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ISSN: 19837429 n.11 – março de 2013
Revista Litteris www.revistaliteris.com.br
ISSN: 19837429 Março de 2013
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AUERBACH REVISITADO PELA CRÍTICA HISTORIOGRÁFICA: O CASO
DOM QUIXOTE
Janira Feliciano Pohlmann (PPGHIS UFPR/NEMED)
Eliane Veríssimo Santana (PPGHIS UFPR/NEMED)
Rodrigo Barbosa Schiavinato (PPGHIS UFPR/NEMED)
Elaine Cristina Senko. (PPGHIS UFPR/NEMED)1
Resumo: O presente artigo propõe uma análise e reavaliação sobre um dos capítulos da
obra Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental, escrita pelo
filólogo e crítico literário alemão Eric Auerbach (1892-1957), intitulado A Dulcinéia
Encantada. Nesse capítulo encontramos uma série de considerações analíticas propostas
por Auerbach sobre a obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel
de Cervantes Saavedra (1547-1616). Nosso estudo, dessa forma, apresenta-se como um
convite à reflexão sobre as relações entre a literatura e a história, campos e disciplinas
autônomas, mas que se entrecruzam em diversos e importantes momentos.
Palavras-chave: Eric Auerbach; Miguel de Cervantes; Dom Quixote; Mimesis;
Dulcinéia Encantada.
AUERBACH REVISITED BY THE HISTORIOGRAPHICAL CRITICAL: THE
CASE OF QUIXOTE
Abstract: This article proposes an analysis and revaluation about one of the chapters of
the book Mimesis: the representation of reality in Western Literature, written by the
1 Janira Feliciano Pohlmann é Mestre em História e atualmente é doutoranda em História da
Antiguidade Tardia pelo PPGHIS UFPR sob orientação do Professor Doutor Renan Frighetto. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail:
lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4230838A1
Eliane Veríssimo Santana é mestranda em História Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação
da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes. É pesquisadora pertencente ao Núcleo de Estudos
Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail: [email protected];
lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4228463U2
Rodrigo Barbosa Schiavinato é Mestre em História e atualmente é doutorando em História
Medieval pelo PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes. É
pesquisador pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail:
lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4260219T6 Elaine Cristina Senko é Mestre em História e atualmente é doutoranda em História Medieval pelo
PPGHIS UFPR sob orientação da Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. É pesquisadora
pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Curitiba-PR, Brasil, e-mail:
lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=W0140558
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German philologist and literary critic Eric Auerbach (1892-1957), entitled The
Enchanted Dulcinea. In this chapter we find a series of analytics considerations
proposed by Auerbach on the work El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, by
Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616). On this way, our study is an invitation to
reflect on the relationship between literature and history, autonomous fields and
disciplines, but that intersect at various and important times.
Keywords: Eric Auerbach; Miguel de Cervantes; Don Quixote; Mimesis; Enchanted
Dulcinea.
A sabedoria de Dom Quixote não é a sabedoria de um doido; é o entendimento, a
nobreza, a decência e a dignidade de um homem
prudente e equilibrado... (AUERBACH, 2009, p.312)
Talvez esta sentença do filólogo e crítico literário alemão Erich Auerbach (1892-
1957), presente no capítulo A Dulcinéia Encantada da obra Mimesis, condense os
elementos mais encantadores da obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha,
de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616): a loucura e o equilíbrio de Dom
Quixote. Noções contraditórias? De forma alguma; sob nosso ponto de vista,
complementares2.
Seguindo os princípios do metiê do historiador, antes de nos aprofundarmos
numa análise da obra de Cervantes e da crítica de Auerbach acerca dela, propomos uma
análise inicial sobre o contexto de elaboração da obra cervantina, tão consagrada pela
literatura mundial. Concomitantemente, sugerimos um rápido passeio pela vida de seu
autor, Miguel de Cervantes.
Conforme afirma o catedrático de literatura espanhola Jean Canavaggio3, temos
pouco conhecimento sobre a infância de Miguel de Cervantes e também ignoramos
muitas das motivações acerca de suas decisões. Distinguimos apenas alguns fatos: 1547
foi o ano de seu nascimento, em Alcalá de Henares; em 1569, iniciou sua carreira de
escritor e, neste mesmo ano, partiu para a Itália; alistou-se, em 1571, no exército de “La
2 O capítulo A Dulcinéia Encantada foi acrescentado à tradução da obra Mimesis para a língua espanhola
apenas em 1949, três anos depois da primeira edição em alemão. 3 CANAVAGGIO, Jean. Cervantes en su vivir. s/d. Disponível em:
<http://www.cervantesvirtual.com/bib/bib_autor/Cervantes/biografia.shtml> Acesso em: 16/10/2012.
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Santa Liga”; regressou para a Espanha em 1575; dedicou-se a peregrinações por
Andaluzia entre 1587 e 1597; em 1608, ao retornar a Madri, passou a dedicar-se
definitivamente às letras; morreu em 1616.
Dentre suas obras, destacamos as quatro composições poéticas incluídas por seu
professor, Juan de López de Hoyos, na Relación (1569) – publicada na ocasião da morte
da rainha Isabel de Valois; La Galatea (1585); La casa de los celos (1593); Novelas
ejemplares (1613); Ocho comedias y ocho entremeses (1615); El ingenioso hidalgo Don
Quijote de la Mancha (a primeira parte é publicada em 1605 e a segunda em 1615); e
Los trabajos de Persiles y Sigismunda (obra publicada pela viúva de Cervantes, em
1617 – quase um ano após a morte do autor).
