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Sumário
Exórdio (1-4)Apresentação (1-2)Divisões da doutrina do discurso (3-4)
I. A força do orador (5-26)Invenção (5-8)Disposição (9-15)
Gênero demonstrativo (12)Gênero deliberativo (13)Gênero judiciário (14-15)
Elocução (16-24)Profusa (16-22)
Palavras isoladas (16-17)Palavras agrupadas (18)As cinco luzes da elocução (19)
Trabalhada (23-24)Ação (25)Memória (26)
II. O discurso (27-60)Exórdio (28-30)Narração (31-32)Confirmação (33-43)
Conjectura (34-40)Definição (41)Qualidade (42-43)
Refutação (44-51)Peroração (52-60)
III. A questão (61-138)Os tipos de questão (61)Questão indefinida - tese, discussão (62-68)
Divisão (62-63)Tese, discussão teórica - conjectura, definição,
qualidade (64-66)Tese, discussão prática (67-68)
Questão definida - causa (68-138)Divisão (68-70)Gênero demonstrativo (70-82)Gênero deliberativo (83-97)Gênero judiciário (98-138)
Antes do tribunal (99-100)No tribunal (101-138)
3
Estado da causa, do jugalmento (101-108)Conjectura (110-122)Definição (123-128)Qualidade (129-138)
Peroração (139-140)
4
Partições oratórias
1 Cícero Filho. Gostaria, meu pai, de ouvir de ti, em
Latim, aquilo que tu me transmitiste em Grego a respeito do
método de discursar1, se neste momento tens tempo livre e
se desejas.
Cícero Pai. Acaso, meu Cícero, existe algo que eu prefira a
te ver o mais instruído possível? Em primeiro lugar, o
tempo livre é abundante, pois já então me foi dada a
possibilidade de sair de Roma2, e depois, anteporia com
prazer esses teus interesses às minhas mais importantes
ocupações.
2. C.F. Desejas, então, como tu costumas interrogar-me
ordenadamente em Grego, que assim eu te interrogue
alternadamente, a respeito das mesmas coisas, em Latim3?
C.P. Certamente, se te agrada. Pois, assim, tanto eu
verificarei o que recordas do que aprendeste, quanto tu
ouvirás ordenadamente aquilo que desejas saber.
1 Ratio dicendi: método de discursar.2 O tratado é,supostamente, de 46 a.C., momento em que Cícero já estáquase totalmente impedido de participar da vida pública.3 Fica indicado aqui o propósito do tratado: tradução dos termos daRetórica, do Grego para o Latim.
5
3. C.F. Em quantas partes está dividida toda a doutrina do
discurso4?
C.P. Em três.
C.F. Mostra quais?
C.P. Primeiro, a própria força do orador, depois, o
discurso, e por fim, a questão5.
C.F. Em que consiste a própria força do orador?
C.P. Nas coisas e nas palavras6. Mas tanto as coisas quanto
as palavras devem ser encontradas e dispostas7. Na verdade,
"encontrar" é usado mais especificamente em relação às
coisas, e "falar"8, em relação às palavras. "Dispor", ainda
4 Doctrina dicendi: doutrina do discurso, instrução para discursar, ensinodo discurso.5 Vis oratoris, oratio, quaestio: força do orador, discurso e questão.6 Cf. discussão sobre "as palavras e as coisas" em Roland BARTHES. "ARetórica Antiga" in VVAA. Pesquisas de retórica. Petrópolis, Vozes, 1975,p.183.7 Collocanda. "Collocatio" é o termo que aparece aqui no lugar do maisfreqüente "dispositio". Os dois referem-se à ordenação dos discursos. Oprimeiro (cum + locare: "estabelecer os lugares conjuntamente, ao mesmotempo") chama atenção para a ordenação como um todo, depois de feita,harmonizada como conjunto; refere-se a uma observação sintética. Osegundo (dis + ponere: "pôr para todos os lados") aponta para o ordenaçãosucessiva das partes que devem, paulatinamente, preencher o discurso;refere-se a uma observação analítica. 8 Eloqui. É um composto de loqui, verbo que indica a "fala" em geral,diferenciando-a da "fala ordenada” apontada por dicere. Eloqui ("falar dedentro para fora", "falar a partir de algum lugar") é o verbo que
6
que ligados aos dois, está mais próximo do "encontrar"9. A
voz, o gesto, o semblante10 e a ação como um todo são
companheiros da elocução. Guardiã de todas essas coisas é a
memória.
4. C.F. Então, quantas são as partes do discurso?
C.P. Quatro. Duas delas, a narração e a confirmação, são
eficazes para ensinar o assunto11; duas, o exórdio e a
peroração, para impelir os ânimos.
C.F. E a questão, que divisão tem?
C.P. Indefinida, que eu chamo discussão12, e definida, que
eu denomino causa.
5. C.F. Posto que encontrar é a primeira tarefa do orador,indica o ponto da elaboração do discurso ordenado em que as coisasencontradas e dispostas ligam-se às palavras, ou seja, indica a"elocução". Essa etapa de ligação entre a inuentio e a collocatio nãopoderia ser referida pela ação de loqui, "locução", presente em qualquerato de fala, nem pela ação de dicere, "dição", ato de fala ordenadaentendido na globalidade de suas partes. Eloquens é o orator que temqualificações quanto à elocutio, ou seja (e em termos anacronicamentemais analíticos), é o agente de um discurso ordenado que temqualificações positivas quanto à ligação das "coisas" encontradas edispostas às "palavras".9 A disposição está mais ligada à invenção do que à elocução. 10 Vultus: semblante.11 Ad rem docendam: para ensinar a coisa; para argumentar em relação aoassunto.12 Consultatio: discussão. Logo a seguir, em 9, Cícero usará o termopropositum, tese, para designar a questão indefinida.
7
o que se vai procurar?
C.P. Que se encontre de que modo estabelecer a crença13
naqueles que se deseja persuadir, e de que modo produzir
movimento nos seus ânimos14.
C.F. Por que meios a crença é estabelecida?
C.P. Pelos argumentos, que são tirados dos lugares, tanto
os inseridos no próprio assunto quanto os a ele
relacionáveis.
C.F. O que chamas lugares?
C.P. Àqueles nos quais estão latentes os argumentos.
C.F. O que é um argumento?
C.P. Algo provável15 encontrado para estabelecer a
credibilidade.
6. C.F. De que maneira, então, divides esses dois tipos de13 Quemadmodum fidem faciat: de que modo estabelecer a fé, a credibilidadedo discurso e a crença do ouvinte. Cf. Discussão sobre o termo fides na‘Introdução’.14 Quemadmodum motum eorum animis afferat: de que modo produzir movimentonos seus ânimos, nas suas mentes.15 Cf. a doutrina neo-acadêmica do conhecimento provável, por exemplo,nas Academica de Cícero e na ‘Introdução’.
8
argumentos?
C.P. Aqueles que são considerados sem técnica16, chamo-os
remotos, como os testemunhos.
C.F. E os argumentos inseridos?
C.P. São aqueles ligados ao próprio assunto.
C.F. Quais são os tipos de testemunhos?
C.P. Divino e humano. Divino17, como os oráculos, os
auspícios, os vaticínios e as respostas dos sacerdotes, dos
adivinhos e dos intérpretes18. Testemunho humano é o que
vem da autoridade, da vontade das partes, da confissão
espontânea ou forçada. Nisso estão incluídos os escritos19,
os pactos, as promessas, as declarações feitas sob
juramento e sob interrogatório.
7. C.F. Quais são os argumentos inseridos?
C.P. Os que estão assentados no próprio assunto em questão,
16 Para uma discussão mais específica sobre os argumentos, veja-se aTopica de Cícero, principalmente 24 e 73. Cf. também De or. II.114 eQUINTILIANO. Inst. orat. V.1.1.17 Cf. Topica 77.18 Interpretes, principalmente de sonhos.19 As leis, os documentos. Cf. 130.
9
[argumentos que consideram o todo, as partes, a designação,
as coisas que de certo modo estão relacionadas ao que se
procura e ao que se discute. Algumas vezes usa-se o
procedimento da definição, outras o da divisão das partes,
outras o da explicação etimológica de um termo. Dos pontos
que estão apenas vagamente relacionados ao assunto, alguns
são chamados conjuntos, outros são classificados pelo tipo,
forma, semelhança, diferença, oposição, pelas conexões,
pelos antecedentes, conseqüentes, excludentes, pelas
causas, pelos efeitos, pela comparação com coisas maiores,
iguais ou menores]20. Repetindo, os argumentos inseridos no
próprio assunto são tirados da definição, da antítese, das
coisas que se contrapõem ao tema em questão, como aquelas a
ele semelhantes, dessemelhantes, congruentes,
incongruentes; o que é o caso dos temas como que conjuntos
ou que se excluem entre si. Há, ainda, o que vem do próprio
ponto de litígio, buscando estabelecer causas e
conseqüências, ou seja, aquilo que decorre das causas. Há o
que vem das classificações, como a divisão em tipos ou os
tipos de divisão. Há o que vem da busca pelas origens e do
que é quase pré-condição das coisas em geral, ponto em que
também se podem achar argumentos. Há, por fim, o que vem da
comparação com o que é maior, menor ou igual, medindo-se
20 O trecho entre colchetes é, aparentemente, uma interpolação. Trata-se de um resumo da Topica 8-20.
10
aqui a natureza e a potencialidade das coisas21.
8. C.F. Então, de todos esses lugares tomaremos argumentos?
C.P. Longe disso, por certo. Exploraremos e procuraremos em
todos eles, mas empregaremos o juízo para que sempre
rejeitemos os argumentos superficiais, por vezes até
deixemos de lado os comuns e os não necessários.
C.F. Já que respondeste a respeito da credibilidade, desejo
ouvir sobre a comoção.
C.P. Procuras certamente no lugar, mas o que desejas será
melhor explicado quando eu for para o método do próprio
discurso e das questões.
9. C.F. O que se segue, então?
C.P. Depois que se tiver encontrado os argumentos, dispô-
los. Na questão indefinida, a ordenação deles é quase a
mesma que expus a respeito dos lugares; na questão
definida, no entanto, devem ser empregados também aqueles
que tratam de comover os ânimos22.
21 Os lugares são tomados aqui para compor um argumento que produzirá acredibilidade.22 Na questão definida, portanto, a comoção parece ter maiorimportância do que na questão indefinida.
11
C.F. Como, então, desdobras isso?
C.P. Tenho preceitos comuns para estabelecer a crença e
para comover. Já que a crença é uma opinião firme e a
comoção, por outro lado, é um incitamento do ânimo ao
desejo, ao pesar, ao medo, à cobiça (com efeito, tantos são
os tipos de comoção23, e muitas mais são as partes de cada
tipo particular), acomodo toda a disposição do discurso à
finalidade da questão. Assim, na tese24, ou seja, na
questão indefinida, a finalidade é a crença; na causa25,
questão definida, a crença e a comoção. Por isso, quando
tiver falado a respeito da causa, na qual está contida a
tese, terei falado de uma e de outra.
10. C.F. O que tens a dizer, então, sobre a causa?
C.P. Que ela é dividida segundo o tipo de auditório. Pois,
ou o ouvinte é do tipo que apenas ouve, ou é um árbitro,
isto é, o moderador do assunto e da decisão, de modo que um
deve ser deleitado e o outro deve estabelecer algo. E
estabelece em relação a coisas passadas, como o juiz, ou em23 Refere-se às paixões. Cf., por exemplo, ARISTÓTELES, Retórica II.2-11.24 Propositum é um dos termos que Cícero usa para a questão indefinida,tese. É o mais utilizado na terceira parte do tratado, quando Cícerodiscute a questão. Nesta primeira parte, em que se fala do força doorador, a questão indefinida é designada, também, pelo termo consultatio,discussão. Cf. 4 e 61.25 Causa: questão definida, hipótese.
12
relação a coisas futuras, como o senado. Assim, três são os
gêneros do discurso: o do julgamento, o da deliberação e o
da ornamentação, o qual, por aplicar-se acima de tudo nos
elogios, tem já a partir do elogio o seu nome particular26.
11 C.F. Que coisas o orador se propõe como tarefa nesses
três gêneros27?
C.P. O deleite, na ornamentação; no julgamento, a clemência
ou o rigor da sentença; na deliberação, a esperança ou a
apreensão dos que decidem28.
C.F. Por que, mesmo, mostras neste ponto os tipos de
controvérsias29?
C.P. Para adaptar a maneira de dispor o discurso à
finalidade de cada um.
12. C.F. E, então, de que modo?
C.P. Nos discursos nos quais a finalidade é deleitar, as
maneiras de dispor são várias. Pois tanto se pode observar
26 O terceiro tipo de discurso, a exornatio, também é chamado‘demonstrativo’ ou ‘epidítico’.27 As três tarefas do orador, estabelecidas por Teofrasto.28 Notar como essas propostas incidem sobre a Retórica das Paixões.29 "Controvérsia" é outro termo usado aqui para indicar as questõesdefinidas.
13
a ordem cronológica quanto a divisão em categorias.
Ascendemos das coisas menores às maiores ou caímos das
maiores para as menores; podemos, ainda, diferenciar essas
coisas com variedade desigual, entremeando as pequenas com
as grandes, as simples com as conjugadas, as obscuras com
as claras, as alegres com as tristes, as inacreditáveis com
as prováveis, todas as quais cabem na ornamentação.
