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ISSN: 19837429 n.11 março de 2013 Revista Litteris www.revistaliteris.com.br ISSN: 19837429 Março de 2013 N.11 265 AUERBACH REVISITADO PELA CRÍTICA HISTORIOGRÁFICA: O CASO DOM QUIXOTE Janira Feliciano Pohlmann (PPGHIS UFPR/NEMED) Eliane Veríssimo Santana (PPGHIS UFPR/NEMED) Rodrigo Barbosa Schiavinato (PPGHIS UFPR/NEMED) Elaine Cristina Senko. (PPGHIS UFPR/NEMED) 1 Resumo: O presente artigo propõe uma análise e reavaliação sobre um dos capítulos da obra Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental, escrita pelo filólogo e crítico literário alemão Eric Auerbach (1892-1957), intitulado A Dulcinéia Encantada. Nesse capítulo encontramos uma série de considerações analíticas propostas por Auerbach sobre a obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616). Nosso estudo, dessa forma, apresenta-se como um convite à reflexão sobre as relações entre a literatura e a história, campos e disciplinas autônomas, mas que se entrecruzam em diversos e importantes momentos. Palavras-chave: Eric Auerbach; Miguel de Cervantes; Dom Quixote; Mimesis; Dulcinéia Encantada. AUERBACH REVISITED BY THE HISTORIOGRAPHICAL CRITICAL: THE CASE OF QUIXOTE Abstract: This article proposes an analysis and revaluation about one of the chapters of the book Mimesis: the representation of reality in Western Literature, written by the 1 Janira Feliciano Pohlmann é Mestre em História e atualmente é doutoranda em História da Antiguidade Tardia pelo PPGHIS UFPR sob orientação do Professor Doutor Renan Frighetto. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail: [email protected]; lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4230838A1 Eliane Veríssimo Santana é mestranda em História Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail: [email protected]; lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4228463U2 Rodrigo Barbosa Schiavinato é Mestre em História e atualmente é doutorando em História Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes. É pesquisador pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail: [email protected]; lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4260219T6 Elaine Cristina Senko é Mestre em História e atualmente é doutoranda em História Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail: [email protected]; lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=W0140558

AUERBACH REVISITADO PELA CRÍTICA HISTORIOGRÁFICA: O CASO DOM QUIXOTE

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AUERBACH REVISITADO PELA CRÍTICA HISTORIOGRÁFICA: O CASO

DOM QUIXOTE

Janira Feliciano Pohlmann (PPGHIS UFPR/NEMED)

Eliane Veríssimo Santana (PPGHIS UFPR/NEMED)

Rodrigo Barbosa Schiavinato (PPGHIS UFPR/NEMED)

Elaine Cristina Senko. (PPGHIS UFPR/NEMED)1

Resumo: O presente artigo propõe uma análise e reavaliação sobre um dos capítulos da

obra Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental, escrita pelo

filólogo e crítico literário alemão Eric Auerbach (1892-1957), intitulado A Dulcinéia

Encantada. Nesse capítulo encontramos uma série de considerações analíticas propostas

por Auerbach sobre a obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel

de Cervantes Saavedra (1547-1616). Nosso estudo, dessa forma, apresenta-se como um

convite à reflexão sobre as relações entre a literatura e a história, campos e disciplinas

autônomas, mas que se entrecruzam em diversos e importantes momentos.

Palavras-chave: Eric Auerbach; Miguel de Cervantes; Dom Quixote; Mimesis;

Dulcinéia Encantada.

AUERBACH REVISITED BY THE HISTORIOGRAPHICAL CRITICAL: THE

CASE OF QUIXOTE

Abstract: This article proposes an analysis and revaluation about one of the chapters of

the book Mimesis: the representation of reality in Western Literature, written by the

1 Janira Feliciano Pohlmann é Mestre em História e atualmente é doutoranda em História da

Antiguidade Tardia pelo PPGHIS UFPR sob orientação do Professor Doutor Renan Frighetto. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail:

[email protected];

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Eliane Veríssimo Santana é mestranda em História Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação

da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos

Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail: [email protected];

lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4228463U2

Rodrigo Barbosa Schiavinato é Mestre em História e atualmente é doutorando em História

Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes. É

pesquisador pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail:

[email protected];

lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4260219T6 Elaine Cristina Senko é Mestre em História e atualmente é doutoranda em História Medieval pelo

PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. É pesquisadora

pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail:

[email protected];

lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=W0140558

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German philologist and literary critic Eric Auerbach (1892-1957), entitled The

Enchanted Dulcinea. In this chapter we find a series of analytics considerations

proposed by Auerbach on the work El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, by

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616). On this way, our study is an invitation to

reflect on the relationship between literature and history, autonomous fields and

disciplines, but that intersect at various and important times.

Keywords: Eric Auerbach; Miguel de Cervantes; Don Quixote; Mimesis; Enchanted

Dulcinea.

A sabedoria de Dom Quixote não é a sabedoria de um doido; é o entendimento, a

nobreza, a decência e a dignidade de um homem

prudente e equilibrado... (AUERBACH, 2009, p.312)

Talvez esta sentença do filólogo e crítico literário alemão Erich Auerbach (1892-

1957), presente no capítulo A Dulcinéia Encantada da obra Mimesis, condense os

elementos mais encantadores da obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha,

de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616): a loucura e o equilíbrio de Dom

Quixote. Noções contraditórias? De forma alguma; sob nosso ponto de vista,

complementares2.

Seguindo os princípios do metiê do historiador, antes de nos aprofundarmos

numa análise da obra de Cervantes e da crítica de Auerbach acerca dela, propomos uma

análise inicial sobre o contexto de elaboração da obra cervantina, tão consagrada pela

literatura mundial. Concomitantemente, sugerimos um rápido passeio pela vida de seu

autor, Miguel de Cervantes.

