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Cuadernos de Antropología Social ISSN: 0327-3776 [email protected] Universidad de Buenos Aires Argentina Mendes de Miranda, Ana Paula; Beraldo de Oliveira, Marcella; Ferreira Paes, Vívian Antropologia e Políticas Públicas: Notas sobre a avaliação do trabalho policial Cuadernos de Antropología Social, núm. 25, 2007, pp. 51-70 Universidad de Buenos Aires Buenos Aires, Argentina Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=180914246003 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Antropologia e Politicas Publicas Notas sobre a avaliacao do trabalho policial

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Cuadernos de Antropología Social

ISSN: 0327-3776

[email protected]

Universidad de Buenos Aires

Argentina

Mendes de Miranda, Ana Paula; Beraldo de Oliveira, Marcella; Ferreira Paes, Vívian

Antropologia e Políticas Públicas: Notas sobre a avaliação do trabalho policial

Cuadernos de Antropología Social, núm. 25, 2007, pp. 51-70

Universidad de Buenos Aires

Buenos Aires, Argentina

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=180914246003

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Antropologia e Políticas Públicas: Notassobre a avaliação do trabalho policial

Ana Paula Mendes de Miranda*

Marcella Beraldo de Oliveira**

Vívian Ferreira Paes***

RESUMEN

Este artículo presenta reflexiones sobre la contribución de la antropología al análisis de laspolíticas públicas. Toma como base datos etnográficos y estadísticos de una investigaciónrealizada entre mayo y noviembre del 2005, cuyo objetivo fue evaluar el proceso de registro einvestigación de la Policía Civil en casos de homicidios dolosos, en cinco unidades del ProgramaDelegacía Legal del municipio de Río de Janeiro. Se observa que si bien los mecanismos demonitoreo que el Programa ofrece representaron un avance en el control de la calidad deinformación y promovieron un cambio en las rutinas de la Policía Civil, no se verifica unimpacto en la eficiencia policial en relación al esclarecimiento de crímenes

Palabras Clave: Antropología, Políticas Públicas, Policía, Homicidio

ABSTRACT

This article regards the anthropological contributions for the analysis on public policies. Ittakes into account the research on both, the process of police investigation as well as registrationon homicides. In order to accomplish this aim, five police stations at the “Programa Delegacia

Cuadernos de Antropología Social Nº 25, pp. 51–70, 2007© FFyL – UBA – ISSN: 0327-3776

* Doutora em Antropologia Social (USP); Diretora-Presidente do Instituto de Segurança Pública(ISP); Professora da Universidade Candido Mendes. Contatos: [email protected]** Doutoranda em Ciências Sociais (UNICAMP); Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em JustiçaCriminal e Segurança Pública (NUPESP-ISP); Bacharel em Direito (PUC-Campinas). Contatos:[email protected]*** Doutoranda em Sociologia (UFRJ), Coordenadora do projeto “Integração dos Bancos de Dadosda Polícia Civil, da Polícia Militar e das Guardas Municipais do Estado do Rio de Janeiro”, ISP.Contato: [email protected] de realización: septiembre de 2006. Fecha de entrega: noviembre de 2006. Fecha de aproba-ción: junio de 2007.

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Legal” were analyzed at the city of Rio de Janeiro. It was observed that the control mechanismsthat the program offers had represented an advance in the quality of the information and hadproduced changes in the routines of the civil policy. Nevertheless, an impact in the effectivenessof the police was not verified as far as the elucidation of crimes.

Key Words: Anthropology, Public Policy, Police, Homicide

RESUMO

O artigo apresenta reflexões sobre a contribuição da antropologia na análise de políticas públi-cas. Tomamos por base dados etnográficos e estatísticos da pesquisa realizada de maio a novembrode 2005, que tinha como objetivo avaliar o processo de registro e investigação da Polícia Civilem casos de homicídios dolosos, em cinco unidades integrantes do “Programa Delegacia Legal”no município do Rio de Janeiro. Observou-se que os mecanismos de monitoramento que oPrograma oferece, representaram um avanço no controle da qualidade da informação eproduziram uma mudança nas rotinas da Polícia Civil. No entanto, não se verificou umimpacto na eficiência policial no que se refere à elucidação de crimes.

Palavras-chave: Antropologia, Políticas Públicas, Polícia, Homicídio

INTRODUÇÃO

Trata-se de uma reflexão sobre questões metodológicas relativas à análisede políticas públicas numa perspectiva comparativa da Ciência Política e daAntropologia. Para tanto, tomamos como base uma pesquisa realizada entremaio e novembro de 20051, que tinha como objetivo a avaliação do “ProgramaDelegacia Legal” implantado a partir de 1999. Este Programa propunha umareestruturação dos processos de trabalho nas unidades da Polícia Civil do Esta-do do Rio de Janeiro.

Concebida como uma subárea da Ciência Política no Brasil, o tema daspolíticas públicas tem despertado cada vez mais o interesse de outras CiênciasSociais (Faria, 2003; Frey, 2000, Reis, 2003), nosso esforço será o de demonstrarcomo a Antropologia tem contribuído para a formulação de uma agenda depesquisa em políticas públicas, enfocando a temática da segurança pública edos direitos humanos.