13.C.F. E em seguida? O que observas na deliberação?
C.P. As partes iniciais não são longas ou, muitas vezes,
nem aparecem. Estão preparados para ouvir aqueles que
deliberam em causa própria. Certamente, muitas vezes não é
preciso narrar muito. A narração é própria das coisas
passadas ou presentes; a deliberação, das futuras. Assim,
deve-se aplicar todo o discurso para estabelecer a crença30
e comover31.
14.C.F. E depois? Nos julgamentos, qual é a disposição?
C.P. Não é a mesma para o acusador e para o réu, porque o
acusador segue a ordem das coisas e dispõe cada um dos
argumentos como lanças na mão; propõe com veemência,
conclui com energia, confirma por meio dos editos, dos
30 Na deliberação, a tarefa de estabelecer a fides é cumprida pelaconfirmatio.31 Na deliberação, a comoção fica por conta da peroratio.
14
decretos, dos testemunhos, detém-se muito cuidadosamente em
cada um deles. Os preceitos do discurso que são vigorosos
para incitar os ânimos, ele os usa no restante do discurso,
afastando-se um pouco do curso da fala comum e isso de modo
mais veemente na peroração. Seu propósito é produzir um
juiz irado32.
15.C.F. Por outro lado, o que deve ser feito pelo réu?
C.P. Tudo de maneira totalmente diferente. Ele deve usar as
partes iniciais do discurso para cativar a benevolência. As
narrações devem ser resumidas, se o prejudicam, ou
suprimidas, se são totalmente embaraçosas. Os argumentos
que o acusador usou para estabelecer a credibilidade devem
ser enfraquecidos por si próprios, obscurecidos,
aniquilados por digressões. As perorações devem levar à
misericórdia.
C.F. Sempre, então, podemos manter a maneira de dispor que
desejamos?
C.P. Nem sempre, pois os ouvidos do auditório devem regular
o orador prudente e previdente; o que eles rejeitam deve
ser mudado.
32 Novamente, aqui aparece a Retórica das Paixões.
15
16. C.F. Expõe em seguida quais são os preceitos do próprio
discurso e das palavras.
C.P. Há um tipo de elocução espontaneamente profuso; outro,
torcido e trabalhado33. Há uma primeira força nas palavras
isoladas, uma segunda nas palavras colocadas juntas. As
palavras isoladas devem ser encontradas; as reunidas, devem
ser dispostas. As palavras isoladas são naturais ou
inventadas. Naturais são aquelas anunciadas pelo sentido;
inventadas, as que, a partir dessas, são forjadas e
construídas por semelhança, por imitação, por desvio ou
por combinação de palavras34. 17. E há, também, nas
palavras, uma distinção quanto à natureza ou quanto ao uso.
Quanto à natureza, conforme umas sejam mais sonoras, mais
elevadas, mais leves e, de certo modo, mais brilhantes;
outras são o contrário. Em relação ao uso, a distinção
entre as palavras leva em consideração se são tomadas como
o próprio nome das coisas ou a ele adicionadas, novas ou
antigas, modificadas pelo orador e, de certo modo,
desviadas. Desse tipo são as palavras transladadas e
alteradas, as usadas como que abusivamente, as que
atenuamos, as que tomamos de modo incrível, e as que
ornamos de modo mais extraordinário do que permite a fala
comum35.
33 A elocução pode produzir o efeito de ser espontânea ou trabalhada.34 Esses seriam os hoje chamados processos de derivação de palavras.35 Breve referência a várias figuras de linguagem.
16
18. C.F. Tenho algo a respeito das palavras isoladas. Agora
pergunto a respeito das palavras agrupadas.
C.P. Alguns dados de ritmo e concordância das palavras
devem ser observados no agrupamento. Os próprios ouvidos
devem medir o ritmo36, para que não se sobrecarregue com
palavras ou fique redundante aquilo que foi proposto.
Observe-se a concordância para que o discurso não fique
confuso quanto a gênero, número, tempos, pessoas e casos.
Pois, como nas palavras isoladas deve ser censurado o que
não é Latim, assim nas palavras agrupadas, o que não é
concordante. 19. São comuns às palavras isoladas e
agrupadas estas cinco como que luzes: clareza, brevidade,
probabilidade, brilho, suavidade37.
A clareza é obtida usando os termos no seu modo
próprio, ordenando-os numa seqüência fechada, restrita e
concisa38. A obscuridade é obtida prolongando ou contraindo
o discurso, usando a ambigüidade, o desvio ou outra
alteração das palavras.
A brevidade é produzida isolando as palavras, cada uma
dizendo uma coisa de cada vez, não servindo para nada a não
36 Cf. Orator, 177 e Brutus, 34.37 Estas "luzes" são muitas vezes chamadas, em outros tratados deRetórica, de "virtudes" da elocução. A lista de tais virtude costumaincluir a clareza, a brevidade, a elegância, a correção e a adequação.38 Dispostas em períodos fechados e longos ou curtos e divididos, aspalavaras brilham com clareza.
17
ser falar claramente.
Provável, por outro lado, é o tipo de discurso que não
é preparado e trabalhado em demasia, no qual há autoridade
e peso nas palavras, em que as afirmações são graves ou
adequadas às opiniões dos homens e aos costumes39.
20. O discurso é brilhante se se colocam palavras
escolhidas por sua gravidade, transladadas, amplificadas,
adjetivadas, duplicadas, sinônimas, que não se afastam do
assunto e da referência ao tema. Na verdade, esta parte do
discurso é a que apresentaria o assunto quase que diante
dos olhos40. Pois, esse sentido é atingindo antes de
qualquer outro; mas os demais e, acima de tudo, a própria
mente, também podem ser movidos pelo brilho do discurso41.
E o que foi dito a respeito do discurso claro vale também
para o elegante. Este é tanto mais elegante quanto aquele,
claro. Por um se faz com que entendamos, por outro, com que
pareçamos ver.
21. O modo de dizer será suave, primeiro, pela
elegância e pela beleza de palavras soantes e amenas,
depois, por um agrupamento que não deve ter encontros
ásperos de sons distantes, não deve ter hiatos42, deve
estar limitado a um período não longo, adequado ao fôlego
da voz e que tenha vocabulário uniforme e equilibrado.39 A probabilidade da elocução depende da constituição de verossímeis. 40 Com esse sentido aparece a expressão "ilustrar um feito", ou seja,tornar o feito elegante graças às articulações do discurso. 41 A elocução é responsável pela comoção dos ânimos.42 Cf. De oratore III.171-172.
18
Então, devemos escolher palavras que se contraponham às já
escolhidas, fazendo com que palavras grandes respondam às
grandes, mantendo o tamanho das palavras: encadeiem-se
assim palavras relacionadas a um mesmo termo, duplicadas
[ou reduplicadas] ou até repetidas com mais freqüência. As
palavras assim estruturadas devem ser ora unidas por
conjunção ora separadas por assíndeto. 22. O discurso
torna-se suave quando fala algo não visto, não ouvido ou
novo. Agrada, também, tudo que é admirável e comove acima
de tudo aquele discurso que incita algum movimento de ânimo
ou que apresenta os costumes do próprio orador como
amáveis. Esses costumes são mostrados quando se aponta uma
decisão do orador, seu ânimo humano e liberal, a inflexão
de sua fala, quando, para aumentar o outro ou diminuir a si
mesmo, parece dizer umas coisas e considerar outras, e
mostre fazer isto mais por benevolência do que por
futilidade. Mas são muitos os preceitos para agradar que
tornam o discurso mais obscuro ou menos provável. E assim,
também neste ponto43, nós mesmos devemos escolher o que a
causa solicita.
23. C.F. Falta, então, que fales do discurso retorcido e
trabalhado.
C.P. Esse tipo de discurso está totalmente apoiado na
43 Cf. 8.
19
modificação das palavras, a qual se dá em relação às
palavras isoladas quando o discurso se expande ou se
contrai a partir de uma delas. Expande-se a partir de uma
palavra, quando a própria, uma de mesmo significado ou uma
forjada para isso são divididas em muitas outras. O
discurso se contrai quando uma definição é reduzida a uma
única palavra ou palavras acessórias são removidas, uma
perífrase é referida em linguagem direta, ou por
agrupamento de duas palavras se faz uma. 24. Modificam-se
as palavras agrupadas de três formas, mudando a ordem e não
as palavras. Como quando, tendo sido dito uma vez na ordem
direta, segundo a própria natureza do assunto, inverte-se a
ordem e a mesma coisa é dita como que para frente, para o
lado, para trás, depois, o mesmo de modo entrecortado e
misturado. Os exercícios de elocução ocupam-se
principalmente desse tipo de modificação.
25. C.F. Agora é a vez da ação, segundo penso.
C.P. Isso. Na verdade, o orador deve alterar sua ação junto
com o movimento das idéias e das palavras. Ela torna o
discurso claro, brilhante, provável e suave44, não por meio
de palavras, mas pela variação da voz, pela movimentação do
corpo e pelo semblante, que contribuem muito mais ainda se
44 É interessante notar que as tarefas da ação assemelham-se às luzesda elocução. Cf. 18.
20
estão adequados ao gênero de discurso e seguem a força e a
variação dele.
26. C.F. Então, que outra coisa te resta falar a respeito
do próprio orador?
C.P. Sem dúvida, nada além da memória, que em certo sentido
é gêmea da escrita, semelhante de um modo diferente. Pois,
como a escrita consta da notação de letras e daquilo em que
foram gravadas essas notas, assim é a composição da
memória: tal qual uma tabuinha encerada, usa lugares e
neles coloca imagens como se fossem letras45.
27. C.F. Já que a respeito da força do orador tudo foi
exposto, o que tens a dizer a respeito dos preceitos do
discurso?
C.P. Quatro são suas partes, sendo a primeira e a última
úteis para mover o ânimo; este deve ser excitado no início
e na peroração. A segunda parte, a narração, e a terceira,
a confirmação, estabelecem a credibilidade para o discurso.
Ainda que a amplificação tenha seu lugar próprio (muitas
vezes no início, quase sempre no fim) deve ser adaptada,
todavia, ao restante do desenvolvimento do discurso,
45 Cf. o relato da invenção da arte da memória por Simônides no Deoratore, II.350 ss. Sobre e memória, ver também, Rhetorica ad herennium,III.28-40 e Quintiliano, Inst. Orat. XI,1-51.
21
principalmente no ponto em que algo é confirmado ou
censurado. Assim, é também muito útil para a credibilidade.
Pois, a amplificação é como uma argumentação veemente: esta
se dá para ensinar; aquela, comover.
28. C.F. Encaminha-te, então, para me explicar, em ordem,
essas quatro partes.
C.P. Farei isso. Começarei falando da parte inicial dos
discursos que, por certo, trata das pessoas ou das próprias
coisas46. Os exórdios são feitos com três finalidades: para
que sejamos ouvidos benévola, inteligível e atentamente47.
O primeiro desses pontos48 assenta-se na nossa pessoa,
na dos juízes e na dos adversários. Com base nelas,
captamos a benevolência explicando nossos próprios méritos,
devidos à nossa dignidade ou a algum tipo de virtude,
principalmente a liberalidade, o senso de dever, a justiça,
e a credibilidade49. Também, atribuindo aos adversários as
coisas contrárias a essas. Em relação aos que julgam,
devemos apontar algum motivo ou esperança de acordo. Se
tivermos sido acusados de algum ódio ou ofensa em relação
ao caso, esses devem ser suprimidos ou diminuídos,
diluindo-os, extinguindo-os, compensando-os ou deprecando-
46 Cf. De oratore II.315.47 Cf. De inuent.I.20, De or. II.80, Or. 122, Top.97.48 Conseguir a audição benevolente.49 Liberalitas, officium, iustitia e fides são conceitos discutidos no De officiis.
22
os50.
29. E para que sejamos ouvidos inteligível e
atentamente, devemos começar apresentando o próprio
assunto. O ouvinte aprende e entende mais facilmente o que
for falado se se tratar no início o tipo e a natureza da
causa, se se definir, dividir, não embaraçar a prudência do
ouvinte confundindo as partes, nem sua memória, acumulando
coisas. O que adiante será falado sobre a narração clara51
pode ser também corretamente aplicado aqui.
30. E para que sejamos ouvidos com atenção, falemos
uma de três coisas: proponhamos algo importante, necessário
e ligado àqueles junto aos quais a ação52 será executada. E
também é preceito importante: quando a própria
circunstância, a coisa, o lugar, a intervenção ou
interpolação de alguém, algo dito pelo adversário e,
principalmente na peroração, se nos tiver sido dada alguma
oportunidade para que digamos convenientemente algo de
acordo com o momento, não a deixemos passar. Muito do que
falaremos, no seu lugar53, a respeito da amplificação pode
ser aplicado também nos preceitos sobre os exórdios.
31.C.F. E na narração, o que deve ser observado?
50 Até aqui, Cícero falou como a captatio beneuolentiae produz ouvidosbenevolentes.51 Cf. 32.52 Res, a causa, o assunto em debate.53 Cf. 53.
23
C.P. Como a narração é a exposição das coisas e como que
sede e fundamento para estabelecer a credibilidade, nela
devem ser observadas as mesmas regras das outras partes do
discurso. Algumas delas são aplicadas por necessidade,
outras, para embelezar o discurso. É necessário que
narremos com clareza e probabilidade, mas também devemos
impor certa suavidade.