As penúrias econômicas e os questionamentos que assolavam a vida de
Cervantes estão implícitos em toda sua principal obra: Don Quijote de la Mancha.
Conforme mencionado, este livro é composto de duas partes, sendo a primeira delas
publicada em 1605 e a segunda, em 1615. Ressaltamos que, nesta época, Cervantes já
tinha a sua disposição uma língua delineada: o castelhano. Este idioma se apresentava
ao autor com toda sua riqueza pouco explorada até então, afinal, há pouco o castelhano
se completara e se afastara da língua romance4, ganhando características e gramática
próprias.
A partir da leitura das aventuras quixotescas, notamos um autor que se
apresenta imerso em seu contexto, um homem de saber que sofreu com as reviravoltas
de sua vida e que se dedicou a observar o mundo ao seu redor, mesmo que,
frequentemente, a compreensão sobre este faltasse. Lembramos que, a partir do século
XV, as constantes batalhas que exigiam esforços cavaleirescos tornaram-se cada vez
mais escassas. A nova situação política instaurada, especialmente após a conquista de
Granada (1492) pelos reis cristãos, gerou um grande problema social, especialmente em
Portugal e Espanha: a ociosidade da cavalaria. A Península Ibérica deparou-se, então,
com uma grande questão: o que fazer com os cavaleiros? Este grupo, outrora tão ativo,
perdeu seu prestígio, o que gerou um significativo agravo social, abordado de forma
4 Entendemos que “língua romance” é uma língua em transformação, uma língua intermediária, portanto,
não possui gramática e quase não há refinamentos, como, por exemplo, as conjunções.
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primorosa no subtexto de Cervantes. Desde o século XIV, uma nova nobreza se
configurava e buscava seu lugar nas sociedades ibéricas. Dom Quixote representava o
brado daqueles que perdiam o seu espaço perante um novo feitio social. Tais
dificuldades foram resolvidas, sobretudo, pela via da expansão marítima.
Esta argumentação sustenta nossa divergência em relação ao pensamento de
Erich Auerbach quando este anuncia que “encontra-se, pois, muito pouco de
problemático ou de trágico no livro de Cervantes [...], o livro todo é um jogo, no qual a
loucura se torna ridícula quando exposta a uma realidade bem fundamentada”5. Sem
dúvidas, Cervantes estava mergulhado, como homem de seu tempo, nos problemas que
afligiam a sociedade espanhola do final do século XVI e início do XVII. Apontamos
que estas agonias atormentavam a vida do autor de forma indireta e direta, visto que ele
também havia combatido os turcos otomanos em prol da Coroa Espanhola na Batalha de
Lepanto, no ano de 1571. Tal enfrentamento custou-lhe uma lesão em sua mão
esquerda, tão grave a ponto de inutilizá-la6. Portanto, consideramos a loucura em Don
Quijote de la Mancha, tida como “ridícula” por Auerbach, como parte de um elemento
narrativo trágico que visa apresentar toda a complexidade daquela realidade conturbada,
repleta de dúvidas, e assim, convidar o leitor a refletir sobre este cenário. Por este
motivo, aludimos que os elementos apontados nas primeiras linhas deste artigo – a
loucura e o equilíbrio – são complementares, inerentes à realidade humana – nunca
linear, mas, sim, constituída de elementos que se interpolam, se conectam e, às vezes,
até se contradizem.
Auerbach7 percebeu na relação entre Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho
Pança, uma relação contrastante e cômica, típica do gênero da comédia, carregada de
caricaturas e motivos jocosos. Relação, esta, ocasionada pelas antagônicas visões de
mundo entre os personagens: visões tidas como idealistas, para Quixote, e realistas, para
5 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva
para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.310. 6 Alguns estudiosos afirmam que Cervantes teve sua mão amputada, porém, grande parte alude apenas à
inutilização do membro. 7 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva
para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.315.
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Sancho. Por outro lado, percebemos uma afinidade complementar entre estas
concepções de mundo. As percepções do cavaleiro quixotesco e de seu companheiro de
aventuras são partes da personalidade humana; contribuem uma com a outra para gerar
a multiplicidade intrínseca ao homem. Por isso, afirmamos que a obra de Cervantes
consegue unificar o trágico e o cômico, o ideal e o realista. Afinal, no universo
quixotesco, a natureza das relações humanas aparece por completo, em sua
complexidade vacilante, por vezes, tomada de certezas e valentia, em outras ocasiões,
dominada pelas dúvidas e pelo medo. Logo, loucura e equilíbrio se acomodam
perfeitamente no perfil de Dom Quixote e proporcionam ao leitor aventuras
inesquecíveis.
Neste ínterim, descartamos o pressuposto de “loucura ridícula” de Erich
Auerbach ao se referir a Dom Quixote e optamos por apreciar uma loucura moderada,
ou ainda, uma “loucura lúcida”, como a sugerida por Maria Augusta da Costa Vieira8.
Ao examinar o capítulo XVI da segunda parte do livro de Cervantes, Maria Augusta da
Costa Vieira sustentou que Dom Quixote era louco em suas ações, porém, cordato em
seus argumentos9.
