20
INTRODUÇÃO A hesitação da minha geração posso eu compreender, já não é de resto nenhuma hesitação, é o esquecimento de um sonho sonhado há mil noites e mil vezes esquecido; quem se quererá zangar connosco devido ao milésimo esquecimento? Franz Kafka A obra que o/a leitor/a tem em mãos reete sobre a origem e o futuro da arte face à cidade contemporânea. No campo de uma arte genuinamente pública, que a expressão ‘arte pública’ não esgota, a atenção à multidimensionalidade dos mecanismos sociais, aplicada ao projeto artístico como dispositivo, é consti- tuição quotidiana de possíveis experienciáveis com enorme poder não apenas expressivo, mas propriamente persuasivo, revelador. Na história de alguma arte crítica, há uma energia de aber- tura e entendimento que se vê inscrita na vida urbana enquanto totalidade, sob a gura emancipatória da cognição da cidade existente. Se a cognição corresponde a um ato ou processo de conhecer, que envolve atenção, perceção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem, o termo introduz aqui a questão de como a imaginação artística problematiza os seus próprios limites, potencialidade, e ao mesmo tempo a sua morfologia face ao socius. Trata-se de relevar a emergência na contemporaneidade de um tipo de dinâmica projetual que nunca deixou de constituir, sob diversas guras de modernidade ou da vanguarda, a arte que atenta à totalidade da cidade. Urge então reetir acerca dos mecanismos retóricos inerentes ao tecer coletivo do urbano de que a arte é epifania (Argan). Após uma dezena de anos propondo à cidade consecutivas experiências estéticas, reito menos sobre a história do que sobre os princípios retóricos de uma estética especíca e seus fundamentos. MULTIDIMENSIO- NALIDADE (QUOTIDIANA) O quotidiano é […] PXOWLGLPHQVLRQDO ŶXLGR ambivalente e lábil […] um complexo de saberes e práticas vitalmente vivo e (pelo menos potencialmente) extraordinário. Michael E. Gardiner DISPOSITIVO 3DUD 7DJJ K£ WU¬V Q¯YHLV QR processo: as capacidades tecnológicas e organizacionais GH SURGX©¥R WUDQVIRUPD©¥R uso e consumo; os meios de comunicação que produzem UHOD©·HV GH FRQKHFLPHQWR e poder; e as técnicas e modalidades de poder que moldam o campo das relações sociais e condicionam o lugar dos sujeitos e corpos no seio de uma £UHD GH FRQKHFLPHQWR Malcolm Miles

Arte na Cidade – Introdução

Embed Size (px)

Citation preview

I N T R O D U Ç Ã O

A hesitação da minha geração posso eu compreender, já não é de resto nenhuma hesitação, é o esquecimento de um sonho sonhado há mil noites e mil vezes esquecido; quem se quererá zangar connosco devido ao milésimo esquecimento?Franz Kafka

A obra que o/a leitor/a tem em mãos re!ete sobre a origem e o futuro da arte face à cidade contemporânea. No campo de uma arte genuinamente pública, que a expressão ‘arte pública’ não esgota, a atenção à multidimensionalidade dos mecanismos sociais, aplicada ao projeto artístico como dispositivo, é consti-tuição quotidiana de possíveis experienciáveis com enorme poder não apenas expressivo, mas propriamente persuasivo, revelador.

Na história de alguma arte crítica, há uma energia de aber-tura e entendimento que se vê inscrita na vida urbana enquanto totalidade, sob a "gura emancipatória da cognição da cidade existente. Se a cognição corresponde a um ato ou processo de conhecer, que envolve atenção, perceção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem, o termo introduz aqui a questão de como a imaginação artística problematiza os seus próprios limites, potencialidade, e ao mesmo tempo a sua morfologia face ao socius.

Trata-se de relevar a emergência na contemporaneidade de um tipo de dinâmica projetual que nunca deixou de constituir, sob diversas "guras de modernidade ou da vanguarda, a arte que atenta à totalidade da cidade. Urge então re!etir acerca dos mecanismos retóricos inerentes ao tecer coletivo do urbano de que a arte é epifania (Argan). Após uma dezena de anos propondo à cidade consecutivas experiências estéticas, re!ito menos sobre a história do que sobre os princípios retóricos de uma estética especí"ca e seus fundamentos.

MULTIDIMENSIO-

NALIDADE (QUOTIDIANA)

O quotidiano é […]

ambivalente e lábil […] um complexo de saberes e práticas vitalmente vivo e (pelo menos potencialmente) extraordinário.

Michael E. Gardiner

DISPOSITIVO

processo: as capacidades tecnológicas e organizacionais

uso e consumo; os meios de comunicação que produzem

e poder; e as técnicas e modalidades de poder que moldam o campo das relações sociais e condicionam o lugar dos sujeitos e corpos no seio de uma

Malcolm Miles

24 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

Este desa"o re!ete várias ansiedades: será que a abordagem retórica da arte nos permite tornar a imaginação, a criatividade e a própria techne mais instrumentais num entendimento dos possíveis (e do seu próprio sentido)? É viável atribuir à arte crítica na cidade, hoje um movimento tão disperso quanto global, a responsabilidade de problematizar a transparência do funciona-mento da polis, isto é, da cidade como dispositivo político e social? Será que, para os criadores movidos por uma ética retórica, a única arte verdadeiramente legítima – verdadeira – é a pública?

Numa altura em que alguns dos desa"os da teoria crítica dei-xam de ser reconhecíveis, continua a ser pertinente pensar e experimentar a ligação entre arte e vida, tendo em conta a intui-ção de ferramentas conceptuais e poéticas atuais, intuídas na arte como processo e durée do contacto social. Em certos momentos da história coletiva, da biogra"a dos agentes culturais, ou da vida de uma cidade, há com efeito situações que reinscrevem, no território contingente da sua performance quotidiana, pos-sibilidades novas, relacionadas com uma desejada superação de determinadas condições. Neles irrompe toda uma retórica que continua a reabrir o debate acerca da função da arte na cidade, em particular na cidade burguesa e capitalista.

Cruzando vários aparelhos teóricos e tradições intelectuais e artísticas, sustenho que a retórica, enquanto racionalidade proble-matológica (Meyer), é o campo do conhecimento adequado para pensar esta articulação efetiva entre produção artística e vida social na forma urbana; procedo por intuições e analogias em torno da terminologia da arte pública para exprimir tensões pro-dutivas de uma arte cujo princípio criativo é de"nido na aplicação experimental – decisões discretas num continuum criativo – do que entendo como metáforas operativas. Tal campo semântico é, ou deveria ser, transversal a todas as disciplinas da cidade: do Urbanismo à Arquitetura, das Indústrias Culturais ao Projeto Cultural, da Antropologia do Espaço à Arte Urbana.