Conforme afirma o catedrático de literatura espanhola Jean Canavaggio3, temos

pouco conhecimento sobre a infância de Miguel de Cervantes e também ignoramos

muitas das motivações acerca de suas decisões. Distinguimos apenas alguns fatos: 1547

foi o ano de seu nascimento, em Alcalá de Henares; em 1569, iniciou sua carreira de

escritor e, neste mesmo ano, partiu para a Itália; alistou-se, em 1571, no exército de “La

2 O capítulo A Dulcinéia Encantada foi acrescentado à tradução da obra Mimesis para a língua espanhola

apenas em 1949, três anos depois da primeira edição em alemão. 3 CANAVAGGIO, Jean. Cervantes en su vivir. s/d. Disponível em:

<http://www.cervantesvirtual.com/bib/bib_autor/Cervantes/biografia.shtml> Acesso em: 16/10/2012.

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Santa Liga”; regressou para a Espanha em 1575; dedicou-se a peregrinações por

Andaluzia entre 1587 e 1597; em 1608, ao retornar a Madri, passou a dedicar-se

definitivamente às letras; morreu em 1616.

Dentre suas obras, destacamos as quatro composições poéticas incluídas por seu

professor, Juan de López de Hoyos, na Relación (1569) – publicada na ocasião da morte

da rainha Isabel de Valois; La Galatea (1585); La casa de los celos (1593); Novelas

ejemplares (1613); Ocho comedias y ocho entremeses (1615); El ingenioso hidalgo Don

Quijote de la Mancha (a primeira parte é publicada em 1605 e a segunda em 1615); e

Los trabajos de Persiles y Sigismunda (obra publicada pela viúva de Cervantes, em

1617 – quase um ano após a morte do autor).

As penúrias econômicas e os questionamentos que assolavam a vida de

Cervantes estão implícitos em toda sua principal obra: Don Quijote de la Mancha.

Conforme mencionado, este livro é composto de duas partes, sendo a primeira delas

publicada em 1605 e a segunda, em 1615. Ressaltamos que, nesta época, Cervantes já

tinha a sua disposição uma língua delineada: o castelhano. Este idioma se apresentava

ao autor com toda sua riqueza pouco explorada até então, afinal, há pouco o castelhano

se completara e se afastara da língua romance4, ganhando características e gramática

próprias.

A partir da leitura das aventuras quixotescas, notamos um autor que se

apresenta imerso em seu contexto, um homem de saber que sofreu com as reviravoltas

de sua vida e que se dedicou a observar o mundo ao seu redor, mesmo que,

frequentemente, a compreensão sobre este faltasse. Lembramos que, a partir do século

XV, as constantes batalhas que exigiam esforços cavaleirescos tornaram-se cada vez

mais escassas. A nova situação política instaurada, especialmente após a conquista de

Granada (1492) pelos reis cristãos, gerou um grande problema social, especialmente em

Portugal e Espanha: a ociosidade da cavalaria. A Península Ibérica deparou-se, então,

com uma grande questão: o que fazer com os cavaleiros? Este grupo, outrora tão ativo,

perdeu seu prestígio, o que gerou um significativo agravo social, abordado de forma

4 Entendemos que “língua romance” é uma língua em transformação, uma língua intermediária, portanto,

não possui gramática e quase não há refinamentos, como, por exemplo, as conjunções.

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primorosa no subtexto de Cervantes. Desde o século XIV, uma nova nobreza se

configurava e buscava seu lugar nas sociedades ibéricas. Dom Quixote representava o

brado daqueles que perdiam o seu espaço perante um novo feitio social. Tais

dificuldades foram resolvidas, sobretudo, pela via da expansão marítima.

Esta argumentação sustenta nossa divergência em relação ao pensamento de

Erich Auerbach quando este anuncia que “encontra-se, pois, muito pouco de

problemático ou de trágico no livro de Cervantes [...], o livro todo é um jogo, no qual a

loucura se torna ridícula quando exposta a uma realidade bem fundamentada”5. Sem

dúvidas, Cervantes estava mergulhado, como homem de seu tempo, nos problemas que

afligiam a sociedade espanhola do final do século XVI e início do XVII. Apontamos

que estas agonias atormentavam a vida do autor de forma indireta e direta, visto que ele

também havia combatido os turcos otomanos em prol da Coroa Espanhola na Batalha de

Lepanto, no ano de 1571. Tal enfrentamento custou-lhe uma lesão em sua mão

esquerda, tão grave a ponto de inutilizá-la6. Portanto, consideramos a loucura em Don

Quijote de la Mancha, tida como “ridícula” por Auerbach, como parte de um elemento

narrativo trágico que visa apresentar toda a complexidade daquela realidade conturbada,

repleta de dúvidas, e assim, convidar o leitor a refletir sobre este cenário. Por este

motivo, aludimos que os elementos apontados nas primeiras linhas deste artigo – a

loucura e o equilíbrio – são complementares, inerentes à realidade humana – nunca

linear, mas, sim, constituída de elementos que se interpolam, se conectam e, às vezes,

até se contradizem.

Auerbach7 percebeu na relação entre Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho

Pança, uma relação contrastante e cômica, típica do gênero da comédia, carregada de

caricaturas e motivos jocosos. Relação, esta, ocasionada pelas antagônicas visões de

mundo entre os personagens: visões tidas como idealistas, para Quixote, e realistas, para

5 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva

para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.310. 6 Alguns estudiosos afirmam que Cervantes teve sua mão amputada, porém, grande parte alude apenas à

inutilização do membro. 7 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva

para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.315.