Podemos pensar que esta noção de loucura moderada não estava bem
desenvolvida e se apresentava como um assunto de difícil compreensão no contexto de
Auerbach. Refletindo sobre esta questão, sabemos que por volta do século XVII, a
loucura passou a ser dominada e contida em um “espaço moral de exclusão”10
; até
então, os loucos encontravam-se distribuídos pela sociedade. Por vezes tido como
8 VIEIRA, Maria Augusta da Costa. Louco lúcido: Dom Quixote e o Cavaleiro do Verde Gabão. In:
Revista USP. São Paulo: USP, n.67, setembro/novembro 2005, p. 290. Disponível em
<http://www.usp.br/revistausp/67/21-vieira.pdf> Acesso em: 04/06/2012. 9 Para esta análise, destacamos um trecho de tal capítulo. Refere-se ao episódio em que o observador do
enfrentamento de Quixote contra os leões, Dom Diego de Miranda expressou sua inabilidade para
esclarecer as atitudes do cavaleiro andante: “ya le tenía por cuerdo, y ya por loco, porque lo que hablaba
era concertado, elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, temerario y tonto.” In: CERVANTES
SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. Edición íntegra y anotada.
Catalunya-España: Editorial Optima, S.L., 2003, II, XVI, p. 476. 10 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Tradução para o português: José Teixeira
Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p.12. Disponível em: <http://www.ufscar.br/cis/wp-
content/uploads/FOUCAULT-Michel.-A-hist%C3%B3ria-da-loucura-na-idade-cl%C3%A1ssica.pdf>
Acesso em: 03/06/2012.
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diferentes, é certo, todavia sua convivência social era frequente e inevitável. O
dramaturgo português Gil Vicente no início do século XVI escolheu o parvo (louco) e
os cavaleiros para o paraíso no Auto da Barca do Inferno. Lembremos que este
panorama de finais do século XVI e início do século XVII, em que os loucos estavam
socialmente espalhados, tornara-se palco para vida de Cervantes: um cenário do qual ele
era observador, sujeito ativo e autor de Don Quijote de la Mancha. Para
compreendermos melhor a clausura dos loucos presenciada nos tempos de Erich
Auerbach, podemos recorrer à obra História da loucura na Idade Clássica, de Michel
Foucault (primeira edição de 1961). Esta obra apresenta um caminho que, a partir do
século XV, iniciou uma coação à circulação dos loucos e, no século XVII, uniu a
loucura à lepra para serem tratadas como doenças. Foucault afirma que a loucura é uma
herança (não continuada) da lepra – isso em relação à forma de tratamento e de
controle/confinamento. A loucura, então, foi transformada em uma doença mental e
trancafiada em asilos.
Esta é a concepção de loucura examinada por Erich Auerbach: a loucura como
uma doença. E se Dom Quixote intercalava momentos de sanidade e loucura, ele não
seria totalmente louco, por isso, facilmente curável. Esta loucura evidente nas ações
quixotescas, que tanto incomodava o crítico alemão, deveria então ser encarcerada a fim
de que fosse tratada e extirpada. Tal pensamento era recorrente na sociedade ocidental
da época de Auerbach. Talvez esta concepção de loucura – tida como uma doença
mental que demandava clausura e tratamento – tenha justamente impossibilitado uma
análise mais profunda da loucura moderada, tão múltipla e complementar, enraizada em
Dom Quixote.
Lembremos, ainda, que um texto não se completa por ele mesmo, mas através
das leituras que o público faz dele. Possivelmente seja por este motivo que hoje
podemos mergulhar um pouco mais na loucura quixotesca, afinal, vivemos um
momento em que os “nossos loucos” estão retornando para dentro de nossas casas,
regressam a nossas vidas e ao convívio social. Neste ínterim, acreditamos que os
estudiosos contemporâneos do cavaleiro de Cervantes estão mais instrumentalizados
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para tentar compreender esta loucura moderada, noção que tem se afastado da
concepção de doença e necessita ser abarcada em seu cotidiano, em seus matizes. Estas
nuances são encontradas por toda a obra quixotesca.
Cervantes e a recepção da literatura cortês
O episódio de Quixote em que o fiel escudeiro Sancho engana o seu senhor ao
transformar uma rude camponesa, que utilizava um burro como meio de transporte, em
Dulcinéia (uma idealizada princesa) levanta a questão advinda de uma tradição
medieval de contextualização de utopias, em que determinados modelos de sociedade
eram imaginados à luz de demandas sociais concretas11
. Dulcinéia nos apresentou,
porém, elementos de seu próprio tempo, período em que o realismo adentrava na mente
dos escritores aliado a novas interpretações do idealismo platônico. A princesa da mente
de Dom Quixote é uma idealização perfeitamente compreensível se fosse verdadeira,
pois foi criada à imagem do círculo cortês conforme os padrões e modelos ideológicos
daquele grupo.
Dulcinéia representa a dama proibida oriunda do amor cortês, criada a partir dos
romances arturianos, impossível de ser atingida, idealizada pela impossibilidade de
concretização (conforme modelos cavaleirescos) e que move todas as ações e
pensamentos do cavaleiro Dom Quixote. O fato de a camponesa ser entendida pelo
cavaleiro como a princesa terrivelmente enfeitiçada por seus inimigos representa, ainda,
esta concepção cortesã do amor feminino aliada às praticas mágicas características do
folclore europeu, advindo de diferentes tradições, em que feiticeiros trabalhavam a
favor de reis e cavaleiros para resolver impasses com soluções mágicas. O episódio da
Dulcinéia encantada encontra sentido se levarmos em consideração que Dom Quixote
foi um reflexo dos romances em que feiticeiros eram personagens recorrentes. Outro
elemento que pode ser levantado em relação à inclusão de práticas mágicas no
pensamento de Dom Quixote foi a ocorrência, na Espanha, em Portugal e na Itália, do
recrudescimento da Inquisição contra pequenas seitas cristãs nascidas de comunidades
11 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. (II).
