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António Victorino d’Almeida Entrevista e testemunhos com a participação de Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Nuno Miguel Brito, Júlio Pomar, entre outros. EFEMÉRIDES: 750 ANOS DE DOM DINIS 300 ANOS DE DAVID PEREZ Manuel Pedro Ferreira e João Paulo Janeiro MÚSICA NOS AÇORES Luís C. F. Henriques, Duarte Gonçalves-Rosa e Antero Ávila SALÕES MUSICAIS EM LISBOA (SÉCS. XIX-XX) Idalete Giga JORGE SALGUEIRO Entrevista de Mónica Brito glosas número 4 semestral | novembro | 2011 | ¤4 mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa www.mpmp.pt

António Victorino d'Almeida - MPMP

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AntónioVictorinod’AlmeidaEntrevista e testemunhos com a participação de Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Nuno Miguel Brito, Júlio Pomar, entre outros.

EFEMÉRIDES: 750 ANOS DE DOM DINIS300 ANOS DE DAVID PEREZManuel Pedro Ferreira e João Paulo Janeiro

MÚSICA NOS AÇORES Luís C. F. Henriques, Duarte Gonçalves-Rosa e Antero Ávila

SALÕES MUSICAISEM LISBOA(SÉCS. XIX-XX)Idalete Giga

JORGE SALGUEIROEntrevista de Mónica Brito

glosasnúmero 4 semestral | novembro | 2011 | ¤4

mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesawww.mpmp.pt

mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa

editorial | Edward Luiz Ayres d’Abreu

debaixo de olho | Manuela Paraísoagendadias de música electroacústica | Introdução à História do Festival | Jaime Reis

homenagem | António Victorino d’AlmeidaEurico CarrapatosoSérgio AzevedoMário ZambujalFernando RochaCarla SeixasJosé FortesAntónio Victorino d’Almeida aos oito anos | Uma curiosidade | Mariana Calado

entrevista | Duarte P. Martins

harpejo marinho | Nuno Miguel Brito e Júlio Pomar

entrevista | Jorge Salgueiro | Mónica Brito

efeméride | A propósito dos 750 anos do nascimento de Dom Dinis, trovador | Manuel Pedro Ferreira

David Perez: de Nápoles a Lisboa | João Paulo Janeiro

joly braga santos e jorge peixinho Uma Amizade Improvável? | Piedade Braga Santos

“canto...” primeiro de fernando lopes-graça | José Eduardo Martins

a música nos salões particulares de Lisboa no fim do século XIX e na primeira década do século XX | Idalete Giga

a obra para piano de manuel faria Uma primeira abordagem | André Vaz Pereira

cosmopolitismo musical na cidade da horta no final do século XIX | Luís C. F. Henriques

compositores descobrir | Tomás Borba | Duarte Gonçalves-Rosa

glosando | A convite da glosas, uma peça inédita | Antero Ávila

patrício da silva | Now & Then: Music From The Great Depression(s) 2010/1929 | Joana Rocha

festival música viva 2011 | Concerto de Abertura | Tiago Cabrita

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Número 4 | Novembro de 2011 | António Victorino d’Almeida

Próximo número: Marcos Portugal

direcçãoEdward Luiz Ayres d’Abreu

redacçãoAna Atalaya, Duarte Pereira Martins, Filipe Martins, Joana Rocha, Manuela Paraíso, Miguel Martins, Mónica Brito, Philippe Marques, Tiago Cabrita

fotografiaDaniel Blaufuks (p. 53)Fernando Rocha (pp. 16, 19)Paula Santos (pp. 44-50)Sara Gameiro (capa; pp. 26-41)Tim Heirman (p. 64)

design de comunicaçãoDDLX [www.ddlx.pt]José Teófilo Duarte [Direcção de Arte]Eva Vinagre, Gonçalo Duarte, João Silva [Design e Paginação]

revisão Ana Thomaz, E. L. Ayres d’Abreu

depósito legal 327498/11

issn 2182-1380

tiragem 600 exemplares

periodicidade semestral

impressão e acabamento António Coelho Dias S.A.

O mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa, agradece a quem tenha contribuído para a concretização deste número da revista glosas: aos autores dos diversos textos, artigos, fotografias e ilustrações (André Vaz Pereira, Carla Seixas, Daniel Blaufuks, Duarte Gonçalves-Rosa, Eurico Carrapatoso, Fernando Rocha, Idalete Giga, Jaime Reis, Joana Rocha, João Paulo Janeiro, José Eduardo Martins, José Fortes, Júlio Pomar, Luís Henriques, Manuela Paraíso, Manuel Pedro Ferreira, Mariana Calado, Mário Zambujal, Mónica Brito, Nuno Miguel Brito, Paula Santos, Piedade Braga Santos, Sara Gameiro, Sérgio Azevedo, Tiago Cabrita, Tim Heirman); aos diversos entrevistados (António Victorino d’Almeida, Jorge Salgueiro, Andreia Pinto-Correia); a Ana Atalaya, Duarte Pereira Martins, Filipe Martins, Isa Antunes, Miguel Martins e Philippe Marques, pela transcrição das entrevistas; a Ana Thomaz e E. L. Ayres d’Abreu, pela revisão geral, e a Duarte Pereira Martins, Nuno M. Cardoso, Philippe Marques e Raquel Camarinha, pela colaboração pontual; por fim, a Antero Ávila, pela composição de uma peça dedicada a este número.

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ei-lo, o quarto número da glosas, pela primeira vez dedicada a um compositor vivo. À parte as inúmeras trincheiras que bali-zam o meio musical português contemporâneo, e que o corroem surdamente, o certo é que a figura de Victorino d’Almeida, enquanto compositor, mantém-se globalmente desconhecida do grande público. Coisas que nos parecem francamente lamentáveis, seja em relação a tão carismática personalidade, seja em relação a outros tantos criadores contemporâneos. Mas o crescente reco-nhecimento desta publicação, fruto do sucesso que tem obtido junto dos melómanos e de novos públicos, é um dos sinais de esperança que nos motivam a alargar sempre o âmbito das nossas realizações. E, nem a propósito, parece-me inevitável dar conta, aos nossos sócios e leitores, da candidatura da revista ao último programa de “apoios pontuais” da Direcção-Geral das Artes.a candidatura tinha que ver com o contexto orçamental limi-tado da associação: o crescimento da revista depende, de facto, de uma relação receitas-investimento cuja dimensão dir-se-ia familiar. Apesar do sucesso de vendas, o público atingido está longe de ser o idealmente ambicionado. Procurávamos o investi-mento e impulso necessários a um aumento significativo da tira-gem e distribuição, à melhoria de aspectos técnicos, à sua divul-gação em geral. Acresce que a glosas continuava a ser produzida integralmente por colaboradores voluntários, sem quaisquer apoios, sem quaisquer receitas para além das que provêem das quotas anuais dos sócios e da venda directa da revista (cujo preço de capa equivale praticamente ao seu custo de produção).talvez que o leitor se espante se dissermos que esta situação não mudou: falhámos a candidatura. Dentre noventa e três pro-jectos considerados para a categoria a que nos candidatámos, foi-nos reconhecido o 18.º lugar. Algo que muito nos honra, mas apenas os primeiros quinze projectos foram apoiados... E, destes quinze, apenas dois partilhavam com a glosas a área artística – Música. As melhorias sucessivas, a cada novo número, resultam pois da generosidade directa dos nossos amigos: o novo design deste exemplar é mais um notável exemplo deste espírito de empreendedorismo melómano, a que só podemos responder com a mais sincera gratidão.agora, deixamos ao leitor o prazer de conhecer alguns dos pontos-chave da avaliação à nossa candidatura. A lista de subcri­térios de apreciação privilegiava o “fomentar, preservar, valorizar e promover o património musical e (...) a composição portuguesa”. Neste particular, a revista glosas perdeu pontos contra a edição de um CD e um festival de Guitarra. Privilegiava-se igualmente

o “descentralizar e dinamizar a oferta cultural, corrigindo as assi­metrias regionais”. Ora, se a glosas é, por natureza, descentralizada (não tivéssemos já leitores em Espanha, Itália, Alemanha, Brasil, E.U.A., e em todo o território português!; não pudesse ela ser lida em qualquer momento temporal e geográfico!), poderá o leitor acreditar que também perdemos pontos neste particular contra a edição de um CD e um... festival de Guitarra... na Guarda!?privilegiava-se ainda o “promover a pesquisa, a experimentação, a criação e a inovação artísticas, actualizando e consolidando o teci­ do profissional”. E novamente: perdemos pontos. Mas como pode um CD ou um festival de Guitarra promover mais pesquisa do que a glosas, que reúne vários musicólogos na sua redacção? Como pode promover a criação mais do que a glosas, que encomenda e edita uma obra de compositor português a cada número, e que publica uma agenda exaustiva de concertos, e que dedica deze-nas de páginas em entrevistas exclusivas aos criadores nacio-nais, a propósito das mais importantes estreias portuguesas, e que noticia tudo quanto se edita e é dado a conhecer sob diver-sas formas? Como pode promover mais inovação artística, quando tanto nos dedicamos à produção contemporânea? Como pode actualizar e consolidar o tecido profissional, mais do que actualiza e consolida um órgão que se quer ponte informativa e de conhecimentos entre, também, os profissionais da música?quando se privilegia, precisamente, tudo aquilo que a glosas tem para oferecer de forma original, inovadora, única, perió-dica, interventiva, consequente a curto, médio, longo prazo, e com a qualidade já demonstrada, parece-nos extraordinaria-mente descabido que a nossa causa tenha sido ultrapassada por projectos tão estritamente pontuais, localizados, efémeros ou inconsequentes do ponto de vista macro-cultural, como são, necessariamente, a edição de um CD e a organização de um festi­val de Guitarra, por mais notáveis que sejam os seus programas, por mais excelentes que sejam os seus participantes!...crise, enfim. Mas uma crise muito para além de económica. Crise da crítica, crise de política cultural, de democracia. Infeliz-mente, também uma crise de valores que impede algumas per-sonalidades do exercício simples de resposta aos nossos apelos e convites. (Perguntar-se-á porque razão não dedicou a glosas mais ou menos espaço a esta ou aquela figura, notícia, efemé-ride. E a minha resposta continua a ser lapidar: a revista é de todos, e para todos. Até hoje, nenhuma participação foi recu-sada. Mas que podemos nós fazer contra silêncios?)uma última nota. Por sermos convictamente democráticos, e porque 100% (cem por cento) dos nossos leitores e 100% (cem por cento) dos nossos participantes recusam a estultícia tirana do último “acordo ortográfico”, decidimos manter a norma anterior.

editorial

EDWARD LUIZ AYRES D’ABREU

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já em plena temporada, meses após o anúncio, por parte de estruturas como a Gulbenkian, o São Carlos, o Centro Cultural de Belém, das suas programações (nos dois primeiros casos, com uma maior inclusão de repertório nacional do que habitual-mente), o drástico emagrecimento orçamental produz cortes que se reflectem na quantidade e qualidade da oferta das grandes estruturas, mas também das pequenas entidades particulares dependentes de fundos públicos, pondo em causa a sua própria continuidade e sobrevivência. E muitas delas produzem alguma da mais aliciante programação de música, nomeadamente de criação nacional.

em contra-corrente

ao fim de vários anos de um florescimento notável da vida musical portuguesa, resultante dum conjunto de factores, entre os quais a evolução do ensino da música e a consequente res-posta de várias estruturas, sob a forma de encomendas de obras e a programação de algum repertório português, olhamos em volta, a perscrutar o terreno. Que espaço pode haver para a nossa vida musical nos dias carregados que atravessamos? Cada vez mais jovens músicos completam a sua formação noutros países e por lá se quedam, com melhores perspectivas para a construção duma carreira artística. Os estabelecimentos de ensino debatem-se com carências e cortes cada vez mais graves no seu financiamento. Uma percentagem considerável das realizações musicais que fruímos parte da iniciativa independente, de artistas ou pequenas estruturas, financiadas por fundos públicos e, por conseguinte, também atingidas por cortes drásticos. As sucessivas restrições orçamentais obrigam a novos emagrecimentos nas programações das entidades públicas. Conseguirá o Teatro Nacional de São Carlos, que para a presente temporada previra um aumento sig-nificativo de repertórios nacionais nos seus programas, manter essa estratégia? Poderão os poderes públicos e a comunicação social permanecer surdos durante muito mais tempo aos prodígios que os nossos artistas – compositores e intérpretes – têm edifi-cado com escassos meios? Terão os actuais decisores alguma percepção do extraordinário valor da nossa música, não apenas no aspecto artístico mas também numa perspectiva economicista, enquanto produto com grande potencial comercial, inserido numa lógica de turismo cultural? Com cada vez mais músicos portugueses a serem reconhecidos e premiados no estrangeiro, com o crescente interesse que o nosso património musical levanta noutros países (onde é valorizado), poderá Portugal continuar a fazer de conta que não existe música erudita portuguesa? perdoem-me o desabafo: assisti, em Agosto último, ao festival Laus Polyphoniae, em Antuérpia, onde vi um público flamengo

exultante com a magnífica música portuguesa que lhe era dada a ouvir, concerto após concerto. Durante uma semana, Portugal esteve nas páginas dos jornais belgas, e não pelos habituais pio-res motivos. Senti um imenso orgulho mas também a vergonha de, no meu país, a imprensa, com poucas excepções, ter despre-zado o acontecimento, numa letargia colectiva que só tem expli-cação num preconceito (como qualquer outro, proveniente da ignorância): a música clássica não vende. Nós sabemos que isso não é verdade. E cabe-nos ajudar a mudar o estado das coisas, quer fazendo-a, quer fruindo-a e partilhando-a.

aniversários e concertos monográficos

seria de esperar: no terceiro centenário do nascimento do napolitano David Perez, que foi Mestre da Capela Real e director da efémera Ópera do Tejo, para cuja inauguração compôs a ópera Allesandro nell’Indie, quase não se ouviu a música do compositor. A escassez de concertos que integrem peças suas mantém-no afas-tado do interesse do público. No entanto, a sua presença em Lisboa influenciou profundamente a vida musical portuguesa e os compositores que nela se movimentaram. A obra de Perez e o seu contributo para a História da Música no seu tempo e em Portugal foram abordadas no colóquio que o CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, da Universidade Nova de Lisboa, lhe dedicou, entre 21 e 23 de Outubro, no Museu de Aveiro. “David Perez e a música da sua época” teve a partici-pação de musicólogos portugueses, brasileiros e italianos, que abordaram diversos aspectos e enquadramentos da obra sacra e profana do compositor, e incluíu um recital de música de câmara. Também em Outubro, um dos participantes no coló-quio, o cravista João Paulo Janeiro, realizou, com os seus agru-pamentos Capella Joanina e Flores de Mvsica, um concerto com obras sacras de Perez, de Luciano Xavier dos Santos e de José Joaquim dos Santos, inserido no ciclo Sons de Almada Velha (evento programado pelo segundo ano consecutivo nas igrejas do concelho, com ênfase em repertório português). Entre 5 e 31 de Dezembro, a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cuja Área de Música foi criada há vinte anos, apresenta uma exposi-ção sobre David Perez, que inclui uma conferência por Cristina Fernandes, um recital por Mário Marques Trilha e o lançamento da edição facsimilada do manuscrito das suas Variações para Bandolim, que teve estreia moderna em 28 de Junho na BNP, pela Academia dos Renascidos.a bnp foi uma das poucas instituições que em 2011 assinala-ram os 750 anos do nascimento de Dom Dinis, com uma confe-rência-concerto, a 28 de Outubro, por Manuel Pedro Ferreira e Ângela Correia, e a actuação das Vozes Alfonsinas, em que se destacaram as cantigas de amor do rei trovador e a generalidade da sua obra lírica, bem como a música do século XX composta sobre os seus poemas. Na véspera, foi apresentado o sítio elec-trónico dedicado às cantigas medievais galego-portuguesas

o que está a acontecer na música portuguesadebaixo de olho

MANUELA PARAÍSO | TEXTO

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(www.cantigas.fcsh.unl.pt), também da responsabilidade de Manuel Pedro Ferreira e de Graça Videira Lopes. A efeméride do rei trovador foi também evocada pelo Museu da Música, atra-vés duma exposição a decorrer até 3 de Dezembro.para 2012, estão agendados alguns eventos comemorativos dos 250 anos do nascimento de Marcos Portugal. No entanto, tendo em conta que se trata do compositor português mais famoso de sempre, aclamado no seu tempo em Itália, França e outros países, e que durante os últimos anos tem sido objecto de vários trabalhos de investigação, essas comemorações sabem a pouco. Algumas das iniciativas estão ligadas ao projecto “Marcos Portugal: a obra e sua disseminação”, dirigido pelo musicólogo David Cranmer, e ligado ao CESEM. Entre elas, um colóquio sobre o compositor, no Teatro Nacional de São Carlos, a 23 e 24 de Março, a par das récitas da sua ópera O Basculho de Chaminé, que sobem à cena no Salão Nobre. No mês seguinte, prevê-se um recital pela Academia dos Renascidos na BNP, que apresenta modinhas de Marcos Portugal, estando agendados mais recitais, conferências e uma exposição importante, no último trimestre do ano, para a qual será publicado um catálogo. Antes, neste final de 2011, estará já disponível o Catálogo da Obra Religiosa de Marcos Portugal, tese de doutoramento de António Jorge Marques. Nota ainda para a série filatélica evocativa que irá ser comercializada em Portugal.em 2011, assinalam-se também aniversários importantes de vários compositores no activo. Nos setenta anos de Emmanuel Nunes, a Casa da Música estreou obras do compositor, uma das quais, Musivus, nas sua versão completa, a 22 de Outubro; e entre 4 e 6 de Novembro a Culturest albergou o simpósio internacio-nal “Tempo, espaço, intencionalidade”, outra organização do CESEM que propôs uma reflexão sobre a obra de Nunes e na qual o próprio participou. Os sessenta anos de António Pinho Vargas foram comemorados com a estreia da encomenda con-junta, pela Casa da Música, pelo São Carlos e pelo Centro Cultu-ral de Belém, da obra Onze Cartas, cuja primeira audição foi no Porto, a 1 de Outubro, e que tem estreia lisboeta marcada para 19 de Novembro no TNSC, com uma terceira apresentação, em 2012, no CCB. Por entre várias obras tocadas ao longo do ano em concertos, aconteceram mais algumas estreias, como a de Quasi una sonata, para violino e piano, por Gareguin Aroutian e Miguel Henriques, encomendada pelo CCB para o ciclo “Concertos à Conversa”. Por outro lado, a discografia de Pinho Vargas avoluma-se com a publicação dum CD de piano solo, gravado ao vivo, e a gravação dum monográfico, pelo Drumming Grupo de Percussão. mais discreta foi a passagem dos cinquenta anos de Isabel Soveral e de Virgílio Melo, apenas assinalada com dois concer-tos monográficos: o da primeira no âmbito dos Festivais de Outono, da Universidade de Aveiro, a 3 de Novembro, com obras para voz e electrónica, uma das quais, sobre um soneto de Shakespeare, em estreia absoluta, na interpretação da soprano

Frances Lynch. O segundo teve um concerto monográfico orga-nizado pela Oficina Musical, a 24 de Setembro, no Teatro da Vilarinha (Porto), com peças de música de câmara e também electrónica. Outro aniversário, o dos vinte e cinco anos de car-reira de António Sousa Dias, teria passado ao lado não fosse a inclusão dum programa evocativo no festival Música Viva, em Setembro último. além destes concertos comemorativos, alguns outros mono-gráficos estão marcados para este final de ano: a 6 de Novembro, no Palácio Foz, a Orquestra Sinfónica Juvenil toca obras de Christopher Bochmann; a 26 desse mês, o Clube Literário do Porto propõe um concerto com música de câmara de Eduardo Patriarca, que inclui a primeira audição de Zazen pelo percus-sionista Nuno Aroso. Do mesmo compositor, tinha sido estreada, em Março, a obra Enso, encomendada pelo Harmos Festival, e aguarda-se, para breve, a estreia de Processione, uma encomenda do Quarteto de Cordas de Matosinhos. Em Outubro, o jovem compositor Nuno da Rocha programou um concerto com obras que compôs ao longo da licenciatura na Escola Superior de Música de Lisboa – um exemplo das possibilidades que hoje se oferecem aos estudantes de composição, mas também da capaci-dade empreendedora que parece ser cada vez mais necessária.

outras encomendas e novas obras

alexandre delgado, Peregrinação Interior: Cinco Sonetos Quinhen­tistas para soprano e orquestra. Estreia 2 de Abr. 2011, Igreja Matriz, Santiago do Cacém. A Rainha Louca, ópera em dois actos. Estreia 8 de Jul. 2011, CCB.álvaro salazar, 15.ª Anotação, quarteto de cordas, homenagem a Lopes-Graça. Estreia pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos, a 29 de Set. 2011, Cine-Teatro Constantino Nery, Matosinhos.andreia pinto-correia, Elegia a Al­Mu’tamid, encomenda e estreia pela American Composers Orchestra, 14 de Out. 2011, Carneggie Hall. Esculpturas, encomenda e estreia pela OrchestrUtópica, 21 Out., CCB. Este branco silêncio (II), estreia pelo Taller Contem-porâneo, 13 de Dez., Santiago de Compostela. Xántara, estreia pela Minnesota Symphony Orchestra, 6 de Jan. 2012. Obra esco-lhida pelo Composers Institute 2012. Acanto, estreia europeia pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, 8 de Jan. Delilah’s Last Love, pequena ópera em um acto. Estreia a 8 de Maio de 2012 no Jordan Hall em Boston.ângela ponte, La Fontaine Rouge, para multipercussão, estreia, a 18 de Out. por Nuno Simões, da encomenda da Casa da Música.cândido lima, Optic Music – Quadros Cinéticos, pianos. Impres­sões do Crepúsculo (Pauis), Clarinete, violino, piano. Rituais para piano ­ quadros de Villaiana “du moyen âge”. Cinco Momentos de Oama, Clarinete e piano. carlos marecos, …pequena peça de pouco mais de um minuto, para marimba solo, em ritmo endiabrado de quase tango…, estreia por Pedro Carneiro, a 29 de Out., no Museu de Aveiro.

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christopher bochmann, Divertimento, encomenda do Festival de Música da Póvoa de Varzim, estreia a 22 de Jul. 2011.daniel schvetz, Parábola del círculo y la piedra, concerto para bandoneón e orquestra. Estreia pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, a 25 de Set. 2011, São Jorge, Lisboa.edward luiz ayres d’abreu, ainda não vi­te as mãos. Ópera, libreto de Joana Guerra. Estreia a 9 de Julho 2011, Teatro Sá da Bandeira, Santarém.joão godinho, nova obra, encomenda do festival Musicaldas, estreia em Julho 2012. joão-heitor rigaud, Sonata para flauta e piano, estreia por Daniel Kessner e Dolly Eugenio Kessner, 13 Out. 2011, Conser-vatório de Música do Porto; 14 Out. Clube Literário do Porto.joão madureira, Wind, Concertino para Trompete e Sopros. Encomenda, estreia mundial a 3 de Jul. 2011, Grande Auditório da Academia de Artes Performativas de Hong Kong (no mesmo concerto foram tocadas obras de João Domingos Bomtempo, Joly Braga Santos, Álvaro Cassuto, Jorge Salgueiro, Jaime Reis – A Omnisciência é um Colectivo, encomenda, estreia – e Luís dos Santos Cardoso – Sinfonieta para banda, encomenda, estreia). 8 Estudos literários, piano solo. Estreia mundial por Ana Telles, a 24 de Nov. 2011, Academia das Ciências de Lisboa. joão pedro oliveira, Vox Sum Vitae, estreia mundial a 9 de Junho, em Firenze, Itália. jorge salgueiro, Deu­la­Deu, ópera comunitária, estreia 12 Ago. 2011, Monção. Lusitânia, 22 Out. Bragança. Arrábida, para harpa, 2 percussionistas e crianças, sobre textos de Sebastião da Gama. Estreia 28 Out., Palmela. Ópera com libreto original de Gonçalo M. Tavares, 14 de Março 2012, no Campo Pequeno. Abril, para big band e multidão, criação do teatro O Bando, 25 Abr. 2012.josé luís ferreira, Avant, para ensemble e electrónica em tempo real, estreia pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble a 9 de Set. no CCB.luís soldado, Landscape in the Rain, estreia a 8 de Out., St. Cyprian’s Church, Londres. Hotel Suite, ópera com libreto de Rui Zink. Estreia pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, a 11 Nov., Royal College of Music, Londres. Serão também apre-sentadas obras de Capdeville (Momento I), Pedro Faria Gomes (Thanatos) e Jorge Peixinho (Llanto por Mariana).manuel durão, Robin Hood, ópera para crianças, estreia pelo

Ensemble Consart, 9 e 11 de Ago. 2011, Castelo de Breitungen/Werra, Turíngia. Crise, estreia pela Orquestra da Radiodifusão da Alemanha Central (MDR Sinfonieorchester) a 26 Nov., Grande Auditório da Hochschule für Musik und Theater Leipzig.miguel azguime, Conver(say)tions, estreia a 10 Abr. 2011, RED-CAT, Los Angeles. Nova obra, estreia a 30 de Março de 2012 pelo Quasar Saxophone Quartet.nuno côrte-real, Ciclo de canções de Florbela Espanca. Estreia mundial a 7 de Dez. de 2011, Teatro-Cine de Torres Vedras.nuno peixoto de pinho, A Dança do velho lobo, para clarinete solo, encomenda Antena 2 - RTP, para a 25.ª edição do Prémio Jovens Músicos. A Dança do Velho homem - para percussão solo, obra encomendada por Nuno Simões, estreia dia 18 de Outubro na Casa da Música.pedro faria gomes, obra para orquestra, estreia pela Fundação Orquestra Estúdio, 19 Set. 2012, Centro Cultural Vila Flor, Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012. sérgio azevedo, Sonatina para 4 trompas, estreia por José Carlos Alves e alunos da masterclass de trompa, 18 Abr. de 2011, Conservatório de Música Jaime Chavinha, Minde. From the top of the hill…, estreia por solistas do Remix Ensemble, 3 Maio de 2011, Casa da Música. Serenata em Trio, versão com saxofone, estreia pelo Entre Madeiras Trio, 15 Maio, Palácio Foz, Lisboa. O Pequeno Livro de Piano da Beatriz, excertos, estreia parcial a 21 de Maio, Museu da Música, Lisboa. Missa Brevis, estreia por alunos do IG, dir. Filipa Palhares, órgão António Esteireiro, 5 de Junho, Igreja das Laranjeiras, Lisboa. Uma Pequena Sere­nata Diurna, estreia pela Orq. Câmara de Cascais e Oeiras, dir. Nikolai Lalov, 16 de Julho. O Natal do Ninhou, estreia por alunos e professores do Conservatório Jaime Chavinha, Minde, 17 de Dezembro. Uma Pequena Cantata de Natal, estreia da versão revista, por alunos e professores do Coral Luísa Todi, Setúbal, 17 de Dezembro. O Veado Florido (conto musical sobre texto de António Torrado), estreia 10 Fev. 2012, Orq. Metropolitana de Lisboa, Montijo. Quinteto, estreia por solistas da Orquestra Gulbenkian, 10 Fev. 2012, Fund. Gulbenkian.vasco mendonça, Ping, sobre texto de Samuel Beckett. Estreia por Joana Manuel e OrchestrUtópica, 4 e 5 Nov. 2011, São Luiz Teatro Municipal.

No festival Laus Polyphoniae, em Antuérpia (Pedro Caldeira Cabral, Marisa Figueira, Mariana Moldão Martins, Manon Marques, Filipa Taipina, Carolina Figueiredo)

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festivais

se ao longo dos anos se tem vindo a verificar uma maior presença de repertórios portugueses nas programações das tem-poradas e dos festivais, não são muito numerosos os concertos e programas assentes principalmente em música de autores nacionais. Que, noutros países, programadores escolham música portuguesa como força motriz dos eventos que dirigem, sabendo que ela irá interessar aos seus públicos, é facto que devia servir de exemplo. Entre 22 e 28 de Agosto, o festival de música antiga Laus Polyphoniae, de Antuérpia, ofereceu uma programação criteriosa, resultado de práticas de investigação que permitiram a encomenda de repertórios aos artistas convi-dados e a estreia moderna de alguns daqueles. Música da corte de Dom Dinis, obras sacras de Duarte Lobo e de João Lourenço Rebelo, o Cancioneiro de Elvas e as sinfonias de Leonora Duarte, compositora seiscentista flamenga de origem portuguesa, foram alguns dos muitos programas aliciantes para o público, interes-sado em conhecer novos repertórios, mas também para os artistas, como o conceituado harpista Andrew Lawrence-King, a quem a oportunidade de se debruçar sobre obras portuguesas suscitou a vontade de explorar melhor a nossa música. O entusiasmo com que foram acolhidos os intérpretes portugueses, participantes num evento em que, como sempre, actuaram alguns dos mais prestigiados agrupamentos de música antiga, como o Huelgas Ensemble, o Currende ou o Hespèrion XXI, deveria encorajar até os mais cépticos sobre a atractibilidade de programas análogos e a excelência dos nossos músicos. Outros dois festivais de referên-cia, o de Ambronay e o de Lannion, respectivamente em Agosto e Outubro, deram a ouvir alguma música portuguesa, como árias da oratória A Morte de Abel, de Pedro António Avondano, pelo Divino Sospiro, com a soprano Ana Quintans e o oboísta Pedro Castro, e obras de compositores da Escola da Sé de Évora.em portugal, vários festivais, como o do Estoril, o da Póvoa de Varzim, o Cistermúsica, o Terras sem Sombra, o Música Viva, os Festivais de Outono, prosseguem as suas opções de progra-mação encomendando obras a compositores ou escolhendo outras já estreadas, dando sempre algum espaço para a criação nacional. Também eventos de menores dimensões e orçamento, como o Síntese - Ciclo de Música contemporânea da Guarda, o Sons de Almada Velha, da área da música antiga, ou o Musicá-lia, da Academia de Amadores de Música, todos realizados no Outono, incluem nos seus programas obras portuguesas. Outro certame que ao longo dos últimos anos tem vindo a proceder a encomendas a jovens compositores nacionais, o Prémio Jovens Músicos, promovido pela Antena 2, assumiu este ano o formato de festival, como comemoração pelas 25 edições do Prémio, e na sua programação as obras portuguesas ocuparam um espaço digno, integrando os concertos do Grande Auditório Gulbenkian. Lado a lado com a estreia da obra encomendada a Carlos Caires (Instante, para orquestra e electrónica, dada pela orquestra da Fundação, dirigida por Pedro Neves), tivemos Vathek, poema sinfónico de Luís de Freitas Branco, mas tam-bém duas obras de Joly Braga Santos: o Concerto para Violoncelo e a Abertura Sinfónica n.º 3. As peças encomendadas pelo PJM para serem executadas durante as provas do concurso (compos-tas por Sara Claro, Emanuel Marcelino, Ana Seara, Gonçalo Gato Lopes, Tiago Derriça, Pedro Faria Gomes, João Godinho e Filipe Esteves) foram também dadas em concerto pelos antigos laure-ados que originalmente as interpretaram, e houve oportunidade de ouvir novas obras para guitarra portuguesa compostas espe-cificamente para o recital de Miguel Amaral.

encontros, simpósios

18 a 20 de maio de 2011 – 1.º Fórum Jovens Compositores. Estreia de obra de Gonçalo Gato. Mesa redonda e debate público sobre o ensino da composição e a interpretação da nova música. Org. Miso Music Portugal. Goethe Institut, Lisboa.26 a 28 de julho de 2011 – MUSMA–Music Masters on Air. 10.º Encontro de Compositores. Participaram Luís Tinoco, João Madureira, Nuno Côrte-Real e João Godinho (cuja obra Fogo Posto, encomenda do MUSMA, teve estreia mundial).24 de setembro de 2011 – Mesa redonda. Compositores à con-versa. Christopher Bochmann, Sérgio Azevedo, Carlos Marecos. Museu da Música Portuguesa, Casa Verdades de Faria, Estoril.29 de setembro a 1 de outubro de 2011 – II Simpósio Interna-cional de Musicologia Histórica, sob o tema “Maria Bárbara de Bragança, Infanta de Portugal, Rainha de Espanha”. Convento dos Capuchos, Caparica. 28 a 30 de outubro de 2011 – 2.º Fórum Internacional Itine-rários Musicais ‘Música e Gesto’. Foram abordadas questões relacionadas com música portuguesa. Centro Cultural de Belém. Org. CESEM.25 a 27 novembro de 2011 – 1.º Encontro Nacional de Investi-gação em Música. Inclui comunicações relacionadas com música portuguesa (António Leal Moreira, Fernando Lopes-Graça, Frederico de Freitas, Jorge Peixinho, base da dados sobre música antiga portuguesa e outros). Casa da Música. Org. Associação Portuguesa de Ciências Musicais.9 a 11 de fevereiro de 2012 – Congresso Internacional “A Lín-gua Portuguesa em Música”. Inclui o I Concurso de Composição Caravelas e três concertos com repertório exclusivamente em português. Culturgest. Org. Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira.

investigação

carlos marecos. Conclusão do doutoramento pela Universi-dade de Aveiro com a tese Interacção entre estruturas intervalares e estruturas espectrais na música instrumental/vocal, de que resul-tou a composição de várias obras, todas já estreadas (Inês, sete miniaturas sobre A Castro, para soprano e orquestra; Um sino con­tra o tempo, para flauta, clarinete, percussão e piano; Terra, para orquestra de cordas; Dor e Amor, sob poemas de Nuno Júdice, para meio-soprano e ensemble instrumental; Ode a Gaia, Deusa da Terra, para soprano, coro misto e electrónica).nuno peixoto de pinho. Plano de tese de Doutoramento pela Universidade Católica Portuguesa. Processos de Reutilização Musical na Obra do Compositor Jorge Peixinho (1940 ­ 1995): Suces­sões Simétricas I, II e III. filipe cerqueira. Frequência do Mestrado em Interpretação artística na ESMAE, sobre a obra para piano solo do Padre Dr. Joaquim Gonçalves dos Santos, de que apresentou em recital várias peças (Prologus: 6 Impressões musicais do Evangelho de S. João; Servite Domino In laetitia: Impressões Bíblicas; Ludus Atonalis).

prémios e concursos

Edward Luiz Ayres d’Abreu, Luís Soldado, Sofia Sousa Rocha, Tiago Cabrita. Seleccionados, pelo Concurso Mini-Óperas (Teatro Nacional de São Carlos; Arquipélago – Associação de Compositores de Portugal), para compor novas óperas a estrear dias 4 e 5 de Fevereiro de 2012, no TNSC. Coordenação de João

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Madureira, direcção musical de Pedro Neves e encenação de Luís Miguel Cintra.

Gonçalo Gato. 1.º prémio do 6.º Concurso Internacional de Composição da Póvoa de Varzim com a peça Vectorial­modular para orquestra, estreada a 22 de Julho de 2011 no Auditório Municipal da Póvoa. Selecção para o 1.º Fórum Internacional de Jovens Compositores do Sond’Ar-te Electric Ensemble. Estreia, nesse âmbito, da peça Configurazioni para quinteto e electrónica em tempo-real, no dia 20 de Maio de 2011, Goethe Institut, Lisboa.

João Pedro Oliveira. Honorary Fellow of the National Academy of Music, National Academy of Music. 1.º Prémio no concurso Counterpoint, Counterpoint Society.