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Sancho. Por outro lado, percebemos uma afinidade complementar entre estas

concepções de mundo. As percepções do cavaleiro quixotesco e de seu companheiro de

aventuras são partes da personalidade humana; contribuem uma com a outra para gerar

a multiplicidade intrínseca ao homem. Por isso, afirmamos que a obra de Cervantes

consegue unificar o trágico e o cômico, o ideal e o realista. Afinal, no universo

quixotesco, a natureza das relações humanas aparece por completo, em sua

complexidade vacilante, por vezes, tomada de certezas e valentia, em outras ocasiões,

dominada pelas dúvidas e pelo medo. Logo, loucura e equilíbrio se acomodam

perfeitamente no perfil de Dom Quixote e proporcionam ao leitor aventuras

inesquecíveis.

Neste ínterim, descartamos o pressuposto de “loucura ridícula” de Erich

Auerbach ao se referir a Dom Quixote e optamos por apreciar uma loucura moderada,

ou ainda, uma “loucura lúcida”, como a sugerida por Maria Augusta da Costa Vieira8.

Ao examinar o capítulo XVI da segunda parte do livro de Cervantes, Maria Augusta da

Costa Vieira sustentou que Dom Quixote era louco em suas ações, porém, cordato em

seus argumentos9.

Podemos pensar que esta noção de loucura moderada não estava bem

desenvolvida e se apresentava como um assunto de difícil compreensão no contexto de

Auerbach. Refletindo sobre esta questão, sabemos que por volta do século XVII, a

loucura passou a ser dominada e contida em um “espaço moral de exclusão”10

; até

então, os loucos encontravam-se distribuídos pela sociedade. Por vezes tido como

8 VIEIRA, Maria Augusta da Costa. Louco lúcido: Dom Quixote e o Cavaleiro do Verde Gabão. In:

Revista USP. São Paulo: USP, n.67, setembro/novembro 2005, p. 290. Disponível em

<http://www.usp.br/revistausp/67/21-vieira.pdf> Acesso em: 04/06/2012. 9 Para esta análise, destacamos um trecho de tal capítulo. Refere-se ao episódio em que o observador do

enfrentamento de Quixote contra os leões, Dom Diego de Miranda expressou sua inabilidade para

esclarecer as atitudes do cavaleiro andante: “ya le tenía por cuerdo, y ya por loco, porque lo que hablaba

era concertado, elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, temerario y tonto.” In: CERVANTES

SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. Edición íntegra y anotada.

Catalunya-España: Editorial Optima, S.L., 2003, II, XVI, p. 476. 10 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Tradução para o português: José Teixeira

Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p.12. Disponível em: <http://www.ufscar.br/cis/wp-

content/uploads/FOUCAULT-Michel.-A-hist%C3%B3ria-da-loucura-na-idade-cl%C3%A1ssica.pdf>

Acesso em: 03/06/2012.

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diferentes, é certo, todavia sua convivência social era frequente e inevitável. O

dramaturgo português Gil Vicente no início do século XVI escolheu o parvo (louco) e

os cavaleiros para o paraíso no Auto da Barca do Inferno. Lembremos que este

panorama de finais do século XVI e início do século XVII, em que os loucos estavam

socialmente espalhados, tornara-se palco para vida de Cervantes: um cenário do qual ele

era observador, sujeito ativo e autor de Don Quijote de la Mancha. Para

compreendermos melhor a clausura dos loucos presenciada nos tempos de Erich

Auerbach, podemos recorrer à obra História da loucura na Idade Clássica, de Michel

Foucault (primeira edição de 1961). Esta obra apresenta um caminho que, a partir do

século XV, iniciou uma coação à circulação dos loucos e, no século XVII, uniu a

loucura à lepra para serem tratadas como doenças. Foucault afirma que a loucura é uma

herança (não continuada) da lepra – isso em relação à forma de tratamento e de

controle/confinamento. A loucura, então, foi transformada em uma doença mental e

trancafiada em asilos.

Esta é a concepção de loucura examinada por Erich Auerbach: a loucura como

uma doença. E se Dom Quixote intercalava momentos de sanidade e loucura, ele não

seria totalmente louco, por isso, facilmente curável. Esta loucura evidente nas ações

quixotescas, que tanto incomodava o crítico alemão, deveria então ser encarcerada a fim

de que fosse tratada e extirpada. Tal pensamento era recorrente na sociedade ocidental

da época de Auerbach. Talvez esta concepção de loucura – tida como uma doença

mental que demandava clausura e tratamento – tenha justamente impossibilitado uma

análise mais profunda da loucura moderada, tão múltipla e complementar, enraizada em

Dom Quixote.

Lembremos, ainda, que um texto não se completa por ele mesmo, mas através

das leituras que o público faz dele. Possivelmente seja por este motivo que hoje

podemos mergulhar um pouco mais na loucura quixotesca, afinal, vivemos um

momento em que os “nossos loucos” estão retornando para dentro de nossas casas,

regressam a nossas vidas e ao convívio social. Neste ínterim, acreditamos que os

estudiosos contemporâneos do cavaleiro de Cervantes estão mais instrumentalizados

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para tentar compreender esta loucura moderada, noção que tem se afastado da

concepção de doença e necessita ser abarcada em seu cotidiano, em seus matizes. Estas

nuances são encontradas por toda a obra quixotesca.

Cervantes e a recepção da literatura cortês

O episódio de Quixote em que o fiel escudeiro Sancho engana o seu senhor ao

transformar uma rude camponesa, que utilizava um burro como meio de transporte, em

Dulcinéia (uma idealizada princesa) levanta a questão advinda de uma tradição

medieval de contextualização de utopias, em que determinados modelos de sociedade

eram imaginados à luz de demandas sociais concretas11

. Dulcinéia nos apresentou,

porém, elementos de seu próprio tempo, período em que o realismo adentrava na mente

dos escritores aliado a novas interpretações do idealismo platônico. A princesa da mente

de Dom Quixote é uma idealização perfeitamente compreensível se fosse verdadeira,

pois foi criada à imagem do círculo cortês conforme os padrões e modelos ideológicos

daquele grupo.