Edición íntegra y anotada. Catalunya-España: Editorial Optima, S.L., 2003, p. 438-439.
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populares e semi-letradas, justamente no período de confecção da obra de Cervantes.
Estas pequenas seitas populares misturavam elementos mágicos oriundos das tradições
pagãs com princípios judaicos/cristãos e em menor escala, islâmicos.
Podemos falar em cultura cômica popular e no quanto Dom Quixote se insere
nesta tradição que perdurou no Baixo Medievo e no Renascimento, mas a obra de
Cervantes não pode ser explicada apenas por este elemento tão debatido por Bakhtin.
Quixote pode ser considerado mais representante dos livros de cavalaria do que das
festas carnavalescas do povo em que a cultura oficial era satirizada. Neste, o
personagem seguia o ideal que a nobreza buscava, mas que as especificidades concretas
sociais não permitiam que fossem inteiramente aplicadas. Sancho, camponês alçado à
condição de escudeiro por Dom Quixote, pode ser considerado um representante
daquela sociedade que não mais correspondia aos heroísmos dos personagens
arturianos. A relação entre os dois revela elevada complexidade entre as idealizações
platônicas de um lado, e o realismo reforçado pela Reforma Protestante e Contra-
Reforma Católica de outro, e que trouxe para o campo teórico elementos individualistas
não percebidos em obras anteriores ao século XVI.
O cavaleiro Quixote possuía um sentido claro: adaptar para a realidade cotidiana
os modelos literários que o mesmo havia incansavelmente lido e que em determinado
momento modificaram a sua personalidade. Por mais que destoassem da realidade
concreta, todas as ações de Dom Quixote estão justificadas dentro das regras da
cavalaria. O personagem moldou diferentes situações ocorridas em várias circunstâncias
à luz de uma personalidade fixada em modelos prontos, porém maleáveis e bastante
modificados ao longo dos tempos. A realidade presente no livro, incluindo as fantasias
criadas por Quixote, é muito bem fundamentada. As ações dos personagens e suas
justificações são perfeitamente compreensíveis além de julgamentos dualistas, pois a
obra de Cervantes nos apresenta diferentes estilos, com cada qual apresentando suas
especificidades.
A criação do cavaleiro errante foi uma demanda do próprio protagonista da
história, um pequeno fidalgo preso à sua terra já no final da vida, sem grandes
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perspectivas de melhora e que havia encontrado um novo sentido para a sua existência
ao embarcar em uma aventura épica/cômico/trágica criada pela sua mente. Dom
Quixote encarnou as obras literárias que Cervantes criticou em seu romance. O embate
presente no livro não foi contra a cavalaria, mas contra a forma com que a cavalaria era
retratada naquelas novelas.
Para Auerbach a inserção no estilo trágico ou cômico não elucida de uma
maneira única a obra de Cervantes. Esta é mais bem explicada se analisada enquanto um
estilo de escrita elevado, com elementos nobres dos mais altos círculos intelectuais do
período. Os diálogos de Quixote e Sancho revelam o comportamento mais sublime e
almejado que o público da Corte poderia atingir. Se pudesse ser rotulada, a obra de
Cervantes estaria no campo da retórica épica, de tradição clássica, esteticamente bem
harmonizada e criada como uma composição musical. Don Quijote de la Mancha
representa um aperfeiçoamento deste estilo. Percebe-se que o autor espanhol misturou
em sua obra diferentes tradições literárias para efetivamente realçar o estilo elevado de
seu personagem, pois a partir do contraste das comparações, Cervantes estabeleceu o
seu modelo ideal, o épico de profunda inspiração nobiliárquica. A rude camponesa, com
a sua incredulidade ao presenciar a aproximação de Sancho e Quixote, foi o reflexo da
crítica que Cervantes estabeleceu ao estilo baixo. A cena, uma das mais cômicas da
obra, nos mostra dois universos diferentes representados pela idealização de um elevado
estilo tanto linguístico como comportamental em confrontação a um cotidiano pouco
brilhante de pessoas comuns e limitadas à própria condição social.
Esta cena transcrita de Don Quijote de la Mancha no início do texto de
Auerbach transita entre os estilos trágico e cômico, porém, sem deixar de ser sério. O
que se percebe é uma quebra estilística nos diálogos e nas ações dos personagens, algo
que confere o caráter irônico do fragmento, pois da junção entre os estilos elevado e
baixo, representados por Sancho, Quixote e a camponesa, resultou uma cena de
profunda ironia. O que importava a Quixote e a Sancho quando se aproximaram à
camponesa foi a total delimitação da ritualística cortesã. O estilo de Quixote, apesar da
aparente comicidade, permanece elevado, sublime, pois o cavaleiro realmente
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acreditava na princesa de seus pensamentos, embora para Sancho, embarcar naquela
concepção não passava de algo cômico e pitoresco, uma grande representação encenada
de forma paródica.
O cavaleiro cervantesco foi o resultado de personagens recorrentes nos romances
arturianos do século XVI, obras consumidas pelas pessoas letradas em período de
grande difusão literária após a invenção da imprensa. Ao mesmo tempo, Dom Quixote
era um indivíduo que tinha uma loucura moderada e sem sentido para aquela sociedade
que consumia aquele tipo de literatura. Muito provável que Cervantes tenha tido a
intenção de criar este paradoxo entre a literatura de cavalaria e os valores concretos
estruturais de sua época. Além disso, criticar os romances cavaleirescos a partir de um
personagem criado por este universo, mas inserido no mundo real, mostraria justamente
que a loucura de Quixote fazia parte de um conjunto de elementos inseridos no
imaginário daquela sociedade.