As experiências que destaco a"rmam a identidade provisória de um modus operandi. É uma ética projetual especí"ca que con-sidera a arte um dispositivo crítico (do quotidiano) e um lugar de celebração espiritual (da communitas). Nessa identidade, um conjunto de ações manifesta um estilo (na aceção que Balzac dá ao termo), que emerge de uma produção curatorial própria, iniciada em torno da metáfora extramuros1 e interdependente da criação e re!exão dos artistas com quem trabalhei colaborativamente.

ARTE CRÍTICA

graças a um movimento de

arte e o mundo prosaico da mercadoria. […] O esbater de

própria ‘modernidade’.

Jacques Rancière

EPIFANIA

nada mais é que a complexa

Giulio Carlo Argan

RETÓRICA

Vejamos doravante a retórica

possui de desmascarar os discursos impostores que o

pressupõem. Vejamo-la também como a capacidade

se pronunciarem sobre aquilo

aquilo que os une.

Michel Meyer

25

Foram esses artistas que alimentaram os princípios teóricos de um modelo de arte pública crítica de que aqui busco, como que numa anamnese, as a"nidades eletivas. Nesse modelo determino tensões produtivas (Miles) e criadores exemplares na enunciação retórica das mesmas. Na sua evidência, arredada de muita da produção no campo da arte contemporânea que se autopropõe crítica mas redunda em pura metafísica, esta metaoperatividade retórica tem o condão de estabelecer premissas efetivas para debates alargados e comuns sobre a ética, a lógica e a estética do projeto artístico na cidade.

UM MODO OPERANDO

Na metodologia de intervenção urbana subjacente às obras e aos eventos que aqui registo, destaco a questão da intensidade retórica da arte na forma urbana. Tal parte sempre de uma análise em que, como no Projeto Urbano, a arte é menos uma mecânica instrumental que uma postura (Bonillo), um modo de ver e fazer. É nesses termos que revisito uma hipotética genealogia crítica de projetos artísticos que, perante diferentes contextos, espaços e oportunidades, colocaram aos participantes e intervenientes a res-ponsabilidade de evoluírem de forma autónoma, na conscientização do seu ser-no-mundo (Heidegger) para além da vivência trivial.

Todos esses projetos partilham traços fundamentais comuns, desde logo porque reformulam a conceção separada (Debord) da arte no quotidiano contemporâneo, por via da simplicidade, discrição e evidência dos seus mecanismos constituintes, e em prol da sua dimensão comunicacional. Como explicitamente na arte pública crítica (Wodiczko), tal resulta na produção de saber partilhável sobre/na cidade.

Parto do princípio de que o projeto artístico na cidade é o dis-positivo por excelência para nos apropriarmos do quotidiano de forma produtiva. As ações exemplares e experimentais tornam-se assim património coletivo, isto é, um logos artístico para além dos lugares-comuns a que são usualmente con"nadas pela organização sociocultural e suas indústrias. Ou seja, perante o socius (cada vez mais) de"nido pelo design (Flusser), a cultura de ponta na globaliza-ção hegemónica, proponho a experiência do carácter interessado da retórica aplicada ao tecido urbano, na medida que esta me ajuda a compreender o sentido dos interstícios criados pela arte crítica.

METÁFORAS

jogássemos um pouco no

Se as tomássemos a sério e as levássemos até à

generalização de um espaço

uma sociedade cada vez

exponencial da liberdade de circular e de interagir. […] É claro que os próprios autores

podem levar até às últimas

o risco de se tornarem absurdas.

Renato Miguel do Carmo

PRINCÍPIOS TEÓRICOS

recriar a situação teórica é

de ida ao encontro com o

em que o Humano existe pura e simplesmente assim só por existir.

António de Castro Caeiro

FORMA URBANA

Qualquer conceito de cidade inclui imperativamente a questão da sua materialidade

suporte de todas as atividades e

e que se organizam coletivamente. Esta questão da

procurando a maioria das vezes articular a leitura da cidade

uma cidade desejada.

Carlos Dias Coelho

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

26 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

Atenção (um cuidar), disposição (um expor) e graça (um emocionar) aparecem então como os principais tropos retóri-cos de um território proposicional sempremergente que conti-nuamente redesenha o horizonte do social, indestrinçável de uma consciência especi"camente pública da arte na cidade, bem como da produção artística enquanto possibilidade cognitiva e emancipatória. To cut a long story short, a arte pública deve ser elogiada enquanto metamodalidade (parafraseio Wagner) ade-quada à pulsão artística que integra preocupações retóricas na sua aproximação à redenção da pulsão social.

O sentido da arte pública é por isso, mais do que representar, o de criar públicos. É isso que distingue essa arte da que, sob a designação burocrática de ‘arte pública’, se limita a laborar no seio das indústrias do consumo e da comunicação, seja sob a forma da cultura événementielle, seja sob a forma da tradição turd on the plaza, cúmplices da negação generalizada da potencialidade da arte para a transformação política.

Ao avaliar o papel histórico de experiências inovadoras de requali"cação, monumentalização, ativismo, colaboração ou cele-bração comunitária (a festa), procuro contribuir para a identi"-cação de uma arte do espaço público. Esta disponibilidade para a consciência dos processos coletivos que de"nem a mate-rialidade atual da esfera/coisa pública – fugaz e muitas vezes contraditória – abre caminho a um entendimento alargado do que em termos artísticos possa ser dialeticamente relevante e/ou irrelevante acerca do contemporâneo.

RETÓRICA APLICADA AO

TECIDO URBANO

Gabinete do Rossio (coord.)

PROCESSOS COLETIVOS

‘Processo coletivo’ tem

contextos ativistas e em

ou atrair a atenção; nestas diz

Johanna Billing, Maria Lind e Lars Nilsson

CONTEMPORÂNEO

uma relação singular com o

mantém a distância. Mais aquela relação

com o tempo que adere a este

através de uma disjunção e de

um anacronismo. Aqueles que coincidem demasiado bem

não são capazes de sobre ela

Giorgio Agamben

27

Em ‘O que é o contemporâneo?’ [O que É um Dispositivo?,#2009], o "lósofo Giorgio Agamben recorre à imagem do céu estrelado para de"nir como contemporâneo aquele que não se deixa encan-dear pelos pontos luminosos, para concentrar a sua atenção no escuro do "rmamento. Consciente, de acordo com a astrofísica, de que nesse negrume há tantas ou mais luzes, que apenas não são visíveis porque se afastam mais rapidamente do que a velocidade da luz que emitem, tal artista tem por referente algo que sabe existir mas que por alguma razão os do seu tempo são incapazes de conceber, ou que preferem ignorar. A produção cultural e artís-tica surge então como ação com maior ou menor (ir)relevância na medida em que relativiza os valores da sua época e nessa época inscreve uma ansiedade única e particular, apontada ao vazio. O papel histórico que a arte pública vem cumprindo é o de abrir este vazio na cidade, literal e simbolicamente.