Dulcinéia representa a dama proibida oriunda do amor cortês, criada a partir dos

romances arturianos, impossível de ser atingida, idealizada pela impossibilidade de

concretização (conforme modelos cavaleirescos) e que move todas as ações e

pensamentos do cavaleiro Dom Quixote. O fato de a camponesa ser entendida pelo

cavaleiro como a princesa terrivelmente enfeitiçada por seus inimigos representa, ainda,

esta concepção cortesã do amor feminino aliada às praticas mágicas características do

folclore europeu, advindo de diferentes tradições, em que feiticeiros trabalhavam a

favor de reis e cavaleiros para resolver impasses com soluções mágicas. O episódio da

Dulcinéia encantada encontra sentido se levarmos em consideração que Dom Quixote

foi um reflexo dos romances em que feiticeiros eram personagens recorrentes. Outro

elemento que pode ser levantado em relação à inclusão de práticas mágicas no

pensamento de Dom Quixote foi a ocorrência, na Espanha, em Portugal e na Itália, do

recrudescimento da Inquisição contra pequenas seitas cristãs nascidas de comunidades

11 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. (II).

Edición íntegra y anotada. Catalunya-España: Editorial Optima, S.L., 2003, p. 438-439.

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populares e semi-letradas, justamente no período de confecção da obra de Cervantes.

Estas pequenas seitas populares misturavam elementos mágicos oriundos das tradições

pagãs com princípios judaicos/cristãos e em menor escala, islâmicos.

Podemos falar em cultura cômica popular e no quanto Dom Quixote se insere

nesta tradição que perdurou no Baixo Medievo e no Renascimento, mas a obra de

Cervantes não pode ser explicada apenas por este elemento tão debatido por Bakhtin.

Quixote pode ser considerado mais representante dos livros de cavalaria do que das

festas carnavalescas do povo em que a cultura oficial era satirizada. Neste, o

personagem seguia o ideal que a nobreza buscava, mas que as especificidades concretas

sociais não permitiam que fossem inteiramente aplicadas. Sancho, camponês alçado à

condição de escudeiro por Dom Quixote, pode ser considerado um representante

daquela sociedade que não mais correspondia aos heroísmos dos personagens

arturianos. A relação entre os dois revela elevada complexidade entre as idealizações

platônicas de um lado, e o realismo reforçado pela Reforma Protestante e Contra-

Reforma Católica de outro, e que trouxe para o campo teórico elementos individualistas

não percebidos em obras anteriores ao século XVI.

O cavaleiro Quixote possuía um sentido claro: adaptar para a realidade cotidiana

os modelos literários que o mesmo havia incansavelmente lido e que em determinado

momento modificaram a sua personalidade. Por mais que destoassem da realidade

concreta, todas as ações de Dom Quixote estão justificadas dentro das regras da

cavalaria. O personagem moldou diferentes situações ocorridas em várias circunstâncias

à luz de uma personalidade fixada em modelos prontos, porém maleáveis e bastante

modificados ao longo dos tempos. A realidade presente no livro, incluindo as fantasias

criadas por Quixote, é muito bem fundamentada. As ações dos personagens e suas

justificações são perfeitamente compreensíveis além de julgamentos dualistas, pois a

obra de Cervantes nos apresenta diferentes estilos, com cada qual apresentando suas

especificidades.

A criação do cavaleiro errante foi uma demanda do próprio protagonista da

história, um pequeno fidalgo preso à sua terra já no final da vida, sem grandes

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perspectivas de melhora e que havia encontrado um novo sentido para a sua existência

ao embarcar em uma aventura épica/cômico/trágica criada pela sua mente. Dom

Quixote encarnou as obras literárias que Cervantes criticou em seu romance. O embate

presente no livro não foi contra a cavalaria, mas contra a forma com que a cavalaria era

retratada naquelas novelas.

Para Auerbach a inserção no estilo trágico ou cômico não elucida de uma

maneira única a obra de Cervantes. Esta é mais bem explicada se analisada enquanto um

estilo de escrita elevado, com elementos nobres dos mais altos círculos intelectuais do

período. Os diálogos de Quixote e Sancho revelam o comportamento mais sublime e

almejado que o público da Corte poderia atingir. Se pudesse ser rotulada, a obra de

Cervantes estaria no campo da retórica épica, de tradição clássica, esteticamente bem

harmonizada e criada como uma composição musical. Don Quijote de la Mancha

representa um aperfeiçoamento deste estilo. Percebe-se que o autor espanhol misturou

em sua obra diferentes tradições literárias para efetivamente realçar o estilo elevado de

seu personagem, pois a partir do contraste das comparações, Cervantes estabeleceu o

seu modelo ideal, o épico de profunda inspiração nobiliárquica. A rude camponesa, com

a sua incredulidade ao presenciar a aproximação de Sancho e Quixote, foi o reflexo da

crítica que Cervantes estabeleceu ao estilo baixo. A cena, uma das mais cômicas da

obra, nos mostra dois universos diferentes representados pela idealização de um elevado

estilo tanto linguístico como comportamental em confrontação a um cotidiano pouco

brilhante de pessoas comuns e limitadas à própria condição social.