Manuel Durão. Prémio de composição da Orquestra Sinfónica da Radiodifusão da Alemanha Central e o prémio do DAAD para “excepcional desempenho” de estudantes estrangeiros.

concurso olga prats: irá realizar-se em 2012 a primeira edição de uma competição de piano para jovens até aos 18 anos, criada como homenagem à pianista, que sempre incentivou e cultivou o interesse pela música portuguesa, e como estímulo aos estu-dantes de piano para abordarem repertório nacional. Em cada uma das categorias figuram peças portuguesas obrigatórias, de Sérgio Azevedo. O concurso, que terá lugar entre 30 de Março e 1 de Abril de 2012, é organizado pelo Conservatório Regional de Palmela, Sociedade Filarmónica Humanitária de Palmela e pelo mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa. Informa-ções em http://concursopiano.conservatoriopalmela.com

discos

bruno monteiro e joão paulo santos. Sonatas para Violino e Piano de Óscar da Silva e Armando José Fernandes. Ed. Movieplay, Maio 2011.patrício da silva. Now and Then: Music from the Great Depression(s) 2010/1929. danse des sylphes. Inclui obras de Joaquim dos Santos e Alexandre Delgado. Adriana Ferreira, flauta. Isolda Crespi, piano. Ed. Numérica.antónio victorino d’almeida. Sinfonia. Concerto. Abertura. Sonata. António Rosado, piano. Orq. Sinf. de Jovens de Santa Maria da Feira, dir. Paulo Martins. Ed. Numérica.antónio pinho vargas. Concerto do IST – Improvisações. Ed. Althum, Setembro 2011.smith quartet. Portuguese String Quartets with Electronics. Obras de Carlos Caires, Miguel Azguime, Pedro Amaral e Pedro Rebelo. Ed. Miso Records, Setembro 2011.luís de freitas branco. Sonatas para Violino n.ºs 1 e 2. Prelúdio. Carlos Damas, violino. Anna Tomasik, piano. Ed. Naxos, Outubro 2011.compositores portugueses xx/xxi, 4º Volume. Coro Sinfónico Lisboa Cantat. Obras de Fernando Lopes-Graça, Carlos Marecos, Sérgio Azevedo e Vasco Pearce de Azevedo. Outubro 2011.antónio fragoso. Complete chamber music for violin. Carlos Damas, violino. Jian Hong, violoncelo. Jill Lawson, piano. Ed. Brilliant Classics, Novembro 2011.nuno pinto. Portuguese Music for Clarinet & Electronics. Obras de Cândido Lima, Carlos Caires, João Pedro Oliveira,

Miguel Azguime, Ricardo Ribeiro e Virgílio Melo. Ed. Miso Records, Novembro 2011.miguel azguime. Electronic Music. Ed. Miso Records, Novembro 2011.fernando lopes-graça. Melodias Rústicas Portuguesas. Bruno Belthoise e Christina Margotto, piano. Ed. Disques Coriolan, Outono 2011.joly braga santos. Abertura Sinfónica n.º 3. Elegia a Vianna da Motta. Alfama Suite de bailado. Variações para orquestra 1973. 3 Esboços sinfónicos. Royal Scottish National Orchestra, dir. Álvaro Cassuto. Ed.Naxos, Outono 2011.ana telles. Piano & Electronics. Obras de Miguel Azguime, João Pedro Oliveira, Carlos Caires e Enrique X. Macías. Ed. Miso Records, Dezembro 2011.

em fase de preparação, gravação ou a aguardar publicação:

armando josé fernandes. Sonata de violino e piano/Concerto para violino e orquestra Carlos Damas, violino. Orquestra Sinfónica de Córdoba. Brilliant Classics, 2012.fernando lopes-graça. Sinfonia per Orquestra. Poema de Dezembro. Suite Rústica nº 1. Marcha festiva (1.ª gravação mundial). Royal Scottish National Orchestra, dir. Álvaro Cassuto. Ed.Naxos, Primavera 2012.fernando lopes-graça. Concertos para piano n.ºs 1 e 2. Int. Eldar Nebolsin, Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Ed. Naxos.canções tradicionais portuguesas de natal. Coro Gulbenkian, dir. Jorge Matta. volúpia. Música de Câmara de Nuno Côrte-Real. Int. Ensemble Darcos.antónio pinho vargas. Obras para percussão. Drumming GP. Drumming GP. Obras de Luís Antunes Pena e Matthias Ockert. frederico de freitas. A Dança da Menina Tonta. O Muro de Derrete. Ribatejo. Nazaré. Royal Scottish National Orchestra, dir. Álvaro Cassuto. Ed.Naxos. Gravação em Março 2012.fernando lopes-graça. Obra Coral, 2.º vol. Coro Sinfónico Lisboa Cantat, dir. Jorge Carvalho Alves. Ed. Outubro 2012.luís de freitas branco. Trio / Concerto para Violino e orquestra. Carlos Damas, violino. Mission Orchestra of San José. 2013sete lágrimas. Diaspora II (título provisório, continuação conceptual do projecto Diaspora.pt. Concertos de apresentação: Dez 2011/Jan 2012)francisco antónio de almeida. La Spinalba. Músicos do Tejo. Joana Seara, Sandra Medeiros, L’Avventura London. Modinhas. Ed. Hyperion, Primavera 2012.

livros

casas da música do porto 3.º Volume, de Rui Pereira, Ana Liberal e Sérgio C. Andrade. Ed. Casa da Música. Novembro 2011.emmanuel nunes - escritos e entrevistasEd. Casa da Música / CESEM. Novembro 2011.marcos portugal - catálogo temático da música sacraDe António Jorge Marques. Ed. Biblioteca Nacional de Portugal/ CESEM. Outono 2011.diários de vianna da motta Organização de Elvira Archer. Ed. Biblioteca Nacional de Portugal/ CESEM. Outono 2011.

novembro5 | 16h00 | biblioteca nacional, lisboalançamento da glosas #4mpmpQuarteto Lopes-GraçaLopes-Graça: Catorze AnotaçõesVictorino d’Almeida: Quarteto, Op.148

6 | teatro faialense, faialmiguel azguime Itinerário do Sal, ópera multimédia

9 | 21h00 | centro cultural de belém, lisboaantónio pinho vargasDuas PeçasOrquestra Metropolitana de LisboaDirecção: Cesário Costa

11 | contempuls festival, praga, república checamiguel azguime Itinerário do Sal, ópera multimédia

11 | royal college of music, londrespedro faria gomesThanatosGrupo de Música Contemporânea de Lisboa

12 | 16h00 | museu da música, lisboacarlos seixasSonatas para Cravo e ÓrgãoConcerto mpmpJ. C. Araújo, cravo e órgão

14 | coliseu do porto30 | aula magna, lisboajorge salgueiroA Menina de Pedra, bailado interactivoDirecção: Jorge SalgueiroIntérpretes a designar

14 | escola superior de música de lisboanuno pinto clarinet & electronicsLançamento do CDN. Pinto, clarineteM. Azguime, electrónicaRicardo Ribeiro: IntensitésCândido Lima: NcáãncôaMiguel Azguime : No Oculto Profuso (medidamente a desmesura)

15 | bartók festival, londrespedro faria gomesContours*Philarmonia Orchestra

15 | 14h30 e 16h0016 | 11h30, 14h30 e 16h00instituto goethe de lisboasimão costaQuando eu nasci (Minhós Martins)sérgio pelágioA Velha e o Ladrão (António Torrado)miguel azguimeO Rouxinol do Imperador(H. C. Andersen)Narrado por Ágata Mandillo, Ana Mandillo, Rosinda Costa

15 | 21h30 | universidade aveiro(departamento de comunicação e arte)nuno pinto clarinet & electronicsN. Pinto, clarineteM. Azguime, electrónicaRicardo Ribeiro: IntensitésJoão Pedro Oliveira: Time SpellCarlos Caires: LimiarVirgílio Melo: Upon a Ground II

16 | 21h30 | Igreja da Misericórdianuno côrte-realMonumentum In Memoriam Philippe Hirshhorn, op. 37

16 | 21h30 | Univ. Aveiro (Dep. de Comun. e Arte)obras de sara carvalhoPerforma Ensemble

17 | Queens Collegejoão pedro oliveiraEntre o Ar e Perfeição

17 | 19h00 | instituto goethe de lisboanuno pinto clarinet & electronicsLançamento do CDMiso Studio N. Pinto, clarinete M. Azguime, electrónicaObras de Carlos Caires, Cândido Lima, Miguel Azguime

18 | 19h00 | instituto goethe de lisboamiguel azguime L….., Des Cercles en Cercle, Liquidus Sonorus Luminaris, Le Dicible Enfin Fini, Comunicações.Orquestra de Altifalantes

18 | 21h30 | teatro aveirensefrederico de freitasSuite AfricanaOrquestra Filarmonia das BeirasDirecção Luís Carvalho

19 | 21h00 | teatro nacional de são carlosantónio pinho vargasOnze CartasOrquestra Sinfónica Portuguesa

19 | 21h30 | audtório municipal césar de oliveira, coimbrasimão barreto (arranjos)Igreja de Santa CruzCanticus CameraeDirecção: A. Curado

20 | 16h00 | museu nacional soares dos reis, portolançamento da glosas #4mpmpPrograma e intérpretes por definir

24 | academia das ciências, lisboajoão madureira8 Estudos literários*Ana Telles, piano

24 e 25 | 21h30 centro cultural de lagosjorge salgueiroA Quinta da Amizade, fábula sinfónica, op.65Orquestra Clássica da Academia, Orquestra Didáctica da Foco Musical Direcção: Jorge Salgueiro

25 | zkm, karlsruhejoão pedro oliveiraAngel Rock

26 | casa do alentejo, lisboamiguel azguime No sítio do tempo

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 9

agenda

26 | 19h30 | Grande Auditório, Hochschule für Musik und Theater, Leipzig, Alemanhamanuel durãoCrise*MDR Sinfonieorchester Direcção do vencedor do respectivo concurso de Direcção de Orquestra

26 | 22h00 | casa da cultura jaime lobo e silva, ericeiravianna da mottaTrio com Piano A. Tolpygo, violinoP. Flanagan, violoncelo S. Konjikusic, piano

26 | 21h00 | idanha-a-novasete lágrimasMediterrae

26 | 21h30 capela de são pedro, coimbra diogo melgazDomine Hominem non Habeofilipe de magalhãesSanctuspedro de cristoAy mi DiosChoral Poliphonico de CoimbraDirecção: P. MonizA. Vaz Pereira, piano

30 | 21h30 biblioteca joanina, coimbraarmando leçaMinueteB. Schmidt, harpaS. Matos, harpa

30 | 21h30 | clube literário do portolançamento da glosas #4mpmpPrograma e intérpretes por definir

30 | 19h00 | fundação calouste gulbenkian, lisboaf. antónio de almeidaMagnificat, Beatus vir, Justus ut palma florebitCoro Gulbenkian Direcção: M. CorbozC. Müller Perrier, sopranoF. Guimarães, tenorN. McNair, órgãoT. Hirsch, violoncelo

dezembro1 | haus konstruktiv, zuriquejoão pedro oliveiraAngel Rock

2 | centro cultural de cascaismiguel azguime De parte et d’autre*p. ferreira-lopesA Menina dos Fósforos*ricardo ribeiroNova obra*F. Ollu, maestro

6 | 21h30 museu nogueira da silva, bragasérgio azevedoQuinteto com Clarinete*,Sexteto com Piano e Clarinete*j. d. bomtempoQuinteto com Pianoj. palominoQuintetoConcerto mpmpSentica Ensemble

7 | 21h30 | teatro-cine, torres vedrasnuno côrte-realCiclo de Canções de Florbela Espanca*Eduarda Melo, soprano

9 | 21h30 | Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboajoly braga santosQuarteto para Cordas n.º2A. Manzanilla, violinoJ. Teixeira, violinoC. Hooley, violetaJ. Lake, violoncelo

11 | 12h00 | casa da músicaobras de lopes-graça e obras finalistas do i concurso nacional de composição da bspBanda Sinfónica PortuguesaDirecção: A. Roque

12 | 18h00 | palácio foz, lisboaana telles – piano & electronicsLançamento do CD Ana Telles, pianoCarlos Caires: Duetto 1João Pedro Oliveira: in TemporeMiguel Azguime: De l’Étant Qui le Nie

12 | 20h00 fundación juan march, madridsete lágrimasNana, nana

13 | 19h30 | casa da músicarui penhaSolistas do Remix EnsembleNova obra para ensemble e criação visual*

13 | santiago de compostela, espanhaandreia pinto-correiaEste branco silêncio (II)*Taller Contemporaneo

14 | academia de amadores de músicasérgio azevedo4 Peças BrevesM. Cardoso, flauta transversalH. Carichas, piano

16 | 21h00 | casa da músicaluís tinocoOrquestra Sinfónica do PortoCoro de São ToméDirecção: Pedro NevesNova obra*

16 | igreja de s. domingos, lisboanuno côrte-realAbertura Secondo Novecento, op. 25Orquestra Metropolitana de LisboaDirecção: J. M. Rodilla

17 | cons. jaime chavinha, mindesérgio azevedoO Natal do Ninhou* Uma pequena Cantata de Natal*

17 | museu da música, lisboape. dr. j. gonçalves dos santosObras para pianoConcerto mpmpF. Andrade Cerqueira, piano

17 | auditório maestro manuel maria baltazar, lourinhã18 | 17h00 | sala elíptica do convento de mafranuno côrte-realAbertura Secondo Novecento, op. 25Orquestra Metropolitana de LisboaDirecção: J. M. Rodilla

10 | glosas | número 4 | novembro | 2011

6 | 21h30 | Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboavianna da mottaQuarteto para Cordas n.º1A. Mendes, violinoC. Branco, violinoB. Friedhoff, violetaM. J. Falcão, violoncelo

6 | Minnesota, EUAandreia pinto-correiaXántara*, obra escolhida pelo Composers Institute 2012Minnesota Symphony OrchestraDirecção: Osmo Vänskä

7 | 18h00teatro nacional de são carlosluiz de freitas brancoScherzo Fantastiqueantónio fragosoNocturnoOrquestra Sinfónica Portuguesa

8 | 17h00 | cinema são jorge, lisboaandreia pinto-correiaAcantoOrquestra Metropolitana de Lisboa Direcção: L. Shambadal

8 | 19h30 | smith square, londresnuno côrte-realEntreacto da ópera Banksters, op. 40Ensemble DarcosDirecção: N. Côrte-Real

13 | 18h00teatro nacional de são carlosj. d. bomtempoRequiem em Dó m, op. 23Direcção: G. AndreoliKofo Yamagishi, piano

14 | 21h30 | teatro cine (torres vedras)nuno côrte-realEntreacto da ópera Banksters, op. 40Ensemble DarcosDirecção: N. Côrte-Real

20 | 19h00 | liceu camões, lisboa (concerto aberto antena2)lopes-graça4 Peças em SuiteG. Gramajo, violetaA. Simpson, piano

21 | 18h00 teatro nacional de são carloscarlos seixasSinfonia para Orquestra de CordasOrquestra Sinfónica Portuguesa

26 | 18h | biblioteca nacional, lisboasérgio azevedoSerenata em Triochristopher bochmannElegia II*eli camargo jrLubramix IIConcerto mpmpEntre Madeiras Trio(M. Cardoso, flauta transversalF. Branco, oboéJ. Nunes, saxofone)

28 | 18h00 teatro nacional de são carlosj. sousa carvalhoTe DeumOrquestra Sinfónica Portuguesa

28 | 18h00 | museu da música portuguesa, cascaislopes-graça2.ª Sonata, 11 Glosas, Variações sobre um tema popular portuguêsConcerto mpmpP. Marques, pianoD. P. Martins, piano

29 | Villa Concordia, Bamberg, Alemanhaluís antunes penaAnatomia de um Poema SonoroMafalda Lemos, mezzoFabian Sattler, narraçãoEnsemble piano possibile

fevereiro1-7 | 19h00nuno côrte-realPranto, op. 17bEnsemble DarcosDirecção: N. Côrte-Real

3 | 21h00 | centro cultural vila flor, guimarãesf. n. dos santos pinto8.ª AberturaOrquestra Sinfónica Portuguesa

17-21 | zkm, karlsruhe, alemanhaluís antunes pena... winterlich ruhende Erde...(para violoncelo solo)The Flexible Evangelist*(para 30 pratos diferentes e electrónica)Francesco Dillon, violonceloNuno Aroso, percussãoLuís Antunes Pena, electrónica

21 | clube literário do portomúsica de câmaraConcerto mpmpPrograma e intérpretes por definir

21 | 18h00 biblioteca nacional, lisboaobras de david perez e seus contemporâneosMário Marques Trilha, cravo

21 e 22 | cinema são jorge, lisboamiguel azguime A Menina Gotinha de ÁguaÓpera infantil

31 | 17h00 | igreja s. roque, lisboaj. sousa carvalhoTe DeumCoro GulbenkianDivino SospiroDirecção: Jorge Matta

igrejas de lisboanatais portuguesesCanções de Natal de diversos autores nacionaisCoro Sinfónico Lisboa CantatDirecção: Jorge Carvalho Alves

janeiro3 | 21h30 Museu Nogueira da Silva, Bragaluiz costaSonatina para Viola e Pianolopes-graça4 Peças para Viola e Pianojoly braga santosCançãoConcerto mpmpB. Pires, violeta; Isa Antunes, piano

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 11

agenda

4 | 20h00 | teatro nacional de são carlose. l. ayres d’abreu, t. cabrita, sofia s. rocha, l. soldadoAmor-Traição-Ódio Orquestra Sinfónica PortuguesaDirecção: Pedro Neves4 Pequenas óperas contemporâneas*

5 | 17h00centro cultural de belém, lisboaVentoConcerto Segundo do Tríptico da TerraZ. Tóth, sopranoSete Lágrimas, vozCo-direcção: F. Faria/ S. PeixotoJoão Madureira: Missa De Pentecostes

5 | 16h00 teatro nacional de são carlose. l. ayres d’abreu, t. cabrita, sofia s. rocha, l. soldadoAmor-Traição-Ódio Orquestra Sinfónica PortuguesaDirecção: Pedro Neves4 Pequenas óperas contemporâneas*

10 | 21h30 | fundação calouste gulbenkian, lisboasérgio azevedoQuintetoE. Georgie, clarineteA. B. Manzanilla, violinoM. Kouznetsova, violetaR. Reis, violonceloM. Plüddemann, contrabaixo

10 | 21h30 | cinema-teatro joaquim d’almeida, montijo11 | 17h00 | centro cultural e de congressos, caldas da rainha12 | 11h30 | centro cultural de belém, lisboasérgio azevedoO Veado Florido*Orquestra Metropolitana de LisboaDirecção: P. Neves

13 | 18h00 teatro nacional são carlosobras de lopes-graça e luiz de freitas brancoA. Stewart, violinoJ. P. Santos, piano

17 e 18 | 21h00 centro cultural de belém, lisboap. a. avondanoA Morte de Abel, oratória** E. Kirkby, Z. Tóth, S. Medeiros, D. Hansen, I. Ludlow, Divino SospiroDirecção musical: E. Onofri

23 | 19h00 | el corte inglés, lisboa25 | 16h00 | museu nacional de arte antiga, lisboajoly braga santosQuarteto de Cordas n.º2, op.27A. Pereira, violinoÁ. Sárosi, violinoI. Skenderi, violetaM. Pereira, violoncelo

24 | 18h30 | sociedade portuguesa de autores, lisboasara carvalhoThe Moon Lost Her Namen. m. henriquesCadenzaângela lopesPeça Xcândido limaOil in Lovechristopher bochmannThree Capricespedro figueiredoFreie Gesten*Liviu Scripcaru, violino

24 | 13h00 foyer do cinema são jorge, lisboa25 | centro cultural do cartaxodaniel almadaLindeF. Llopis, percussão

25 | 16h00 | museu da música, lisboaConcerto mpmpcarlos seixasSonatas para Cravo e ÓrgãoJ. C. Araújo, cravo e órgão

25 | 16h00 | palácio nacional da ajudajoly braga santosConcerto para cordas em Ré menor, op. 17 (arr.)antónio fragosoTrio, op.2D. Tzonkova, violinoE. de Conca, contrabaixoA. Simpson, piano

março12 | 18h00 teatro nacional de são carlosobras de frederico de freitasA. Manzanilla, violinoR. Guerreiro, violinoP. Muñoz, violetaA. Zupancic, violoncelo

14 | campo pequeno, lisboa21 | europarque, santa maria da feirajorge salgueiroÓpera com libreto original de Gonçalo M. Tavares*Intérpretes a designar

16 | 21h30 | teatro-cine (torres vedras)nuno côrte-realDueto do 2º acto da ópera Banksters, op. 40antónio pinho vargas9 canções de A. Ramos RosaL. Martins, sopranoJ. Tomé, barítonoEnsemble Darcos

18 | 17h00 centro cultural de belém, lisboajoão rodrigues estevesLaudate Dominum omnes gentes**, Psalmus Beatus vir concertato**, Miserere mei Deus**, Stabat Mater dolorosa, Primeira Lamentação de Quinta-Feira Santa**, Magnificat, Miserere a tre cori Vox LuminisDirecção: L. Meunier

19 | 18h00 teatro nacional de são carlosobras de f. gazul, j. a. soares, j. r. cordeiroQuarteto Lopes-Graça

23 | 20h00 teatro nacional de são carlosmarcos portugalO Basculho de ChaminéOrquestra Sinfónica Portuguesa

12 | glosas | número 4 | novembro | 2011

24 | 18h00 teatro nacional de são carlosmarcos portugalO Basculho de ChaminéOrquestra Sinfónica Portuguesa

26 | 18h00 teatro nacional de são carlosobras de lopes-graça e luiz de freitas brancoI. Lima, violonceloJ. P. Santos, piano

30 e 31 | montréal, canadámiguel azguime Quasar Saxophone QuartetNova peça*

31 | conservatório regional de palmelaConcerto mpmp, integrado no Concurso Olga PratsIsa Antunes, pianoP. Marques, pianoD. P. Martins, pianoReportório infanto-juvenil para piano

31 | 21h00 centro cultural de belém, lisboalopes-graçaConcerto da Camera col Violoncello ObbligatoOrquestra Metropolitana de LisboaDirecção: J. JuddP. Gomziakov, violoncelo

abril2 | s. miguel, açores6 | terceira, açoresa alma da genteMúsica Regional Portuguesa com arranjos de Vasco Pearce de Azevedo, Eurico Carrapatoso e Fernando Lopes-GraçaCoro Sinfónico Lisboa CantatDirecção: Jorge Carvalho Alves

4 | 19h00 academia das ciências de lisboanuno côrte-realLargo intimíssimo, op. 28Ensemble DarcosDirecção: N. Côrte-Real

4 | 21h30Museu Nogueira da Silva, Bragamúsica de câmaraConcerto mpmpPrograma e intérpretes por definir

5 | 21h00 Centro Cultural de Belém, Lisboaf. antónio de almeidaSinfonia, em Fá Maior**Divino SospiroDirecção: M. Mazzeo

6 | 21h30 | Centro Cultural Vila Flôr, Guimarães8 | 17h00 | Cinema São Jorge, Lisboapedro osórioMúsica sequencial para orquestrasérgio azevedoSinfonietta Semplicejoão madureiraGreetingnuno malóSuiteOrquestra Metropolitana de Lisboa Direcção: A. Roque

12 | 21h00 teatro nacional de são carlosjoly braga santosSinfonia n.º 4Orquestra Gulbenkian

19 e 20 | 21h e 19h, resp. | fundação calouste gulbenkian, lisboapedro amaralTransmutations pour Orchestre (Nr. 5.3)*Orquestra GulbenkianDirecção: Lionel Bringuier

25 | teatro o bandojorge salgueiroAbril, para big band e multidão, captando o momento flashda felicidade e da utopia*Teatro o Bando

28 | 18h00 | museu da música portuguesa, cascaisluiz costaSonatina para Viola e Piano, Sonata para Violoncelo e Piano e Sonatina para Flauta e PianoConcerto mpmp C. Atalaia, flauta transversalN. Cardoso, violonceloB. Pires, violetaIsa Antunes, pianoD. P. Martins, piano

maio8 | jordan hall, boston, euaandreia pinto-correiaDelilah’s Last Love*, ópera em um acto, libreto: Betty ShamiehMinnesota Symphony OrchestraDirecção: Osmo Vänskä

13 | 17h00 Centro Cultural de Belém, Lisboadiogo dias melgazSalve Regina, In Monte Oliveti, In jejunio et fletu, Adjuva nosf. antónio de almeidaO quam suavis, Si quæris miracula, Justus ut palma florebit, Lamentatio prima in Sabbato Sancto a 4 concertataantónio teixeiraSacram beati Vicentii, Tanta grassabatur crudelitascarlos seixasSonatas para órgão, Sicut cedrus exaltata sum, Hodie nobis cælorum RexM. C. Kiehr, sopranoSete Lágrimas, vozCo-direcção: F. Faria/ S. Peixoto

20 | 17h00 Centro Cultural de Belém, Lisboajoly braga santosConcerto para orquestra de cordasOrquestra Metropolitana de LisboaDirecção G. Walker

25 | 21h30 | Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboajoly braga santosSexteto para Cordas, op. 59B. Chao, violinoJ. Lé, violinoL. Braga Santos, violetaC. Hooley, violetaV. Bartikian, violonceloM. Henneken, violoncelo

*estreia | **estreia moderna

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agenda

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O Festival Dias de Música Electroacústica é fruto da continuação de um trabalho cola-borativo com Julia Chmielnik, em 2003, no festival DNI MUZYKI PORTUGALSKIEJ W KRAKOWIE (Dias de Música Portuguesa em Cracóvia). Desde 2006, sem a colaboração da equipa de produção polaca, têm havido edições regulares do Festival Dias de Música Electroacústica, frequentemente com mais de uma edição anual, com variantes como Dias de Música Electroacústica no Algarve, Dias de Música Contemporânea - Estágio para Maestros, Compositores e Intérpretes, Dias de Música Electroacústica em Madrid, Dias de Música Electroacústica no Brasil, Dias de Música Electroacústica em Coimbra, entre muitas outras actividades de carácter diversificado, em localizações distintas.a primeira edição, na polónia, foi con-cebida e realizada quando tinha dezanove anos. O que nos impulsionou, a mim e à maestrina Julia Chmielnik, foi a vontade de estudar e promover a música de composito-res portugueses de vários períodos. O festival teve a duração de três dias. Realizei três con-ferências sobre História da Música em Portu-gal e houve três concertos. o primeiro deles foi dedicado à música religiosa, com obras corais de compositores como Duarte Lobo e Manuel de Faria, inter-pretadas pelo coro da Academia de Música de Cracóvia, sob a direcção de Julia Chmielnik. O segundo concerto foi dedicado ao reper-tório para voz e piano, com a presença da soprano portuguesa Mariana Costa, no qual foram interpretadas obras de Fernando Lopes-Graça, Frederico de Freitas, e outros. O terceiro concerto foi dedicado à música contemporânea. Foram tocadas, dentre outras, peças de Emmanuel Nunes e João Pedro Oliveira, compositor que esteve pre-sente.o sucesso do evento dependeu fun-damentalmente do excelente nível dos intér-pretes polacos e convidados, e dos contactos da maestrina Chmielnik com o Ministério da Defesa e a comunidade mediática local, uma vez que o seu pai, o já falecido mas famoso actor Jacek Chmielnik, desenrolou um impor-tante papel nessa matéria.

Durante os anos de 2004-2005, mantive a organização de conferências e concertos esporádicos na Universidade de Aveiro. No entanto, a minha actividade composicional ocupava na altura grande parte do meu tempo. Em 2004 realizei a palestra “Biological Models Applied to Music Composition”, em Darmstadt. Em 2005 fui compositor convi-dado no festival Hörfest, em Graz, junta-mente com Miguel Azguime e Paula Azguime, onde foi estreada a minha peça para piano Lysozyme Synthesis. Tinha começado a fre-quentar anualmente os cursos Stockhausen, em Kürten, e todos os seminários que podia com Emmanuel Nunes. só em 2006 decidi retomar as actividades relacionadas com o festival de modo mais intensivo. O Conservatório de Música de Seia, onde havia estudado e era agora profes-sor, tinha boas condições para organizar eventos relacionados com a música electro-acústica. O seu fundador, o etnomusicólogo António Tilly, possuía desde a fundação da escola equipamento profissional, como os sequenciadores Studio Vision, Pro Tools, e outros. Juntando o meu equipamento ao do Conservatório e ao de António Tilly, foi pos-sível realizar um conjunto de pequenas acti-vidades didácticas e mostrar um pouco deste mundo a um público jovem, eminentemente constituído por alunos que, progressiva-mente, iriam receber formação nesta área e, por interesse próprio, viriam a constituir a equipa de produção do festival. a primeira edição foi realizada num ambiente escolar, com um público pratica-mente apenas constituído por alunos do Conservatório, que puderam escutar uma vasta panóplia de música electroacústica de compositores portugueses como João Rafael, António Ferreira, Pedro Rocha, José Luís Ferreira, Carlos Guedes, Rui Penha, Rui Dias, Isabel Soveral, e outros. a segunda edição ocorreu numa escala mais alargada, permitindo a escuta de peças contemporâneas a centenas de pessoas, de compositores como Luís Tinoco, Carlos Azevedo, Lopes-Graça, Mário Mary, Miguel Azguime, Simão Costa, Cândido Lima, Jorge Peixinho e Luciano Berio, interpretadas pelo quarteto de saxofones QuadQuartet, a flau-tista Neuza Bettencourt, os percussionistas Bruno Estima e Pedro Fernandes, o saxofo-nista Henrique Portovedo e o pianista Simão Costa.até esta fase, os apoios para o festival eram extremamente reduzidos, contando funda-mentalmente com fundos próprios por parte da organização. Porém, a segunda edição dos DME contou com um parceiro fundamental, que viria a estar ligado a todas as actividades do Festival: o Instituto de Etnomusicologia

da Universidade Nova de Lisboa, cuja cedên-cia de equipamento foi fundamental para a realização de uma elevada percentagem das actividades realizadas até hoje. Paralela-mente, houve sempre o apoio logístico e ins-titucional do Conservatório de Música de Seia (principal organizador) e da Câmara Munici-pal de Seia. Pontualmente, houve ajuda de outras instituições como a Miso Music Portu-gal, que cedeu equipamento e contribuiu para a divulgação de alguns eventos. Só depois começámos a ter apoio da Direcção Geral das Artes / Ministério da Cultura para uma grande parte das edições e actividades desde então, o que constituiu um ponto de viragem, per-mitindo ter uma produção profissional dos eventos e um aumento do número de activi-dades anuais na ordem dos 500%. a terceira edição do festival foi mar-cada pela presença do Trio EndPhase, consti-tuído pelos compositores Alberto Bernal (Espanha), Johannes Kreidler (Alemanha) e João Pais (compositor português residente na Alemanha, que viria a frequentar as activi-dades do festival noutras ocasiões). Os alunos apresentaram um especial interesse na música apresentada e na aprendizagem dos principais processos composicionais utili-zados pelo Trio.paralelamente ao festival propria-mente dito, houve sempre actividades para-lelas como concertos isolados e conferências. Em 2008, o DME#4, contou com a presença de Bruno Gabirro, Eduardo Patriarca, Hélder Abreu, Mehmet Can Özer, Simão Costa, Tiago Cutileiro, o violinista Luís Gomes, a violon-celista Marta Navarro, o maestro Pedro Pinto Figueiredo, o Ensemble Atelier de Música Contemporânea da EMNSC, o trombonista Joaquim Raposo e o percussionista Nuno Aroso. Seguiu-se uma edição do Festival no Algarve e ainda no mesmo ano outra edição do Festival em Seia (onde esteve presente o compositor Luís Antunes Pena, o percus-sionista Nuno Aroso, o flautista Jorge Salgado Correia e o compositor João Pedro Oliveira), e concertos e conferências em locais como o Instituto Superior de Engenharia de Lisboa. em 2009 seguiram-se, nomeadamente, a primeira edição dos Dias de Música Con-temporânea, com a colaboração do maestro Pedro Pinto Figueiredo e do pianista Fran-cisco Monteiro, num estágio para maestros, músicos e compositores, dedicado à música de Stockhausen. Seguiram-se outras activi-dades relacionadas com a obra de Jorge Pei-xinho, nomeadamente com a re-constituição da obra Luiz Vaz 73 (de Peixinho e Ernesto de Sousa), com o Grupo de Música Contem-porânea de Lisboa, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, onde foi proferida uma conferência sobre o projecto,

dias de música electroacústicaIntrodução à História do Festival

JAIME REIS | TEXTO

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a par de outras actividades também em Ervedal da Beira, Bairrada, Linda-a-Velha, e no estrangeiro: Coreia do Sul (Universidade de Woosuk), Madrid (Dias de Música Elec-troacústica), Alemanha (cursos Stockhausen, onde fui mediar um fórum sobre Stockhau-sen e Educação Musical, apresentando vários projectos a propósito de como a música do compositor foi apresentada a alunos de dife-rentes faixas etárias). em 2010 prosseguimos com um elevado número de actividades em locais diferencia-dos como o Laboratório Nacional de Enge-nharia de Lisboa, o Conservatório de Música de Castelo Branco, o Museu da Música, Linda-a-Velha, Universidade Nova de Lis-boa, Universidade da Beira Interior (Covi-lhã), Instituto Piaget de Almada, Japão (Keio University), Monte Abraão. Deu-se a repre-sentação da secção portuguesa no Festival Internacional de Música Contemporânea da Bahia, com o guitarrista Pedro Rodrigues e o maestro Pedro Pinto Figueiredo, e activida-des no Rio de Janeiro, Salvador, Juiz de Fora e São Paulo, marcando assim os primeiros Dias de Música Electroacústica no Brasil. Paralelamente, o compositor Francisco Pes-sanha, que acompanhava as actividades do festival desde 2006, organizou o Festival Dias de Música Electroacústica em Coimbra, em colaboração com o pianista Tiago Nunes, antigo aluno do Conservatório de Seia e par-ticipante assíduo de edições anteriores do festival. As actividades de 2010 culminaram com uma edição do festival em Dezembro, em Seia, onde o programa foi dividido entre con-ferências e concertos com personalidades como Erik Drescher, Anete Colacioppo, Eva Zöllner, António Pedro Pita, Carlo Patrão, Américo Rodrigues, Cristina Fernandes, Pedro Pinto Figueiredo, André Granjo, Diogo Alvim, Tiago Nunes, Francisco Pessanha, Salwa Castelo Branco, João Pedro Oliveira, Mickael de Oliveira, José Carlos Sousa, João Paulo Janeiro, Carlos Araújo Alves, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa e o maestro João Paulo Santos, entre outros. O Festival contou com a colaboração dos

escultores Pedro Carvalho e Miriam Carmo, que conceberam espaços de conexão entre os pontos de espacialização dos sistema de difusão electroacústico e o espaço do antigo edifício Casa da Artes / Conservatório de Música de Seia. o acolhimento por parte dos alunos foi sempre muito favorável. Alguns começa-ram a compor as suas primeiras experiências electroacústicas, outros interessaram-se pela produção de eventos, interpretação de música que envolvesse meios electroacústicos, audi-ção de novas peças, conhecimento genérico técnico sobre sistemas de difusão, etc., como se veio a comprovar pela criação da Associa-ção Cultural EMSCAN - Electroacoustic, Music and Sound Courses Alumni Network, fundada em 2010 por António Pedro Farinha e Miguel Jerónimo e constituída exclusi-vamente por participantes e colaboradores de actividades inerentes aos Dias de Música Electroacústica, cujos membros possuem for-mação diversificada nos campos do Design, Engenharia Informática, Electrónica, Música, Engenharia Bioquímica, Ensino, Musicolo-gia, Artes Gráficas, Multimédia e Intermédia, entre outras, e que têm desenvolvido projec-tos interdisciplinares desde a sua formação.em 2011, foram exploradas novas tipo-logias de actividade, com a edição do Festival Dias de Música Barroca, que contou com a presença do maestro, musicólogo e cravista João Paulo Janeiro e a Orquestra Barroca da ESART. Procurou-se manter a diversidade de actividades frequentes como workshops e apresentações em locais diversos (Escola Secundária de Seia, Escola Secundária Amé-lia Rey Colaço – Linda-a-Velha -, CCB, Museu Grão Vasco e a Academia de Música de Paços de Brandão). Em Maio, houve mais uma edi-ção dos DME em Seia. A sétima edição contou com a presença das pianistas Ana Telles, Sara Mendes, Ana Claudia Assis, e com a Orques-tra Filarmonia das Beiras, dirigida por Antó-nio Vassalo Lourenço, interpretando peças de Jean-Sebastien Béreau, Jaime Reis, Edson Zampronha e João Pedro Oliveira. Ainda em Julho de 2011, ocorreu a primeira edição dos