Seguindo a lógica de Agamben, o artista tem de descon"ar do reconhecimento (seja a que nível for), bem como da sua instru-mentalização (seja por quem for), para se manter… irrelevante. Só assim persiste uma voz do futuro e do que vem. Somos portanto criadores contemporâneos na exata medida em que soubermos ser ao mesmo tempo, e de acordo com diferentes contextos e situações, relevantes e irrelevantes.

Constatar e abordar materialmente esta dimensão da arte na cidade passa por analisar as funções da arte na paisagem urbana, o que talvez exija que se comece por uma sensibilidade especí"ca: Onde vemos de facto paisagem e não já uma soma de objetos naturais isolados, temos uma obra de arte in statu nascendi (Simmel). Na órbita do urbanismo – sobretudo crítico ou radi-cal#– tornam-se assim determinantes aquelas posições que criam, instauram ou inscrevem um sentimento de graça social. Nestes termos, trata-se de a"rmar que alguma arte, e a um certo nível apenas alguma arte, ou alguns momentos de arte, criam verda-deiramente cidade. É a arte pública (ir)relevante.

ATIVAR A HISTÓRIA

Na história da arte, as ideias de quotidiano, participação ou comunidade, na sua articulação com a dimensão artística e estética, produziram ações que, sobretudo desde os anos 60, impuseram, progressivamente, uma vasta gramática projetual. Esta é pensável a partir da problemática da liberdade e da eman-

(IR)RELEVÂNCIA

Eles [os contemporâneos] são neste sentido inatuais. Mas precisamente por causa dessa

via dessa desconexão e desse

que os outros de perceber e captar o seu próprio tempo.

Giorgio Agamben

PAISAGEM URBANA

condensam como exemplares únicos uma ontologia complexa:

altura. É a temporalidade que

Adriana Veríssimo Serrão

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

28 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

cipação. Nesta suspeição inicial, busco con"rmar, sempre que possível, a acuidade de certos conceitos históricos – a"rmados em paradigmas de conhecimento e ação (romantismo alemão, vanguarda modernista) – e a possibilidade de certos trabalhos e dias, formalmente díspares, serem frutos de uma mesma pulsão performativa que seria a da liberdade da necessidade.

Em tal performática da arte pública, está implícita uma crítica da ‘arte pública’, como fenómeno histórico. Não satisfeito com a sua instrumentalização estritamente decorativa e/ou institucio-nal, contraponho um ethos e um logos retóricos, enquanto princí-pio vital (Bergson) de ordem dialógica, argumentativa, exemplar#– numa palavra, comunicacional. Ou seja, há uma arte diferente das outras, na medida em que cria vida urbana, e operacionaliza, em consciência e no discurso, uma função social urbana. Essa será a arte pública como arte do futuro (Wagner), no seio de uma esté-tica metateatral (Turner) e, ao limite, comunista (ainda Wagner, atualizado por via de Blanchot, Nancy ou $i%ek).

Será um espectro que hoje tanto surge como oposição ao culto do Estado (Negri), assomo de democracia nietzschiana (Nancy) ou expressão de uma força débil (Vattimo), já para não dizer todo o tipo de práticas performativas comunitárias com traços de ausência de propriedade individual. Ora, pergunta Sven Ortoli: Em que medida é que este conceito seria operativo para salvar a possibilidade de uma revolta, escapar ao capitalismo, à socie-dade do espetáculo, à hiper-realidade ou ao Império? Se é Platão o primeiro a elaborar a ideia de uma comunidade ideal, Aristóteles apressa-se a questionar a mesma do ponto de vista de um senso comum: É manifesto que, se avançar demasiado na via da unidade, uma cidade deixará de ser una, pois a cidade tem na sua natureza de ser certo tipo de multiplicidade, e se se torna demasiado una, do estado de cidade ela regressa ao estado de família e do de família ao de indivíduo. Aristóteles rejeita portanto a ideia de uma verdade completamente contida no mundo das ideias, e não cessará de procurar perscrutar a fusão entre o mundo e as ações dos homens. Ora é precisamente isso que o levará a fazer a primeira crítica da economia de mercado.

O articular da ação e da boa vida aristotélicas com um senso ao mesmo tempo plástico e pragmático de revitalização estético-política da sociedade baliza o essencial desta posição. A#visão da arte como pulsão, conhecimento especí"co e cognição em#Konrad Fiedler e a disponibilidade para a construção utópica

PULSÃO PERFORMATIVA

de produção de sentido em arte. É um modelo teórico que permite que as possibilidades e os limites de actuação sejam entendidos com e através da

Dorothea von Hantelmann

PERFORMÁTICA

realizada [performed

performance] e o corpo na

[Performatics

através […] não apenas uma

excesso.

Lynette Hunter

ESPECTRO (COMUNISTA)

aprender a viver aprendendo não apenas a entabular uma

mas manter uma conversa

mesmo que ainda não sejam.

Jacques Derrida

29

em Richard Wagner constituem uma feliz ‘origem’ e o ‘futuro’ de um saber complexo que já em Friedrich Schiller e Novalis havia sido objeto de análise. Este saber é convocado para a criação de cidade, na senda da sociologia experimental de Henri Lefebvre, informada/determinada pelo contacto com as primeiras van-guardas e o situacionismo.

Acompanho a emergência dos conceitos críticos que, espe-cialmente na modernidade e na pós-modernidade, têm servido para os criadores informarem/legitimarem as suas atividades. De Benjamin a Foucault, de Simmel a Sennett, de Arendt a Ran-cière – neste, as noções de partilha do sensível e emancipação do espectador têm tido grande impacto –, de Nancy a Miles ou hoje Agamben, Latour e Sloterdijk, discorro possibilidades para o discurso da/na arte, articulando o paradigma do texto (Barthes, Bakhtin) com uma consciência (neo)marxista (Debord, Deleuze e Guattari) do quotidiano.

A viagem brota depois da articulação entre posições teóricas e teórico-práticas (de Brecht a Duchamp, de Beuys a autores em atividade nos campos da arte conceptual, da land art, da crítica institucional e de outros movimentos a"rmados desde os anos 80 e 90), com base numa re!exão sobre como arte e forma urbana se co- e reproduzem mutuamente.

Na prática, trata-se de re!etir sobre a criticidade da arte na/face à cidade, perspetivando os traços críticos nos eventos do meu corpus. Para ir de encontro à sua irreverência, a qual caracteriza as esferas mais dinâmicas da curadoria, parti do estudo da paixão em Daniel E. Gross, passando pela non-representational theory de Nigel &rift, iluminações exponenciadas pelas propostas de nomenclatura crítica em Lacy, Jacob, Ardenne, Kester, Bishop, Doherty, Lind ou Holmes. Tal permitiu-me, espero, destrinçar re!exões políticas fundamentais das da moda (Wagner).

