cheia de embalagens de seis garrafas. Umdia, perguntei-lhe:

- Ace, se tu tens a cave cheia de cerveja, porque é que eu nãoposso enchê-la de Coca-Cola? Não gosto de cerveja.

Acho que tinha mais ou menos nove ou dez anos nessa altura enunca me fartava de beber Coca-Cola. Bem, Ace riu e disse:

- Doce Baby Jenny -... era assim que todos eles me tratavam,mesmo depois de eu já ser bem crescida... - Doce Baby Jenny, seeu conduzisse uma camioneta com Coca-Cola tu podias flutuar atéao céu num mar dela. E agora bebe a tua cerveja e aprende agostar dela.

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Nunca fui burra, apesar de não ir muito bem na escola, por isso nãodemorou muito tempo a perceber que Ace transportava quase tantacerveja para a cave como a que entregava no Big Jumbo'sSuperette ao fundo da rua principal. Por isso, quando fui apanhadana drogaria com um batom no bolso não me pareceu justo da suaparte que tivesse começado a empurrar-me, a dar-me uma grandebronca e a repreender-me em frente daquele gerente de carasebenta. Fiquei simplesmente ali, de pé, a olhar para ele com

piquinhos nos olhos até sairmos e nos dirigirmos para a carrinha.Nessa altura, perguntei-lhe:

- Qual é a diferença entre um batomzinho de nada e uma cavecheia de cerveja?

Ele replicou com um sorriso rasgado:

- Isso é uma adivinha? E eu respondi-lhe:

- Não, gostava mesmo de saber. E ele disse:

- A diferença, doce Baby Jenny, é que tu foste apanhada. Agora,pergunto-vos.

Foi diferente, no entanto, quando ele foi apanhado. Nessa altura,ele amaldiçoou, insultou e deu pontapés na varanda até ela sedesprender da casa, enquanto os rapazes da companhia dascervejas carregavam toda aquela cerveja para fora da cave evoltavam a arrumá-la na camioneta. Quando foram embora, euperguntei-lhe, num tom de voz tão doce como melaço:

- Ace, querido, porque é que continuas com isto? E ele respondeu:

- Bolas, Jenny, eles levaram a minha cerveja. Estou-me nas tintaspara o emprego, era um emprego de burro, no fundo, mas eutrabalhei muito para conseguir aquela cerveja e eles não tinhamnada que a levar.

- Mas, Ace - disse eu, pegando-lhe na mão e baloiçando-a comouma corda de saltar -, não é verdade que roubaste aquela cerveja efoste apanhado e por isso tinhas que a devolver, tal como eu fizcom aquele batom?

Bem, ele empurrou-me com tanta força que eu fui parar em cima davelha máquina de lavar que estava no pátio à espera que alguém aarranjasse e gritou:

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- Eu não roubei nada e nunca mais voltes a dizer que roubei! Aquelacerveja era aquilo a que eles chamam um benefício em géneros, sóque não sabiam que estavam a dar-mo. Nem sequer me pagam o

suficiente para te poder comprar fitas para o cabelo e ainda para teralgum dinheiro para uns copitos. Só tiro aquilo que me é devido.

Bem, em relação a uma coisa ele tinha razão. Eu não tinha nada aque se pudesse chamar uma fita para o cabelo, e prendia asminhas tranças com os fios que tinha tirado de uma velha bolsa detabaco Bull Durham que era de Deucy.

Deucy, como talvez já tenham adivinhado, é o meu irmão a seguirao mais velho, é um malandrim preguiçoso e sem iniciativa, apesarde algumas pessoas pensarem que é bonito e que devia ser umaestrela de cinema. O nome de Ace na Bíblia da família é Arthur, eDeucy está registado como Dennis. Depois, vêm o Earl, o Wesley eo Pembrook. E depois sou eu, Jennet Maybelle. O meu é o últimonome que está escrito na página dos nascimentos. No sítio dasmortes, o último nome é o de Flora Janine Taggert. Foi escrito emletras pretas pontiagudas como se a caneta tivesse golpeado apágina, e a data é de cerca de um mês depois de o meu nomeaparecer escrito na página dos nascimentos. Sei que é a minhamãe, apesar de nunca ninguém mo ter dito. E nunca ninguém medisse como ela morreu. Quanto ao pai, não há nenhuma página naBíblia para as pessoas que simplesmente decidem ir-se embora.

Deucy toca guitarra, canta e pensa que é Conway Twitty. Diz quequer ir para Nashville e voltar ao volante de um Cadillac comestofos de pele de leopardo. Eu bem que gostava de ver isso,embora ache que nunca vai acontecer. É que Deucy é demasiadopreguiçoso para sair do baloiço do alpendre e ir buscar um copo deágua. É sempre, "doce Baby Jenny, vai buscar-me isto e vai buscar-me aquilo." A única coisa em que ele não é muito preguiçoso é emlevantar o rabo e ir para a mesa.

Isso não impede que as raparigas apareçam em bandos e lheofereçam presentes com sorrisos dengosos como porcos farejandoos cueiros de um bebé. Cada uma delas tem esperanças - e rezapara que isso aconteça - de ser a escolhida para ir com ele paraNashville e voltar naquele Cadillac. E ele não se dá ao trabalho deas tranquilizar em relação a esse assunto. Só queria que ouvissem

como o baloiço do alpendre range no escuro, à noite. São mesmoburras.

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Já Earl e Wesley, esses sim, esforçam-se. Não são muito bonitos,apesar de terem os cabelos pretos e o nariz dos Taggert. Lembro-me de o pai dizer que tinha sangue Cherokee e que isso se via emtodos os seus filhos. Contudo, enquanto Ace e Deucy parecemchefes índios, Earl é estrábico e Wesley partiu o nariz quando caiude uma árvore e perdeu a maior parte do cabelo por causa daescarlatina. Por isso, esforçam-se. Andam sempre metidos emnegócios juntos.

Uma vez meteram-se no negócio dos ovos e tivemos galinhas pelacasa toda, correndo de um lado para o outro. Eles diziam que iamvender os ovos mais baratos do que toda a gente nas redondezas eiam fazer fortuna e depois partiríamos para a Califórnia eviveríamos num grande hotel com piscina e criados que nos trariamhambúrgueres sempre que estalássemos os dedos. Bem, de facto,as pessoas compravam os ovos, mas do que Earl e Wesleypareciam ter-se esquecido era que aquelas duzentas galinhascomiam muita ração e eles nunca conseguiram descobrir umaforma de liquidar a dívida que tinham na loja de rações. Eu tenteidizer-lhes que o que podiam fazer era subir o preço dos ovos efazer com que parecesse que tinham algo de especial para que aspessoas quisessem comprar os Ovos Frescos dos Taggertindependentemente do preço. Porém, Earl e Wesley limitaram-se aempurrar-me para o lado, dizendo:

- Doce Baby Jenny, tu não passas de uma simples rapariga e nãopercebes nada de negócios. Agora vai lá dar de comer às galinhas,vai buscar os ovos e faz-nos uma das tuas belas tortas de pêssegopara o jantar. Não há dúvida que os negócios fazem um homemficar com fome.

Bom, rapidamente, a loja de rações cortou-lhes o crédito e deixoude haver comida para alimentar as galinhas, por isso tivemos decomer tantas quantas conseguimos antes que morressem à fome. Efoi assim que acabou o negócio dos ovos. Sendo ambos de coração

sensível e tendo ficado consumidos pela tristeza, Earl e Wesley nãoconseguiram matar nem uma única galinha sequer. Eu gostava detorcer o meu braço em volta do pescoço daquelas galinhas.Costumava gostar de galinha frita, mas agora já não gosto.

Pembrook é o mais esperto. Não rouba, não canta, nem se meteem negócios. Está na Universidade do nosso estado a estudar paraser advogado. Era o único que costumava falar comigo, por isso,sinto a

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sua falta. Sempre quis perguntar-lhe o que acontecera à nossamãe, como é que ela tinha morrido e por que razão o pai fugiudaquela maneira, mas nunca consegui arranjar coragem.

Pembrook escreve-me duas vezes por mês a contar-me comocorrem as coisas na Universidade. Não há dúvida que me parece irmuito bem. Ele está sempre a dizer-me que devia voltar a estudar eacabar a escola para ir para a Universidade e aprender a seralguém. Bem, até que ia gostar disso, mas depois quem ia tomarconta dos rapazes? A razão pela qual eu nunca fui muito boa naescola foi porque nunca tive tempo para estudar, tinha de cuidar dosrapazes como se fosse a mãe deles e não a Baby Jane, como elesme chamavam. Só Pembrook nunca me tratou assim.

Outra coisa que eu sempre quis perguntar a Pembrook e nunca lheperguntei foi o que é que aconteceu para que eu parecesse umcanário num ninho de cucos. Pembrook era mais ou menosparecido com os outros rapazes, embora tivesse sempre o cabelopreto muito limpo e usasse uns óculos grandes no cimo do seunariz afilado herdado dos Taggert. Os seus olhos são castanho-escuros como os deles, e fica bonito e bronzeado sob o sol deVerão. No entanto, no Verão, as minhas sardas ficam maisavivadas, enquanto a pele entre elas fica vermelha. E o meu cabelo,que a maior parte do tempo é amarelo cor da lama, fica cada vezmais brilhante e retorcido em pequeninos caracóis, a menos que euo entrance. E os meus olhos são para esquecer. Não são nem umbocadinho parecidos com os dos rapazes. São azul-esverdeados ouverde-azulados, dependendo do tempo que faz. Quanto ao meu

nariz, não podia ser menos parecido com o dos Taggert, porqueparece o manipulo de uma bomba. É pequeno, arrebitado e feio.

Talvez seja parecida com a minha mãe, apesar de eu não ter acerteza disso, pois nunca a conheci pessoalmente nem nunca viqualquer fotografia sua.

Pembrook diz que eu sou bonita, mas isso é só porque ele gosta demim. Pembrook diz que eu sou muito parecida com Miss ClaudiaCarpenter, que é considerada a rapariga mais bonita de doiscondados, mas eu nunca a vi para poder comparar-nos. Ela é filhado presidente do único banco da cidade. É mais ou menos um anomais velha do que eu, e passa pouco tempo por aqui. Foi estudarpara

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longe e anda sempre a viajar por todo o lado. Não deve ser muitodivertido nunca estar em casa, na nossa própria casa. Pembrookdisse-me que a nossa mãe costumava trabalhar como criada emcasa dos Carpenter, em festas e assim ou quando a criadapermanente adoecia. Talvez eu consiga arranjar um trabalho assime possa pôr de parte algum dinheiro só para o caso de alguma vezdecidir fazer o que Pembrook me diz para fazer.

Lembro-me bem de uma coisa sobre o pai, antes de ele se irembora. Ele costumava contar-me histórias. Costumava sentar-sena sua grande cadeira de braços castanho-avermelhada, ajeitava-me no colo dele e dizia:

- Agora, ouve. Esta é uma história sobre uma menina má.

As histórias eram sempre diferentes, mas eram todas sobre umamenina chamada Penny Má. Era feia, má e vingativa e ninguémgostava dela. Estava sempre a arranjar sarilhos e, no final, erasempre castigada. Umas vezes, era comida pelos porcos, outrasafogava-se no ancoradouro. Uma vez, foi cortada aos bocadinhospor uma grade circular e, outra vez, caiu na tulha e morreu sufocadacom o trigo. Mas ela voltava sempre, tão má e vingativa como decostume e era por isso que se chamava Penny Má. Depois de

contar a história, o pai subia as escadas e levava-me para o meuquarto para me deitar na cama.

Eu gostava das histórias, apesar de me assustarem um bocadinho.Sabia que os porcos não comem as meninas pequeninas, masestava sempre muito atenta quando ia à pocilga. Nós já não temosporcos, mas nessa altura tínhamos alguns e eu costumava mudar-lhes a água.

Bem, as coisas pioraram tanto depois de Ace ter assaltado a bombade gasolina que fica no cruzamento e ter sido reconhecido porJunior Mulligan, que por acaso estava naquele momento a encher odepósito da sua carrinha com gasolina e nunca tinha gostado deAce desde a altura em que tinham ido caçar juntos e Ace reclamouque o veado era seu e empurrou Junior para a Dead Man's Gully,partindo-lhe a perna. Por isso, Júnior foi à polícia e eles vieram earrastaram Ace para fora do Red Rooster Café onde ele estava aregalar toda a gente com cerveja e ovos muito cozidos.

A casa ficou triste e solitária sem Ace para agitar as coisas, esilenciosa, com a guitarra de Deucy no prego e ele sem conseguircantar

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uma bendita nota, de tão desgostoso que estava. Earl e Wesleytentaram vender seguros pelas redondezas, mas nenhum dosnossos conhecimentos podia pagar qualquer um deles e aspessoas que não conhecíamos não os compravam. Por isso,sobrou para mim.

Voltei à ideia de me tornar criada, como Pembrook me dissera quea nossa mãe fora. Não me importava de trabalhar em casa deoutras pessoas, apesar de Deucy dizer que não era digno nempróprio de um Taggert. Tanto quanto eu podia ver, Deucy pensavaque não havia nenhum trabalho que fosse digno, excepto talvez ode gastar as molas do baloiço do alpendre. Por isso, uma manhãlavei o meu corpo todo, incluindo o cabelo, cortei as unhas dosdedos grandes dos pés para conseguir calçar os sapatos e saí comum dos vestidos da nossa mãe, que fui buscar ao guarda-fatos do

sótão, disposta a ir falar com Mrs. Carpenter. O vestido ficava-memuito bem, embora fosse um pouco comprido e parecesse algoestranho com as minhas sapatilhas de atacadores e pala subida.Mas era tudo o que tinha, por isso, ia ter de servir.

Caminhei em direcção à cidade, enfunando a saia do vestido àminha volta e agitando a parte da frente de vez em quando, paraque o suor não deixasse manchas nas pintas verdes e brancas.Cheguei a casa dos Carpenter antes de o Sol ter atingido o meio docéu, mais ou menos na altura em que Deucy devia estar a rebolarpara fora da cama e a gritar a plenos pulmões pelo café. Naquelamanhã, teria de preparar o seu próprio pequeno-almoço. Mantive amão pousada no portão de ferro e contemplei a casa durante algunsinstantes. Era grande e brilhava, tão alva como um bolo de noiva.Devia haver cerca de duas dúzias de janelas só na parte da frente.Da rua conseguia-se ver aquilo que parecia ser a extensão de relvamais verde que eu jamais vira, subindo até uma fileira de arbustosespinhosos que ornamentava a entrada.

Eu já a vira antes, quando Ace me levava na camioneta da cervejae me dizia que tudo o que precisava era de assaltar um banco, edepois viríamos viver para este lado da cidade, para junto dos ricos.Nunca tinha olhado para ela com atenção, no entanto, porquepensava que ele estava a brincar. Naquele momento, fiquei a olharpara ela até estremecer e pensar se devia dirigir-me directamente àporta da entrada ou esgueirar-me até às traseiras. Fiquei ali tantotempo

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de pé que me pareceu que os meus pés tinham ganho raízes, queestavam presos ao passeio e que se ao menos conseguisse soltar-me, correria para casa e ficaria lá para sempre.

Contudo, depois lembrei-me que lá deixara menos de duzentos evinte e cinco gramas de café e a quantidade de farinha suficientepara mais um tabuleiro de biscoitos, e empurrei aquele portão deferro e dirigi-me para a grande porta da entrada. Tive a impressãode ter demorado uma hora a subir o caminho. Os meus péspareciam grandes e velhas jangadas e o meu cabelo soltava-se das

tranças que eu penteara e entrançara tão bem. Alcancei a entrada,todavia, pousei o dedo na campainha da porta e ouvi-a ressoar nointerior como um sino. Aguardei, mas a porta continuou fechada.

Era uma porta bonita, pintada de branco como o resto da casa, e,enquanto esperava, observei cada uma das suas almofadas, ogrande puxador de bronze e a caixa do correio ao seu lado.Perguntei-me se deveria tocar de novo. Talvez não estivesseninguém em casa. Talvez eu tivesse vindo de tão longe para nada.Talvez eles não me quisessem para criada, mesmo que estivessemem casa. O vestido verde e branco descaía em volta das minhaspernas e tinha as sapatilhas cobertas de pó da estrada. Talvezfosse melhor ir para casa e esperar até me ocorrer uma ideiamelhor.

Virei-me e comecei a descer os degraus da entrada. Foi então queouvi a porta abrir-se atrás de mim e uma voz estridente como umgaio dizer: "Sim, faz favor."

Olhei para trás e vi uma mulher alta e magra que me olhavafixamente, franzindo a testa de uma maneira que me causou umarrepio apesar do calor.

- Miss Carpenter? - perguntei.

- Sim, sou eu - disse ela. - E você quem é? O que deseja? Estoumuito ocupada.

Senti a garganta apertada e não conseguia engolir, por isso quandolhe disse, "Venho oferecer-me como criada", pensei que talvez elanão tivesse conseguido ouvir-me, porque eu própria não me ouvi.

- O quê? - perguntou ela. - Fale mais alto. Que história é essa dacriada?

- Venho apresentar-me - respondi-lhe -, se desejar ficar comigo.

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- Bem, Deus existe! - disse ela, exibindo todos os seus dentesamarelos. - Se você não é a resposta a uma prece! De ondeapareceu e quem lhe disse para vir aqui? Bem, deixe lá isso. Entre

e vamos começar. Parece forte. Só espero que esteja com vontadede trabalhar.

- Sim, minha senhora - respondi-lhe, e num piscar de olhosarrastou-me pela casa e levou-me até à cozinha, colocando-mediante de um lava-loiça onde havia mais pratos do que os que eualguma vez vira na vida, todos eles sujos.

- Pode começar já - disse ela. - A máquina da loiça está aqui. Euvolto daqui a pouco.

Ora, eu já vira máquinas de lavar a loiça no livro de desejos doSears Roebuck, mas nunca estivera perto de nenhuma. Sabia o queera suposto ela fazer. Não tinha era tanta certeza quanto àquilo queera suposto eu fazer. E não confiava muito em nada mais para alémdas minhas duas mãos. Por isso, comecei a lavar aqueles pratostão bem quanto conseguia, antes de os pôr na máquina só para ocaso de nos desentendermos. Eram os pratos mais bonitos que eujá vira, apesar de estarem todos encrustrados de molho de carne jáseco.

Mrs. Carpenter voltou poucos minutos depois com um par desapatos pretos e um vestido branco. Deixou-se cair numa cadeirada cozinha e sorriu para mim.

- Como te chamas, minha filha?

- Jennet Maybelle.

Não me deixou chegar à parte dos Taggert e recomeçou a falar.

- Bem, vou chamar-te Jenny. A Marcelline deixou-me ontem à noitea meio de um jantar que dei, e ia começar a fazer algunstelefonemas quando tocaste à campainha. Pago-te cinco dólarespor dia mais as refeições e a farda, mas tens que pagar tudo aquiloque partires, por isso tem cuidado com esses pratos. Cada umcusta vinte dólares.

Pousei o prato que segurava e tentei descobrir de que material seriafeito. Não pareciam ser de ouro maciço. Em nossa casa, os pratoseram velhos e estavam rachados e andavam lá por casa desde queeu me lembrava de existir. Não sei quanto tinham custado. Quando

um se partia, nós atirávamo-lo simplesmente para o leito do riachoque havia por detrás da casa, para junto do outro lixo.

Mrs. Carpenter continuou a falar.