Esta cena transcrita de Don Quijote de la Mancha no início do texto de

Auerbach transita entre os estilos trágico e cômico, porém, sem deixar de ser sério. O

que se percebe é uma quebra estilística nos diálogos e nas ações dos personagens, algo

que confere o caráter irônico do fragmento, pois da junção entre os estilos elevado e

baixo, representados por Sancho, Quixote e a camponesa, resultou uma cena de

profunda ironia. O que importava a Quixote e a Sancho quando se aproximaram à

camponesa foi a total delimitação da ritualística cortesã. O estilo de Quixote, apesar da

aparente comicidade, permanece elevado, sublime, pois o cavaleiro realmente

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acreditava na princesa de seus pensamentos, embora para Sancho, embarcar naquela

concepção não passava de algo cômico e pitoresco, uma grande representação encenada

de forma paródica.

O cavaleiro cervantesco foi o resultado de personagens recorrentes nos romances

arturianos do século XVI, obras consumidas pelas pessoas letradas em período de

grande difusão literária após a invenção da imprensa. Ao mesmo tempo, Dom Quixote

era um indivíduo que tinha uma loucura moderada e sem sentido para aquela sociedade

que consumia aquele tipo de literatura. Muito provável que Cervantes tenha tido a

intenção de criar este paradoxo entre a literatura de cavalaria e os valores concretos

estruturais de sua época. Além disso, criticar os romances cavaleirescos a partir de um

personagem criado por este universo, mas inserido no mundo real, mostraria justamente

que a loucura de Quixote fazia parte de um conjunto de elementos inseridos no

imaginário daquela sociedade.

Dom Quixote era um pequeno fidalgo e só conhecia a realidade palaciana

através das obras de literatura. Ele jamais havia sentido concretamente a vivência dos

altos círculos nobiliárquicos e nem participado de aventuras parecidas com as dos heróis

literários. Suas idealizações foram fruto de sua imaginação e de suas concepções sobre o

que significava ser cavaleiro naqueles tempos. Podemos perceber no personagem a

mistura de demandas causadas pela frustração de uma vida camponesa comum com a

moral mais sublime de personagens como Rolando, Ivanhoé e El Cid, construções

inseridas em uma loucura muito bem justificada em sua contextualização, encarnadas

numa pessoa letrada e equilibrada, mas que possuía uma ideia fixa não condizente com

a realidade presente do lado de fora das páginas dos livros de cavalaria. No trecho de

Don Quijote de la Mancha selecionado por Auerbach para a análise deste capítulo, fica

mais evidente que estas imaginações foram criadas por uma pessoa que possuía uma

vivência que perpassava os romances lidos sistematicamente até a culminação do

delírio. Dom Quixote também queria dar novo sentido à sua vida concreta, mesmo que a

partir de aventuras idealizadas.

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Auerbach utilizou a expressão de “ideal encarnado”12

para se referir ao encontro

de Quixote com Dulcinéia, sentença que explica bem as intenções de Cervantes no

estabelecimento de suas relações entre o personagem do cavaleiro e a realidade com que

o mesmo se deparava. Todavia, este ideal contém uma complexidade de difícil definição

se levarmos em consideração a sátira contida em Don Quijote de la Mancha em relação

às novelas de cavalaria produzidas no período e, no seio desta crítica, elementos

sublimes que deveriam corroborar a boa literatura segundo as concepções de Cervantes.

O ideal encarnado na figura de Dulcinéia mostra a relação entre o ideal platônico de

beleza e a grotesca figura das três camponesas advindas de uma realidade oposta àquela

da sociedade cortesã. O texto de Cervantes, portanto, relata a confusão esvaziada de

sentido ao mostrar o embate entre realidades sociais, ideológicas, culturais e intelectuais

diferentes.

Na obra de Cervantes, propagam-se a critica a uma literatura, vista como

enfadonha, que não correspondia ao elevado estilo que deveria transparecer com os

valores mundanos de uma sociedade que, cada vez mais comercial, vinha perdendo os

valores presentes na literatura dos heróis. Em meio a este eixo principal, aparece a

figura de personagens comuns e que respondem às circunstâncias apresentadas de

acordo com as realidades cotidianas. A própria relação entre Quixote e Sancho nem

sempre foi harmoniosa e unida pelas relações de amor e fidelidade dentro da narrativa

cervantina. Para Auerbach, a maneira que Cervantes encontrou para a relação destas

diferentes esferas foi mostrar a teatralização das atitudes que nasciam da cabeça de

Quixote em meio à realidade em que se mostravam.

Auerbach considera Dom Quixote, e toda a sua aventura errante, através de uma

visão realista, cômica e que se afasta do trágico, justamente pelo seu aspecto de

comicidade. Segundo o crítico, a leitura romântica de Dom Quixote, determinou uma

interpretação da obra que considera o protagonista como um lunático que, através de seu

gosto por romances de cavalaria, imagina-se como um bravo cavaleiro que busca seguir

as lições que encontrava nesses romances, tentando assim, através de atos de bravura e

12 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva

para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.308.

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honra, como os ideais da cavalaria encontrados nesses romances, impor-se como

cavaleiro e defender as donzelas e os privados de liberdade (tal como encontramos em

várias passagens de Dom Quixote). Todavia, a visão que Auerbach realiza desse

romance baseia-se no fato de que tanto a loucura quando o desenrolar das cenas

contidas neste expressam, mais do que uma idealização romântica da ideia de cavalaria,

tem por objetivo o cômico. Dom Quixote é louco para dar um ar divertido e inusitado às

páginas, e segundo este, esse era o objetivo principal de Cervantes ao escrever a obra:

“Para Cervantes, um bom romance não serve a nenhum outro fim afora o divertimento

culto (…)”13

e “ele o vê, ele o constrói e se diverte às suas custas; também deve divertir

o leitor de uma forma cultivada”14

.