Se é a partir da cartogra"a a"rmada desde os anos 60/70 que penso – Beuys e a escultura social, Kaprow e um blurring of art and life ou Krzysztof Wodiczko e a arte pública crítica –, sublinho no meu processo de descoberta a produção teórica de Malcolm Miles. No meio do repensar e questionar, por tantos autores, dos próprios campos semânticos, dos chavões e dos soundbytes, senão dos próprios princípios da racionalidade, aprecio a forma como aquele autor, inicialmente focado no noema ‘arte pública’, lhe vai problematizando o interesse, precisamente de"nindo

COMUNISMO (A PALAVRA)

que o inquérito ou comentário acerca desta palavra deva ser tão raro. Como se tivesse sempre sido evidente por si

Jean-Luc Nancy

A AÇÃO E A BOA VIDA

ARISTOTÉLICAS

A análise de Aristóteles permite-

ao alcance de uma deteção cognitiva e puramente teórica.

ação e exprimi-lo no agir. O saber prático é adquirido apenas quando se converte

importa saber apenas qual é a possibilidade extrema do

dela. A possibilidade extrema

António de Castro Caeiro

ESCULTURA SOCIAL

por um contexto social em maior grau que a maior parte

nacional e local.

Jörgen Svensson

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

30 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

um território de análise na triangulação entre teoria crítica, cultura visual contemporânea e urbanismo. Ainda assim, e ao contrário de Miles, ‘ainda não é desta’ que abdico da expressão ‘arte pública’, pois diviso na expressão menos uma genealogia histórica limitada e ainda um programa possível.

Na verdade, Miles recorda-nos que as descrições de arte pública são de uma forma geral pouco simpáticas e re!etem a sua marginalidade. Críticos mais duros chegam a chamar-lhe pudim socioestético ou um oxímoro, resolvido a favor da banalidade. Ora

As bases da evolução e do discurso da arte pública são as questões acerca da sua relevância para a história contemporânea do fazer artís-tico ou dizendo respeito à qualidade de uma prática cultural baseada na experimentação e na comunidade exterior ao enquadramento legi-timador da galeria, do museu e da posse individual. Adicionalmente, coloca-se a hipótese de que a arte pública não seja genuinamente de todo uma prática de belas-artes, mas decoração comunitária ou, na melhor das hipóteses, desenho urbano competente. Acontecendo nas margens do mainstream da prática artística, como podemos compreender a arte pública e o seu legado no quadro da tradição do modernismo? Ou será a arte pública pura simplesmente a prática pós--moderna por excelência: vernacular, local, igualitária e muito possi-velmente sem sentido?2

Portanto, esta ‘história essencial’ procura relevar aquelas ações, projetos e atitudes (ou pelo menos aspetos das mesmas) que, mais do que desenrolarem-se na esfera ou no espaço público, mais do que laborarem no seio de programas de intervenção ou animação urbana, são pensados a partir da energia crítica que os move no sentido de uma intervenção urbana genuinamente extramuros. No fundo, não escapo à tautologia: a arte será genui-namente pública quando é extramuros e genuinamente extramuros apenas e só quando é pública.

Neste sentido, uma abordagem crítica da tripartição retórica –#o equilíbrio ethos-pathos-logos – permite que integremos (ou não) qualquer atitude projetual (Sena da Silva) – não menos que a sua receção, no espírito extramuros. Perante a investigação-ação que me conduziu até este texto, estes são os temas subjacentes à arte como dispositivo crítico de envolvimento com os dispositivos do socius, aspirando à comunicação da sua graciosidade potencial. Ora é a capacidade de atenção que nos de"ne a posição, sempre relativa, perante o nosso tempo.

RACIONALIDADE

[A racionalidade é] disposição de sujeitos capazes de agir e de

as quais existem bons motivos ou razões.

Jürgen Habermas

ARTE PÚBLICA

À medida que a prática

através da evolução da arte

muitas obras da última década

claramente simplistas e não-

complexidades inerentes aos espaços públicos e à produção

públicos apenas tenuemente consideradas.

Margaret Adamek e Karl Lorenz

ENQUADRAMENTO

LEGITIMADOR DA

GALERIA

produto de inspiração e génio individual que é compreendido e apreciado por pessoas geralmente cultas em espaços

e apresentada em espaços

estatuto ou gosto. A arte

Tim Cresswell

31

EXTRAMUROS: CONCEITO E METÁFORA, ÉLAN E RETÓRICA DA ARTE

NA FORMA URBANA

Na minha abordagem helicoidal (Miranda Justo) da história da arte contemporânea, procuro situar-me no quadro de uma prag-mática poiética e performática de esquemas e !guras, predando conceitos e experiências à medida da intuição projetual que se apaixona pelas complexidades labirínticas do social. Isto conduz--me ao elogio de uma dimensão ética do conhecimento enquanto experiência crítica do hegemónico (Gramsci) e do desenvolvimento desequilibrado (Lefebvre, Neil Smith).

Noutros termos, não é sustentável ser-se intelectual e não se realizar uma autocrítica responsável desse estatuto, aplicando-a tanto quanto possível, ou desejável, na praxis cultural, entendida como violência (Bourdieu) necessária. Só ela permite deitar luz sobre factos da história cuja violência poderia de outro modo permanecer absurda e ininteligível; por exemplo, o episódio que ocorreu em março de 1914, quando a su!ragette Mary Richardson irrompeu pela National Gallery em Londres adentro e atacou uma tela de Velázquez com um cutelo de carne (a ação de vandalismo crítico foi desencadeada pela prisão, na véspera, da companheira e líder su!ragette Emmeline Pankhurst)…

Ora quando a arte pública tem de assumir o jogo intuitivo da nomeação – new genre public art, community based art, art con-textuel, relational aesthetics... etc., etc. – isso contribui para a manutenção de uma potencialidade dialética para a arte no mer-cado das ideias. Aí reside uma questão de géneros e modalidades (sempre provisoriamente) críticos desde que, no espírito retórico, sobre eles possamos falar.

Ora, em concreto, existem dispositivos apropriados para uma arte cujo impulso vital a impele para ‘fora de si’, na direção de um sentimento do social. Face aos limites impostos pelo meio urbano, estes dispositivos assumem perante a cidade uma função interventiva (espaço) e interpelativa (discurso), promovendo ativamente uma forma de posteridade (Duchamp) relativamente imediata e em tempo real.

Neste anseio vital de superação dos limites do quotidiano trivial através da arte, aspeto determinante nas carências oito-centistas e novecentistas (Schiller, Novalis, Schopenhauer, Feuer-bach, Wagner), desenrola-se esta nova arte do público (Knight)

FIGURAS (TAMBÉM NA

CIDADE)

que nos encontremos perante

estrutura particular.

Chaïm Perelman

‘FORA DE SI’

procurar oportunidades para

começámos a interessar-nos por sair e a prestar mais atenção

nossas instalações aconteciam

à medida que cada projeto se desenvolveu através de uma

Cornford and Cross

VANDALISMO CRÍTICO

Rokeby Vénus (La Venus del espejo)

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

32 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

como plataforma de encontros transdisciplinares impulsiona-dos pelo movimento conceptual – para Bürger, a vanguarda – e depois as neovanguardas na senda situacionista como na deriva ambiental e feminista da land art.