DME inseridos no festival aéreo Santa Cruz AirRaces, com uma enorme adesão do público às sete apresentações aí realizadas. Colabora-ram músicos como o percussionista Marco Fernandes, a violinista Joana Guerra, a vio-loncelista Vânia Moreira e o clarinetista Bruno Graça. esta tipologia de actividades coaduna-se com a minha visão em como a estratégia para levar a música erudita contemporânea ao público não deve estar relacionada com altera-ções nas concepções estéticas dos seus pro-dutores, mas antes nas estratégias de apre-sentação da mesma. Não me preocupo com o potencial prestígio patente na apresentação de um concerto ou festival, canalizando os apoios que generosamente me têm sido atri-buídos para anúncios televisivos ou cartazes (que se debatem com dificuldade pelo desta-que, numa cultura visual activa na qual as acti-vidades mediatizadas tendem a ter um carácter muito diferente das que procuro promover). Ao invés, a energia e recursos despendidos procuram a criação de espaços e momentos especiais, frequentemente inusitados para os que assistem, mas sempre numa perspectiva didáctica, em que as práticas musicais são explicadas o mais possível num ambiente informal, sem o distanciamento frequente entre o público e os produtores. O resultado é que ao longo dos meus parcos oito anos de actividade na organização de eventos, passo a passo, há sempre quem fique mara-vilhado e queira fazer parte deste campo, incluindo alunos, estrelas de rock, jornalis-tas, cientistas e políticos.em setembro ocorreram actividades em São Paulo e Belo Horizonte, decorrendo assim a segunda edição do Festival Dias de Música Electroacústica no Brasil, tendo como parceiros principais a UFMG, UNICAMP e Fundação para a Educação Artística de Belo Horizonte. Para além de outras actividades didácticas ainda a decorrer, em Dezembro do presente ano, está prevista uma nova edição do Festival e ciclo de conferências, onde estará presente o Grupo de Música Contem-porânea de Lisboa e Gerard Pape, compositor e antigo presidente do CCMIX (Centre de Création Musicale Iannis Xenakis), e outras personalidades.com a extinção do ministério da Cul-tura e de tantos outros organismos, resta saber que apoios se manterão e que novas sinergias terão de surgir. Ficará sempre a força de vontade de organizar novos eventos e de promover e estudar a música erudita contemporânea.

http://diasdemusicaelectroacustica.blogspot.com/

Dias de Música Electroacústica em Santa Cruz

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Homenagem

ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA

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tal como as comparações, também as generalidades atraiçoam o rigor das ideias. Bem sei. Mas, ainda assim, de entre os vários paradigmas de compositor que o século XX nos legou, parece haver dois grupos de compositores que se destacam: aqueles que pensam em cada nota que escrevem, por um lado, e aqueles que escrevem cada nota que pensam, por outro. Parece um exercício de estilo, com o donaire tonto dos trocadilhos? Sim, mas arrisco-o hoje e aqui. Aqueles que pensam em cada nota que escrevem, como o Webern da Sinfonia, Op. 21, e aqueles que escrevem cada nota que pensam, como o Prokofiev da Sinfonia Nr. º5. De um lado parece triunfar o apolíneo. Do outro, mais o dionisíaco.também sei que o mundo não é como os americanos o pintam, assim maniqueísta: de um lado os bons e, do outro, os maus. Nunca é de mais, a este propósito, lembrar George Walker Bush, o mais terrível cowboy a oeste de Pecos, quando, naquele dia pré-filosófico em que identificou o Axis of Evil, proclamou com aquele rasgo que o mundo desde sempre, mas particularmente desde então, lhe reconhece: “You’re either with us, or against us.”. E como poderemos todos nós – incluindo gregos e portugueses – alguma vez esquecer aqueles olhos piscos da mixomatose, aquele nariz aquilino e aquela voz texana de ukulele?apesar de o mundo estético não ser maniqueísta, parece claro que António Victorino d’Almeida corresponde mais ao ímpeto dionisíaco. A sua genealogia pertence à admirável linhagem d’Aqueles que escrevem cada nota que pensam. Isto, sem despri-mor, por certo, para com a nobre estirpe d’Aqueles que pensam em cada nota que escrevem. Aliás, todos nós conhecemos de cor e salteado o moto da grande escola genealógica portuguesa: não desdenhes dos Sousas Arronches por serem Dionisíacos! Quem sabe se não se tornarão em Apolíneos Chichorros? a música de antónio victorino d’almeida aparenta ser con-servadora, muitos dirão. Vá-se lá saber se não é por isso mesmo que a melodia victoriniana é tão generosa, tendo a harmonia, de tamanho aplomb, o rasgo próprio da química dos fluídos? E o ritmo, que é tão vívido e vivido! E a orquestração (verdadeiro motivo de inveja), que refulge como o oirinho reluzente da Ceuta quatrocentista (citando Borges Coelho, o historiador). E a forma da sua música, entroncada como o bucéfalo, que respira profunda-mente como o roncopata: das depressões de Morfeu até aos picos de nos fazerem ranger os dentes. Não é esta a função original da música, afinal? A magia? O poder de alterar estados de consciência? terá a música de ser necessariamente como o cânone ircam­sense a pinta? Terá o discurso musical de padecer dessa doença agitante? De padecer de sistemática descontinuidade do dis-curso, dada a sistemática continuidade do processo? Continhas e mais continhas? Ainda? Ainda há quem isto reverencie? é incrível, mas parece que sim. Ainda há, efectivamente, quem insista nesta coca: compor de zero a doze e de doze a zero (ou, consoante as modas microtonais, de zero a vinte e quatro; de vinte e quatro a zero: tanto dá). Agora, toca a multiplicar acor-des. Bom: agora ponhamos os acordes de patas para o ar. Bem:

EURICO CARRAPATOSO

agora toca a pôr o ritmo de decúbito dorsal, mas a melodia de decúbito ventral. Não me perguntem porquê, mas assim des-construído, o paradigma de compositor ircamsense que daqui emerge faz-me lembrar a história do babuíno que, numa noite de edénicas façanhas, conheceu intimamente a girafa. O pro-blema é que a Eva insaciável, carente como estava de mimos, lhe exigia sucessivos beijinhos na boca. Nunca mais aquele babu-íno, exausto como ficou, viveu uma situação de tamanho desafio à sua natureza de trepador.concluindo: esta questão de uma suposta música conserva-dora versus uma putativa música de vanguarda já cheira mal. E cheira mal que apesta. É, aliás, no mínimo, uma questão tão relativa quanto a situação descrita na maravilhosa parábola de Michel Tournier sobre Yuri Gagarin que aqui, de memória, tentarei verter: o grande herói soviético, depois da viagem épica que marca o início da era espacial, foi celebrado não apenas com o aparato espontâneo, bem como com o aparato por decreto. Passados alguns meses, Nikita Khrushchov chamou Gagarin para uma audiência privada. Fecharam-se numa câmara anecóica, garantidamente selada e sigilosa, e detonou uma pergunta sonora como um sino de bronze: “Camarada Gagarin: viu Deus nas alturas a que ascendeu? Deus existe?”. Gagarin abriu os olhos, fez um silêncio ensurdecedor, e na boleia do seu heroísmo, proferiu: “Sim, Camarada Khrushchov: Vi­O. Deus existe.”. Nikita Khrushchov olhou para o local errante do seu desânimo, comentando inaudivelmente para os seus botões: “Bem me parecia que Deus existia.”. Aos poucos foi empalidecendo mas, subitamente, num vórtice de ira, fez-se escarlate, arranhou a careca e amaldiçoou todas as formas de positivismo filosófico mais a inominável laicização de costu-mes. E amaldiçoou o materialismo, e o comunismo, e o mar-xismo, e o leninismo, e o estalinismo, bordoando as tónicas dos inumeráveis vitupérios com o seu sapato direito. Subita-mente recompôs-se, respirou fundo e não deixou de olhar fixamente Gagarin nos olhos, enquanto não lhe arrancou o solene juramento de silêncio eterno sobre o teor daquela conversa. Em 12 de Abril de 1962, um ano após a façanha espa-cial, Yuri Gagarin visitou Roma e o Vaticano. Depois da ceri-mónia pública, foi recebido em audiência privada pelo Papa João XXIII. Fecharam-se no papamóvel1, já de si anecóico, e é então que o Papa detona a pergunta perguntorum, como se diz no coimbrez da queima: “Major Yuri Gagarin: viu Deus nas alturas a que ascendeu? Deus existe?”. Gagarin abriu os olhos, fez um silêncio ensurdecedor, e no garbo do seu heroísmo soviético proferiu: “Não, Sua Santidade: não O vi. Deus não existe.”. João XXIII olhou para o local errante do seu desânimo, comentando repetidamente e pianíssimo: “A mim bem me parecia que Deus não existia.”. Aos poucos foi empalidecendo mas, subitamente, num vórtice de ira, fez-se escarlate, arran-cou o camuro e, arranhando sua tão imensa quão globosa calvície, amaldiçoou todas as formas de religião, mais todas e quaisquer crenças em quaisquer tipos de fantasmagorias, vituperando os Doutores da Igreja, de Agostinho a Tomás, pas-sando por Isidoro de Sevilha, marcando as sílabas tónicas dos inomináveis agravos com o seu soberbo múleo vermelho--ferrari; e, finalmente, num esgar parecido ao do touro irado do Guernica, bramiu do alto da sua pontifícia infalibilidade: “A religião nasceu no preciso momento em que o primeiro intrujão conseguiu convencer o primeiro ingénuo!”. Subitamente recom-pôs-se, respirou fundo e não deixou de olhar fixamente Gagarin nos olhos, enquanto não lhe arrancou o solene juramento de silêncio eterno sobre o teor daquela conversa.

Pequeno improviso a propósito de António Victorino d’Almeida

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Sinfonia para um compositor só:algumas considerações.

tudo é relativo, pois. Essa treta da “música conservadora” versus “música de vanguarda” tem muito que se lhe diga. Uma coisa é certa: António Victorino d’Almeida está mais preocupado em escrever música do que em escrever história. Para nosso grande alívio, o António assim permanece, livre, igual a si próprio, inteiro e limpo, tal como o imenso Orson Welles, que dizia “I pas­sionately hate the idea of being with it; I think an artist has always to be out of step with his time.”.livre, sim. Que outra coisa pode ser “compor”, que não uma fruição total de liberdade? Liberdade, tal como foi miraculosa-mente definida no artigo 2.º da Constituição Liberal de 1822: “A liberdade do cidadão consiste em não ser obrigado a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe.”. Se há um fascismo particularmente perverso, é o fascismo estético, como aquele que uns tantos burgueses tão poderosos quanto mimados (que vêm gesticulando entre Darmstadt e Paris desde a 2.ª metade do século XX) nos tentam impingir, à viva força, numa visão grotesca – porque historicista - de fim dialéctico da estética. Fascismo nunca mais! Ou então, como diz o título da obra de Nono, après une lecture do poeta sevilhano Antonio Machado e dedicada à memória de Andrei Tarkovsky: no hay caminos, hay que caminar.

1 Papamóvel é, aqui, um anacronismo totalmente assumido, dada a força anecóica do conceito,

e, mesmo antes disso, dada a ressonância irresistível do próprio logismo.

ao ser-me pedido este artigo para a glosas, quedei-me, a início, sem saber se aceitaria ou não o encargo. Não porque o objecto do artigo não merecesse toda a minha atenção, mas porque já sobre ele havia escrito um extenso artigo na hoje defunta Arte Musical (1998), para além de mencionar António Victorino d’Almeida em artigos de índole generalista, e entradas em dicio-nários diversos mais recentes. Não se tratando, e já não o era em 1998, de um jovem compositor, sobre o qual muito se poderá ainda dizer, e cuja obra se encontra ainda, e necessariamente, incompleta (e a linguagem por fixar), receei repetir-me ou escre-ver banalidades que em nada serviriam o Homem e a Obra. para aumentar estas dúvidas relativas à pertinência de escre-ver um novo artigo, e parafraseando o conhecido paradoxo, ou dúvida existencial: que se dá, ou que se diz de novo, sobre um homem que já tem tudo, ou seja, sobre o qual já tudo se escreveu?o próprio victorino d’almeida tem-se encarregue – feliz-mente – de libertar memórias, de dar a conhecer as suas ideias (artísticas, políticas, filosóficas, etc.), os seus gostos, de comen-tar cada uma das suas obras. Enfim, de fazer uma coisa que fora de Portugal é algo que se espera dos criadores e artistas em geral, mas que em Portugal ainda passa por vaidade, exibicionismo, arrogância... António Victorino d’Almeida escreve sobre si pró-prio e sobre a sua própria música.1

num meio limitado e mesquinho, como é ainda muito deste nosso Portugal, os pedantes de serviço não perdoam uma tal indiscrição (o meio musical português é pequeno e familiar, e todos sabemos como são as famílias: as guerras civis são as mais cruéis…), e muito menos um homem que, ultrapassando a única função de músico – já de si extensíssima (pianista, com-positor, conferencista, musicógrafo, divulgador…) – toca – qual Homem da Renascença – muitos outros “instrumentos”: é actor e realizador cinematográfico e televisivo, escritor de prosa fic-cional, inclusive desenhador e caricaturista num dos seus livros mais recentes. Uma tal “esquizofrenia” criativa lembra o com-positor George Antheil, que patenteou nos anos 40 um novo torpedo teleguiado em conjunto com Hedy Lamarr, uma actriz de Hollywood; ou a casa de Salvador Dalí em Cadaqués, onde os convidados nunca sabiam o que iam encontrar; ou ainda o ine-vitável Erik Satie, cujo humor, música, desenhos e invenções delirantes (no melhor sentido da palavra) – desde religiões e ciências “novas” até à sua própria filosofia de vida – tanto têm em comum com António Victorino d’Almeida.“excessivo” é pois um conceito que se aplica como uma luva ao compositor. É apenas um dos muitos paradoxos que rodeiam ainda a sua figura o facto de, numa sociedade de consumo mas-sivo que tolera excessos de toda a ordem – a maior parte dos quais, prejudicial para nós e para o planeta – os “excessos” cria-tivos de Victorino d’Almeida – completamente inofensivos, desta vez – continuarem a projectar sobre ele uma aura negativa, aura à qual ele se refere por várias vezes nos seus livros e entre-vistas. Com desagrado, evidentemente.esta “aura” não tem origem, é forçoso reconhecê-lo, no vasto público que conquistou desde que, rapazinho prodígio, deslum-brou plateias com o seu talento ao piano, e mais tarde, já jovem adulto, com as suas primeiras peças importantes e com os progra-mas de televisão rodados – por si – em Viena, e que representa-ram para toda uma geração (para mim, inclusive) o equivalente a um apocalipse, a uma revelação. O fascínio por Viena e pela cultura representada por esta cidade foi, e continua a ser, no meu entender, uma das principais chaves para entender o percurso de Victorino d’Almeida, o seu humor peculiar, a sua personali-dade proteiforme, a sua produção abundante, a sua excentrici-dade, e a afabilidade e bonomia que cativam imediatamente as pessoas. Não há um pingo de maldade, ou ódio, em António Victorino d’Almeida, substituído por um sentido de humor corrosivo mas nunca maldoso. estas características, o compositor já as possuía, mercê da educação que recebeu e das suas inclinações genéticas, mas Viena confirmou que não eram – ao contrário do que se poderia pensar num país atavicamente fechado e de mentalidade estreita – lunatismos de um personagem fora deste planeta. Pelo con-trário, estava bem dentro dele, e no mundo altamente civilizado de Viena, Victorino d’Almeida sempre foi um artista respeitado pelo meio cultural e pelo poder político que, aliás, o condecorou ao mais alto nível. A abundância do compositor, nos países germânicos, Áustria e Alemanha, nunca foi motivo de suspeita: Bach, Telemann, Haendel, Haydn, Mozart, ou Hindemith, entre muitos outros, escreveram imenso. E escreveram de forma desigual, outra crítica que se ouve tanto, e não somente em rela-ção a Victorino d’Almeida. Porém, se o preço de uma obra-prima for, ou forem, dez obras falhadas, que importa?2 o humor e excentricidade, tão caracteristicamente ingleses como genuinamente austríacos, aqui tomados como algo per-turbador, lá, mais não são do que uma liberdade de estar e de ver o mundo à nossa maneira. O poliestilismo, humor corrosivo,

SÉRGIO AZEVEDO

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e ambiguidade entre música “séria” e música “ligeira”, encon-tramo-la em Weill, mas também em Hindemith, em Strauss, inclusive, e em muitos outros nomes alemães e austríacos, e é desse mundo que Victorino d’Almeida se reclama, podendo nós a esses nomes adicionar o já referido francês Erik Satie, o britâ-nico Lord Berners ou o soviético Chostakovitch, hoje em dia tão na moda, e ao qual não só se perdoam como – ó inclemência, ó martírio! – se idolatram e gravam até à exaustão os pecados de juventude, tais como as apreciadíssimas Suites de Jazz e o Concerto para Piano e Trompete, ou as tentações da maturidade, como o musical Moscow, Cheryomushki…tudo isto se perdoa, tudo isto se adora, tudo isto é fado, diría-mos nós, com Lopes-Graça a revolver-se na campa. Porém, tudo isto e muito mais faz parte da vida musical e artística dos países mais avançados do mundo, e só em Portugal constitui motivo de desconfiança na capacidade intelectual e artística de um homem como António Victorino d’Almeida.3 dizia eu, no início deste artigo, que tinha dúvidas sobre o que escrever, e, como tem vindo a ser cada vez mais evidente, afinal ainda se pode escrever algo sobre o compositor, passados treze anos desde esse meu velho artigo. o que de novo se poderá dizer sobre António Victorino d’Almeida tem que ver, felizmente, com a sua obra musical, reconhecida pelo próprio como a mais importante de todas as suas actividades, e digo “felizmente” porque é sinal de que essa actividade não cessou. Pelo contrário: aumentou, não obs-tante o seu já extenso catálogo. Surgiram sinfonias, obras de câmara, concertos e outras obras, muitas das quais têm sido gravadas e editadas em partitura. António Victorino d’Almeida beneficiou, como os restantes de nós, do aparecimento da AvA – Musical Editions, que veio substituir a defunta Musicoteca como a principal editora musical portuguesa, e de um certo boom da cultura acontecido nos últimos quinze anos, sendo que, neste momento, como sabemos, tudo ficou mais negro.nestes anos mais recentes, Victorino d’Almeida não só escreveu dezenas de peças, mas também publicou livros e realizou novos programas de televisão que seguem, como seria de esperar, a linha condutora dos anteriores, no que toca à abordagem singela e bem--humorada da música e da vida. Aos 71 anos, é um homem vigo-roso e de resposta pronta e acutilante. Criou naturalmente, desde

garoto, um personagem singular, e vive todos os dias esse perso-nagem, que toma o lugar da criança constantemente maravilhada pela beleza do mundo. Na sua música não há, pois, lugar para o tédio, o pedantismo, a falsa profundidade ou misticismo de quem disfarça a falta de ideias com ideais de superfície.de entre a produção musical mais recente do compositor avultam-se dois ciclos que penso importantes, não só por serem ciclos que percorrem vários anos, mas porque são, hoje em dia, raridades em Portugal: um ciclo de sete sonatas para piano (1961-1984), e um ciclo de quatro sinfonias4 (1960-2009)5. As quatro sinfonias numeradas são:Sinfonia n.º1, opus 21 ­ “Benfica” (1960-rev.2005) ca. 29’Sinfonia n.º2, opus 114 (1999) ca. 32’Sinfonia n.º3, opus 142 ­ “Viana do Castelo” (2007) ca. 27’Sinfonia n.º4, opus 153 ­ “Funchal” (2009) ca. 29’

é elucidativo constatar que o interesse de Victorino d’Almeida pela sinfonia é relativamente recente, dado que, se exceptuar-mos a Sinfonia Concertante de 1970, estas quatro obras numera-das e ainda a Sinfonia para um Homem Bom foram todas escritas entre 1999 e 2009, ou seja, à razão de uma em cada dois anos, uma regularidade somente encontrada em Joly Braga Santos. Representam a maturidade plena do compositor entre os seus 59 e 69 anos, mas também a ligação aos verdes vinte anos, dado que a primeira sinfonia (fora do catálogo até 2005, quando viu a luz do dia graças à encomenda do Benfica6), se baseia em materiais esboçados em 1960.quer a duração, quer a forma e linguagem destas quatro obras são notavelmente coerentes, e nelas confluem os elemen-tos principais da estética de Victorino d’Almeida, bem como as características técnicas do compositor, nomeadamente uma orquestração sempre eficaz e esfuziante, que muitas vezes recorre e destaca, como solistas, instrumentos menos usuais na orquestra tradicional, como o acordeão, o piano, o xilofone ou o flexatone. As quatro obras dividem-se nos quatro andamentos da praxe, e neste tradicionalismo da forma (que a escolha deste género implica) Victorino d’Almeida procura, decerto, um equilíbrio entre “contentor” e “conteúdo”. Isto é, as excentrici-dades e exuberâncias da sua linguagem musical procuram no consolo da forma clássica algo que as modere, um pouco como

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nas sinfonias de Heitor Villa-Lobos, com as quais estas obras possuem alguns pontos de contacto. A tendência descritiva, tal como em Villa-Lobos ou Chostakovitch (para citar um nome talvez mais próximo dos gostos imediatos de Victorino d’Almeida) é perceptível nas sinfonias, porventura eco das muitas bandas sonoras e músicas de cena que o compositor escreveu. Essa ten-dência descritiva cria uma permanente tensão com a forma, que se pretende orgânica e puramente musical, no sentido de a con-tinuidade musical ser gerada por manipulações do material melódico, rítmico e harmónico, ao invés de ser governada por imagens ou ideias extra-musicais. Esta tensão, tal como já em Chostakovitch e até em Mahler (outro compositor com o qual Victorino d’Almeida tanto partilha), faz porém parte da lingua-gem e da pessoa do compositor português: é uma escolha deli-berada, sem a qual a sua música não seria o que é.os grandes andamentos lentos de mahler, ou Chostakovitch, não são, porém, the cup of tea de Victorino d’Almeida, que em geral não se demora demasiado neles, nem os prolifera em número. A sua música, como o seu autor, é em geral rápida ou mesmo muito rápida, raras vezes descendo abaixo de um Andante ou Andantino.Ecos de Stravinsky, Weill, música popular urbana, circo, cabaret e muitos outros estilos percorrem as sinfonias de forma aluci-nante, lembrando a montagem trepidante e por vezes surrea-lista dos primeiros filmes mudos. Há uma componente de humor “slapstick” em toda esta parafernália de temas, gestos, timbres, cuja profusão ameaça, por vezes, fazer desmoronar o cenário, terminando tudo em combate de tartes de creme. enganar-se-ão, porém, aqueles que suponham, ainda que por momentos, a panóplia de imagens musicais que descrevo como resultante de uma qualquer fraqueza técnica, ou de uma auto-crítica complacente para com a organicidade da forma. Pelo contrário, e como afirmei já, este estilo tão particular resulta da escolha consciente e perfeitamente assumida de um compositor que sabe o que faz, e faz o que quer, como demonstra, se necessário fosse, a deliciosa Abertura Clássica, cuja orques-tração, manejo dos temas e forma em geral, são dignos de um qualquer mestre de inícios de oitocentos. seria, aliás, esta a obra orquestral que recomendaria a quem nunca ouviu nada de António Victorino d’Almeida, o equiva-lente a mostrar a Sinfonia Clássica de Prokofiev ou os Gurrelieder de Schoenberg antes de, respectivamente, a 2.ª Sinfonia ou Pierrot Lunaire. nas notas do compositor ao disco da editora Numérica, que apresenta a Sinfonia n.º1, pode ler-se o seguinte: “São composi­ções de várias épocas, mas nas quais eu nunca hesito em compor à minha maneira, em liberdade, sem preconceitos reaccionários de tonalidade ou atonalidade, utilizando os sons, os timbres, as harmonias, os desenhos melódicos, as consonâncias ou as disso­nâncias que melhor servirem as ideias que pretendo expressar. Quer se goste, quer não ­ é o meu estilo.”. Este comentário, que é, efec-tivamente, uma verdadeira profissão de fé, coloca António Victorino d’Almeida na proa do que se denomina “pós-moder-nismo”, algo em que se destaca por ter sido sem sombra de dúvidas um dos primeiros (se não mesmo o primeiro) composi-tores portugueses a professar pontos de vista coincidentes com os de muitos compositores conotados com essa – chamemos--lhe assim, por agora – estética. Com efeito, e exceptuando a total falta de interesse pelo minimalismo, pelo menos enquanto compositor, Victorino d’Almeida coloca em funcionamento na sua música a quase totalidade daquilo que se pode encontrar nos

compositores que se começaram a afastar das vanguardas seriais dos anos 60: regresso à tonalidade ou a tipos de modalismo arcaizante, citações, paródia, interesse pelo passado, retorno às grandes formas como o concerto ou a sinfonia, à melodia no sentido tradicional, preocupação com o resultado auditivo da música, consciência do público e do papel social do compositor, escrita novamente direccionada para os intérpretes e as capaci-dades possíveis dos instrumentos clássicos, e ainda – a cereja em cima do bolo – uma grande latitude de gostos musicais, que origi-naram fusões e influências (as mais inesperadas, incluindo o rock, a pop ou mesmo a música disco, músicas ligeiras, que representa-ram uma bofetada na cara da “pureza” advogada por muitos dos chefes de fila do serialismo e seus derivados, nomeadamente na cara de Boulez). é assim que encontramos na Sinfonia de Câmara de John Adams a fusão entre a música hiper-expressionista dos cartoons norte-americanos dos anos 50 e a música pantonal de Schoenberg, em Thomas Adès a utilização distorcida de um dos temas mais populares do conservador Elgar no seu quarteto de cordas e o uso sem rebuços da música disco dos anos 70 em Asyla... No Con­certo para Trompa de Penderecki, a união entre estilo clássico e modernidade radical. Ou ainda a mescla entre minimalismo, espectralismo, serialismo e tonalismo que se pode escutar no Quinteto com Clarinete de Magnus Lindberg, entre muitos outros exemplos que poderia dar aqui. A música das quatro sinfonias de António Victorino d’Almeida, à sua maneira pessoal e incon-fundível, insere-se naturalmente nesta corrente estética, nesta visão da música como algo que inclui, e não que exclui.

1 Um dos livros mais importantes, no que toca ao conhecimento da sua personalidade, é sem dúvida o recente Ao Princípio era Eu, Autobiografia, publicado pelo Clube do Autor (2010), e ilustrado com pequenos desenhos de sua autoria.

2 E como poderia ser de outra forma? Haydn até para caixinhas de música escreveu, tal como Mozart. A necessidade de ganhar a vida com a música, e a integração do compositor na socie-dade, viam essas tarefas como perfeitamente respeitáveis. Nos EUA ou na Inglaterra de hoje, para só mencionar estes dois, os compositores para o cinema, ou para a TV, são respeitados como compositores, e muitos grandes nomes das vanguardas de Leste, como Penderecki, Pärt, Schnittke ou Gubaidulina, escreveram abundantemente para cinema, televisão ou rádio, sendo que essas actividades não diminuíram a sua estatura artística. Em Portugal, o snobismo melómano, um dos piores que conheço, leva pessoas e instituições a diminuírem composito-res apenas porque estes não se encaixam num modelo de dignidade supostamente universal, algo que nunca existiu em país algum. Basta lembrar, se mais exemplos fossem precisos, a música escrita para exercícios de ginástica no clube de senhoras em Brno, por Janacék. Ainda recentemente, o compositor português Eurico Carrapatoso foi criticado – entre pare-des – por ter escrito música para um anúncio da GALP… E porque não?

3 A este respeito, Victorino d’Almeida queixa-se sem rebuços da forma como é tratado pelo Poder: “Em toda a minha actividade há muitas coisas que faço, como os livros, os concertos comen­tados, os programas de televisão, porque preciso de viver. Essa é a realidade. Em Portugal há uma embirração dos governantes em relação à minha pessoa. Dizem que não sou propriamente um indi­gente para me convidarem para isto ou para aquilo. Vivo do dinheiro que ganho com as múltiplas coisas que faço. Simplesmente nunca tive emprego. E gostava de ter um emprego. Aos 70 anos, que farei no próximo mês de Maio, gostava de ter uma vez na vida esta ideia de saber que poderia contar com um salário.”. (in Jornal de Notícias, 27-12-2009, entrevista conduzida por Ana Vitória)

4 Seis, se adicionarmos duas obras sem numeração: a Sinfonia Concertante, opus 32 (1970) e a Sinfonia para um Homem Bom, opus 146 (2007).

5 Em Portugal, note-se, porque lá fora não é o caso. Em Inglaterra, EUA, Alemanha, Rússia, Polónia, Finlândia, e em muitos mais países, a escrita de sonatas e sinfonias não terminou definitivamente com as vanguardas dos anos 60, pelo contrário, e o gosto por estes géneros instrumentais e orquestrais parece estar a crescer cada vez mais. Em Portugal, no que toca aos principais compositores, e excepto Victorino d’Almeida, nem a sinfonia nem a sonata pare-cem querer voltar aos tempos de Luís de Freitas Branco e Joly Braga Santos. Verdade seja dita, e principalmente em relação à sinfonia, Portugal nunca cultivou muito o género, sendo os compositores citados a excepção que confirma a regra...

6 Esta encomenda, uma grande obra sinfónica de um compositor clássico para celebrar os cem anos de um clube, deverá ser caso único no mundo.

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O reconhecimento que faltaMÁRIO ZAMBUJAL

durante toda a minha adolescência a figura televisiva nacio-nal que mais me marcou foi, sem dúvida, António Victorino d’Almeida. Ele representava a esperança de que nem tudo o que era nacional tinha, forçosamente, de ser medíocre, desinteres-sante ou até parolo.apesar de rendido ao seu virtuosismo pianístico e deslum-brado com a descoberta da sua obra orquestral A Fábrica dos Sons, foram os seus programas televisivos sobre música, reali-zados na Áustria, que me confirmaram que estava perante uma figura ímpar no universo cultural português.de facto, para a altura (anos 70), os programas por ele reali-zados eram inovadores em qualquer parte do mundo. O conceito visual cinematográfico, aliado a uma excelente capacidade comunicativa, diferenciava-os de todo o resto. Eram modernos! Eram cativantes! E eram visualmente elegantes!anos mais tarde, após eu ter fundado a editora Numérica (anos 90), tive oportunidade de o conhecer pessoalmente, iniciando o que se veio a tornar uma longa parceria editorial e uma grande ami-zade. Na realidade, nestes perto de vinte anos em que trabalhá-mos juntos, tive o privilégio de editar mais de 20 CDs com a sua música, desde sinfonias, concertos, música de câmara, música para piano, uma missa e música para filmes. Também co-produzi (tecnicamente) duas séries de treze episódios para televisão. Assisti a conferências, a sessões de improviso pianístico, li os seus livros... E partilhámos muitos almoços e jantares. lentamente, o António foi-se transformando: da figura mediá-tica passou a pessoa real sem que, em nada, isso diminuísse a minha enorme admiração. Além de compositor, músico, escritor, comunicador, realizador de cinema, descobri outras facetas não menos interessantes: desenhador, amigo dos ani-mais, alguém com um grande sentido de família, generoso, paciente, obstinado, possuidor de uma energia inesgotável e de uma tremenda capacidade de trabalho. Inspirador!a sua música reflecte todas essas características. Não catalo-gável, sai fora do politicamente correcto, é anti-academista, moderna mas não avant­garde, livre de obsessões pela origina-lidade absoluta. A sua música é escrita como se de um improviso se tratasse, de uma forma fluente e eficaz, suportada por um profundo conhecimento da História da Música. sinto-me um privilegiado por conhecer, trabalhar e conviver com António Victorino d’Almeida.

O inigualávelFERNANDO ROCHA

há umas semanas, convidado pela editora a um comentário acerca do meu já trintão livro Crónica dos Bons Malandros, o Antó-nio Victorino d’Ameida recordou a madrugada em que lhe li, de fio a pavio, o texto com que me propunha assaltar as prateleiras das livrarias e – isso soube-o com o decorrer dos anos – as estan-tes de largos milhares de amáveis portugueses. Confidência deste tipo só se pratica com quem se nutra não só amizade sólida mas também apreço pela capacidade de bom julgador de prosas.tantos anos depois, juntámo-nos em tournée para apresenta-ções públicas dos livros que tínhamos acabado de publicar através da nossa comum editora: Clube do Autor. E como ambos consi-deramos presunçoso louvar obra própria, acertámos que seria eu a pronunciar-me sobre o livro dele – essas delicosas memórias de meia vida que intitulou Ao Princípio Era Eu – e o nosso escritor--maestro a comentar a minha novela de paixões fumegantes, Dama de Espadas. Assim aconteceu, com programa muito especial no casino da Figueira da Foz, onde o serão contou com a pre-sença de um piano e do Carlos do Carmo. À música de um fado nascido da inspiração do António associou-se a voz de um intér-prete de eleição e, a pretexto de dois livros, fez-se uma festa. Não se deixou de conversar sobre escritas, no mesmo lugar e em sessões seguintes, em que foi um gosto grande ouvir o António no exercício dessa outra sua virtude, que é a de comunicador.nem será exacto denominar de “outra” a capacidade de comu-nicar, pois é justamente o que ele faz na pluralidade em que se divide e completa. Comunicador através da música que cria e executa quando conversa com as teclas do piano, comunicador quando escreve histórias juntando a cultura, a invenção, o humor, quando comanda uma orquestra, quando seduz na apresentação de programas da televisão ou fala com imagens de cinema.em boa verdade, o António Victorino d’Almeida é, ele mesmo, em pessoa, um concerto musical. O que mais avulta é musica-lidade em todas as suas múltiplas formas de se expressar. Nas partituras como nos parágrafos, nos ritmos, nos sons de instrumentos e de palavras, ele escreve como um músico e gera música como um prosador perfeito. Nunca lhe ouvi um quei-xume acerca de ingratidões e esquecimentos.permito-me eu, no entanto, queixar-me de um país que mais não lhe concede que o aplauso dos seus admiradores. Para além - e funcionalmente por cima - dessa vasta massa a que chama-mos população, existem poderes decisórios a que cumpriria o reconhecimento de méritos raros. Não falo de subsídios ou condecorações. Manifesto apenas a estranheza de não o terem ainda colocado num cargo em que pudesse servir, mais que a si próprio, a cultura portuguesa. Nunca como um tacho: quem por essa via o escolhesse mostraria absoluto desconhecimento da sua personailidade de cidadão exemplar. António Victorino d’Almeida é filho, pai, irmão das artes - e seriam sempre as artes a ganhar caminho pela mão dele.

quando alguma iluminada cabeça (também as há, que diabo!) ponderar que num país como Portugal, abastado em cúpulas várias por implantes zeros, é desperdício de lesa-pátria o des-conhecimento ou o olvido, então, há-de lembrar-se de um tal maestro de quem os portugueses gostam e a quem não falta a arte de dinamizar as artes. Espero que esse dia chegue. Não sei se ele o espera – nunca conversámos sobre o assunto – mas sou um teimoso portuga que deseja o país servido pelos melhores de nós.