Conforme o filólogo alemão, a loucura de Dom Quixote é apenas um elemento

cômico que norteia todo o romance, e que, consequentemente não influencia de forma

alguma no concreto. As cenas se passam como descrições da realidade e do cotidiano

(como a cena do encontro com Dulcinéia, citada no início do capítulo), mas como essa

realidade é apreendida a partir da visão de um lunático, não há assim, no romance,

nenhuma crítica às particularidades significativas da época em que este foi escrito. A

realidade da época é fundamentada, porém o objetivo da disposição dessa realidade é

misturar-se com o pensamento difuso de Dom Quixote, transformando assim a obra em

um romance de cunho predominantemente cômico.

Auerbach, em sua análise crítica ao texto cervantino, destaca também a

sobreposição de estilos, uma vez que não apenas no trecho separado para a análise,

quando ao decorrer de toda a obra, há uma sobreposição de falas onde os estilos baixo e

elevado são misturados numa mesma sentença, a depender do personagem que está

participando. Na cena em questão, o crítico destaca essa mistura, comparando as falas

de estilo baixo das camponesas, enquanto Dom Quixote continua com o linguajar,

preservando assim o estilo cavaleiresco. Para Auerbach, isso acontece pois o objetivo de

13 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva

para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.319. 14 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva

para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.317.

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Cervantes é criticar os romances de cavalaria, entretanto, não o estilo do linguajar

cortês. Ao realizarmos uma primeira leitura do capítulo Dulcinéia Encantada de

Auerbach, percebemos uma determinada visão do autor que aponta, quase que

exclusivamente, os elementos acima citados.

Embora seja uma literatura de caráter tipicamente medieval, os romances de

cavalaria ficaram tão impregnados na mentalidade que ainda hoje encontramos esse

tema como um dos recorrentes da literatura e até nas linguagens midiáticas. Sua

sobrevivência deve-se certamente também a essa forma propagandística e ficcional de

transmissão. Porém, longe de ter se transformado apenas em uma idealização distante e

desvinculada da realidade, percebemos como traços desse ideal estavam presentes

durante todo o Renascimento, mesmo esse sendo considerado pela historiografia como

um movimento cultural de rupturas com a Idade Média. Huizinga15

afirma que nesse

período há uma mistura de elementos medievais – do ciclo arturiano, por exemplo – a

elementos da antiguidade, mas o ideal cavaleiresco de honra e culto aos heróis ainda é

mantido onde se confluem os elementos medieval e renascentista. Assim, Huizinga

considera que mesmo no período do Renascimento, existia demanda de escritores e

leitores que tratam esse tema e, como exemplo, podemos citar a versão portuguesa para

a Demanda do Santo Graal encontrada em fins do século XV e a versão castelhana de

1535 reeditada em Sevilha. Há ainda resquícios ligados a cultura feudal, que mesmo em

um momento em que este personagem já não existe da forma como a existente nos

séculos XI e XII, o imaginário desse grupo ainda persiste durante os séculos seguintes.

Citando uma parte de Le Jouvencel, romance escrito no século XV, baseado na vida de

Jean de Buiel, que lutou sobre a bandeira de Joana D'arc, Huizinga demonstra como

essas ideias ainda são constantemente referenciadas no século XV.

Mesmo se considerarmos a obra de Cervantes como sendo escrita visando uma

crítica à vulgarização do ideal de cavaleiro, sabemos que essa apreciação tem sua

fundamentação em uma sociedade permeada de resquícios de um grupo social derivada

da cavalaria, e que perdeu sua função social dentro da sociedade – em especial a

15 HUINZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.

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sociedade ibérica. Os bellatores, os quais antes possuíam uma função tão objetiva e

determinada nessa sociedade, veem-se por diversos motivos, como a formação de

exércitos profissionais e a inclusão de novas tecnologias, obsoletos, tornando-se assim

um problema social que é sentido mesmo séculos mais tarde. Assim, quando

consideramos Dom Quixote, podemos analisá-lo como uma crítica a esse grupo

antiquado dentro da sociedade ibérica. Quando Auerbach assegura que a maioria dos

leitores da obra tencionam interpretá-la como de uma “grandeza idealista, incondicional

e heróica”16

, procuramos, pelo contrário, examiná-la como uma crítica a esse grupo que

perde sua função nessa sociedade.

Cide Hamete Benengeli e o silêncio de Auerbach

Propomo-nos a analisar também o que consideramos um dos “silêncios” na

crítica literária de Eric Auerbach: a influência da Literatura Oriental – que tanto se

mesclou com a Literatura Ocidental - na obra ibérica Don Quijote de la Mancha, de

Cervantes.

Detectamos, na leitura do capítulo A Dulcinéia Encantada, a não profundidade

de conhecimento por parte do autor, Auerbach, em relação à cultura e à história da

Península Ibérica. De fato, na época em que escreveu, ou seja, finais do século XIX e

inícios do XX, a via de compreensão das culturas ainda estava sustentada pelo

pensamento iluminista: os países europeus do norte em estado de supremacia aos do sul

(como o caso de Espanha e Portugal). Como afirmamos anteriormente e novamente

ressaltamos, Auerbach incorre em falta ao assinalar que a obra cervantina é apenas de

entretenimento. Ora, se nos dirigirmos para a cultura espanhola na qual Cervantes está

imerso identificamos uma riqueza sem fim de aspectos, uma ponte entre as culturas do

Ocidente e Oriente. Hoje é necessário, portanto, rever este pensamento generalizante

proposto pelo filólogo alemão. Inclusive, acreditamos que tal ponto é um dos poucos

aspectos que devemos necessariamente revisar a respeito de sua obra prima, Mimesis,

16 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva

para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.307.