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No Brasil, embora haja um crescimento de trabalhos voltados para aanálise de políticas públicas pela antropologia, ainda não se observou aconstituição de uma subárea, porém já se pode falar da delimitação de umcampo temático, principalmente devido à produção e discussão crítica sobre oslaudos antropológicos para questões judiciais (Silva, Luz & Helm,1994; Leite,2005), bem como de etnografias voltadas para a análise das instituições quecompõem o sistema de justiça criminal e os mecanismos de resolução de conflitosem diversos âmbitos da vida social (Grossi, Heilborn & Machado, 2006; Kantde Lima & Novaes, 2001; Kant de Lima, 2003, Kant de Lima, 2005; Paes, 2006).

Atualmente, a questão que se coloca para a antropologia política é a daidentificação das condições dinâmicas que estão subjacentes à ordem social, ouseja, trata-se de apreender a dinâmica das estruturas tanto quanto o sistema derelações que as constituem, considerando as incompatibilidades, as contradições,as tensões e o movimento inerente a todas as sociedades (Abélès, 1995). Destemodo, a Antropologia Política não está centrada no estudo do estado, do governoe do poder, mas sim voltada para a análise do confronto entre as diversasinstituições estatais, para compreender como elas funcionam, bem como osdiferentes atores reagem à implementação de políticas públicas, não se limi-tando à mera diferenciação entre as organizações tradicionais ou modernas, oua uma gênese das formas jurídicas (Miranda, 2005). Ao contrário dos cientistaspolíticos, que se preocupam com a análise das instituições políticas, no sentidoda luta pelo controle das posições de tomada de decisões, o antropólogo tembuscado compreender como as instituições e/ou os governos atingem seus pro-pósitos públicos, o que tornou vitalmente importante a distinção entre aspráticas de implementação das decisões políticas e as práticas da rotinaadministrativa.

O estudo comparativo das instituições estatais tem sido complementa-do pelas análises da Antropologia Jurídica (Shirley, 1987), pois ao analisarmosos sistemas políticos de uma sociedade estamos tratando também dos seussistemas jurídicos, como dizia Radcliffe-Brown (cf. Fortes & Evans-Pritchard,1981). Deste modo, a principal contribuição da Antropologia tem sido nosentido de ampliar o entendimento de como as regras de controle da ordemsocial são definidas pelos diferentes grupos, pela forma como expressam osconflitos e as maneiras pelas quais esses conflitos são administrados.

Primeiramente, destacamos o foco na análise empírica, por acreditarmosque a etnografia possibilita o questionamento das práticas daqueles que sãoresponsáveis pela implementação e execução das políticas públicas, destacan-

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do-se a dimensão subjetiva das ações, geralmente deixada em segundo plano.No entanto, o enfoque conjuntural a partir dos casos analisados deve possibilitaruma visão estrutural das ações governamentais, a fim de que possamos apreciarseus impactos e deduzir conseqüências futuras.

A descrição e a análise das interações sociais, que se constituem a partirda implantação de uma política pública, possibilitam a compreensão das con-quistas e dos obstáculos que surgem a partir da intervenção do poder público.Há que se ressaltar que as resistências a uma dada política pública não sãoapenas sinais do fracasso da mesma, ao contrário, podem servir como indicadoresfundamentais das mudanças que estão ocorrendo no grupo. Esta dimensão éreveladora do processo de institucionalização que se dá mediante a padronizaçãode comportamentos, o que será exemplificado com a análise do trabalho policial.

Para tanto é importante que se concentre a análise na natureza do pro-blema que a política pública pretende solucionar. Isso parece óbvio, mas não é.Tem sido um erro muito comum esperar que um programa/projeto transformeradical e magicamente a realidade.

Outro ponto importante diz respeito aos cuidados necessários para ouso de métodos comparativos e os riscos da relativização radical, bem como aimportância das análises quantitativas e qualitativas de políticas públicas. Aavaliação quantitativa permite mensurar a eficiência de uma ação, ou seja, pode-se testar a relação entre o esforço empregado na implementação de uma dadapolítica e os resultados alcançados, bem como medir a eficácia de uma política,na comparação entre as metas previstas e as metas alcançadas. A avaliaçãoqualitativa permite explorar a percepção que os indivíduos envolvidos, diretaou indiretamente, na proposta têm acerca das deficiências e melhorias,possibilitando a observação da efetividade da política pública, no que se referea relação entre os objetivos definidos e os impactos na mudança das condiçõessociais do grupo (Rico, 1998). Interessa, portanto, ampliar a discussão emtorno da avaliação das propostas de mudança e a possibilidade de mudançasdas ações.

A realização de entrevistas abertas e da observação participante podemcontribuir para a análise de políticas públicas em função da negação daneutralidade do pesquisador, do reconhecimento da subjetividade no processode conhecimento, e da percepção que a interação entre pesquisados epesquisadores pode ser marcada pela desconfiança e antipatia (Miranda, 2001).Diferentemente da condição de um trabalho de campo “tradicional”, onde oantropólogo mantém-se na condição de estrangeiro, e da condição de uma

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análise antropológica na qual o pesquisador assume o papel de sujeito, comoocorrem em vários movimentos sociais, a posição do pesquisador, aqui analisada,confunde-se com a de um representante de um órgão público. O pesquisadornesse caso tem como objetivo compreender o funcionamento de uma realidadepara propor intervenções numa área –segurança pública– que por razões varia-das há uma pressão social para mudanças. O trabalho realizado pela equipe doInstituto de Segurança Pública pode ser caracterizado, segundo as formulaçõesde Thiollent (1997), como uma modalidade de pesquisa-ação, voltada tantopara a análise dos atores sociais, suas ações, interações, quanto para a aplicação,ou seja, para a formulação de prognósticos que possibilitem a revisão ereformulação de políticas públicas voltadas para as temáticas de segurança pú-blica e direitos humanos.