32. Assim, para narrar com clareza valem os mesmos
preceitos anteriormente propostos54 sobre explicar e
ilustrar, entre os quais está a brevidade, da qual se falou
acima, sempre louvada na narração.
A narração será provável se as coisas narradas
concordarem com as personagens, as circunstâncias, os
lugares; se for apresentada a causa de cada feito ou
evento; se parecer que são ditas coisas comprovadas,
relacionadas com a autoridade dos homens, com a lei, com o
costume, com a religião, se for indicada a probidade
daquele que narra, sua estirpe, sua memória, a verdade de
seu discurso e a credibilidade de sua vida.
Suave é a narração que tem surpresas, expectativa,
saídas inesperadas, movimentos de ânimo, diálogos55, dores,
iras, medos, alegrias, desejos. Mas agora nos encaminhemos
para o que resta.
54 Cf. 19.55 Cf. QUINTILIANO. Inst. or. IV.2.107.
24
33. C.F. Certamente seguem as partes que dizem respeito ao
estabelecimento da credibilidade.
C.P. Assim é. Essas se dividem em confirmação e refutação.
Ao confirmar, desejamos provar as nossas afirmações; ao
refutar, redargüir as adversárias. Assim, então, sobre o
assunto que é tema da controvérsia, perguntamos se
aconteceu ou não, o que aconteceu ou que tipo de coisa
aconteceu56. No primeiro caso, há uma conjectura, no outro,
há uma definição e, no terceiro, um motivo57.
34.C.F. Guardarei essa divisão. Agora pergunto quais os
lugares da conjectura.
C.P. Ela está totalmente colocada na verossimilhança e nos
indícios característicos das coisas58. Mas, com objetivo de
esclarecer, chamemos de verossímil59 o que acontece a
maioria das vezes de determinada maneira, como ser a
adolescência mais inclinada ao desejo. De argumento de
indício característico, o que nunca se dá de outra forma e
aponta algo certo, como a fumaça ao fogo.
56 A respeito de tudo que vem à controvérsia pergunta-se “an sit?”, “quidsit?”, “quale sit?”.57 Ratio: motivo, questão de qualidade. Cf. 101-106.58 Aqui "coisas verossímeis" referem-se ao eikós e "indícioscaracterísticos”, ao tekmérion, indício certo. Ambos estão discutidos naRetórica I.2, de Aristóteles.59 Conferir a diferença entre uerossimilis e probabilis discutida naIntrodução.
25
Os verossímeis são tirados das partes e como que dos
membros da narração. Assentam-se nas pessoas, nos lugares,
no tempo, nos feitos, nas ocorrências, na natureza do
próprio assunto e das ocorrências. 35. Nas pessoas,
primeiramente são observados os dados naturais de saúde,
aparência, forças, idade, sexo. Essas coisas, no corpo.
Quanto aos ânimos, observa-se como são afetados pelas
virtudes, vícios, artes, inércias ou como são agitados pela
cupidez, medo, prazer, moléstia60. E isso quanto à
natureza. Quanto à fortuna, observam-se a ascendência,
amizades, filhos, parentes próximos, parentes por
afinidade, bens, honras, poderes, riquezas, liberdade e as
coisas que se opõem a essas. 36. Sobre os lugares,
observam-se seus dados naturais, como sua localização,
marítimos ou afastados do mar, planos ou montanhosos,
suaves ou ásperos, salubres ou pestilentos, escuros ou
expostos ao sol; observam-se também os dados ocasionais,
como se são lugares cultivados ou incultos, povoados ou
desertos, edificados ou vazios, obscuros ou enobrecidos
pelos vestígios de grandes acontecimentos, consagrados ou
profanos. 37. Quanto ao tempo, são apontadas as coisas
presentes, pretéritas e futuras e nessas, as muito antigas,
as recentes, as do momento, as que estão para acontecer em
breve ou que virão a acontecer em algum momento. Também
60 Este trecho refere-se ao decoro na verossimilhança física e daspaixões. Uma lista semelhante aparece nos parágrafos 74-82, quandoCícero fala do elogio e da censura no gênero demonstrativo.
26
dizem respeito ao tempo os dados que marcam a natureza
graças a sua passagem, como o inverno, verão ou as unidades
de tempo do ano, como o mês, o dia, a noite, a hora, que
são naturais, e as ocasionais, como os sacrifícios, os dias
de festa, as núpcias. 38. Já os feitos e as ocorrências são
marcados pela tomada de decisão ou pela imprudência, que
são frutos do acaso ou de algum movimento de ânimo. Do
acaso, quando acontece algo de forma diferente da que se
esperava. Do movimento de ânimo, quando o esquecimento, o
erro, o medo ou algum motivo do desejo causaram comoção. E
até a fatalidade deve ser colocada como imprudência. Há
três gêneros de coisas tanto boas quanto más. Podem estar
nos ânimos, nos corpos ou fora dos corpos.61
Assim, com esse material levantado para a
argumentação, todos seus elementos devem ser mentalmente
avaliados e deve-se formar a conjectura escolhendo-os
segundo o tema que se discute62.
39. Há também outro tipo de argumento, que observa os
próprios vestígios do feito63, como uma arma, sangue,
gritos, lamentos, hesitação, mudança de coloração do rosto,
discurso inconstante, tremor ou alguma outra coisa que
possa ser percebida pelos sentidos. Até mesmo algum sinal61 Esses lugares da conjectura serão retomadas em 70-82, quando setratar da questão no gênero de ornamentação.62 Ad id quod agetur: tomando "executar algo" no sentido de defender umacausa, discutir um assunto. O termo agere (e actio) refere-se ao momentoconcreto em que o discurso é proferido. Muitas vezes, indica o próprioato de ordenar um discurso.63 Cf. Ad Her. II.8.
27
de premeditação ou de arranjo com outra pessoa, ou algo
visto, ouvido ou mostrado depois.
40. As coisas verossímeis comovem em parte uma a uma,
a partir do seu peso, em parte, embora pareçam ser exíguas
por si só, aumentam muito quando são acumuladas. Nesses
verossímeis incluem-se, algumas vezes, até os indícios
característicos e certos das coisas. Mas estabelecem a
máxima credibilidade, primeiramente um exemplo calcado na
semelhança com o verdadeiro, depois, a introdução de um
caso paralelo. Até a fábula, embora seja inacreditável,
algumas vezes, todavia, comove os homens64.
41. C.F. Bem, que regra há para a definição e que método?
C.P. Não há dúvida, por certo, que a definição se dá
apontando alguma qualidade própria ou mesmo a enumeração de
coisas comuns a partir das quais se mostra o que é próprio.
Mas, como a maioria das vezes há grande desacordo sobre as
qualidades próprias das coisas, freqüentemente é preciso
definir a partir de oposições e muitas vezes mesmo
apontando diferenças e igualdades. Por isso, as descrições
são, com freqüência, convenientes neste tipo de questão e
também a enumeração das conseqüências. Aqui comove,
principalmente, a explicação da palavra e da denominação.
64 Cf. discussão sobre este trecho na Introdução.
28
42. C.F. Já está quase completa a exposição dos preceitos
sobre as ações e sobre a denominação das ações65. Presume-
se, então, que resta considerar a situação quando se coloca
a qualidade dos acontecimentos, tendo sido estabelecido
acordo sobre as ações e sua denominação.
C.P. É assim como dizes.
C.F. Quais são, então, nesse gênero, as partes?
C.P. Uma ação pode ser feita por direito, para afastar ou
vingar uma dor, em nome da piedade, do pudor, da religião,
da pátria, ou por necessidade, por ignorância, por acaso.
43. Pois, as coisas que são feitas sem motivo, por comoção
ou perturbação do ânimo, essas não têm defesa contra seu
erro em julgamentos legais; nos debates livres, podem ter.
No debate em que se busca qualificar a ação, costuma-se
estabelecer uma controvérsia sobre se a ação foi feita por
direito e corretamente, e a discussão deve-se basear numa
lista de tópicos.
44. C.F. Está bem. Mas já que havias dividido o
estabelecimento da credibilidade do discurso em confirmação
e refutação66, e falaste a respeito de uma, expõe agora a
65 Ações: conjectura. Denominação das ações: definição.66 Cf. 33.
29
respeito da outra.
C.P. Deves negar o todo que o adversário assumiu na
argumentação, se puderes provar que é fictício ou falso, ou
redargüir as coisas que foram assumidas como verossímeis.
Primeiro diga que coisas dúbias foram assumidas como
certas; depois, que algumas podem até ser tidas como
falsas; então, que as que partiram destas não podem
produzir-se como ele quer. E é preciso derrubar uma a uma;
assim, o conjunto será quebrado. Devem mesmo ser evocados
exemplos a que não se tenha dado crédito em alguma
discussão semelhante. Deves lamentar a possibilidade de um
perigo comum, se a vida de inocentes tiver sido exposta aos
talentos de homens criminosos.
45. C.F. Então, já que tenho de onde são encontradas as
coisas que dizem respeito à credibilidade, espero de que
maneira elas serão tratadas, uma a uma, durante o
discurso67.
C.P. Pareces buscar a argumentação, que é o
desenvolvimento dos argumentos. Constituída a partir dos
lugares que foram expostos, deve ser arranjada e dividida
claramente.68
67 In dicendo: ao dizer, no discurso elaborado.68 Cf. Ad. Her. II.27 ss, De inuent. I.44 ss, De or. II.177.
30
C.F. Desejo exatamente isso mesmo.
46. C.P. A argumentação é, então, como foi dito acima, o
desenvolvimento dos argumentos, mas só estará concluída
quando, tendo assumido coisas prováveis ou não dúbias,
consigas delas estabelecer aquilo que, por si só, pareceria
dúbio ou menos provável. E os tipos de argumentação são
dois. Um deles visa diretamente à credibilidade, outro
inclina-se à comoção69. Segue diretamente quando propõe
algo a ser provado, assume alguns pontos a partir dos quais
se dará a explicação, volta à proposição e conclui. A outra
argumentação, por sua vez, vai como para trás e ao
contrário. Primeiramente assume as coisas que deseja e as
confirma. Só depois, comovidos os ânimos, lança no fim
aquilo que deveria ter sido proposto no início.
47. Podemos também, durante a argumentação, usar
alguma variação não desagradável, por exemplo, interrogando
a nós mesmos ou perguntando, implorando, apresentando um
desejo - coisas que são, com muitas outras, ornamentos das
sentenças70. Poderíamos, por outro lado, evitar a
repetição, nem sempre começando a partir do proposto ou, ao
argumentar, não explicitando tudo; por exemplo, se
apresentarmos brevemente as coisas que forem bastante
69 Cf. 5.70 Sententia: máxima, pensamento.
31
óbvias e as que delas decorrem e com isso a conclusão ficar
patente, nem sempre é preciso explicitá-la.
48. C.F. O quê? Aquelas provas que são denominadas "sem
arte", que agora pouco71 disseste apenas assumidas, têm
necessidade de alguma medida de arte?
C.P. Com certeza elas têm. E não porque são assim se dizem
"sem arte", mas porque a força do orador não as faz surgir.
Mas, levantadas perto dele, este, então, as trata com arte.
Principalmente em relação aos testemunhos. 49. Pois, a
respeito de todo testemunho deve-se dizer, por um lado, o
quanto é débil, por outro, que os argumentos estão mais
próximos das coisas, os testemunhos, das vontades. Usem-se
exemplos em que os testemunhos não tiveram crédito. A
respeito de cada um, diga-se se é por natureza vão, se é
fútil, se fruto de infâmia, medo, raiva, compaixão, se
aduzido por recompensa ou favor. Devem ser comparados com a
autoridade superior de outros testemunhos aos quais,
entretanto, não se tenha dado crédito. 50. Muitas vezes, os
testemunhos dados sob interrogatório devem mesmo ser
questionados. Pois, para evitar a dor da tortura, muitos
mentem várias vezes e preferem morrer confessando o falso a
sentir dor negando-o. Outros negligenciam até à própria
vida para livrar aqueles que lhes são mais caros que os
71 Cf. 6.
32
próprios a si mesmos. Uns, de um lado, suportam a violência
das torturas pela natureza do corpo, pelo hábito da dor,
pelo medo do castigo e da condenação. Outros mentem contra
aqueles que odeiam. E isso tudo pode ser confirmado por
exemplos. 51. E não é difícil entender que, como há
exemplos de uma e outra situação e também há argumentos
para se conjecturar tanto contra como a favor, nas
situações em que há oposição devem ser consideradas coisas
que se opõem.
E há também um outro método para tratar os testemunhos e os
interrogatórios. Com efeito, muitas vezes pode-se refutar
sutilmente coisas que tiverem sido declaradas de modo
ambíguo, inconstante, inacreditável ou até mesmo em
contradição com outro testemunho.
52. C.F. Resta-te a última parte do discurso, que se dá na
peroração, a respeito da qual, com certeza, gostaria de
ouvir.