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escrita durante o seu exílio na Turquia. Justamente por essa estadia, espanta também

que ele não informe tal contato mantido com a cultura Oriental, seja através da possível

escrita indireta de autores orientalistas ou até mesmo uma análise mais acurada da fonte

de As Mil e Uma Noites, esta que tanto afetou a Literatura do Ocidente da Península

Ibérica. Porém, compreendemos que o véu iluminista o desviou da profundidade que é a

obra Don Quijote de la Mancha.

De que forma, então, podemos entrever a influência da cultura Oriental em Don

Quijote? Inicialmente, percebemos que a construção do herói Dom Quixote realizada

por Cervantes apresenta uma possível influência das aventuras orientais, as quais

possuem diante de si um mundo mágico criado pelo personagem principal e certo teor

dramático poético. Mas como poderiam tais referências de estilo oriental ter chegado até

Cervantes? Pois bem, o território espanhol teve em seu passado, entre os séculos VIII e

XV, a presença de populações muçulmanas que difundiram, na região, a cultura

oriental. Nesse sentido, a Espanha do século XVI e XVII se apresentava como um país

de tradição multifacetada, construída pela convergência direta e indireta da cultura

cristã, judaica e islâmica.

O personagem de Dom Quixote faz rir, claro, mas é a tensão dramática da

narrativa que paira sobre nós, seus leitores. Aspecto semelhante encontramos na obra de

As Mil e Uma Noites, na qual entrevemos, segundo a apreciação de Jarouche17

,

aventuras que proporcionam ao leitor diversão e entretenimento, mas também

entremeadas pela tensão da morte ou não de Sahrazad. Em Cervantes, pressentimos esse

sentimento da morte de Quixote também nos pensamentos sombrios de seu

companheiro, Sancho. Essa angústia, de que a vida real nos tome e tire de nossa

imaginação, aparece como ponto final no desfecho de ambas as narrativas. Talvez por

isso os contos se prolonguem tanto; no caso da obra de Cervantes temos a morte

“encenada” de Quixote ao final da narrativa, o que o conduz novamente para a

17 JAROUCHE, Mamede Mustafa. Uma poética em ruínas. Livro das mil e uma noites. vol. I: ramo

sírio/Anônimo. Tradução do árabe para a língua portuguesa por Mamede Mustafa Jarouche. 3 ed. São

Paulo: Globo, pp.11-35, 2006.

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realidade. Esta realidade que já não abarcava modelos ideais como Lancelot... Uma

realidade que ri deste passado, mas como vimos, continua a absorvê-lo até o século

XVIII.

No aspecto formal da narrativa de Don Quijote de la Mancha encontramos algo

muito caro a literatura de As Mil e Uma Noites: as camadas de narrativa. O ritmo de

descrição dos acontecimentos acompanha uma narrativa inicial que adentra outra e que

retorna à primeira. Esse movimento cíclico da escrita narrativa imerge o leitor dentro de

um mundo paralelo à realidade vivida, tal como se fosse algo correlacionado ao

ambiente onírico. Tanto que a alucinação de Quixote pode estar num nível onírico ou

deturpado, pois essas duas concepções estão misturadas na obra e podem resultar

também naquilo que já enunciamos como a loucura moderada. Indício disso é o

momento relembrado por Auerbach da obra de Cervantes (trecho citado de A Dulcinéia

Encantada) em que Quixote tem lucidez sobre o que está vendo e Sancho Pança o

instiga a retornar ao mundo da imaginação. Isso ocorre porque para Sancho Pança não

há mais motivos nesta realidade cinza e crua, e por isto tenta fazer Quixote acreditar que

não se tratam de lavradoras em seus burrinhos, além de que uma delas seria a amada de

Quixote, Dulcinéia, em seu cavalo e acompanhada de suas damas. A intensidade do

mundo imaginativo foi assimilada por Sancho Pança neste instante, ainda que este

permaneça lúcido entre os dois mundos, o real e o imaginativo, ao longo da narrativa. Já

em Quixote há a ocorrência de retornos, ou seja, espasmos, para a realidade palpável.

Os entrecortes para essa realidade palpável ocorre também na literatura de As Mil e

Uma Noites, quando o leitor é constantemente lembrado que Sahrazad, apesar de tudo,

ainda pode morrer.

Um interessante ponto de reflexão se faz presente no capítulo IX da Primeira

Parte, momento em que o personagem Quixote toma conhecimento de que um

historiador árabe, chamado Cide Hamete Benengeli, havia escrito uma obra chamada

Don Quijote de la Mancha. Tal notícia é recebida com grande surpresa por Quixote:

“Mucha discreción fue menester para disimular el contento que recebi cuando llegó a

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mis oídos el título del libro”18

. De fato, o impacto inicial foi de estranhamento e crítica

por parte de Quixote; no entanto, ao longo da narrativa, Quixote lentamente transforma

seu ponto de vista e leva cada vez mais em consideração o trabalho de Cide Hamete.

Segundo Ascunde Arrieta19

, tal efeito de contraposição é um indicativo da cultura

barroca dentro da obra cervantina, pois Cide Hamete seria inicialmente renegado na

narrativa para que, no seguimento, ocorresse sua redenção, ele passando assim a ser

elogiado como um sábio historiador. De fato, este estilo barroco faz parte da estratégia

artística da mímesis do Renascimento, em que a “imitação” torna-se uma “realidade

paralela”. Por isso, Arbogast Schmitt indica nesse sentido que “o termo mais amplo,

pelo que se guia a ficção poética, é o possível no sentido do necessário ou do

verossímil”20

. Podemos, portanto, interpretar que Cervantes ao escrever sua obra Don

Quijote de la Mancha está se utilizando de suas referências históricas e culturais,

compreendendo que a erudição do Oriente se mescla com a do Ocidente na Península

Ibérica. Foi essa a percepção que Auerbach ignorou. Dessa forma, devemos salientar,

conforme Guimarães21

, que a investigação histórica atual, depois da abertura dos

objetos de pesquisa feita principalmente pelos Annales, pode contar com o olhar

advindo da obra literária para compreendermos melhor o movimento de ideias e

tradições múltiplas que se interagem ao longo do tempo.