O esforço do pesquisador é diferenciado, pois sua dimensãointervencionista não pode impedir a identificação dos pontos que precisariamde uma ação estatal. Assim, o primeiro cuidado diz respeito à descrição e àobservação de fatos únicos e/ou cotidianos, construindo cadeias de significadoscoerentes com o sentido fornecido pelos sujeitos.

A pesquisa que tomamos como referência para este artigo teve comoobjetivo avaliar o trabalho da Policia Civil nos Registros de Ocorrência e nosInquéritos referentes a homicídios dolosos consumados em áreas da capital doEstado do Rio de Janeiro, buscando enfocar a dimensão da efetividade do Pro-grama Delegacia Legal. Para atingir o objetivo proposto adotamos as seguintesmetodologias de coleta de dados:

a) analisou-se uma amostra de 392 Registros de Ocorrência e Inquéritos dehomicídios dolosos, do ano de 20022, confeccionados em cinco unidades deDelegacias Legais que estão localizadas em diferentes regiões da capital, são elas: 6ªDP (Cidade Nova/Centro); 12ª DP (Copacabana/Zona Sul); 20ª DP (Vila Isabel/Zona Norte); 21ª DP (Bonsucesso/Zona Norte); e, 34ª DP (Bangu/Zona Oeste);

b) realizou-se 42 entrevistas com inspetores e delegados lotados nessasdelegacias, além de observação de campo nas delegacias visitadas.

A coleta dos dados dos registros e inquéritos realizou-se por meio doSistema de Controle Operacional (SCO)3 das Delegacias Legais, com senhasde acesso disponibilizadas ao Instituto de Segurança Pública (ISP). Asinformações compiladas no banco de dados da pesquisa são referentes aos da-dos dos procedimentos no dia em que foram coletados, visto que o SCO forneceinformações que são, a todo o momento, atualizadas, pois dizem respeito ainvestigações em curso.

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O PROGRAMA DELEGACIA LEGAL

Com o objetivo de reestruturar modelos e práticas que tradicionalmenteeram levadas a cabo pela polícia fluminense foi proposto um programa dereformas para a Polícia Civil, no Governo de Anthony Garotinho, em 1999,intitulado “Programa Delegacia Legal”. Projeto que foi continuado pelosgovernos seguintes - Rosinha Garotinho (2003-2006) e Sergio Cabral (2007).4

As principais transformações empreendidas dividem-se em:1) A implementação de uma nova forma de organização do trabalho:

antes três policiais ficavam em momentos distintos responsáveis pela investigação(modelo de trabalho nas delegacias convencionais), agora, no modelo “Legal”,o inspetor se tornaria responsável pelos procedimentos que atende, devendoregistrá-lo e também conduzir esta investigação. Esta ação possibilitaria ummaior controle das atividades dos policiais, o que pudemos observar durante apesquisa, e que provocou muita resistência.

2) Os procedimentos das Delegacias Legais são coletados e processadossob uma nova forma de registrar a ocorrência, pois todos os procedimentosdevem ser informatizados e feitos diretamente no computador, em formuláriosonline com terminologias predefinidas. Tradicionalmente, os espaços para opreenchimento de características físicas dos envolvidos nos Registros deOcorrência, por exemplo, eram preenchidos de forma livre. Agora aumentou apadronização, já que o policial deve escolher uma opção dentre as oferecidaspelo programa no Sistema de Controle Operacional (SCO). Por outro lado,aumentou o tempo para o registro de uma ocorrência, provocando reclamaçõesconstantes sobre demora de atendimento.

3) O Programa pretendeu com a padronização impor uma mudançacomportamental que se tentou alcançar, mediante cursos de capacitação cons-tante dos policiais, para que estes soubessem manusear os novos instrumentosdisponíveis.

4) Com o objetivo de valorizar a transparência, o monitoramento e ocontrole das atividades policiais, todos os procedimentos da delegacia passam aestar agora socializados em uma rede que liga todas as delegacias inseridas no“Programa Delegacia Legal”.

A seguir, pretende-se destacar alguns pontos específicos da reforma queparecem influenciar na maneira como os policiais percebem e se apropriam dosinstrumentos de suas atividades.

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CLASSIFICAÇÕES DO REGISTRO DE OCORRÊNCIA: PRIMEIRA “RECONSTRUÇÃO” DO

EVENTO

O “Programa Delegacia Legal” propôs uma padronização da classificaçãodas ocorrências, construindo uma tabela com os detalhamentos possíveis dosdelitos. Essa proposta inseriu-se na lógica de que quanto mais detalhada for acircunstância do crime em um primeiro momento, melhor será desenvolvido otrabalho policial no processo de elucidação. Além disso, houve a preocupaçãode que esse detalhamento deveria seguir um padrão para toda a Polícia Civil. Éinteressante notar a forma como os policiais utilizam essas classificações quandose trata de um evento morte, traduzido na linguagem jurídica como um crimede homicídio doloso.