C.P. A divisão dessa parte é mais fácil. Pois, está
dividida em duas partes, amplificação e enumeração. O lugar
próprio da amplificação não é só aqui, ao perorar. Também
ao longo do próprio discurso, confirmada ou refutada alguma
coisa, pode-se ter ocasião para amplificar. 53. A
amplificação é, assim, alguma afirmação particularmente
grave que, ao dizer, concilia a crença graças à comoção dos
33
ânimos72. Ela é conseguida pela escolha de palavras e de
temas73. Devem ser usadas palavras que tenham força de
ilustrar74 e não estejam afastadas do uso, graves, cheias,
bem soantes, compostas, forjadas, sinônimas, não vulgares,
exageradas e, em primeiro lugar, metaforizadas75. E isso
não só nas palavras isoladas, mas também no agrupamento das
palavras, que devem ser ditas sem conjunção76 para que
pareçam muitas mais. 54. Causam amplificação, também,
palavras que se repetem, que se confirmam, que se
acrescentam77, e as que ascendem gradativamente das coisas
humildes até as superiores. E sempre é mais ajustado para
aumentar o discurso natural e não muito explicado78, mas
cheio de palavras graves.
Isso está nas palavras. A elas deve juntar-se, para
comover os ânimos, a ação congruente da voz e adequada do
semblante. A causa deve ser sustentada nas palavras e na
ação e executada em favor do assunto. E, como essas79
parecem muito absurdas quando são mais graves do que a
causa suporta, deve-se escolher diligentemente o que convém
72 A amplificatio conjuga crença e comoção. Usa a comoção como meio paraatingir a finalidade da crença.73 Res et uerba, temas e palavras. 74 Illustrare: ilustar. Termo ligado à enargéia grega.75 Translata: levada ou carregada de um lado para outro (trans+latus,a,um).É o termo latino que traduz o grego metaphora.76 Assíndeto.77 Verba relata, iterata, duplicata: palavras repetidas, reiteradas,acrescentadas. Referências a algumas figuras de linguagem. Cf. Or. 135.78 Explanata. É quasi naturalis a oratio que não se explica muito.79 Essas, ou seja, as ações e as palavras.
34
a cada uma.
55. A amplificação dos temas usa os mesmos lugares
apresentados para a credibilidade80. São de especial valor
as definições reunidas, a enumeração de conseqüências, o
contraposição de coisas contrárias, dessemelhantes e
opostas entre si, os motivos, o que surgiu dos motivos e,
sobretudo, as semelhanças e os exemplos. Falem até as
personagens ficcionais e, por fim, as coisas mudas81.
Se a causa suporta, devem ser utilizados os temas
tidos como grandiosos, que são de dois gêneros. 56. Uns,
com efeito, parecem grandes por natureza, outros pelo uso.
Pela natureza, são grandiosos os assuntos celestes,
divinos, aqueles cujas causas são obscuras, as coisas
admiráveis que existem na terra e no universo; se olhares
com atenção muito desses temas e outros semelhantes a esses
estão bem à mão para amplificar o discurso. São grandiosos
pelo uso os temas que parecem com destaque e veemência
causar proveito ou prejuízo aos homens. Desses há três
tipos que servem para a amplificação: pois, os homens são
movidos pela caridade (como aos deuses, à pátria, aos
parentes, ao amor, aos irmãos, aos cônjuges, aos filhos,
aos amigos), ou pela honestidade, ou pelas virtudes82,
principalmente aquelas que têm valor para a comunhão e80 Cf. 33 ss.81 Notar como a enumeração, partindo da objetividade da definição echegando às coisas mudas que falam, segue uma gradação amplificada.82 Cf. De officiis I.13-14 e II. Os deveres e as virtudes estão relacionadosà vida comum e à sociedade entre os homens.
35
generosidade entre os homens83. Essas coisas não só indicam
como exortar o que deve ser respeitado, como também incitam
os ódios contra aqueles por quem foram violadas, e fazem
nascer a compaixão.
57. [Há tópicos próprios para a amplificação quanto a
bens perdidos ou em perigo de se perder84]. Nada é tão
digno de compaixão quanto alguém feliz passar a ser
infeliz85. E, na verdade, ainda que esse tema comova, se
alguém cair da boa para a má fortuna86 e for afastado da
caridade de muitos, mostre-se apenas brevemente o que está
perdendo no momento, o que perdeu, em que males está ou
estará. Com efeito, rapidamente a lágrima seca,
principalmente nos males alheios. Nada, durante a
amplificação, deve ser explicado em demasia; toda exatidão
é minuciosa e este lugar requer coisas grandes.
58. Agora, a escolha propriamente dita: que tipo de
amplificação usaremos em cada causa. Naquelas causas que
são ornamentadas para o deleite, devem ser tratados os
lugares que possam mover a expectativa, a admiração, o
prazer. Nas exortações87, por outro lado, as enumerações
dos bens e dos males e os exemplos valem muito mais. Nos83 Segundo o De offic. II, as virtudes mais necessárias à sociedade e àcomunidade dos homens são a sabedoria e, principalmente, a justiça.84 A sentença entre colchetes parece ser uma interpolação.85 A passagem da dita para a desdita é, segundo Aristóteles, o motor dacompaixão na tragédia.86 A passagem da boa para a má fortuna deve ser apresentada brevementena peroração, pois o lugar não suporta as minúcias que o casoexigiria.87 "Exortações” está designando, aqui, o gênero deliberativo.
36
julgamentos, para o acusador, em geral, as coisas que dizem
respeito à cólera; algumas vezes, entretanto, o acusador
deve mover a misericórdia e o defensor a cólera88.
59. Resta o procedimento da enumeração89, algumas
vezes necessária ao que louva, não muitas vezes ao que
delibera, mais freqüentemente ao acusador do que ao réu. A
enumeração deve ocorrer em duas circunstâncias: se
desconfias da memória daqueles diante de quem atuas, por
causa do intervalo de tempo ou do tamanho do discurso, ou
se, acumulados e brevemente expostos os fundamentos do
discurso, a causa puder tomar mais força com a enumeração.
60. Raramente o réu deve usá-la, porque esse deve
apresentar refutações: sendo breve, sua refutação brilhará,
seus aguilhões pungirão. A enumeração deve evitar parecer
uma pueril ostentação de memória e evitará isso aquele que
não repetir todas as mínimas coisas, mas, tocando
brevemente uma a uma, mostrar a importância própria de cada
uma delas.
61. C.F. E, então, falaste a respeito do próprio orador e
do discurso; expõe agora o que, por último dos três,
propuseste: o lugar das questões.
88 Notar o uso das paixões no gênero judiciário. O orador, conformeocupe o lugar de defensor ou acusador, deve produzir no juiz a cóleraou a misericórdia.89 A peroração tem uma etapa de comoção dos ânimos, discutida até aqui,e uma etapa de resumo do que foi tratado no discurso.
37
C.P. São dois, como falei no início90, os tipos de questões.
Um deles é limitado nas circunstâncias e nas pessoas,
chamo-o causa. O outro não é marcado por nenhuma pessoa ou
circunstância, denomino-o tese91. A tese ou discussão92 é
como que uma parte da causa e da controvérsia. Com efeito,
o não limitado está presente no definido e, sem dúvida,
àquele se referem todas as coisas. 62. Por causa disso,
falaremos antes da tese, cujos tipos são dois93. Uma
teórica, de cognição: sua finalidade é o conhecimento, como
se são verdadeiros os sentidos94. Outra prática, de ação,
que se refere a produzir algo, como se alguém discute com
quais deveres a amizade deve ser cultivada. E mais, o
primeiro tipo pode ser subdividido em três: tese sobre como
alguma coisa acontece ou não, tese sobre o que é exatamente
algo que se acredita acontecer, e tese sobre a qualidade de
algo que se acredita acontecer e que se sabe como
definir95. Sobre como algo existe ou não, por exemplo, “o
direito está baseado na natureza ou nos costumes?”. Sobre a
definição, por exemplo, “o direito é aquilo que é útil para
90 Cf. 4 .91 Propositum, tese. 92 Consultatio e propositum, discussão e tese, estão sendo usadosalternadamente. Do ponto de vista da força do orador, a questãoindefinida é uma consultatio, discussão: ele se senta junto com alguémpara deliberar. Do ponto de vista da questão, ela é um propositum, umatese: algo que foi posto diante para ser tratado.93 Cf. Top .81.94 Segundo o De officiis I.15-16, também faz parte do honestum oconhecimento do verdadeiro e do falso.95 Sit necne, quid sit, quale sit, conjectura, definição e qualidade, as trêsquestões já mencionadas anteriormente em 39 e 42.
38
a maioria?”. Sobre a qualidade, por exemplo, “viver de modo
justo é ou não útil?”96.
63. As teses práticas são de dois tipos. Um em que se
discute como obter ou afastar algo, por exemplo, “com que
coisas se pode alcançar alcançar a glória?” ou “de que modo
a inveja pode ser evitada?”97. Outro tipo de tese prática
refere-se a algum proveito e utilidade, por exemplo, “de
que modo a república deve ser administrada?” ou “de que
modo devemos viver na pobreza?”.
64. Voltando, na discussão teórica, onde se procura se
algo é ou não é, foi ou será, um primeiro tipo de
questionamento leva em consideração se alguma coisa pode
ser produzida, como quando se discute se pode existir um
sábio perfeito; outro questionamento, de que modo alguma
coisa acontece, por exemplo, “por que tipo de regra a
virtude é classificada: pela natureza, pela razão ou pelo
uso?”98. Desse tipo são todas as discussões em que, como
nos assuntos metafóricos e nos naturais, explicam-se as
causas e as razões das coisas.
65. Há dois tipos de tese em que se discute o que é o
ponto que está em questão, ou seja, sua definição.Em um
deles, devemos argumentar se duas coisas são iguais ou96 A contraposição entre a justiça do honesto e o útil aparece no LivroIII, do De officiis. Esse tratado, portanto, tomaria as regras da questãode qualidade.97 O Livro II, do De officiis, discute como alcançar a glória (II.30-51) ecomo lidar com a inveja dos homens (II.23-29).98 No De officiis I.11, Cícero apresenta a doutrina estóica que liga avirtude tanto ao uso, quanto à razão e à natureza.
39
diferentes entre si, por exemplo, a pertinácia e a
perseverança. No outro, devemos apresentar a descrição de
algo genérico e como que sua imagem, por exemplo, “o que é
um avaro?” ou “o que é a soberba?”.99
66. No terceiro tipo de tese teórica, no qual se
procura a qualidade de uma coisa, devemos falar a respeito
da honestidade, utilidade ou eqüidade100. Da honestidade,
assim: se é honesto expor-se ao perigo e à inveja em lugar
de um amigo. Da utilidade, assim: se é útil ocupar-se em
administrar a república. Da eqüidade, por outro lado,
assim: se é eqüitativo antepor os amigos aos conhecidos. E
neste tipo de tese surge outra disputa; com efeito, não se
procura simplesmente o que é honesto, o que é útil, o que é
eqüitativo, mas por comparação, o que é mais honesto, o que
é mais útil, o que é mais eqüitativo, e até o que é muito
honesto, o que é muito útil, o que é muito eqüitativo101.
Desse tipo são questões como “qual é a dignidade mais
notável da vida?”.
E, por certo, essas coisas de que falei referem-se à
tese teórica, de cognição. 67. Restam as práticas, de ação.
Uma delas preceitua o que diz respeito às regras do dever,
como “de que modo devem ser cultuados os parentes?”. Outro
tipo trata de acalmar os ânimos e abrandá-los pelo
99 Cf. Top. 83.100 Honestidade, utilidade e eqüidade são, respectivamente, os assuntosdos três livros do De officiis.101 Notar a mesma divisão dos livros do De officiis.
40
discurso, como na consolação dos abatimentos, na suspensão
da cólera, na supressão do medo ou na diminuição do desejo.
Por certo, neste tipo de tese a argumentação é oposta
àquela que está presente na amplificação do discurso e que
serve para gerar ou incitar esses mesmos movimentos de
ânimo102. E essa é, mais ou menos, a divisão das teses ou
discussões.
68. C.F. Reconheço, mas pergunto que regra para encontrar e
dispor existe nelas.
C.P. O quê? Tu pensas que é outra e não a mesma que já foi
exposta103, ou seja, que dos mesmos tópicos tira-se tudo o
que é necessário tanto para encontrar o que dizer quanto
para estabelecer a credibilidade. E também as mesmas regras
de disposição anteriormente expostas104 podem também ser
aplicadas aqui.
C.F. Conhecida, assim, toda a explicação sobre as
discussões das teses, restam os tipos de causa.
69. C.P. De acordo e, por certo, a forma delas é dupla. Uma
delas busca o deleite dos ouvintes. Toda contenda da outra
102 Cf. 52 ss.103 Cf. 5, 8, 13, 33 ss. 104 Cf. 9.
41
é para que obtenha, prove e produza aquilo de que trata105.
E assim, chama-se aquele primeiro gênero de demonstrativo;
e como pode ser um gênero amplo e, sem dúvida, variado,
dele escolhemos um único tipo: aquele que tomamos para
louvar os homens famosos e vituperar os ímprobos. Com
efeito, não há nenhum gênero de discurso que possa ser mais
fértil para o discurso ou mais útil às cidades, no qual o
orador verse mais sobre o conhecimento das virtudes e dos
vícios.
O outro gênero de causas trata da previsão do que há
de vir ou da disputa sobre o que passou. Um dessas
situações é própria da deliberação, a outro, dos
julgamentos.
70. Dessa partição saíram, então, três gêneros de
causa: um que é denominado, pela seu lado mais importante,
de "louvor", outro de "deliberação", e o terceiro de
"julgamentos"106. Assim, se te agrada, discutiremos
primeiramente o primeiro.