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era considerado um geniozinho do piano. Mas depois acabou por ter que se agarrar à vida. Teve a sua vida cultural em Viena durante muitos anos (quando voltou de Viena é que nos come-çámos a dar como amigos), tem feito imensos programas de televisão… É um homem polivalente no bom sentido, tudo o que faz é sempre ligado à música e à cultura e tem sido um agente cultural muitíssimo forte no nosso país, verdade seja dita. Mas é um homem que estuda todos os dias e que se prepara. Quando gravou o CD das Valsas fez um trabalho extraordinário. É uma leitura nova, feita com muita alegria. Tudo é discutível mas, pessoalmente, gostei imenso, achei muito interessante.recentemente, fui convidada para participar no último filme dele. Infelizmente não pude participar, estava nos Açores e não consegui vir antes, mas ele já me andava a falar disso há anos. Era um sonho que ele tinha, que eu participasse nesse filme. Eu já sabia quais eram as cenas, tinha o guião e tudo, mas efecti-vamente não consegui estar a tempo. Tive imensa pena, mas outras oportunidades surgirão.generalizando, não há dúvida nenhuma de que o António não tem sido, eu acho, uma pessoa muito amada neste país. Teve de fazer milhares de outras coisas, sem ser o piano e a compo-sição, para poder sobreviver, porque as pessoas não vivem do ar e do idealismo, a vida é assim... Lamento, porque uma pessoa que, potencialmente, poderia dar muitíssimo mais naquele campo acaba por ter de se dispersar um bocado. Eu acho que ele é genial em tudo o que faz. Tudo o que faz, faz bem feito. Portanto, nós acabamos por aproveitar o melhor que ele tem, noutro sentido.e agora falando de cenas cómicas, estava a lembrar-me (não foi propriamente comigo mas eu sei, que a filha Anne contou--me) que ele uma vez saíu de casa e a mulher pediu-lhe para ele levar o lixo. Ele levou o saco, simplesmente não o deitou no lixo e andou o dia todo a fazer montes de coisas, e quando voltou continuava com o saco do lixo e entregou-o outra vez em casa… Uma coisa absolutamente extraordinária!...

A partir de uma entrevista de Duarte Pereira Martins Transcrição de Isa Antunes

não me lembro exactamente de como é que o conheci: tenho a sensação de que o conheço desde sempre! Sempre fomos muito amigos, embora tenha quase idade para ser meu pai! Eu estava a anos-luz do António Victorino d’Almeida, mas fomo-nos conhecendo em concertos... comecei a ser muito amiga da família. A filha Anne [Victorino d’Almeida], como tem mais ou menos a mesma idade da minha Leonor, brincava muito com ela quando eram miúdas. Foi uma relação muito familiar e muito amiga. E musical também, por-que a música está sempre presente, tanto na vida dele como na minha. É impossível estarmos juntos sem que se fale de música, de pianistas, dos acontecimentos musicais... Quando tem CDs novos gosta muito de os pôr a tocar para eu ouvir e isso, para mim, é muito importante: vou estando a par da sua música! Algu-mas coisas eu toquei, outras -a maioria-, não…pessoalmente, gosto imenso do que compõe. É música muito característica, podendo não ser considerada vanguardista. Tem melodia, ritmo… É um homem que pode ser muito criticado por isso, mas o facto de poder não ser vanguardista (e de os compositores acharem que tem de ser) a mim não me incomoda absolutamente nada, porque eu acho que é linda. Tem coisas belíssimas e extremamente inspiradas.colaborei num cd com música dele em duas obras: uma para piano e pandeireta, A Canção da Pandeireta, completamente eléctrica e delirante, e outra para lembrar a obra de Béla Bartók, que é música para percussão, harpa e celesta, na qual toquei celesta. Uma peça lindíssima, mágica, que tem qualquer coisa de Peter Pan... como pianista, não acompanhei propriamente a sua carreira. Quando era novo, acabou o curso do Conservatório e na altura

Música de CâmaraCARLA SEIXAS

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conhecemo-nos em gravações, não me recordo exactamente como é que foi… Mas foi em finais dos anos 70. A partir daí tudo correu bem. lembro-me também de uma história interessante, de há muitos anos atrás. Levei o Júlio Pereira a assistir a um concerto em que a primeira parte era dirigida por um determinado maes-tro. Ao intervalo, o Júlio Pereira diz-me: “É para isto que tu me trazes?...”. Eu disse-lhe para esperar, porque a segunda parte era com o Victorino d’Almeida. E parecia outra orquestra! Os músi-cos eram os mesmos, a sala era a mesma, nós estávamos sentados nas mesmas cadeiras… Estava tudo igual, menos o maestro. Aí percebemos a importância que tem um verdadeiro maestro.relativamente ao disco das valsas de chopin completas, o que digo é que é um trabalho que está bem feito, e em tempo recorde! Gostaria de não me pronunciar sobre a questão artís-tica. Há quem goste e quem não goste… É claro que tenho as mi-nhas ideias, as minhas apreciações pessoais em função da minha formação e da minha educação. Mas não sou crítico. Sobre a parte técnica, foi um trabalho pacífico, com algumas questões curiosas. Foi feito, digamos, de “enfiada”. Depois de estar ter-minada a gravação, o António Victorino d’Almeida disse-me: “Eu gostava só de gravar aqui umas coisas mais. Tenho a impressão de que não ficaram grande coisa…”. E gravou mais uma hora e tal de música. Bastantes repetições… Pegava num bocadinho, tocava e repetia, tocava e repetia, sem parar a meio… E quando se fez o editing, daquilo que ele gravou já extra-programa (por-tanto, depois de terminadas as gravações), foi usado cerca de 90%. Eu achei extraordinário como é que ele teve memória daquilo que fez. Tive o privilégio de ouvir a diferença e, de facto, tinha razão!

há uma pergunta que me ocorre (e sou mal visto), quando me vêm contar que demoraram muitos dias, com muitos takes, para fazer uma gravação: “Mas tu tocas assim tão mal?”. O António Victorino d’Almeida, neste aspecto, foi ultra-rápido; fez-se a gravação em vinte e poucas horas. E não é uma questão de pre-paração… Ele não ia aprender ali em meia hora o que não apren-deu numa vida inteira… E há mais alguns músicos a fazer coisas deste género. Eu posso citar o exemplo do António Rosado. Estivemos dois dias a fazer a integral dos Estudos de Debussy. Já que estávamos lá a gravar, aproveitámos e gravámos também o concerto. Posso dizer-lhe que o que ficou aprovado para CD (não sei se foi editado ou não, não faço a mínima ideia) foi a gra-vação do concerto. Com a alteração de uma nota, que ele esbor-rachou. Uma nota! Depois ficou tudo como deve ser. Outro caso foi o dos quatro dias para o António Pinho Vargas gravar dois CDs. E ele gravou quatro CDs em dois dias! Quando eles tocam não há nada a fazer. Ou estes são divinos ou os outros gostam de fazer render o peixe.mas o victorino d’almeida é de facto uma excelente pessoa. De vez em quando engana-se e liga para mim. Aproveitamos para nos cumprimentar...

A partir de uma entrevista de Duarte Pereira Martins Transcrição de Miguel Martins

Valsasde ChopinJOSÉ FORTES

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Este nosso pequenino entrevistado ainda não afrontou o público de uma sala “pagante”. Mas já por mais de uma vez tocou com todo o sentido da responsabilidade, todo o aparato próprio para perturbar quem não tivesse tendência de concertista. E não somos nós a pri­meira a ocupar­nos do rapazinho em letra redonda. Acaba de com­pletar oito anos; estuda a valer há dois anos apenas – há mais de um ano já se fez ouvir numa curiosa agremiação, a Sociedade Nacional de Concertos, obra a bem dizer particular, para miúdos e dirigida por miúdos, com equilibrada colaboração de gente grande. Este ano, numa audição em casa da sua professora Marina Dewander, chamou sobre si a atenção de uma maneira decisiva.O António Vitorino promete tornar­se uma personalidade viva, bem fadada para o mundo. As narinas são largas, o rosto muito redondo, o cabelo rijo, a expressão dos grandes olhos tão depressa é confiante como desconfiada, e reparamos especialmente para o feitio das ore­lhas. Ele e a Marina, como lhe chama amistosamente, entendem­se, encontraram­se em boa hora. Não nos admira a maneira desempo­eirada como encara a música, aceitando fácilmente uma educação moderna. Entre as várias peças que toca para ouvirmos, destacam­se umas muito engraçadas páginas de Claude Pascal (1.º prémio de Roma de 1945).– Qual será então o seu compositor preferido?Pois o compositor preferido do Antoninho é, contudo, o grande Beethoven. Ou, mais precisamente, o que prefere tocar, é o “Für Elise”. No programa da sua última audição figura uma composição dele. Mas não é só uma que tem, são muitas, e não é aonde nos interessa menos conhecê­lo. Uma delas, bastante comprida, traduz bem a sua imaginação, o gosto dos constrastes, dos efeitos impressionantes. Tinha­lhe chamado “A minha sinfonia”, depois crismou­a a “Africana”.

Victorino d’Almeida aos oito anos - uma curosidade Publicada na revista Os Nossos Filhos de Agosto de 1948, esta entrevista1 a António Victorino d’Almeida insere-se

num conjunto de entrevistas que Francine Benoît fez a jovens promessas da música portuguesa2.

Os Nossos Filhos era uma revista mensal de puericultura dirigida e editada por Maria Lúcia Namorado. Os artigos

publicados diziam sempre respeito à infância, à saúde, educação e vida das crianças – e das suas mães. Benoît

(1894-1990) colaborou com a revista por diversas vezes com crónicas que abordavam a relação entre a música

e as crianças (nomeadamente a importância do ensino musical desde a tenra idade), assuntos que iam ao

encontro dos objectivos e preocupações da revista e dos seus leitores.

À data desta entrevista, transcrita em jeito de conversa amena, Victorino d’Almeida contava oito anos e estu-

dava piano há dois com Marina Dewander Gabriel (1898-1969), soprano e professora de música. Apesar da

idade, as suas duas apresentações em palco, num recital da Sociedade Nacional de Concertos e numa audição

organizada pela professora, tinham atraído atenções, levando Benoît a adivinhar-lhe sucesso no futuro.

Fica à (re)descoberta do leitor esta curiosa entrevista. MARIANA CALADO

Duas esperanças que despontam

FRANCINE BENOÎT | TEXTO

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– Porquê?– Porque gosto muito de África! Elefantes, leões, caçadas!O sonho dourado do Antoninho é ir para o continente negro, que parece conhecer muito bem, apesar de ser só de ouvido.Regressemos à música.– E se tivesse de trocar o piano por outra coisa?O António não se comove; responde desembaraçadamente:– Desenhava!De facto, tem uma habilidade rara para manejar o lápis. Ali mesmo, sob os nossos olhos, em dois minutos, traça uma cena de “boxeurs”.– Isto, agora, é pancadaria!E para corresponder ao nosso interesse, vai buscar uma quantidade de folhas, todas com “boxeurs” também, desenhadas por ele, e niti­damente diferenciados. Resultado de uma sessão de luta – oito “matchs”! – a que o levaram há pouco.– Mas há bocado, o que eu queria saber é se não gostava de algum instrumento sem ser o piano… E cantar?...– Cantar, não – faz uma careta. Nem lhe diria nada ter de assoprar em qualquer desses engenhos esquisitos, uns enroscadinhos e outros muito gordos. Violino, isso é que é bonito!– Mas os outros, não serão todos precisos para fazer uma orquestra? Sabe o que é, aprecia?O pequeno ouve com atenção. Sim, sabe muito bem o que é uma orquestra, assistiu a bastantes concertos muito bons, inclusivé a um do “Quarteto Hungaro”, o que excede a capacidade normal de uma criança tão nova. E até a “Filarmónica de Berlim” tem um lugar na sua cabecinha constantemente em laboração. É a sua imaginação que o leva a não gostar de cópia, e a entusiasmar­se com a redacção. Como à mistura gosta doidamente de brincar, achamos natural que não lhe reste ocasião para ler…

… Mas enganamo­nos! Lê muito, ao que nos diz, e com preferências marcadas. As “Lições do Tonecas”, por exemplo (de J. Oliveira Cosme); concorda que “não é bonito, bonito, mas é engraçadís­simo!”. Vai, depois, buscar conscienciosamente o “Romance da Raposa”, do Aquilino, sem resistir à tentação de nos falar ainda das “Anedoctas do Sinhor Pireira”… Quando lhe perguntamos “Qual o desporto preferido”, não nos fala no “box”.– O futebol, a bicicleta…– E montar a cavalo? Ou andar de burro?– Oh! Montar a cavalo! (Até o brilho do olhar aumenta de intensi­dade; cai em si, e remata): O que é, é que nunca andei.– Ainda estás muito a tempo, Antoninho. Assim como ir aos leões, e aos elefantes, na selva africana…– Sim, mas fico no carro, a dar tiros!A respeito de viagens, por enquanto só foi até ao Minho.– É verdade, e sobre cinema?Nem se pergunta! Porém, de acordo com o seu espírito inventivo e com a sua vivacidade, prefere os bonecos animados e as fitas cómicas.– E passatempos predilectos?– Brincar às paradas!… Ficamos um bocadinhos perplexos. O que será o António de amanhã? O que prevalecerá nele? Ou porventura será ele dos raros que conseguem conciliar a exuberante vida muscular com o sonho fantasista e sensível?

1 “Duas esperanças que despontam”, in: Os Nossos Filhos, Agosto 1948, ano VI, n.º 75, pp. 17 e 34.

2 As outras entrevistas de Benoît para Os Nossos Filhos foram feitas a Sérgio Varella Cid (Maio 1948, ano VI, n.º 72, pp. 16 e 17); Vasco Barbosa (Julho 1948, ano VI, n.º 74, pp. 16 e 34); Maria Leonor da Silva Fernandes (acompanhando a de Victorino d’Almeida); e Vera Varella Cid (Julho 1949, ano VII, n.º 86, p. 17).

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entrevista

Agora com setenta e um anos, dispensa apresentações: figura incontornável no meio musical português

– e não só – mantém viva como nunca a sua energia criadora. Uma conversa, pois, sobre os seus últimos

projectos como compositor, escritor e realizador (uma possível 5.ª Sinfonia, a autobiografia Ao Princípio Era Eu, uma nova longa­metragem) e, inevitavelmente,

sobre as vicissitudes, peripécias, histórias da sua vida.

DUARTE PEREIRA MARTINS | ENTREVISTASARA GAMEIRO | FOTOGRAFIA

ANA ATALAYA, DUARTE PEREIRA MARTINS, FILIPE MARTINS E PHILIPPE MARQUES | TRANSCRIÇÃO

António Victorino

d’Almeida

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Todos nós sabemos que o Victorino d’Almeida é maestro, composi-tor, pianista, realizador, e eu queria começar precisamente por perguntar quem é que nós encontramos neste momento.Eu sou sempre compositor, o resto vem em segundo lugar.

Como complemento, distracção?Escrever está muito ao meu lado. Sempre esteve, graças à for-mação que eu tive no liceu – explico isso no meu livro, na auto-biografia. Ou fazia o liceu em casa, e o conservatório no conser-vatório, ou vice-versa. Era uma opção, e os meus pais escolheram a primeira. Foi uma sorte: tive realmente professores extraordi-nários como o António José Saraiva, o Jorge Borges Macedo… E desde esse tempo estive ligado à escrita quase tanto como à música. Já o cinema é uma coisa que surge marginalmente.

Como é que começou a escrever? Foi por gosto próprio?O meu professor de português, o Jorge Borges de Macedo (que tinha um ouvido de porta, não ligava nada à música) sempre se interessou imenso pelo facto de eu gostar de escrever; comecei as aulas quando estava no primeiro ano. Eu era verdadeiramente seu aluno em termos de escrita e ele queria que eu evoluísse o mais possível. Mais tarde, quando fui para o sexto ano, para a cadeira de Literatura, tive o António José Saraiva, que veio corroborar esta prática. De modo que, na verdade, foi com estes mestres que eu aprendi.

E a escrever música?A escrever música comecei aos oito anos, quando já estava no Conservatório [em 1948], porque o meu pai dizia-me sem-pre (o meu pai não era músico, era advogado) que o que não está escrito não existe. E é verdade! Sempre improvisei, mas nunca levei a sério a improvisação. E não levo! (risos) Ou melhor, levo,

mas na medida em que sei que aquilo não existe... Isto apesar de haver um CD da Casa da Música do Porto, de um concerto que lá fiz (foi o [Pedro] Burmester que me convidou) que foi uma espécie de “Concerto de Colónia” meu... Consistiu em uma hora e três minutos seguidos de improvisação. Pronto, essa eu até a levo a sério.

Foi pensada com algum tempo?Não foi pensada. A improvisação não deve ser pensada.

Nem uma base?Não, zero. Eu passei os dias anteriores a estudar Beethoven, Chopin e Schumann para ter bons dedos. Mas nem toquei nenhuma música minha. E acho que foi o melhor caminho para chegar lá, para estar com os dedos em forma. Eu lembro-me de que à entrada a rapariga da Casa da Música perguntou-me se ia fazer intervalo, e eu respondi: “Olhe, é o que se vai ver!”. (risos) E acabou por não se fazer intervalo.

Quando escreve música ou literatura é biográfico, descritivo?Não, biográfico só este último livro é que é.

E não tem alguma espécie de diário?Não, nunca escrevi um diário. O livro Ao Princípio Era Eu surgiu à medida que me ia lembrando das coisas.

Mas a parte musical é algo mais descritiva? Estou a lembrar-me do nome das peças, principalmente das primeiras peças para piano…Pois, mesmo às primeiras, cedo lhes tirei os nomes... Os prelú-dios dantes tinham títulos, mas depois tirei-os. Não sou assim muito para a música descritiva. Não acho que a música possa ou deva descrever situações muito claras.

A escrever música comecei aos oito anos, quando já estava no Conservatório [em 1948],

porque o meu pai dizia­me sempre (o meu pai não era músico, era advogado)

que o que não está escrito não existe. E é verdade! Sempre improvisei,

mas nunca levei a sério a improvisação.

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Como é que funciona então o seu processo criativo? Se não estiver a invadir a privacidade criativa…Não! Eu gostava de poder responder, mas é difícil. Eu trabalho das tantas às tantas. Agora, tenho de escrever uma encomenda que me foi feita, que será provavelmente a minha quinta sin-fonia. Passados uns dias, quando tiver condições para isso, espero ir para a sala do piano e começo a compor quando acordo.

As ideias vão surgindo…As ideias às vezes são até elaboradas fora do piano, fora de casa… Mas trabalho de forma muito artesanal, como um operário.

Nós falámos com a Olga Prats – sei que participou agora na sua terceira longa-metragem – e uma das coisas que me contava ao telefone é que no filme ficava impressionada com a sua capacidade de resistência, no que concerne à realização. Aquilo é duro, chegámos a fazer dezasseis horas por dia.

E só parava quando via que os outros não estavam a conseguir acompanhá-lo.Exactamente! (risos)

Mas, voltando agora um bocadinho atrás, quais foram os professores que o marcaram mais no início?O Jorge Borges de Macedo e o António José Saraiva, sem dúvida alguma, em matéria de formação geral. É evidente que o Campos Coelho me marcou como professor de piano. Ele era um grande professor de piano. Para já, ele tocava fantasticamente bem. Eu nunca vi ninguém a ler à primeira vista como ele. Talvez agora o [Artur] Pizarro seja semelhante, que também foi aluno dele. Era uma coisa impressionante. As minhas composições

para dois pianos foram escritas com catorze, quinze ou dezasseis anos, e às vezes levava as peças para a aula e tocávamos imedia-tamente a dois pianos! (risos)

Era a melhor maneira de ver se a obra funcionava!...Era assim, exactamente! E deu-me realmente uma boa técnica, disso não há dúvida nenhuma. Posso passar meses sem tocar piano (tocar mesmo, porque quando estou a compor não se pode dizer que esteja a tocar piano) e depressa recupero. Por exem-plo, na Casa da Música, depois daquela improvisação, que foi uma coisa dura (uma hora e três minutos seguidos), fui jantar. Mas se fosse preciso outra hora e três minutos estaria à vontade! Nenhuma dor muscular, nenhum cansaço especial. E isso devo ao Campos Coelho. Depois, em Viena, marcou-me muito o Karl Schiske, meu professor de composição.

Como é que se deu na altura a ida para Viena?No Conservatório, em princípio, os alunos tinham direito a concorrer a uma bolsa do chamado Instituto da Alta Cultura. De modo que eu tive bolsa e estava sempre a pensar ir para Paris (era a cidade que eu pensava vir a ser aquela onde eu me iria instalar), mas houve um jantar em casa do maestro Silva Pereira que virou tudo de repente. Ele disse-me: “Não senhor, Paris nada, você vai é para Viena que é muito melhor. Viena assim, Viena assado…”. Ele era muito impositivo com as suas opiniões! Impôs, os meus pais aceitaram, eu também aceitei, e assim fui lá parar.

Não foi contrariado, então.Não, não fui contrariado, mas fui um pouco curioso. Paris tam-bém não conhecia, nunca tinha ido a Paris, mas pelo menos era uma cidade que eu conhecia melhor, historicamente falando.

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Viena era um mundo completamente novo para mim. Foi um período de adaptação complicado, não era uma cidade fácil: era cinzenta, ainda havia as marcas da guerra. Não havia ruínas, eles reconstruíram a cidade mais rapidamente do que em Lisboa se constrói um prédio! (risos) Mas, realmente, era uma cidade sombria. As pessoas eram muito mais fechadas. Dizem-me certas pessoas que, ainda hoje, há problemas de xenofobia. Mas de qualquer forma acho que se fez uma evolução muito grande.

E o que é que encontrou de novo em Viena, em 1960, que cá não havia, mesmo em termos artísticos?Em termos musicais, no que diz respeito a actividade musical, concertos, isso não tem sequer comparação. E continua a não ter, Lisboa continua a ser Badajoz. Estão todos orgulhosos por-que têm a Gulbenkian e o CCB. Sinceramente: quando fui para Viena havia muito mais música em Lisboa, muito mais! Incom-paravelmente mais. Mesmo antes, Lisboa era diferente! O Círculo de Cultura Musical dava dois concertos por semana; a Sociedade de Concertos dava dois concertos por semana; depois havia os Concertos de Outono, de Outubro até Março ou Abril; o São Car-los tinha uma temporada de ópera diária durante dois meses; o Coliseu tinha outro mês ou mês e meio de ópera diária e depois ainda outras coisas pequenas... E, além disso, a Orquestra da Emissora Nacional (que se foi degradando até deixar de existir) era uma orquestra em que vinham cá dirigir o Bruno Walter, o Igor Markevitch, os maiores maestros. Já alguém veio cá diri-gir as nossas orquestras? Não vêm. A segunda divisão mundial é altíssima, eu não ponho em dúvida que os maestros que vêm cá dirigir a Gulbenkian são pessoas de alto nível, mas são de

segunda divisão. Não se vê cá nem Abbados, nem Mutis, nem Zubin Mehta...

Ainda conseguem alguns pianistas de vez em quando, mas em termos de orquestra...Sim, pianistas conseguem, agora maestros só vêm se trouxerem uma orquestra. Ao passo que dantes vinham mesmo dirigir a nossa orquestra. E na ópera vi a Maria Callas, vi a Ebe Stignani… As maiores vedetas da ópera dessa altura vinham cá todas a Por-tugal. Portanto, é mentira dizer que isto está muito bom. Não está nada muito bom.

Está cada vez pior, digamos assim.Está. E sobretudo não se desenvolve. Eu acho que a Gulbenkian (que tem dinheiro) paga e produz com qualidade, mas pergunte- -se: “Aumentou o número de espectadores de música?”. Não aumentou! Diminui cada vez que morre alguém! Morrer alguém é uma cadeira a menos! (risos) Eu nunca vi tanta ignorância musical como hoje, e ignorância arrogante, porque hoje em dia a música ligeira está aí e é quem manda.

Mas há sinais de mudança...Sim, as orquestras entraram em degradação total e depois volta-ram a subir. Hoje em dia, a Orquestra do Porto, por exemplo, é uma orquestra… Dizem-me que a de Lisboa [Sinfónica Portu-guesa] está a piorar. Eu não sei… É evidente que, enquanto aquela orquestra continuar a dividir-se por duas, tendo músicos só para uma, nunca se poderá augurar nada de bom. A orquestra não se pode dividir para fazer a ópera e fazer concertos. Acaba

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por não fazer nada bem. Pelo menos é o que me dizem, e eu acredito. Bem, mas ainda é uma boa orquestra, o que se deve ao facto de haver muitos bons músicos, principalmente em Portu-gal. Aí é que é a grande diferença: é que dantes havia muitos mais concertos, muito mais público… Havia uma vida musical muito mais intensa! Mas não havia tão bons jovens músicos. Nem pensar!

Não estão a ser aproveitados os bons recursos…Estão a ser totalmente desaproveitados, o que é algo criminoso! Antes faziam-se concertos pela província! Toquei eu, tocou o Sérgio Varella Cid, tocou a Maria João Pires, tocou a Olga Prats… Até isso era importante! Hoje em dia, em Portugal, quem manda é a música ligeira – aquilo a que chamam de “A Música”. O resto é uma coisa que eles pensam que acabou no Mozart ou no Bee-thoven – mas o Beethoven nem deu por isso, porque estava surdo! (risos) Mas isto são opções da televisão, são os jornalistas…

Acaba por ser uma questão de educação, então…Quer dizer, a Lady Gaga é que é música, pronto! A Lady Gaga, os Beatles… Isso é que é música! Acabou.

Como é que se poderá dar a volta a esta situação? Porque acaba por ser um círculo vicioso…Durante muitos e muitos anos eu lutei contra isso… Mas agora… Se as pessoas querem fazer dieta, que façam! Se não querem comer, não comam, pronto! Se querem prescindir do conheci-mento de uma arte efectivamente importante e se querem estar convencidos de que essa arte acabou, prescindam. Ainda há dias

uma locutora, até inteligente, perguntou-me na televisão: “Mas isso não está a acabar?”... Se não querem, não querem. Acabou- -se. Mais fica! (risos)

E quanto à sua eterna ópera [Canto da Ocidental Praia, Op. 39] que nunca foi feita: quer contar um bocadinho da história ou acha que já não vale a pena? Foi uma encomenda da RTP que nunca se cumpriu… Até hoje! A ópera, nessa altura, era muito cara para se fazer em palco. Só era possível fazê-la em playback e gravado – para cinema ou televisão. Hoje em dia já não é assim. Com a tecnologia actual, se quiser pôr ondas num palco, põe ondas num palco…

Por que é que não pensa em…Há uma recusa obstinada em ler a partitura. Fui lá uma ou duas vezes, mas depois chateei-me! Ainda por cima vou pedir “bata-tinhas” a um senhor que eu nem sei quem é, nem sei o que fez… Não vou. Se não querem, não querem. Mas há óperas portugue-sas! Estão “permanentemente” a fazer A Serrana [de Alfredo Keil]. É uma obra muito respeitável mas... Enfim… A Trilogia das Barcas de Joly [Braga Santos] nunca mais foi feita, a Mérope igualmente…

Hoje em dia, na música portuguesa, as obras são muitas vezes estreadas – e nem há grande problema em estreá-las quando são obras pequenas – mas depois é difícil voltar a apresentá-las com alguma regularidade…O erro tem até a ver com as próprias obras estrangeiras. Em dado momento eu estava na Alemanha e perguntaram-me: “Ah, o que

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é que estão agora a fazer?” – “Olhe, eu não acompanho muito o movimento do São Carlos mas, segundo sei, fizeram agora o Wozzeck [de Alban Berg]…” – “Ah, isso é bom! Em quantas récitas?” – “Acho que duas.” – “Devem ser muito ricos!...” (risos)... Isto porque, quando se monta o Wozzeck, é para estar dois, três anos a rodar! Fazer duas vezes ou três o Wozzeck, só gente com muito dinheiro!

Na altura, o Canto na Ocidental Praia não resultou por não ter tido ensaios suficientes...Aquilo nunca foi feito sequer. Foram feitos pedaços.

Houve duas versões: uma em 1973 e outra em 1975.Houve uma que não foi feita de todo porque a PIDE – a PIDE, não a Censura – foi lá e apreendeu os programas. Nós já sabía-mos que aquilo nunca iria à cena.

Mas porquê? Quiseram cortar logo o mal pela raiz?Sim… (Até foi bom para mim… Pelo menos não ouvi aquele aborto!) Depois, a seguir ao 25 de Abril, lá me endrominaram no sentido de eu aceitar uma nova tentativa mas, como não havia dinheiro nem tempo, aquilo que deveriam ser quinze a vinte ensaios foram quatro ou cinco… E era tudo “descosido”. O coro até cantava por um material que não era o mesmo do da orques-tra, e era tudo aos gritos no palco! Nada tem que ver isto com cantores como a Elsa Saque e o Álvaro Malta, que estudaram os seus papéis. Mas o que é que interessa se a orquestra estava a tocar outra coisa? (risos) O Silva Pereira tinha realmente uma capacidade inacreditável para fazer “surf sinfónico”, andava ali a apanhar as melhores ondas e nunca caía! (risos)

E a crítica, lembra-se de como foi, em 1975?É absurdo, havia pessoas que tinham opinião a favor e contra. Mas aquilo está abaixo de qualquer opinião! Para mim, aquilo não tinha crítica possível!

Há muitos compositores que hoje em dia são discutidos, mas nós percebemos que as obras foram muito mal tocadas e as gravações pecam por isso. Ah, claro! Houve coisas do Lopes-Graça ou do Freitas Branco que pareciam umas “fandangadas” horrorosas e são peças magní-ficas! E eu senti isso por mim. A Fábrica dos Sons existe em disco mas é irreconhecível em relação ao que está na RDP. É que aí não houve cortes como na ópera, aí foi integral! E é irreconhecível! Aliás, eu usei no meu filme música do meu septeto A vida de um não­herói [Op. 34], pelo septeto da Orquestra Filarmónica de Berlim. Esse disco é fantástico! Sinceramente, aquilo que está num outro disco por aí gravado não se reconhece e, no entanto, são as mesmas notas, é a mesma partitura. O Joly [Braga Santos], sempre o conheci, mas na verdade também ouvi as coisas dele muito mal tocadas e eu sei bem como ele se queixava. O Lopes--Graça, idem. Houve uma plêiade de compositores de grande qualidade, de enorme qualidade! Pode-se dizer que Portugal, no século XX, esteve muito bem representado, a começar pelo caso daquele homem genial, que morreu com vinte e um anos: o [António] Fragoso…

Com que outros compositores portugueses contactou? Sei que também teve aulas com Croner de Vasconcellos.O Croner de Vasconcellos… Não conheço a obra dele. Acho que é pouca. Mas o concerto [para piano] do Armando José Fernandes é muito interessante!

Houve coisas do Lopes­Graça ou do Freitas Branco que pareciam umas “fandangadas” horrorosas e são peças magníficas! E eu senti isso por mim.

A Fábrica dos Sons existe em disco mas é irreconhecível em relação ao que está na RDP.

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E Ruy Coelho?É um caso à parte. Ele organizava concertos em que, se faltava um músico, dizia: “Melhor, assim paga­se menos!”, e coisas pare-cidas… E o Ruy Coelho é um homem que, segundo o que conheço dele, agia um pouco “em cima do joelho”. Porque talento ele tinha, indiscutivelmente! E talvez até tivesse conhecimentos… E técnica!… É um caso estranhíssimo. Sinceramente, gostava de, um dia, poder ouvir a música do Ruy Coelho bem tocada e revista!

Era isso que eu lhe ia perguntar: não acha que (era o que estávamos a dizer há pouco) é perverso julgar o compositor pela obra que não é bem tocada?Exactamente! Aquilo era uma “chafurdação” tão grande! Agora, a música de Ruy Coelho deveria ser, em primeiro lugar, revista, respeitando o autor, porque eu penso que aquilo é muito melhor do que o que ele próprio fez! Eu conheci-o pessoalmente! Ele não ligava nada! Ele queria era fazer e acabar…

Talvez por uma questão de subsistência?…Provavelmente, não sei. Eu era miúdo quando o conheci, portanto não faço ideia… Era um tipo com muita piada a falar, até violento! Acho que o Ruy Coelho é um ponto de interrogação. Ele não é exactamente aquilo que o Lopes-Graça pensava que era!

E agora passando um bocadinho para a frente, que nos diz de Constança Capdeville, Jorge Peixinho?…Sim, esses entraram num outro mundo… Quer dizer, estou a referir-me à música escrita pelo Jorge Peixinho… Quanto àqueles grupos… Até eu entrei, às vezes, naqueles disparates!... Arranhar as cordas e beber água pelo bidé. Era um experimental

que já estava experimentado. Ainda por cima era de um surrea-lismo que não tinha razão de ser. Por outro lado, a música escrita do Jorge Peixinho é uma coisa que não tem nada que ver com isto… Nem com os concertos do famoso Grupo de Música Contemporânea em que era cada um para seu lado… (risos) Aquilo não era nada…! (risos)

Era mais um divertimento?Pois… Ele precisava de ganhar a vida, não é?... Viveu sempre com dificuldades… E acho que fez muito bem! E pagavam-lhe para isso! (risos) E se achavam que aquilo é que era bom… (risos) Agora a música escrita dele é uma música de grande qualidade. Conheço menos a música da Constança, mas ela fez música muito cuidada. Não sei se ela compôs pouco ou se há muita música que também não se conhece. Aliás, é como um compositor que tenho muita pena que não tenha continuado a compor: o Álvaro Cassuto. Compunha excelentemente, mas foi para a regência e abandonou, por assim dizer, a com-posição.

Tem feito coisas muito interessantes como maestro…Claro! E é um excelente chefe de orquestra! E em relação às minhas obras é um dos melhores a reger!

Como é que se sente um compositor e maestro a ver a sua música regida por outro maestro? Há um certo pânico quando o outro maestro não respeita os tempos… O tempo e o ritmo! As notas erradas ainda vá que não vá – não quero parecer o Ruy Coelho – mas a verdade é que as notas erradas ainda o público nota que estão erradas, ao passo que o tempo, o público pensa que é assim que o compositor escreveu.

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Escreve sempre o tempo que quer ou uma aproximação?Eu escrevo sempre o metrónomo mas, mesmo assim, muitos não o respeitam! E é sempre para o mais lento. Se pensarem que uma peça minha está demasiado rápida, acreditem que ainda está demasiado lenta! (risos) Certos efeitos tocados de maneira diferente são um horror! E nesse aspecto o Cassuto sempre res-peitou os meus tempos.

A AVA Musical Editions tem editado as suas obras… Mas há dez anos atrás não estavam editadas. Como é que evoluiu esta situação? Já se tocam mais as suas peças?Para já, eu quase que fui “apanhado na curva” com o surgimento da editora, portanto quero fazer o trabalho de revisão para edi-ção. A maioria das peças era tocada e revista na orquestra e os músicos nem sequer emendavam! Estão a tocar sustenido, mas não escrevem ali o sustenido. Há um longo trabalho que eu estou a fazer – e tenho muito que fazer – para que as peças possam ser editadas. Aliás, as grandes editoras até têm um revisor que é uma pessoa que revê melhor que o compositor! Eu dou sempre o exemplo de um livro: quando um escritor entrega um livro, é óbvio que está convencido que entrega um trabalho iniciado. Depois vêm as primeiras provas e tem seiscentos erros! Depois aquilo é entregue a um revisor, a um especialista, e ainda tem noventa erros! Bem, com a música é mais ou menos isso.

Nota que há mais pessoas a tocar as suas obras? Acho que sim! Eu vejo muita gente aí a tocar coisas… Há gente a tocar muito bem! As gravações dos músicos da Orquestra de Berlim são excelentes, apesar de duas notas erradas! Mas eu só reparei nelas agora na gravação! Quer dizer, não são coisas

flagrantes porque senão eles notavam! Só eu é que sei que aquelas notas não são as que eu escrevi! Não são coisas gritantes, não é? No filme estão as notas erradas…

Foi feito um filme com essa obra?Pois, foi o filme que eu gravei agora…Chama-se O Tempo e as Bruxas.

E quando é que vai sair?Bom, agora [Setembro] está em fase de mistura. A montagem já está… Penso que daqui a uns dez dias estará pronto. Depois vou entrar noutro capítulo que é cuidar de um lançamento – que foi uma coisa que nunca cuidei em relação ao A Culpa, ou ao Mesas de Mármore.

Como surgiu o Victorino d’Almeida realizador, e como é que se integra a música nesse trabalho? Aprendi a realizar à medida que ia fazendo programas de tele-visão em Viena, porque se não os realizasse eu, contratar um realizador austríaco custava mais que todo o orçamento! Então, houve uma produtora extremamente simpática que disse: “Vá, começamos a realizar, que eu vou­lhe ensinando!”. Isto há qua-renta anos! Comecei a aprender, a aprender… É evidente que fazer programas para a televisão não é o mesmo que uma longa--metragem, mas aprende-se à mesma! E montar um filme é a coisa mais parecida que existe com compor!