Dom Quixote era um pequeno fidalgo e só conhecia a realidade palaciana
através das obras de literatura. Ele jamais havia sentido concretamente a vivência dos
altos círculos nobiliárquicos e nem participado de aventuras parecidas com as dos heróis
literários. Suas idealizações foram fruto de sua imaginação e de suas concepções sobre o
que significava ser cavaleiro naqueles tempos. Podemos perceber no personagem a
mistura de demandas causadas pela frustração de uma vida camponesa comum com a
moral mais sublime de personagens como Rolando, Ivanhoé e El Cid, construções
inseridas em uma loucura muito bem justificada em sua contextualização, encarnadas
numa pessoa letrada e equilibrada, mas que possuía uma ideia fixa não condizente com
a realidade presente do lado de fora das páginas dos livros de cavalaria. No trecho de
Don Quijote de la Mancha selecionado por Auerbach para a análise deste capítulo, fica
mais evidente que estas imaginações foram criadas por uma pessoa que possuía uma
vivência que perpassava os romances lidos sistematicamente até a culminação do
delírio. Dom Quixote também queria dar novo sentido à sua vida concreta, mesmo que a
partir de aventuras idealizadas.
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Auerbach utilizou a expressão de “ideal encarnado”12
para se referir ao encontro
de Quixote com Dulcinéia, sentença que explica bem as intenções de Cervantes no
estabelecimento de suas relações entre o personagem do cavaleiro e a realidade com que
o mesmo se deparava. Todavia, este ideal contém uma complexidade de difícil definição
se levarmos em consideração a sátira contida em Don Quijote de la Mancha em relação
às novelas de cavalaria produzidas no período e, no seio desta crítica, elementos
sublimes que deveriam corroborar a boa literatura segundo as concepções de Cervantes.
O ideal encarnado na figura de Dulcinéia mostra a relação entre o ideal platônico de
beleza e a grotesca figura das três camponesas advindas de uma realidade oposta àquela
da sociedade cortesã. O texto de Cervantes, portanto, relata a confusão esvaziada de
sentido ao mostrar o embate entre realidades sociais, ideológicas, culturais e intelectuais
diferentes.
Na obra de Cervantes, propagam-se a critica a uma literatura, vista como
enfadonha, que não correspondia ao elevado estilo que deveria transparecer com os
valores mundanos de uma sociedade que, cada vez mais comercial, vinha perdendo os
valores presentes na literatura dos heróis. Em meio a este eixo principal, aparece a
figura de personagens comuns e que respondem às circunstâncias apresentadas de
acordo com as realidades cotidianas. A própria relação entre Quixote e Sancho nem
sempre foi harmoniosa e unida pelas relações de amor e fidelidade dentro da narrativa
cervantina. Para Auerbach, a maneira que Cervantes encontrou para a relação destas
diferentes esferas foi mostrar a teatralização das atitudes que nasciam da cabeça de
Quixote em meio à realidade em que se mostravam.
Auerbach considera Dom Quixote, e toda a sua aventura errante, através de uma
visão realista, cômica e que se afasta do trágico, justamente pelo seu aspecto de
comicidade. Segundo o crítico, a leitura romântica de Dom Quixote, determinou uma
interpretação da obra que considera o protagonista como um lunático que, através de seu
gosto por romances de cavalaria, imagina-se como um bravo cavaleiro que busca seguir
as lições que encontrava nesses romances, tentando assim, através de atos de bravura e
12 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva
para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.308.
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honra, como os ideais da cavalaria encontrados nesses romances, impor-se como
cavaleiro e defender as donzelas e os privados de liberdade (tal como encontramos em
várias passagens de Dom Quixote). Todavia, a visão que Auerbach realiza desse
romance baseia-se no fato de que tanto a loucura quando o desenrolar das cenas
contidas neste expressam, mais do que uma idealização romântica da ideia de cavalaria,
tem por objetivo o cômico. Dom Quixote é louco para dar um ar divertido e inusitado às
páginas, e segundo este, esse era o objetivo principal de Cervantes ao escrever a obra:
“Para Cervantes, um bom romance não serve a nenhum outro fim afora o divertimento
culto (…)”13
e “ele o vê, ele o constrói e se diverte às suas custas; também deve divertir
o leitor de uma forma cultivada”14
.
Conforme o filólogo alemão, a loucura de Dom Quixote é apenas um elemento
cômico que norteia todo o romance, e que, consequentemente não influencia de forma
alguma no concreto. As cenas se passam como descrições da realidade e do cotidiano
(como a cena do encontro com Dulcinéia, citada no início do capítulo), mas como essa
realidade é apreendida a partir da visão de um lunático, não há assim, no romance,
nenhuma crítica às particularidades significativas da época em que este foi escrito. A
realidade da época é fundamentada, porém o objetivo da disposição dessa realidade é
misturar-se com o pensamento difuso de Dom Quixote, transformando assim a obra em
um romance de cunho predominantemente cômico.