C.F. Muito me agrada.
C.P. As regras para louvar e vituperar, que não são
105 Quod agit. O verbo agere é usado no sentido de tratar um assunto,executar a discussão sobre um assunto. Agere causam poderia serentendido, também, como o ato concreto de tornar público, externar odiscurso que se elaborou a respeito de uma causa.106 Os três gêneros definidos na Retórica I.2, de Aristóteles, a partir daatitude dos ouvintes.
42
valorosas apenas para o bem dizer, mas também para o viver
honestamente, exporei brevemente107. Começarei pelos
primeiros preceitos sobre o louvor e vituperação108.
71. Por certo, devem ser louvadas todas as coisas que
estão reunidas com a virtude; e as que estão com os vícios,
devem ser vituperadas. Por isso, o limite de uma é a
honestidade109, da outra, é a torpeza. Esse gênero de
discurso110 usa a narração e exposição do que aconteceu, sem
qualquer argumentação; presta mais atenção em comover
suavemente os ânimos do que em argumentar adequadamente
para estabelecer ou confirmar a credibilidade. Com efeito,
aqui não se afirmam coisas duvidosas, mas se aumentam as
certas ou as que podem ser colocadas em lugar das certas.
Por isso, valem aqui as coisas anteriormente preceituadas
para narrar111 e para aumentar112. 72. E como nestas causas
toda regra se refere ao prazer e ao deleite do ouvinte,
aqui se deve usar um discurso ornamentado e adornos feitos
de palavras isoladas, que têm muita suavidade (isso se dá
se usarmos freqüentemente neologismos113, arcaismos,
metáforas114). Deve-se pensar também na própria disposição
107 Cf. Ad Her. III.10 ss, De inuent. II.177-178, De or. II.341.108 Mais uma vez aparece a relação entre o bem dizer e o viverhonestamente, que é retomada no De officiis.109 Cf. De inuent. II.156 e Top. 91.110 Dictio: ato de dicere, ou seja, ato de falar ordenadamente.111 Cf. 31-32.112 Cf. 52-56.113 Verbis factis: neologismos.114 Palavras metaforizadas.
43
das palavras115, de modo que, muitas vezes, sejam alinhadas
palavras de mesmo tamanho, sinônimas, antônimas, palavras
duplicadas ou marcadas com um ritmo, não para imitar
versos, mas para satisfazer o sentido dos ouvidos graças a
certa métrica adequada. 73. Devem-se empregar muito
freqüentemente também ornamentos para o assunto: usar o que
pode causar admiração, o que é imaginoso, coisas reveladas
por monstros, prodígios, oráculos, coisas divinas ou fatais
que parecerão acontecer àquele de quem tratamos. Com
efeito, toda expectativa, toda maravilha e saída imprevista
causam algum prazer ao se ouvir116.
74. E, como as coisas boas ou más se dividem em três
tipos (as externas, as do corpo, as do ânimo117), tratem-se
primeiro as que se referem ao nascimento, o qual será
louvado breve e modicamente. Se for infame, será omitido.
Se for humilde, será abandonado ou amplificado para
aumentar a glória daquele que está sendo elogiado. Depois,
se o tópico suporta, deve-se falar da fortuna e da
capacidade. Depois disso, da disposição corporal, cuja
beleza, que indica acima de tudo como que uma virtude, pode
ser facilmente elogiada. 75. Depois, deve ir-se aos feitos,
cuja apresentação pode ser de três tipos. Com efeito, ou é
mantida a ordem dos acontecimentos, ou se fala em primeiro
lugar do que há de mais recente, ou os muitos e vários
115 Cf. De oratore III.152.116 In audiendo: na audição.117 Cf. De officiis I.
44
feitos são narrados observando-se os gêneros próprios das
virtudes.
Mas esse tópico das virtudes e dos vícios, embora seja
muito amplo e abra muitas argumentações e variadas
discussões, será tratado agora com uma discussão limitada e
breve.
76. A força da virtude é dupla. Com efeito, a virtude
aparece tanto no conhecimento quanto na ação118. Assim, a
virtude que é chamada prudência, habilidade ou, com um nome
muito grave, sabedoria, essa tem muito poder quanto ao
conhecimento. A que, por outro lado, é louvada por moderar
os desejos e governar os movimentos do ânimo, para a qual
há o nome de temperança, sua tarefa se cumpre na ação119. E
a primeira costuma ser chamada prudência doméstica, quanto
aos assuntos individuais, e civil, quanto aos públicos. 77.
A temperança, também, está dividida quanto aos assuntos
individuais e aos comuns e, quanto às coisas vantajosas,
pode ser percebida de dois modos: tanto em não reclamar as
coisas que faltam, quanto em abster-se daquelas que estão à
disposição. Nas coisas desvantajosas, é igualmente dupla: a
que se opõe os males que se aproximam é denominada coragem,
e a que tolera e suporta o que já está presente, paciência.
118 “Conhecimento” e “ação” são também os dois tipos de questãoindefinida (62-63). Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, I.33.119 No De officiis, a prudência e a sabedoria são virtudes relacionadas aoconhecimento do verdadeiro, primeira das quatro fontes do honesto. Atemperança e a moderação ligam-se ao decoro no agir e no dizer, quartafonte do honesto.
45
A que reúne a estas num único grupo é chamada de grandeza
de ânimo, à qual pertence a liberalidade no uso do dinheiro
e, ao mesmo tempo, elevação de ânimo em suportar as coisas
incômodas, principalmente as injúrias e todas as coisas
assim graves de modo calmo, não turbulento. 78. A virtude
referente à vida em comum é chamada justiça; a que se dá em
relação aos deuses é denominada religião; em relação aos
parentes, piedade [e, para o vulgo, bondade]; em relação ao
que se tomou emprestado, fidelidade; quanto à moderação ao
censurar, delicadeza; quanto à benevolência, amizade.
Essas virtudes, com certeza, aparecem durante as ações.
Existem outras como que auxiliares e companheiras da
sabedoria. Uma delas, durante a argumentação distingue e
escolhe o que se segue daquilo que foi exposto; essa
virtude está toda assentada na razão e no conhecimento
sobre a argumentação120. A outra é a oratória121. 79. A
eloqüência, com efeito, não é outra coisa senão uma
sabedoria que fala copiosamente, que haurida a partir do
mesmo gênero de virtude que há na argumentação, é mais
fértil e mais ampla e, para mover os ânimos e sensibilizar
os sentidos do vulgo, mais conveniente. Por certo, a
guardião de todas as virtudes, a qual foge da desonra e,
120 Disputare, aqui como sinônimo de argumentar. Scientia disputandi,conhecimento sobre a argumentação, dialética.121 Oratória deve ser entendida aqui como a elaboração do discurso queleva em conta todo o dicere. Scientia disputandi, conhecimento sobre aargumentação, e oratoria, a elaboração global do discurso, são asauxiliares e companheiras da sabedoria.
46
principalmente, acompanha o elogio, é a discrição122. Na
verdade, esses são aproximadamente como que alguns hábitos
do ânimo, experimentados e constituídos de modo que sejam,
um a um, distintos entre si pelo tipo de virtude a que se
ligam. Se alguma coisa foi realizada a partir deles, é
necessariamente ao mesmo tempo honesta e sumamente
louvável.
80. Existem alguns outros hábitos do ânimo que os
estudos e as artes podem como que cultivar. Por exemplo,
quanto aos assuntos individuais, os estudos das letras, dos
números, dos sons, das medidas, dos astros, dos cavalos, da
caça, das armas. Quanto aos assuntos comuns, os estudos
mais preponderantes estão principalmente em cultivar a si
mesmo em algum tipo de virtude, em bem servir às coisas
divinas ou em amar especial e notavelmente os parentes,
amigos e hóspedes. E, por certo, isso é próprio das
virtudes. Dos vícios, por outro lado, são próprias as
coisas opostas.
81. Deve-se prestar muita atenção para que não nos
enganem os vícios que parecem imitar a virtude. Pois, a
malícia imita a prudência123; a insistência em repelir os
desejos, à temperança; a soberba em orgulhar-se em demasia
e a displicência em desprezar as honras, à grandeza de
122 Verecundia: discrição, comedimento, modéstia, pudor.123 Cf. em Aristóteles. Retórica I.9, como o orador pode usar esta falsasemelhança para elogiar o que pareceria não merecer elogio.
47
ânimo124; a prodigalidade, à liberalidade; a audácia, à
coragem; o rigor acentuado, à paciência; a severidade, à
justiça; a superstição, à religião; a frouxidão de ânimo, à
delicadeza; a covardia, à discrição; a peleja na escolha
das palavras, à valorosa prudência ao argumentar; e alguma
inane abundância ao falar, à excelência da força oratória.
E também podem assemelhar-se aos bons estudos o que é
apenas exagero nessas atividades.
82. Por isso toda força do louvor e da vituperação
deve estar baseado nessas divisões de virtudes e vícios;
mas, o conjunto total do discurso deve ser ilustrado125
principalmente por isto: de que modo alguém foi gerado, de
que modo criado, de que modo instruído e educado e se algo
grande ou incrível lhe ocorreu, principalmente, se isso
parecer ter acontecido por vontade dos deuses. Em seguida
deve-se apresentar o que ele sentiu, disse, fez, e isso
segundo o que foi proposto sobre os tipos de virtudes. Dos
tópicos da invenção, serão tirados as causas das coisas,
seus desenvolvimentos e suas conseqüências. Nem, por certo,
deverá ser deixada em silêncio a morte daqueles cuja vida
será louvada, se no próprio tipo de morte ou nas coisas que
se seguirão depois dela houver algo em que se deva prestar
atenção.
124 Novamente, a virtude aparece aristotelicamente definida como umponderado meio-termo entre dois vícios.125 Illustrare está relacionado ao uso do ornato e da evidência.
48
83. C.F. Ouvi isso e aprendi brevemente não só de que modo
louvar um outro, mas também de que modo esforçar-me para
que possa, por direito, eu mesmo ser louvado126. Vejamos,
então, em seguida, que caminho e que preceitos tomemos ao
emitir um parecer127.
C.P. Ao deliberar é a utilidade, então, o fim ao qual todas
as coisas devem referir-se e, apontando uma resolução ou
emitindo um parecer, o que aconselha ou desaconselha deve,
em primeiro lugar, observar o que pode acontecer ou não
pode, o que é necessário ou não é. Pois, se algo não pode
ser feito, não há nada a deliberar sobre isso, ainda que
seja útil; e, se algo é necessário (necessário, isto é, sem
o qual não podemos viver a salvo e livres) isso deve ser
anteposto às demais conveniências e vantagens da razão
pública.
84. Quando se procura o que pode acontecer, observe-se
o quão facilmente possa. Pois, as coisas que são muito
difíceis, muitas vezes devem ser tidas como se não pudessem
ser produzidas. Quando, por outro lado, se pensa a respeito
da necessidade, mesmo se algo parecer não necessário,
observe-se, todavia, o quão importante isso é; porque, com
efeito, as coisas muito importantes muitas vezes devem ser126 A Retórica e a Moral, o bem dizer e o bem viver, as Partitiones oratoriaee o De officiis andam juntos.127 In sententia dicenda: ao dizer ordenadamente uma opinião, uma maneira deser, um projeto, uma intenção. Trata-se, aqui, do discursodeliberativo.
49
tidas por necessárias. 85. Assim, já que este gênero de
causas consta do aconselhamento e do desaconselhamento, ao
que aconselha propõe-se uma regra simples: se é útil e pode
ser feito, faça-se. Ao que desaconselha, uma regra dupla:
uma, se não é útil que não se faça; outra, se não pode ser
feito, que não seja empreendido. Portanto, pelo que
aconselha, cada uma das coisas deve ser demonstrada; ao que
desaconselha basta invalidar uma delas.
86. Assim, como toda resolução está baseada nessas
duas coisas, falemos inicialmente a respeito da
utilidade128, que trata do discernimento das coisas boas e
más. As coisas boas, em parte são necessárias, como a vida,
o pudor, a liberalidade, como os filhos, os cônjuges, os
irmãos, os parentes; em parte são não necessárias, algumas
das quais devem ser procuradas por si mesmas, como as que
estão ligadas aos deveres e às virtudes, outras, porque
produzem algo vantajoso, como os bens e a riqueza. 87. E
das que são procuradas por si mesmas, em parte o são por
sua própria excelência, em parte o são por alguma vantagem.
São procuradas por sua excelência aquelas que procedem das
virtudes das quais se falou pouco antes129, certamente
louváveis por si só. Por alguma vantagem, as que estão nos
corpos ou nos bens da fortuna. Dessas, algumas ligadas a um
128 Sobre a "utilidade", vejam-se as discussões do livro II do De officiis.No gênero demonstrativo, discutido há pouco, as referências eram a"virtude" e o "honesto", tratados no livro I do De officiis.129 Cf. 76-81.
50
valor moral, como a honra, como a glória; outras não
diretamente, como as forças, a beleza, a boa saúde, a
nobreza, os clientes.
88. O valor moral tem também uma espécie de índole130
que fica muito visível nas amizades. E as amizades são
reconhecidas principalmente pela caridade e pelo amor.
Pois, o culto tanto dos deuses, quanto dos parentes, da
pátria e dos homens que são superiores pela sabedoria ou
pelos recursos, costuma referir-se à caridade. Já os
cônjuges, os filhos, os irmãos e aqueles que o costume e a
familiaridade reuniram, ainda que estejam agrupados também
pela própria caridade, o são, todavia, acima de tudo, pelo
amor. E como as coisas boas estão divididas nessas
categorias, é fácil entender o que se opõe aos bens131.