O material tem de estar bem composto...Sim, a montagem só é boa se tudo o que for para a mesa estiver certo. Se não estiver certo, a montagem é um horror, um martírio! Fiquei muito contente quando verifiquei que, para a montagem

Aprendi a realizar à medida que ia fazendo programas de televisão em Viena, porque se não os

realizasse eu, contratar um realizador austríaco custava mais que todo o orçamento! (…)

E montar um filme é a coisa mais parecida que existe com compor!

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d’A Culpa, não houve um só problema! Estava tudo certo. Montou-se em dezasseis dias! Uma vez faltou uma personagem num sítio mas resolveu-se facilmente com outra imagem!

E a relação entre cinema e música?Eu acho que são duas artes, essencialmente, do ritmo. O ritmo de uma montagem e o ritmo de uma peça de música são exacta-mente a mesma coisa. Entregar, por exemplo, um material cinematográfico a um mau montador (não sendo o próprio rea-lizador a realizar ou não sabendo ele montar), fá-lo começar a molengar, a molengar, e as cenas começam a prolongar-se… Puccini é que dizia: “O melhor amigo do compositor é a tesoura!”, e é verdade: nunca me arrependi de ter cortado coisas!

Tanto na música como no cinema…Estou sempre a cortar e nunca se perde nada! (risos) Quando se corta, sabe-se o que se está a cortar! Eu acho que não se deve tirar partido do efeito. “É um bom efeito, é porreiro, é divertido, vamos manter mais um bocadinho…”: errado! Eu, n’A Culpa, cortei muito! Durante um ano, estive sempre a cortar! (risos) O lado mais perigoso, para mim, é o repetir, o tirar partido do êxito. Depois a gente vê isso no teatro e cinema… A pior coisa que existe é quando o público começa a rir menos. É muito mau, isso estraga tudo! A gargalhada tem que ir sempre a subir. E quem diz a gargalhada diz qualquer tipo de emoção! O Adorno é que falava muito a propósito da música do Mahler: o ponto alto da obra não é necessariamente o final ou a parte mais forte. A teoria do Adorno é brilhante, todas as pessoas deviam aprender com ela. E não explorar a emoção das pessoas também é algo que eu considero necessário. Porque, no fundo, há uma certa manipulação da sensibilidade do público...

Acha que é esse o papel do artista, também?O artista criador ou o intérprete deve ter um grande respeito pelo público, ou seja, não estar a tirar partido dele. Tem de haver um grande respeito pelas emoções que se estão a provocar nas pessoas. Isto é igual na música, no cinema ou na literatura.

É a música a mais importante nos seus filmes? Ou a história?Neste é importante. A música deu-lhe o carácter. Pelo menos o montador, que foi também o director de fotografia, dizia: “Ah, agora é que eu já percebi tudo, o que você quer, o ritmo que vamos dar a esta coisa, só de ouvir a música que escolheu!”.

Mas, nas obras musicais, baseia-se também numa história? Não é uma história no sentido de dizer que “às nove da manhã, fulano saiu de casa, desceu as escadas”... Não, não é isso. Mas claro que se desenrola uma história que não é uma história, literariamente falando… E esse guião – de uma sonata, de uma sinfonia, de uma fuga, de uma obra qualquer – é um guião musi-cal, mas é um guião também.

Contaram-me que escreve todos os guiões quando faz televisão. A quem dirigia os seus programas?Tentava dirigir-me a um público o mais abrangente possível. Mas na televisão há também algumas regras que eu impus a mim mesmo. Se eu faço um filme ou uma peça de teatro, a pessoa paga o bilhete porque lhe apetece. Vai lá e se não gosta vai-se embora. Na televisão eu estou a entrar em casa de uma pessoa.

A pessoa tem de ligar a televisão…Mas, ainda assim, estou a entrar em casa dela. Eu posso começar uma peça de teatro ou um filme assim: “Vão todos

bardamerda!”. Eu não posso fazer isto na televisão. Eu estou em casa deles! (risos) A própria gesticulação não pode ser exagerada. Por exemplo, a Natália Correia, que era minha quase irmã, era uma mulher espantosa a falar. Na televisão ela não era tão boa porque abria os braços de tal forma que saía dum lado e doutro do ecrã! Tinha uma gesticulação que não dá em televisão. A pessoa em televisão tem que ser mais contida, tem que caber naquela caixa. Há aquela eficácia que o [José Hermano] Saraiva tinha, mas ele sabia exactamente os gestos que podia fazer. Temos que saber que há diversos tipos de casas, mas temos de arranjar um denominador comum para todas.

E qual é a fórmula?A fórmula!... (risos) Uma coisa que eu acho que não se pode fazer em televisão é dizer “Como todos sabem, o Beethoven…”... Ora, eles não sabem. (risos) A pessoa sente-se logo ofendida e inco-modada se lhe disserem um nome de que nunca ouviu falar. Quando eu digo o Beethoven, até pode ser que já tenha ouvido falar, mas se eu disser “Hugo Wolf, como todos sabem, foi um grande compositor de lieder...” já posso estar a ofender as pes-soas! (risos) Também não se deve exagerar demasiado. Há uma certa forma de explicar as coisas.

Lá está o denominador comum…É preciso um denominador comum que abranja o mais possível. Por isso não me importo de escrever os guiões. Neste último que saiu é que não escrevi, porque foi o único que não foi realizado por mim. Passava ao Domingo na RTP2. O realizador é que me fazia as perguntas e eu respondia-lhe. Era uma entrevista. Correu bem, mas as entrevistas são perigosas porque muitas vezes os entrevistadores são muito maus…

Maus?Mal preparados… Há uns que são bons. Por exemplo, o Carlos Cruz era fantástico! A entrevista do Carlos Cruz ao Álvaro Cunhal é uma coisa… É uma obra de arte!

E como é que se define uma obra de arte? (pausa) É complicado!… (risos) É uma obra que alia os valores que pretende salientar e transmitir a um sentido de eficácia nessa transmissão. Uma pessoa pode ter uma belíssima ideia e não a saber transmitir. Não tem a arte de a transmitir. A obra de arte é uma forma de comunicação. Um pintor comunica, um escritor comunica, um músico comunica, até o entrevistador comunica! Os bons entrevistadores daqui eram o Carlos Cruz, a Maria Elisa, a Conceição Lino (mas musicalmente…). Há outros que são uma coisa horrível…

A pessoa nem sabe como há-de responder…É que nem se responde! Ficamos parados… A pior que já me apareceu foi a Teresa Guilherme. É inacreditável! Uma vez fez--me uma entrevista em que me pergunta “Então quais são os seus planos para este Verão?”. E depois foi-se embora, eu fiquei a res-ponder para uma cadeira. É claro que ninguém a viu sair na tele-visão, só me viram a mim sem saber para onde havia de olhar! Esta excedeu tudo, mas há os outros que começam a olhar para o lado. E a gente a responder-lhes, o que é uma coisa horrível! (risos) Depois há os outros que mesmo que estejam a ouvir, a gente sabe que eles não estão a perceber nada, portanto vai dar ao mesmo! (risos) Há um vazio no olhar que é uma coisa um bocado assustadora!

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E como é o Victorino d’Almeida escritor?O mesmo que o compositor! Tenho também a tesoura – sempre a tesoura. Eu acho muito bem, quando se está a compor ou a escrever, que se faça mais – estamos à vontade, não estamos ali com ideias pré-concebidas… Atira-se a massa para cima da mesa. Mas depois vai-se cortando, aparando, até saber que é a conta exacta para não estarmos a manipular o público. Estamos a emocioná-lo, sim senhor, mas não a manipulá-lo!

Ainda em relação a compositores portugueses, aquelas lições que recebeu do Joly Braga Santos terão sido importantes…Sim, foram muito marcantes para mim. Para além de vir a ser, mais tarde, um grande amigo, foi um grande professor, um grande orquestrador. Eu aprendi muito em Viena, mas já ia com uma boa bagagem de orquestração. Claro que se aprende sempre, ainda hoje se aprende! Mas em termos de técnicas de compo-sição em si, a verdade é que também aprendi muito com ele.

Ao longo da sua vida, quais foram as correntes que foi seguindo? Como é que se define?Cá em Portugal, na altura, antes de ir para Viena, os composi-tores que se ouviam mais eram Prokofiev, Chostakovich…, porque não pagavam direitos! (Não havia relações com a União Sovié-tica…) E Bartók também se conseguia ouvir com frequência. Schoenberg não se ouvia – encontrei o dodecafonismo ao ir para fora, quando o Schoenberg já o tinha largado! Não vou dizer que não conhecesse um disco ou outro, mas conhecer mesmo, não. Eram conhecidos também os franceses: Darius Milhaud, Pou-lenc… (Debussy e Ravel eram já de outro tempo...) Em relação ao Prokofiev e Chostakovich, foram grandes mestres! Conheci depois a 2.ª Escola de Viena, o Alban Berg… E também Messiaen…

Sente que a sua obra se pode dividir em fases diferentes?Eu acho que tenho seguido sempre a mesma linha.

E no que concerne às influências da música não erudita?É evidente que há algumas coisas que se aprendem e há coisas na música mais popular que são óptimas – as quais eu não me importo nada de aproveitar. Por vezes entram elementos que parece que nada têm a ver com o resto. E até pode ser que não tenham nada a ver, mas todos os dias nos deparamos com situa-ções que nada têm a ver umas com as outras. Há certos flashes!... E eu gosto de introduzir esses flashes, de uma forma coerente e de uma forma que não seja “a martelo”. Eu gosto, por exemplo, de escrever uma coisa totalmente atonal e de repente estar numa coisa totalmente tonal e ninguém ter reparado! (risos) E quando reparam já estou outra vez noutra coisa! É quase poder seguir por uma linha dentro do mesmo estilo, e não estar sempre a tentar perceber se é tonal ou atonal… É preciso que seja o meu estilo.

O mundo do musical americano também o fascina?A Sinfonia para um Homem Bom [Op.146] foi dedicada a um amigo meu que era um homem do jazz, mas mais ainda do musi-cal americano: Luís Pio. Era amigo do Sviatoslav Richter, era amigo do Piazzola, e não era músico! Era amigo da Olga Prats, da Maria João Pires, era amigo de todos nós e todos nós nos deixá-vamos fascinar por ele. Ele morreu e eu escrevi essa sinfonia que tem permanentemente alusões ao musical. Não tenho nada contra! E esforço-me para manter uma linha de conduta, pelo menos formalmente. Não é uma “salgalhada” de ideias! Há substância. Há alusões quase que psicológicas. Mas a gravação é muito fraquinha, era uma orquestra de miúdos de Vila da Feira. Não se pode querer mais. Até é fantástico o que conse-guiram fazer, é muito bom! O Concerto para Flauta foi também gravado por eles, com um flautista óptimo, o Paulo Barros.

Realmente, eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música.

Música! E não um conceito de experiência.

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Pode definir-se o seu estilo como ecléctico?Podem ser vários estilos, desde que a obra tenha o meu estilo, que tem seguido sempre a mesma linha. E eu fico realmente satisfeito quando o consigo. Mas ainda há algumas coisas que eu quero descobrir! (risos)

E o que lhe falta?Se eu soubesse, dizia-lhe! (risos) Sei que há qualquer coisa que eu ainda quero descobrir, que ainda me falta descobrir.

Tem sempre esse sentido de busca constante?Claro, e depois há alguns períodos de repulsa pelo que se fez. Mas eu acho que isso é saudável. A pessoa faz, apaixona-se pelo que está a fazer e depois diz “Isto é tudo uma grande merda!”... (risos)

Há muita gente a quem isso acontece antes de fazer a obra…Bom, mas isso é terrível, é quase uma patologia… E quando se escreve uma obra de música deve-se depois ouvi-la (se possí-vel). A escrever também acontece, antes de a obra estrear, eu ir lá cortar umas coisas… Mas no cinema, ainda agora com este filme, disse: “Deixa­me ver esta parte que está montada, ver para não gostar, para criticar!”... É a experiência que se vai ganhando. É preciso ver, também, que eu fiz desde muito cedo música para cinema e teatro. Para mim foi benéfico, porque me deu uma certa elasticidade. O meu espírito é completamente diferente quando escrevo uma sonata para piano, como a 2.ª, muito mar-cada por Chostakovitch, a 3.ª ou a 6.ª, ou quando faço música para cinema. E isso ajudou-me a estar a fazer uma coisa hoje e, amanhã, fazer outra completamente diferente.

Essas obras complementam-se ou seria impossível conter todo o seu mundo num só estilo?Isso seria demasiado. Posso ter várias atmosferas diferentes e várias estéticas diferentes… Agora meter todos os meus mundos num só mundo acaba por ser muito difícil. Ficaria uma argamassa…

Mas não se consegue definir numa corrente porque tem muitas correntes…Não me consigo definir porque não tenho nenhuma!

Nunca se sentiu seduzido pelo dodecafonismo?Aprendi algumas coisas mas nunca fui grande entusiasta, até por-que sabia perfeitamente que o Schoenberg dizia: “Larga isso, o que havia a fazer está feito!”. E era, no fundo, a posição do Webern. Depois do Webern, foi apenas repetir. É evidente que houve uma evolução com o Boulez (muito mais drástico), mas acabou por ser de tal forma rebuscada que, quando digo que as pessoas em Por-tugal só ouvem música ligeira, há também que pensar nas suas razões… É que já não há paciência para ouvir a chamada “música de vanguarda”! Não há paciência, não há saúde! E não é vanguarda nenhuma: tem setenta, oitenta anos!

Estagnou no tempo?Tem sempre as mesmas coisas, tem sempre os mesmos efeitos, sempre os mesmos “rodriguinhos”... Não há paciência para aturar aquelas coisas das “semanas da música contemporânea” na Gulbenkian. E cada vez há menos, porque as pessoas não vão! Quando, na nossa época, se pensa que não há compositores vivos, tem-se realmente a ideia de que todos os compositores bons eram de “cabeleira empoada” ou, quando muito, o Chopin, ou o Liszt… E pensa-se que a nova música é o Quim Barreiros, a

nova música é a dos Xutos e Pontapés… Ou a dos Beatles, ou o que quiserem. E, aí, há uma grave responsabilidade dessas correntes fanáticas de vanguarda.

Ou seja, os músicos acabam por ser responsáveis pelos problemas de que se queixam.Ninguém os quer ouvir, de facto. Imagine um médico…Uma pessoa que chega a casa, cansada do trabalho, que se deita no sofá a ouvir uma peça de Stockhausen. Lamento muito, não acredito que essa pessoa não esteja mentalmente afectada! (risos) Aquilo não é bem feito? Claro que é bem feito, mas está completamente esgotado e, como aquilo não diz nada às pes-soas, estas vão à procura daquilo que é a música. Realmente, eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! E não um conceito de experiência.

E como a define? Qual o conceito de música?Em Viena, o professor Schiske dizia o que Schoenberg já lhe tinha dito: “substância, não ornamento!”. Ora, há-de reparar que essa música de vanguarda toda são só ornamentos! São giros, são óptimos, os efeitos! Mas deviam ser aplicados à música, à substância! Devia-se fazer música com base naquilo que eles realmente descobriram! E até se descobriram coisas interes-santes, incluindo o minimalismo repetitivo. Até esse – o Steve Reich – descobriu coisas interessantes! Mas para serem aplica-dos em música! Eles não aplicaram música porque não eram tão bons músicos como isso… Eram mais investigadores. Não vou dizer que não foi muito importante esse movimento. O Xenakis, o Nono, também… Stockhausen também entra… Só não posso incluir o Messiaen nesse campo. Tal como o Ligeti, estão noutro patamar. Esses continuaram na música. Bem, o Boulez também, as sonatas estão na música… Todavia, compôs muito poucas coisas – e é muito hipócrita…

Boulez que, como Victorino d’Almeida, é também compositor e maestro…Ele é um grande maestro!

Mas acaba por não compor tanto, comparado consigo…Bom, a quantidade também conta alguma coisa mas não é um cri-tério… Simplesmente o Boulez, se reparar, diz que aqueles neti-nhos todos que ele tem são todos geniais, mas não os grava nem os rege! (risos) Ele grava Stravinsky, ele grava Ravel, ele grava-se a ele próprio, ele grava Messiaen, ele grava Webern, mas não grava os netinhos! (risos) Todos os países do mundo têm três ou quatro compositores que são discípulos do Boulez…

Então, hoje em dia, que outros compositores considera como exemplares?Houve uma boa surpresa quando apareceram os russos de que ninguém tinha ouvido falar: o Schnittke e a Gubaidulina. Mas já antes tinha havido um movimento de esperança com o Pendere-cki e o Lutoslawsky. Agora o Penderecki acho que fez um recuo muito grande… O que eu defendo é que não se deve voltar para trás, deve-se ir em frente!...

E a nova geração?Em Portugal há gente muito boa! Há gente a compor e a entrar novamente nos carris da música e não nos dos efeitos, com coi-sas muito interessantes. Mas não queremos coisas interessan-tes, queremos coisas com substância! O [Nuno] Côrte-Real, o [Eurico] Carrapatoso… O Alexandre Delgado… Há toda uma

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série. Não quero sequer estar aqui a citar… Pode-se pensar que estou a preferir uns aos outros. São compositores que estão a ter um trabalho muito louvável… Eu que o diga: sei o que era aguen-tar sozinho o esforço de manter a música de substância em vez da do ornamento. E agora já são muitos mais os que o estão a fazer. E penso que, se os há em Portugal, há-de passar-se o mesmo pelo mundo inteiro, há-de haver um movimento da nova geração…

Nunca pensou ser professor de Composição?Não, nunca me passou pela cabeça ser professor de Composi-ção. Quer dizer, eu já fui professor de Composição. Tive já uma vez um aluno! (risos) Actualmente não compõe nada… Gosto muito de ensinar História da Música, mas não Composição.

Mas nunca foi convidado?Não. Mas eu acho que devia ter sido, para ser professor de Orquestração. Isso eu acho que devia.

Talvez se deva ao facto de não estar inserido em nenhuma das correntes?Isso é de certeza. Quem não tem partido político está lixado! (risos) Político ou qualquer partido. Quer dizer, não está com-pletamente lixado, mas tem muito menos onde se agarrar. Seguir um caminho próprio, não se apoiar nem nuns nem nou-tros, é uma opção de vida um bocadinho arriscada, mas é onde me sinto melhor.

Na busca do seu estilo mais pessoal, acaba eventualmente por conseguir os seus seguidores… Vai acontecendo?Claro!... Sabe que há uma grande diferença entre aluno e discí-pulo. O discípulo é aquele que segue, é mais difícil. Por isso é que não me cativa muito o ensino da Composição. Agora Orquestração, sim! A Orquestração é uma coisa concreta, quase matemática. É onde me considero mais à vontade, é a orques-trar. De facto, sei orquestrar e é estúpido não ser professor.

E acha que se vêem bons orquestradores hoje em dia?Não havendo orquestras, as pessoas acabam por não compor. Mas o meu mundo sempre foi a orquestra, é onde me sinto bem. Não há nada que goste mais na vida do que estar com uma orquestra, ensaiar com uma orquestra, ouvir uma orquestra, escrever para orquestra e a própria atmosfera de uma orquestra. Eu devia ser director de uma orquestra. Não a reger! Devia ser director artístico, e não tenho dúvidas nenhumas a dizê-lo. Eu seria seguramente um grande director porque sei exacta-mente o que é uma orquestra e não vejo por aí mais ninguém que seja melhor nisso. É como se viu agora neste filme: estavam vinte e cinco pessoas a trabalhar comigo e, de facto, houve uma boa liderança. É o que se pretende: tirar o maior partido possí-vel daquelas pessoas e saber que “vamos parar agora porque eles já não aguentam mais”. Isto não tem nada a ver com o vulgarís-simo que sou como compositor.

Era precisamente o que a Olga Prats dizia da rodagem deste último filme. Pergunto-lhe agora sobre as vinte e cinco obras sinfónicas que diz nunca terem sido tocadas... Agora há mais! (risos) Agora estão a juntar-se outras coisas. Está a juntar-se o Concerto para Violino, está a juntar-se uma Missa (para grande orquestra e coro), está a juntar-se uma Rapsódia para Piano…

São aquelas que está agora a terminar, mas não são encomendas…Não! São obras que eu vou fazendo… Mas às vezes as encomen-das também não são tocadas!

É o exemplo do Canto da Ocidental Praia… Esta Missa surge na sequência da Missa de São Judas Tadeu [Op. 84]?Esta é a de São Francisco de Assis. Efectivamente, o Cardeal perguntou-me na altura o porquê de São Judas Tadeu. Eu res-pondi-lhe, na brincadeira, que era o Santo das Causas Perdidas e, para mim, a música em Portugal é uma causa perdida! (risos) Por isso escrevi na altura a Missa para um soprano e quatro instrumentistas, o que não é nada tradicional. No dia em que houvesse uma orquestra e cantores e um coro aptos, eu então prometi que comporia uma Missa “grande”. E escrevi, porque agora já há condições! Já há condições, a obra é que ainda não foi feita... E isso já me está a irritar um bocadinho…

O que lhe parece o actual panorama cultural português, com a passagem do Ministério da Cultura a Secretaria de Estado? O que prevê, partindo da sua experiência como adido cultural?Teoricamente, ouvi dizer que o Francisco José Viegas vai unir numa só estrutura uma série de instituições – o São Carlos, os Teatros Nacionais… Em termos de economia eu até aceito. Agora isto vem aumentar a responsabilidade do director único que o Secretário de Estado vai escolher. Se ele vai emagrecer ou reduzir claramente o número de pessoas que vão dirigir o São Carlos e o resto, realmente esses poucos vão ter uma maior res-ponsabilidade. Vão continuar a chamar pessoas que ninguém sabe quem são? É que nós não temos sequer nada contra – por-que nunca ouvimos falar deles!

Será que isso é um pretexto para não protestar logo à partida?Deve ser, não sei… O [Paolo] Pinamonti ainda vinha do Teatro La Fenice [em Veneza] e até parece que fez um bom trabalho, fez o trabalho que pôde fazer… Mas não é isso que está em causa! Agora esteve lá um alemão que ainda se sabe menos quem é! Eu nem sei como é que ele se chama! É uma coisa muito grave neste país… Ontem viajei do Porto para Lisboa de carro com a Maria Barroso. Reparámos que havia vários primeiros-ministros de cujos nomes não nos lembrávamos – e no caso dela é mais perigoso, que é mulher de um ex-Presidente! O país foi entregue a pessoas sobre quem até as pessoas que mais tinham a obrigação de saber não sabem nada, não se lembram! Em meu entender, o São Carlos – com o dinheiro que existe em Portugal, com a própria tradição que existe, com as condições que tem e até a estrutura – não pode atingir um nível superior ao de um Vitória de Setúbal no futebol. Mas pronto: o Setúbal joga na Primeira Divisão! É digno, é o que se pode arranjar… Não vou dizer que seja o São Joanense ou o Alverca, não é nada disso! É perfeitamente razoável que seja um Teatro da Primeira Divisão! Obviamente, não é a Ópera de Viena ou a de Berlim ou Nova Iorque ou Paris…

Se fosse a Ópera de Portugal já não era mau!...Ora bem! Uma vez que não se pode nunca transpor essa fasquia, pelo menos neste momento, não se pode também ficar ali no meio da tabela contente por não descer de divisão… É preciso jogar abertamente numa Ópera Portuguesa! Com cantores por-tugueses, o mais possível…

Isso incluiria também um director português?Obviamente! A que propósito é que o São Joanense vai buscar um treinador estrangeiro?... Às vezes estes estrangeiros vão

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buscar uma vedeta!... Isso é o mesmo que de repente pôr, no Vitória de Setúbal, durante um jogo, o Cristiano Ronaldo, rode-ado por mais dez que ninguém sabe quem são! Claro que isso não serve para nada… Só serve para gastar dinheiro. Admito que haja coisas que não se podem fazer neste momento. Mas então vamos fazer o que o [José] Serra Formigal fez quando criou a Companhia Portuguesa de Ópera. Foi a coisa mais útil que alguma vez se fez na música cá em Portugal, porque formou toda uma série de cantores que se reproduziram - não no sentido exacto do termo (risos) – e a verdade é que se criou uma tradição de cantores portugueses que existe até hoje! Até estão vários no estrangeiro, coisa que antes não existia. Até o Serra Formigal criar a CPO, os cantores portugueses só entregavam cartas nas óperas! (risos) Eram figurantes! E a partir daí surgiram até can-tores de grande nível…

Que acabam por sair também porque não há condições…O São Carlos é o teatro português de ópera. Pronto, acabou-se! Isto não é xenofobia… O que tem acontecido é não remar, não instigar, não manter… É não alimentar a vontade das coisas, a vontade de fazer melhor. Uma Companhia Portuguesa de Ópera ia esfarrapar-se toda para ser melhor que o Vitória de Setúbal! É claro que não ia ser a Ópera de Viena… Mas pelo menos tentar ir à UEFA! Assim não vai a parte alguma, anda a tentar evitar a des-promoção! (risos)

De caminho vai mesmo ser despromovida…É… Se isto continuar assim e se, ainda por cima, se repetir con-tinuamente o mandar vir os senhores alemães ou finlandeses ou chineses ou lá o que é… Ninguém sabe quem são… Quando digo isto, não estou a dizer mal nem bem deles. Eu não sei se são bons ou maus! E de facto não se pode dizer mal do trabalho que fazem porque nem sequer é criticável! É como aquelas pessoas que vão à ópera. Aquilo cheira tudo a mofo! Literalmente! (risos) Parece que enchem o São Carlos…

Depende, porque há meses fui ver a estreia moderna da Dona Branca [de Alfredo Keil] em versão de concerto, a um domingo, às 16h, e o São Carlos estava praticamente vazio…Mas isso é normal… Aquela gente não se interessa por música! Aquela gente interessa-se por dizer que foi à Traviata! (risos) “Hoje fui à Traviata!...Hoje fui ver os Mestres Cantores!”... Toda a gente conhece. Agora, “hoje fui ver uma ópera que ninguém conhece”... – isso não tem interesse nenhum!...

Portanto não está para breve o Canto da Ocidental Praia…Acho que não! Não vejo nenhuma maneira…

A propósito de salas vazias, acha que a música contemporânea erudita é demasiado elitista? Acaba por ser mais dirigida às pessoas que conseguem uma melhor educação…(pausa) Aquele período entre os anos 50 e os anos 80 foi real-mente sinistro. Era música que ninguém queria ouvir. É como os vasos comunicantes. Se se tira o líquido de um lado, entra outro líquido. Toda a música comercial, a “rockalhada” toda, veio ocupar o espaço deixado pela música erudita que ninguém queria ouvir!

E hoje em dia ainda se sente a repercussão disso…Estamos ainda a sofrer as consequências. Eu tenho a certeza de que hoje em dia ainda há muitos compositores que lutam contra esse desinteresse. O povo está convencido de que a música ou

foi toda feita por aqueles de cabeleira empolada, que parou tudo no Mozart, ou então que são aqueles “plins”…

Mesmo que se componham coisas interessantes, se o público não quiser ouvir acaba por ficar tudo na mesma… Acha que é uma questão de marketing?Pois… (pausa) Aí acho que temos de começar a mostrar ao poder instituído – e não digo apenas ao Governo, falo das fundações, por exemplo, que muitas vezes são mais importantes – que é mentira quando se diz que tudo custa milhões. Uma coisa funda-mental era nós termos efectivamente gravações de alta qualidade da música portuguesa. E então vai-se dizer: “E é toda?” Toda não existe! No momento em que estamos a ter esta conversa está-se talvez a compor uma coisa que deveria ser provavelmente inclu-ída num eventual contrato que, se assinássemos agora, já não a incluía. Mas também não vamos ser assim tão “picuínhas”! No fundo, nós sabemos qual é a Música Portuguesa. Teria de haver uma selecção efectivamente abrangente e não subordi-nada a gostos pessoais… O que interessa é o que tem qualidade. E a qualidade não é assim tão subjectiva!... A qualidade é objectiva para quem quer ouvir. Eu sei perfeitamente que Paul McCartney tem qualidade. E eu não ouço! Mas, quando ouço, não comparo o Paul McCartney aos Xutos e Pontapés… Sei perfeitamente que não é a mesma coisa! A qualidade vê-se! Quando há um grupo de rock bom, eu também sei! (risos) Claro que se percebe, da mesma forma que se percebe quando um quarteto é bom. Garanto que percebem! Ponha-se um quarteto bom e um mau e vão ver como percebem! (risos) Outra coisa são os gostos pessoais de cada um. Depois, é fazer contas, agora que só se fala em milhões, milhões, milhões, milhões… Mas quem é que pediu esses milhões? (pausa) Há que esquecer uma orquestra portuguesa, assim como há que esquecer uma orquestra formada ad hoc, ou seja, pagando a cada artista. Eu já fiz isso uma vez e fica sem dúvida três vezes mais cara que uma orquestra de altíssima qualidade especiali-zada em gravações. Há a de Praga, a de Sofia, a de Bucareste, e há mais… Eu acho que se dava a conhecer aos portugueses uma parte substancial do seu património cultural que é a música sin-fónica portuguesa por um preço que não chegava a um milhão de euros. Conseguia-se fazer, sei lá, quarenta discos, cinquenta…

Um problema de clarividência. Continua a dizer, como há dez anos, que não daria um bom Ministro da Cultura (agora, Secretário de Estado)?Não quero, porque tinha de me sujeitar a interesses partidários… As ideias, tenho-as… Mas não me apetece estar a ouvir os maiores disparates e a dizer “sim, senhor ministro” ou “sim, senhor primeiro­­ministro”. Isso não… Por exemplo, vou-lhe contar só um bocadi-nho da história deste filme, que é, efectivamente, uma manifes-tação de rua, um protesto, uma afirmação. Só se fala em milhões, o cinema custa milhões! E com o argumento falacioso de que o cinema só se pode fazer com tanto, não se dá nada. É evidente que há cinema que custa milhões. Nem eu quero abdicar desse cinema, porque quero ver o Lawrence da Arábia, quero ver essas coisas… Sim senhor, estou a favor dos milhões também. Mas isso é só um tipo de cinema, porque é evidente que há um vasto leque de cinema que não custa milhões. Não sei se haverá alguns oportunistas que venham pedir milhões… A verdade é que há muitos que não pedem e não recebem nada, porque os que deviam dar é que dizem que a coisa custa milhões. Então nós decidimos fazer uma “manifestação de vida”, que é uma longa--metragem a custo zero! Isto custou zero! Não custou nada, foi de graça! Ninguém cobrou nada e o filme existe! E vai sair!

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Com entradas livres, já agora?(risos) O filme custou zero! Fez-se em vídeo. Não vamos consi-derar como peso orçamental as cassetes de vídeo que custam ¤7,50. Foram quinze… (risos) As próprias pessoas pagaram a gasolina, vivíamos na casa uns dos outros, gravámos no norte do país… E por isto é que o filme custou zero. Não estou a dar o exemplo de que as pessoas trabalhem a custo zero, não é isso. É apenas para mostrar que é mentira “os milhões”, é mentira! Tanto é mentira que até a zero se consegue fazer.

No fundo a maneira de fazer o filme demonstra a união… Ninguém nos cala! E o filme vai ser a demonstração mais cabal disso. E é uma longa-metragem, tem cerca de uma hora e quarenta minutos! (risos) Eu ainda pensei que não desse, mas deu à vontade.

O que espera da crítica a este filme?Não sei… Eu acho que há determinadas pessoas que eu conheço que, teoricamente, irão dizer mal. Mas eu até me dou bem com elas!

Por algum motivo em particular?Sim, ainda que isto que se possa inserir no chamado “cinema de autor”... Por exemplo, ainda há uns dias estive em Cerveira num debate em que estava o Soutinho, o arquitecto, entre outros. Estava também um cineasta, mas daqueles que ninguém sabe quem é. Sinceramente, ninguém sabe quem é! Quem devia ter ido era o João Botelho, mas ele não foi porque havia jogo do Benfica! (risos) E portanto mandou alguém para o substituir. Esse senhor começou a dizer mal do cinema mais comercial, mas assim com um desprezo… Comecei a ver passar à minha frente o Al Pacino, o Robert De Niro… (risos) Ele a falar dessa gente toda como se fosse tudo uma merda! “Bom é o cinema de autor, não é essas porcarias!”. E eu disse-lhe: “Ouça, vamos lá ver uma coisa…”... Foi um tumulto na sala, porque realmente as pessoas estavam todas a reprimir-se! Estavam ali a ser ofendi-das, porque no fundo todas elas iam ao cinema. E viam o cinema ser tratado com todo o desprezo por aquele badameco que nin-guém sabe quem é! (risos)

Mas que é um teórico… Nós estávamos há pouco a falar dos músicos que acabam muitas vezes por ser os causadores do desprezo que há pelos próprios músicos. Pois! Mas acho que no cinema é pior neste momento… Há menos gente apta do que na música, ou pelo menos há muita gente naqueles grupos a fazer assim umas curtas e médias metragens meio­estranhas… Enquanto que há uma plêiade de compositores portugueses a trabalhar!

Então acha que a música está a seguir por um bom caminho?A música está a seguir o seu caminho, quer se goste do que as pessoas andam a fazer ou não. Desde que haja qualidade, já se pode fazer um julgamento objectivo. Podemos com um alto grau de justiça julgar a qualidade. Ninguém é obrigado a gostar do Manoel de Oliveira, mas ninguém pode negar que aquilo tem qualidade. Eu não gosto, mas acho que tem altíssima qualidade!

Mudando agora de assunto, o mpmp participa na organização do Concurso de Piano Olga Prats, dando primazia à música portu-guesa. O que acha dos concursos, como os de Composição?Sinceramente, eu não sei quem ganha esses concursos, não ligo muito… Os concursos de piano são sempre injustos. Eu já estive no júri do Concurso Vianna da Motta e no júri do Concurso

Tchaikovsky, em Moscovo. Tenho a experiência de dois grandes concursos. Diz-se que a apreciação da arte tem que ser subjec-tiva. Muito bem, é o tal gosto. Mas exige-se ao júri que seja objectivo. Daqui resulta que o júri é obrigado a apertar os parâ-metros, dentro daquilo que é a qualidade. Portanto, aquilo que num concerto não interessa nada, seja uma nota errada, seja até uma branca ou outra coisa qualquer, num concurso é inultra-passável! Já tive dezenas de casos de pessoas com mais talento que outras, que eu próprio tive de classificar com pior nota por-que, objectivamente, eles erraram nalguma coisa, e os outros acertaram tudo. Ainda que todos soubessem que eles tinham menos talento! Eu não acho que um concurso reflicta, nem por sombras, a justiça. É impossível!

Hoje em dia, sabemos que é muito difícil a um jovem músico singrar na carreira sem ganhar concursos. E se os bons ficam para trás…Claro! Mas nem sempre os bons ficam para trás. Temos aqui o caso recente do Raúl Costa, que acompanhei desde miúdo. Fui eu que o pus em contacto com o Artur Pizarro. Ele tinha deci-dido concorrer ao Concurso de Newcastle. O Artur disse-lhe: “Olha que o Concurso de Newcastle não é um grande concurso… Ganhá­lo é bom, aliás, ganhar é sempre bom, nem que seja “na Baixa da Banheira”. Perdê­lo é muito mau, precisamente porque não é um grande concurso. Perder o de Varsóvia é normal, perder o Tchaikovsky é normal… Agora perder o de Newcastle é mau, de modo que eu não te aconselho minimamente a ir!”. Então o Raúl disse muito simplesmente: “Então tenho de ganhar.” E foi. E ganhou! (risos) Portanto, às vezes, há casos em que os bons ganham mesmo. Por outro lado, ainda que não seja para mim de modo algum a forma ideal, é indiscutível que pode abrir muitas portas.