Os policiais entrevistados apontaram como fundamental para a primeiraclassificação do evento morte, a ida ao local do fato e a preservação do mesmo.A partir desse contato visual eles poderiam verificar a existência de sinais demorte violenta ou se o local está em desalinho; em caso negativo, eles tratariamo caso como “suicídio” e não como “homicídio”, por exemplo. Se constatarema morte violenta e ao mesmo tempo verificarem que sumiu algum objeto devalor será um “latrocínio”.

Além da ida ao local, que possibilita a primeira tradução do evento morteem uma categoria jurídica, os policiais destacaram também a importância dasinformações oferecidas pelos laudos periciais que são de duas naturezas: osprovenientes do Instituto Médico Legal (IML), chamados de exame cadavéri-co, e os laudos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), conhecidoscomo a perícia de local.

Na prática, observamos que estes laudos não contribuem para a primeiratipificação do delito, já que os laudos demoram em média 84 dias (IML) e 56dias (ICCE) para chegar à polícia, de acordo com os casos que analisamos.Nesse sentido, os laudos só poderão influenciar em uma posterior alteração daclassificação elaborada a priori pelo policial, o que resultará em um Registro deAditamento. Esse Registro de Aditamento fica armazenado no sistema dasDelegacias Legais, de modo que seja possível acompanhar as mudanças declassificação no decorrer da investigação e que não haja a possibilidade demanipulação das estatísticas. Assim, o caso que foi tipificado inicialmente como“tentativa de homicídio” deve ser depois incluído nas estatísticas como“homicídio”, já que houve alteração na sua tipificação. O controle dessas

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informações é relevante para evitar o que se chama comumente de “maquiagemdas estatísticas”.

Por outro lado, a possibilidade de saber como foi classificado e re-classificado um evento através das informações que ficam registradas no siste-ma das Delegacias Legais permite um controle do trabalho policial, diminuindoas possibilidades de mau uso da informação, bem como permite a reorientaçãoda capacitação a partir do monitoramento dos erros cometidos pelos policiais.

No que se refere à qualidade dos registros de ocorrência, foi possívelverificar que as informações sobre sexo e cor dos envolvidos5 nos casos analisadosapresentaram os seguintes índices de não preenchimento: 20% (cor) e 2%(sexo) dos respectivos campos de preenchimento no Registro de Ocorrênciaestavam em branco. Salientamos que essa ausência de informação sobre a cor eo sexo dos envolvidos no crime que estão presentes no registro de ocorrência, ébem menor se comparado à análise dos antigos registros (Cano, 2000; e, Muniz,2000).

Além disto, todos os registros apresentavam um título, isto é, aclassificação do evento criminoso. Mesmo que fossem títulos provisórios cria-dos administrativamente, não apareceu registro sem esta informação, o queocorria nos registros antigos. Sendo assim, o modo informatizado depreenchimento de dados aumentou a qualidade das informações do registro deocorrência quanto a sexo e cor dos envolvidos, bem como a presença de títuloem todos os registros analisados.

DINÂMICA DO FATO: SEGUNDA “RECONSTRUÇÃO” DO EVENTO

Além da classificação policial do evento morte, os agentes da DelegaciaLegal devem preencher um campo chamado “dinâmica do fato” do Registro deOcorrência (R.O.), onde deve conter de forma resumida, a descrição do eventoque deu base ao título desse documento. Nesse campo é possível verificar ascaracterísticas destacadas e tomadas como importantes pela lógica policial quandose trata do homicídio. Essa é a segunda reconstrução do fato na lógicainstitucional policial. A primeira é enquadrar o fato em uma classificação penalou administrativa, dar um título ao fato criminoso. Nesse segundo momento,o interesse é resumir esse fato em poucas palavras em um campo do R.O.

Ao analisarmos os registros pudemos observar que, na dinâmica do fato,a descrição é muito técnica, referindo-se mais aos procedimentos que

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demandaram a instituição, do que ao fato em si. Perguntamos a um inspetorque trabalhava na Corregedoria como ele percebia o preenchimento e o que eleachava ser importante constar nesse campo, ele respondeu que:

“Na dinâmica do fato o policial poderia aproveitar para dizer se o localestava iluminado, quantas pessoas havia lá, se era um local público muitomovimentado, isto é, descrever o local e não só as providências que foramrealizadas logo que tomou conhecimento do fato delituoso.”

Uma inspetora afirmou que geralmente a Polícia Civil não vai ao local eo que consta no relato da dinâmica são as informações fornecidas pela PolíciaMilitar (PM). Ou seja, apesar da maioria dos policiais afirmarem que a ida aolocal do crime é de extrema relevância para a classificação do evento, tantoquanto para a sua posterior investigação, foi amplamente verificado durante asentrevistas, que essa não é uma prática comum na Polícia Civil:

“Na ‘dinâmica do fato’ se coloca o que o policial militar tem a dizersobre o fato, já que nem sempre a Polícia Civil vai ao local. Então opolicial militar vem até a delegacia e conta sobre o ocorrido e o policialcivil digita no computador.”