89. Se sempre pudéssemos ter as melhores coisas,
certamente não necessitaríamos muito de conselho, pois tais
coisas são, por certo, evidentes. Mas como devido a
circunstâncias de força maior muitas vezes a utilidade
disputa com a honestidade132, e essa contenda leva à
necessidade de deliberação, para que não se relegue o
vantajoso em favor da dignidade, nem o honesto, por causa
da utilidade, vamos expor os preceitos para tratar essa130 Materies: matéria, aquilo de que alguma coisa é feita, índole.131 A glória, a amizade, a liberalidade, a saúde e a riqueza são asfontes do útil, discutidas no De officiis II.9-87.132 A disputa entre o útil e o honesto é o assunto do livro III do Deofficiis. Os preceitos referidos aqui, 90 ss, resumem o conteúdo desselivro e apresentam uma indicação de como utilizá-los para conseguir apersuasão de diferentes públicos. Cf. também De or. II.135.
51
dificuldade.
90. Como o discurso deve estar acomodado não só à
verdade, mas também às opiniões daqueles que ouvem,
entendamos primeiramente isto: há dois tipos de ouvintes,
um não douto e rude, que prefere sempre a utilidade à
honestidade; outro, humano e polido, que a todas as coisas
antepõe a dignidade. Assim, a este tipo é proposto o
louvor, a honra, a glória, a fé, a justiça e toda virtude;
àquele, a vantagem, o proveito e o fruto. E até mesmo o
prazer, que é acima de tudo inimigo da virtude e adultera a
natureza do bem ao imitá-lo de modo falaz, pode ser
perseguido acirradamente por pessoas rudes e que o antepõem
não só às coisas honestas, mas também às necessárias;
assim, dando conselho a esse tipo de homens, muitas vezes
até mesmo o prazer deve ser louvado.
91. Deve-se observar o quanto mais os homens evitam os
males do que seguem os bens, já que nem tanto procuram as
coisas honestas, quanto evitam as torpes. Quem, com efeito,
alguma vez, procurou tanto a honra, quem a glória, quem o
louvor, quem o decoro, quanto evitou a ignomínia, a
infâmia, a afronta, a vergonha? O grande pesar que isso
causa é testemunho de que o gênero humano, nascido para a
honestidade, corrompe-se pela má educação e pelas opiniões
parvas. Por isso, ao exortar e aconselhar, deveremos, por
certo, propor que mostremos os meios por que possamos
conseguir os bens e evitar os males. 92. Junto a homens bem
52
instruídos, falaremos muito sobre o louvor e a honestidade
e, acima de tudo, trataremos daqueles tipos de virtude que
estão relacionados à manutenção e ao aumento da utilidade
comum dos homens133. Se, pelo contrário, falamos junto aos
não doutos e imperitos, arrolem-se os frutos esperados, os
proveitos, os prazeres e como evitar os dolos, ajuntem-se
até as vantagens e as ignomínias. Ninguém é, com efeito,
tão rude que, se a própria honestidade o faz menos, não o
comovam muito, entretanto, a vantagem e a vergonha.
93. Por isso, escolha-se do que foi exposto o que
contempla a utilidade. Observe-se, pensando principalmente
nos antecedentes necessários e nas causa, o que pode ser
produzido ou não. Quanto a isso, costuma-se ponderar o quão
facilmente desembaraçadamente algo pode acontecer. E os
tipos de causas são muitos: há algumas causas que, elas
próprias, produzem algo; outras, aferem alguma força para
produzir. As primeiras são chamadas causas eficientes; as
restantes são classificadas como causas necessárias para
que se possa produzir algo. 94. A causa eficiente é
absoluta e perfeita por si mesma; a outra, auxiliando em
algo, é uma espécie de acessório da execução. A força desse
tipo de causa é variada e às vezes maior, às vezes menor,
de modo que aquela que tem a maior força muitas vezes é
chamada causa única. Há ainda algumas causas que são
133 Cf. De officiis I. 20-60. A justiça e a liberalidade são as virtudes quemantêm a sociedade dos homens. Cf. também De or. II.346.
53
chamadas eficientes quanto ao princípio ou quanto ao
resultado. Quando se procura o que é o melhor a se fazer, a
utilidade ou a esperança de produzir algo levam os ânimos a
concordar com uma decisão.
95. E como já falamos a respeito da utilidade, falemos
da possibilidade de realização. Nesse caso deve-se procurar
com quem podemos realizar algo, contra quem, em que
circunstância, em que lugar, com que quantidade de armas,
de dinheiro, de companheiros e de outras coisas que dizem
respeito à execução. Deve-se observar não apenas as
possibilidades que se apresentam a nós, mas também aquelas
que se nos opõem. E se, por comparação, as nossas
possibilidades forem mais fáceis de executar, não só se
deve persuadir os ouvintes de que podem ser produzidas as
coisas que aconselhamos, mas também se deve cuidar para que
elas pareçam fáceis, propensas, agradáveis de executar.
Os que desaconselham devem colocar em dúvida a
utilidade do que se propõe ou expor as dificuldades de se
produzir, e isso não a partir de outros preceitos senão dos
mesmos tópicos do aconselhamento. 96. Além disso, para
amplificar cada um desses tópicos são necessários muitos
exemplos, recentes, para que sejam mais conhecidos, ou
antigos, para que tenham mais autoridade. Nesse tipo de
discurso, é preciso estar bem preparado para, muitas vezes,
antepor as coisas úteis e necessárias às honestas, ou estas
àquelas.
54
Para comover os ânimos, se hão de ser incitados, são
úteis sobretudo as considerações que dizem respeito à
satisfação dos desejos, à saciedade do ódio e ao castigo
das injúrias. Se, pelo contrário, hão de se refrear os
ânimos, esses devem ser advertidos do estado incerto da
fortuna, dos sucessos dúbios das coisas futuras, da
possibilidade de manter a fortuna, se essa é favorável, e
se ao contrário, adversa, do perigo. Esses são, por certo,
os lugares da peroração.
97. No discurso deliberativo, o exórdio deve ser
breve. Com efeito, não como um suplicante ao juiz é que se
apresenta o orador, mas como um instigador e um
conselheiro. Por isso, deve mostrar com que intenção fala,
o que deseja, de que coisas está para falar e deve instigar
a que ouçam dizendo que falará brevemente134. O discurso
inteiro, simples e grave, deve ser ornamentado mais pelos
pensamentos do que pelas palavras.
98. C.F. Já conheço os tópicos do louvor e do conselho.
Agora espero o que diz respeito aos julgamentos e acho que
nos resta esse único gênero.
C.P. Entendes corretamente. O fim do gênero judiciário é a
eqüidade, que muitas vezes não é obtida de modo simples,
mas a partir da comparação. Como quando se disputa com um
134 Cf. Ad Her. II.28 e De or. II.177.
55
acusador tido como muito veraz ou quando se pede a posse de
uma herança sem determinação legal ou sem testamento;
nessas causas, procura-se obter o que é mais eqüitativo ou
o que é muito eqüitativo135. Para tais causas, pede-se a
capacidade de argumentar a partir dos lugares da eqüidade,
dos quais se falará em breve136.
99. Antes do julgamento137 costuma haver uma decisão
sobre o próprio julgamento a ser constituído. Nesse momento
se discute se é possível haver uma ação judicial conforme a
solicitada, se é possível no momento, se acaso já deixou de
ser possível ou se é possível haver ação por causa da lei
citada ou por causa dos termos empregados138. E mesmo que
essas coisas não tenham sido discutidas, julgadas ou
concluídas antes que a causa venha a julgamento, acabam
todavia tendo um enorme peso nos próprios julgamentos,
quando pode-se, por exemplo, dizer: "Na tua causa, estás
solicitando em demasia!"; "Estás solicitando tarde
demais!"; "Não foi essa a tua petição!"; "Este julgamento
não deveria estar-se dirigindo a mim, não deveria estar
baseado nesta lei, nestas palavras!". 100. Esse tipo de
causa está relacionado ao direito civil, que trata da lei
135 O eqüitativo é um critério que se instaura quando a aplicaçãounívoca de uma lei não é possível ou quando a autoridade daquelecontra quem se fala é muito forte.136 Cf. 129 ss.137 No procedimento judiciário romano, a causa deve ser reconhecidacomo legítima antes do julgamento propriamente dito.138 Illane lege, hisne uerbis: por causa da lei citada ou por causa dos termosempregados.
56
ou costume das coisas privadas e públicas. O conhecimento
desses assuntos, negligenciado pela maioria dos oradores,
parece-nos necessário para discursar. Mais pela
circunstância da ação do que pela diferença de gênero
separo um pouco dos julgamentos o que diz respeito à
constituição da causa, ou que diz respeito à decisão de
instituir o julgamento e sua execução, ou à suspensão do
julgamento pela iniqüidade da ação, ou à comparação da
eqüidade com outros julgamento. Mesmo que esses
procedimentos sejam tão específicos que devam ser tratados
antes, acabam muitas vezes aparecendo durante o próprio
julgamento. Pois, todos os debates relacionados ao direito
civil, ao bem e ao que é eqüitativo acabam caindo na
questão de qualidade, de que falaremos logo a seguir139, e
que está baseada principalmente na eqüidade e no direito.
101. Assim, em todas as causas há três pontos em um
dos quais pelo menos, se não se consegue mais, deve-se
basear a oposição a uma acusação feita. Pois, pode-se negar
o feito que está sob julgamento; ou, se se confessa o
feito, negue-se que tenha a força e a definição que o
adversário incrimina; ou, se não se pode contestar nem o
feito, nem a denominação do feito, negue-se que o
adversário demonstrou adequadamente o valor do acontecido,
e defenda-se que é correto o que tiver feito ou que deve
139 Cf. 129 ss.
57
ser tido como permitido140. 102. Assim, trate-se aquele
primeiro estado141 e quase conflito com o adversário como
uma conjectura; o segundo, como uma definição ou
determinação de certa da palavra; o terceiro, como
argumentação sobre o eqüitativo, verdadeiro, correto e
humano para se perdoar.
O defensor deve sempre não apenas sustentar um
determinado estado da questão142 (desmentindo um feito,
definindo-o de outra maneira ou contrapondo-se à eqüidade
proposta pelo opositor), mas também apresentar a razão de
suas objeções: no primeiro estado143, pode dizer que a
acusação é injusta, negando e desmentindo o feito144; no
segundo145, dizer que não está na coisa o que, com a
palavra, é atribuído pelo adversário; no terceiro146,
defender que é correto aquilo que, sem nenhuma controvérsia
quanto à denominação, confesse-se ter sido feito. 103. Em
seguida o acusador retoma cada uma dessas razões e mostra
que, se elas não estivessem com a acusação, de modo algum
140 Aqui aparece a doutrina da stasis, importante contribuição helenísticapara a Retórica. Para ordenar a composição do discurso, o orador deveestabelecer o status causae: saber se vai contestar o feito (sitne?), onome do feito (quid sit?) ou a qualidade, a pregorrativa moral do feito(quale sit?). 141 Status causae: estado da causa.142 Status, ou seja, estado da questão.143 Primeiro estado, ou seja, a conjectura.144 Ainda que se tenha estabelecido o estado de qualidade, o defensorpode voltar à definição e à conjectura, desmentindo os feitos eredefinindo o que foi apresentado.145 Segundo estado, a definição.146 Estado de qualidade.
58
poderia haver um julgamento. Chame-se, então, de pontos
essenciais da causa em questão147 as coisas assim referidas,
embora as razões apresentadas contra a linha da defesa não
sejam mais importantes para o julgamento causa do que as
próprias razões da defesa. Para diferenciá-las, então,
chame-se motivo aquilo que o réu apresenta para se defender
e afastar a culpa, sem o que nada haveria a defender. E
chame-se de fundamento o que se apresenta em contrário para
enfraquecer o motivo, sem o que a acusação não poderia
permanecer em pé.
104. Da contraposição e como embate entre motivos e
fundamentos surge uma questão que chamo debate148. Nela,
costuma-se procurar o ponto que está realmente em
julgamento e a respeito de quê se debate. Pois, na primeira
contraposição entre os adversários a questão é difusa. Por
exemplo, numa conjectura: "Décio149 teria apanhado o
dinheiro?"; numa definição: "Norbano150 haveria diminuído a
majestade do povo romano?"; numa questão de eqüidade:
147 Continentia causarum: pontos essenciais das causas do julgamento.148 Disceptatio: debate.149 P. Décio, tribuno em 121 aC, pretor em 114 aC. …..150 C. Júnio Norbano, tribuno da plebe em 95 aC. Acusou o cônsul Q.Servílio Cepião de traição por haver pilhado o templo de Apolo emTolosa, em 106 aC, e, também, pela derrota do exército para osCímbrios, em 105 aC. O Senado apoiou Cepião. Norbano armou um revoltae Cepião foi exilado. Em 104, Sulpício acusou Norbano e este foidefendido e absolvido por Antonio. Cícero parece propor aqui umjulgamento sobre a possibilidade de Norbano ter diminuído a majestade,ou seja, o poder da República e do povo romano, pelo fato de terarmado uma sedição quando não obeteve apoio do senado para exilar umahomem culpado.