Auerbach, em sua análise crítica ao texto cervantino, destaca também a
sobreposição de estilos, uma vez que não apenas no trecho separado para a análise,
quando ao decorrer de toda a obra, há uma sobreposição de falas onde os estilos baixo e
elevado são misturados numa mesma sentença, a depender do personagem que está
participando. Na cena em questão, o crítico destaca essa mistura, comparando as falas
de estilo baixo das camponesas, enquanto Dom Quixote continua com o linguajar,
preservando assim o estilo cavaleiresco. Para Auerbach, isso acontece pois o objetivo de
13 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva
para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.319. 14 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva
para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.317.
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Cervantes é criticar os romances de cavalaria, entretanto, não o estilo do linguajar
cortês. Ao realizarmos uma primeira leitura do capítulo Dulcinéia Encantada de
Auerbach, percebemos uma determinada visão do autor que aponta, quase que
exclusivamente, os elementos acima citados.
Embora seja uma literatura de caráter tipicamente medieval, os romances de
cavalaria ficaram tão impregnados na mentalidade que ainda hoje encontramos esse
tema como um dos recorrentes da literatura e até nas linguagens midiáticas. Sua
sobrevivência deve-se certamente também a essa forma propagandística e ficcional de
transmissão. Porém, longe de ter se transformado apenas em uma idealização distante e
desvinculada da realidade, percebemos como traços desse ideal estavam presentes
durante todo o Renascimento, mesmo esse sendo considerado pela historiografia como
um movimento cultural de rupturas com a Idade Média. Huizinga15
afirma que nesse
período há uma mistura de elementos medievais – do ciclo arturiano, por exemplo – a
elementos da antiguidade, mas o ideal cavaleiresco de honra e culto aos heróis ainda é
mantido onde se confluem os elementos medieval e renascentista. Assim, Huizinga
considera que mesmo no período do Renascimento, existia demanda de escritores e
leitores que tratam esse tema e, como exemplo, podemos citar a versão portuguesa para
a Demanda do Santo Graal encontrada em fins do século XV e a versão castelhana de
1535 reeditada em Sevilha. Há ainda resquícios ligados a cultura feudal, que mesmo em
um momento em que este personagem já não existe da forma como a existente nos
séculos XI e XII, o imaginário desse grupo ainda persiste durante os séculos seguintes.
Citando uma parte de Le Jouvencel, romance escrito no século XV, baseado na vida de
Jean de Buiel, que lutou sobre a bandeira de Joana D'arc, Huizinga demonstra como
essas ideias ainda são constantemente referenciadas no século XV.
Mesmo se considerarmos a obra de Cervantes como sendo escrita visando uma
crítica à vulgarização do ideal de cavaleiro, sabemos que essa apreciação tem sua
fundamentação em uma sociedade permeada de resquícios de um grupo social derivada
da cavalaria, e que perdeu sua função social dentro da sociedade – em especial a
15 HUINZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.
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sociedade ibérica. Os bellatores, os quais antes possuíam uma função tão objetiva e
determinada nessa sociedade, veem-se por diversos motivos, como a formação de
exércitos profissionais e a inclusão de novas tecnologias, obsoletos, tornando-se assim
um problema social que é sentido mesmo séculos mais tarde. Assim, quando
consideramos Dom Quixote, podemos analisá-lo como uma crítica a esse grupo
antiquado dentro da sociedade ibérica. Quando Auerbach assegura que a maioria dos
leitores da obra tencionam interpretá-la como de uma “grandeza idealista, incondicional
e heróica”16
, procuramos, pelo contrário, examiná-la como uma crítica a esse grupo que
perde sua função nessa sociedade.
Cide Hamete Benengeli e o silêncio de Auerbach
Propomo-nos a analisar também o que consideramos um dos “silêncios” na
crítica literária de Eric Auerbach: a influência da Literatura Oriental – que tanto se
mesclou com a Literatura Ocidental - na obra ibérica Don Quijote de la Mancha, de
Cervantes.
Detectamos, na leitura do capítulo A Dulcinéia Encantada, a não profundidade
de conhecimento por parte do autor, Auerbach, em relação à cultura e à história da
Península Ibérica. De fato, na época em que escreveu, ou seja, finais do século XIX e
inícios do XX, a via de compreensão das culturas ainda estava sustentada pelo
pensamento iluminista: os países europeus do norte em estado de supremacia aos do sul
(como o caso de Espanha e Portugal). Como afirmamos anteriormente e novamente
ressaltamos, Auerbach incorre em falta ao assinalar que a obra cervantina é apenas de
entretenimento. Ora, se nos dirigirmos para a cultura espanhola na qual Cervantes está
imerso identificamos uma riqueza sem fim de aspectos, uma ponte entre as culturas do
Ocidente e Oriente. Hoje é necessário, portanto, rever este pensamento generalizante
proposto pelo filólogo alemão. Inclusive, acreditamos que tal ponto é um dos poucos
aspectos que devemos necessariamente revisar a respeito de sua obra prima, Mimesis,
16 AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva
para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009, p.307.
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escrita durante o seu exílio na Turquia. Justamente por essa estadia, espanta também
que ele não informe tal contato mantido com a cultura Oriental, seja através da possível
escrita indireta de autores orientalistas ou até mesmo uma análise mais acurada da fonte
de As Mil e Uma Noites, esta que tanto afetou a Literatura do Ocidente da Península
Ibérica. Porém, compreendemos que o véu iluminista o desviou da profundidade que é a
obra Don Quijote de la Mancha.