A partir da análise da qualidade dos relatos descritos na “dinâmica dofato” nos 392 Registros de Ocorrência observamos que 57% dos registros tinhammais informações sobre as diligências realizadas pelo policial militar no local enão sobre as características do fato em si.

Observamos também que em 82,4% dos registros não foi possível iden-tificar a circunstância do delito por meio da “dinâmica do fato”. Sendo assim,somente 17,6% das “dinâmicas do fato” analisadas continham informaçõesque identificassem a circunstância do crime.

É importante notar que o campo da “dinâmica do fato” contém a segun-da tradução do evento, que é feita de forma descritiva. É com base nessas poucasinformações iniciais que a Polícia Civil conduzirá a investigação. No “ProgramaDelegacia Legal”, a “dinâmica do fato” e a “tipificação do delito” são camposque devem ser preenchidos obrigatoriamente no Registro de Ocorrência. Casonão sejam preenchidos, o Sistema de Controle Operacional (SCO) impede aconclusão do registro. Porém, no que diz respeito, mais especificamente, à“dinâmica do fato” apesar do Programa impedir uma incompletude e a ausênciade informação de dados nesse campo, o seu preenchimento na prática acabasendo mal realizado pelos policiais, já que as informações se referem muito

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mais a procedimentos administrativos do que a características importantes parao direcionamento da investigação do crime.

ABERTURA DO INQUÉRITO: PRÁTICAS INFORMAIS

Conforme prevê o ordenamento jurídico nacional, os crimes de homicídiotêm como titular da ação penal o Estado, que deve abrir o Inquérito tão logotomem conhecimento do fato em suas instituições. Na prática, tal medida nãoé efetuada nas delegacias, os policiais muitas vezes tardam a abertura doInquérito. Por exemplo, uma das formas identificadas de driblar esses prazoslegais foi por meio de práticas que, apesar de serem informais, estãoinstitucionalizadas na polícia: a chamada Verificação de Procedência deInformação (VPI). Kant de Lima (1995) já havia constatado em sua pesquisaesse procedimento informal na polícia.

Verificamos durante a pesquisa a existência da chamada VPI em casosinicialmente classificados como “encontro de cadáver”. Essa categoria é utiliza-da quando os policiais não têm certeza se foi de fato um homicídio, um latrocínioou um suicídio, pois não há marcas de violência aparente, ou ainda se foi umcaso de morte natural. Se tipificarem de início como homicídio, o inquéritodeverá ser instaurado imediatamente, de acordo com o Código de ProcessoPenal brasileiro. Já os autos em VPI têm 30 dias para serem concluídos, o queé um prazo administrativo, não constando na legislação penal. Percebemos emnossa amostra que alguns inquéritos de homicídio demoravam mais do que 30dias para serem instaurados. Do total de 381 registros de homicídios dolososanalisados6, em 32,5% (124 casos) o Inquérito foi instaurado no mesmo diaou um dia depois da elaboração do Registro de Ocorrência. Observamos, en-tretanto, que o tempo médio de abertura do Inquérito nas Delegacias Legaiscorresponde a 29 dias depois do registro inicial. A tabela a seguir mostra otempo de abertura do inquérito nos casos analisados, excluindo os casos deflagrante (11 casos), pois esses seguem um procedimento diferenciado.

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Tempo de Abertura de Inquéritos Policiaisem casos de Homicídios Dolosos - Ano 2002

Fonte: Miranda et alli (2005)

Cumpre observar, que antes da instauração do sistema Delegacia Legal apolícia não tinha acesso aos inquéritos que já haviam sido enviados à justiça,algumas informações sobre o Inquérito ficavam registradas em “Livros de Re-gistro” na Delegacia, mas não havia contato com o Inquérito inteiro, para resgatarqualquer informação era necessário ir ao Fórum para ver esses documentos ouao acervo cartorário, se o mesmo já tivesse sido arquivado. A partir da DelegaciaLegal esses documentos estão disponibilizados virtualmente, então, tivemos acessoa todos os Registros de Ocorrência e de Aditamento e Inquéritos Policiais,independentemente se esses documentos estavam na delegacia, na justiça ou noarquivo. É importante observar que este é um dos exemplos do controle que passoua existir com relação ao trabalho policial a partir da implantação do Programa.

PRÁTICAS INVESTIGATIVAS

O “Programa Delegacia Legal” permitiu um maior controle sobre ocumprimento dos prazos na polícia. Na tela do computador destaca-se emvermelho quantos dias os procedimentos estão fora do prazo. A partir dos da-

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dos coletados dos 392 Registros de Ocorrência foi possível verificar que destetotal, somente 22 Registros se encontravam fora do prazo, ou seja, 5,6% daamostra. Quanto à percepção e avaliação dos agentes e autoridade policiaissobre o trabalho de investigação dos crimes de homicídio, foi possível constatarque existe uma preocupação maior com o trabalho de cumprimento de prazosdo que com a investigação. Cumprir o prazo é um avanço trazido pela reforma,mas não necessariamente influencia uma melhor investigação.