59
"Opímio151 teria assassinado Graco por direito?". Essas
primeiras discussões, baseadas na argüição e contraposição,
são, como disse, muito amplas e difusas. A contraposição
entre motivos e fundamentos leva o debate a um ponto mais
específico.
Na conjectura esse ponto é nulo. Com efeito, quem nega
que algo foi feito não pode, deve ou costuma apresentar um
motivo. Assim, nessas causas, o primeiro questionamento e o
resultado do debate são o mesmo. 105. Por outro lado, nas
causas em que se diz: "Norbano não diminuiu a majestade do
povo romano porque agiu de modo tresloucado em relação a
Cepião; com efeito uma justa dor do povo e não a ação do
tribuno causou aquela violência; além disso a majestade, na
medida em que é a grandeza do povo romano, foi antes
aumentada que diminuída ao ser assegurada por ele por
direito e graças a seu poder"152. E responde-se assim: "A
majestade está na dignidade do império e do nome do povo
romano, à qual diminuiu aquele que pela força da multidão
leva as coisas à sedição"153. Então, do debate surge como
ponto realmente em questão se acaso diminui a majestade
quem, pela vontade do povo romano, fizer uma coisa grata e
151 L. Opímio, cônsul em 121 aC, baseado em um decreto do Senado, tomouas armas e matou C. Graco e vários de seus partidários. Foi acusadopelo tribuno Q. Décio de crime de lesa majestade e defendido aabsolvido pelo cônsul Caio Carbão.152 Cícero dá exemplo de um motivo que contesta o status de definição; nocaso, uma questão que discute a majestade do povo romano.153 Agora, um exemplo de fundamento, em relação ao mesmo status.
60
justa, usando a força154. 106. E nas causas em que se julga
a qualidade da ação, Opímio, por exemplo poderia dizer:
"Matei Graco por direito e para salvação de todos e
conservação da coisa pública"155. Décio responderia: "Com
certeza nem mesmo um cidadão tão criminoso como Graco pode
ser morto por direito sem antes um julgamento"156. Então
resulta do debate: "Poderia ser morto de modo correto, para
a salvação da república, um cidadão que arruinou a cidade
mas não foi julgado"157. Nesse caso, os debates que tratam
de controvérsias marcadas por personagens e circunstâncias
determinadas, são reconduzidas novamente à forma e método
de uma discussão geral, ou tese158.
107. Os fundamentos mais incisivos devem questionar se
há contraposições à defesa num texto escrito, por exemplo,
de uma lei ou de um testamento, nas próprias determinações
de um julgamento ou em alguma estipulação ou promessa. Por
certo, esse tipo de fundamento não ocorre nas conjecturas:
como o feito é negado, esse não pode ser confutado por um
escrito. E também a questão de definição não pode ser
contestada por um escrito pois, mesmo se é preciso definir
a força de uma palavra em um escrito (- como quando, em154 Depois do embate entre motivo e fundamento, chega-se ao ponto querealmente deve ser discutido no julgamento.155 Motivo.156 Fundamento.157 Esse é ponto que ralmente deve ser psoto em julgamento. Lembrar queCícero foi condenado ao exílio em 58 aC, sob acusação de ter executadoos conjurados de Catilina sem julgamento, graças a uma decisão doSenado.158 A questão de qualidade acaba aproximando a "causa" da "tese".
61
relação aos testamentos, procura-se o que se entende por
"provisões" ou quando, em relação à lei de edificações, o
que são “bens móveis”-), não o tipo de escrito, mas a
interpretação da palavra produz a controvérsia. 108. Quando
um escrito significa muitas coisas, por causa da
ambigüidade de uma ou várias palavras (de modo que quem se
contrapõe pode arrastar a significação do escrito tanto
quanto conseguir e desejar); ou quando, não havendo
ambigüidade, um escrito conduz das palavras à intenção e
pensamento do escritor, ou ainda, quando se pode apresentar
um outro escrito sobre o mesmo assunto, mas com uma posição
contrária, então o debate incorre numa discussão sobre o
próprio escrito. Se há ambigüidade, disputa-se o que
realmente está dito. Se se contrapõe a letra do escrito à
sua intenção, deve-se mostrar qual das duas, letra ou
intenção, o juiz deve seguir. Se dois escritos se
contradizem, deve-se mostrar qual dos dois tem mais valor.
109. E quando o resultado do debate é finalmente
constituído, o orador deve ter clara para si uma tese159 em
torno da qual concentrem-se todas as argumentações,
retomadas a partir dos tópicos da invenção. E, ainda que
para quem deve escolher esses os tópicos latentes seja
suficiente conhecer os lugares comuns que são como que
estoque de argumentos, tratemos, todavia, dos lugares
específicos para as causas determinadas.
159 Propositum, ou seja, uma questão indefinida.
62
110. Assim, na conjectura, quando o réu está
desmentindo a acusação, o acusador (e uso aqui acusador no
lugar de qualquer orador160 e demandante; com efeito, esse
mesmo tipo de controvérsia pode aparecer até nas causas sem
acusação), deve tratar inicialmente de duas coisas: a causa
do feito que ele alega e seu resultado161. Denomino causa, o
motivo para fazer algo, e indícios resultantes, aquilo que
decorre do que foi feito.
A divisão das causas já foi apresentada
anteriormente162, no tópico do aconselhamento. 111. Com
efeito, as coisas que eram prescritas para tomar uma
decisão sobre um tempo futuro parecem, por isso, ter também
utilidade ou capacidade para produzir algo; quem discute se
algo foi feito ou não deve retomá-las163. Demonstre que
foram úteis para aquele que argumenta e puderam ser
produzidas por ele. A conjectura de utilidade164 é reforçada
quando se diz que aquilo sobre o que se argumenta foi feito
pela esperança de obter bens ou pelo medo de males; mas
isso é mais contundente quando se destaca tanto a utilidade
quanto a capacidade.
112. Os movimentos de ânimo também estão relacionados
160 Actor: aquele que executa a actio retórica.161 Euentus: resultado.162 Cf. 93 ss.163 O feito realizado no passado, em certo instante, foi objeto dedecisão futura. Assim, os gêneros judiciário e deliberatvo têm suasligações.164 Coniectura: resposta à questão “sitne?”. Na conjectura de utilidadedefende-se que algo foi feito porque era útil fazê-lo.
63
aos motivos de uma ação. Por exemplo, uma ira recente, um
ódio antigo, um empenho em castigar, a dor de uma injúria,
o desejo de honra, o de glória, o de comando, o de riqueza,
os perigos, o temor, o dinheiro emprestado165, as
dificuldades da circunstância específica: um acusado que é
audaz, leviano, cruel, impotente, incauto, ignorante,
amante, um que estava com a mente alterada, embriagado, com
esperança de produzir algum resultado, com a expectativa de
abafar algo, ou, se tiver sido descoberto, de suprimir a
acusação, diminuir o perigo ou adiá-lo por muito tempo, se
a pena do julgamento é mais leve que o prêmio do feito ou
se o prazer do crime é maior que a dor da condenação166.
113. Por todas essas coisas confirma-se a suspeita de uma
ação encontrando-se no réu os motivos tanto de seu desejo
quanto de sua capacidade. Quanto ao desejo, procura-se
apontar a utilidade de adquirir algo vantajoso ou evitar
algo desvantajoso, sendo que a isso parece ter impelido a
esperança, o medo, ou algum outro repentino movimento de
ânimo que impeliu à fraude até mais rapidamente que
considerações sobre a utilidade. E assim, considere-se
explicado os motivos de uma ação.
114. C.F. Guardo e pergunto quais são os indícios que
165 Aes alienum: dinheiro emprestado.166 Cícero mostra paixões e movimentos de ânimo que podem ser usados naargumentação de uma conjectura, para persuadir que o feito aconteceuou não. Os movimentos de ânimo podem compor uma motivo para o feito.
64
disseste resultantes dos motivos.
C.P. Alguns sinais que são conseqüências de coisas passadas
e como que vestígios impressos do que foi feito167. Com
certeza eles levantam grande suspeita e são como que
testemunhos calados dos crimes. Certamente são mais
contundentes, pois os motivos parecem poder incriminar e
inquirir de modo geral a todos que pudessem ter apenas um
vago interesse na ação, mas os indícios referem-se
especificamente aos que estão sendo inquiridos como, por
exemplo, uma arma, uma pegada, sangue, alguma coisa solta
que pareça retirada ou arrancada, respostas inconstantes,
hesitações, indecisões, ter sido visto com alguém que
levanta suspeita, ter sido visto no próprio lugar em que
houve o crime, parecer pálido, com medo ou, ainda, alguma
coisa escrita, selada ou contratada. Com efeito, essas
coisas levam a uma suspeita de crime, já que se ligam ao
próprio momento do ato, a um momento anterior ou posterior.
115. Se, no entanto, esses indícios não existirem, é
necessário ressaltar os próprios motivos ou a condição de
poder ter cometido o crime, acrescentando argumentos mais
gerais: o acusado não estava fora de si a ponto de evitar
deixar indícios ou ocultá-los, ou a ponto de agir tão
abertamente que largasse uma marca para incriminação.
Contra esse tipo de argumento pode-se responder também com
167 Cf. De or. II.170, Top. 53.
65
um argumento comum: a audácia é amiga da temeridade, não da
prudência. 116. E também com aquele outro argumento próprio
da amplificação: não se deve esperar até que o acusado
confesse, as acusações devem ser provadas por argumentos;
e aqui podem-se apresentar até exemplos.
117. E isso basta quanto aos argumentos. Se, por outro
lado, existir também a possibilidade de testemunhos,
primeiramente deve-se louvar essa própria classe de provas
e dizer que o réu se acautelou para que não pudesse ser
apanhado por argumentos, mas não pôde evitar os
testemunhos; depois, deve-se elogiar cada um dos
testemunhos (e já se falou sobre o que é louvável168); em
seguida, lembrar que num argumento sólido (porque, todavia,
muitas vezes é falso) pode-se, corretamente, não acreditar
e num homem bom e sólido, sem vício do juiz, não se pode
deixar de crer. Mesmo se os testemunhos forem de pessoas
pouco conhecidas ou pouco poderosas, diga-se que não se
deve pesar a credibilidade a partir da fortuna, que os mais
ricos testemunhos de qualquer coisa são aqueles que podem
saber algo sobre o que está em julgamento. Se, por outro
lado, os testemunhos foram tomados sob tortura ou a petição
para que sejam tomadas ajudar a causa, primeiramente é
preciso validar esse procedimento, falando do poder da dor,
da opinião dos antepassados que, se não o aprovaram por
completo, certamente não o repudiaram. 118. Lembrem-se as
168 Cf. 71ss.
66
instituições dos atenienses e dos ródios, homens
doutíssimos entre os quais (o que é muito cruel) até homens
livres e cidadãos são torturados; lembrem-se as
instituições dos nossos homens mais prudentes, que embora
não permitissem a tortura de escravos nos casos contra o
senhor, permitiram-na nos casos de incesto e na conjuração
que foi feita durante meu consulado169. Ridicularize-se
mesmo as discussões que costumam ocorrer para invalidar os
testemunhos sob tortura e diga-se que são premeditadas e
pueris.
Assim, deve-se estabelecer a crença de que os
testemunhos são cuidadosos e sem envolvimento e o que foi
dito sob tortura deve ser ponderado pelos argumentos e pela
conjectura como um todo. E essas são, de modo geral, as
partes da acusação.
119. É próprio da defesa, primeiramente enfraquecer os
motivos: afirmar que não existiram, ou não são tantos, ou
não são motivos só para o acusado, ou que ele poderia ter
conseguido o mesmo de um modo mais fácil, ou que ele não
tem esses costumes, não tem esse tipo de vida, que seus
movimentos de ânimo foram nulos ou não tão desmedidos.
Refutará a capacidade de executar o crime170 se demonstrar
que faltaram forças, auxílios, recursos, riquezas, que a169 Cícero foi cônsul em 62 aC., ano em que Catilina organizou umaconjuração, abortada pela ação do primeiro. Os discursos de Cïcero naocasião, As Catilinárias, ficaram famosos. Salústio também escreveu sobre oepisódio na Conjuração de Catilina.170 Facultas: capacidade, no caso, de executar o crime.
67
circunstância foi adversa, o lugar não propício, os
espectadores muitos, em nenhum dos quais poderia confiar;
ou que ele não foi ingênuo a ponto de fazer o que não
poderia ocultar, nem estava tão fora de si a ponto de
desprezar as penas e os julgamentos. 120. Enfraquecerá os
indícios dizendo que não são vestígios inequívocos coisas
que, mesmo se não tivesse ocorrido crime algum, poderiam
ser encontradas; discorrerá sobre esses pontos um a um,
defenderá que antes são próprios do que ele mesmo diz ter
acontecido do que do crime acusado; se alguns desses pontos
são também usados pelo acusador, que eles devem antes
contar em favor de alguém em perigo do que contra sua
salvação. A partir dos tópicos de censura dos quais antes
se falou171, refutará em geral, e o quanto puder em
particular, as provas por testemunho e por testemunho sob
tortura.
121. Nesse tipo de causa172, os exórdios do acusador
devem levantar suspeitas que levem à cólera, denunciar o
risco para todos de traições, excitar os ânimos para que
prestem atenção. Já o réu deve começar queixando-se de uma
acusação movida por suspeitas forjadas e, também ele, para
o risco comum e as traições que vêm do acusador. Os ânimos
serão aliciados para a misericórdia e a benevolência dos
juízes será incitada modicamente.