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- Ora bem, não podes usar essas sapatilhas aqui em casa, por

isso trouxe-te uns sapatos velhos da Claudia. Talvez te sirvam. Eesta farda talvez seja um pouco grande para ti, és uma coisinhamagrizela, mas podemos apertá-la com um cinto.

Não gostei muito que ela me chamasse magrizela, já que elaprópria parecia um pau-de-virar-tripas, mas não disse nada. Ossapatos eram bonitos, com um pouquinho de salto e de um pretobrilhante, e a farda estava engomada e limpa.

Ela parou de falar por instantes e começou a observar-me mais deperto. E então perguntou:

- Eu já não te vi nalgum lado antes? Ia jurar que a tua cara me éfamiliar. De onde vens?

Apontei na direcção da nossa casa e disse:

- De Clinch Valley Road - ia dizer-lhe que em tempos a minha mãetrabalhara ali como criada, mas ela não me deu hipótese. Levantou-se de um salto, colocou os sapatos no chão e o vestido na cadeira eabanou a cabeça. - Não conheço ninguém para esses lados. Podesmudar de roupa no quarto da criada ali atrás. - Agitou a mão parauma porta do outro lado da cozinha. - E quando acabares de lavaros pratos, vai ter comigo lá acima para te dizer como deves arrumaros quartos.

O dia avançou. Não parti nenhum prato e descobri sozinha qual obotão que devia empurrar para ligar a máquina. Não há dúvida queme assustei quando começou a fazer espuma e a lançar borrifospor detrás da porta fechada, e rezei para que não se partissenenhum daqueles pratos de vinte dólares e me culpassem por isso.Mrs. Carpenter mostrou-me toda a casa e explicou-me o que eudevia fazer.

Ao meio-dia, disse-me o que devia preparar para o almoço. Ambascomemos a mesma coisa, rosbife frio que sobrara da noite anterior,e um pouco de salada de batata, mas ela almoçou na sala de jantare eu almocei na cozinha.

Bebi dois copos de leite gelado e podia ter bebido mais, mas nãoquis parecer gulosa. À tarde, ela pôs-me a lavar as janelas. Não eraum trabalho difícil de fazer, em nossa casa o trabalho era mais duro,e era um regalo ficar a olhar para as rosas das traseiras e para todaaquela relva verde da parte da frente da casa, enquanto limpava as

janelas até parecer que não estavam lá.

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Por volta das quatro horas, empurrou-me de novo para a cozinha edisse-me o que Mr. Carpenter queria para o jantar.

- Ele gosta muito de frango frito, mas parece que ninguémconsegue fazê-lo ao seu gosto. Eu sei que não consigo. E ele é apessoa mais indecentemente gulosa que conheci. Eu não comosobremesa, mas ele não se levanta da mesa sem ela.

Bem, comecei a preparar as minhas especialidades. Tinha umalarga experiência com pratos de galinha, e a minha torta depêssego era simplesmente perfeita, se é que posso dizê-lo. Mrs.Carpenter saiu da cozinha para ir fazer uma sesta depois de medizer que Mr. Carpenter queria sentar-se à mesa às 6:30 em ponto.

Às 6:30 em ponto, entrei com uma travessa de galinha frita. Mr.Carpenter desdobrou o guardanapo com um gesto firme, colocou-ono colo e começou a comer com agrado. Ele não olhou para mim,mas eu olhei para ele. Era um homem sardento e ruivo com óculosde aros dourados e colarinho apertado. Ainda não tinha falta decabelo, mas este começava a diminuir de volume, transformando-senuma espécie de tufo rosado e alourado. Os seus olhos eram azuis,ou talvez fossem verdes, era difícil perceber por detrás dos óculos,e o nariz era arrebitado na ponta como a lâmina de um sacho.

Eu preparara uma salada verde para acompanhar a galinha e eletambém a comeu com agrado, deixando por vezes o molho

escorrer-lhe pelo queixo, que limpava com uma ponta doguardanapo. Mrs. Carpenter debicava a comida e observava-otentando ver se ele estava a gostar.

Quando eu trouxe a torta de pêssego, ele reclinou-se na cadeira esuspirou.

- Esta foi a melhor refeição que comi em anos, Marcelline.

- Não é Marcelline - disse Mrs. Carpenter. - Marcelline foi-se emboraontem à noite. Esta é Jenny.

Nessa altura, ele olhou para mim. Primeiro, através das lentes dosóculos, depois sem eles. Em seguida, limpou os óculos com oguardanapo, voltou a pô-los e olhou para mim mais uma vez.

- Ah, ah! - exclamou. - Jenny. Bem, muito bem.

E levantando-se da mesa, saiu da sala sem sequer provar a minhatorta de pêssego.

Mrs. Carpenter saiu atrás dele como um foguete.

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- Paul! Paul! - vociferou ela. - E a sobremesa?

Não me importei com aquilo. A torta de pêssego é melhor enquantoestá quente, mas continua a ser muito boa no dia seguinte. Voltei alevá-la para a cozinha, acabei de a arrumar e voltei a vestir asminhas roupas para ir para casa. Esperava que Mrs. Carpenter mepagasse os meus cinco dólares para eu ter alguma coisa paramostrar a Deucy, a Earl e a Wesley, por isso demorei-me por alimais um pouco.

Contudo, não foi Mrs. Carpenter quem entrou na cozinha. Foi ele.Parou na ombreira da porta, repuxando ao de leve uma das orelhase olhando para mim como se quisesse que eu desaparecesse daface da Terra. Depois, entrou na cozinha e veio direito até onde euestava, de pé, encostada ao frigorífico e tomou o meu queixo nassuas mãos. Segurou-me na cara obrigando-me a olhar para ele, amenos que fechasse os olhos, o que fiz durante alguns segundos.Voltei a abri-los, no entanto, porque começava a ficar assustada.

Em seguida, pousou a mão no meu ombro e segurou a gola do meuvestido entre os dedos, sentindo a sua suavidade. Por fim, disse:

- Tu és uma Taggert, não és, rapariga?

- Sou, sim. Chamo-me Jennet Maybelle Taggert - respondi comorgulho, porque no curto período que estivera na escola aprenderaque muita gente pensava que os Taggert eram escória, e a únicamaneira de lidar com essas pessoas era não ter vergonha.

Depois, disse qualquer coisa que não compreendi.

- Nunca mais me vejo livre dos Taggert? Será que me vão perseguiraté à sepultura?

- A mim parece-me que está de perfeita saúde - disse-lhe eu,acrescentando "senhor" logo a seguir, para que ele não pensasseque eu estava a ser insolente.

Ele não respondeu, mas retirou a carteira do bolso e abriu-a. Penseique ele ia pagar-me os cinco dólares, por isso preparei-me para lheagradecer e me despedir, mas, em vez disso, retirou do seu interioruma fotografia e mostrou-ma.

- Quem achas tu que é? - perguntou-me ele.

Bem, olhei, mas não sabia quem era. Era uma fotografia a cores emostrava uma rapariga mais ou menos da minha idade com umcabelo louro encaracolado e um grande sorriso. Usava um vestido

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azul com folhos, muito bonito, como se fosse a uma festa ou a umbaile. Devolvi-lhe a fotografia.

- É muito bonita, mas não sei quem é.

- É a minha filha Claudia.

Eu não sabia o que mais havia de dizer, por isso repeti:

- É muito bonita.

- Não, não é - disse ele. - É uma fedelha mimada. Pensa que é acriatura feminina mais bonita que existe à face da terra, mas é inútil,vaidosa e antipática. E a culpa é toda minha.

Não sabia por que motivo ele me dizia tudo aquilo, mas estava apôr-me nervosa, e, de qualquer modo, eu tinha de voltar para casapara fazer o jantar para os rapazes. Eles deviam estar muitopreocupados por não saberem onde eu estava àquela hora.

- Bem - disse eu -, acho que é melhor ir andando.

- Não vás - ele agarrou-me no braço e puxou-me com força até aosítio onde havia um espelho pendurado na parede, obrigando-me aficar diante dele. - Olha para aqui - disse ele. - Quem vês tu aqui?

- Bem, só me vejo a mim - tentei afastar-me dele, mas elesegurava-me com força.

- Aqui está uma bonita jovem - disse ele. - É isto que uma jovemdeve ser: decente, pura e modesta. Eu gostava que fosses tu aminha filha, Jenny Taggert, em vez daquele diabinho que não páraem casa, onde deve estar, e se comporta de tal maneira quenenhum homem no seu perfeito juízo casará com ela. Gostavas deser minha filha? Gostavas de morar aqui e de ser a minha menina?

Bom, comecei a sentir o pescoço a aquecer, porque Ace me tinhadito que quando um homem começa a fazer elogios, anda à procuraapenas de uma coisa, e além disso tinha ouvido vezes suficientesas palavras doces que Deucy segredava às suas senhoras nobaloiço do alpendre.

- Desculpe-me, Mr. Carpenter - disse-lhe eu -, mas tenho que irandando para casa. Pode fazer o favor de me pagar os cincodólares do trabalho de hoje para eu comprar alguma coisa para ojantar dos rapazes? - Eu sei que aquilo foi atrevido, mas ele estavaa pôr-me nervosa e as palavras saíram-me assim daquela maneira.

Ele largou-me e voltou a retirar a carteira do bolso.

- É isso que Clemmie te paga? Cinco dólares? Bem, não é osuficiente. Toma isto, isto e isto.

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As notas foram saindo da sua carteira e ele empilhou-as nasminhas mãos. Quando olhei, vi que tinha três notas de dez dólares.

E não foi só isso. Ele começou a tirar a galinha que sobrara, e queeu guardara, e a enfiá-la num saco de papel. - Leva também a tartede pêssego - disse ele -, e mais qualquer coisa que queiras. Levatudo. - Ora, não posso fazer isso. O que ia dizer Mrs. Carpenter? -Eu digo-lhe que comi tudo numa ceia à meia-noite. £ E riu-se, masa gargalhada que deu não mostrou felicidade. Parecia que algoestava a partir-se dentro dele.

- Obrigada, senhor - agradeci-lhe, e esgueirei-me apressadamentepela porta das traseiras antes que ele se lembrasse de mais algumatolice e me arranjasse problemas.

A sua voz soou atrás de mim:

- Vens amanhã, não vens? - De certezinha - respondi-lhe, mas nãotinha a certeza de que o fizesse.

A caminho de casa pensei em Mr. Carpenter e nos seus modosestranhos. Mas por mais que tentasse, era incapaz de compreenderaquilo. Só conseguia pensar que tanto dinheiro lhe tinha perturbadoo juízo e dava graças a Deus por sermos pobres e não termos tantodinheiro assim que nos pusesse maluquinhos.

Contudo, esqueci tudo aquilo quando cheguei à estrada poeirenta,que conduzia a nossa casa. A lua começava a brilhar por cima dogrande e velho arbusto de lilases, na orla da propriedade, e a sualuz suave e delicada suavizava alguma da fealdade visível à luz dodia. A casa parecia acolhedora, com as luzes a brilharem nasjanelas, e no pátio em frente da entrada estava o carrinho branco eelegante de Pembrook. Corri em direcção ao alpendre e entrei emcasa de rompante, gritando o seu nome.

Estavam todos reunidos na cozinha e pelos seus rostos sombrios,típicos dos Taggert, percebi que tinha interrompido uma discussão.Mas não me importei. Pousei a comida dos Carpenter em cima damesa e disse:

- Aqui está o jantar, rapazes. Comam. Deucy, Earl e Wesley fizeram-no de imediato sem sequer se maçarem a ir buscar pratos, pegandono frango com os dedos.

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Depois sentei-me, descalcei a sapatilha esquerda e do seu interiorretirei o dinheiro.

- Uma, duas e três - disse eu, enquanto punha as notas, uma auma, em cima da mesa.

Os olhos de Deucy quase lhe saltaram das órbitas e Earl e Wesleygritaram: "Whoopee!", o melhor que conseguiram com as bocascheias de lascas de carne.

Pembrook pareceu desgostoso.

- Onde foste buscar tudo isto, Jenny? - perguntou-me ele.

- Trabalhei como criada - respondi-lhe.

- Onde foste tu trabalhar como criada?

- Em casa de Mrs. Carpenter.

- E ela deu-te tudo isto?

Estive prestes a mentir e a dizer que sim, mas nunca fui muito boa amentir. O meu nariz começa a crescer.

- Não, foi ele que me deu.

- Nunca mais podes lá voltar - disse Pembrook.

Bem, eu própria já decidira fazer isso, mas por muito que gostassede Pembrook, não estava para o ter a dizer-me o que devia ou nãofazer.

- Vou, se quiser - respondi-lhe. - E quando chegaste tu e durantequanto tempo vais cá ficar?

- Para sempre, se for preciso, para impedir que te metas emsarilhos.

- Isto é um belo sarilho - começou Deucy -, trinta dólares por um diade trabalho e toda esta comida. Devias comer um bocado, Pem.

- Cala-te, seu idiota!

Eu nunca tinha visto Pembrook tão zangado. O sangue dos Taggertferve com facilidade, mas até àquele momento ele conseguirasempre controlar o seu génio. Tornou a virar-se para mim, olhos tãobrilhantes e perigosos como os de um falcão bebé prestes a saltarsobre a sua presa.

- Tu nunca mais voltas a casa dos Carpenter. Vais apagar isso daideia, e amanhã vou devolver esse dinheiro pelo correio. E não sefala mais nisso.

Perguntei apenas uma coisa:

- Porquê?

- Não importa porquê.

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Bem, aquilo foi o fim. Eu trabalhara muito para ganhar aqueledinheiro. Quer fossem cinco dólares quer fossem trinta, eram meus.Era o primeiro dinheiro que eu alguma vez ganhara. E Pembrooknão tinha o direito de mo tirar. Tanto quanto conseguia perceber, eunão fizera nada de mal, e não era justo da sua parte castigar-meassim. Recostei-me na cadeira, empertigando-me, olhei para eledirectamente nos olhos e disse-lhe:

- Pembrook Taggert, para o caso de não teres reparado, já não soua doce Baby Jenny. Sou uma mulher crescida e capaz de decidirpor mim o que faço. Não podes pôr-te aí a dar-me ordens e a dizer-me que não importam os motivos. Aguentei isso do pai, aguentei-ode Ace e tenho-o aguentado destes três, enquanto estás fora na tuaUniversidade a aprender a forma de saíres deste buraco. Já nãoaguento mais.

A dureza e o azedume desvaneceram-se dos seus olhos e eleagarrou-me nas mãos.

- Tens razão, Jenny - disse ele. - Há coisas que tu deves saber.Vamos para o alpendre que eu conto-te.

- Não se demorem muito - disse Deucy. - Ardith Porter vem cá hojee temos coisas para conversar.

Porém, foi longa a história que Pembrook me contou. Remontava auma época em que eu ainda não tinha nascido. Todos os rapazes asabiam, mas o pai fizera-os jurar sobre a Bíblia que nunca macontariam. Tinha a ver com todas as coisas em que eu pensara enunca tivera coragem para perguntar. Se o tivesse feito, eles nãoma teriam contado, apesar de Pembrook dizer que por vezes estevemuito tentado a fazê-lo, porque se tratava da minha vida e eu tinhao direito de saber.

Ele disse-me que o pai não era o meu verdadeiro pai, mas sim Mr.Carpenter. Contou-me que um mês depois de eu nascer, a nossamãe disse a verdade ao pai, fez a mala e anunciou-lhe que ia partircom Mr. Carpenter para ter uma vida melhor do que a vidinha quetinha naquela quinta pobre, velha e suja. Contou-me que o pai lhetinha tirado a vida ali mesmo no quarto onde eu estava com osolhos de bebé ainda fechados, no berço ao lado da cama. Então, opai tinha ido ter com Mr. Carpenter e tinha-lhe contado tudo,obrigando-o a abafar a história, porque o escândalo não era bompara ninguém. Ambos anunciaram que a nossa mãe morrera porcausa de uma febre provocada pelo parto.

As lágrimas corriam-me pelas faces, mas consegui perguntar-lhe:

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- Como conseguiram vocês continuar a viver aqui depois de ele terfeito isso?

- Bem - disse Pembrook. - Ace era o mais velho e tinha apenasdoze anos. Não tínhamos para onde ir, e ele era o nosso pai.

- O que aconteceu depois? - perguntei-lhe. - Porque é que o pai sefoi embora?

- Ele não se foi embora - disse Pembrook -, está enterrado porbaixo do roseiral de Mr. Carpenter.

Contou-me, então, que à medida que os anos tinham passado o paitinha começado a beber e a quinta foi entrando cada vez mais emdeclínio até ser apenas um baldio. Então, um dia, o pai meteu nacabeça que Mr. Carpenter tinha de pagar pela educação da filha, ouseja, eu. Foi até casa dos Carpenter, intoxicado de álcool e ódio, eexigiu mil dólares. Pembrook e Ace seguiram-no de perto eouviram-nos da janela de uma sala que estava cheia de livros etinha uma grande secretária e uma espingarda de caça penduradana parede por cima da lareira.

- Eu vi essa sala - disse-lhe eu. - Mrs. Carpenter chama-lhe oescritório dele.

Pembrook acenou com a cabeça:

- Foi onde o pai levou o tiro.

Contou como ele e Ace os ouviram discutir naquela sala e Mr.Carpenter gritou que era chantagem e não lho admitia, e depoishouve uma grande confusão com o pai a gritar que matava Mr.Carpenter por lhe arruinar a vida. E, por fim, ouviu-se um tiro.Somente um tiro, mas foi o suficiente. Espreitaram pelo peitoril dajanela e viram o pai deitado no tapete a esvair-se em sangue e Mr.Carpenter ali de pé como uma estátua com a espingarda nas mãos.

Preparavam-se para fugir dali quando Mr. Carpenter os viu e osobrigou a entrar em sua casa e a ajudarem-no a levar o pai para oroseiral. Os três escavaram um buraco e enterraram-no, voltando acolocar a terra com as rosas por cima. Depois, Mr. Carpenter disse-lhes para voltarem para casa e se manterem calados ou elechamaria o xerife que nos expulsaria a todos da quinta e nosmeteria num reformatório.

E era o que eles tinham feito até àquele instante.

- Acho - disse Pembrook -, acho que é por isso que Ace é tãoestouvado, mas essa não é a maneira de solucionar a questão. É

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por isso que estou a estudar para ser advogado. Um dia destessaberei como lidar com Mr. Carpenter em termos legais e fá-lo-ei

como deve ser. E é por isso que não quero que voltes lá, Jenny. Éprovável que estragues os meus planos, e não é bom que ele selembre da tua existência. Preciso que ele esteja desprevenidoquando eu estiver pronto para actuar.

Limpei os olhos, assoei-me e disse-lhe:

- Pembrook, obrigada por me teres contado. Agora compreendo.

- E não vais lá voltar?

- Vou para a cama.

E foi o que fiz. Mas não consegui dormir. Fiquei ali deitada amatutar nas coisas que Pembrook me tinha contado, a tentardistinguir o que estava certo e o que estava errado em tudo aquilo.Talvez a nossa mãe tivesse errado por andar metida com Mr.Carpenter, mas se ela não o tivesse feito, eu não estaria aqui. O paierrara ao matar a nossa mãe, mas, aos olhos dele, ela dera-lhemotivos para isso. Mr. Carpenter errara ao matar o papá, mas osangue dos Taggert fervia em pouca água e talvez o pai o tivesseatacado primeiro. O mais difícil de tudo era pensar que eu era filhade Mr. Carpenter. Se era verdade e ele o sabia, como pôde deixar-me viver durante todos estes anos como doce Baby Jenny Taggert,enquanto aquela rapariga, a tal Claudia, teve tudo o que quis e maisainda?