De que forma, então, podemos entrever a influência da cultura Oriental em Don
Quijote? Inicialmente, percebemos que a construção do herói Dom Quixote realizada
por Cervantes apresenta uma possível influência das aventuras orientais, as quais
possuem diante de si um mundo mágico criado pelo personagem principal e certo teor
dramático poético. Mas como poderiam tais referências de estilo oriental ter chegado até
Cervantes? Pois bem, o território espanhol teve em seu passado, entre os séculos VIII e
XV, a presença de populações muçulmanas que difundiram, na região, a cultura
oriental. Nesse sentido, a Espanha do século XVI e XVII se apresentava como um país
de tradição multifacetada, construída pela convergência direta e indireta da cultura
cristã, judaica e islâmica.
O personagem de Dom Quixote faz rir, claro, mas é a tensão dramática da
narrativa que paira sobre nós, seus leitores. Aspecto semelhante encontramos na obra de
As Mil e Uma Noites, na qual entrevemos, segundo a apreciação de Jarouche17
,
aventuras que proporcionam ao leitor diversão e entretenimento, mas também
entremeadas pela tensão da morte ou não de Sahrazad. Em Cervantes, pressentimos esse
sentimento da morte de Quixote também nos pensamentos sombrios de seu
companheiro, Sancho. Essa angústia, de que a vida real nos tome e tire de nossa
imaginação, aparece como ponto final no desfecho de ambas as narrativas. Talvez por
isso os contos se prolonguem tanto; no caso da obra de Cervantes temos a morte
“encenada” de Quixote ao final da narrativa, o que o conduz novamente para a
17 JAROUCHE, Mamede Mustafa. Uma poética em ruínas. Livro das mil e uma noites. vol. I: ramo
sírio/Anônimo. Tradução do árabe para a língua portuguesa por Mamede Mustafa Jarouche. 3 ed. São
Paulo: Globo, pp.11-35, 2006.
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realidade. Esta realidade que já não abarcava modelos ideais como Lancelot... Uma
realidade que ri deste passado, mas como vimos, continua a absorvê-lo até o século
XVIII.
No aspecto formal da narrativa de Don Quijote de la Mancha encontramos algo
muito caro a literatura de As Mil e Uma Noites: as camadas de narrativa. O ritmo de
descrição dos acontecimentos acompanha uma narrativa inicial que adentra outra e que
retorna à primeira. Esse movimento cíclico da escrita narrativa imerge o leitor dentro de
um mundo paralelo à realidade vivida, tal como se fosse algo correlacionado ao
ambiente onírico. Tanto que a alucinação de Quixote pode estar num nível onírico ou
deturpado, pois essas duas concepções estão misturadas na obra e podem resultar
também naquilo que já enunciamos como a loucura moderada. Indício disso é o
momento relembrado por Auerbach da obra de Cervantes (trecho citado de A Dulcinéia
Encantada) em que Quixote tem lucidez sobre o que está vendo e Sancho Pança o
instiga a retornar ao mundo da imaginação. Isso ocorre porque para Sancho Pança não
há mais motivos nesta realidade cinza e crua, e por isto tenta fazer Quixote acreditar que
não se tratam de lavradoras em seus burrinhos, além de que uma delas seria a amada de
Quixote, Dulcinéia, em seu cavalo e acompanhada de suas damas. A intensidade do
mundo imaginativo foi assimilada por Sancho Pança neste instante, ainda que este
permaneça lúcido entre os dois mundos, o real e o imaginativo, ao longo da narrativa. Já
em Quixote há a ocorrência de retornos, ou seja, espasmos, para a realidade palpável.
Os entrecortes para essa realidade palpável ocorre também na literatura de As Mil e
Uma Noites, quando o leitor é constantemente lembrado que Sahrazad, apesar de tudo,
ainda pode morrer.
Um interessante ponto de reflexão se faz presente no capítulo IX da Primeira
Parte, momento em que o personagem Quixote toma conhecimento de que um
historiador árabe, chamado Cide Hamete Benengeli, havia escrito uma obra chamada
Don Quijote de la Mancha. Tal notícia é recebida com grande surpresa por Quixote:
“Mucha discreción fue menester para disimular el contento que recebi cuando llegó a
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mis oídos el título del libro”18
. De fato, o impacto inicial foi de estranhamento e crítica
por parte de Quixote; no entanto, ao longo da narrativa, Quixote lentamente transforma
seu ponto de vista e leva cada vez mais em consideração o trabalho de Cide Hamete.
Segundo Ascunde Arrieta19
, tal efeito de contraposição é um indicativo da cultura
barroca dentro da obra cervantina, pois Cide Hamete seria inicialmente renegado na
narrativa para que, no seguimento, ocorresse sua redenção, ele passando assim a ser
elogiado como um sábio historiador. De fato, este estilo barroco faz parte da estratégia
artística da mímesis do Renascimento, em que a “imitação” torna-se uma “realidade
paralela”. Por isso, Arbogast Schmitt indica nesse sentido que “o termo mais amplo,
pelo que se guia a ficção poética, é o possível no sentido do necessário ou do
verossímil”20
. Podemos, portanto, interpretar que Cervantes ao escrever sua obra Don
Quijote de la Mancha está se utilizando de suas referências históricas e culturais,
compreendendo que a erudição do Oriente se mescla com a do Ocidente na Península
Ibérica. Foi essa a percepção que Auerbach ignorou. Dessa forma, devemos salientar,
conforme Guimarães21
, que a investigação histórica atual, depois da abertura dos
objetos de pesquisa feita principalmente pelos Annales, pode contar com o olhar
advindo da obra literária para compreendermos melhor o movimento de ideias e
tradições múltiplas que se interagem ao longo do tempo.