171 Cf. 33 e 44.172 Causa conjectural. Cícero passa a tratar de cada parte do discursona causa conjectural.
68
A narração do acusador será como que uma explicação
desconfiada, ponto por ponto, da ação realizada,
desmontando todos os argumentos, ofuscando todas as
defesas. O defensor deve narrar todos os eventos, quer
tenham sido deixados de lado, quer tenham sido ofuscados
pelos argumentos das suspeitas.
122. Ao confirmar argumentações próprias e refutar as
contrárias, muitas vezes o acusador deve incitar os
movimentos de ânimo e o réu, abrandá-los.
E na peroração, um e outro têm uma tarefa muito
importante: o acusador deve recapitular os argumentos e
ligá-los todos a um ponto comum; o acusado, se ao responder
já tiver esclarecido totalmente a causa, deve enumerar os
argumentos adversários e enfraquecê-los um a um e fazer em
seguida um apelo final aos juízes.
123. C.F. Pareço já conhecer de que modo a conjectura deva
ser tratada. Agora ouçamos a respeito da definição.
C.P. Preceitos comuns são dados nesse gênero ao acusador e
ao defensor. Com efeito, é necessário que vença aquele dos
dois que, ao definir e descrever com a palavra, penetrar
mais no sentimento e na opinião do juiz, o que tiver
observado mais e com maior propriedade a força comum da
palavra e a preceituação que os que ouvem tomarão nos
ânimos como voluntária.
69
124. Esse gênero não é tratado argumentando, mas como
que explicando e examinando com a palavra. Se contra um
réu, absolvido por dinheiro e novamente convocado, o
acusador definir que prevaricação é qualquer tentativa de
corrupção do julgamento efetuada pelo réu e, por outro
lado, o defensor definir que não qualquer uma, mas apenas a
corrupção do acusador, surgirá, então, um debate
prioritariamente sobre a palavra, em que, ainda que a
definição do defensor se aproxime mais propriamente do
costume e do sentido do fala comum173, a do acusador,
todavia, apóia-se na sentença da lei. 125. Com efeito, o
acusador nega que seja preciso provar que aqueles que
escreveram as leis deveriam separar corrupção de qualquer
envolvido e corrupção do acusador. Apóia-se na eqüidade, já
que a lei deveria ser escrita visando a aplicação geral;
tudo aquilo, então, que abarcasse a corrupção de
julgamentos diz-se que a lei indicou com a única palavra de
prevaricação. 126. O defensor contesta com o que é costume
na fala comum e aumenta a força da palavra e esclarece seu
sentido seja referindo-se a uma contrária (por exemplo,
acusador de boa fé costuma ser usado como o contrário de
prevaricador), seja referindo-se às conseqüência dessa
denominação (porque um voto com a letra P costuma ser usado
no julgamentos em relação ao acusador174); seja referindo-se
173 Sermonis: fala comum.174 Quod ea littera de acusatore solet dari iudici: porque essa letra costuma serentregue ao juiz em relação ao acusador. O texto latino é um tanto
70
à própria palavra, porque indica aquele que nas causas em
que as partes se opõem parece estar em uma e outra
posição175. Mas, todavia, também o defensor deve recorrer
aos lugares da eqüidade, à autoridade dos julgamentos
prévios, à possibilidade de pôr fim a um perigo. Para os
dois vale o preceito: quando cada um tiver definido o
melhor que puder tanto o sentido comum como o significado
da palavra, então confirmará a sua definição e
interpretação com exemplos dos que usaram o termo com o
mesmo sentido.
127. E para o acusador, neste gênero de causas, aquele
lugar comum: deve-se permitir pouco que aquele que confessa
a respeito da coisa defenda-se pela interpretação da
palavra. O defensor pode apoiar-se não só na eqüidade que
propus, mas também estabelecer uma própria, queixando-se
que o réu é perseguido não pela coisa, mas pela depravação
da palavra. Em tal gênero, o defensor poderia enumerar a
maioria dos tópicos da invenção. Ainda que os dois usem
situações paralelas, contrárias e conseqüentes, todavia o
réu, se a causa não for completamente absurda, o faz com
mais freqüência. 128. Para amplificar, tanto quando desejam
falar afastando-se da causa176, quanto quando peroram, devemobscuro; optamos pela interpretação de Henri Bornecque in CICËRON. Divisionde làrt oratoire/Topiques. Texte établi et traduit par Henri Bornecque.Parias, ‘Les Belles Lettres’, 1960, p.49.175 Vare: contrariamente; de uarus, o que tem pernas voltadas paradentro. Provável referência à uma suposta ligação etimológica entrepraeuaricator e uarus,176 "Quando se afastam da causa", ou seja, durante a digressão.
71
levar ao ódio, à misericórdia ou, de modo geral, devem
mover os ânimos dos juízes com as mesmas coisas que foram
apresentadas antes177, desde que assim requeiram quer a
eminência do assunto quer a inveja ou dignidade dos
envolvidos.
129. C.F. Entendo isso; agora desejaria ouvir sobre as
coisas que, na discussão sobre a qualidade, convém procurar
argüindo um e outro lado da questão.
C.P. Nesse gênero, os que são acusados confessam que
fizeram aquilo mesmo por que estão sendo censurados. E,
como alegam que agiram por direito, acabamos tendo que
tratar do próprio direito. Esse se divide em duas partes
primeiras, a natureza e a lei. A força de cada tipo está
distribuída em direito divino e humano, dos quais um é
próprio da eqüidade, outro da religião. 130. O sentido de
eqüidade é duplo. Por um lado, é o princípio direto do que
é verdadeiro e justo e, como se diz, do eqüitativo e do
bom. Por outro, diz respeito à possibilidade de retificar
um reconhecimento, que é denominado favor, quando se trata
de um benefício, e punição, quando se trata de injustiça. E
essas coisas são comuns à natureza e à lei. São próprias da
lei não só aquelas que foram escritas, mas também aquelas
que, sem letras, são preservadas pelo direito dos povos ou
177 Cf. 52 ss.
72
pelo costume dos antepassados. Dos direitos escritos, um é
privado, outro público. Fazem parte do direito público
leis, consultas ao Senado, tratados; do privado, títulos,
pactos, contratos, promessas. As coisas que não foram
escritas são sustentadas pelo costume, pelas convenções e
como que consenso dos homens e o mais importante é que
mantenhamos nossos costumes e nossas leis do modo como
foram prescritos pelo direito natural.
131. E como já foram mostradas brevemente algumas
fontes de eqüidade, deveremos considerar, nesse tipo de
causa de qualidade, o que deve ser falado nos discursos a
respeito da natureza, das leis, dos costumes dos
antepassados, do afastamento da injustiça, do seu castigo,
de todo assunto do direito. Se alguém por imprudência,
necessidade ou acaso, tiver feito por iniciativa e vontade
próprias algo em relação a que não se pode esperar suplicar
perdão, deve-se pedir uma concessão178, e essa é tirada da
maioria dos tópicos da eqüidade.
Falei, o mais brevemente que pude, a respeito de todo
tipo de controvérsia, se tu não perguntas algo além disso.
132. C.F. Sem dúvida, a única coisa que vejo restar é: como
tratar a qualidade179, quando a disputa versa sobre
escritos.
178 Pedir licença, ou seja, mostrar que, nas circunstâncias em questão,o feito é permitido.179 Quale sit?, a questão de qualidade.
73
C.P. Entendes corretamente; com efeito isso exposto, terei
cumprido todo a tarefa que prometi.
Assim, quando se trata de escritos ambíguos, os
preceitos são comuns aos dois adversários. Com efeito,
ambos defendem que a significação na qual o próprio se
apóia é digna da prudência do escritor. Os dois defenderão
que aquilo que o adversário diz dever ser entendido é
absurdo, inútil, iníquo, torpe, ou mesmo, que difere dos
demais escritos de outros ou, se for o caso, principalmente
dos do próprio adversário. Defenderá que o que ele próprio
sustenta, tanto o tema quanto e sentido, qualquer homem
justo e prudente, se partisse do nada, poderia ter escrito,
mas de maneira mais completa; 133. que o entendimento que
propõe não tem armadilha ou vício; e se provassem que é o
contrário disso, seguir-se-iam muitas coisas viciosas,
tolas, iníquas, contraditórias.
Quando o escritor parece ter sentido uma coisa e
escrito outra, será preciso que aquele que se apóia no
escrito, exposta a questão, recite-o; depois, inste o
adversário, repita e reafirme, pergunte se o adversário
negará mesmo o escrito ou, ao contrário, desmentirá o
feito. Por fim, chamará o juiz à evidência da força do
escrito. 134. Tendo usado esta confirmação, amplificará o
discurso elogiando a lei e confutará a audácia daquele que,
embora tendo feito e confessado em público o que se opõe à
74
lei, ainda assim comparece para defender o que fez. Em
seguida, enfraquecerá a defesa que afirma que o escritor
desejou e sentiu uma coisa, escreveu outra, dizendo que não
se pode admitir que a intenção do legislador seja explicada
por qualquer coisa que não a lei. Por que assim teria
escrito se assim não fosse sua intenção? Por que o
adversário despreza coisas que estão explicitamente
escritas e defende outras que não se acham escritas em
parte alguma? Por que julgará que homens tão prudentes, ao
escrever, poderiam ser acusados de suma estupidez? O que
teria impedido o escritor de excetuar o que o adversário
diz que acabou ficando de fora? 135. Usará exemplos em que
o mesmo escritor ou, se não o puder, outros explicitaram
que deveria ser excetuado aquilo que o adversário diz ter
ficado de fora. Também, deve-se procurar a razão, se se
puder encontrá-la, de não ter sido excetuado. Se se diz que
a lei é injusta ou inútil para decisões futuras, motivos há
tanto para respeitá-la quanto para anulá-la. Enfim, a voz
do adversário e da lei não se entendem. Depois, para
amplificar, deve-se falar de modo grave e veemente a
respeito da preservação das leis, do perigo para as coisas
públicas e para as privadas, e isso tanto na peroração
quanto em outros pontos do discurso.
136. E aquele que defender a si mesmo usando a
intenção e a vontade da lei, presentes na deliberação e na
mente do escritor, defenderá que a força da lei não está
75
nas palavras ou nas letras, e elogiará a lei dizendo que
ela não excetuou nada para que não propiciar refúgio às
culpas e para que o juiz interpretasse o sentido de
qualquer lei em relação ao feito específico. Em seguida,
deverá usar exemplos nos quais toda a eqüidade mostre-se
prejudicada se for medida pelas palavras e não pelas
intenções da lei. 137. Depois, incitará o ódio do juiz
contra esse tipo de malícia e calúnia, queixando-se da
inveja. E se surge um motivo para alegar imprudência,
devida não a um delito, mas ao acaso ou à fatalidade,
pontos que tratamos pouco antes180, deve-se rogar contra a
dureza das palavras usando a eqüidade da intenção.
Se, por outro lado, os escritos diferirem entre si, a
arte é tão entrelaçada e as coisas são tão interligadas e
convenientes entre si, que os preceitos sobre os escritos
ambíguos, que demos antes181, e igualmente os sobre e
intenção e a letra, que demos há pouco182, deverão ser
aplicados neste terceiro tipo de problema. 138. Pois, pelos
lugares com que defendemos, tratando de um escrito ambíguo,
o entendimento da lei que nos é favorável, por esses mesmos
lugares nossa lei deve ser defendida das leis que se lhe
opõem. E em seguida, devemos trabalhar para defender a
intenção de um escrito, as palavras de outro. Assim, as
180 Cf. 131.181 Cf. 132.182 Cf. 136.
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coisas que há pouco183 preceituamos a respeito das palavras
e da intenção de um escrito também podem ser aplicadas
aqui.
139. Foram expostas para ti todas as partições
oratórias que, por certo, floresceram em meio àquela nossa
Academia, sem a qual não poderiam ser encontradas,
entendidas e tratadas. Pois, o próprio dividir, definir e
discernir os elementos que compõem a ambigüidade, conhecer
os lugares dos argumentos, concluir a própria argumentação
e, a partir de alguns pontos assumidas, julgar e distinguir
as coisas verossímeis das inacreditáveis, censurar as
coisas mal assumidas ou mal concluídas, discuti-las
secamente, como aqueles que são chamados dialéticos ou,
como convém ao orador, mostrá-las demoradamente, tudo isso
é próprio daquela prática da arte de argumentar sutilmente
e falar copiosamente184. 140. A respeito das coisas boas,
más, eqüitativas, injustas, úteis, inúteis, honestas,
torpes, que capacidade ou abundância o orador pode ter, sem
as artes que tratam de questões mais amplas185?
Assim, essas coisas que expus fiquem para ti , meu
Cícero, apenas como indícios daquelas fontes. Se te
aproximares delas, tendo a nós ou a outros como guias,183 Cf. 134.184 Cf. referência a Demétrio Falério no De officiis I.3.185 Artes das coisas maiores, ou seja, artes que tratam de questõesgerais, sem determinação de lugar, tempo, atores. Provável referênciaaos estudos da física, da ética, da geometria, da dialética. Odircurso não deve acontecer sem o conhecimento dessas artes. O oradornão deve saber apenas da causa que está tratando.
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