O Ministério Público, por sua vez, demora, em alguns casos, mais detrês meses para despachar e devolver os casos à polícia para que esta prossiganas investigações. Isto pode ser comprovado se considerarmos que dos 381Inquéritos analisados (os não-flagrantes), 63% estão fora das delegacias emsituação de “enviados a justiça”, geralmente aguardando o encaminhamentoque o Ministério Público dará ao Inquérito. Quando o Ministério Públicodevolve o Inquérito para a polícia, muitas vezes não especifica as diligênciasque devem ser realizadas. Nos casos em que o Inquérito é enviado definitiva-mente à Justiça para o oferecimento da denúncia, a situação que consta nobanco de dados do SCO da Delegacia Legal é de “relatado à justiça”. Porém,dos 381 Inquéritos analisados, somente 14 deles, o que corresponde a 3,7%do total, se encontravam nesta situação no momento da coleta dos dados. Destaforma, a maior parte dos Inquéritos está, de fato, na situação “enviado à justiça”(63%), o que significa que eles estão aguardando a manifestação do MinistérioPúblico quanto ao seu andamento.

Uma inspetora responsável por dar andamento aos Inquéritos argumen-ta que o tipo de trabalho que ela faz nos processos para envio ao MinistérioPúblico solicitando novo prazo é somente o cumprimento burocrático:

“Como este fato aconteceu em 2002, a única possibilidade demanusear o inquérito é ficar cumprindo os prazos, pois dificilmenteirá conseguir mais alguma coisa. Aí o inquérito fica indo e voltandoda justiça. A gente não encontra ninguém. Aí o Ministério Públicoacha que a gente não fez nada, porque o Inquérito vai para lá domesmo jeito que chegou.”

O argumento da inspetora reforça a idéia de que a polícia acaba fazendo umtrabalho burocrático mais do que investigativo. O novo prazo pedido é para cumpriruma determinação legal e não para, de fato, dar seguimento às investigações docrime. A idéia do Programa de suprimir a cartorialização da delegacia é confronta-da por práticas judiciais e cartorárias que estão arraigadas na instituição.

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Sendo assim, o trabalho da Polícia Civil também depende do trabalhode outros órgãos, como apontado acima sobre o Ministério Público. Além disso,ressaltamos a importância do trabalho da perícia técnica. Não há como classificarum evento morte como homicídio se não for enviado o laudo de local e o laudocadavérico e, conseqüentemente, será difícil definir uma linha investigativa senão houver informações sobre a forma como a pessoa morreu, com qual instru-mento, se há indícios de tortura etc.

Também apontamos a relação entre a polícia civil e militar. A políciamilitar realizou a prisão dos autores em flagrante e impediu o linchamento dosmesmos por parte da população. Além disso, os policiais militares sempreaparecem como testemunha nos registros de ocorrência porque comparecemcom mais freqüência aos locais do crime do que a polícia civil, como tratadoacima. Em 50,4% dos registros verificamos a existência somente de duastestemunhas arroladas; e, na análise qualitativa, observamos que essas duastestemunhas eram exatamente os policiais militares que estiveram no local dohomicídio e que foram à delegacia prestar depoimento. Assim, muitas vezes é orelato destes policiais que serve de base para que o fato delituoso seja descritona dinâmica e que se defina uma linha investigativa.

A qualidade das informações obtidas durante as investigações sobre aprovável relação entre vítima e autor, a circunstância do homicídio e o instru-mento utilizado para o crime também foram analisadas na pesquisa.

A provável relação entre vítima e autor é uma informação pouco compi-lada pelos policiais apesar de ser de extrema importância para a investigação.Nos dados das delegacias analisadas, esta informação estava ausente em maisde 50% dos casos com vítimas mortas.

Em relação à circunstância do delito, observamos que 30,6% dos casoseram ligados ao tráfico de entorpecentes; 25,5% não tinham informação que pudesseidentificar uma provável circunstância em que aconteceu o homicídio; 14,5% doscasos continham informações relevantes no inquérito, porém não era possível iden-tificar a circunstância, sendo classificados pela equipe de pesquisa como “semdefinição”; 6,4% motivo fútil; 5,9% confronto policial; 4,8% conflitos em presídio;3,8% vingança; 3,3% erro de execução; 1,8% eram crimes passionais; 1,3%execuções de policiais; 0,5% homofobia; 0,5% erro de pessoa; 0,5% não paga-mento de dívidas; e, 0,5% legítima defesa do patrimônio.7

Cruzamos as informações sobre o meio utilizado para o crime com acircunstância do delito e concluímos que 86,6% das vítimas ligadas ao tráficode entorpecentes foram mortas com arma de fogo e esse foi o instrumento mais

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utilizado para o cometimento dos homicídios analisados nas cinco delegacias.Porém, a maioria das vítimas de homicídios passionais (66,7%) foi morta porarma branca. Houve ausência de informação sobre o meio utilizado nocrime em 11% dos casos.

CARÁTER PESSOAL DAS INVESTIGAÇÕES

Considerando que as informações das polícias possam auxiliar naelucidação de outros delitos relacionados e também serem utilizadas comouma forma de evitar a corrupção interna, um ponto fundamental da Reforma“Legal” foi tornar público para a própria instituição as informações da investigaçãopolicial. O “Programa Delegacia Legal” conta com a prática de registroinformatizado, para que as informações fiquem disponíveis e organizadas e nãomais se tornem arquivos particularizados por um determinado policial. Assim,as informações seriam de caráter institucional e não pessoal. Porém, isso nãoocorre da forma planejada. Na prática, o registro acaba sendo muito precário econseqüentemente as investigações deixam a desejar. A lógica policial não é a doregistro no banco de dados, mas a de particularização da informação, ou seja, oregistro em um formato que somente quem o fez possa ter acesso. As razões do não-registro podem estar relacionados a diversas causas, lícitas e ilícitas, porém, impor-ta aqui salientar que essa lógica impede a realização efetiva do Programa.