Mas a avaliação torna-se muito mais difícil num concurso de Composição…Eu, num de Composição, nem imagino!... Participei num como concorrente! Foi o meu genro que lá me meteu… E até ganhei, juntamente com outro português! Era uma obra para tuba e orquestra, o Concerto [Op. 144], e o outro ganhou com uma obra de câmara para tuba. Foram dois portugueses a ganhar nos Esta-dos Unidos da América. Mas eu não concorri, foi ele que man-dou as obras para lá!... Também deve haver poucas obras para tuba… (risos) Não deve ter havido grande concorrência…

Para acabar, pergunto-lhe se tem alguma obra preferida, alguma obra que o tenha marcado especialmente?Eu considero que, dado o tempo que passou e que me permitiu pensar e repensar e cortar e deliberar, eu estou convencido que a minha melhor obra é o Canto da Ocidental Praia. Estou absolu-tamente convencido disso.

A sua voz de auto-censura alguma vez tentou encontrar na obra os motivos pelos quais ela não foi feita?Claro que andei à procura deles! Se eu me fiasse apenas nos elo-gios do Swarovski e do João de Freitas Branco… Eu tenho-os aí, feitos à partitura, só à partitura, porque aqueles ensaios para nada serviram. Aquilo foi um horror. Só que o [Hans] Swarosvski disse-me uma coisa que é um bocado violenta, mas que é ver-dade: “Só um parvo é que escreve uma obra destas numa língua que ninguém fala!”... (risos) Não é que ninguém fale mas que nin-guém canta. De facto não é uma língua muito cantável…

Algumas cantoras estrangeiras tentam, mas o resultado…É uma coisa espantosa, soa muito mal… Eu não percebo nada!

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Mesmo com as portuguesas tenho alguma dificuldade em perce-ber… Já me passou pela cabeça, para o tempo das minhas netas ou bisnetas, fazer a ópera em alemão. Camões está todo tradu-zido em alemão, e bem traduzido.

Não descontextualizaria o libreto, digamos assim?Não, não… A ópera é cantada em português, em castelhano, em italiano e em latim, porque são as línguas que o Camões utilizou e as línguas das figuras que o influenciaram. Quando aparece o Dante canta-se em italiano, com Garcilaso [de la Vega] é em castelhano, com o Virgílio canta-se em latim. Não podia deixar de usar o italiano porque senão perdia-se o efeito da entrada de Dante. Quanto ao francês, não gosto muito, a não ser naquelas cançonetas, estilo Piaff…

E Poulenc, Ravel, Debussy?O Ravel, por acaso, fez uma coisa muito boa, que foi acabar com a acentuação das sílabas fracas do francês (os “e’s” fechados), que os cançonetistas não usam. Por exemplo, em L’enfant et les sortilèges e em L’Heure Espagnole, canta-se como se fala. Eu acho isso muito melhor porque se percebe muito melhor.

Uma última pergunta, em jeito de comparação: Frederico de Freitas escreveu alguns fados e é um compositor um pouco menosprezado devido a essa veia mais popular…

Ele não misturava as coisas. Quando escrevia “O Cochicho”, era “O Cochicho”, mas quando escrevia uma peça para órgão era diferente…

Mas as pessoas confundem, também quando são maldosas. Tem medo que isso também lhe aconteça, com os fados que escreveu, ou com a música para teatro?(risos) Não estou minimamente preocupado com isso! (risos) Até porque isso é uma atitude reaccionária…

Para terminar, pergunto-lhe só o que está para breve?(pausa) Agora tenho uma obra sinfónica, para a qual já tenho algumas ideias…

Mas essa é para ser tocada?Eu sei lá!... Já não sei nada… Ela foi encomendada no tempo do anterior governo, portanto, se calhar, para este já não há dinheiro… Em termos de música é isso. Depois há também o filme, que qualquer dia será entregue.

E literatura?Sim, há um livro, mas que está ainda embrionário. Agora neste momento estou a trabalhar realmente naquela obra sinfónica, para apresentar no próximo ano. Já não tenho muito tempo, mas também ninguém me obrigou a fazer uma sinfonia!...

Eu considero que, dado o tempo que passou e que

me permitiu pensar e repensar e cortar

e deliberar, eu estou convencido que a minha

melhor obra é o Canto da Ocidental Praia.

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HarpejoMarinho

Fernando Pessoa e Alberto Marceneiro, acrílico e pastel s/ tela. Reprodução de original a cores de Júlio Pomar, gentilmente escolhido e cedido pelo autor para esta rubrica. Fundação Júlio Pomar (© Júlio Pomar / FJP / SPA).

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para uma criança que vai nascer vai ser tocada em Viena, ao cair da tarde, pelas quatro mãos quentes de duas gémeas; um arco-íris duplo vai-lhes entrar pela janela, começa no Arizona e atravessa o Atlântico, a Europa toda, com o pássaro de fogo a balançar-se em cima dele: metade noite, metade dia, metade roxo, metade música. As suas quatro mãos, ainda por se formarem na barriga da mãe, com a sua anca ainda por ser abraçada por um fabricante de sinos do futuro. As cartas que lhe vai escrever são ainda espasmos de estrela… Uma das gémeas põe tinta vermelha no bico dum pião e papel de celofane branco no chão. Lança o fio, o pião gira no papel e escreve: Perder é uma matéria orgânica como a chuva lá fora ou o musgo que cresce nas fontes de Minos: A música, no seu espalhar­se, só permite a subida.não digo que deus seja uma barrigada de riso, digo que nos temos de rir com mais força se nos queremos aproximar dele” – avisa-nos Henry Miller, com o pássaro de fogo na boca. Esta será a primeira variante de uma novela que nos avisa que a música é a primeira memória. o medo de parar bombeia o sangue para todo o lado. Outro nome seria dado ao coração assim que aparecesse a escrita. O medo de parar bombeia a música para cada artéria. Em cada célula uma aparição mariana, sinfonia nuclear para dois cravos e uns búzios, a música a tornar-se subaquática assim que os violoncelos descem o nível do mar, a tensão de duas cordas no sonho gordo de um cavalo-marinho; o seu leite quente amamenta as sereias recheadas de segredos (ouvem-nos de Debussy, ao longo da costa da Córsega).o arco-íris entrava pela janela; o pássaro de fogo também entrava pela janela e observava, do parapeito, as duas gémeas a olharem para o pião, a sua rota a girar agora em cima de uma partitura, escrevendo a suite número dois. Lá fora, no estendal, passa um filme sobre a revolução. O pátio está cheio de cravos. O arco-íris deita a sua ponta a dormir entre dois vasos de flores amarelas. O sol nada nos olhos das duas gémeas.

NUNO BRITO | TEXTOJÚLIO POMAR | IMAGEM

HarpejoMarinho

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Pudessem estas páginas abranger as cerca de

cento e oitenta obras diversas que se encontram

no seu catálogo.

Jorge Salgueiro (1969­) divide o seu tempo entre

a direcção artística do grupo de teatro

O Bando e a função de compositor residente na

Foco Musical. Acaba de assinar Lusitânia, cuja

invulgar partitura dispõe oitenta músicos num

rectângulo em torno do público, mas já tem

prevista para o próximo ano uma ópera sua com

texto de Gonçalo M. Tavares. Até lá, já se terá

ouvido no Castelo de Palmela a obra Arrábida,

que escreveu para a cerimónia de candidatura

desta região a Património Mundial.

Entre todos estes projectos, dois dedos de

conversa sobre percursos, influências, óperas,

sonhos, ideias. Sobre a Arte e o seu papel na

sociedade, políticas culturais, estratégias.

Sobre Música.

MÓNICA BRITO | ENTREVISTAPAULA SANTOS | FOTOGRAFIA

Jorge Salgueiro

entrevista

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Começou a compor aos catorze anos. Houve algum momento assinalável que o levou a descobrir a sua vocação?Houve. Eu tocava na banda dos Loureiros em Palmela e, um dia, fizemos um primeiro ensaio para o Concerto para Clarinete n.º 1 de Carl Maria von Weber. Essa obra marcou-me muito profun-damente. Foi como se me tocasse no âmago. Foi de tal forma emocionante para mim que percebi que era o que queria fazer: entrar no mundo emocional das pessoas. Digamos que rompeu dentro de mim uma paixão avassaladora. A partir daí, comecei a escrever música.

Teve formação musical logo nessa altura?Sim, nessa época frequentava a Academia Luísa Todi, em Setúbal.

Chegou a ir para o estrangeiro?Fui como intérprete, integrado em orquestras nas quais repre-sentava Portugal. Estive na Orquestra dos Jovens do Mediterrâ-neo, na Orquestra dos Jovens da Comunidade Europeia, na Orquestra de Corfu (Grécia), na Banda dos Jovens da Europa... Até perto dos 25 anos, eu estava muito dividido entre a escrita e o trompete, que era o meu instrumento. Mas, de facto, as coi-sas começaram a crescer de tal forma que me tomavam, cada uma delas, imenso tempo...

Sentiu que teve de optar?Senti mesmo que tinha de optar. Não lhe vou dizer que tenha “dormido sobre o assunto”... Digamos que a composição inva-diu completamente o espaço da interpretação. E eu acho que é um pouco natural, porque nós, enquanto compositores, continuamos a tocar, mas não apenas um instrumento: passa-mos a tocar os instrumentos que “queremos”, através da escrita e dos outros intérpretes. É um meio de expressão mais alargado. Também outra coisa me pareceu importante na altura: o traba-lho de intérprete é um trabalho de atleta, enquanto que a com-posição está escrita e toma vida por si. Ou seja, para além da parte intelectual, há um lado de atleta que obriga o instrumen-tista a uma prática diária, de várias horas, se quiser estar a um nível muito alto. Na composição não há uma perda, pelo contrá-rio, cada obra acrescenta e traz mais experiência. É claro que a escrita requer prática, quanto mais se escreve mais próximo se chega da linguagem que se procura. Isso também se consegue, por exemplo, desenhando muito.

Há quem diga que todos temos uma capacidade inata para desenhar, sendo apenas uma questão de desenvolvê-la. Isso aplica-se também à Música?Não faço ideia... Não gosto muito de falar sobre coisas que não conheço completamente. Desconheço se são capacidades ina-tas, ou desenvolvidas pelo meio ou pelo trabalho. Há uma série de factores que contribuem para que se tenha determinadas capacidades, não há-de ser apenas um. É o meio social, a famí-lia, as características individuais...

No seu caso houve alguma influência familiar?Não, não tinha músicos na família, antes pelo contrário. O meu irmão, mais velho do que eu, ouvia imensa música na altura do rock progressivo e isso também influenciou um pouco esta pro-cura de aprender um instrumento. Mas o meu irmão é engenheiro. A tendência familiar era para ir para uma profissão mais cientí-fica e menos artística, digamos assim.

Acha que uma experiência internacional é essencial para um músico português ter uma formação completa?(pausa) Talvez sim... Não lhe sei responder muito concreta-mente. Hoje em dia há imensos professores portugueses e não portugueses, de grande qualidade, a ensinar em Portugal. Acho que cada pessoa tem que encontrar o seu caminho e tentar ir ao encontro daquilo que procura.

Posso reformular perguntando-lhe como considera o ensino em Portugal nos dias de hoje.Eu não sou do meio académico, não é uma coisa na qual pense todos os dias. Acho que o ensino está bastante melhor, pelo menos há uma abrangência muito maior em todo o país. Uma vila como Palmela, que é relativamente pequena, tem um con-servatório. E isto é um facto em imensas localidades do país. O ensino articulado é uma realidade e, na minha altura, não existia. Há uma democratização do ensino, disso não tenho dúvidas. Há acesso mais facilitado ao ensino da música e julgo que, com a quantidade, também vem a qualidade. Agora, em paralelo com outras realidades europeias, não faço ideia...

Nunca pensou em utilizar a sua experiência numa actividade como a de professor?Eu cheguei a ensinar e acho que, de facto, não é uma actividade fácil. Só deve ensinar quem tem aptidão para o ensino. É uma vocação. E ensinar é uma coisa de que não gosto. Procurei ao longo de toda a minha vida fazer tudo para que a minha sobrevi-vência dependesse apenas da criação.

Nem que lhe fizessem uma proposta irrecusável hoje.Não, de todo... Dou-lhe um exemplo: vou fazer uma conferência que me vai custar imenso. Não é a relação com o público que me vai custar, não tenho dificuldade em falar com o público, tenho imenso prazer nisso. Mas, quando se fala para uma plateia, é preciso ter coisas importantes para dizer. Não devemos ocu-par o espaço e o tempo das pessoas a falar de coisas das quais não temos a certeza, em que não acreditamos profundamente, ou se não é bem o que queremos fazer...

É uma responsabilidade.Sim. A palavra e o tempo são coisas muito preciosas e devem ser usadas com todo o cuidado.

Disse-me que não gosta de falar em coisas nas quais não pensa diariamente. O que é que ocupa o seu pensamento enquanto com-positor? Tem preocupações que o levam a tentar transmitir uma mensagem quando compõe ou quando dirige as suas obras?Sim. Eu penso que o lado estético é muito importante para o desenvolvimento do ser humano. Alguém que tenha esse lado absolutamente desenvolvido e aguçado jamais aceitará, por exemplo, ver uma rua cheia de papéis. Essa pessoa procura estar minimamente bem na relação com os outros e tudo isso tem a ver com estética. Penso que a arte pode entrar um pouco no subconsciente de quem não trabalha diariamente na sua produ-ção, de quem tem contacto com a arte nem que seja pelos espa-ços públicos, pela arquitectura ou pela televisão. Muitas vezes a palavra utilizada é “cultura” - se as pessoas forem mais cultas terão um maior nível de exigência. Sim, isso é verdade, mas eu utilizaria a palavra “estética”. E é isso que procuro no desenvol-vimento da minha obra: encontrar a essência daquilo que

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é o meu pensamento, em termos de produção artística. Toda essa procura vai ao encontro de um enquadramento no mundo, numa tentativa de que os artistas tenham influência no dia-a-dia das pes-soas, precisamente pelo desenvolvimento do seu lado estético.

Costuma ter algum tipo de retorno da forma como o seu trabalho chega às pessoas?Tenho imenso. É claro que o dia corre muito melhor se tivermos energias positivas e se as pessoas mostrarem fraternidade para connosco. Gosto das pessoas, gosto de gostar das pessoas e gosto que as pessoas gostem de mim. Mas, sabe, isso não é muito importante para mim... Como artista, confesso que são muito pouco importantes para mim as opiniões, tanto as boas como as más. As más revelam apenas o carácter das pessoas; as boas eu relativizo muito. Tenho uma aguda consciência daquilo que pro-curo e, como sei que ainda não encontrei o que procuro, não vale a pena dizerem-me que é belo ou não.

Se eu lhe disser que tem um percurso ecléctico e inovador no panorama musical português concorda comigo?Concordo. A primeira razão é precisamente o meu distancia-mento do mundo académico e as implicações estéticas que isso tem. Repare: hoje em dia, devido a essa democratização do ensino e até devido à subida do nível de vida dos portugueses, há imensa gente a escrever música. De facto, o panorama geral é de uma grande diversidade e riqueza, mas, naquilo a que podemos chamar de “elite”, eu diria que é um mundo demasiada e estra-nhamente académico. Estamos a falar de Arte, não de Ciência. E isso leva-me a observar, com estranheza, um certo desafasa-mento das “elites” em relação ao tempo, um anacronismo muito grande. A academia é, por natureza, conservadora. Mas isso também tem uma explicação: é que, quem tem poder de decisão, por falta de coragem ou conhecimento, acaba por decidir com base em critérios “científicos”. Um dia destes para se ter uma encomenda da Gulbenkian é necessário ter um doutoramento; o decisor sente-se inseguro com a falta de sustentação científica para justificar a sua opção. Isso é ridículo. Portanto, diria que me sinto um pouco como um “resistente”. Sinto que o meu tra-balho é muito observado, mas, de certa forma, é também “escondido”. Tentam um pouco “emprateleirar” ou fazer de conta que não existe. Também nesse sentido, sim, acho que sou um caso isolado no panorama musical português.

Se pudesse eleger um género preferido, das suas áreas de trabalho, qual escolheria?Eu escrevo música, mas tenho uma enorme paixão pela pintura, pela escrita, pela arte em si. Acho que poderia ser outra coisa se aquele dia do concerto de Weber tivesse sido diferente... Se, em vez do concerto, eu tivesse visto um quadro do Francis Bacon, se calhar hoje seria pintor. Aquilo de que gosto, que me emociona tremendamente, o que me dá grande prazer é o relacionamento com outros artistas, nomeadamente pintores e escritores. É extremamente emocionante para mim acompanhar o seu tra-balho, eles acompanharem o meu, conviver, beber e dar de beber a outros criadores. Não posso esquecer algumas pessoas com quem trabalhei, como o João Aguiar, o Miguel Esteves Car-doso, o João Brites, a Rita Melo e a Risoleta Pinto Pedro. Posso estar a ser injusto por referir só alguns, poderia continuar com mais uma série de nomes. Tendo como base isto, e respondendo à sua pergunta, eu talvez destacaria as minhas óperas, porque é nas óperas que tenho contacto com uma diversidade maior de artistas. Muitas vezes dirijo as minhas obras, portanto o meu

relacionamento com os músicos e, digamos, com a realidade, é permanente. Mas numa ópera eu não trabalho só com músi-cos, é também com o encenador, libretista, coreógrafo, bailari-nos, actores, cantores...

A ópera é, nesse sentido, uma obra completa. É. E é este relacionamento que me dá prazer. Mas há uma falha grave da criação contemporânea, dita de “elite”, no relaciona-mento com as outras artes. Os músicos hoje continuam a com-portar-se como se estivessem a meio do século XX. Veja um grupo de música contemporânea e observe a forma como os músicos se vestem. É provável vê-los todos de preto, mas um preto desgastado, pouco cuidado, com os cabelos desgrenhados e um aspecto a atirar para o intelectual. Isto continua a aconte-cer, como se continuássemos em 1960... É uma falta de noção de tudo aquilo que se passou nas artes durante o restante século. E quem diz o comportamento e a postura que as pessoas têm em palco diz também de muitas das obras, que supostamente são modernas mas que continuam com o mesmo tipo de pensamento que era o das décadas de 50, 60 e 70, não mais do que isso.

Houve uma estagnação no tempo?Eu tenho essa opinião. Acho muito importante esse relaciona-mento com as outras artes e com a realidade, com a nossa contemporaneidade. A televisão faz parte do nosso dia-a-dia, assim como as cidades, o 11 de Setembro, o cinema, as artes per-formativas. Quantas vezes eu fui ver orquestras e percebi clara-mente que os músicos não têm a noção de que quando metem os pés em cima do palco já começou o espectáculo? Há músicos que pensam que o espectáculo só começa quando se toca a primeira nota e isso é algo absolutamente errado. As pessoas não saem para ir ouvir as notas todas afinadas e tocadas no tempo certo. Jamais! Saem para terem um momento diferente no seu quoti-diano, um momento que remeta para outra realidade, que as complemente como ser humano. Que as inspire para o dia seguinte, que lhe abra a alma e suscite criação, paixão, fraterni-dade, esperança, vida. É um outro tipo de inteligência, que se poderia dizer uma inteligência emocional. É o tal lado estético da vida, um outro tipo de pensamento. Mas eu diria que não é um mal português, é europeu. Os nossos modelos são sempre os europeus e, portanto, achamos que quando fazemos igual estamos, necessariamente, a fazer bem.

Como se trava esse “mal europeu”?Faz falta aos músicos, pelo menos no ensino superior, terem uma cadeira de teatro. Porque é que os actores têm uma cadeira de voz na sua formação e os músicos não têm uma de teatro?... Numa orquestra com cem músicos provavelmente só dez terão uma noção ou saberão realmente o que é estar em palco. Pisar um palco requer, naturalmente, uma presença física. Há músi-cos que têm uma presença fabulosa, ou porque é inata ou porque têm consciência dela. Voltamos à questão de ter jeito para dese-nhar: o porquê não sei, é múltiplo, o que é certo é que têm essa capacidade de comunicação. Mas não há formação para isso e a esmagadora maioria dos músicos bem necessita.

Essa sua paixão pelo cruzamento de diferentes tipos de artes explica a sua entrada no universo do grupo de teatro O Bando?Muito do que estou a falar aprendi na relação com os artistas e com as companhias de teatro com quem trabalhei, nomeada-mente O Bando. No entanto, nenhuma das coisas que me vão acontecendo são programadas, a não ser a minha intenção

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e determinação de ser criador através da música. Todo o resto são deixas que a vida me dá e às quais eu vou respondendo. Neste caso, tratou-se de um convite e, mais tarde, passei a integrar a direcção artística, da qual já faço parte há dez anos.

Como director artístico do Teatro O Bando, considera que o trabalho desenvolvido tem tido a visibilidade que gostaria?O Bando tem, digamos, três pontos de acção. Um são as itine-râncias, espectáculos comprados que fazem carreira em todo o país; outro são as co-produções, em geral com os teatros nacionais e outras instituições de maior capacidade, geralmente centradas em Lisboa ou no Porto; e depois, com a vinda para Palmela, surge a actividade na sede. Apesar de a sede estar a 30 minutos de Lisboa, são 30 minutos que pesam na decisão das pessoas. Este espaço continua a ser uma referência para trazer públicos, podia ser apenas para produções ou ensaios, mas não o é. O Bando tem interesse em fazer espectáculos na sua sede e tê-la como ponto de referência. E aqui é que eu julgo que é preciso uma estratégia que dê enquadramento e que consiga um maior relacionamento do público com este espaço.

E, quanto à visibilidade do seu restante trabalho, os prémios têm tido algum peso na sua carreira?Quando eu era intérprete, fui a vários concursos e ganhei sem-pre. Até um dia... Nesse dia em que não ganhei fiquei muito triste. No dia seguinte, fiz uma “revolução” na minha cabeça e decidi não concorrer a mais nada. Não é que não saiba perder, mas achei que não fazia sentido submeter a actividade artística a provas como se de atletismo se tratasse. Como posso eu sub-meter as minhas obras à apreciação de um júri que muito prova-velmente considerarei menos apto que eu próprio?

Voltando ao teatro, existe alguma espécie de fórmula para aprofundar a relação entre um texto e a música que se cria?Sim, existe. O meu trabalho no Teatro O Bando, em concreto, tem aprofundado dois aspectos na produção do grupo: a criação de um espaço emocional e a criação de um espaço físico. Quando fizemos o Ensaio sobre a Cegueira, o libreto/romance falava de uma grande metrópole. É claro que não havia possibilidade, nem sei se isso é importante, de recriar no palco essa grande cidade, de forma real. A música pode dar o espaço àquele momento teatral. No teatro, o que é mais importante é que a obra de arte consiga criar códigos com o público, de forma a que este consiga decifrá-los e que veja para além do que aquilo que lhe é mostrado. Se eu disser que um telemóvel é um com-boio, e se estabelecer esse código logo desde o início, esse objecto pode ser mais credível como tal do que propriamente um comboio a passar em cima do palco. É nesse sentido que a música pode dar mais credibilidade ao objecto artístico. Uma gravação que tenha uma acústica de uma igreja pode remeter inconscientemente o espectador para esse espaço, sem saber que está a ser levado. A música pode contemplar este lado da espacialidade, mas também pode colocar o espectador num determinado tempo. Se a música for do período da Renascença, imediatamente nos leva a uma outra realidade cronológica. Mas acho que aquilo que de mais importante a minha música acrescentou à produção que o Bando já vinha fazendo de forma brilhante - desde 1974 - é algo que é muito difícil de explicar e de mensurar, que é um espaço emocional. O Bando tem uma linguagem muitas vezes abstracta e, por vezes, a abstracção e a arte conceptual perdem laços na comunicação com o público. Julgo que a minha música ajuda a construir esses laços.

Já revelou a importância que a ópera tem para si. Foi por isso que aceitou o desafio de Deu-La-Deu, que juntou em Monção centenas de pessoas num espectáculo aparentemente inédito?Não é um caso isolado... Vou agora começar a minha nona ópera, que estreará em 2012. Das oito que já foram feitas diversas tive-ram um número superior a cem pessoas envolvidas.

Sim, mas nenhuma nestas circunstâncias.O que esta teve de diferente é que praticamente só tinha dois profissionais, que eram as duas personagens principais. Tudo o resto era feito com a comunidade. Foi uma experiência, digo-lhe, muito marcante. Gostava de ter tempo, um destes dias, para escrever as coisas que aconteceram e os pensamentos que me traz aquela experiência. (pausa) Acho engraçado que a imprensa cultural muito facilmente faça entrevistas ou repor-tagens a propósito de uma estreia no Teatro Nacional de São Carlos mas não sobre uma ópera que se faz em Monção. Ora, isto é o contrário de tudo aquilo que devia acontecer. Como se cos-tuma dizer, notícia não é o cão que morde o homem mas o homem que morde o cão. Uma ópera em Monção devia ter uma cobertura, pelo menos, equivalente a uma estreia no São Carlos. Não posso esquecer que muitos daqueles que cantavam eram pessoas que entravam a trabalhar, no campo, quando o sol nas-cia, e só não trabalhavam até ao pôr-do-sol porque vinham de propósito para fazer um ensaio connosco. Com orquestras, eu assisti a ensaios em que músicos, ao primeiro segundo após a hora marcada, se levantaram e saíram. Um jovem que toca trompa fez, por vários dias, uma caminhada de seis quilómetros

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da sua aldeia para os ensaios, porque não tinha transportes. Eu pergunto se isto não é uma lição. Não é só para os músicos, é um estímulo para todos nós. Estas histórias podiam muito bem ser contadas por um jornalista que acompanhasse a produção.

Foi a Câmara Municipal de Monção que organizou este evento, em homenagem a uma personagem popular da região. Se Deu-La-Deu tivesse vivido em Lisboa ou no Porto seria uma heroína nacional. Como a lenda vem de Monção quase ninguém sabe concretamente de quem estamos a falar. Lenda ou facto, é dos momentos mais belos da nossa história. Sim, foi uma encomenda da câmara. Aliás, devo referir que não fui o único artista a ir a Monção fazer uma produção deste tipo. A Madalena Victorino também fez um espectáculo muito interessante com a comunidade, em torno da chegada do comboio à localidade. As Comédias do Minho, uma companhia que trabalha naquela zona, desenvolve um trabalho fantástico com as comunidades de vários concelhos. Neste caso, eu não inventei nada. Simples-mente colaborei e apaixonei-me por aquela gente e por aquele projecto.

Reparei, no passado, um certo criticismo seu sobre o papel de alguns meios como a rádio, que poderia ter um papel mais preponderante na divulgação. Ainda mantém essa opinião?Mantenho. Devia ser normal ligarmos a rádio e ouvirmos, na Antena 2, música portuguesa. E não é.

Isso tem a ver com uma deficiência na programação ou com o público em si?Lamento ter que dizer mas parece-me que tem a ver com a nossa mentalidade portuguesa. Repare, enquanto havia dinheiro no Teatro Nacional de São Carlos, chamavam os cantores estrangeiros

mais caros que podiam; agora que não há, pedem aos portugue-ses para fazer mais barato. Isto é uma realidade. Basta ver aquilo que a Gulbenkian e a Casa da Música fazem. Os maestros das principais orquestras portuguesas são estrangeiros. Acha nor-mal a Orquestra da Casa da Música ir ao Brasil, num evento maravilhoso para mostrar uma parte do nosso país e da nossa cultura, e o que toca é uma sinfonia de Mahler dirigida por um alemão? As pessoas que dirigem este país não têm noção daquilo que se está a perder. É como regar o deserto! Nós precisamos de ter contacto com os estrangeiros e de trocar experiências com eles, mas há situações especiais. Este caso é paradigmático: a orquestra deveria ter tocado música portuguesa dirigida por portugueses. E eu dou-lhe vinte nomes de maestros portugue-ses que poderiam perfeitamente ter dirigido aquela digressão. Fico muito magoado com isto, porque vejo que o nosso país, além de ter poucos meios, gasta mal o pouco que tem.

O facto de ter desaparecido o Ministério da Cultura tal como o conhecíamos vem contribuir para alguma mudança?Não, isso é absolutamente lateral à questão fundamental que é: a Cultura merece 1% do Orçamento do Estado, seja com um Ministério, seja com uma Secretaria, seja com o que for. Aquilo que é dado à cultura é irrisório, lutar por esse 1% é a questão fulcral. Talvez um dia se perceba que o futuro deste país não é fazer mais brinquedos como os chineses numa hora, porque os chineses vão sempre fazem muito mais e mais barato que nós. Se somos um país que tem no Turismo um pilar da Economia, então a Cultura é uma parte integrante desse Turismo. Portugal só pode ser interessante se tiver uma identidade. Se for igual a Espanha, França, Inglaterra ou Alemanha, os turistas virão cá pelo sol e apenas por isso, e serão cada vez menos. Esse 1% é fundamental para que possamos ter uma identidade e o país

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possa ter um valor acrescentado. É um investimento. Há estudos que comprovam que cada euro que se gasta na área da Cultura triplica, em diversas actividades, em termos de lucro. Não pode-mos pensar em competir a nível industrial com uma China, Índia ou Brasil, é impossível! Não tenho dúvidas de que a Cultura é uma parte fundamental para o desenvolvimento deste país. O que é Barcelona, Paris ou Nova Iorque? São cidades profunda-mente marcadas por movimentos artísticos e pela vida que a arte lhes traz.

Gostava, portanto, que houvesse mais apoios para perpetuar as suas obras.Todos os artistas gostavam. Nós temos duas orquestras sinfóni-cas mais a da Gulbenkian e eu já gravei mais discos do que essas orquestras. Não seria tão fácil, nos concertos semanais ou quin-zenais, tocarem uma obra portuguesa, para ficar gravada e em boas condições? Nós temos os meios, só que são mal aproveita-dos. Não conhecemos a ópera portuguesa. Ao sábado à tarde, há uma transmissão de uma ópera internacional na Antena 2 e ouvi uma ópera francesa do período romântico de um compositor pouco conhecido. Era pouco interessante, mas, de facto, estava muito bem cantada e muito bem tocada. Os franceses tocam e divulgam a sua música. Bastava fazermos um DVD por ano com uma ópera portuguesa para termos um conhecimento e uma realidade completamente diferente.

O que é que impede, na prática, que isso seja concretizado?Os portugueses são autofágicos, “matam-se” uns aos outros... Pode parecer uma imagem violenta e uma ideia repetida mas faço-o na esperança de alertar para a importância de valorizar-mos mais o que somos e fazemos. Enquanto isso não acabar, não é possível. Nós não vamos estar sempre em deferência para com outras realidades culturais. Os portugueses têm que ter isto em mente. Não é possível enquanto as pessoas que dirigirem não tiverem o mínimo de sensibilidade para isso. Quantos directo-res dos teatros D. Maria II ou São João já foram estrangeiros? Provavelmente terá havido, mas não me lembro de nenhum. Porque é que o Director do São Carlos pode ser estrangeiro e um Primeiro-Ministro não pode? Não me refiro às questões de direito constitucional, refiro-me a questões de princípio e mentalidade. Vamos tentar com os nossos meios ter um teatro de ópera ao nível dos europeus e de todo o mundo ocidental? É impossível, temos é que ter um teatro de ópera que seja dife-rente, que tenha identidade, qualidade e rigor, e que revele um repertório singular, seu, juntamnete com os grandes clássicos. É um problema de política, de mentalidade, de falta de estratégia para o país. Quem dirige ao mais alto nível as instituições cultu-rais deveria saber e ter uma estratégia para criação de riqueza nacional através da Cultura.

Destacaria alguma das suas oito óperas?Talvez a Saga, por muitas razões. A primeira são as palavras, que são da Sophia de Mello Breyner. Cada palavra, uma após outra, parece uma pérola, um objecto finalizado e esculpido, é impres-sionante... Depois há o lado vocal, que na ópera é preponde-rante. Apesar do devir dos tempos, a ópera manteve sempre a voz lírica. Neste caso, a Saga integra outros tipos vocais que não tenho conhecimento de terem aparecido noutras óperas, nomeadamente – e a mais relevante – a voz gutural, que surgiu na música heavy metal. É um tipo de voz com a qual me impres-siona trabalhar, porque verifiquei que tem uma profundidade tão grande quanto a voz lírica. Para se cantar daquela forma,

é preciso uma técnica e treino tão intensos como para o canto lírico. E o resultado é absolutamente diverso daquilo que é co-nhecido de todos os séculos, no mundo ocidental. Eu diria que os diversos tipos vocais nessa ópera me abriram janelas, como artista, que me permitiram depois fazer, por exemplo, O Salto, que é também uma obra que me deixa uma excelente recordação.

Se pudesse voltar atrás, mudaria algum pormenor no seu trabalho?Mudaria tudo. A primeira obra que iria escrever seria como a primeira que vou fazer a seguir e não aquela que fiz aos catorze anos. Se soubesse o que sei hoje, começava a escrever como já escrevo agora. Que é para ter tempo... Não sei se, no meu tempo de vida, vou ter oportunidade de chegar àquilo que procuro.

O que é que procura?(pausa) Procuro o momento em que o Pollock deixa cair a tinta em cima da tela e descobre uma nova forma de pintar, é esse momento que procuro... Por isso, gostava de ter catorze anos agora e saber o que sei hoje. Pelo menos saberia, em termos teó-ricos, que teria mais tempo para chegar a esse momento.

Desde esses catorze anos, quais as suas maiores influências musicais?Toda a História da Música... (risos)

Não há, nessa história, o seu ‘Pollock’?Há, sim, em diversas fases da vida há muitos. Mas há cada vez menos... Se calhar, cheguei a uma fase em que já não há ninguém. Já ninguém me “ajuda”, agora.

Isso é bom?É mais difícil... Não é mau nem bom, sinto-me mais sozinho. Porque caminhei, durante muitos anos, com muita gente. Imitei muita gente, aprendi assim. Apaixonei-me por muitos composi-tores, alguns portugueses. Mas estou cada vez mais sozinho.

Pode citar-me alguns nomes?É muito difícil porque são imensos... Às vezes nem é o composi-tor em si, nem é a obra total, é um “momento” em que há um despertar para a magia que é escrever sons num papel, em que uma pessoa é tocada por algo. Lembro-me perfeitamente de certos momentos e continuei sempre a ouvi-los. É uma coisa que só ouvindo é que se percebe... Tem uma força visceral, que depois nos leva para um mundo em que se quer fazer milhares de coisas. Umas concretizamos, outras nunca chegamos lá. A nível nacional, posso dizer que uma personalidade muito importante na minha adolescência foi António Victorino d’Almeida. Aqueles programas que apresentava na televisão foram muito importantes no estímulo e paixão que desenvolvi pela música e pela história da música. As minhas três sinfonias, por exemplo, são cíclicas por influência do Luís de Freitas Branco e do Joly Braga Santos. Digamos que me interessa muito encontrar, lá está, aquela certa “identidade”. Hoje em dia, não me interessa tanto a música folclórica, ou algo mais ligado a uma certa ruralidade, como Lopes-Graça fez, apesar de também estar presente em várias obras minhas. É mais difícil encontrar essa identidade não tendo como referência a música tradicional por-tuguesa, mas é também isso que procuro. Depois dos meus 20 anos, a música de cinema influenciou-me muito. Acho que alguns dos nossos grandes compositores da actualidade estão precisamente aí, porque é aí que há dinheiro. Quem tem

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dinheiro procura os mais talentosos e há, de facto, grandes cria-dores na área do cinema. E depois, é claro, as grandes referên-cias da música ocidental: Stravinsky é incontornável.

Também compôs para crianças. É diferente ou difícil? Não, não é assim que vejo. Não procuro estratégias de educação por via directa das minhas obras. Todos dizem que escrevem sem tratarem as crianças como “coitadinhas”. O que isso quer dizer é que difere em cada um de nós. Há quem ache que deve escrever acordes e melodias muito interessantes e complicados para cultivar as crianças. Eu não quero nada disso. Eu quero que elas se apaixonem! Se eu conseguir que as crianças se apaixo-nem pelo objecto artístico, essa é a melhor contribuição que lhes posso dar. Se depois elas quiserem conhecer a erudição das erudições isso é lá com elas; mas aquilo que gostaria é que, quando trabalho para crianças, as consiga emocionar, que as consiga apaixonar de tal forma que possa mudar um pouco as suas vidas.