Conclusão

Ao analisarmos a obra de Cervantes, tendo conhecimento do contexto histórico

da época em que esta foi escrita, percebemos que, além de se tratar de uma obra que tem

um cunho de comicidade, demonstra também referimentos frente a uma situação social

18 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. (I). Edición

íntegra y anotada. Catalunya-España: Editorial Optima, S.L., 2003, p. 63. 19 ASCUNDE ARRIETA, José Ángel. O historiador Cide Hamete Benengeli ou a tragicomédia do

primeiro autor. Tradução de Sílvia Massimini. Revista USP. São Paulo, n.67, p.270-281,

setembro/novembro de 2005. 20 SCHMITT, Arbogast. Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da

mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos. In: LIMA, Luiz

Costa (organizador). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, pp. 147. 21 GUIMARÃES, Marcella Lopes. História e Literatura: um debate desde Aristóteles. Capítulos de

História: o trabalho com fontes. Curitiba: Aymará Educação, 2012, p. 109-139.

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que ainda está presente em termos culturais na Península Ibérica, e na Espanha, mais

especificamente.

Na leitura da crítica feita por Auerbach a esse clássico da literatura, percebemos

que, embora o crítico se centre na mistura dos estilos alto e baixo, e das representações

da realidade, que se torna cômica através dos atos do “louco” fidalgo, o filólogo alemão

quase que tenciona elaborar uma análise mais profunda relacionada à interpretação

histórica do romance; porém, essa tentativa não é concretizada.

Mesmo que saibamos que esse gênero possuía vários espectadores, e que ainda

durante o Renascimento este ainda é produzido, não consideramos a obra de Cervantes

como pertencente especificamente a esse gênero, mas sim como uma forma de

descrever sintomas que ainda estão presentes nessa sociedade, relacionados a um grupo

desfuncional, mas ainda existente. Na Espanha esse sintoma é ainda mais claro. De

acordo com Lúcia Megías22

, encontra-se cerca de 63 títulos de livros que possuem como

tema a literatura de cavalaria impresso entre o século XVI e XVII. Como se trata de um

gênero que foi considerado pela crítica moderna como um estilo em decadência, pois

refletia modelos de um mundo “medieval” e ultrapassado para esses séculos, essa

literatura acaba por ser colocada em segundo plano, o que pode justificar a continuidade

da leitura e interpretação romântica apontada por Auerbach.

Esclarecidos nossos apontamentos, salientamos que divergimos da leitura de

Auerbach, a qual toma como princípio norteador de análise apenas o caráter cômico e

divertido da obra. Características estas, segundo o filólogo alemão, propiciadas através

da mistura dos estilos alto e baixo. Significativa também é a exclusão, por parte de

Auerbach, dos aspectos que imprimem tragicidade à obra. Por outro lado, consideramos

e incluímos novas perspectivas para a análise da obra de Cervantes ao examinarmos o

contexto social no qual se encontrava a cavalaria obsoleta no período de produção da

obra e seu ambiente cultural multifacetado ibérico.

Referências bibliográficas:

22 LUCÍA MEGÍAS, José Manuel. Imprenta y libros de caballerías. Madrid: Ollero & Ramos, 2000.

ISSN: 19837429 n.11 – março de 2013

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Fontes:

AUERBACH, Eric. A Dulcinéia Encantada. Mimesis: a representação da

realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva para a língua portuguesa. São

Paulo: Perspectiva, ed. 2009, pp. 299- 320.

AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental.

Tradução coletiva para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La

Mancha. (I, II). Edición íntegra y anotada. Catalunya-España: Editorial Optima, S.L.,

2003.

Leituras:

ASCUNDE ARRIETA, José Ángel. O historiador Cide Hamete Benengeli ou a

tragicomédia do primeiro autor. Tradução de Sílvia Massimini. Revista USP. São Paulo,

n.67, p.270-281, setembro/novembro de 2005.

CANAVAGGIO, Jean. Cervantes en su vivir. s/d. Disponível em:

<http://www.cervantesvirtual.com/bib/bib_autor/Cervantes/biografia.shtml> Acesso

em: 16/10/2012. FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Tradução para o

português: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

Disponível em: <http://www.ufscar.br/cis/wp-content/uploads/FOUCAULT-Michel.-A-

hist%C3%B3ria-da-loucura-na-idade-cl%C3%A1ssica.pdf> Acesso em: 03/06/2012.

GUIMARÃES, Marcella Lopes. História e Literatura: um debate desde

Aristóteles. Capítulos de História: o trabalho com fontes. Curitiba: Aymará Educação,

2012, p. 109-139.

HUINZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.

JAROUCHE, Mamede Mustafa. Uma poética em ruínas. Livro das mil e uma

noites. vol. I: ramo sírio/Anônimo. Tradução do árabe para a língua portuguesa por

Mamede Mustafa Jarouche. 3 ed. São Paulo: Globo, pp.11-35, 2006.

LUCÍA MEGÍAS, José Manuel. Imprenta y libros de caballerías. Madrid: Ollero

& Ramos, 2000.

SCHMITT, Arbogast. Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no

Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos

tempos modernos. In: LIMA, Luiz Costa (organizador). Mímesis e a reflexão

contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, pp. 137-189.

VIEIRA, Maria Augusta da Costa. Louco lúcido: Dom Quixote e o Cavaleiro do

Verde Gabão. In: Revista USP. São Paulo: USP, n.67, setembro/novembro 2005, p. 290.

Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/67/21-vieira.pdf> Acesso em:

04/06/2012.