Conclusão
Ao analisarmos a obra de Cervantes, tendo conhecimento do contexto histórico
da época em que esta foi escrita, percebemos que, além de se tratar de uma obra que tem
um cunho de comicidade, demonstra também referimentos frente a uma situação social
18 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. (I). Edición
íntegra y anotada. Catalunya-España: Editorial Optima, S.L., 2003, p. 63. 19 ASCUNDE ARRIETA, José Ángel. O historiador Cide Hamete Benengeli ou a tragicomédia do
primeiro autor. Tradução de Sílvia Massimini. Revista USP. São Paulo, n.67, p.270-281,
setembro/novembro de 2005. 20 SCHMITT, Arbogast. Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da
mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos. In: LIMA, Luiz
Costa (organizador). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, pp. 147. 21 GUIMARÃES, Marcella Lopes. História e Literatura: um debate desde Aristóteles. Capítulos de
História: o trabalho com fontes. Curitiba: Aymará Educação, 2012, p. 109-139.
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que ainda está presente em termos culturais na Península Ibérica, e na Espanha, mais
especificamente.
Na leitura da crítica feita por Auerbach a esse clássico da literatura, percebemos
que, embora o crítico se centre na mistura dos estilos alto e baixo, e das representações
da realidade, que se torna cômica através dos atos do “louco” fidalgo, o filólogo alemão
quase que tenciona elaborar uma análise mais profunda relacionada à interpretação
histórica do romance; porém, essa tentativa não é concretizada.
Mesmo que saibamos que esse gênero possuía vários espectadores, e que ainda
durante o Renascimento este ainda é produzido, não consideramos a obra de Cervantes
como pertencente especificamente a esse gênero, mas sim como uma forma de
descrever sintomas que ainda estão presentes nessa sociedade, relacionados a um grupo
desfuncional, mas ainda existente. Na Espanha esse sintoma é ainda mais claro. De
acordo com Lúcia Megías22
, encontra-se cerca de 63 títulos de livros que possuem como
tema a literatura de cavalaria impresso entre o século XVI e XVII. Como se trata de um
gênero que foi considerado pela crítica moderna como um estilo em decadência, pois
refletia modelos de um mundo “medieval” e ultrapassado para esses séculos, essa
literatura acaba por ser colocada em segundo plano, o que pode justificar a continuidade
da leitura e interpretação romântica apontada por Auerbach.
Esclarecidos nossos apontamentos, salientamos que divergimos da leitura de
Auerbach, a qual toma como princípio norteador de análise apenas o caráter cômico e
divertido da obra. Características estas, segundo o filólogo alemão, propiciadas através
da mistura dos estilos alto e baixo. Significativa também é a exclusão, por parte de
Auerbach, dos aspectos que imprimem tragicidade à obra. Por outro lado, consideramos
e incluímos novas perspectivas para a análise da obra de Cervantes ao examinarmos o
contexto social no qual se encontrava a cavalaria obsoleta no período de produção da
obra e seu ambiente cultural multifacetado ibérico.
Referências bibliográficas:
22 LUCÍA MEGÍAS, José Manuel. Imprenta y libros de caballerías. Madrid: Ollero & Ramos, 2000.
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Fontes:
AUERBACH, Eric. A Dulcinéia Encantada. Mimesis: a representação da
realidade na Literatura ocidental. Tradução coletiva para a língua portuguesa. São
Paulo: Perspectiva, ed. 2009, pp. 299- 320.
AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na Literatura ocidental.
Tradução coletiva para a língua portuguesa. São Paulo: Perspectiva, ed. 2009.
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La
Mancha. (I, II). Edición íntegra y anotada. Catalunya-España: Editorial Optima, S.L.,
2003.
Leituras:
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tragicomédia do primeiro autor. Tradução de Sílvia Massimini. Revista USP. São Paulo,
n.67, p.270-281, setembro/novembro de 2005.
CANAVAGGIO, Jean. Cervantes en su vivir. s/d. Disponível em:
<http://www.cervantesvirtual.com/bib/bib_autor/Cervantes/biografia.shtml> Acesso
em: 16/10/2012. FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Tradução para o
português: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
Disponível em: <http://www.ufscar.br/cis/wp-content/uploads/FOUCAULT-Michel.-A-
hist%C3%B3ria-da-loucura-na-idade-cl%C3%A1ssica.pdf> Acesso em: 03/06/2012.
GUIMARÃES, Marcella Lopes. História e Literatura: um debate desde
Aristóteles. Capítulos de História: o trabalho com fontes. Curitiba: Aymará Educação,
2012, p. 109-139.
HUINZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.
JAROUCHE, Mamede Mustafa. Uma poética em ruínas. Livro das mil e uma
noites. vol. I: ramo sírio/Anônimo. Tradução do árabe para a língua portuguesa por
Mamede Mustafa Jarouche. 3 ed. São Paulo: Globo, pp.11-35, 2006.
LUCÍA MEGÍAS, José Manuel. Imprenta y libros de caballerías. Madrid: Ollero
& Ramos, 2000.
SCHMITT, Arbogast. Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no
Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos
tempos modernos. In: LIMA, Luiz Costa (organizador). Mímesis e a reflexão
contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, pp. 137-189.
VIEIRA, Maria Augusta da Costa. Louco lúcido: Dom Quixote e o Cavaleiro do
Verde Gabão. In: Revista USP. São Paulo: USP, n.67, setembro/novembro 2005, p. 290.
Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/67/21-vieira.pdf> Acesso em:
04/06/2012.