Outro ponto que merece destaque diz respeito ao modo como os policiaispercebem o trabalho de investigação. Segundo eles, este trabalho está maisrelacionado a uma característica pessoal do agente, ligado antes a uma “vontadede investigar” do que a uma infra-estrutura, uma norma institucional, ou umatécnica que se aprenda. Perguntamos a um delegado qual a principal diferençano que diz respeito à investigação na Delegacia Legal e na Delegacia Conven-cional e ele nos respondeu:

“Não tem tanta diferença, depende da boa vontade do investigador. Éclaro que com relação a estrutura houve uma mudança significativa, masse o policial não gosta do que faz um computador não vai mudar amentalidade dele. A questão é muito particular de cada um. Não adiantavocê colocar um policial que gosta de fazer serviço externo para ficar aquidentro mexendo no computador, isso não adianta!”

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Mais especificamente, com relação ao homicídio os policiais e delegadosdizem que o profissional deve ser mais “sensível”, mais “perspicaz”, deve ter“tirocínio”, entre outras características apontadas.

“O policial que investiga homicídio é um policial mais dinâmico, perfeccio-nista, tem mais sagacidade (...) e os delegados tem de ter a sensibilidade emperceber e alocar cada policial para o que ele é bom em fazer.”

Por outro lado, um delegado não concordou com essa argumentação.Disse que a capacidade investigativa não é algo que nasce com o indivíduo, masalgo que ele aprende durante sua carreira mediante cursos de especializaçãopara investigação do homicídio.

A discussão acerca da responsabilização pessoal do agente pelos seus atose da proposição de uma lógica coletiva e técnica de trabalho policial se relacio-na ao debate sobre a pertinência de “equipes especializadas” em cada delegacia.Uma das críticas feitas com insistência por quase todos os policiais e delegadosentrevistados sobre o projeto do Programa Delegacia Legal dizia respeito àproposta de supressão das “equipes especializadas”, para que o policial registrassee investigasse qualquer ocorrência que fosse a ele destinada. De acordo com ospoliciais, nas delegacias convencionais existiam núcleos de investigação forma-dos por uma equipe de policiais que investigavam as ocorrências depois deseparadas por tipos de crimes, assim, os inquéritos de homicídios eram desti-nados a uma equipe que iria investigar somente aquele tipo de crime.

Todavia, há quem duvide destas práticas. O objetivo do Programa aotentar acabar com esses grupos “especializados” nas delegacias era o de contro-lar a corrupção e melhorar a produtividade. O principal argumento apresentadoera que os policiais que trabalhavam nessas equipes não dominavam técnicas epráticas específicas para a investigação de cada crime. Os policiais eram aloca-dos para a equipe de homicídios, roubos, furtos, entorpecentes, entre outros,independente de ter ou não formação profissional e técnica naquela área, massim de acordo com seus relacionamentos pessoais na instituição policial. Quandohavia transferência de policiais entre as delegacias, eles mudavam de especialidadesem nenhum aperfeiçoamento.

Um delegado em entrevista nos enuncia que, na verdade, não existemespecialistas que sejam peritos em um tipo de crime na polícia, porque aexperiência de manutenção do modelo que prioriza as “equipes especializadas”não resultou em melhores resultados nas investigações, mas sim um acúmulode procedimentos sem andamento.

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“Esse sistema de não ter especialista, pelas estatísticas, produz muitomais resultados do que dos chamados especialistas dele! Como é queexplica isso? Porque números não mentem!(...) O que acontece, é queeles já empregam esse tipo de especialização nas delegacias e por isso queos resultados são baixos. Mas por que os resultados são baixos? Por faltade compromisso. (...) O brilhante “especialista’ também não faz coisanenhuma. Vamos chegar lá, são 146 casos de homicídios, por exemplo,numa determinada delegacia, em seis meses. Quantos casos foramresolvidos? Dois! E tem especialistas! Bom, para mim não são especialis-tas, porque tem 146 casos e se resolve dois. Eu acho que alguma coisaestá errada! E os delegados ainda continuam com essa história de espe-cialistas... Os especialistas, nada mais são do que aqueles caras que nãofazem coisa nenhuma. Se você pegar os inquéritos você vai ver que elesestão parados, os especialistas não estão trabalhando em especializaçãonenhuma”.

Deve-se ressaltar que um dos principais objetivos preconizados pela re-forma é responsabilizar o policial pela ocorrência que atende, ou seja, de criaruma relação entre o fato, a investigação, o policial e o resultado do trabalhorealizado por ele. No entanto, segundo observamos, é principalmente no quediz respeito ao esforço de impor novas formas de controle e avaliação do trabalhopolicial que a polícia mais resiste. O programa propõe que a organização poli-cial deve ser entendida como um sistema de informações, regras e técnicas eque seu desempenho não deve depender somente de indivíduos, mas de umalógica coletiva para direcionamento do trabalho.