Renovar os limites da arte é então renovar a própria cidade, tanto como ideia (conceitos) como espaço-tempo vivido (inter-venção). Aqui, são as premissas de um urbanismo geral (Argan) e de uma ecologia profunda (Capra, Guattari), num quadro de revalorização do cinismo (Sloterdijk), a pre"gurar a força desta ação para a lebenswelt urbana, que sob as modalidades da denún-cia, da revolução, da festa ou da revelação – formas da evidência (Gil) – se pode então encontrar consigo própria.

Neste sentido, é deliberadamente que o ‘extramuros’ do título autoriza a interpretação enquanto adjetivo e advérbio. No pri-meiro caso, remete para a ideia de que existirá uma estética extramuros que o tempo vem consolidando como modalidade especí"ca; no segundo, e certamente mais importante, de que se trata de uma atitude – uma maneira de fazer – que aborda e expande o projeto até este integrar a durée da vida a ser vivida. Supõe-se portanto, no processo de a"rmação desta arte, que nela emerge algo como uma mística dialógica do social (Buber), constituindo uma fonte inesgotável de esperança (Harvey). Esta, sendo sempre um trabalho sobre o possível, é porém verdadeira ou convincente nuns projetos mais que em outros.

Precise-se por outro lado que aquela abertura favorece formas de imprevisibilidade, de imponderabilidade, que tanto podem passar por integrar elementos díspares numa harmonia pericli-tante como apontar para um in"nito sublime espacial ou tem-poral de que a obra é não apenas testemunho gasoso (Jimenez) mas também causa. Toda esta problematicidade tem porém de ser devolvida ao real como universo de tensões discretas e identi"-cáveis perante as quais somos convidados a tomar partido. Creio que assim é possível dar consistência teórica a uma tipologia da ação cultural no espaço urbano. Esta ressalva os princípios e a legitimidade generosamente comunitários de uma modalidade da arte na cidade cuja retórica, no coração de um urbanismo crítico, corresponde a uma dinâmica de participação cidadã, transparência dos dispositivos e evidência informativa e peda-gógica do artístico.

CINISMO (E CULTURA)

O cinismo é a resposta da cultura dominante à sua

kynical]:

a distância entre a máscara

continua a encontrar razões para manter a máscara. […] Temos de distinguir esta posição

kynicism. […] procedimento mais pragmático que argumentativo:

da sua enunciação.

Slavoj

CINISMO (E PRAXIS)

procedimento cínico [cynical] não joga de acordo com as regras da lógica. É mais pragmático que argumentativo

age ad hominem

subversivamente contra o

máscaras ideológicas

Peter Sloterdijk

ESPERANÇA

[…] é bom ter presente que

pode dispensar a capacidade

da matriz emancipatória que

Miguel Cardina

33

AXIOMÁTICA

A proposição de uma retórica da arte extramuros pode ser abor-dada em função de dois principais eixos paradigmáticos. Estes correspondem a quatro vetores-paradigma da produção artística. Este esforço de sistematização clari"ca quatro interpretações da função da obra de arte na cidade. Para que esta relação se possa tornar instrumental, estabeleço uma operação metafórica, com tudo o que isso implica de simpli"cação, mas também de intencio-nalidade: coloco, de um lado (esquerdo) o Museu e a Instituição, para lhe opor (à direita) a Cidade e a Paisagem; faço atravessar essa linha tensional por outra perpendicular, em que tenho (em baixo) o Corpo e a Dança e (em cima) o Texto e o Conceito.

Ao longo do eixo horizontal, temos, do lado esquerdo, a tra-dição da arte como atividade projetual estável e con"nada, con-substanciando-se historicamente, no espaço urbano, na funcio-nalidade monumental-representacional-decorativa do objeto de arte. O seu modelo, interpretado muitas vezes através da escultura pública, será o do Belo tradicional ou hegemónico, e parece encontrar a sua justi"cação mais profunda num desejo de inserir no tecido urbano – a cidade existente – momentos de contemplação de uma beleza conforme, mormente à instituição burguesa do museu. Em torno desta palavra-chave, teça-se uma rede de sinónimos: instituição, moldura, plinto, tradição, segu-rança, objeto, memória… As reticências permitirão ao/à leitor/a desenhar o seu próprio campo de equivalências.

No polo oposto, em torno do termo ‘Cidade’, temos uma tra-dição urbanístico-paisagista, cujo modelo, sob o signo da arqui-tetura-jardinagem e da ecologia social é, no limite, interpretado através de intervenções urbanas hoje ditas participativas, cola-borativas ou comunitárias, isto é, socialmente dinâmicas. Aqui, o conjunto de termos a"ns integra a paisagem, o processo, a experimentação, a o"cina, a plataforma, e sobretudo a aber-tura, a imponderabilidade, o ativismo, o mundo como sistema autopoiético. A vida, e talvez a vida como experiência sublime, partilhada socialmente e em aberto.

No eixo vertical, em baixo, diviso uma tradição performativa cujos promotores apostam na ironia, no choque, na surpresa, mas também no silêncio, na concentração e na intimidade, para interferirem no !uxo urbano sob o modelo da interrupção provo-cativa. Pode esta ser mais ou menos traumática, mais ou menos

TECIDO URBANO

dos conceitos utilizados

particularmente recorrente na análise da cidade existente.

Carlos Dias Coelho

TRADIÇÃO

PERFORMATIVA

uma nova classe de obras de

de sentido que existe em

que nem sempre é moldado consciente e ativamente:

de produção de realidade.

Dorothea von Hantelmann

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

BELO (JÁ NÃO [APENAS])

TRADICIONAL

A vanguarda interrompeu a

como ideologicamente cúmplice

a beleza como carregada politicamente corresponde a considerar os gostos e desgostos subjetivos enquanto

Dave Beech

34 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

discreta e subtil, mas está sempre intimamente relacionada com a experiência do corpo do artista que tanto aparece como agent provocateur – na tradição Dada – ou mestre de um tempo outro"– nas tradições da performance art na órbita da dança. Recorde-se que depois de Yves Klein, um dos inventores do corpo nu na arte contemporânea, será com os neodadaístas Gutai e os happenings –#a continuação do Dada por outros meios… meios vivos e ativos (Lebel) – que o corpo começa a mexer-se, a dançar…

Finalmente, no extremo oposto deste eixo, proponho uma tra-dição discursiva, aliás sobretudo metadiscursiva, que assenta na articulação expressa de conceitos "losó"cos, políticos, estéticos, mormente sob a forma do texto. Talvez o topo deste eixo re!ita o projeto iluminista de partilha da informação no território do debate e da comunicação; mas aqui não deixa de jogar-se um trabalho literário com a materialidade da poesia – a palavra –, não menos que a potência transformadora da teoria situada, discur-sivamente ancorada no real. Toda esta axiomática tem paralelis-mos com a de Fuad-Luke acerca do Co-design, na qual à esquerda surgem os processos conduzidos pelos designers, à direita pelos non-designers; em baixo com carácter privado e em cima público.