Lembra-se de alguma peça em que isso tenha acontecido?Não vou ter a pretensão de dizer isso, que o consegui... É apenas o meu objectivo. Quero que as crianças se apaixonem pela arte, pelo prazer e fruição da arte, pelo artifício, por esta forma de expressão humana que é tão peculiar e que nos faz divergir dos animais. Desenvolvemos também uma inteligência para além da racional, é um lado mais afectivo, de desenvolvimento das emoções, da percepção de uma realidade que não é presente. Conseguir que as crianças, através disso, gostem dos seres humanos. Fazer com que os seres humanos gostem dos seres humanos não é tão simples assim. Hoje em dia há uma grande luta para que as pessoas respeitem os animais, mas a verdade é que a luta do amor pelo ser humano continua e vai continuar

sempre. Faz parte da natureza de auto-destruição do Homem, é uma luta permanente. Se eu conseguir, por essa paixão, mudar um pouco a vida das crianças, é o mais importante.

Qual o seu sítio preferido para compor?Não sou nada romântico com essas coisas... (risos) Componho no computador.

Escolhe este espaço/estúdio onde nos encontramos?Este é um local sonhado e concretizado por mim para estar rodeado de coisas de que gosto. Este sítio foi construído para eu criar. Para me rodear dos meus quadros, livros e discos. Está tudo organizado porque tenho pouco tempo. É aqui, neste espaço sonhado. O meu Olimpo.

Podemos dizer que o seu acto de composição, aqui ou noutro sítio, é sinónimo de solidão?Não é possível ser de outra maneira. As pessoas já fazem tanto barulho dentro de mim que, se o fizerem à volta, então é impos-sível. Quando estou sozinho, todas as pessoas que existem na minha vida estão dentro de mim e fazem imenso barulho. Mexem-se, falam comigo, cantam, ralham-me, amam-me, detestam-me. Essas pessoas estão todas dentro de mim, é um desassossego. Tenho que estar mesmo sozinho, fisicamente.

Costuma ouvir música para ganhar inspiração?Não. Ouvia há uns anos atrás. Faz parte daquele caminhar para a solidão. O Al Berto disse, no fim da sua vida, que estava a che-gar à sua perfeição: o silêncio. Caminhamos sempre para o si-lêncio e para a solidão.

Nos projectos em que trabalha com textos de outros artistas, há um processo de acompanhamento mútuo do trabalho que está a ser feito?Depende. Há artistas com os quais sei que vou ter que falar. Por exemplo, as palavras do João Aguiar tinham um contexto muitas vezes histórico, mudar uma palavra ou uma vírgula podia não ser simples. Na Orquídea Branca, uma ópera que fiz para os 500 anos do Funchal, que teve um impacto enorme na cidade, havia um jardineiro a falar com uma princesa. Tentei mudar algumas palavras da conversação e o João chamou-me a atenção que não era possível porque estava a introduzir anacronismos na relação entre as classes sociais, que na altura eram muito mais estratifi-cadas do que agora. O Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, deu-me o texto e disse-me para eu fazer o que quisesse. E fiz aquilo que quis.

Essa liberdade criativa é essencial ou é perigosa?O silêncio é que é devastador. Se houver uma indicação “Eu quero azul” ou “Eu quero com vinte trombones” é óptimo. O “deserto” é pior porque começamos com uma folha em branco. Se é um projecto próprio, já existe logo um motor dentro de nós; mas se é para corresponder a uma pretensão alheia, então convém que haja esse motor para a obra. Quando existe uma indicação é po-sitivo porque é uma estrada para caminhar. Tanto faz se é para a direita ou para a esquerda.

Aqui também se aplica a velha máxima de que o difícil é começar?O difícil não é começar, o difícil é saber onde se vai chegar. É ter uma semente para a obra. É ter “o porquê”. Vamos escrever por-quê? Já há tantos milhares de obras, porquê mais uma? É essa resposta que temos que encontrar.

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excerto de Lusitânia, Op. 176, gentilmente cedido pelo compositor

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Atribuir-lhe a tal identidade.A identidade, a motivação, o fim. Isto remete para a tal questão de falar para uma plateia, seja ela qual for. Pode até ser um maestro em frente a uma orquestra. Há maestros que falam, falam, e muitas vezes não há nada para dizer. É essa noção de que a Palavra e o Tempo são dois parâmetros sagrados. Se temos a oportunidade de falar, então é bom pensarmos no que vamos dizer. Se há realmente coisas importantes para dizer, então que sejam ditas. Se não há, é belo o silêncio. Sabe, o mais difícil entre dois amantes é chegar ao momento em que o silêncio deixa de ser desconfortável. Fazer uma viagem em silêncio, sem que cada um necessite de o explicar ao outro.

Prefere trabalhar uma obra de raíz, a partir de um texto que acompanhe desde o seu nascimento?Prefiro textos originais. Uma adaptação de uma obra feita em 1998 é mais anacrónica do que um original sobre o século XIV. Eu prefiro sempre os originais porque estou a lidar com matéria viva que é viva comigo. O criador está a pensar ao mesmo tempo que eu. A criação de uma obra de arte, num dado momento, constitui-se como síntese do tempo em que é feita.

Há pouco falava de uma democratização do ensino e da música. Pensa que o facto de óperas suas terem sido nomeadas para os Globos de Ouro é um sinal de mediatismo e de que chega a um público mais vasto?Por acaso reflecti sobre isso na altura. E até tive pena que não tivesse ganho, na segunda nomeação, porque se fosse falar ao receber o prémio iria chamar a atenção para esse facto: é a segunda ópera nomeada num espaço de três anos, o que é uma indicação sobre a popularidade que o género pode ter. Por acaso foram minhas, podiam ser de outros autores, o importante é que foram nomeadas num terreno de acção onde não é suposto. Já não falo do prémio que a Sociedade Portuguesa de Autores e a RTP atribuíram à ópera Quixote. Neste caso, o espírito é outro, é contemplada uma parte do pensamento mais artístico, menos figurativo, digamos. Nos Globos não, é mais valorizado o lado de entretenimento.

Isso é pernicioso?Nada! É uma característica. Porque é que há-de ser? Isso é um mal das artes do século XX, de que - espero - o XXI se liberte. Está quase. É por causa disso que depois se impõem estas novelas na televisão. Se os artistas de charneira se interessas-sem por continuar a produzir e a pensar estratégias de comu-nicação, se calhar não davam novelas de tão má qualidade na televisão.

O que é facto é que subsiste uma certa ideia de que quanto maior a dose de entrenimento menor a qualidade.Não concordo com essa ideia. Basta pensarmos em óperas como a Carmen ou a Flauta Mágica, ou em milhares de outras obras de arte. Repare, isto anda tudo sempre um pouco à volta do mesmo, e agora estamos a falar de entretenimento. Eu vi há pouco tempo um vídeo, no YouTube, de uma criança com cerca de três anos a dirigir a 5.ª Sinfonia de Beethoven em frente a uma aparelhagem. A criança sabe de cor a música e no final rebola-se no chão com uma alegria esfuziante. Ela delira, dança e dirige de uma forma que nos contagia com aquela euforia. A energia contida naquela música também é entretenimento. Se tem a capacidade de fazer aquilo a uma criança, porque é que enquanto artistas não somos capazes de produzir obras que

emocionem tanto as pessoas? Os artistas de vanguarda deve-riam envolver-se mais e não ter medo de serem amados pelo grande público.

Da próxima vez, se conseguir subir ao palco do Coliseu, vai deixar este “recado”?Não, não há recados para ninguém... Eu estou a construir as minhas ideias, quem estiver interessado em ouvir, ouve-me. Julgo que este novo clima de restrição de meios vai obrigar os artistas a encontrarem estratégias de sobrevivência que, se calhar, terão de passar obrigatoriamente por uma aproximação ao público. Estes novos tempos vão exigir que as pessoas pen-sem neste relacionamento.

Os artistas portugueses encostam-se aos subsídios?Os artistas portugueses procuram os meios de sobrevivência que lhes permitam desenvolver a sua actividade. Se o apoio do Estado for uma porta, pois com certeza que a aproveitam, isso é normal. O Estado é fundamental para si próprio e para nós. É fundamental para a estratégia do país e dos próprios artistas.

Foi a falta de subsistência que levou, após dez anos de vida, ao fim do seu projecto Negros de Luz?Os Negros de Luz são um caso de sucesso em termos humanos. Não tem nada a ver com o público, ou com o sucesso comercial, porque esse então não existiu mesmo. Tem a ver com o facto de um grupo de onze pessoas se ter mantido em torno de um pro-jecto, durante dez anos. As pessoas acreditavam que ali estava a nascer qualquer coisa que, por sua vez, procurava outra coisa qualquer. Gente da área da música dita clássica que estava a pro-curar um novo caminho, através de uma forma que é comum a todas as pessoas, que é a canção. Através de outro tipo de pos-tura, este grupo queria influenciar não só quem estava do lado da música erudita mas também quem não estava. Havia um estímulo para procurar qualquer coisa... E acho que nunca encontrámos. A sensação que se tem é que estava quase..., quando acabou.

Se pudesse oferecer a uma personalidade a revista glosas, a quem ofereceria e porquê?Isso é uma pergunta muito difícil... (pausa) Ofereceria a uma dessas pessoas que tomam decisões e que afastam os portugue-ses do seu próprio país.

Para terminar, disse, uma vez, algo que achei muito interessante: só uma ou duas pessoas durante um século têm a capacidade de gerar uma linguagem musical, enquanto que o Jorge está a gerar um “sotaque”.(risos) É verdade. Aparece um Fernando Pessoa, aparece um Stravinsky, aparece um Beethoven...

Existe veleidade em dizer que apareceu um Jorge Salgueiro?Ainda sou novo, tenho esperança. Neste sentido, ainda sou uma criança. Posso vir a mudar o pensamento do século XXI, porque não? Se não tivesse sonhos, e permanecesse apenas o lado lúcido e consciente, suicidava-me. Eu e os outros. Se não fôsse-mos inconscientes, no sentido de ainda sonhar, não havia cria-ção. É esse sonho que nos faz criar a todos, a cada pessoa, não só ao artista. Somos o centro do nosso mundo. A pessoa mais indigente que vemos na rua tem todas as esperanças do mundo. Ainda que as tenha perdido, continua a ser o centro do seu uni-verso. É como nós, os artistas. No sonho tudo é possível.

naquela cidade que nunca adormece, na sala que tantos sonham um dia vir a pisar. Elegia a Al­Mu’tamid foi uma das obras com o privilégio de inaugurar o SONiC: Sounds of a New Cen-tury, evento com magnitude para reunir cerca de cento e cin-quenta compositores de todo o mundo. A jovem Andreia Pinto- -Correia junta-se, assim, a um vasto leque de participantes que inclui conceituados ensembles norte-americanos, grupos con-vidados da Holanda e do Brasil e as presenças de Bruno Manto-vani, Matthias Pintscher ou Nico Muhly. A compositora elucida de que forma surgiu esta oportunidade. “Talvez o factor que pro­porcionou uma maior visibilidade foi a encomenda do Tanglewood Music Center / Boston Symphony Orchestra, uma encomenda anual feita a um compositor de destaque das novas gerações. A estreia no Seiji Ozawa Hall correu muito bem e foi um grande cartão de visita a outras excelentes oportunidades, dando­me visibilidade imediata no panorama de música contemporânea dos Estados Unidos.” em 2009, já sobressaía como um dos quatro compositores seleccionados para o Ear Shot/ National Orchestra Network, programa destinado a apoiar novos talentos para escrita orques-tral. Sucedem-se várias distinções, entre prémios, menções honrosas e composições a convite da American Composers Orchestra. Até ao dia, há cerca de um ano, em que recebe um telefonema com uma encomenda muito especial. “É uma honra ter sido escolhida, independentemente de ser ptortuguesa ou não. É preciso ter em conta de que os Estados Unidos têm neste momento cerca de quarenta mil compositores de música contemporânea. O nível da minha geração é muito alto, incluindo representantes de todo o mundo a participar activamente em festivais, concursos e resi­dências. Claro que há sempre um gosto bastante especial em sentir que há uma voz portuguesa no meio de mais de uma centena de com­positores, escolhidos no meio de milhares, e que essa voz vai ser ouvida numa das mais prestigiadas salas de espectáculo do mundo, na noite mais especial do festival.”o momento afigurou-se como ideal para concretizar algumas ideias já em esboço. A peça começa a ganhar vida. “Cada compo­

sitor amadurece as suas obras de forma distinta. No meu caso, penso durante alguns meses e quando me sento a escrever já tenho uma ideia bastante clara da estrutura”, afirma a compositora. “O ama­durecimento interior de Elegia a Al-Mu’tamid demorou cerca de três meses e a escrita em si cerca de um mês. É uma peça bastante con­templativa e, de certa forma, dramática. Talvez uma das mais com­plexas que escrevi até ao momento.” Contextualizemos, desde logo, a origem e a importância da figura central, habitualmente conhecida como o ‘Rei-Poeta de Sevilha’. Na verdade, ao con-trário do que se possa imaginar, foi em Beja que nasceu e em Silves que se tornou governador. “Os nossos vizinhos Espanhóis têm sido bastante efusivos a incluir Al­Mu’tamid na sua história, mas infelizmente Portugal parece que quer esquecer os seus grandes nomes do esplendoroso Al­Andalus...”é perceptível uma das temáticas que mais capta o seu interesse: a utilização de teorias e fórmulas poéticas e rítmicas derivadas da Idade Média. Estas são, aliás, objecto do seu doutoramento, através do qual aprofunda a forma como a música contemporâ-nea absorve estas influências. Após concluir todos os estudos nos Estados Unidos, incluindo o mestrado, é neste país que Andreia prossegue a sua formação e passa cerca de sete meses por ano. Para a conclusão da tese, terá de prestar provas de conheci-mento, escrito e oral, da língua árabe. O trabalho de investigação inclui ainda uma dissertação escrita sobre técnicas de composi-ção e uma peça de meia hora para orquestra sinfónica, precisa-mente em torno do poeta homenageado neste festival. “Sou uma grande leitora de Al­Mu’tamid desde a adolescência e tenho inúme­ras peças inspiradas na sua poesia. Recentemente tive o prazer de, finalmente, conhecer o Adalberto Alves, de quem me tornei amiga e que foi, de certa forma, uma das pessoas que me acompanhou ao longo dos anos nesta epopeia pelas nossas raízes esquecidas.” diz estar rodeada de excelentes artistas. Muitos deles têm desempenhado um papel determinante na sua carreira. “Tive o privilégio de conhecer e partilhar momentos com o grande investiga­dor em Arte Islâmica Oleg Grabar, já falecido, que foi uma grande inspiração para prosseguir com os meus interesses.” Na sua área, realça a importância de ter estudado, este Verão, com o compo-sitor e maestro alemão Matthias Pintscher, uma experiência que inclusivamente alterou a forma como, até então, pensava a música. Esta comunicação entre domínios artísticos e diferen-tes nacionalidades, assegura, é natural no território norte-ame-ricano. “É, de facto, estonteante a quantidade de compositores, assim como o seu nível. Tenho colegas da Turquia, Rússia, Ingla­terra, Espanha, Grécia, Israel, Brasil e China, entre muitos outros representantes de outros países. Cada um com a sua História, com a sua Cultura, a sua forma de ver o mundo e sentir a música. É bas­tante enriquecedor estar e viver num ambiente culturalmente tão variado. Quer nos circuitos mais académicos ou em grandes festi­vais, é possível ouvir compositores que representam as mais diversifi­cadas correntes estéticas, tendo direito à sua voz. Um exemplo perti­nente é este do Sounds of a New Century.” no velho continente, ‘a música é outra’. Sobre esta obra, manifesta o desejo de que venha a ser interpretada em Portugal. Subscrevemos. Outros trabalhos já estão, entretanto, no hori-zonte. “Não pretendo ser uma compositora ‘exótica’ de música fol­clórica. Pretendo, sim, incorporar, de uma forma equilibrada, ele­mentos da minha cultura em composição contemporânea. Eu vejo esta questão da aceitação da diversidade estética e cultural como algo benéfico e saudável, que me ajuda a crescer e a amadurecer como pessoa e como artista.”será possível, numa entrevista alargada, conhecer melhor a sua arte. O próximo número da glosas é imperdível.

no próximo númeromónica brito entrevista

ANDREIA PINTO-CORREIANova Iorque auscultou a pulsação da música contempo­rânea. Coube à compositora portuguesa a abertura de um festival planetário no lendário Carnegie Hall.

MÓNICA BRITO | Texto

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dom dinis (ou deniz), nascido em 1261 e Rei de Portugal entre 1279 e 1325, data da sua morte, é um personagem de primeira importância na tradição trovadoresca ibérica. A sua corte foi, depois da morte do seu avô Alfonso X, o Sábio, em 1284, o último refúgio dos trovadores galego-portugueses. Mas o rei português não se limitou a acolhê-los; juntou-se-lhes de forma excepcio-nalmente produtiva. Educado por mestres como Nuno Martins e Domingos Jardo (que havia estudado na Universidade de Paris), a produção literário-musical de D. Dinis bebe tanto na tradição local como no exemplo provençal, com destaque para a influência de Bernart de Ventadorn e de Jaufre Rudel. Apesar de compôr sobretudo cantigas d’amor, legou-nos corrosivas canti-gas satíricas, que só recentemente começaram a merecer aten-ção, e mais de cinquenta cantigas d’amigo, exemplares na sua economia e no seu ritmo. Encontram-se nos seus poemas subtis alusões a textos de outros autores; nem sempre as fronteiras entre géneros são rigorosamente respeitadas.os géneros poéticos galego-portugueses são definidos não em função da forma poética, mas do conteúdo. A cantiga d’amor, embora decisivamente influenciada pela canso occitânica — o mais aristocrático dos géneros trovadorescos — é em geral relati-vamente curta e inclui, em cerca de metade dos casos, um refrão (D. Dinis usa-o quase em dois terços das suas cantigas d’amor). Por vezes acrescenta-se, depois da última estrofe, um ou mais versos de conclusão, a que se chama “fiinda”. A cantiga d’amor apresenta, de forma retoricamente elaborada, os sentimentos amorosos do poeta por uma mulher pertencente à nobreza, enquanto a cantiga d’amigo, de factura frequentemente mais simples, é posta na voz de uma jovem mulher, ou representa as suas

acções; basta a presença de certas palavras-chave, como amigo (namorado) ou delgada (elegante) para identificar este género. como exemplo, temos os primeiros versos da cantiga “Levan-tou-s’ a velida”, de Dom Dinis. Aqui, o “l” e o “v” de alva estru-turam todo o texto; alva significa branca, limpa, reluzente, mas também o momento em que o sol se levanta, remetendo-nos para o género da alba:

Levantou­s’ a velida, levantou­s’ alvae vai lavar camisaseno alto:vai­las lavar alva.

Levantou­se a louçãa,levantou­s’ alvae vai lavar delgadaseno alto:vai­las lavar alva.

esta composição ilustra um processo poético arcaico: construir uma estrofe a partir da repetição variada da anterior. Este pro-cesso, a que se chamou “paralelismo”, favorece uma grande regularidade na distribuição dos acentos do texto, e encontra-se em muitas cantigas d’amigo. Todavia, há muitas outras que seguem princípios de construção mais modernos. Embora não tenhamos acesso à música das cantigas d’amigo de D. Dinis, podemos concluir, através de uma análise das suas cantigas não-paralelísticas, que raramente se mantém um esquema acentual fixo nos versos que ocupam posições equivalentes nas estrofes; quando há coincidências acentuais, estas aparecem frequentemente entre versos alternados, sugerindo que a can-tiga se teria cantado com diferentes frases musicais.

MANUEL PEDRO FERREIRA | TEXTO

* Breve introdução ao tema, com especial atenção à dimensão musical. Texto baseado na versão original de um artigo publicado em castelhano, francês e inglês in Goldberg – Revista de Música Antigua, nº 40 (Junio 2006), pp. 52-59; a bibliografia e a discografia foram actualizadas.

A propósito dos 750 anos do nascimento de

Dom Dinis, trovador*

efeméride

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elsa gonçalves diz-nos que D. Dinis “deixou na sua poesia uma condensação, recapitulação e síntese da tradição poética em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de confronto criativo com os textos que cita, ou aos quais alude”. A sua obra, a mais extensa de todos os autores galego-portugueses, inclui 137 composições (73 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo, 10 cantigas satíricas e 3 pastorelas) e foi muito apreciada, tanto no seu tempo como depois da sua morte. Nesta ocasião, um jogral de León escreveu os seguintes versos:

Os trobadores que pois ficaromen o seu regno e no de Leon,no de Castela, no d’Aragon,nunca pois de sa morte trobaron.E dos jograres vos quero dizer:nunca cobraron panos nen avere o seu bem muito desejaron.

apesar de se conhecerem os textos das suas cantigas desde o século XIX (através de cópias tardias de uma antologia medieval, talvez o Livro das Cantigas do Conde de Barcelos, filho bastardo do rei), acreditava-se que a sua música se tinha perdido na tota-lidade. Todavia, em Julho de 1990 o professor americano Har-vey Sharrer encontrou em Lisboa, nos arquivos nacionais, as melodias (incompletas) de sete canções, num fólio fragmentá-rio escrito por volta de 1300. A este documento (Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fragmento, cx. 20, n.º2) veio a chamar-se, em homenagem a quem o descobriu e estudou, “Pergaminho Sharrer”. As canções nele contidas são cantigas de amor (trovas em galego-português de assunto amoroso), o que as torna, juntamente com as cantigas d’amigo de Martin Codax, as únicas composições trovadorescas ibéricas actualmente conhecidas com a sua música. um trovador completo, no século XIII, devia ser capaz não só de inventar o texto literário, mas também de criar e controlar a execução da respectiva melodia. Sendo neto de Alfonso X, D. Dinis teve acesso ao trovadorismo galego-português praticado na corte castelhana e à música andaluza que aí era conhecida. Como filho do rei português Afonso III (dito o Bolonhês por ter passado mais de quinze anos no norte de França como Conde de Boulogne), D. Dinis bebeu na tradição galego-portuguesa da sua corte, por sua vez influenciada pelo exemplo dos trouvères do norte de França, com quem o pai e o seu séquito tinham convi-vido. O casamento com D. Isabel, filha dos reis de Aragão, em cuja corte se cultivava o trovadorismo occitano, ofereceu-lhe um canal de acesso privilegiado à tradição poético-musical da zona pirenaica.a análise da música das cantigas de d. dinis revela um com-positor de tipo tradicional, muito ligado à oralidade, mas, não obstante, subtil no tratamento do pormenor. Longe de eviden-ciar a influência do canto eclesiástico, parece bem enraizado nas tradições trovadorescas europeias, mas com uma tendência para a ornamentação melódica que se afigura mais tipicamente ibérica, ou tardia. A música flutua de acordo com uma pulsação regular que abarca uma ou duas posições silábicas. Comparado com Martin Codax, o estilo musical é muito diferente, emocio-nalmente mais neutro e notoriamente mais solene, mas tam-bém formalmente mais variado, o que se pode atribuir tanto ao carácter mais aristocrático do género cantiga d’amor, como ao elevado estatuto social de Dom Dinis. A notação musical das suas cantigas (que se pode atribuir a raros copistas musicais e não ao rei) é, no contexto dos cancioneiros profanos europeus,

invulgarmente moderna, embora houvesse já então técnicas de notação mais sofisticadas, inventadas para a polifonia erudita desenvolvida no ambiente universitário de Paris.uma das curiosidades (e dificuldades interpretativas) das melodias do “Pergaminho Sharrer” é o número anormalmente elevado de notas por sílaba — três notas, em média. Na tradição provençal e francesa, a maioria das sílabas é cantada com uma só nota. Este carácter florido, ou melismático, das cantigas de D. Dinis, poderá relacionar-se com algumas das Cantigas de Santa Maria de Alfonso X, e também com as canções do trovador Gui-raut Riquier, que passou vários anos na corte castelhana. Por outro lado, há quem interprete a música do parisiense Jehannot Lescurel (c. 1300?) como sendo a transposição escrita, para os géneros em voga no início do século XIV (“formes fixes”), de uma tradição ornamental de origem trovadoresca. Nesta hipo-tética tradição tardia, as notas correspondentes a cada sílaba seriam amplificadas com “floreios” vocais. Estes “floreios” não teriam precisado, no ambiente trovadoresco francês, de ser escritos na pauta. Será possivelmente dessa tradição que fala o tratadista Johannes de Grocheio no tratado De Musica (c. 1300) quando nos diz: “o cantus coronatus tem sido chamado por alguns de conductus simples; a bondade da sua poesia e da sua música leva os mestres e estudantes [da arte trovadoresca] a coroá­lo à volta dos tons, como nos franceses Ausi com l’unicorne ou Quant li roussi-gnol. Costuma ser composto por reis e nobres e é cantado na presença de reis e senhores da terra de modo a comover os seus ânimos no sen­tido da audácia e da fortaleza, da magnimidade e da liberalidade, coisas que levam, todas elas, à boa governação”. Se o cantus corona­tus era um tipo de canto lento e ornamentado, digno de reis e de nobres, tal como o descreve Grocheio, não haverá melhor ilus-tração desse estilo musical do que as cantigas do rei português.

a divulgação da descoberta

pouco mais de um ano após a descoberta do “Pergaminho Sharrer”, a sua música foi pela primeira vez apresentada ao público e parcialmente cantada por um intérprete moderno. Isso sucedeu em Outubro de 1991, em Lisboa, durante um Con-gresso internacional de Literatura Medieval. Para essa ocasião, o tenor Gonçalo P. Gonçalves gravou experimentalmente a can-tiga VI. Uma tentativa de execução profissional deste repertório deu-se a 2/9/1992 em Utrecht (Holanda), por Stevie Wishart e o seu grupo Sinfonye; ainda nesse mês o concerto foi repetido em Londres. Nesses concertos o material foi livremente conden-sado, e a execução foi sobretudo instrumental. A 12/2/1994, em Davis (Califórnia), Paul Hillier, a solo, cantou pela primeira vez o conjunto das sete cantigas, reconstruídas por M. P. Ferreira, seguindo-se a sua primeira gravação comercial. A primeira apresentação integral na Europa deu-se em Leiria (Portugal) em Junho de 1995, pelas Vozes Alfonsinas, tendo como solista o barítono Luís Rodrigues.a edição moderna destas cantigas sofreu vários sobressaltos: em 1993, o documento foi sujeito a uma tentativa de restauro que o desfigurou, apagando parte da notação musical, já lacu-nosa na origem. Tendo o descobridor do fragmento adiado sine die a publicação do seu estudo do manuscrito, a divulgação da edição/reconstrução das melodias pelo seu colaborador musi-cológico, pronta no Verão de 1994, ficou comprometida. Reali-zaram-se vários concertos e saíram três gravações discográficas, até ser possível a publicação do livro Cantus coronatus (Kassel: Reichenberger, 2005), que tem permitido a mais músicos e melómanos apreciar e apropriar-se deste repertório único.

CRONOLOGIA

1196 — Datação da primeira cantiga conhecida em Galego--Português, por Johan Soarez de Paiva1253 – Casamento do rei D. Afonso III de Portugal (separado da Condessa Matilde de Boulogne) com D. Beatriz de Guillén, filha de Alfonso X de Castela e Leão1261 – Nascimento de Dom Dinis, primeiro filho varão de D. Afonso III e D. Beatriz1263 –Tendo a Condessa Matilde falecido, o papa legitima o segundo casamento de D. Afonso III1265/1267 – Dom Dinis visita o seu avô D. Alfonso X em Sevilha, levando-lhe cavaleiros para o seu esforço de guerra. Assinatura do tratado de Badajoz, pelo qual D. Alfonso X cede a Dom Dinis a posse nominal do Algarve (conquistado e ocupado desde 1250 pelos portugueses)1278 – D. Afonso III organiza a “casa” de D. Dinis, associando-o ao governo do reino1279 – Morre D. Afonso III. D. Dinis sobe ao trono1281 – Casamento, por procuração, entre Dom Dinis e D. Isabel de Aragão, filha do rei D. Pere III1282 — D. Isabel chega a Portugal. D. Beatriz vai para Sevilha apoiar o pai, Alfonso X, na luta contra o infante D. Sancho. Dom Dinis chega a acordo com os bispos portugueses para pôr termo ao conflito que se arrastava desde 12751285 – A infanta D. Branca, irmã de D. Dinis, torna-se abadessa de Las Huelgas (Burgos). Nasce por volta deste ano o filho bas-tardo de D. Dinis, D. Pedro, futuro Conde de Barcelos1288 — D. Dinis pede a Roma que reconheça e apoie a fundação de uma Universidade em Portugal1291 – Nasce o infante D. Afonso, herdeiro da coroa1292 — D. Dinis envia cavaleiros para ajudar no cerco e con-quista de Tarifa1293 – Liberdade de comércio entre Portugal e a Inglaterra1295 — D. Dinis funda o Mosteiro de Odivelas, onde será sepul-tado. Declara guerra a Castela, que termina com a cedência a Portugal de Moura, Serpa e Mourão, e promessa de cedência de outras localidades1296 – D. Dinis ocupa Salamanca, Tordesillas e Simancas, incorporando depois no reino a comarca de Ribacôa (Castelo Rodrigo, Alfaiates, Sabugal). Combate naval entre Portugal e Castela. Adopção do Português como língua oficial da chance-laria régia1297 – Assinatura do tratado de Alcañices, que estabelece o tra-çado das fronteiras entre Portugal e Castela-Leão. Passam para o domínio português localidades na Ribacôa e também Olivença e Campo Maior, perto de Badajoz. D. Dinis faz doações às ordens militares1298 — D. Dinis presta auxílio militar ao rei de Castela1299 — D. Dinis organiza uma Capela Real no seu Palácio1300 — D. Dinis doa a cidade de Leiria à rainha D. Isabel. Exílio em Castela do infante D. Afonso. Por volta deste ano é compi-lado o cancioneiro musicado de que o “Pergaminho Sharrer” é o único testemunho1302 — Casamento do rei Fernando IV de Castela com D. Cons-tança, filha de D. Dinis1303 — D. Dinis empresta um milhão de maravedis ao rei de Castela1304 — D. Dinis arbitra o conflito entre Castela e Aragão, e tam-bém o conflito entre o rei castelhano e os pretendentes ao trono

1307 — Novo empréstimo de D. Dinis ao rei de Castela1308 — Tratado de comércio com o rei de Inglaterra1309 — D. Dinis auxilia militarmente a guerra contra Granada1311 — Nasce o primeiro neto de D. Dinis, futuro Alfonso XI de Castela e Leão1314 – D. Pedro, filho bastardo de D. Dinis, torna-se Conde de Barcelos1318 – Peregrinação de D. Dinis a Santiago de Compostela1319 — Início da guerra civil que oporá até 1324 D. Dinis e o príncipe herdeiro D. Afonso, apoiado por sectores da nobreza que contestam a política centralista do rei1321 — Aprovação papal da fundação da Ordem de Cristo, a qual, por proposta de D. Dinis, herdará os bens dos Templários1323 — D. Dinis cria uma cátedra de Música na Universidade portuguesa1324 — Tratado de paz entre D. Dinis e o príncipe herdeiro1325 — Morte de Dom Dinisc.1340-54 – D. Pedro, Conde de Barcelos, colige um Livro das Cantigas, grande colectânea da poesia galego-portuguesa, que em testamento lega a D. Alfonso XI, rei de Castela, seu sobrinho. Compila também um Livro de Linhagens e redige a Crónica Geral de Espanha de 1344, depois traduzida para castelhano

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA

HISTÓRIA José Augusto S. M. PIZARRO, D. Dinis, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005POESIAElsa GONÇALVES, “Denis, Dom”, in Giulia LANCIANI & Giu-seppe TAVANI (coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa: Caminho, 1993, pp. 206-12D. DINIS, Cancioneiro, ed. Nuno Júdice, Lisboa: Teorema, 1998 MÚSICAManuel Pedro FERREIRA, Cantus Coronatus — Sete cantigas d’El­­Rei Dom Dinis/ Seven Cantigas by King Dinis of Portugal, Kassel: Reichenberger, 2005Manuel Pedro FERREIRA, Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento, 2 vols. e 2 Cds, Lisboa: Arte das Musas / Cesem, 2008Manuel Pedro FERREIRA, Aspectos da Música Medieval no Oci­dente Peninsular. Vol. 1: Música palaciana, Lisboa: Imprensa Nacional/ Fundação Calouste Gulbenkian), 2009

DISCOGRAFIA

As sete cantigas de Dom Dinis serão de seguida referidas pelo seu número de ordem no “Pergaminho Sharrer”, que conserva a sua música:

Cantiga I: “Pois que vos Deus, amigo, quer guisar” Cantiga II: “A tal estado m’adusse, senhor”Cantiga III: “O que vos nunca cuidei a dizer”Cantiga IV: “Que mui gran prazer que eu ei, senhor”Cantiga V: “Senhor fremosa, non poss’eu osmar”Cantiga VI: “Non sei como me salv’ a mia senhor”Cantiga VII: “Quix ben, amigos, e quer’ e querrei”

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Paul Hillier, Margriet Tindemans, Theatre of Voices: Cantigas from the Court of Dom Dinis. Harmonia Mundi/France, HMU 907129 (1995) | 69’ 35’’

Paul Hillier fez a estreia moderna, integral, das sete cantigas de Dom Dinis, na Califórnia, em Fevereiro de 1994, e gravou-as na sequência desse concerto; baseou-se numa edição preliminar de M. P. Ferreira. O disco inclui ainda duas Cantigas de Santa Maria (198 e 327) e cinco poemas galego-portugueses cantados sobre melodias retiradas dessa mesma colecção. Estas canções, que contêm uma boa dose de lirismo e de humor, constituem a primeira parte do CD. As sete cantigas de D. Dinis aparecem de seguida, agrupadas, sendo unicamente separadas por prelú-dios instrumentais algo longos (entre c. 30’’ e 1’ 30’’), compos-tos por Margriet Tindemans. Domina a voz solo de Hillier. Dado que tanto as cantigas como os prelúdios usam material melódico similar, a sequência gera alguma monotonia. A interpretação tem como principais qualidades a sobriedade e a total adesão ao sentido do texto poético, o que leva a um fraseado largo, nos limites da capacidade respiratória do cantor. As versões das cantigas I, II, III e V são especialmente conseguidas; Hillier está menos à-vontade nas cantigas IV, VI e VII; aliás, a reconstrução melódica em que se baseia na cantiga IV foi posteriormente modificada pelo editor.

Vozes Alfonsinas, dir. Manuel Pedro Ferreira: O Tempo dos Trovadores/ The Time of the Troubadours, Strauss/PortugalSom, SP 4287 (2000) | 69’ 24’’

Este disco, gravado em 1999, inclui, a par de duas cantigas de D. Dinis (I e VII) seis Cantigas de Santa Maria (narrando milagres ocorridos em Portugal), alguns contrafacta galego--portugueses e três canções árabo-andaluzas. A opção, relativa-mente a D. Dinis, foi de usar vozes a solo (o tenor Arménio Granjo interpreta a cantiga I, o barítono Luís Rodrigues, a VII), embora se recorra a uma nota-pedal para destacar o refrão da primeira peça. As edições usadas foram as de M. P. Ferreira, a quem coube igualmente a direcção artística. Procurou-se sublinhar a continuidade do texto, sem deixar de explorar os detalhes retóricos da linha melódica; se na cantiga I o resul-tado é comparável à gravação de Hillier, na cantiga VII a adesão à ironia do poema resulta numa prestação mais convincente. Este CD inclui ainda a cantiga de D. Dinis “Senhor, pois me non queredes” cantada sobre uma melodia do trovador francês Conon de Béthune.