Mesmo antes de amanhecer decidi o que ia fazer. Os rapazes,incluindo Pembrook, dormiam profundamente. Levantei-me,silenciosa que nem um rato, vesti o vestido das pintas verde ebranco da nossa mãe e calcei as minhas sapatilhas de pala subidae esgueirei-me para o celeiro. Costumava ser um lugar de grandereboliço, mas naquela manhã estava calmo e vazio. Já não haviavacas que me mugissem a chamar-me para as ordenhar, nemcavalos que me olhassem com olhos tristes a pedirem-me umamaçã ou uma cenoura. Bem no fundo, por detrás de pilhas dearreios apodrecidos, num canto escuro envolto com teias dearanha, encontrei o que procurava.

Era uma lata com qualquer coisa que o pai usava para matar asratazanas que infestavam o celeiro e se alimentavam da forragem

durante todo o Inverno. Já não havia muito na lata, e o que láencontrei parecia uma massa seca. Talvez fosse tão antigo que jánão desse qualquer resultado. Contudo, rapei um pouco com umacolher de

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chá e pu-lo numa das bolsas de tabaco Bull Durham de Deucy e fiz-me à estrada.

Caminhei depressa, porque queria lá chegar antes que Mr.Carpenter saísse para o banco e antes que os rapazes acordasseme viessem atrás de mim no carro de Pembrook. A manhã estavafresca e fria, e não suei nem um pouco.

Quando cheguei a casa dos Carpenter, o leiteiro estava a acabar desair. Dei a volta pelas traseiras, peguei nos dois quartos de leite ebati à porta. Mrs, Carpenter abriu-ma. Apareceu com olhos de sono,mas pareceu contente por me ver.

- Olá, Jenny - disse ela -, já cá estás tão cedinho. Entra, entra.

- Sim, senhora - respondi-lhe. - Vim fazer o pequeno-almoço.

- Que maravilha. Mr. Carpenter está a fazer a barba. Ele descedaqui a alguns minutos. Gosta de comer dois ovos cozidos durantequatro minutos, e eu nunca consigo fazê-los bem como ele gosta,duas fatias de tosta e muito café simples e forte. E agora que estásaqui, acho que vou voltar para a cama e dormir mais um bocadinho.

Soltou umas risadinhas como uma menina tola, acenou-me e saiualegremente.

Afastei o leite e comecei a fazer o café. Havia uma cafeteiraeléctrica, mas o meu café é bom, porque o faço à moda antiga.Fervi um pouco de água e quando começou a borbulhar juntei ocafé moído, em grande quantidade para que ficasse bom e forte.Depois, baixei o lume para o manter quente, enquanto ficava eminfusão e parti um ovo para lhe retirar a casca e juntá-la ao cafépara que ficasse mais claro. E em seguida despejei para dentro dacafeteira tudo o que estava na bolsa de tabaco.

Quando ouvi os seus passos nas escadas pus outro recipiente comágua ao lume para fazer os ovos. Ele entrou na cozinha a sorrir eexalando um cheiro adocicado.

- Então, Jenny - disse ele -, sempre vieste. Fico contente, porquenós os dois vamos dar-nos muito bem. Aqui serás feliz. Farei comque seja assim.

Retirei uma chávena e um pires do armário.

- Ouvi dizer algumas coisas, Mr. Carpenter - disse-lhe eu. - Coisascom que nunca sonhei.

Ele franziu o sobrolho.

- Que coisas ouviste tu, Jenny?

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Deitei o café numa chávena.

- Ouvi dizer que o senhor é meu pai.

Ele deixou-se cair numa cadeira da cozinha.

- Sim - disse ele -, isso é bem verdade.

Pus a chávena e o pires no balcão para que arrefecesse um poucoe ele bebesse um grande gole.

- Ouvi dizer que o senhor matou o nosso pai e o enterrou noroseiral. Por baixo daquelas rosas tão bonitas que tem ali fora.

Ele segurou a cabeça entre as mãos.

- Eles juraram nunca te contar. Aqueles rapazes juraram.

- Pembrook contou-me, porque teve medo que eu viesse para suacasa e o senhor me fizesse mal - coloquei a chávena e o pires emcima da mesa na frente dele.

- Oh, Jenny, doce Baby Jenny, eu nunca te faria mal. Se algumacoisa fiz, foi durante todos estes anos tentar esquecer-me de ti. Eugostava que tu viesses viver aqui e que fosses minha filha e medeixasses dar-te todas as coisas a que tens direito.

- Não me chame isso. Eu já não sou nenhum bebé.

- Não, não és. És uma bela mulher, exactamente como a tua mãeera. Meu Deus, como eu amava aquela mulher! Ela foi a coisa maismaravilhosa que me aconteceu na vida. Eu queria levá-la daqui.Tínhamos tudo pronto para partir. Podíamos ter ido para uma outracidadezinha ou para uma grande cidade onde ninguém nosconhecesse. Ter-te-íamos levado connosco. E teríamos sido tãofelizes. Mas, em vez disso, ela morreu.

- O pai matou-a. Por sua causa.

- Também sabes isso - e suspirou. - Sim, ele matou-a e eu matei-o,e desde essa altura que vivo com a agonia dos remorsos. Nãotenho ninguém com quem conversar. Clemmie não sabe nada disto.Alturas há em que preferia estar morto.

- Beba o seu café.

A água para os ovos estava a ferver. Devagar, rolei os dois ovospara dentro da panela e coloquei duas fatias de pão na torradeira.Ele saiu da mesa e aproximou-se do sítio onde eu estava atrabalhar.

- Jenny - pôs as mãos nos meus ombros e virou-me de frente paraele. - O que posso eu fazer para te compensar? Faço tudo o queesteja ao meu alcance, e acredita que é muito. É só pedires. Seráteu.

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Reflecti um pouco. Seria certo ou errado aceitar alguma coisadaquele homem? Lá estava a minha habitual dificuldade emdiscernir a diferença entre os dois. Seria certo ou errado deixá-lobeber o café?

Depois, perguntei-lhe:

- Pode acabar de pagar os estudos de Pembrook na Universidadede Direito?

- Considera-o todo pago.

- E Earl e Wesley, consegue arranjar-lhes um emprego? Eles sãobons trabalhadores, só não têm tido sorte.

- Diz-lhes que apareçam no banco.

- E em relação a Deucy? Compra-lhe uma guitarra nova e umbilhete para ir a Nashville? Ele canta muito bem.

- E não apenas isso. Conheço pessoalmente Johnny Cash.Havemos de arranjar alguma coisa.

- Agora, isto é o mais difícil. Consegue tirar Ace da prisão e fazê-loentrar no bom caminho?

- O director é primo de Clemmie, e eu tenho um rancho noWyoming. Ele pode ir para lá e curar toda a sua rebeldia. Mas, e emrelação a ti, Jenny. O que posso fazer por ti?

Encolhi os ombros.

- Oh, acho que vou só ficar a viver aqui por algum tempo. Possoajudar Mrs. Carpenter e olhar pelas coisas.

Ele abraçou-me e deu-me um grande beijo na face.

- Assim é que é, minha querida - disse ele. - Era isso mesmo que euesperava que dissesses. Nunca te irás arrepender. Hum, este cafécheira bem.

Ele voltou para a mesa pronto para pegar na chávena de café, maseu alcancei-a primeiro e tirei-lha quando já estava mesmo debaixodo seu nariz.

- Esse café está frio - disse-lhe eu. - Por falar nisso, todo o caféficou amargo. Provei-o antes de o senhor descer. Vou fazer outro.

Despejei todo o café pelo cano e servi-lhe os ovos e as torradas.Bebemos café fresco juntos e ele saiu para o banco.

E é assim que as coisas estão agora. Os modos de Pembrookestão melhor, e ele está a estudar a valer. Estará formado maiscedo, agora que não tem de trabalhar ao mesmo tempo. Earl e

Wesley gostam muito de ser caixas no banco e Deucy tem o seuCadillac com os estofos

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em pele de leopardo e todas as raparigas que consegue conquistar,apesar de dizer que tem saudades do baloiço do alpendre. Acemandou uma fotografia onde aparece montado num cavalo e comum grande chapéu de cowboy. Está engraçado e diz que está asair-se bem. E eu? Sempre que as rosas florescem corto algumas elevo-as para dentro de casa. Mrs. Carpenter adora-as. Estou aaguardar. Um dia, nós, os Taggert, haveremos de escavar aqueleroseiral.

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Mostarda-dos-Campos

Márcia Muller (1944) é uma das mais célebres e versáteis

escritoras de policiais que iniciaram a sua carreira no último quarteldo século XX. Nascida em Detroit, estudou na Universidade deMichigan e vive no Norte da Califórnia, o cenário da maioria dassuas obras de ficção. Apesar de ter passado quase despercebidona altura da sua publicação, o seu texto Edwin of the Iron Shoes(1977) é hoje encarado como um dos textos que melhor ilustram atendência das últimas décadas - o romance protagonizado por umdetective do sexo feminino. Todos os esforços anteriores nestesentido exigem uma referência personagens como Mavis ôeidlitz,de Cárter Drown, Maria Trent, de Henry Kane e Honey West de G.G. Ficklmg, não passavam de fantasias masculinas que não devemser levadas a sério. A Nicole oweet, de Fran Huston, em The QichGet It Ail (1973), foi uma tentativa de criação de uma personagemmais realista, embora, na verdade, tenha sido resultado do trabalhode um homem (Don ô. Miller), que usava um pseudónimoandrógino. A primeira da vaga dos detectives particulares femininoscriados por mulheres, a Delilah West, de Maxine O'Cailaghan,surgiu publicada em forma de conto em 1974, mas em romance talsó aconteceu em 1980.

Charon McCone apenas regressaria em Ask the Cards a Question(1982), no mesmo ano em que as suas duas mais famosas colegasdetectives, Kinsey Millhone, de ôue Grafton, e V. I. Warshawski. deôara Paretsky, começaram a dar os primeiros passos. Desde então,porém, atingiu uma média de um livro por ano. McCone difere damaioria dos primeiros detectives privados em mais aspectos alémdo género. Não é uma solitária tradicional, mas faz parte de umaorganização, a All Souls Legal Cooperative, e as suas relaçõesprofissionais e pessoais com os colegas são importantes para ela.Isto liga-se a outro traço distintivo de Muller, mais subtil. Ela foi umadas pioneiras da prática, hoje generalizada, de apetrechar as sériesde detectives com um grupo alargado de apoio composto poramigos, família e colegas de trabalho, recorrentes de um livro paraoutro. Infelizmente, poucas são as escritoras, entre os queadoptaram esta técnica, que são capazes de a utilizar tão bemcomo Muller. Em 1992, ela casou com o romancista Sill Pronzmi,com quem colaborou em três romances. No primeiro, Double(1984), McCone partilha uma investigação com o detective anónimode Pronzini. Juntos escreveram ainda uma colectânea de contos,muitas antologias e o importante livro de referência, 1001 Midnights-The Aficionados Guide to Mystery and Detective Fiction (1986).Muller também escreveu séries sobre dois detectives amadores, aconservadora de museu, Elena Oliverez, que apareceu em TheTree of Death (1983) e em dois romances subsequentes, e aconsultora de segurança de obras de arte Joanna ôtark, que surgiupela primeira vez em The Cavalier in White (1986).

Entre as distinções atribuídas a Muller contam-se um LifetimeAchievement Award concedido em 1993 pela Private Eye Writers ofAmerica "Mostarda-dos--, -campos", um dos primeiros contos deCharon McCone, é retirado.

da primeira antologia da PWA, intitulada The Eyes Me It (1984).

A primeira vez que vi a velhota japonesa, estava a almoçar norestaurante que fica por cima das ruínas dos Sutro Baths de SãoFrancisco. A mulher estava agachada na ladeira, a meio caminho

entre o cimo cheio de ciprestes e as ruínas inundadas dos velhosbanhos públicos. Arrancava a vegetação pela raiz e enfiava-a numsaco de plástico verde.

- O que estará ela a apanhar? - perguntei ao meu amigo Greg. Eleolhou pela janela, levantando uma das sobrancelhas louro-

-escura, avaliando a cena com o olhar próprio de um polícia doshomicídios.

- Talvez alguma coisa comestível que cresça ali espontaneamente.Tem um ar pobre; por isso é uma boa forma de poupar namercearia.

De facto, a mulher não era como as velhinhas indigentes que porvezes víamos na Japantown. Usava um casaco curto e umas calçassem formas, os seus pés estavam enfiados numas sapatilhas eenrolara um lenço cinzento à volta da cabeça.

- Já alguma vez estiveste lá em baixo? - perguntei a Greg,gesticulando para as ruínas.

Os banhos públicos, outrora elegantes, tinham sido destruídos pelofogo. Tudo o que restava agora eram fundações desagregadas eem parte submersas pela água. Um bando de gaivotas nadava nasua superfície polida e, mais adiante, a rebentação lançava-se deencontro às rochas.

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- Não. E tu?

- Também não. Sempre tive intenção de lá ir, mas o caminho éíngreme e nunca tenho sapatos apropriados quando aqui venho.

Greg sorriu, trocista.

- Sharon, serias capaz de deixar que o teu instinto de detectivefosse suplantado pela falta de uns sapatos bons para andar?

Encolhi os ombros.

- Talvez não esteja assim tão interessada.

- Talvez não.

Greg costumava troçar do meu instinto de detective, mas, naverdade, eu desconfiava que ele sentia orgulho na minha profissão.Enquanto investigadora da All Souls Cooperative, o plano dosserviços legais, já tivera oportunidade de trabalhar nos maisdiversos casos - desde o assassínio ao mistério de uma cuba deágua quente em pau-brasil que não continha a água. Dois dosassassínios que resolvi foi como beleguim de Greg, e isso deraorigem tanto à nossa rivalidade como ao nosso romance.

Nos meses seguintes, o meu interesse pela velhota japonesa foiaguçado. Todos os domingos que lá íamos - e íamos lá muito,porque aquele era um dos nossos restaurantes favoritos -, lá estavaa mulher, esquadrinhando a encosta à procura de... quê?

Um domingo, no início da Primavera, Greg e eu sentámo-nos nanossa mesa habitual junto à janela e observámos a mulherdescendo devagar o caminho de terra batida. Para combinar com aestação, ela trocara o lenço de cabeça cinzento por um outroamarelo-vivo. A encosta formigava de gente que celebrava o fim daschuvas de Inverno. No lado mais árido, onde nenhuma vegetaçãoconseguira medrar, estava uma camioneta abandonada inclinadanum ângulo perigoso na base da escarpa, perto dos banhospúblicos. As pessoas desciam o terreno difícil com o auxílio dos pése das mãos, inspeccionavam a velha camioneta e depoiscontinuavam a caminhar por cima das fundações de betão oudesapareciam por uma gruta próxima.

Quando a empregada de mesa trouxe a nossa conta, eu disse:

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- Já passei demasiado tempo a observar. Vamos lá abaixo exploraraquilo.

Greg sorriu, descobrindo os dentes, e procurou no bolso dinheirotrocado.

- Mas tu não trouxeste os sapatos apropriados.

- Convence-te de uma coisa, eu nunca hei-de trazer os sapatosapropriados. Vamos. Podemos perguntar à velhota o que ela anda aapanhar.

Ele levantou-se.

- Fico contente por finalmente teres decidido investigá-la. Podeestar a preparar algo sinistro.

- Não sejas tolo. Ele ignorou-me.

- Pois é, o teu lado de detective privado acabou por vencer. Ou terásido o teu sangue índio? Instinto de perseguição, papoose?

Lancei-lhe um olhar indignado, concluindo que só por aquelecomentário ele merecia pagar a conta. Os meus oito por cento deancestralidade Shoshone - que por qualquer razão emergira,fazendo de mim a imagem viva daqueles antepassados no seio deuma família de escoceses e irlandeses muito loiros - levara Greg achamar-me "papoose". Era uma alcunha de que eu não gostava.

Saímos do restaurante e saltámos por cima da corrente que serviade vedação, entrando no caminho de terra batida. Um vento forteagitou-me o cabelo comprido enrolando-o em volta da cabeça e euparei para o apanhar atrás. O caminho serpenteava como umamontanha-russa por entre gerânios nodosos e um matagal. Nooutro lado, a mulher estava acocorada apanhando aquilo quepareciam ser ervas daninhas. Quando me aproximei, ela sorriu-memostrando o cintilar de um dente de ouro.

- Olá - disse-lhe eu. - Temos estado a observá-la e a pensar o queandará a apanhar.

- Há muitas coisas boas que crescem por aqui. Este mês é amostarda-dos-campos - estendeu-me um pé. Eu peguei nele e sentio seu cheiro forte e penetrante.

- Devia experimentar - acrescentou ela. - Faz-lhe bem.

- Talvez experimente - enfiei a flor amarela na lapela e virei-me paraGreg.

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- Como se fosse possível - disse ele. - Desde quando é que tucomes alguma coisa saudável?

- Só quando me obrigas.

- Tem que ser, de outro modo eram barras de chocolate dia sim dianão.

- E depois? Não estou em má forma.

E era verdade; até mesmo naquela encosta íngreme eu nãofraquejava.

Greg sorriu pousando os olhos em mim, apreciativamente.

- Não estás, não senhor.

Continuámos a descer em direcção as ruínas e passámos por umatabuleta que advertia:

CUIDADO! ZONA ESCARPADA E DE REBENTAÇÃO

EXTREMAMENTE PERIGOSA!

PESSOAS TÊM SIDO ARRASTADAS DAS ROCHAS

PARA A ÁGUA E TÊM-SE AFOGADO!

Parei e apoiando-me no braço de Greg tirei os sapatos.

- É melhor ter os pés doridos do que escorregar por aí abaixo.Aproximámo-nos da camioneta abandonada, seguindo o mesmo

impulso que movera outros trepadores. A sua tinta azul estavaferrugenta e houvera um incêndio no motor. Tudo, incluindo osbancos e o volante, tinha sido roubado.

- Alguém até tentou tirar o eixo da frente - disse uma voz ao meulado -, mas o fogo fundiu as cavilhas.

Virei-me e vi um jovem com um ar amistoso, pele queimada do sol.Teria cerca de 15 anos e vestia uns jeans sujos e uma T-shirtrasgada.

- Pois foi - acrescentou outra voz. Este rapaz era sensivelmente damesma idade e tinha um pequeno bigodinho a querer nascer porcima do lábio superior. - Quase não sobrou nada, e só aqui está háumas semanas.

- Vandalismo - disse Greg.

- É isso mesmo - acenou afirmativamente com a cabeça o primeirorapaz. - As pessoas vêm para aqui, e depois bebem. Demadrugada, aborrecem-se - fez sinal na direcção de um grupo de

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homens de aspecto duvidoso que estavam sentados na orla dosbanhos públicos acompanhados de duas embalagens de seiscervejas cada uma.

- Hoje em dia, a destruição é um desporto muito popular - disseGreg, observando os homens durante alguns instantes com umolhar profissional. Em seguida tocou-me no cotovelo. Contornámosas ruínas e dirigimo-nos para a gruta. Parei à entrada e presteiatenção ao bramido da rebentação.

- Anda - disse Greg.