Note-se aqui que a tradição do dadaísmo, interpretada por Mar-cel Duchamp (1887-1968) ao assentar no modelo do ready-made e sua metodologia de provocação, é a linhagem que, na história da arte contemporânea, inscreve e intensi"ca este eixo vertical, ligando a performance física (o corpo contingente) à performática discursiva (a ideia, a palavra, o conceito). Talvez a#arte extramuros seja, nestes termos, e na medida em que é uma interpretação do legado da arte pública crítica – que por sua vez radica nos avanços da arte conceptual (aquela que caminha na direção da cidade) e da land art (aquela que olha na direção de um pensamento sisté-mico) –, essa modalidade da arte urbana que está continuamente em busca de uma vitalidade social que advém da intensi"cação retórica do ato artístico, sempre que procura libertar-se do con"-namento que a trivialidade quotidiana lhe impõe.

Todo este trabalho esquemático procura explicitar a dinâmica comunicacional das obras aqui elencadas. Revela a possibilidade de cada uma delas poder ser interpretada enquanto economia (Bataille) especí"ca (Perniola). Face ao território da convivência e da comunicação humana, exprime a intenção de aproximar o artista da consciência do seu fazer e o público da consciência da sua fruição. No cerne desta dimensão, o dispositivo equivale ao

UM TEMPO OUTRO

pública uma montagem

condensa algumas das mais

validação da documentação

ato transgressivo e o emblema de uma procura da libertação decisiva do quasi-sagrado white

cube.

Janet Batet

DANÇAR

uma trajetória dançada entre o

Ce qui est dansé

personne ne me l’enlève

35

logos da arte pública contemporânea, e portanto a um fármaco – ou por vezes apenas um ‘curativo’ – para a grassante idiotia (Perniola).

Assim sendo, no âmbito do projeto artístico – trabalho, produ-ção, fazer e cognição, no real social de que o criador faz parte – as dicotomias museu/intervenção, contexto/situação e ativismo/participação cobrem boa parte da problematologia da arte pública contemporânea. Esta estratégia permite recuperar abordagens lúcidas das formas como a arte se apresenta ao seu público (white cube vs. situação; monumento vs. instalação…) ou das formas como ela é recebida (do teatral em Michael Fried ao conversa-cional de Grant H. Kester) num quadro complexo em que, graças à retórica, vislumbramos tropos e conceitos operativos.

Identi"co então a constância dos termos de uma economia retórica nuclear: a atenção (ação que condiciona um impulso de envolvimento e de empatia, mais ou menos radical); a graça (no sentido de uma emoção redentora que brota da experiência intensa e consciente do corpo social); e "nalmente o dispositivo (no sentido do apparatus, de Foucault ou de Agamben e que se consuma na experiência do conceito enquanto projeto.

ATENÇÃO, DISPOSITIVO, GRAÇA: UMA DINÂMICA COMPLEXA NO

ESPAÇO PÚBLICO

Por vocação histórica, a arte pode ser de"nida como atividade em que, de forma concentrada e consciente, o Homem se supera no sentido do próprio fazer artístico. Com Duchamp e a arte con-ceptual, toda uma genealogia autocrítica e autorre!exiva adquire expressão e visibilidade ontológica, e mesmo um carácter episte-mológico que torna a arte necessariamente mais comum e lugar, ao limite, de uma consciência social cuja densidade ostenta traços de um entendimento complexo e simultaneamente público.

Se, na arte face à cidade, a relação entre arte e texto é his-toricamente uma conquista relativamente recente (Beech), ela encontra-se hoje exponenciada pela multiplicidade de canais de produção, informação e comunicação disponíveis. Consciente desde o minimalismo de fundamentos materiais-formais-tem-porais, a arte tem por outro lado vindo a(o) terreiro da cidade questionar-se, valorizar-se e, nesse movimento, fazer de todos – tornar comuns – os seus modos de ver. A arte contemporânea questiona-se acerca da sua publicidade.

COMUNICAÇÃO

armazenamento e distribuição

sentido às suas vidas e a superar a sua natural condição de solidão e morte inevitável.

Nancy Roth

ARTE CONCEPTUAL

integrados no seu lugar na produção institucionalizada

enquanto legado do alto modernismo e ponte entre o modernismo (incluindo a

ela pelo pós-modernismo)

questões residuais envolvendo a autenticidade das suas

completamente resolvidas.

Okwui Enwezor

(COMPROMISSO)

CONVERSACIONAL

A voz de cada pessoa tem o direito de ser ouvida. Sem este compromisso com uma conversação cuja premissa

e gestores permanecerá

resistindo a deslocar-se para

é necessariamente contra-

instituições e seus parceiros

está a tornar cada vez mais

Peter Renshaw

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

36 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

Nos dispositivos extramuros que abordo, é desejavelmente nestes termos – de uma democratização utópica da experiência artística – que se trata. Talvez seja isso que procuro mostrar nesta resenha histórica; como as formas estagnadas da indústria cultural (o objeto de arte no Museu é o seu ícone) podem ser subs-tituídas ou complementadas por processos sociais construtivos de que a obra de arte participativa, comunitária ou relacional são os modelos nossos contemporâneos.

Dois termos que permearam esta abordagem da arte do espaço público são a Cultura e a Comunicação – sendo esta o instru-mento mais importante na arte produzida coletivamente (Billing, Lind e Nilsson). Eis uma membrana (Capra) em constante adapta-ção a um quotidiano infernal. Daqui antevejo aliás uma dimensão espiritual na arte que o termo ‘comunismo’ autoriza a extrapolar--se no sentido da festa do social (graça). Face ao quotidiano da abstração – rei"cado, disciplinado, misti"cado, mercantilizado, alienado... – a arte extramuros terá um sentido emancipatório e redentor concretos, porque nela acontece uma espécie de sublime social, uma graça secular do socius a vir.

Por aqui passará a questão de uma expansão transdisciplinar da própria ‘arte política’; mas no termo extramuros é como se concentrássemos a dimensão política da arte numa metáfora cuja origem territorializada é em si um comentário potencialmente crítico a qualquer ideia estagnada ou rei"cada da forma urbana e da polis. Uma das conclusões da re!exão crítica assente nesta premissa é portanto a de que só uma arte tão complexa e contra-ditória (Venturi) como a cidade lhe pode fazer (à cidade) justiça, nela se integrando de uma forma mutuamente esclarecedora.

(FENOMENALIDADE DO)

CORPO SOCIAL

[…] pareceu-nos que a ilimitação

deveria apontar para uma ‘dimensão’ sublime na própria

direção do lugar enigmático do seu instituinte simbólico. […] esta nova problemática conduzia a distinguir rigorosamente a

Marc Richir

DENSIDADE

Vivemos um tempo que não ama as emoções densas.