Porém, não pensamos que a resistência ao controle como um defeito ouuma ineficiência do Programa, e sim como uma forma de defesa (consciente ouinconsciente) pela qual os grupos reagem a influências vindas de fora e quepodem afetar o seu equilíbrio interno (Bastide, 1979). Neste sentido, aresistência é um indicador importante para avaliar o impacto das políticaspúblicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a contribuição da antropologia na análise de políticaspúblicas, buscamos analisar a efetividade do “Programa Delegacia Legal”,implementado pelo Governo do estado do Rio de Janeiro, no que se refere ao

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trabalho de registro de ocorrências e de investigação do crime de homicídiodoloso. Observamos que os mecanismos de monitoramento que o Programaoferece representaram um avanço no controle da qualidade da informação.

Com base nas entrevistas, consideramos que uma boa investigação nãoestá pautada apenas na identificação da autoria, mas também na quantidade equalidade das informações coletadas no inquérito policial, o que demonstra oesforço empregado no trabalho policial em elucidar o homicídio. Em algunscasos, apesar de haver uma reunião enorme de provas e indícios que levassem àautoria, não foi possível identificar o autor. Por outro lado, alguns casosapresentaram ausência de informações fundamentais para a elucidação, taiscomo os laudos periciais e declarações de testemunhas. Nesses casos, pode-seespecular que o trabalho policial não foi realizado corretamente e, é claro, nãose pôde identificar uma autoria. Cabe salientar que a prevalência de homicídiosrelacionados ao tráfico pode explicar a falta de testemunhas devido a estratégiade coação dos moradores, que ficam temerosos em descrever o que viram, ouviramou presenciaram. Considerando-se o universo de 392 casos analisados,concluímos que o percentual de elucidação foi de 4,1%, esse percentual seconstitui de cinco inquéritos relatados à justiça com autoria e onze flagrantes.

Se ainda não houve um impacto na eficiência policial, ou seja, se aprodutividade no que se refere à elucidação de crimes ainda é baixa, é bomlembrar que antes havia pouca possibilidade de saber quais crimes teriam sidoregistrados e resolvidos. A resistência ao Programa no que se refere às novaspráticas procedimentais de investigação deve ser pensada como um indicadorde que houve uma tentativa de mudança da lógica policial, para que deixe deser uma rotina cartorial e se transforme numa ação mais investigativa. Nessesentido, o debate acerca da especialização das equipes é exemplar. Revela-se,assim, a oposição clara entre o modelo de profissionalismo, proposto pelo Pro-grama, e o modelo onde o funcionário resiste à regulação de padrões a fim demanter seus poderes e vantagens. Nesse sentido, pode-se especular que o Pro-grama produz um impacto sobre a Polícia Civil, na medida em que os policiaistiveram de desconstruir práticas há muito consolidadas na instituição; elestiveram que utilizar os novos instrumentos seja para se incorporarem ou criaremobstáculos à proposta reformadora que ainda está em curso.

A contribuição da Antropologia para a formulação e avaliação de políti-cas públicas voltadas para os temas de segurança pública e direitos humanosreside na possibilidade de se compreender os obstáculos e as diversas formas deresistência aos processos de transformação.

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NOTAS

1 A pesquisa intitulada “Avaliação do trabalho policial nos registros de ocorrênciae inquéritos referentes a homicídios dolosos consumados em áreas de DelegaciasLegais” foi realizada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). O projeto depesquisa foi aprovado no Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas emSegurança Pública e Justiça Criminal, promovido pela Secretaria Nacional deSegurança Pública (Senasp/Ministério da Justiça) em parceria com a AssociaçãoNacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).Participaram da referida pesquisa: Ana Paula Miranda (responsável técnico);Marcella Beraldo de Oliveira (coordenadora de pesquisa), Vívian Ferreira Paes(pesquisadora); e, Eliane Santos da Luz, Marcus Vinícius Moura Silva e WilsonSantos de Vasconcelos (assistentes de pesquisa).2 O ano escolhido para a análise dos registros e inquéritos foi o de 2002, porqueneste ano poderíamos encontrar casos já elucidados. Ao mesmo tempo, não éum ano muito próximo da implementação do Programa Delegacia Legal, queocorreu em 1999, o que torna possível a análise do trabalho investigativo dapolícia.3 O Sistema de Controle Operacional (SCO) é o sistema por meio do qual sãocomputadas todas as informações pertinentes aos Registros de Ocorrência,Inquéritos Policiais e rotinas operacionais das delegacias incluídas no ProgramaDelegacia Legal.4 Ressalta-se que não tem sido comum a manutenção de políticas públicas noBrasil, mesmo quando se trata de integrantes de um mesmo partido político. Acontinuidade do Programa Delegacia Legal constitui-se numa exceção.5 Estamos denominando de “envolvidos”, nesse caso, as seguintes categoriasque aparecem no R.O. ou no Inquérito: a vítima morta, a vítima hospitalizada,a testemunha, o autor e o adolescente-infrator.6 Foram excluídos os onze casos de flagrantes, pois seguem um prazo diferenciadode envio para a justiça e um procedimento policial de encaminhamento daspeças também diferenciado.7 As categorias utilizadas na circunstância do delito se basearam nas classificaçõesutilizadas no cotidiano policial observadas tanto na pesquisa de campo quantono relatório do Grupo Executivo da Polícia Civil (Cf. Barros, 2006).

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