Segui-o até ao interior da gruta com os pés a afundarem-se na areiagrossa, que rapidamente se transformou em lama. A gruta era, naverdade, um túnel com cerca de dois metros e meio de altura.Através das fendas na parede do lado do oceano, vi a espuma dasondas agitadas na base da falésia sendo lançada ao ar comviolência. Seria fatal ser-se arrastado por cima daquelas rochascheias de reentrâncias.

Greg chegou à outra extremidade. Apressei-me o mais que os meuspés nus me permitiram e parei ao seu lado. O precipício que desciaa pique até ao mar fez-me agarrar no seu braço com força. Porcima de nós, as rochas elevavam-se a grande altura.

- Acho que se fosses um bom alpinista conseguias subir até láacima e voltar à estrada - disse-lhe eu.

- Talvez, mas nunca o experimentaria. Como diz a tabuleta...

- Tens razão - virei-me, sentindo-me de repente apreensiva. Naboca do túnel, estavam dois dos homens com mau aspecto comlatas de cerveja na mão. - Vamos, Greg.

Se ele notou o nervosismo na minha voz, não fez qualquercomentário. Percorremos o túnel em silêncio. Os homensdesapareceram. Quando emergimos para a luz do dia, já elesestavam com os outros abrindo mais latas de cerveja. Os rapazescom quem tínhamos falado há pouco estavam empoleirados nacamioneta abandonada e acenaram-nos quando começámos asubir o caminho.

E foi assim que durante toda a Primavera continuámos a ir ao nossorestaurante favorito aos domingos, esperando sempre por umamesa junto à janela. A velhota japonesa trocou o seu lenço decabeça amarelo por um vermelho. A camioneta abandonadacontinuou com a frente virada para os banhos públicos, provocandomuitas críticas ao Serviço do Parque. As pessoas passeavam oscães pela encosta, as crianças saltavam perigosamente nas ruínas,apesar da tabuleta de aviso,

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os homens refastelavam-se por ali bebendo cerveja. Os doisadolescentes apareciam todas as semanas e, por vezes, algunsamigos juntavam-se a eles na camioneta.

Até que, um domingo, a velhota não apareceu.

- Onde estará ela? - perguntei a Greg, lançando uma vista de olhospara o meu relógio, uma terceira vez.

- Talvez tenha apanhado tudo o que aqui havia para apanhar.

- Que disparate. Há sempre qualquer coisa para apanhar.Estivemos a observá-la durante quase um ano. O casal de idososestá a passear o pastor alemão, os adolescentes estão ali, aquelecasal jovem com quem falámos no último fim-de-semana está ali aopé do túnel. Onde estará a velhota japonesa?

- Pode estar doente. Há por aí muitas gripes. Pode ter morrido, quediabo, já não era nada nova.

A conversa fez-me perder o apetite pela minha tarte de creme dechocolate.

- Talvez devêssemos procurá-la. Greg suspirou.

- Sharon, guarda a tua investigação para os clientes que te pagam.Não transformes tudo num mistério.

Greg acusava-me muitas vezes de deixar que aquilo a que elechamava a minha "intuição feminina" regesse a minha lógica... algoque eu odiava ainda mais do que as referências ao meu "instinto deperseguição". Eu sabia que não era nada daquilo, apenas dava livrecurso aos palpites que todo o bom investigador deve seguir. Noentanto, aquele não era um assunto que eu estivesse interessadaem discutir naquele momento, por isso abandonei-o.

Na manhã seguinte - segunda-feira -, porém, sentei-me no pequenoarmário reconvertido que me servia de escritório no All Souls, aindaa matutar na ausência da mulher. Um processo sobre uma disputaentre locatários, particularmente enfadonho, estava aberto em cimada minha secretária à minha frente. Por fim, fechei-o e percorriruidosamente o vestíbulo do grande edifício vitoriano castanho emdirecção à saída.

- Volto daqui a duas horas - comuniquei a Ted, o secretário. Eleacenou afirmativamente com a cabeça sem parar de trabalhar

com afinco na sua nova Selectric. Lancei um olhar rancoroso à

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máquina de escrever. Para mim, fora uma extravagância, e odinheiro que custara podia ter sido mais bem empregue emsalários. A All Souls, que cobrava aos seus clientes de acordo comuma tabela de honorários variável consentânea com os rendimentosde cada um, pagava tão mal que alguns dos advogados eramrecompensados através de uma autorização para viverem emquartos gratuitos no segundo andar. Eu vivia num estúdio no bairroMission. Cada dia que passava parecia mais pequeno.

Resmungando sozinha, saí de carro e dirigi-me ao restaurante quefica por cima dos Sutro Baths.

- A velhota que apanha mostarda-dos-campos na falésia - pergunteiao caixa -, esteve cá ontem?

Ele fez uma pausa.

- Acho que sim. Ontem foi domingo. Ela vem cá sempre aodomingo. Eu vi-a por volta das oito horas, quando abrimos. Chegasempre cedo e fica até cerca das duas da tarde.

Mas ela já se tinha ido embora às onze horas.

- O senhor conhece-a? Sabe onde ela vive? Ele olhou-me curioso.

- Não, não sei.

Agradeci-lhe e saí. Sentindo-me tola, fiquei parada junto à GreatHighway durante alguns instantes, e depois comecei a descer ocaminho de terra batida em direcção ao sítio onde cresciam asmostardas-do-campo. A meio do caminho encontrei os dois jovens.Por que motivo não estariam eles na escola? "Marginais", pensei.

Passaram por mim em passo rápido, evitando olhar directamentepara mim, como fazem os miúdos. Detive-os.

- Olhem, vocês estiveram aqui ontem, não estiveram? O dobigodinho acenou afirmativamente com a cabeça.

- Viram a velhota japonesa que costuma apanhar ervas daninhas?Ele franziu o sobrolho.

- Não me lembro dela.

- Quando é que vocês aqui chegaram?

- Oh, já era tarde. Muito tarde. Houve uma festa no sábado à noite.

- Também não me lembro de a ver - disse o outro -, mas talvez elajá se tivesse ido embora quando nós aqui chegámos.

Agradeci-lhes e desci em direcção às ruínas.

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Um pouco mais adiante, no denso matagal por entre o qual ocaminho passava, houve algo que chamou a minha atenção e me

fez parar de repente. Uma pilha bem visível de sacos de plásticoestava caída no chão e em cima deles encontrava-se um par desapatos pretos já gastos. Obviamente, viera até ali de autocarrocom os sapatos de sair e trocara-os pelas sapatilhas para fazeraquele trabalho. Por que razão se fora embora sem mudar desapatos?

Apressei-me a atravessar o matagal percorrendo o caminho dasmostardas-do-campo.

Aí, bem no meio das ervas daninhas, num sítio onde a sua cor semisturava com a folhagem, havia outro saco. Abri-o. Estava meiocheio de mostardas verdes que já estavam a ficar murchas. Ela nãotivera muito tempo para apanhar forragem, não tivera mesmo temponenhum.

Nessa altura, já seriamente preocupada, subi até à Great Highwayem passo rápido. Da cabina telefónica do restaurante marquei onúmero directo de Greg, no SFPD. Estava ocupado. Recuperei aminha moeda e liguei para a All Souls.

- Houve alguma chamada?

A máquina de escrever de Ted matraqueava ao longe.

- Não, mas Hank quer falar contigo.

Hank Zahn, o meu patrão. Com um baque lembrei-me da reuniãoque ele marcara para meia hora antes. Ele atendeu o telefone.

- Onde diabo estás tu?

- Oh, numa cabina telefónica.

- Estou a perguntar porque é que não estás aqui?

- Posso explicar...

- Eu devia ter calculado.

- O quê?

- Greg avisou-me que provavelmente irias sair para investigarqualquer coisa.

- Greg? Quando é que falaste com ele?

- Há quinze minutos. Ele quer que lhe telefones. É importante.

- Obrigada!

- Espera aí...

Desliguei e voltei a ligar para Greg. Ele atendeu, parecendoapressado. Sem perder tempo, expliquei-lhe o que encontrara noaglomerado de mostardas-do-campo.

- Foi por isso que te liguei - a sua voz soava estranhamente calma. -Soubemos de uma coisa hoje de manhã.

- O quê? - senti um nó no estômago.

- A identificação de um corpo que apareceu a boiar próximo deDevil's Slide ontem à noite. Aparentemente, ela foi parar à água namaré baixa, caso contrário muito provavelmente teria sido arrastadapara o mar.

Fez-se silêncio.

- Sharon?

- Sim, estou aqui.

- Sabes como aquilo é. As tabuletas de aviso por causa dassubidas. A corrente é forte.

Mas, durante quase um ano, eu nunca vira a velhota japonesapróximo do mar. Ela estava sempre cá em cima na encosta onde assuas ervas cresciam.

- A que horas foi a preia-mar, Greg?

- Ontem? Por volta das oito horas da manhã.

Mais ou menos na altura em que o caixa do restaurante repararanela, e umas horas antes de os adolescentes terem chegado. E,entretanto? Que teria acontecido ali?

Desliguei e permaneci no cimo da encosta a reflectir. Que devia euprocurar? Que podia eu descobrir?

Não sabia, mas tinha a certeza de que a velhota não caíra ao maracidentalmente. Ela trepava aquelas escarpas como ninguém.

Comecei a descer, reparando nos sapatos e nos sacos escondidosno matagal, passando decidida pelas mostardas-dos-campos eseguindo na direcção da camioneta abandonada. Contornei-a,examinando o interior e o exterior, mas não consegui obternenhuma pista. Depois, dirigi-me para o túnel da escarpa.

A zona, tão povoada aos domingos, estava agora com pouca gente.Os habitantes de São Francisco cumpriam os deveres do quotidianoe os ocupantes dos autocarros de turismo estacionados em CliffHouse, próximo dali, tinham receio de descer até ali abaixo. Osadolescentes eram as únicas pessoas que conseguia avistar.Permaneciam de pé junto à entrada do túnel, observando-me.Houve algo na sua atitude que me fez pensar que estavam commedo. Estuguei o passo.

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Os rapazes inclinaram as cabeças um para o outro, depoisrodopiaram e correram para a boca do túnel.

Segui-os. Uma vez mais, não trouxera os sapatos apropriados.Livrei-me deles e corri pela areia grossa. Os rapazes estavam ameio do túnel.

Um deles parou, olhando freneticamente para uma fenda naparede. Rezei para que não se esgueirasse por ela, direito às ondasagitadas lá em baixo.

Ele virou-se e correu atrás do amigo, desaparecendo ambos nofundo do túnel.

Bati com o pé na superfície de lama seca e acelerei o passo. Jápróximo do fim do túnel, abrandei e aproximei-me com maiscuidado. Primeiro, pensei que os rapazes tivessem desaparecido,mas depois olhei para baixo. Estavam agachados numa saliênciada rocha, em baixo. Os seus rostos estavam aterrorizados, e eramjovens, tão jovens.

Parei onde eles me pudessem ver, e, com um gesto, fiz-lhes sinalpara se acalmarem.

- Venham para cima - disse-lhes eu. - Não vos faço mal. O dobigodinho abanou a cabeça.

- Ouçam, vocês já não podem fugir para lado nenhum. Nãoconseguem nadar nessa corrente.

Ambos olharam para baixo em simultâneo, depois voltaram a olharpara mim e abanaram a cabeça.

Dei um passo para a frente.

- O que quer que tenha acontecido, não pode ter... - de repente,senti o chão a esboroar-se. O meu pé escorregou e resvalou paradiante. Caí sobre um joelho agitando os braços freneticamente àprocura de apoio.

- Oh, meu Deus! - gritou o rapaz do bigodinho. - A senhora também,não! - Ele levantou-se, balançando o corpo, os braços esticados.

Continuei a deslizar. O rapaz alcançou-me e agarrou-me pelo braço.Ele recuou, cambaleando em direcção ao rebordo e ambos caímosno chão firme e rochoso. Por instantes, ficámos os dois ofegantes.Quando finalmente me sentei, vi que estávamos apenas a algunscentímetros da rebentação. O rapaz também se sentou, olhando-mecom os olhos esbugalhados. O seu companheiro estava espalmadode encontro à parede da escarpa.

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- Está tudo bem - disse-lhes a tremer.

- Pensei que ia cair como a senhora de idade - disse-me o rapazque estava ao meu lado.

- Foi um acidente, não foi? Ele acenou com a cabeça.

- Não queríamos que ela caísse.

- Vocês estavam a meter-se com ela?

- Sim. Fazíamos sempre aquilo para nos divertirmos, só quedaquela vez fomos longe de mais. Tirámos-lhe a carteira e ela veioa correr atrás de nós.

- Pelo túnel, até aqui.

- Sim.

- E depois, escorregou.

O outro rapaz afastou-se da parede.

- A sério, nós não queríamos que aquilo acontecesse. É que ela eratão velhinha. Escorregou.

- Nós vimo-la cair - disse o seu companheiro. - Não podíamos fazernada.

- O que fizeram vocês com a carteira dela?

- Atirámo-la para o sítio onde ela caiu. Só tinha dois dólares. Doismiseráveis dólares - a sua voz tinha vestígios de espanto.

- Consegue imaginar, perseguir-nos até aqui abaixo por doisdólares?

Levantei-me com cuidado, agarrando-me à rocha para me apoiar.

- Está bem - disse-lhes eu. - Vamos sair daqui. Olharam um para ooutro e depois para a rebentação.

- Vamos. Falamos um pouco mais sobre isto ali em cima. Eu sei quevocês não quiseram matá-la e salvaram-me a vida.

Eles subiram com o auxílio das mãos, mantendo-se a algumadistância de mim. Os seus rostos estavam pálidos por baixo dobronzeado do sol e os olhos mostravam medo. Eram tão jovens.Para eles, produtos da era do cartão de crédito, lutar até à mortepor dois dólares era inconcebível. E aquela velhota japonesa eratão idosa. Para ela, que aumentava os seus víveres com amostarda-dos-campos, dois dólares talvez representassem adiferença entre a vida e a morte.

Perguntei-me se alguma vez eles conseguiriam compreendê-lo.

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Jemima Shore no Túmulo Banhado de Sol

Antonia Fraser (1932), filha de Lorde Longford, nasceu em Londres.Depois de concluir a licenciatura e o mestrado em História peloLady Margaret Hall, em Oxford, trabalhou como editora da série"King's and Queens of England" da casa editorial Weídenfeld andNicolson antes de se casar com Hugh Fraser, em 1956. Os seusprimeiros livros foram histórias infantis sobre o rei Artur e o Robindos bosques, aos quais se seguiram Dolls (1963) e A History ofToys (1966). Após o primeiro e grande sucesso que foi Mary Queenof Scots (1969), tornar-se-ia uma autora de grande popularidadenas áreas da história popular britânica e da biografia, seguiram-selivros sobre Cromwell, Jaime I, Carlos II e as mulheres de HenriqueVIII. A sua vasta produção literária inclui ainda uma tradução a partirdo francês da autobiografia de Christian Dior, peças de teatro pararádio e televisão e a edição de inúmeras antologias de poesia. Apósa dissolução do seu primeiro casamento, em 1977, casou-se com odramaturgo Harold Pinter, em 1980.

Antonia Fraser iniciou-se na escrita de romances policiais comQuiet as a Nun (1977), o primeiro romance sobre Jemima Shore,uma das mais antigas e famosas detectives do mundo do jornalismoradiofónico. Na última edição revista da sua história de ficçãopolicial, Bloody Murder (1992), Julian Symons escreveu que Fraser"pode com toda a justiça ser considerada uma escritora de policiaisfeminista, embora também possa ser vista como uma autoraintimista. A sua escrita denota um prazer evidente naquilo que elafaz, que é cativante, mas o que a distingue e individualiza é aconstrução de enredos particularmente inteligentes, de que CoolRepentance (1982) me parece ser o mais brilhante".

Em Jemima Shore no Túmulo Banhado de Sol, a técnica dadescoberta imbuída de um toque romanesco num cenário exóticorevelam uma autora e um conjunto de personagens no auge da suaperfeição.

Este é o teu cemitério ao sol..." O jovem alto que lhe barrava ocaminho entoava as palavras em voz baixa mas com clareza.Jemima Shore levou algum tempo a perceber exactamente qual eraa mensagem que ele entoava ao som do famoso calipso. E entãodeu um passo atrás. Era uma parodiazinha sinistra e nadahospitaleira.

"Esta é a minha ilha ao sol

Onde o meu povo labuta desde o início dos tempos..."

Desde que chegara às Caraíbas, tinha a impressão de que amelodia lhe ecoava nos ouvidos. Quantos anos teria? Quantos anosteriam passado desde que o inigualável Harry Belafonte aimplantara pela primeira vez nas consciências de toda a gente? Nãoimportava. Qualquer que fosse a sua idade, o calipso continuava aser cantado com encanto, vigor e uma certa inexorabilidade emBow Island e nas outras ilhas das índias Ocidentais que ela visitaradurante a sua estada.

Não era a única melodia que se ouvia, claro. A música tocada emtom alto, conforme descobrira, era uma parte inseparável da vidadas Caraíbas, a começar pelo aeroporto. O ritmo sonoro eirresistível dos instrumentos de percussão, o gemido meloso doscantores, tudo isso acontecia em qualquer lado, senão mesmo emtodo o lado e em todas as ilhas pela noite fora: o jovial som daliberdade, da dança, da bebida (ponche de rum) e, para os turistasde todas as classes, o som das férias.

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Para a detective Jemima Shore, aquele não era o som das férias.Ou, pelo menos, não o era oficialmente. Tanto melhor, já queJemima era uma daquelas pessoas temperamentais para quem asférias perfeitas são uma combinação de trabalho com uma grandedose de prazer. Mal conseguira acreditar quando a MegalithTelevision, os seus empregadores, concordara com um programaque a afastava da gélida Inglaterra e a enviava para as solarengasCaraíbas no final de Janeiro. Aquilo representava uma mudança narotina habitual, já que Cy Fredericks, o patrão de Jemima - e o

patrão efectivo da Megalith se encontrava geralmente a descansarnas Caraíbas em Fevereiro, enquanto a própria Jemima, se algumavez chegasse a lá ir, seria provavelmente obrigada a fazê-lo emAgosto, uma época dominada pelos inconvenientes da humidade. Eo projecto era fascinante. Aquele era definitivamente o seu ano desorte.

- Esta é a minha ilha ao sol...

Todavia, o que o jovem que a encarava realmente cantara fora "oteu cemitério ao sol". O dela? Ou o de quem? Uma vez que ohomem estava de pé, entre Jemima e o túmulo histórico que elaviera visitar, era possível que estivesse a ser possessivo eagressivo. Pensando melhor, seguramente que não. Era uma graça,uma graça bem-disposta num dia animado e muito solarengo. Noentanto, a expressão do jovem, conforme lhe parecia, era maisameaçadora.

Jemima olhou-o fixamente com aquele sorriso especial e doce, tãofamiliar dos telespectadores da televisão britânica. (Estes mesmostelespectadores também sabiam, por experiências passadas, queJemima, apesar do seu sorriso tão doce, não tolerava nenhumdisparate de ninguém, pelo menos no seu programa.) Visto mais deperto, o homem não parecia, de facto, assim tão jovem. O que viufoi um que teria sensivelmente a sua idade - trinta e poucos anos.Era branco, embora estivesse tão queimado do sol que ela supôsnão se tratar de um turista, mas sim de alguém que pertencia àpequena e leal população de europeus de Bow Island, um localterrivelmente orgulhoso da sua recente independência de umvizinho muito mais poderoso.