Umberto Galimberti

TEXTO

Que é texto? É uma determinada

isenta das condições normais

onde se redistribui a ordem

produção; é o que mantém o texto

rejeita que ele se converta num enunciado; é o que impede

entendido como estruturação.

Eduardo Prado Coelho

GRAÇA SECULAR

e é a própria graça a criar esse

graça possa passar.

Simone Weil

Le germoir

37

Trata-se, tautologicamente, de ‘salvar a arte através da cidade’ e de ‘salvar a cidade através da arte’. Desa"ando todos os apa-relhos teóricos e "losó"cos, no presente imediato de encontros vitais, algumas obras inscrevem a publicidade do espaço-tempo urbano de uma forma total. O Espaço Público é então mais do que o espaço público infra e superestrutural das cidades, e natural-mente outra coisa que o domínio público (burguês e capitalista). Se a cidade é arte, o Espaço Público crítico é o seu puntum.

Em suma, proponho na presente obra os princípios funda-mentais e dinâmicos de uma praxis cujos traços identi"catórios são reconhecíveis para além de uma certa super"cialidade das abordagens estéticas correntes no campo da arte ou da política. Se há uma Arte do Espaço Público, que não apenas no Espaço Público, ela é deriva da arte no sentido da sua própria proble-matização retórica, espécie de racionalidade interrogativa – o questionamento enquanto tal (Meyer):

Em suma, quer ela queira quer não, a razão como simples ‘responder» está morta, e se, apesar de tudo, ela ainda ‘anda’, a ciência por exem-plo, é precisamente porque ela responde, facto que não interessa ao

existe responder, é porque existiram perguntas (questões). A retórica é a disciplina que as situa no contexto humano, e mais precisamente intersubjetivo, onde quer que os indivíduos comuniquem e se defron-tem a propósito dos problemas que estão em jogo; onde quer que

agradar e manipular, sempre que nos deixemos seduzir e, sobretudo, sempre que nos esforcemos por acreditar.3

Em nome de uma pulsão social a que sempre regressamos e que pode ser dita no referido alinhamento entre atenção, dispositivo e graça, existirão assim gradações entre assumirmos um papel social restrito, no seio de um habitus cultural predeterminado e que se aceita passivamente, como acontece nos servidores do mundo da arte, e estarmos abertos à arte como conjugação de interesses num projeto-processo aberto e com carácter público. Explicitando um corpo de projetos através de cuja análise e reme-moração se possa ultrapassar um entendimento trivial da arte na cidade, há que relevar aqueles que contêm a "bra de modelos e são capazes de gerar massa crítica.

Em paralelo, acredito na revisão de vários conceitos usual-mente empregues na história da arte ou do urbanismo. Se o objetivo implícito é a atualização do glossário da arte do espaço público na forma urbana, raras vezes feito do ponto de vista da retórica, procuro por isso rever o contextual (Ardenne, em

PRAXIS

O sentido original do substantivo ‘praxis’ é

como ‘ação’ ou ‘prática’. O verbo ‘pratein

onde tem lugar aquilo por que se passa: as situações

que criamos.

António de Castro Caeiro

(O QUE É UM)

DISPOSITIVO

Resumamos brevemente os

O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.

e se inscreve sempre em uma relação de poder. 3) É algo de geral (um reseau

que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito

Giorgio Agamben

Adapt. trad. Nilceia Valdati

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

38 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

alta) ou o relacional (Bourriaud, em baixa) num panorama que não estabiliza qualquer de"nição, antes procura captar a ener-gia da emergência característica da complexidade projetual da curadoria, que penso a partir das intenções intensas de Harald Szeemann, curador crítico independente e personagem-chave da vanguarda negativa (Loock).

Szeemann é referência crucial de um movimento de superação da função de inclusão/exclusão do cubo museológico. A sua pri-meira exposição data de 1957 (Painters-Poets/Poets/Painters) e entre as suas mais célebres ‘obras’ como exhibition maker destaca-se When Attitudes Become Form, em 1969 e a documenta 5, em 1972. De"nindo-se como um pensador indomesticável, estava interessado em divergir a consciência, pois apenas aí existem as energias utópicas. É#neste mesmo sentido generalista que os agentes mais ativos da arte procuram os contextos sociais e os processos urbanos; essa é a evolução natural de uma posição que se vai tornando consciente de como funcionam as metáforas tópicas (Kniess & Voggenreiter), ao encontro de uma arte contemporânea dissidente, disponí-vel para perturbar a apatia do público, sem deixar de manter-se maximamente vigilante no evitar da tentação dos populismos da signi#cação ou das falácias participativas.

Ora, nalguns casos de extremo envolvimento da arte pública crítica com o destino coletivo, e, simultaneamente, num desejo de transparência de processos, dá-se a experiência suprapes-soal de uma graça secular. Não longe de uma ideia de redenção imanente, certos acontecimentos, obras e criadores da contem-poraneidade trouxeram para o campo expandido da arte dos anos 60 esta dinâmica comunicacional especí"ca, que liga a liberdade da experiência de uma luminosa revolução (Nawra-tek) à consciência fugaz de uma intersubjetividade assumida como valor coletivo.

Nestes termos – os do outro dialogal (Buber) – a arte acontece como retoricidade do comum como festa (Gadamer), no que isso implica de gestão crítica da liminaridade (Turner) ou da intersti-cialidade (Miles) aquando da produção do encontro com o facto artístico. É aqui que o contacto com a racionalidade comuni-cativa – e depois a retórica em particular, se torna determinante para qualquer autor e sua autonomia (por exemplo em nome do poder da arte – (Groys) mas também do de um espectador qualquer (no sentido da sua participação).

INTENÇÕES INTENSAS

nas intenções intensas e não

escapar à tradição da questão dos estilos e dos movimentos

concentrar o seu interesse nas Mitologias Individuais.

Florence Derieux

GENERALISTA

por muitos como o primeiro curador verdadeiramente

longa lista do ‘curador como

deixado de crescer: o curador

diplomata.

Hans Ulrich Obrist

UMA ARTE

CONTEMPORÂNEA

DISSIDENTE

de que as produções de arte extrema não deveriam ser nem ‘proibidas nem isoladas’. A degradação do revestimento

[Action

o artista literalmente destruiu o pavimento com um bulldozer

não passou decerto os ‘limites

interveniente no Parlamento

Harald Szeemann

REVOLUÇÃO

revolução.

Umberto Galimberti

39

Ora os mais recentes desenvolvimentos meta"losó"cos de uma retórica contemporânea ajudam-nos a, a partir do campo semântico da arte pública, desenvolver uma retórica própria, aqui não no sentido de uma crítica, retrospetiva, de momentos da história da arte e da cidade, mas no sentido positivo e prospetivo de uma retórica urbana e extramuros para os tempos que correm.