A altura daquele estranho, ao contrário da sua juventude, não erauma ilusão. Ultrapassava em muito a de Jemima, e ela não erabaixa. Também era bonito, ou sê-lo-ia, não fora o nariz de formaestranha e bastante grande, com uma cana elevada e uma curvapronunciadamente

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aquilina. Contudo, se o nariz desfigurava as suas feições correctas,a impressão deixada não era pouco atraente. Usava calções dealgodão esbranquiçados, como quase todos os homens de BowIsland, brancos ou negros. A sua T-shirt cor de laranja tinha ohabitual logotipo da ilha ou as suas armas - o contorno de um arcoa preto puxado por uma mão negra. Por baixo do logotipo estavaimpresso um dos muitos e variados slogans locais - igualmentealegres - com os quais se pretendia fazer um trocadilho a partir donome da ilha. Neste lia-se: ESTE É O FIM DO ARCO DO SOL!

Não, a avaliar por aquela amistosa T-shirt, não era seguramentesua intenção ser agressivo.

Nesse caso, o bizarro em todo aquele encontro era que aqueleestranho continuava de pé, absolutamente imóvel, barrando ocaminho de Jemima. Ela conseguia vislumbrar a grande pedra deArcher Tomb, que estava mesmo atrás dele, que reconhecia dospostais. Para um local um tanto pequeno, Bow Island eranotavelmente rica em relíquias históricas. No seu tempo, Nelsonvisitara-a com a sua frota, porque, à semelhança dos seus vizinhos,Bow Island acabara por se ver envolvida nas GuerrasNapoleónicas. Duzentos anos antes, ou quase, primeiro os Inglesese depois os Franceses, seguidos novamente dos Ingleses,invadiram e instalaram-se na ilha que outrora pertencera aosCaraíbas e antes deles aos Arawaks. Finalmente, os Africanosforam trazidos à força para este cadinho a fim de trabalharem nasplantações de açúcar, das quais dependia a riqueza insular. Todosestes elementos, em graus diferentes, acabaram por dar origem aopovo que hoje se trata informalmente a si próprio pela designaçãoHolandês.

Archer Tomb, cuja existência, em certo sentido, levara Jemima aatravessar o Atlântico, pertencia ao período do segundo - e últimopovoamento britânico. Ali estava enterrado o mais célebregovernador da história de Bow Island, Sir Valentine Archer. Até oseu próprio nome celebrava a sua longa regência. Originalmente,Bow Island tivera o nome de um santo e, embora fosse verdade quea ilha tinha vagamente a forma de um arco, foi o governador Archerquem ordenou

1 No original, "This is the end of the sun-bow". O termo "bow"designa, simultaneamente, o local da acção - Bow Island - e arco,arma que serve para arremessar flechas ou setas. [N. da T.]

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a alteração, simbolizando, em termos rituais, que aquele arqueiroespecífico passaria a comandar aquele arco em particular.

Jemima sabia que aquele monumento, magnificamente esculpido,representaria Sir Valentine Archer ao lado de Isabella, a sua mulher.Aquele duplo ataúde de pedra estava coroado com uma estruturabranca de madeira rememorativo de uma igrejinha, destinado aconferir a todo o monumento uma importância acrescida - apesar desó pelo seu tamanho sempre dever ter dominado o pequeno adroda igreja - ou para o proteger das intempéries. Jemima lera alguresque não havia crianças Archer inscritas no túmulo, contrariamente àprática habitual do século XVI. Isto porque, conforme um historiadorlocal delicadamente explicava, o governador Archer fora como umpai para toda a ilha. Ou, de acordo com as palavras de outro calipsopuramente local:

"Do outro lado do mar, chegou o velho Sir Valentine... Ele veio paraser vosso pai, e para ser meu também."

Em suma, nenhum monumento conseguiria comportar a prole deum homem a quem o povo atribuía a paternidade de mais de umacentena de filhos, legítimos e ilegítimos. Contudo, a linha legítimaestava agora prestes a extinguir-se. Miss Isabella Archer eraconsiderada, pelo menos oficialmente, a última representante dafamília, sendo ela o motivo da viagem de Jemima às Caraíbas.Esperava fazer um programa sobre a velhota e a sua casa, ArcherPlantation House, cuja decoração se mantinha alegadamenteinalterada ao longo dos últimos cinquenta anos. Queria tambémfazer-lhe uma entrevista de carácter mais geral, sobre as mudançasa que Miss Archer assistira ao longo da sua vida nesta parte domundo.

- Greg Harrison - disse, de repente, o homem que estava de pébarrando o caminho a Jemima. - E esta é a minha irmã, Coralie.

Uma rapariga, que permanecera inadvertidamente na sombra daentrada abobadada da igreja, caminhou na sua direcção com umjeito bastante acanhado. Também ela estava extremamentebronzeada, e o seu cabelo louro, esbranquiçado pelo sol até quaseparecer linho,

Referência à designação "archer", que em inglês significa"arqueiro". [N. da T.]

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estava apanhado atrás num rabo-de-cavalo. A irmã dele. Haveria alialguma semelhança? Coralie Harrison vestia uma T-shirt cor delaranja idêntica à dele, mas, à parte isso, não era muito parecidacom o irmão. Era bastante baixa, para começar, e os seus traçoseram mais atraentes do que bonitos - e, talvez por sorte, não tinha onariz imponente do irmão.

- Bem-vinda a Bow Island, Miss Shore - começou ela por dizer, maso irmão interrompeu-a. Estendeu uma mão grande, musculada ebronzeada pelo sol.

- Sei por que motivo está aqui e não me agrada - disse GregHarrison. - Para remexer em coisas esquecidas. Porque não deixaMiss Izzy morrer em paz?

O contraste entre o seu aperto de mão, aparentemente amistoso, eas suas palavras hostis, apesar de pronunciadas calmamente, eradesconcertante.

- Chamo-me Jemima Shore - disse ela, apesar de ser evidente queele o sabia. - Posso visitar Archer Tomb ou terei de o fazer por cimado seu cadáver? - Jemima voltou a sorrir docemente.

- Do meu cadáver! - Greg Harrison retribuiu-lhe o sorriso. Contudo,o efeito não foi particularmente caloroso. - Então, veio armada atéaos dentes?

Antes que ela conseguisse responder, ele voltou a cantarolar entredentes o conhecido calipso. Jemima pensou nas palavras: "Este é oteu cemitério ao sol", e depois, ele acrescentou:

- Talvez não seja tão má ideia assim, quando se começa adesenterrar coisas que deviam estar enterradas.

Jemima achou que chegara o momento de agir. Delicadamente, deuum passo para o lado, esquivando-se de Greg Harrison, e caminhoudecidida em direcção a Archer Tomb. Ali jazia o casal esculpido. Elaleu: "Em memória de Sir Valentine Archer, primeiro governadordesta ilha, e de sua mulher, Isabella, filha do cavalheiro RandalOxford." Lembrou-se por breves segundos do seu poema favoritode Philip Larkin sobre Arundel Monument, que começa com "Empedra jazem o conde e a condessa..." e termina por "Tudo o que denós resta é o amor".

Porém, aquele casal encontrava-se a milhares de quilómetros dedistância, no frio monástico da Catedral de Chichester. Ali, o

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quente sol tropical queimava-lhe a cabeça descoberta. Apercebeu-se de que retirara o seu grande chapéu de palha em sinal derespeito e voltou a pô-lo rapidamente. Também ali, em contrastecom a igreja de pedra de aparência muito inglesa, com as suasjanelas góticas pontiagudas, havia palmeiras por entre assepulturas em vez de teixos, cujos troncos delgados comopescoços de girafas se curvavam ao sabor da brisa. Certa vez, numgesto romântico, depositara rosas brancas em Arundel Monument.Recordando aquele gesto, contemplava o monte de hibiscos rosa-vivos e laranja colocados sobre a sepultura à sua frente. Umasombra cobriu-a.

- É Tina quem as põe aí. - Greg Harrison tinha-a seguido. Sempreque pode. Quase todos os dias. Depois, conta a Miss Izzy o quefez. Comovente, não é?

E, no entanto, ele não pronunciou aquelas palavras como se, defacto, achasse aquilo comovente. Na verdade, havia tantaamargura, até mesmo malevolência na sua voz, que por instantes,ali de pé junto ao túmulo banhado pelo sol, Jemima chegou a sentirum arrepio.

- Ou será revoltante? - acrescentou ele, desta vez sem disfarçar amalevolência.

- Greg - murmurou Coralie Harrison debilmente, como seprotestasse.

- Tina? - perguntou Jemima. - É a rapariga que faz companhia aMiss Archer... Miss Izzy. Temo-nos correspondido. Neste momentonão consigo lembrar-me do seu apelido.

- Hoje em dia, como decerto acabará por descobrir, ela é conhecidacomo Tina Archer. Quando lhe escreveu, provavelmente assinouTina Harrison. - Harrison olhou para Jemima ironicamente, mas elaesquecera-se mesmo do apelido da dama de companhia davelhota... afinal, não era um nome particularmente fora do comum.

Foram interrompidos por um grito de saudação vindo da estrada.Jemima viu um jovem negro ao volante de um dos práticos Minisdescapotáveis que toda a gente parecia conduzir em Bow Island.Ele levantou-se e começou a gritar qualquer coisa.

- Greg! Cora! Venham ao... - não conseguiu perceber o resto...qualquer coisa sobre um barco e um peixe.

Coralie Harrison pareceu repentinamente radiante, e, por instantes,até Greg Harrison pareceu de facto genuinamente satisfeito.

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Ele retribuiu o aceno.

- Olá, Joseph. Anda cá cumprimentar Miss Jemima Shore da BBC!

- Megalith Television - interrompeu-o Jemima, mas em vão. Harrisoncontinuou:

- Já deves saber, Joseph. Ela está a fazer um programa sobre MissIzzy.

O homem saltou graciosamente do carro e aproximou-se docaminho ladeado de palmeiras. Jemima reparou que também eleera extremamente alto. E, tal como a grande maioria dosBolandeses que conhecera até àquele momento, tinha a aparência

de um atleta inato. Qualquer que tenha sido a mistura genética dopassado entre os Caraíbas, os Africanos e outros povos dos quaisfossem oriundos, os Bolandeses eram, sem dúvida, muito bonitos.Beijou Coralie nas duas faces e cumprimentou o irmão dela comuma palmadinha nas costas.

- Miss Shore, apresento-lhe Joseph... - mas antes que GregHarrison dissesse o apelido, a sua expressão maliciosa advertiuJemima sobre qual seria -...Joseph Archer. Sem dúvida, um dos dezmil descendentes do velho cavalheiro filoprogenitor para cujacampa está a olhar tão extasiada. - "De facto, tudo o que de nósresta é o amor", pensou Jemima de forma irreverente ao apertar amão de Archer... com o devido respeito para com Philip Larkin,parecia que de Sir Valentine restava muito mais do que isso.

- Oh, acabará por descobrir que por aqui todos somos Archermurmurou Joseph de maneira agradável. Ao contrário de GregHarrison, ele parecia ser genuinamente afável. - Quanto a SirValentine...

- pronunciou o nome sílaba por sílaba como o calipso -,...não liguemuito às histórias que ouvir. De outro modo, por que razão nãovivemos todos na bela e antiga Archer Plantation House?

- Em vez de ser apenas a minha ex-mulher. Não, Coralie, nãoprotestes. Estou capaz de a matar por aquilo que anda a fazer. -Uma vez mais, Jemima sentiu um arrepio com a amplitude daviolência da voz de Greg Harrison. - Anda, Joseph, vamos lá veresses teus peixes. Vamos, Coralie. Partiu com passos largos erosto sério, acompanhado por Joseph, que sorria. Coralie, porém,parou para perguntar a Jemima se havia alguma coisa que pudessefazer por ela. Os seus modos continuavam a ser tímidos, mas, naausência do irmão, era

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muito mais amistosa. Jemima também ficou com a forte sensaçãode que Coralie Harrison queria dizer-lhe alguma coisa, algo queforçosamente não queria que o irmão ouvisse.

- Talvez eu possa servir de intérprete, explicar... - Coralieinterrompeu-se. Jemima permaneceu calada. - Certas coisas -continuou Coralie. - Um sítio como este tem tantas implicações. Sóporque é pequeno, um estranho nem sempre compreende...

- E eu sou o estranho? Claro que sou - Jemima começara a fazerum esboço da sepultura para uma referência futura, algo para queela tinha um pequeno mas útil talento. Absteve-se de notar comjusteza, ainda que tal constituísse uma banalidade, que umestranho por vezes consegue aperceber-se das questões locaiscom maior clareza do que os que estão envolvidos nelas - queriasaber que mais tinha Coralie para lhe dizer. Podia ela explicar, porexemplo, por que razão Greg estava tão claramente zangado com asua ex-mulher.

Contudo, um grito impaciente do irmão, que já estava no carrosentado ao lado de Joseph, significava que por enquanto Coralienão tinha mais nada a acrescentar. Ela desceu o caminho a correr,e Jemima ficou a meditar com um interesse renovado na sua futuravisita a Isabella Archer, dona de Archer Plantation House. Era umavisita que incluiria, deduzia ela, um encontro com a rapariga quefazia companhia a Miss Archer, e que, tal como a sua patroa, alivivia confortavelmente.

Confortavelmente! Mesmo à distância, já ao final do dia, a mansão,uma construção baixa e quadrada, tinha uma aparência confortável.Mais do que isso, transmitia uma sensação de tranquilidadegraciosa à moda antiga. À medida que Jemima subia, ao volante doseu próprio Mini alugado, a longa avenida de palmeiras - muito maisaltas do que as do adro da igreja -, fantasiava que recuava notempo até à época do governador Archer, com os seus copiososbanquetes, festas e bailes, todos servidos por escravos negros.

Naquele instante, uma mulher jovem com pele cor de café e cabelopreto encaracolado apareceu no cimo das escadas. Ao

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contrário das empregadas do hotel de Jemima, que usavam umaversão de imitação das antigas fardas que os criados envergavam

ao jantar - vestidos muito coloridos até aos tornozelos, aventaisbrancos de musselina e turbantes -, aquela rapariga usava umablusa escarlate sem costas, último modelo, e calções coçados quemostravam a maior parte do castanho natural das suas pernas. TinaArcher, foi assim que se apresentou.

Jemima Shore não ficou nem um bocadinho surpreendida aodescobrir que Tina Archer - anteriormente Harrison - era de tratoacessível. Todos quantos deixassem o hostil e deselegante GregHarrison passavam para a frente na lista de Jemima. Porém,acompanhada por Tina Archer que não parava de tagarelar ao seulado e tinha uma aparência tão elegante e até mesmo moderna, arevelação do interior da casa constituiu para ela um choque muitomaior do que poderia ter sido. Ali não havia o menor vestígio,absolutamente nenhum, da mais ténue modernidade. O pó e asteias de aranha talvez lá não estivessem literalmente, mas eramsugeridos pela obscuridade, pelo mobiliário de madeira maciça -onde estariam as leves cadeiras de verga tão apropriadas ao clima?- e, sobretudo, pela desolação que deles transpirava. ArcherPlantation House recordava-lhe a casa suspensa no tempo dapobre Miss Havisham de Grandes Esperanças. E, pior ainda, haviauma atmosfera de tristeza que pairava por todo o seu interior. Outalvez fosse apenas solidão, uma espécie de melancolia, grandezaestéril, que se sentia ter sido prolongada ao longo de séculos.

Tudo aquilo contrastava violentamente com a luz do Sol que aindabrilhava naquele fim de tarde e com os arbustos de flores tropicaismuito coloridas do exterior. Jemima não esperara nada daquilo. Ainformação recolhida em Londres levara-a a formar um quadrobastante diferente de Archer Plantation House, algo muito maisparecido com a primeira impressão que tivera à medida que desciaa avenida das palmeiras, de uma graça antiga e delicada.

Quando Jemima já estava a adaptar-se a esta surpresa, descobriuque a figura da própria Miss Archer era igualmente surpreendente.Ou seja, depois de passar rapidamente da livre e agradável Tinapara a casa bafienta e melancólica, agora tinha de se adaptar denovo com igual rapidez. A primeira impressão que teve da velha

senhora, que Jemima sabia ter pelo menos 80 anos, apagourapidamente

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qualquer comparação com Miss Havisham. Ali não havia nenhumanoiva, envelhecida e abandonada, perdida no esboroado vestido denoiva de há cinquenta anos. Miss Izzy Archer usava um chapéu depalha, aparentemente preso por baixo do queixo com um pano dopó, uma camisa de homem branca e larga e uns jeans azuisdesbotados com um rasgão no joelho. Os seus pés estavamenfiados num par daquilo que pareciam ser umas sandálias decriança castanhas. Pela aparência, ou acabara de tomar banho comaquela roupa ou estivera a nadar. A água que escorria por elaabaixo formava enormes poças em cima da dispendiosa carpete edas escuras e polidas tábuas do soalho da sala de visitas, toda elabrocados vermelho-escuros e cortinados blasonados e com franjas,onde recebera Jemima. Conseguia-se ver tudo isto mesmo com aluz filtrada que penetrava através das persianas castanho-escuras,que ocultavam a vista para o mar.

- Oh, não faças tanto banzé, querida Tina - exclamou Miss Izzyimpacientemente... apesar de, na verdade, Tina não ter dito nada.Que importância tem algumas gotas de água? Manchas? Quemanchas? - (Tina continuava calada.) - Deixa o Governo tratar dissoquando chegar a devida altura.

Apesar de Tina Archer continuar em silêncio fitando a patroa comuma expressão afável e até alegre no olhar, não deixou de adoptara postura rígida e gélida de uma ouvinte educada. Instintivamente,Jemima percebeu que, de certa forma, ela ficara aborrecida.

- Ora, não sejas tola, Tina, não te exaltes, querida! - a velhotaagitava-se agora para se libertar da água como um cãozito pequenomas entroncado. - Sabes o que quero dizer. Se tu não souberes,quem é que vai saber... se metade do tempo eu não sei o que querodizer, e muito menos o que digo. Um dia podes organizar tudo, podeser? Afinal, terás muito dinheiro para o fazer. Podes compraralgumas cobertas e carpetes novas - ao dizer isto, Miss Izzy tomouJemima pela mão e, atentamente seguida pela ainda silenciosa

Tina, abriu caminho até ao sofá vermelho-escuro mais afastado.Parecendo notavelmente molhada desde a ponta dos cabelos até àponta dos pés, sentou-se no seu centro com movimentos decididos.

Foi assim que Jemima percebeu pela primeira vez que ArcherPlantation House não passaria necessariamente para o recém-independente

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governo de Bow Island depois da morte da sua proprietária. Seconseguisse concretizar a sua vontade, Miss Izzy tencionava deixartudo, casa e fortuna, a Tina. Entre outras coisas, isto significava queJemima já não ia fazer um programa sobre uma casa destinada atornar-se dentro de pouco tempo um museu nacional - o que emgrande parte fora a razão que a levara à ilha e acabara por garantira amistosa cooperação desse mesmo novo governo. Seria tudoaquilo uma novidade? Desde quando? Estaria o novo governo aocorrente? Se o testamento tivesse sido assinado, ele decerto osaberia.

- Assinei o testamento esta manhã, minha querida - afirmoutriunfante Miss Archer, dando mostras de uma inquietantehabilidade para responder a perguntas não proferidas. - Fui nadarpara comemorar. Comemoro sempre as coisas com um belobanho... é muito mais saudável do que o rum ou o champanhe.Apesar de ainda haver muito disso na adega.

Fez uma pausa.

- Então, aqui está, não é, minha querida? Ou ali estará. Aqui estará.Thompson diz que vai haver problemas, claro. O que se podeesperar nos dias que correm? Desde a independência que só háproblemas. Não que eu seja contra a independência, longe disso,mas com as coisas novas, surgem novos problemas a juntar atodos os antigos problemas, e é assim que os problemas se vãoavolumando. Em Bow Island os problemas nunca se resolvem.Porque será?

Contudo, Miss Izzy não fez uma pausa para obter uma resposta.

- Não, eu sou completamente a favor da independência e conto-lhetudo sobre isso, minha querida - virou-se para Jemima e colocouuma mão húmida sobre a sua manga -, no seu programa. Sabe, eusou uma bolandesa nascida e criada.

Era verdade que Miss Izzy, por exemplo, ao contrário de Tina,falava com a entoação peculiar e ligeiramente monótona dos ilhéus,que aos ouvidos de Jemima não deixava de ter um certo encanto.

- Nasci nesta mesma casa há oitenta e dois anos, em Abrilcontinuou Miss Izzy. - Venha à festa dos meus anos. Nasci duranteum ciclone. Um bom começo! Mas a minha mãe morreu durante oparto. Nunca deviam ter chamado aquele médico demasiadomoderno, só porque tinha vindo de Inglaterra. Era doido varrido,lembro-me bem dele. Deviam ter trazido uma boa parteirabolandesa,

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se o tivessem feito, a minha mãe não teria morrido e o meu pai teriatido filhos...

Miss Izzy perdia-se num mar de recordações... e apesar de,supostamente, elas serem o que trouxera Jemima até ali, os seuspensamentos corriam velozes, de facto, numa direcção bastantediferente. Problema? Que problema? Por exemplo, que lugarocupava Greg Harrison em tudo aquilo...? Greg Harrison que queriaque Miss Izzy não fosse incomodada e que a deixassem "morrer empaz"? Greg Harrison que fora casado com Tina e já não o era? TinaArcher, agora a herdeira de uma fortuna.

Acima de tudo, por que razão tencionava esta decidida senhoraidosa deixar tudo à rapariga que lhe fazia companhia? Paracomeçar, Jemima não sabia com que seriedade devia abordar aquestão do apelido de Tina. Joseph Archer brincara com o tema dosinúmeros descendentes de Sir Valentine, mas teria a bela Tina umaligação particular com Miss Izzy. Talvez fosse o resultado de umarelação mais recente entre um Archer devasso e uma criadabolandesa. Isto é, mais recente do que o século xvI.

A sua atenção foi desviada de novo para o monólogo rememorativode Miss Izzy graças à referência a Archer Tomb.

- Viu o túmulo? Tina descobriu que é tudo uma fraude. Uma enormementira, ali exposta ao sol... sim, querida Tina, uma vez disseste-o.Sir Valentine Archer, o meu tetra, tetra, tetra... - seguiu-se umnúmero infinito de "tetras" antes de Miss Izzy pronunciar finalmentea palavra "avô". Jemima, no entanto, tinha de admitir que elaparecia estar realmente a contá-los. - Ele tem uma enorme mentiraperpetuada na sua lápide.

- O que Miss Izzy quer dizer... - aquela era a primeira vez que Tinafalava desde que haviam entrado na sombria sala de visitas. Elacontinuava de pé, enquanto Jemima e Miss Izzy estavam sentadas.

- Não me digas o que quero dizer, rapariga - proferiu secamente avelha senhora; num tom de voz que era mais autoritário do queindulgente. Por breves instantes, Tina podia ter passado por maisuma das trabalhadoras da plantação de há duzentos anos do quepor uma rapariga de espírito independente dos finais do século xx.

- É a inscrição que é uma mentira. Ela não foi a sua única mulher.Aquela inscrição devia ter-nos servido de advertência. Tina querque

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se faça justiça à pobrezita Lucie Arme, e eu também.Independência, pois sim! Ao longo de toda a minha vida fuiindependente e de certeza que não é agora que vou deixar de o ser.Diga-me, Miss Shore, a senhora é uma mulher inteligente datelevisão. Porque nos havemos de dar ao trabalho de negar umacoisa, a menos que ela seja sempre verdade? Essa é a forma comovocês funcionam na televisão, não é?

Jemima pensava sobre como haveria de responder àquela perguntade forma diplomática e sem difamar a sua profissão quando Tinacom firmeza, e desta vez com êxito, se sobrepôs à sua patroa.

- Eu frequentei o curso de História numa Universidade do ReinoUnido, Jemima. A minha especialidade é a pesquisa genealógica.

Estava a ajudar Miss Izzy a organizar os seus documentos para omuseu... ou aquilo que era suposto ser o museu, quando chegou opedido do seu programa e eu comecei a investigar com um poucomais de profundidade. Foi assim que encontrei a certidão decasamento. O velho Sir Valentine casara de facto com a sua jovemamante das Caraíbas, chamada Lucie Anne, no final da sua vida...muito tempo depois de a primeira mulher ter morrido. Lucie Anne foia mãe dos seus dois filhos mais novos. Ele estava a envelhecer, epor qualquer razão decidiu casar-se com ela. Talvez tenha sido porcausa da Igreja. Ao seu jeito, esta sempre foi uma ilha temente aDeus. Talvez Lucie Anne, que era muito jovem e muito bonita, tenhapressionado o velho, usando a Igreja. Em todo o caso, estas duasúltimas crianças, de todas as centenas que ele gerara, eramlegítimas!

- E então? - perguntou Jemima no seu jeito mais encorajador.

- Eu descendo de Lucie Anne... e de Sir Valentine, claro! - Tinaretribuiu o doce sorriso com outro. - Também encontrei isso nosescritos da Igreja... sem grande dificuldade, dada a força que aIgreja tem por aqui. Em todo o caso, não foi muito difícil para umaestudiosa. Ah, tenho todos os tipos de sangue, como a maioria dapopulação de cá, incluindo uma avó espanhola e talvez ainda algumsangue francês, mas a ascendência Archer é indubitável e clara.

Tina parecia ter consciência de que Jemima a olhava fixamente ecom respeito. No entanto, compreenderia ela o verdadeirosignificado dos pensamentos de Jemima? Esta pensava: "Aqui estáuma pessoa formidável. Encantadora, sem dúvida, mas formidável.E, por vezes

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impiedosa, talvez." Na verdade, Jemima estava também a pensarem como iria apresentar esta súbita mudança de perspectiva no seuprograma para a Megalith Television. Por um lado, podia agora serencarada como a história romântica de alguém que, sendo pobre,recebe uma fortuna e de repente fica rica, a descoberta da herdeiraperdida; por outro, só de pensar na possibilidade de Tina Archer nãoser tanto uma herdeira, mas sim uma aventureira! Neste caso, que

faria a Megalith - ou que faria Jemima Shore - com uma raparigaesperta que perpetua o pesado fardo de uma história falsa sobreuma senhora idosa e inocente? Em tais circunstâncias, Jemimaconseguia perceber o motivo por que o homem que estivera juntoao túmulo banhado pelo sol mostrara tanto desprezo por TinaArcher.

- Conheci Greg Harrison junto a Archer Tomb, esta manhã disseJemima intencionalmente. - Segundo sei, é o seu ex-marido.

- Claro que ele é o ex-marido dela - foi Miss Izzy que quisresponder. - Essa nulidade. Gregory Harrison tem sido umanulidade desde que nasceu. E aquela irmã dele. Pescadores dearrasto. Aquela gente não trabalha. Andam de barco, pescam.Como se o mundo lhes devesse a sua sobrevivência.

- Meia-irmã. Coralie é sua meia-irmã. E ela trabalha na boutique deum hotel. - Tina falava num tom perfeitamente impessoal, mas umavez mais Jemima adivinhou que ela se sentia de alguma formaaborrecida. - Greg é o inútil da família.

Apesar de toda a sua calma, havia um vislumbre de irritaçãoreprimida na sua alusão ao ex-marido. Com que amargura aquelecasamento não devia ter chegado ao fim!

- São ambos uns inúteis. Estás muito bem sem ninguém, queridaTina - afirmou Miss Izzy. - E senta-te, rapariga... estás aí de pécomo uma governanta. E, afinal, onde está Hazel? Já são quasecinco e meia. Não tarda está a escurecer. Podemos descer aoterraço para ver o pôr do Sol. Onde está Henry? Devia estar atrazer-nos um pouco de ponche. O ponche da plantação Archer,Miss Shore... espere até o provar. Um ingrediente secreto,costumava dizer o meu pai...

Miss Izzy estava feliz por regressar ao passado.

- Vou buscar o ponche - disse Tina, ainda de pé. - Não disse queHazel podia tirar o dia? A irmã dele vai casar-se em TamarindCreek. É Henry que a vai levar.

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- Nesse caso, onde está o rapaz? Onde está o não-sei-quantos? Opequeno Joseph? - a velhota começava a parecer petulante.

- Já não há cá nenhum rapaz - explicou Tina, pacientemente. SóHazel e Henry. Quanto a Joseph... bem, o pequeno Joseph Archeragora já está crescido, não é?

- Claro que sim! Eu não me referia a esse Joseph... ele veio ver-meno outro dia. Não havia outro rapaz chamado Joseph? Talvez tenhasido antes da guerra. O meu pai tinha um moço de cavalariça...

- Eu vou buscar o ponche de rum - Tina desapareceu rápida egraciosamente.

- Uma criatura bonita - murmurou Miss Izzy depois de ela sair.

- É sangue Archer. Vê-se sempre. Dizem que os Bolandeses maisbonitos ainda são Archer.

No entanto, quando Tina regressou, o humor da velhota voltou aalterar-se.

- Estou fria e húmida - declarou ela. - Ainda me constipo aquisentada. E em breve vou ficar completamente sozinha em casa.Detesto que me deixem sozinha. Desde miúda que detesto estarsozinha. Toda a gente o sabe. Tina, tens que ficar para jantar. MissShore também tem que ficar. Isto aqui junto ao mar é tão solitário. Oque pode acontecer se alguém entrar aqui...? Não franzam osobrolho, anda por aí muita gente má. Essa foi uma das coisas quenão melhorou com a independência.

- Claro que fico - respondeu Tina com facilidade. - Já tratei de tudocom Hazel.

Jemima questionava-se, não sem um certo sentimento de culpa, setambém deveria ficar. Aquela, porém, era a noite da semana emque o seu hotel dava uma festa na praia - um churrasco seguido deum baile acompanhado por uma banda de percussão. Jemima, queadorava dançar no hemisfério norte, estava ansiosa porexperimentar dançar ali. Dançar sob o céu estrelado junto ao marparecia-lhe uma coisa idílica. Precisaria, de facto, Miss Izzy de maiscompanhia? Os seus olhos cruzaram-se com os de Tina Archer por

cima da cabeça da velha senhora tapada com o chapéu de palha.Tina abanou a cabeça ligeiramente.

Depois de um pequeno trago do famoso ponche de rum - qualquerque fosse o ingrediente secreto, era o mais forte que ela já provaraem toda a ilha -, Jemima estava pronta para se ir embora.

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De qualquer modo, o ponche estava a ter um efeito manifestamenterelaxante na própria Miss Izzy. Rapidamente, ficou um tanto ébria eJemima conjecturou sobre quanto tempo conseguiria ela, de facto,aguentar acordada. O próximo encontro entre ambas teria de serpela frescura da manhã.

Jemima afastou-se no seu carro justamente quando o enorme solvermelho descia rapidamente atrás do horizonte. O bater das ondasna costa acompanhava-a. Archer Plantation House ficava situadanum local solitário, na sua própria pequena porção de terra noextremo da sua longa avenida. Dificilmente podia censurar MissIzzy por esta não querer que a deixassem ficar ali sozinha. Jemimaescutou o som das ondas até este ser engolido pelo som bemdiferente da banda de percussão da vila costeira mais próxima.Aquilo transferiu temporariamente os seus pensamentos dosacontecimentos recentes em Archer Plantation House para aperspectiva da noite que a esperava. Fosse como fosse, por umbreve período, deixaria de pensar completamente em Miss IsabellaArcher.

Isso porque, de início, a festa da praia correspondeu exactamenteàquilo que Jemima esperara - descontraída, bem-disposta ebarulhenta. Sentiu as suas preocupações dissiparem-segradualmente à medida que dançava com vários pares, ingleses,americanos e holandeses ao som da banda de percussão. Aqueleponche de rum de Miss Izzy, com o seu ingrediente secreto, deviater sido letal, porque os seus efeitos pareceram perdurar neladurante várias horas. Concluiu que não voltaria a precisar dasgenerosas ofertas da mistura do hotel - bem mais fraca do que a deMiss Izzy por baixo da sua superfície pródiga em lâminas de noz-moscada. Outros, porém, achavam que o ponche do hotel era

exactamente aquilo que precisavam. Considerando bem as coisas,aquela mostrara já ser uma óptima festa muito antes de a lua novaprateada ser bem visível sobre as águas agora negras dasCaraíbas. Jemima, momentaneamente sozinha, inclinou a cabeçapara trás enquanto permanecia à beira das ondas que sesobrepunham no extremo da praia, e fitou a lua.

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- Vai pedir um desejo a essa luazinha nova? - ela virou-se.

Um homem alto - pelo menos com uma diferença de dois palmosem relação a ela - estava de pé na areia ao seu lado. Ela não oouvira aproximar-se devido ao suave rumorejar das ondas. Porinstantes, não reconheceu Joseph Archer naquela camisa larga eflorida e naquelas calças compridas brancas, tão diferente dopescador que ela conhecera naquela tarde no cemitério.

Assim, aconteceu que a segunda parte da festa na praia foibastante inesperada, pelo menos, do ponto de vista de Jemima.

- Eu devia pedir um desejo. Acho que devia desejar conseguir fazerum bom programa. Seria bom, fazer uma coisa profissional.

- Sobre Miss Izzy e tudo isso?

- Miss Izzy, Archer Plantation House, Bow Island... para não falar,em Archer Tomb, no velho Sir Valentine e tudo isso - decidiu não sereferir a Tina Archer e a tudo o resto, por enquanto.

- Tudo isso! - ele suspirou. - Ouça, Jemima... esta banda é boa. Diz-se que neste momento é a melhor da ilha. E se fôssemos dançar,que diz? Podemos conversar sobre tudo isso amanhã de manhã.No meu escritório, está bem?

Foi tanto a autoridade distinta com que Joseph Archer falou como areferência ao seu escritório que intrigaram Jemima. Antes de ela sedeixar embalar ainda mais pelo ritmo da dança - coisa que sentiaque estava prestes a acontecer com a ajuda de Joseph Archer -,tinha de descobrir exactamente o que ele quisera dizer. E, já agora,quem era ele.

A resposta à segunda questão era fácil. E também constituía aresposta à primeira. Joseph Archer podia ou não ir pescar às vezesquando não estava a trabalhar, mas também fazia parte do recém-formado governo bolandês. Aliás, era até um elemento importante.Importante aos olhos do mundo em geral e, particularmenteimportante aos olhos da detective Jemima Shore, uma vez queJoseph Archer era o ministro que detinha a pasta do Turismo, queabrangia ainda áreas como a conservação, a herança histórica dosBolandeses e - como ele próprio lhe referiu... - "o futuro NationalArcher Plantation House Museum".

Uma vez mais, não parecia o momento indicado para fazerreferência a Tina Archer e aos possíveis direitos de propriedade queviria a ter.

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Voltou a olhar pela janela. O efeito do ponche estava a desaparecer.Agora tinha a certeza absoluta do que via. Algo escuro, com roupasescuras, de pele escura... O que importava aquilo, alguém de corescura tinha saído do mar e caminhava agora em silêncio nadirecção da casa.

"Tenho que ser corajosa", pensou Miss Izzy. E disse em voz alta:

- Ele ficará orgulhoso de mim. A sua menina corajosa.

A menina corajosa de quem? Não, não de Sir Valentine... a meninacorajosa do papá. Os seus pensamentos começaram a vaguear denovo pelo passado. Será que o papá vai levar-me a nadar com elepara comemorar?

Miss Izzy começou a descer as escadas. Exactamente na altura emque chegava à porta da sala de visitas e espreitava para o interiordecadente forrado a veludo vermelho, ainda muito iluminado, ointruso vestido com roupas escuras entrou na sala pela janelaaberta.

Mesmo antes de ele se dirigir a ela, em passo suave e silencioso,as mãos estendidas enfiadas numas luvas pretas, Miss Izzy Archernão teve qualquer dúvida no seu velho coração que batia agora

rapidamente, que a plantação Archer, a casa onde nascera, eratambém a casa onde estava prestes a morrer.

- Miss Izzy Archer está morta. Alguém foi lá ontem e matou-a.Talvez um ladrão.

Foi Joseph Archer quem deu a notícia a Jemima na manhãseguinte.

Instalado atrás da enorme secretária do seu escritório formal emBowtown, falava numa voz cava e distante, e a sonoridademonótona do bolandês era o único elo de ligação com o atraentecompanheiro de dança de Jemima no baile da noite anterior. Com asua camisa branca de mangas curtas, mas com uma aparênciaoficial, e as suas calças pretas, parecia uma vez maiscompletamente diferente do pescador alegre e trocista que Jemimaencontrara da primeira vez que o vira. Aquele era, sem dúvida, ojovem político bolandês em ascensão, um membro do novo governode Bow Island. Nem mesmo o trágico acontecimento da morte - doassassínio, conforme parecia -

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de uma senhora idosa parecia despertar nele o menor vislumbre deemoção.

Então, Jemima voltou a olhar para Joseph Archer e, nos seus olhos,viu aquilo que lhe pareceu serem lágrimas.

- Eu próprio acabei de saber a notícia, sabe. O chefe da polícia,Sandy Marlow, é meu primo.

Não tentou limpar as lágrimas, se é que eram, de facto, lágrimas. Aspalavras, no entanto, pretendiam soar talvez como uma explicação.De quê? Do choque? Do desgosto? Não havia dúvida que sentiraum choque, mas desgosto? Naquela altura, Jemima achou que,pelo menos, podia tentar saber delicadamente algo mais sobre asua verdadeira relação com Miss Izzy.

Recordou-se que ele visitara a velhota na semana anterior, se é queas vagas palavras de Miss Izzy relativamente ao "pequeno Joseph"deviam ser tidas em conta. Não estava a pensar tanto numa

possível relação consanguínea, mas em qualquer outro tipo derelacionamento. Afinal de contas, o próprio Joseph Archer pusera departe a primeira ideia no cemitério. As suas palavras sobre SirValentine e a sua numerosa prole vieram-lhe à memória: "Não dêdemasiada importância às histórias. De outro modo, porque nãoestaríamos todos nós a viver na bela e antiga Archer PlantationHouse?", ao que Greg Harrison comentara, bastante furioso: "Emvez de ser apenas a minha ex-mulher." Aquela troca de palavrasfazia agora mais sentido para ela, claro, uma vez que conhecia aposição de Tina Harrison, actualmente Tina Archer, no testamentode Miss Izzy.

O testamento! Agora, Tina iria receber a herança. E isso aconteceriapor causa de um testamento assinado exactamente na manhã dodia em que Miss Izzy morrera. Joseph estava inquestionavelmentecorrecto quando rejeitara a afirmação de que muitos dosbolandeses chamados Archer eram, de alguma forma,descendentes de Sir Valentine. Havia já uma diferença considerávelentre Tina, alegadamente a única descendente legítima além deMiss Izzy, e os restantes bolandeses com o apelido Archer. Nofuturo, quando Tina herdasse o seu património, a distânciaaumentaria ainda mais.