Coincidem assim aspetos decisivos de um ressurgimento da retórica – de Perelman a Gross, passando por Meyer – com a necessidade profunda de renovação espiritual por via da comunicação que alguma arte pública sugere. E portanto, em sede de projeto urbano, podem deduzir-se premissas curatoriais operativas, com o mérito, acredito, de concatenar as mais esti-mulantes perspetivas da atualidade "losó"ca.

RACIONALIDADE

COMUNICATIVA

[…] o conceito de racionalidade

complexos de racionalidade:

(direito e moralidade) e estético- -prático (arte e erotismo).

Filipe Carreira da Silva

RENOVAÇÃO

ESPIRITUAL POR VIA

DA COMUNICAÇÃO

Vicente – Passeios com Mitos

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO

40 ARTE NA CIDADE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

O que espero demonstrar é que entre obras clássicas da arte crítica, obras que hoje se me a"guram ser uma nova geração de#crí-tica da vida urbana sob a forma de arte, identi"co um mesmo território de ligação arte-vida-social. A descoberta resultou de resto da minha própria experiência curatorial – a maior parte da qual realizei desconhecendo por completo os cânones e a maioria da literatura que hoje está disponível e sobre a qual agora re!ito.

Há portanto, nesta história, mas na verdade em todas, uma genealogia mítica a revisitar, senão uma genealogia4 a criar e, certamente, um senso de horizonte a propor. É isso que me leva a acreditar que este é um ‘género’ com posteridade assegurada, na exata medida em que, a cada novo avatar – e agora que a arte pública como ‘gaveta’ de investimento tende a desaparecer –, se vai afastando o lastro dos discursos e da história para constituir--se como a vida a re!etir sobre si própria, plasticamente.

Neste sentido, encaro a arte na cidade – e ela hoje adquire expressão e formas inauditas, muitas vezes irreconhecíveis – enquanto fator de mudança cultural. Faço minhas as palavras da curadora Mary Jane Jacob:

Com tanto a ganhar no processo, parti do modelo curatorial do apre-sentador e árbitro da qualidade, tentando localizar a minha prática na tarefa do articulador da arte no interior dos territórios visual e social. Ao desenvolver esta posição, estou inspirada por uma comparação metafórica que tri-ckster: trapaceiro, vigarista, impostor, intrujão, aldrabão], aquele que cruza fronteiras, esse ‘trabalhador de equipa’ que desliza as junções ou funcionamentos da sociedade. ‘A possibilidade de jogar com as junções

artista-trapaceiro ‘muda a maneira como a natureza, a comunidade e o espírito são reunidos’ alterando parâmetros de ligação entre si, des-mantelando a hierarquia, descentrando-a, e evidenciando as divisões

porosas, e recetivas à mudança, rearticulando-as e mesmo fazendo a ponte ou traduzindo diferenças. Gostaria de estender este conceito ao papel do curador. Para aqueles de nós que valorizam o lugar do público na arte e na prática da exposição, assumir este papel é algo de impor-tante. Evoca a possibilidade de mudança na cultura, de forma a que através de exposições seja possível deslizar ideais e trabalhar as junções do que a arte ‘é’, quem é a audiência e qual o seu papel na arte.5

De resto, nesta história, as imagens, mais do que ilustrar as ideias, articulam continuidades entre épocas. Correndo a par do texto e das caixas laterais, tanto são exemplos de obras oriundas do circuito estabelecido da arte contemporânea, como ressoam com situações actuais de uma arte pública mais ou menos anó-nima com que nos cruzamos todos os dias, seja por via da deriva urbana, seja por via de uma cultura – visual – omnipresente.

GENEALOGIA

conceito de genealogia em

distingue dois termos no seio Herkunft

l’origine) e Entstehung l’emergence). A perspetiva

primeira e essencialmente pela

do desenvolvimento ou génese linear em que origem e começo são pensados como um só.

Sigrid Weigel

Vicente – Passeios com Mitos

CULTURA

de nutrientes mas das coisas da

a sorte de bugigangas. […]

cada vez mais baseada nos meios de comunicação de

sobre o excesso e a minuciosa discriminação em simultâneo.

Julian Stallabrass

41

N O T A S

1. Em particular no quadro da produção da Extra]muros[ associação cultural para a cidade. Por proposta de Andrea Caeiro, a organização deveu o seu nome a uma frase de Jan Hoet na abertura do catálogo do evento Over the Edges, decorrido na cidade belga de Ghent. Foi no âmbito da Extra]muros[ que tive a oportuni-dade de coordenar as iniciativas Lisboa Capital do Nada – Marvila 2001 e Luz-boa#– Bienal Internacional da Luz (2004, 2006). O termo motivaria uma tese de doutoramento precisamente intitulada A Retórica da Arte na Cidade. Dispo-sitivo, Envolvimento e Graça – o Projeto Extramuros como Proposta de Intervenção Urbana, cujo orientador foi Emílio Martinez, da Universidade Politécnica de Valência, Espanha. Alguns dos princípios da investigação têm sido aplicados em projetos internacionais com destaque para o Festival Skyway na cidade polaca de Toru' (rebatizado entretanto Bella Skyway) e o Projeto Vicente em Lisboa. A#associação cultural suprarreferida nasceu na sequência de uma aula de Del"m Sardo, quando inquiriu os discentes da disciplina de Arte Pública do Curso de Espaço Público e Interdisciplinaridade (2000-2001), entre os quais se encon-trava o arquiteto Luís Seixas, acerca da possibilidade de estes se organizarem de alguma forma, uma vez que estavam a ter da questão urbana uma perspetiva ao mesmo tempo especí"ca e interdisciplinar.

2. Adamek, Margaret; Lorenz, Karl; «‘Be a Crossroads’. Public Art Practice and the Cultural Hybrid», in Cartiere, Cameron; Willis, Shelly (eds.), 2007, $e Practice of Public Art, Routledge, Oxon, Nova Iorque, p. 56.

3. Meyer, Michel; in Meyer, Michel; Carrilho, Manuel Maria; Timmermans, Benôit; 1999, História da Retórica, Temas e Debates, Lisboa, p. 298.

4. Weigel prossegue: Por Herkunft [Foucault] entende origem [extraction] ou linha-gem [provenance], que associa à herança e ao corpo: a# genealogia, enquanto análise da linhagem, situa-se portanto no seio de uma articulação entre o corpo e a história. A#sua tarefa é expor um corpo totalmente marcado [imprin-ted] pela história e o processo de destruição do corpo por essa mesma histó-ria. Entstehung, por contraste, denota emergência, o instante de surgimento [surgissement], o princípio e#a lei de uma aparição, que é o acontecimento e o momento# através do qual, ou no qual, algo atinge tanto a visibilidade como a consequência. Emergência é portanto a entrada de forças em cena; é a sua irrupção, o salto das asas para o palco aberto.

5. Jacob, Mary Jane; in Purves, Ted (ed.); 2005, What we want is Freee – Generosity and Exchange in Recent Art, Nova Iorque, State University of New York , pp. 8-9.

ARTE NA CIDADE INTRODUÇÃO