O escritório de Joseph estava extremamente quente. Não era tantopor Bow Island ser um lugar muito pouco sofisticado, mas simporque a brisa persistente, de uma maneira geral, tornava o arcondicionado

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desnecessário. "Os turistas norte-americanos, que começam aquerer ar condicionado nos hotéis", pensava Jemima, "apenascontribuem para arruinar o mais perfeito tipo de ventilação natural."Contudo, um escritório governamental em Bowtown era muitodiferente. Uma enorme ventoinha no tecto agitava constantementeos papéis que estavam em cima da secretária de Joseph. Jemimasentiu um fio de suor deslizar por baixo da T-shirt branca, larga ecomprida, que apertara à cintura como se fosse um vestido a fim de

lhe conferir alguma da formalidade inerente ao encontro com umministro bolandês durante as horas de expediente.

Naquela altura, a incredulidade entorpecedora de Jemima emrelação ao tema do assassínio de Miss Izzy estava a desvanecer-se. Ficara impressionada com a assustadora acrimónia que rodearaaquele último encontro no cenário grandioso e decadente de ArcherPlantation House. Pior ainda, o patético medo da solidão queassaltava a velhota começava a obcecá-la. Miss Izzy fora tãoveemente na sua determinação de não ser abandonada. "Desdecriança que detesto estar sozinha. Toda a gente o sabe. Isto aqui àbeira-mar é tão solitário. O que pode acontecer se alguém aquientrar?"

Bem, alguém lá entrara, de facto. Ou assim se pensava. "Talvez umladrão", a julgar pelas palavras de Joseph Archer. E esse ladrão...talvez... tivesse morto a velhota enquanto a roubava.

Jemima começou a dizer de forma hesitante:

- Lamento muito, Joseph. Foi uma tragédia horrível! Você conhecia-a? Bem, creio que toda a gente a conhecia por aqui...

- Estive com ela todos os dias da minha vida, desde garoto. A minhamãe foi uma das suas criadas. Era uma coisinha frágil, e depoismorreu. Está naquele cemitério, sabe, o que fica numa esquina.Miss Izzy foi muito boa para mim quando a minha mãe morreu, oh,sim. Era uma pessoa bondosa. Podemos pensar que aindependência, a nossa independência, seria uma experiência difícilpara uma senhora idosa como ela, mas ela agradou muito a MissIzzy. "A Inglaterra já não me serve, Joseph", dizia ela. "Sou umabolandesa como todos vocês."

- Creio que esteve com ela a semana passada. Foi a própria MissIzzy quem mo disse.

Joseph olhou para Jemima fixa e firmemente - a emoçãodesaparecera.

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- Sim, fui falar com ela. Andava com umas ideias patetas de mudarde opinião em relação a determinadas coisas. Simples fantasias,compreende? Mas isso acabou. Que descanse em paz, a velhinhaMiss Izzy. Agora teremos o nosso Museu Nacional, disso tenho acerteza, e através dele podemos recordá-la. Vou criar um bommuseu sobre a nossa história. Não lhe falaram nisso em Londres,Jemima?

- Havia algum orgulho na sua voz, quando concluiu: - Notestamento, Miss Izzy legou tudo ao povo de Bow Island.

Jemima engoliu em seco. Seria verdade? Ou melhor, seria aindaverdade? Teria Miss Izzy assinado um novo testamento navéspera? Ela fora bastante circunstancial em relação a esseassunto, referindo alguém chamado Thompson - o seu advogado,certamente -, que achava que iria haver "problemas" por causadisso.

- Joseph - disse ela -, ontem à tarde, Tina Archer também estavaem Archer Plantation House.

- Oh, essa rapariga, os problemas que causou, que tentou causar.Tina, com as suas histórias, a sua educação esmerada e a suahistória. E é tão bonita! - O tom de voz de Joseph sooumomentaneamente violento, mas terminou a frase com maiorsuavidade. - A polícia estava à espera no hospital. Ela ainda nãofalou, nem sequer está consciente... depois, ainda maiscalmamente, acrescentou: - Constou-me que agora já não está tãobonita. O ladrão bateu-lhe com força, sabe?

No escritório da cidade estava mais calor do que nunca, e atémesmo os papéis pousados sobre a secretária mal se agitavam soba aragem provocada pela ventoinha. Jemima viu o rosto de Josephandar à roda à sua frente. Era imperativo que não desmaiasse... elanunca desmaiava. Concentrou-se desesperadamente no queJoseph Archer lhe dizia, no quadro que ele recriava sobre a noite docrime. O choque de saber que Tina Archer também estava em casaquando Miss Izzy fora morta era irracional, apercebia-se agora. Tinanão lhe prometera ficar com ela?

Joseph dizia-lhe que o corpo de Miss Izzy fora encontrado na salade visitas pela cozinheira, Hazel, quando esta regressara docasamento da irmã, de madrugada. Fora uma visão sinistra, porqueMiss Izzy estava com o pijama de seda vermelho-escuro - que forade seu pai - e toda a decoração da sala de visitas era igualmentevermelho-

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-escura, pelo que a pobre Hazel, inicialmente, não se apercebera daextensão dos ferimentos da patroa. Não só havia sangue por todo olado, como água - enormes poças de água. O que quer... quemquer... que tivesse morto Miss Izzy, viera do mar. Calçando sapatosde borracha - ou barbatanas - e talvez umas luvas.

Instantes depois, Hazel não tinha dúvidas sobre o que atingira MissIzzy. A moca, ainda manchada de sangue, fora deixada no chão dovestíbulo da entrada. (Ela própria, levada por Henry, entraraprimeiro pela porta da cozinha.) Apesar de não ser de fabricobolandês, a moca pertencia à casa. Era uma antiguidade, talvezafricana, trazida por Sir John Archer de uma das suas viagens poroutras partes do antigo Império Britânico, e estava pendurada porum cabo curto e pesado na parede da sala de visitas. Sir Johnusara-a provavelmente para precaver-se dos intrusos ilícitos, maspara Miss Izzy era apenas mais uma recordação de família. Nuncalhe tocara, e agora, fora morta por ela.

- Não há impressões digitais em lado nenhum - disse Joseph.

- Até agora.

- E Tina? - perguntou Jemima com os lábios secos.

A ideia das poças de água estagnada no chão da sala de visitasmisturadas com o sangue de Miss Izzy trouxe-lhe à memória umaimagem muito viva da velha senhora quando a vira pela última vez -toda molhada no seu bizarro fato-de-banho, sentando-sedesafiadoramente no sofá.

- O ladrão esquadrinhou a casa até à cave. As caixas dechampanhe, de que Miss Izzy tanto se vangloriava, devem ter-se

revelado demasiado pesadas. Só bebeu algum rum. A polícia aindanão sabe o que levou... talvez umas caixas de rapé de prata, haviapor lá tantas. - Joseph suspirou. - Depois, subiu ao andar de cima.

- E encontrou Tina?

- Num dos quartos. Não lhe bateu com a mesma arma... foi a sortedela, se não tê-la-ia morto como fez a Miss Izzy. Deixou essa armano andar de baixo e agarrou em algo bem mais leve.Provavelmente, não contava que lá estivesse alguém... isto é, alémde Miss Izzy. Tina deve tê-lo surpreendido. Talvez tenha acordado.Os ladrões... bem, tudo o que posso afirmar é que, normalmente,por estas paragens os ladrões não matam as pessoas, a menosque se assustem.

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Sem avisar, Joseph teve um repentino gesto de fraqueza diantedela e agarrou a cabeça com as mãos, murmurando algo como:

- Quando descobrirmos quem fez isto a Miss Izzy...

Só no dia seguinte é que Tina Archer conseguiu falar com a polícia,ainda que com muitas restrições. Tal como a maioria da populaçãode Bow Island, Jemima Shore foi informada do facto quase deimediato. Acontecia que Claudette, a gerente do seu hotel, umafigura simpática apesar de tagarela, tinha uma sobrinha que eraenfermeira. Era sempre assim que as informações se espalhavampela ilha

- sem que fossem necessários jornais ou rádio, uma vez que estetelégrafo pessoal é muito mais eficaz.

Jemima passara as últimas vinte e quatro horas nadando semdestino, tomando banhos de sol e dando pequenos passeios pelailha no seu Mini. Perguntava-se até que ponto devia informar aMegalith Television sobre o fim abrupto do programa que tencionavarealizar e se devia preparar as coisas para voltar a Londres.Momentos depois, o instinto investigador, aquela curiosidadeinveterada que não a deixava quieta, falou mais alto. Descobriu queainda não parara de especular sobre a morte de Miss Izzy. Um

ladrão? Um ladrão que também tentara matar Tina Archer? Ou umladrão que fora simplesmente surpreendido pela sua presença nacasa? Que ligação, se é que havia alguma, existia entre tudo aquiloe o testamento de Miss Izzy?

De novo o testamento. Este, contudo, foi uma questão sobre a qualJemima não teve de especular muito, uma vez que tambémacontecia que Claudette, a gerente, era casada com o irmão deHazel, a cozinheira de Miss Izzy. Assim, Jemima ficou a saber -certamente como a restante população de Bow Island - que MissIzzy redigira de facto outro testamento em Bowtown, na manhã emque morrera, que Eddie Thompson, o solicitador, lhe pedira paranão o fazer, que Miss Izzy o fizera, que Miss Izzy ainda incluíra neleHazel, conforme prometera (e Henry, que trabalhara para ela aindadurante mais tempo), e que uma jóia qualquer estava destinada auma prima que vivia em Inglaterra, "uma vez que as jóias da mãede Miss Izzy estavam há

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muitos anos num banco inglês". O resto, no entanto, bem, agora jánão haveria nenhum Museu Nacional bolandês, isso era certo. Tudoo resto - aquela bela casa da plantação, a fortuna de Miss Izzy,considerada avultada, mas quem sabia ao certo? - iria para TinaArcher. Se ela recuperasse, claro. O último boletim noticioso deClaudette, que chegara pela sobrinha-que-era-enfermeira econfirmado por algumas outras pessoas loquazes da ilha, era queTina Archer estava a recuperar. A polícia já conseguira falar comela, e dentro de dias, estaria em condições de deixar o hospital.Estava decidida a assistir ao funeral de Miss Izzy que, como seriade esperar, teria lugar na igrejinha de estilo inglês rodeada por umaincongruente vegetação tropical, que dava para o túmulo banhadode sol. Miss Izzy já há muito que deixara expressa a vontade de serenterrada em Archer Tomb, ao lado do governador Sir Valentine eda "sua única mulher, Isabella".

- Como a última descendente dos Archer. Contudo, ela teria queobter uma autorização por se tratar de um monumento nacional. E,

claro, o governo não faria nada para a contrariar, por isso,concordou. Irónico, não é?

Quem falava assim, sem fazer qualquer esforço para esconder oseu desagrado era Coralie Harrison.

- E agora ficamos a saber que ela não era a última descendente dosArcher, pelo menos em termos oficiais, e teremos a dita Miss TinaArcher como a parente mais próxima da defunta. E enquanto ogoverno bolandês procura desesperadamente formas de contornaro testamento e apoderar-se da casa para fazer o seu valiosomuseu, não há ninguém que tenha a coragem de avançar e dizerbasta... não haverá enterro em Archer Tomb para Miss Izzy, essavelhinha mal comportada, porque, afinal, não deixou ao povo deBow Island um único centavo.

- Teria sido um momento interessante - murmurou Jemima. Estavasentada com Coralie Harrison debaixo do telhado de

colmo cónico do bar da praia do hotel. Fora ali que dançara pelaprimeira vez e se sentara com Joseph Archer na noite de lua nova...a noite em que Miss Izzy fora assassinada. Agora o mar cintilava aosol como se tivesse cristais dispersos à superfície. Naquele dia, nãohavia ondas e os felizes praticantes de esqui cruzavam e voltavama cruzar a vasta baía com a sua costa orlada de palmeiras.Enormes

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pelicanos castanhos empoleiravam-se em cima das estacas,indicadores dos sítios onde estavam as rochas. De vez em quando,um levantava voo como um avião pesado e deslizava, lento ecurioso, por cima das cabeças dos banhistas. Era uma cenatranquila, até mesmo idílica. Porém, algures na península distanteestava Archer Plantation House, não só com as persianas corridasmas agora, imaginava ela, selada pela polícia.

Coralie subira devagar até ao bar, vinda da praia. Percorrera osescassos metros com uma aparente indiferença - frequentementetodos os bolandeses punham em prática o seu direito de passearemlivremente pelas areias (como na maioria das ilhas das Caraíbas,

ninguém era proprietário de nenhuma porção da praia de BowIsland, mesmo fora da mansão mais imponente como era o caso deArcher Plantation House, à excepção do povo). No entanto, Jemimanão tinha a mínima dúvida de que aquela era uma visita planeada.Não se esquecera daquele primeiro encontro, nem da tentativa queCoralie fizera para se aproximar dela quando fora interrompida pelogrito peremptório de Greg.

Aquele era o dia seguinte à investigação judicial sobre a morte deMiss Izzy. O seu corpo fora disponibilizado pela polícia e o funeralteria lugar dentro em breve. Jemima admitiu para si própria estarsuficientemente interessada em toda a família Archer e nos seusvários ramos para querer assistir às cerimónias fúnebres, à parte aternura que sentia pela própria velhota, com base naquele breveencontro. Num telex enviado de Bowtown para a MegalithTelevision, falara apenas em esclarecer alguns elementos queresultavam do cancelamento do seu programa.

Da investigação judicial resultara um veredicto onde se confirmavaa existência de crime, mas se desconhecia o seu autor. Otestemunho de Tina Archer feito sob juramento não contribuíramuito para alterar aquilo que não era conhecido ou de que já sesuspeitava. Estava a dormir no andar de cima, num dos muitosquartos praticamente abandonados, mas aparentemente prontospara acolher um hóspede. O quarto que Miss Izzy escolhera paraela não estava virado para o mar. As cortinas de chita daquelequarto das traseiras, com um padrão rosa datado de uma épocaremota, não estavam assim tão debotados nem rasgados, poisestavam protegidos do sol e do sal.

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Miss Izzy deitara-se bem-disposta e tranquila por Tina Archer alipassar a noite. Bebera mais alguns ponches de rum e propusera-sepedir a Henry que fosse à cave buscar algumas garrafas do famosochampanhe do seu pai. Na verdade, Miss Izzy fazia muitas vezesesta proposta depois de alguns copos de ponche, mas Tinalembrara-lhe que Henry saíra e o assunto morrera por ali.

No seu depoimento, Tina afirmou não ter nenhuma pista em relaçãoao que poderá ter acordado Miss Izzy e a terá levado a descer asescadas. Na sua opinião, aquilo não tinha absolutamente nada quever com o seu comportamento habitual. Isabella Archer era umasenhora de espírito independente, mas era conhecido o medo quesentia do escuro, daí, a presença de Tina na casa. Quanto à suarecordação do ataque, até àquele momento Tina conseguiralembrar-se de muito poucos pormenores - a pancada na nucaapagara do seu consciente, temporária ou definitivamente, todas ascircunstâncias imediatas. Tinha uma vaga ideia de que houverauma luz intensa, mas até mesmo isso era muito confuso e podia serconsequência da pancada que sofrera. Basicamente, nãoconseguia lembrar-se de nada do que se passara entre o momentoem que se deitara na cama de quatro colunas coberta por umacolcha rasgada e com um padrão à base de rosas e o momento emque acordara no hospital.

O lábio de Coralie tremia. Ela inclinou a cabeça e sorveu um poucoda sua bebida pela palhinha - ela e Jemima estavam a beber umamistura exótica feita com sumo de frutas, sem álcool, inventada porMatthew, o empregado do bar. Do mar soprava uma brisamaravilhosamente suave, e Coralie, que usava um vestido florido elargo de algodão, parecia afogueada e zangada.

- Tina sempre inventou esquemas com tudo ao longo da vida eagora conseguiu. Era sobre isto que eu queria avisá-la naquelamanhã no adro da igreja... quis dizer-lhe para não confiar em TinaArcher. Agora, é tarde de mais, ela ficou com tudo. Enquanto foicasada com Greg, tentei gostar dela, Jemima, palavra que tentei. Apequena Tina, tão engraçada e tão esperta, mas semprequezilenta...

- Creio que Joseph Archer pensa praticamente o mesmo em relaçãoa ela - disse Jemima.

Seria imaginação sua ou o rosto de Coralie suavizara-se um poucoao ouvir o nome de Joseph?

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- Pensa, é? Fico contente. Em tempos, ele também se sentiuatraído por ela. Ela é muito bonita. - Os olhos de ambasencontraram-se. - Bem, não é assim tão bonita, mas para quemgosta do género... - Jemima e Coralie riram-se. A verdade era queCoralie Harrison era bastante atraente, para quem gostasse do seugénero, mas Tina Archer era arrebatadora para qualquer padrão.

- Claro que agora Greg sente uma completa aversão por elacontinuou Coralie decidida -, sobretudo desde que soube dasnovidades sobre o testamento. Quando a encontrámos naquelamanhã na igreja, ele tinha acabado de saber. Por isso, bem, peço-lhe desculpa, mas ele foi muito indelicado, não foi?

- Mais hostil do que indelicado - Jemima, contudo, tinha começadoa verificar o tempo dos acontecimentos. - Está a querer dizer que oseu irmão sabia do testamento antes de Miss Izzy ser morta?perguntou ela.

- Ah, sim. Alguém do escritório de Eddie Thompson disse ao Greg.Daisy Marlow, talvez, eles têm saído juntos. Claro que todossabíamos que era o que acabaria por acontecer, simplesmentetínhamos esperança que Joseph tivesse convencido Miss Izzy adesistir de o fazer. E ele teria conseguido demovê-la com o tempo.Aquele museu é tudo para Joseph.

- Parece-me que o seu irmão e Miss Izzy não tinham uma relaçãomuito pacífica.

Jemima pensou estar a usar o seu tom de voz mais delicado econvincente, mas Coralie argumentou com algo semelhante a umdesafio:

- Parece a polícia a falar!

- Porquê, eles...?

- Ora, claro que sim! - Coralie respondeu à pergunta antes deJemima a ter terminado. - Toda a gente sabe que Gregsimplesmente odiava Miss Izzy... que a culpava pelo fim do seucasamento, por se ter apoderado da pequena Tina e lhe ter postoideias na cabeça!

- Não terá sido antes o contrário... O facto de Tina andar a remexernas recordações da família para o museu e depois o meuprograma? Você própria disse que ela era uma maquinadora.

- Oh, eu sei que ela era uma maquinadora! Mas será que Gregsabia? Ele não sabia. Nessa altura, não sabia. Nessa altura,

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estava enfeitiçado por ela. Por isso, tinha que acusar a velhasenhora. Tiveram uma briga terrível... e muito pública. Uma noite,ele foi lá a casa, entrou pelo lado do mar e gritou com ela. Hazel eHenry ouviram, e toda a gente ficou a saber. Foi nessa altura queTina lhe disse que ia divorciar-se e construir um futuro para si com oapoio de Miss Izzy. Receio que o meu irmão seja mesmo umapessoa de extremos... o seu temperamento é sem dúvidaextremista. Ele fez ameaças...

- Mas a polícia não pensa... - Jemima calou-se. Era evidente aquiloem que pensava.

Coralie rodou as pernas e saltou do banco do bar. Jemimaestendeu-lhe o enorme saco de palha com o logotipo dos Archer eela lançou-o por cima do ombro bem ao jeito bolandês.

- Que bonito - comentou Jemima, educadamente.

- Vendo-os no hotel em North Point. Para ganhar a vida - aobservação soou mordaz. - Não - Coralie prosseguiu rapidamenteantes que Jemima conseguisse dizer mais alguma coisa sobre oassunto -, claro que a polícia não pensa nisso, para usar as suaspalavras. Greg podia ter atacado Tina... mas daí a matar Miss Izzy,quando sabia perfeitamente que ao fazê-lo estaria a entregar umafortuna à ex-mulher? Nem pensar. Nem sequer a polícia bolandesaacreditaria nisso.

Naquela noite, Jemima Shore voltou a encontrar Joseph Archer napraia sob o céu estrelado. A lua, no entanto, aumentara desde oprimeiro encontro de ambos, e naquele momento, começava adesenhar um caminho prateado sobre a água. Este encontro tão-pouco fora casual, como o primeiro. Joseph enviara-lhe uma

mensagem dizendo que estaria livre e que tinham combinadoencontrar-se no bar.

- E se eu a levar a dar uma volta de carro pela nossa ilha uma noitedestas, Jemima?

- Não. Sejamos autênticos bolandeses e caminhemos pela areia.Jemima queria estar sozinha com ele, sem passar pelas fileiras dehotéis turísticos iluminados ouvindo a constante batida das bandasde percussão. Sentia-se destemida o suficiente para não seimportar com a forma como Joseph iria interpretar aquela alteraçãode planos.

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Caminharam durante algum tempo à beira-mar, em silêncio,ouvindo-se apenas o suave rolar das ondas. Algum tempo depois,Jemima descalçou as sandálias e chapinhou na água morna querecuava, e pouco depois Joseph agarrou-lhe na mão e levou-a paraa areia. As ondas foram-se tornando manifestamente mais ruidosasà medida que eles contornavam o sítio onde se encontrava aprimeira grande baía. Durante alguns instantes, permaneceramjuntos, Joseph e Jemima, o braço dele em volta da cintura dela,num gesto amigável.

- Jemima, mesmo não havendo lua nova, vou pedir um desejo...

- depois o corpo de Joseph ficou rígido. Baixou o braço que aenvolvia, agarrou-a pelos ombros e abanou-a. - Meu Deus, oh, meuDeus, está a ver aquilo?

A força do seu gesto fez Jemima estremecer. Por instantes, a suaatenção foi distraída pelo luar tremeluzente que envolvia asuperfície escura das águas. Ali estava uma multitude de cavalosbrancos- prateados - saindo para terra no ponto onde as ondasaltas rebentavam de encontro a um afloramento de rochas. Elapensou que Joseph estivesse a apontar para o mar. Depois, viu asluzes.

- Archer House! - gritou ela. - Pensei que estivesse fechada! Pareciaque todas as luzes da casa inundavam o promontório sobre o qualestava situada.

Era o género de iluminação que seria de esperar num grande baile,com mil velas acesas, como no tempo do governador Archer. Comalguma melancolia, Jemima percebeu que aquele devia ser oaspecto da casa na noite da morte de Miss Izzy. Tina Archer eoutras pessoas tinham testemunhado a insistência da velhasenhora em nunca deixar a casa às escuras, por isso, na noite emque o seu assassino entrara pelo lado do mar, devia ser aquele oaspecto da casa.

- Venha! - disse Joseph. O momento da frivolidade, ou talvez doamor?, diluíra-se por completo. Ele parecia tão sinistro comodeterminado.

- À polícia?

- Não, à casa. Tenho que saber o que se está ali a passar.Enquanto corriam pela praia, Joseph disse:

- Esta casa devia ter ficado para nós. Nós, o povo de Bow Island.

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A sua agitação em relação ao assunto do museu impressionou denovo Jemima, depois da conversa que tivera com Coralie Harrison.O que faria um homem - ou uma mulher, tanto fazia por umaherança? E havia mais do que um tipo de herança. Não seria umaherança nacional tão importante para algumas pessoas como umaherança pessoal para outras? Joseph Archer era, acima de tudo,um bolandês patriota. E ele não sabia da alteração do testamentona manhã a seguir à morte de Miss Izzy. Ela própria tinha provasdisso. Teria um homem como Joseph Archer, cuja absolutadeterminação lhe permitira já ascender no seu próprio mundo,decidido fazer justiça pelas suas próprias mãos de modo a garantirque o seu povo teria um museu, enquanto ainda estava a tempo deo fazer?

Mas, matar a velha senhora que o ajudara em menino? Bater-lheaté a matar? À medida que avançava, parecendo tão alto ali ao luar,Joseph tornou-se de repente um completo enigma, e, por isso, umapresença ameaçadora para Jemima.

Já tinham chegado ao promontório e, depois de terem trepado pelasrochas, aproximavam-se o mais que podiam do primeiro terraçoquando todas as luzes da casa se apagaram. Era como se uminterruptor tivesse sido desligado. Apenas o brilho frio e misteriosoda lua por cima do mar atrás deles persistia, iluminando osarbustos, agora excessiva e desordenadamente frondosos, e asbalaustradas pendentes.

Joseph, contudo, prosseguiu com grandes passadas, ajudandoJemima a subir o lanço de degraus formado pelas rochas, algumasdas quais tinham rachas profundas e eram instáveis. Na penumbra,Jemima via apenas que as janelas da sala de visitas continuavamabertas. Tinha de estar ali alguém atrás das velhas cortinas debrocado vermelho, manchadas com o sangue de Miss Izzy.

Segurando a mão de Jemima, Joseph puxou-a através da janela domeio.

Ouviu-se um grito breve, semelhante a um grito sufocado e depoisum som abafado, como se alguém estivesse a rir-se deles noescuro. Instantes depois, todas as luzes se acenderam ao mesmotempo.

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Tina estava de pé, junto à porta, com uma mão no interruptor. Tinhauma ligadura branca à volta da cabeça como um turbante... e, emvez de rir, soluçava.

- Oh, são vocês, Jo-seph e Je-mi-ma Shore - pela primeira vez,Jemima apercebeu-se do monótono timbre bolandês na voz deTina.

- Fiquei tão assus-tada.

- Sente-se bem, Tina? - perguntou-lhe Jemima rapidamente paraesconder o facto de ela própria se ter sentido muitíssimo assustada.

A atmosfera de enorme tensão entre as duas outras pessoas alipresentes, apesar de ambas serem aparentemente muitodiferentes, mas terem o apelido Archer, era quase palpável. Elasentiu que devia tentar aliviá-la. - Está sozinha?

- A polícia disse que eu podia vir - Tina ignorou a pergunta. Jáacabaram tudo o que tinham a fazer aqui. E, além disso... - os seussoluços aterrorizados tinham desaparecido e, ao aproximar-sedeles, a sua atitude denotava algo de deliberadamente provocatório-... por que não poderia? - Ela não precisava de dizer mais nada anenhum deles. As palavras "uma vez que é tudo meu" ficaramsuspensas no ar.

Joseph pronunciou-se pela primeira vez desde que haviam entradona sala.

- Quero ver a casa - disse ele com brusquidão.

- Jo-seph Archer, sai daqui. Volta para o sítio de onde vieste, voltapara o teu escritório, que não é propriamente uma casa grande ebonita - depois, dirigiu-se para Jemima conciliadora, quaseretomando os seus habituais modos doces. - Desculpe, mas,compreende, há muito que não nos damos bem. E, além disso,pregaram-me cá um susto.

Joseph rodopiou sobre os calcanhares.

- Encontramo-nos no funeral, Miss Archer - ele conseguiu fazer comque aquelas palavras soassem de forma extraordinariamenteameaçadora.

Naquela noite, Jemima Shore teve a sensação que mal dormira,apesar dos excertos de sonhos, de que ela mal se lembrava e que aperturbavam, comprovarem que, de facto, sucumbira a uma espécie

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de sonolência uma hora antes do amanhecer. A luz continuavacinzenta quando espreitou pelas persianas. O cimo das palmeirasaltas vergava-se... o vento soprava bastante forte.

Ao voltar para a cama, Jemima tentou lembrar-se do que tinhasonhado. Entre os vários sonhos havia um fio condutor, tinha acerteza disso. Bastante irritada, desejou que de repente se fizesseluz no seu espírito ensonado, como o Sol em breve irromperia anascente por entre a orla de palmeiras do hotel. Nas Caraíbas nãohavia auroras suaves, demoradas nem rosadas: um raio brilhante ebaixo era um prenúncio do que estava para acontecer, e depois,quase de imediato, um sol quente e implacável perdurava o resto dodia. Ela própria precisava daquele tipo de claridade instantânea.

Hostilidade. Fazia parte de tudo aquilo... a natureza da hostilidade.Por exemplo, a hostilidade entre Joseph e Tina Archer na noiteanterior, tão violenta e pública - que ela própria presenciara - e quequase podia ter sido combinada para o momento.

Depois, a orientação das coisas: Tina Archer, sempre a gerir,sempre uma maquinadora (como Coralie Harrison afirmara... eJoseph Archer também). Aquilo levou-a a pensar no outro casalpresente neste estranho drama de quatro pontas: os Harrison,irmão e irmã, ou antes meios-irmão e irmã (um aspecto realçadopor Tina ao corrigir Miss Izzy).

Mais hostilidade: Greg, que em tempos amara Tina e agora sentiaaversão por ela. Joseph, que em tempos talvez também tivesseamado Tina. Coralie, que talvez um dia - neste caso, com bastanteprobabilidade - tenha amado Joseph e, sem dúvida nenhuma,sentia aversão por Tina. A engraçada e esperta Tinazinha, ArcherTomb, as figuras esculpidas de Sir Valentine e da mulher, ainscrição. Jemima começava a voltar a adormecer quando as quatrofiguras, todas bolandesas, todas partilhando uma espécie depassado comum, começaram a dançar ao som de um calipso, cujaletra era igualmente confusa:

"Este é o teu cemitério ao sol

Onde o meu povo labuta desde o início dos tempos..."

Um barulho enorme no telhado de metal ondulado por cima da suacabeça despertou-a, fazendo estremecer todo o seu corpo. Oalvoroço fora imenso, quase como se tivesse havido uma explosão

ou, pelo menos, como se um míssil tivesse sido disparado sobre ochalé. A ideia de um míssil fê-la aperceber-se de que, de facto, foraum míssil: devia ter sido um coco que caíra de forma tão estrondosano telhado ondulado. Os hóspedes eram oficialmente avisados pelohotel para não se sentarem por baixo das palmeiras, cujas frondes,aparentemente inócuas, podiam de repente libertar os seus cocospesadamente letais. OS COCOS PODEM CAUSAR FERIMENTOS,dizia o aviso impresso.

"Não há dúvida que uma pancada daquelas na cabeça provocariaferimentos", pensou Jemima, "se não mesmo a morte."

Ferimentos, se não mesmo a morte. E Archer Tomb: a minha únicamulher.

Naquele momento, bem a propósito, o sol irrompeu baixo por entreos ramos que se inclinavam para nascente e na direcção das suaspersianas. E Jemima, não só percebeu o móbil do crime, mastambém o modo como fora cometido. Quem, de todos eles, foraresponsável pelo envio de Miss Izzy Archer para o cemitériobanhado pelo sol.

Algumas horas mais tarde, a cena junto a Archer Tomb evidenciavao mesmo estranho misto de tradição inglesa e exorcismo bolandas,que intrigara Jemima na sua primeira visita àquele local. Só quedesta vez, ela tinha um propósito mais profundo e triste do que omero passeio turístico. Durante o serviço religioso foram cantadosos tradicionais hinos ingleses, mas, no exterior, uma banda depercussão tocava a música pedida por Miss Izzy. Tendo nascido nailha, pedira um autêntico funeral bolandês.

De uma maneira geral, os Bolandeses, que acorreram em grandenúmero, estavam vestidos com aquela extrema formalidade - fatosazuis, camisas brancas, gravatas, vestidos escuros, chapéus depalha escuros e até mesmo luvas brancas -, que Jemima observaranos frequentadores da igreja ao domingo e nas criançasbolandesas, a caminho da escola bem aprumadas nos seusuniformes bem cuidados. Não se via nenhuma das T-shirts de BowIsland, apesar de numerosas coroas

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fúnebres muito coloridas e intrincadas terem a forma de arco dologotipo da ilha. A dimensão da multidão era, sem dúvida, um sinalgenuíno de respeito. Independentemente dos dissabores causadosao governo e aos Bolandeses pelo testamento, Miss Izzy Archerfizera parte da sua história.

Tina Archer usava um lenço preto em volta da cabeça, que lheocultava quase por completo a ligadura. Joseph Archer, de pé longedela e sem olhar na sua direcção, estava elegante e formal no seutraje oficial de respeitável membro do governo. Os Harrisonestavam de pé ao lado um do outro, tendo Coralie a cabeçaligeiramente inclinada. A aparência provocadora de Greg, com acabeça orgulhosamente levantada, mostrava claramente quetencionava recusar qualquer sugestão com que não concordasserelativamente à mulher cujo corpo estava naquele momento a serdescido para o jazigo da família.

Quando o caixão - tão pequeno e, por isso, tão comovente -desapareceu do alcance da vista, o cortejo fúnebre soltou umsuspiro. Todos os presentes recomeçaram a cantar, entoando umhino, acompanhado pelos acordes suaves da banda de percussão.

Jemima moveu-se discretamente pelo meio da multidão e parou aolado do homem alto.

- Nunca conseguirá confiar nela - disse em voz baixa. - Ela já omanipulou antes e voltará a fazê-lo. Da próxima vez, será outrapessoa a fazer o trabalho sujo. Consigo. Nunca conseguirá confiarnela, pois não? Um assassino é sempre um assassino. Um dia, irádesejar ter acabado com ela.

O homem alto baixou os olhos para ela. Depois, lançou a TinaArcher um olhar rápido e ferozmente duvidoso. Tina ArcherHarrison, a sua única mulher.

- Ora, você, sua... - por instantes, Jemima pensou que GregHarrison ia de facto agredi-la ali no cemitério, como agredira a velhaMiss Izzy e, ainda que pretensamente, agredira a própria Tina.

- Greg, querido - era o murmúrio patético e recriminador de CoralieHarrison. - O que está a dizer-lhe? - perguntou ela a Jemima

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num tom de voz tão baixo como o da própria Jemima. Mas asexplicações - para Coralie e para a restante Bow Island - sobre aconspiração de Tina Archer e de Greg Harrison estavam apenas noinício.

O resto era com a polícia, que, com o seu paciente trabalho deinvestigação aprofundaria primeiro, depois pressionaria, e,finalmente, encerraria o caso. E, no decurso das investigações, osconspiradores seriam destruídos, e, desta vez, de facto. À políciacabia a ingrata tarefa de deslindar as novas mentiras de TinaArcher, que agora jurava que já se lembrava de tudo, que fora Gregquem quase a matara naquela noite e que ela não tiveraabsolutamente nada que ver com o assunto. E, por sua vez, GregHarrison denunciou Tina, desta vez com uma ferocidade genuína.

- O plano foi dela, desde o início. Ela planeou tudo. Eu nunca lhedevia ter dado ouvidos!

Antes de deixar Bow Island, Jemima foi despedir-se de JosephArcher ao seu escritório de Bowtown. Havia muitas baixas natragédia Archer, para além da própria Miss Izzy. A pobre Coralie erauma delas. Convenceram-na de que o irmão, por causa do seuconhecido temperamento, nunca atacaria Miss Izzy para favorecer asua ex-mulher. À semelhança dos restantes habitantes de BowIsland, ela não tinha consciência do enorme conluio com o qualGreg e Tina haviam exibido publicamente a sua hostilidade,publicitado o seu divórcio, e, em conjunto, tinham planeado matarMiss Izzy mal o novo testamento estivesse assinado. Greg, queodiava ostensivamente a ex-mulher, não seria suspeito, e Tina,vítima de ferimentos tão grandes, só podia inspirar compaixão.

Outra pequena baixa, muito menos importante, era o romance quepodia ter-se desenvolvido entre Joseph Archer e Jemima Shore.Agora, no escritório húmido e quente sob a ventoinha em perpétuo

movimento, conversavam sobre coisas bem diferentes da lua cheiae de desejos novos.

- Deve estar contente por ter conseguido o seu museu - disseJemima.

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- Mas este não é de todo o modo como eu queria que issoacontecesse - respondeu ele. Depois, Joseph acrescentou: - Massabe, Jemima, foi feita justiça. E, no fundo do seu coração, MissIzzy queria que fizéssemos este Museu Nacional. Se fosse viva, eutê-la-ia chamado à razão novamente.

- Foi por isso que eles agiram da forma como agiram. Não seatreveram a esperar, dado o respeito que Miss Izzy sentia por si -sugeriu Jemima. Ela calou-se, mas a curiosidade venceu-a. Haviauma coisa que ela tinha de saber antes de partir.

- Archer Tomb e tudo o resto. O facto de Tina ser descendente dosegundo casamento legal de Sir Valentine. É verdade?

- Sim, é verdade. Talvez seja. Mas para a maioria de nós isso não éimportante. Sabe uma coisa, Jemima? Eu também sou descendentedesse bem conhecido segundo casamento. Talvez. E talvez outrostantos. Lucie Anne teve dois filhos, não se esqueça, e osBolandeses têm famílias grandes. Era importante para Tina Archer,não para mim. Não é isso que eu quero. Tudo isso pertence aopassado. Para mim, Miss Izzy foi a última descendente dos Archer.Que descanse em paz.

- Que quer você para si próprio? Ou para Bow Island, se preferir?Joseph sorriu e ela pôde vislumbrar o bonito pescador que aacolhera em Bow Island, o seu alegre companheiro de dança.

- Regresse um dia novamente a Bow Island, Jemima. Faça outroprograma sobre nós, a nossa história e tudo isto, e, nessa altura, euconto-lhe.

- Sou muito capaz de fazer isso - disse Jemima Shore.

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"Introduction" by Elizabeth George. Copyright (c) 2001 by ElizabethGeorge.

Notas Bibliográficas by Jon L. Breen. Copyright (c) 2001 by Jon L.Breen.

"A Jury of Her Peers" by Susan Glaspell. Copyright (c) 1917 bySusan Glaspell, renewed. First published in Every Week, 1917.Reprinted by permission of the agent for the author's Estate, CurtisBrown Ltd.

"The Man Who Knew How" by Dorothy L. Sayers. Copyright (c)1932 by Dorothy L. Sayers, renewed. First published in HarpersBazaar, February 1932. Reprinted by permission agents for theauthor's Estate, David Higham Associates.

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Estate, A. M. Heath & Co. Ltd. "Country Lovers" by NadineGordimer. Copyright (c) 1975 by Nadine

Gordimer, from Soldier's Embrace by Nadine Gordimer. Reprinted

by permission of Viking Penguin, a division of Penguin Putnam, Inc.A. P. Watt Ltd., and Russell & Volkennin, Inc. on behalf of NadineGordimer. "The Irony of Hate" by Ruth Rendell. Copyright (c) 1977by Kings-

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1981. Reprinted by permission of the author. "Wild Mustard" byMareia Muller. Copyright (c) 1984 by the Pronzini-

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by Antonia Fraser. First published in Ellery Queen's MysteryMagazine,

June 1988. Reprinted by permission of the author.

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Fim