Paulina Ceremuzynska: Cantigas de amor e de amigo, Clave Records 3015-CD (2004) | 51’ 41’’

Não tendo acesso à edição crítica deste repertório, em 2004 ainda inédita, e não se deixando intimidar pelo estado lacunoso do manuscrito, Paula Ceremuzynska e a harpista Zofia Dowgiallo procederam a reconstruções hipotéticas de algumas passagens de modo a chegar a uma edição cantável. Porém, baseando-se prova-velmente em fotografias que reflectem a degradação do perga-minho original (na sequência de uma desastrada tentativa de restauro), não conseguiram evitar pequenos erros de leitura e, devido ao desaparecimento de uma clave de dó, uma fantasiosa escala musical na cantiga III. O seu trabalho é, apesar de tudo, criterioso, e a opção por uma forma musical contínua na cantiga II (do tipo <AB>CD/E em vez de <AB>AB/C, proposto por Ferreira) merece atenção. Neste CD de 2004 a voz é geralmente acompa-nhada por uma harpa, às vezes substituída por alaúde ou fídula, ou reforçada por percussão. A interpretação valoriza o detalhe motívico e o diálogo com o instrumento acompanhante, produ-zindo uma textura densa, decorativa, de agradável audição; às vezes perde-se direccionalidade melódica, como na cantiga I, mas isso é parcialmente compensado pela energia rítmica e pela limpi-dez vocal. As “fiindas” dos poemas são devidamente marcadas. A dicção é clara e adequada, se bem que desnecessariamente arcaizante na realização do “c”. As cantigas V e VI são executadas de forma especialmente convincente, o mesmo sucedendo, apesar da edição desadequada, com a cantiga III. A rara sensibilidade de Paulina Ceremuzynska está ainda patente na excelente inter-pretação de quatro cantigas d’amigo de Martin Codax (I-II-V-VII), que ombreia com as melhores gravações disponíveis, quando não as supera. Em complemento, duas cantigas adicionais de D. Dinis (“En grave dia” e “Amigo, queredes vos ir”) são-nos propostas com uma melodia nova e outra do trovador occitano Cadenet.

Vozes Alfonsinas, dir. Manuel Pedro Ferreira: Antologia sonora — Dos Visigodos a Dom Sebastião, in Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento, Lisboa: Arte das Musas / Cesem, 2008 | MU 0104 (2008) | 66’ 00’’

Entre as composições incluídas neste disco antológico, contam--se duas novas gravações das cantigas I e IV do Pergaminho Sharrer: a primeira com diferente solista do disco anterior (Gonçalo Pinto Gonçalves), e acompanhamento de alaúde (Nuno Torka Miranda), beneficiando do à-vontade interpre-tativo ganho através da repetida apresentação em concerto; a segunda, a voz solo, segundo a edição definitiva de M. P. Fer-reira (mesmo cantor). O volume II da Antologia em que se integra este CD oferece ainda uma edição revista da cantiga VI. Esta última gravação é a única das quatro aqui referidas que se encontra ainda disponível comercialmente, através da wook.pt.

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évora, 1991. numa das minhas demandas por peças de com-positores portugueses do século dezoito, passíveis de serem incluídas num programa de concerto dedicado à Natividade, resolvi estudar um conjunto de responsórios destinados à Festa dos Reis que se encontram guardados na Biblioteca Pública de Évora: Magi Veniunt, Omnes Saba, Reges Tharsis, Iluminare, In Columbae specie, Hodie in Jordane. Algumas destas peças têm compositor identificado, outras não. Porém, todas se destinam a um conjunto de vozes agudas, violinos e órgão. foi nesta circunstância que tive o primeiro contacto com fontes musicais de obras de David Perez, podendo constatar na execução prática a espessura da sua arte enquanto compositor, e, posteriormente, o alcance que teve a sua vinda para Lisboa, em 1752, na actividade musical do país.david perez nasceu em nápoles em 1711, sendo filho de Giovanni Perez e Rosalina Serrari. Em 1722, ingressou no Conservatório de Santa Maria do Loreto, onde teve a sua formação de músico prático e compositor, tendo estudado canto, contraponto e cravo com Francesco Mancini e Giovanni Veneziano, e violino, certa-mente, com Francesco Barbella — embora, posteriormente, seja referido que terá sido discípulo de Leonardo Vinci —. Segundo o célebre viajante inglês, Charles Burney, Perez era um violi-nisita extraordinário: “li suonatore dificilíssimo”. Característica que pude constatar em várias obras suas, pela dificuldade de execução das partes destinadas a este instrumento.

logo após ter completado a sua formação, em 1733, terá entrado ao serviço do Príncipe de Aragona, Diego Naselli, com o qual desenvolveu uma relação de profunda amizade e admira-ção. Prova disso mesmo é a pensão vitalícia que lhe foi atribuída por este monarca siciliano, mesmo após David Perez ter saído definitivamente do seu serviço, em 1748; é dado com provável por Maurício Dottori, musicólogo que estudou extensivamente a sua obra, que Perez, num gesto de homenagem ao seu patrono, terá identificado várias obras da sua autoria com o nome de Egidio Lasnel, anagrama de Diego Naselli.a relação profissional com naselli ter-se-á iniciado em 1734, ano do qual datam as suas primeiras cantatas latinas llium palladio astu subducto expugnatum e Palladium, executadas no colégio dos jesuítas de Palermo. Em 1738 é nomeado vice-mestre da Real Capela da Capela Palatina desta cidade, e, em 1739, ascende ao cargo de mestre de capela, tendo a sua reputação profissional completamente consolidada a partir desta altura.aproximadamente até metade do período em que perma-neceu ao serviço da capela do Príncipe de Aragona, em 1744, David Perez terá escrito essencialmente música sacra e algumas serenatas avulsas. Deste período é uma missa para dois coros e grande orquestra, datada de 24 de Fevereiro de 1740, que, mais tarde, em 1761, viria a refazer por ocasião do baptizado do Príncipe da Beira e do Brasil, filho de D. Maria I. É também desta época a sua ópera Il Siroe, re di Persia, estreada a 4 de Novem-bro de 1740 no Teatro de San Carlo de Nápoles, onde actuaram os castrados Gaetano Majorano, conhecido por Caffarelli, e Giovanni Manzuoli. Esta viria a ser a ópera com que se estreou na corte portuguesa, a 12 de Setembro de 1752.

JOÃO PAULO JANEIRO | TEXTO

David Perez De Nápoles a Lisboa

efeméride

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a sua primeira obra do género operático foi, no entanto, La nemica amante, a qual foi escrita para o aniversário do Rei Carlos I em 1735, e apresentada nos jardins do palácio real de Nápoles e no Teatro de São Bartolomeu desta cidade. No libreto, o empresário do teatro refere-se a David Perez e a Giovanni Battista Pergolesi como “dei buoni virtuosi di questa città”.posteriormente, veio a desenvolver uma carreira brilhante como compositor de música dramática em toda a Itália e também na Áustria, vindo a competir em provas públicas com Nicolò Jommelli pela posição de mestre de capela do Vaticano no ano de 1749. esta contenda resultou a favor de jommelli, mas um colega, Girolamo Chiti, mestre de capela de San Giovanni in Laterano, com estatuto respeitado no meio, referencia-o numa carta ao Padre Martini como muito mais competente que Jomelli: “compõe, canta e toca como um anjo”. Porém, assinala um traço de persona-lidade: o hipocondrismo, que mais tarde viria a ter razões para desenvolver, em Lisboa, na sequência do terramoto de 1755.é no contexto de uma tournée de sucesso enquanto compo-sitor de ópera que, em Abril ou Maio de 1752, em Milão, Perez é convidado a servir na Corte Portuguesa, sendo-lhe oferecido o posto de Mestre de Música da Princesa do Brasil (futura D. Maria I), Mestre de Capela no Seminário da Patriarcal, e Mestre da Música da Corte, tudo a troco do salário absolu-tamente extraordinário de 2.000$000 reis (2 contos de reis). A título comparativo, refira-se que o salário de um músico per-tencente à Orquestra da Real Câmara, em 1762, oscilava entre 260$450 e 345$600 réis. conjuntamente com o compositor, veio também na altura, e posteriormente, uma plêiade de cantores famosos, a maioria dos quais de origem italiana, além de técnicos, encenadores e instrumentistas, que permitiriam incrementar e consolidar decisivamente a implantação da ópera italiana em Portugal. David Perez podia assim contar com os melhores meios possí-veis para a execução das suas obras, tanto do ponto de vista musical, como do teatral, o que terá contribuído também para a sua decisão de permanecer em Lisboa até ao fim da sua vida. entre os cantores contratados para a Corte de Lisboa conta-vam-se verdadeiras estrelas do universo operático europeu: Gizziello, Manzuoli, Caffarelli, Raaf, Elisi, Puzzi, Reyna, entre outros. Na primeira ópera de Perez apresentada a 12 de Setem-bro de 1752, no Paço da Ribeira, actuou já o famoso Gizziello, contratado em Milão por quantias, consideraram muitos, abso-lutamente exorbitantes. Seguiram-se as récitas de Demofonte, Olimpiade e L’eroe cinese, em 1753, Adriano in Siria, L’ipermestra, em 1754, e Allessandro nell’ India a 31 de Março de 1755, por oca-sião de inauguração da sumptuosa Casa da Ópera, designada por Ópera do Tejo, considerada logo uma das maiores da Europa (mas que, malogradamente, viria a ser destruída sete meses depois, aquando do terramoto). Deste espectáculo há memórias impressionantes, onde se destaca o aparecimento em palco de um conjunto de cavalos, representando uma falange de Mace-dónios. Além destas óperas, várias outras foram apresentadas no Teatro de Salvaterra.

esta política de apoio à música profana, levada a cabo pela Coroa, era expressão do esforço de afirmação real pela activi-dade operática, por contraste com o favorecimento da música religiosa protagonizado por D. João V. Paradoxalmente, contra-riando todos os planos de reactivação da actividade operática em Portugal, esta diminuiu significativamente com o terramoto, e muitos dos estrangeiros que tinham vindo abandonaram o país, vítimas do pavor que o cataclismo produziu. Caffarelli, que tinha sido contratado em 1755, participou em quatro óperas e partiu para Madrid, onde estava Farinelli. o contexto social lisboeta era pesado, alimentado por vários profetas da desgraça, entre os quais o jesuíta Gabriel Malagrida, e aproveitado pelos meios clericais para a expansão do senti-mento de culpa pela procura do luxo e da magnificência no culto de actividades mais mundanas, como a ópera italiana, em detri-mento da música religiosa mais conservadora.este ambiente pesado que lisboa e o país carregava no pós- -terramoto, e que culminou com o desaparecimento de dezenas de milhares de pessoas, bem como de um vasto património onde se inclui a famosa Livraria Real, resultou numa mudança signi-ficativa da actividade musical. Recentrada novamente na esfera do religioso, surge marcada por um pietismo e misticismo particulares. são estas também algumas das qualidades que marcaram a música fúnebre que se executava em Lisboa. Neste sentido, o célebre viajante inglês William Beckford, que passou por Portugal em finais do século dezoito, relata-nos no seu diário a experiência de audição das famosas matinas de David Perez

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e da Missa de Requiem de Jommelli: “Fui aos mártires para ouvir as famosas matinas de Perez. A música, majestosa e comovedora, para além de toda a descrição, a esplêndida decoração da igreja fora substituída por paramentos de luto, o coro forrado de preto, os altares velados, o altar­mor coberto de panejamentos púrpura e ouro, e no meio do coro catafalso rodeado de castiçais e altas velas. […] Primeiro um silêncio tremendo e depois o solene ofício dos finados. Os músicos até empalidecem quando cantam Timor mortis, etc. […] Depois do Requiem, a Missa Solene de Jommelli em comemoração dos defuntos. Fecha com o Libera me, Domine. Eu tremia todo e pouco faltou para chorar. […] Tão majestosa e comovedora música foi coisa que nunca ouvi e que talvez nunca mais ouça, porque a chama do entusiasmo religioso está a apagar­se em quase toda a Europa e ameaça extinguir­se totalmente dentro de poucos anos. Como ainda arde em Lisboa, consegue produzir, em nossos dias, a mais impres­sionante expressão musical. Todas as figuras da orquestra parecem compenetradas do espírito daquelas terríveis palavras que Perez e Jommelli musicaram com uma tão tremenda sublimidade. Não só a música, até o sério porte dos executantes e dos sacerdotes que ofi­ciavam, bem como, na verdade, de toda a congregação, era de molde a transmitir um solene e religioso do mundo além­campa.”.este expressivo testemunho da época relativo à data de 26 de Novembro de 1787 reporta-se a uma das circunstâncias em que o famoso Matuttino de Morti foi executado, no contexto das cerimónias da Irmandade de Santa Cecília de Lisboa. O texto traduz de um modo extremamente vivo a experiência auditiva e o contexto de execução, pleno de rituais e de teatralidade, em que as grandes celebrações religiosas da capital se encontravam mergulhadas.no mesmo ano em que perez foi convidado a integrar a Acade-mia de Música Antiga de Londres, foi feita uma edição impressa desta obra naquela cidade, em 1774, apoiada por um conjunto de subscritores notável. Trata-se de uma das mais belas edições da época, e é a única obra de sua autoria que Perez viu impressa. depois do terramoto, acompanhou a deslocação da Corte para a Ajuda, vindo a residir bastante próximo da Real Barraca, num prédio que faz esquina com a Rua do Jardim Botânico, hoje o Ajuda-Clube. Nos restantes vinte e três anos da sua vida escre-veu quase exclusivamente música religiosa, numa produção para quase todos os contextos litúrgicos, em que a música polifónica poderia ter um papel relevante. Cerca de cento e quinze obras litúrgicas, dentre as quais missas, antífonas, litanias, salmos, responsórios, lamentações, hinos, motetes, oratórias e sequên-cias, sendo a maior parte delas para solistas, coro e orquestra, excepto se se destinavam à Patriarcal. Predominam as peças dedicadas à Virgem Maria, facto ao qual não será alheio o espe-cial apreço pelo culto mariano existente em Portugal. Além

de material pedagógico para o ensino musical das princesas — solfeggi —, e alguma música instrumental, neste período, Perez escreveu apenas cinco óperas e algumas serenatas. Nesta fase final da sua vida foi também professor de canto de Luísa Aguiar, que mais tarde veio a ser conhecida por Luísa Todi. sofreu de pleuresia, sendo que, no ano da sua morte, em 1778, D. Maria I fê-lo Cavaleiro da Ordem de Cristo. Faleceu no dia 30 de Outubro por volta do meio-dia, após ter sido entregue aos cuidados dos frades Capuchinhos Italianos, dos quais recebeu a Extrema-Unção. A rainha ordenou um funeral com a devida pompa, com todas as despesas pagas pela Coroa, durante o qual terá sido executado o Matuttino de morti, pelos músicos da Capela Real.a situação privilegiada que David Perez usufruiu em Portugal permitiu-lhe trilhar um caminho num certo sentido mais indi-vidual, livre dos constrangimentos do meio musical italiano, notando-se na sua escrita uma preferência crescente pelo pathos em detrimento da exibição superficial da bravura. O ritmo har-mónico das suas obras tende a ser mais lento, e grande parte da expressão do sentido do texto depende essencialmente do tra-tamento motívico e da orquestração, verificando-se a procura de uma expressão mais intuitiva, o que o afasta de algumas das convenções da retórica barroca. a sua produção musical é extensa tanto no domínio da ópera como no da música religiosa, e em ambos os géneros se encon-tram composições extraordinárias, das quais o Matuttino de morti é, sem dúvida, um dos exemplos mais notáveis.a sua obra religiosa foi estimada e copiada um pouco por toda a Europa. Em Portugal, encontrei peças de David Perez em quase todos os arquivos musicais que visitei, sejam eles públi-cos ou privados, estejam elas catalogadas ou não. Mas, neste aspecto, estamos ainda numa fase demasiado filológica da musi-cologia para termos uma imagem global da produção musical dos compositores activos em Portugal, no século dezoito. Rotei-ros, inventários e catálogos dos arquivos musicais nacionais continuam por concluir e difundir, impedindo que a relevância da nossa História da Música tenha o seu devido alcance no con-texto europeu.vinte anos depois de ter transcrito os responsórios dos Reis da Biblioteca Pública de Évora, e após ter estudado a escrita de Francisco António de Almeida, posso agora avançar com a hipó-tese de que o responsório Hodie in Jordane, que supus ser, na altura, de David Perez, se trate afinal de uma obra de Almeida. por todo o trabalho que falta fazer em Portugal, no âmbito da musicologia, é que as iniciativas que contribuam para o estudo, a difusão e o conhecimento do nosso património musical devem merecer o nosso total apoio.

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a geração de jorge peixinho operou uma absoluta ruptura no meio musical português, tanto estética como de atitudes, ante uma sociedade fechada, conservadora e preconceituosa. Rup-tura ainda mais notável quando estávamos em plena ditadura e a travar uma guerra colonial. Que o primeiro campeão da sua música e responsável pela estreia das suas primeiras obras, durante a década de sessenta, tenha sido Joly Braga Santos, compositor que se encontrava nos antípodas estéticos da van-guarda, parece, à primeira vista, improvável.joly braga santos e jorge peixinho conheceram-se em Roma em 1959. Peixinho acabara de chegar com uma bolsa da Gul-benkian. Ia estudar com Boris Porena e Godoffredo Petrassi, também professor do meu Pai. Joly e a mulher viviam então em Roma, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Conhece-ram-se no Conservatório e rapidamente se tornaram amigos, apesar da diferença de idades entre ambos. O meu Pai admirava no Jorge a sua sólida formação musical, óbvio talento e inteli-gência artística, e empenho absoluto e apaixonado na composi-ção, notáveis num rapaz tão novo. E o Jorge, um rapaz um pouco solitário, pela primeira vez no estrangeiro, deve ter-se sentido atraído pela personalidade calorosa e proverbial generosidade do meu Pai, ajudado pelo temperamento acolhedor da mulher. o peixinho tinha terminado o conservatório em Lisboa

onde fora um aluno brilhante. Uma vez em Itália, rapidamente aderiu às correntes mais avançadas da música da época. Mas isso não impediu que se entendesse com o meu Pai desde o iní-cio. Apesar das diferentes personalidades e escolhas estéticas, tinham em comum a paixão pela música, o empenho numa car-reira profissional na composição, a integridade artística e as mesmas atitudes perante o meio cultural português da época.as bolsas eram curtas, sobretudo a de Joly Braga Santos, que tinha a mulher e uma filha para sustentar. E ambos preferiam gastar dinheiro em livros, partituras e bilhetes para os concer-tos e para a ópera. jorge peixinho estava alojado num pequeno quarto e ia comer fora todos os dias. Um dia, a minha Mãe sugeriu que o Jorge colaborasse nas compras da mercearia e fosse lá comer a casa, em vez de gastar o dinheiro no restaurante. Foi assim que o conheci, tinha pouco mais de um ano de idade e, segundo a minha Mãe, eu já dizia tudo.criou-se entre os três uma enorme amizade, fundamentada não apenas nos interesses comuns a estudantes de música numa cidade estrangeira, mas também na possibilidade da troca de impressões e ideias sobre arte - todas as artes e não apenas a música -, que o convívio familiar quase diário proporcionava. Passeavam muito por aquela maravilhosa cidade de Roma, iam aos concertos, aos museus, ao cinema, e tudo era pretexto para conversas e aprendizagem.o peixinho era, como todos sabem, um excelente pianista. Poderia ter seguido uma carreira profissional se não tivesse escolhido

PIEDADE BRAGA SANTOS | UM TESTEMUNHO

Joly Braga SantosJorge PeixinhoUma amizade improvável?

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a Composição. Ajudou muito a minha Mãe nos seus estudos no Conservatório, onde estava inscrita nas classes de Canto e Piano. Acompanhava-a frequentemente ao piano durante os ensaios, dando sugestões musicais utilíssimas e deu-lhe uma ajuda pre-ciosa na preparação das aulas e dos exames. em 1961, quando JBS foi convidado para dirigir um concerto para a RAI, com a Orquestra Scarlatti de Nápoles, pensou ime-diatamente em incluir no programa obras de dois talentos emergentes da nova geração de compositores portugueses: Álvaro Cassuto e, claro, Jorge Peixinho. E foi assim que aconte-ceu a primeira estreia internacional destes dois músicos com as obras Variações para Orquestra de Cassuto e Políptico 1960 de Pei-xinho, em primeiras audições absolutas. Uma obra sua, outra de Fernando Lopes-Graça e peças dos séculos XVII e XVIII - o auge da polifonia portuguesa - compunham o resto do programa. o diálogo entre as antigas e novas gerações, a natural evolu-ção histórica das estéticas esteve sempre presente, era mesmo intrínseca na atitude mental de JBS perante a música e os seus criadores. Fora essa a lição e o exemplo do Mestre, Luís de Freitas Branco, assimilada pelos seus alunos, e que compositores como Fernando Lopes-Graça, Joly e Artur Santos sempre seguiram.não me recordo desses anos em itália. Era muito pequena. Mas fui testemunha de uma amizade ímpar e singular que perdurou até à morte precoce de JBS e continuou através da mulher e das filhas. Eu e a minha irmã adorávamos o Peixinho. Era uma pes-soa cheia de qualidades humanas e tratava-nos com a maior das ternuras.

voltámos para portugal no verão de 1961. A minha irmã nasceu a 15 de Agosto. O meu Pai não voltou para o Porto. Tinha conseguido um modesto lugar na Rádio em Lisboa, como maes-tro assistente, posição que tinha a grande vantagem de lhe dei-xar tempo livre para compor. Continuava, porém, a dirigir regu-larmente a Orquestra Sinfónica do Porto, que fora entretanto integrada na Emissora Nacional. o peixinho tinha ido estudar composição para a Alemanha, primeiro para Darmstadt e depois para Basileia, na Suíça, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Voltou em 62 e aterrou lá em casa cheio de novidades, desejoso de retomar as conversas com o meu Pai e de lhe mostrar as obras que tinha escrito. Foi uma alegria! Experimentou logo falar comigo em italiano, para ver se eu me tinha esquecido... “Não, não”, exclamou a minha Mãe, “continuamos a falar italiano cá em casa!”. O convívio regu-lar foi retomado, e até reforçado, pois, no ano seguinte, sem conseguir mais adiamentos, o Jorge foi chamado para fazer a tropa. Destacado para a recruta em Tancos, podia vir a Lisboa ao fim-de-semana. Chegava lá a casa para jantar todas as sextas--feiras, cansado, esfomeado, com a farda suja e aquele cheiro a quartel, que ainda hoje recordo. Mas tinha os bolsos cheios de rebuçados que nos trazia da messe! A minha Mãe dava-lhe rapidamente uma toalha e depois de uma passagem pela casa de banho, mais composto e sem a farda, sentava-se no sofá com um suspiro de satisfação. Estava novamente num ambiente caloroso e familiar. A tropa foi um sofrimento para o pobre Jorge! Sabia-lhe bem brincar connosco, pegar-nos ao colo,

Jorge Peixinho e a sua namorada, à esquerda, com Joly Braga Santos, à direita

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tocar-nos canções no velho piano. Até a minha irmã, uma criança tímida e assustadiça, não resistia à bondade e ternura com que o Jorge nos tratava. Tornava-se mais faladora na sua presença e frequentemente lhe subia para o colo, para espanto inicial dos meus Pais. assistir às conversas entre todos à mesa foi uma aprendiza-gem fascinante, que ainda hoje recordo com a maior das sauda-des. O Peixinho ia frequentemente para o velho piano de casa dos meus avós, de armação em madeira e com um vago som a cravo – na época era o que havia lá em casa - ler as partituras do meu Pai, e as dele. E quando, em 68 ou 69, os meus Pais pude-ram finalmente comprar um piano novo, ninguém ficou mais contente que o Peixinho. Olhou para o instrumento entusias-mado - ele podia lá resistir a um piano -, sentou-se e começou a tocar Bach. Eu fiquei de boca aberta! Posso dizer que foi ele que me ensinou a gostar de Bach. Um intérprete que é também com-positor tem uma noção muito mais aguda da dialéctica perma-nente entre harmonia e contraponto, e a maneira como Peixinho tocava tornava tudo transparente e audível. Ouvir Bach é um pra-zer emocional, mas também intelectual, se nos dermos ao traba-lho de abrir bem os ouvidos e seguir o diálogo extraordinário que nos é oferecido...a colaboração musical entre ambos continuou durante toda a década de sessenta. Em 1963, JBS estreou, com a Orquestra Sinfónica do Porto, a obra Políptico 1960 que executara em Nápo-les em 61.em 1965, num concerto da juventude musical portuguesa, foi a vez de Sobreposições, integrada num concerto de música de vanguarda com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no qual foram executadas, ainda, obras de Penderecky, Cristobal Halffter e Álvaro Cassuto.1965 foi também o ano do happening na Galeria Civilização, acontecimento que pôs em polvorosa a elite cultural lisboeta. Com organização do Jorge e colaboração de poetas e outros músicos, o evento entrou na história familiar por via da requisi-ção, pelo próprio, dos nossos instrumentos musicais de brin-car. Umas marimbas, uma pandeireta, várias caixas de música, uma flauta de plástico comprada na Feira Popular... Todos, aliás, já bastante gastos pelo uso. A minha Mãe recolheu-os cuidado-samente num saco para lhos entregar. Aquilo intrigou-nos. Para que fim queria o Peixinho os nossos velhos brinquedos? Dias depois, quando apareceu para jantar, como de costume, perguntei-lhe. O Peixinho lá me explicou como pôde. Tendo entendido a questão, perguntei muito depressa: “Mas se vai usar os meus brinquedos eu não posso assistir?“. “Claro que sim”, respondeu ele, cortando pela raiz a recusa que a minha Mãe tinha debaixo da língua. Felizmente, nessa noite, não havia ensaios – a minha Mãe na altura ainda cantava e tinha uma vida profissional atarefada – pelo que pôde acompanhar-me ao famoso happening. A Galeria estava cheia e acabámos sentadas no chão a um canto. Mas divertimo-nos imenso!uma tarde, o peixinho apareceu lá em casa com uma parti-tura nova. Estávamos em finais dos anos sessenta porque já lá estava em casa o piano novo. Eu espreitei mas não vi propria-mente pautas. Eram mais uns desenhos. O meu Pai colocou a partitura no piano e pôs-se a analisar aquilo, tendo o cuidado de decifrar primeiro o glossário inicial da nova notação. Depois de apreciar atentamente a obra durante longos minutos, perante a ansiedade crescente do amigo, pronunciou com aquela sua voz pausada: “Sabes, estou convencido que tudo isto podia ser escrito com recurso à notação convencional...”. O Peixinho, interdito, reagiu: “Mas não ficava tão bonito! Não achas que é uma linda par­

titura?”. “Pois”, respondeu o meu Pai, “mas tu fazes música, não artes plásticas ou desenho! Queres ou não que a obra seja tocada? É que vais perder uma semana de ensaios antes que os músicos deci­frem isto!”. Era, como sempre, o conselho do músico eminente-mente prático que o meu Pai era. A sua proverbial distracção referia-se aos pormenores da vida diária, concentrado que estava no seu mundo musical interior. Mas a expressão desapontada do Peixinho comoveu a minha Mãe, que sugeriu: “Deixa a partitura assim, é um belíssimo manuscrito. Mas faz outra, e partes de orquestra para os músicos, com a notação convencional, se queres que a obra se toque. Não te lembras do trabalhão que nos deu apagar, antes do primeiro ensaio, os comentários sarcás­ticos e ordinários dos músicos, no material de orquestra da obra do Penderecky que veio de Espanha?”...em 1970 ambos participam, com Luís Felipe Pires, no IV Curso de iniciação à Música Contemporânea, organizado pela Funda-ção Calouste Gulbenkian, precursor da Semana de Música Con-temporânea que esta instituição patrocinaria uns anos mais tarde. É também o ano da fundação do Grupo de Música Con-temporânea. E, ainda, do início da reforma do ensino do Con-servatório em que tanto Jorge Peixinho, como Joly, João de Frei-tas Branco e outros, participaram entusiasticamente. O meu Pai esperara por esta reforma quarenta anos! Pôde finalmente transformar o ensino da Educação Musical e da Composição, que vinham do princípio do século, e reintroduzir a cadeira de Análise Musical, que fora do Mestre Luís de Freitas Branco e que era agora a sua. Foram tempos de muito trabalho para todos, mas também tempos de mudança e de muitas esperanças. E uma época de colaboração activa e prática entre Jorge Peixinho e Joly, unidos por um mesmo ideal, cimentado em conversas e troca de ideias ao longo de doze anos de uma amizade sem falhas.não falavam de política. O meu Pai sabia das convicções ideológicas do Peixinho e respeitava-as. E Peixinho tinha uma rara compreensão das razões muito íntimas e pessoais que leva-ram o meu Pai a recusar-se a tomar posições públicas sobre o regime, apesar de o detestar. Prova do seu carácter muito especial foi a lealdade que sempre demonstrou para com o amigo, mesmo em momentos difíceis. Em 1970, após a estreia da Trilogia das Barcas na Gulbenkian, surgiram diversas críticas mais ou menos verrinosas na imprensa. O Peixinho, que assis-tira ao espectáculo e que, emocionado, felicitara entusiasti-camente o meu Pai no final, apareceu lá em casa no dia seguinte, furioso com o que os críticos diziam. Foi o meu Pai que o acalmou. “Não ligues! Isso não tem importância nenhuma!” – disse-lhe. “O que tem importância é que foi um grande sucesso de público e penso que é a minha melhor obra até agora. Já estou habituado aos críticos e não ligo nenhuma.”após a formação do grupo de música contemporânea, Peixinho pediu ao meu Pai, por diversas vezes, que escrevesse uma peça. Este ainda iniciou um Epitáfio a Bruno Maderna, que entretanto falecera, mas, por razões desconhecidas, não chegou a terminar a obra. Só em 1988, o ano fatídico da sua morte, lhe surgiu uma ideia e uma oportunidade. Desde o início dos anos oitenta que, por força de problemas de visão, escrevia sobretudo música de câmara. Depois da leitura de um poema de António Machado, poeta castelhano que muito apreciava, escreveu Aquella tarde, para soprano ou tenor e conjunto orquestral. O Peixinho ficou radiante. A obra era linda! Foi estreada em Fevereiro desse ano, nos ”Encontros” da Gulbenkian. Escassos meses depois, a 18 de Julho, falecia Joly Braga Santos. O seu desaparecimento colocou um ponto final numa das amizades mais singulares do século XX português.

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a vasta produção composicional de Fernando Lopes-Graça apresenta cumeeiras que longe estão de um debruçamento mais expandido. Livros e artigos competentes, edições que estão a merecer o acompanhamento de equipas especializadas, grava-ções a resgatar a cada ano criações que causam admiração junto do público, pela feitura e interpretação, são factores que impul-sionam homeopaticamente o conhecimento de um vasto manancial, certamente um dos mais expressivos corpus da segunda metade do século XX. Melhor seria a divulgação se alguns dos nomes mais ventilados da interpretação portuguesa no Exterior se propusessem a um mínimo debruçar. Hélas, isso basicamente não acontece.as consultas aos catálogos da obra de Fernando Lopes--Graça1, levaram-me ao interesse por Canto de Amor e de Morte (1961) em seu original para piano solo e suas duas versões para quarteto de câmara e piano (1961) e para orquestra (1962). Soli-citei cópias a Romeu Pinto da Silva, responsável pela funda-mental Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes­Graça, e que tem o mérito de colher, durante anos de convívio, inten-ções do mestre tomarense. Gentilmente me enviou reproduções fotocopiadas dos três manuscritos em questão. Considere-se inicialmente que Lopes-Graça, ao realizar as duas versões de Canto de Amor e Morte para piano, já as deveria ter em mente no sentido de expandir a criação essencial. Ter abandonado o manuscrito original em sua configuração básica, a admitir rasu-ras e palavras concernentes às correcções que deveriam ser fei-tas, anotar com firmeza quantidade abundante de dedilhados em segmentos precisos, a contrapor uma ainda provável indeci-são no que tange outras indicações, teriam levado Lopes-Graça a entender Canto de Amor e de Morte como uma obra que ultra-passaria, em sua visão pessoal macroscópica, os limites do piano. As inserções, na página de rosto do original para piano, das palavras “inutilizar” e da frase “há versão de câmara e versão

de orquestra”, com caligrafia hesitante – tardia? – fariam supor que o autor já estivesse satisfeito com a expansão, não retor-nando ao material primeiro. a leitura do manuscrito de Canto de Amor e de Morte para piano (ex. 1), primeiro momento do pensar criativo do autor vertido para o papel pautado, trouxe nessa vestimenta inicial uma série de problemas. As rasuras tornaram-se menos importantes do que o termo “corrigir” escrito pelo mestre de Tomar em tantos segmentos. As notas colocadas no pentagrama, no jorrar da criação, inúmeras vezes inseridas de maneira a possibilitar a dúvida, a ausência de muitos sinais referentes à agógica, dinâ-mica e articulação – presentes nas versões –, igualmente a sus-citar outros questionamentos, tornaram imperativo o coteja-mento desse primeiro impulso com os manuscritos copiados cuidadosamente por Lopes-Graça para as versões adequada-mente transcritas e aprovadas para serem executadas. Sob outro aspecto, concernente a uma das características da anima, as indicações metronómicas da versão camerística serviram de orientação quando há ausência dessa marcação no original. Seria imensa, contudo, a possibilidade decorrente do som do quarteto e dos instrumentos de orquestra, que faz entender a magia do manuscrito original, momento em que ideias “ampli-ficadas” já se mostravam subjacentes. Só após pormenorizar esses aspectos fulcrais da leitura foi possível verificar que Canto... está absolutamente completo, a não faltar rigorosa-mente nada essencial. A diferença de cerca de vinte compassos entre o original para piano e as versões conhecidas seria conse-quência de determinados prolongamentos sonoros existentes nas visões posteriores. Sob égide outra, já prefigura o original todos os anseios timbrísticos que vieram a partir da instrumen-tação. Pode-se entender o “orquestral” em tantas intenções no Canto... primeiro. Essa assertiva não apenas dimensionaria uma visão abstracta não desprovida de emoção, mas também a longa

Um novo livro a merecer a nossa atenção, Impressões sobre

a Música Portuguesa, acaba de ser editado pela Imprensa da

Universidade de Coimbra. O seu autor, o ilustre pianista

José Eduardo Martins, surpreende-nos pela diversidade

e premência dos seus textos, que percorrem a música

portuguesa do barroco à contemporaneidade, abordando-se

a interpretação, a análise, a pianística, os aspectos da vida

musical, assim como figuras relevantes da música em Portugal

que o pianista conheceu ao longo de mais de cinquenta anos.

Disso exemplo é o seguinte artigo, gentilmente cedido para

publicação na glosas.

“Canto...” Primeirode Fernando Lopes-GraçaJosé Eduardo Martins

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permanência nas baixas intensidades, evidenciando mais agu-damente as dissonâncias mínimas e os contrastes dinâmicos. A não dinamização prolongada em segmentos longos e lentos de Canto... implicaria um cuidado diferenciado quanto à interpre-tação. O todo da criação primeva indicaria sensível percepção do equilíbrio a produzir em Canto de Amor e de Morte, no original para piano, efeitos desconhecidos em outras obras de Lopes--Graça.a manutenção dos dedilhados de Canto... original na versão camerística é prova incontestável de que o primeiro manuscrito esteve sempre presente na edificação da visão subsequente (exs. 2, original, e 3, versão camerística). Frise-se, também, que pro-cedimentos técnico-pianísticos, e outros, apresentando seme-lhanças no original e na versão – dinâmica, agógica e articulação –, caracterizam essa fidelidade à partitura básica, apesar de algumas indefinições do manuscrito para piano, nesses aspec-tos. Essas constatações levaram o intérprete a recorrer sempre à versão de câmara quando surgiram dúvidas, inclusive ampa-rando-se nas notações dos instrumentos de corda.logicamente, as duas versões apresentam diferenças, sendo que a segunda, para grande orquestra, Lopes-Graça conside-rou-a não uma versão orquestral, “mas como uma nova obra”2. A comparação entre os três manuscritos foi imprescindível, mercê do facto de que Lopes-Graça não passou a limpo o primeiro ímpeto criativo para piano solo. Sob outra égide, o mestre toma-rense, graças à versão camerística definitiva e copiada com esmero, tem o cuidado de assinalar com precisão – como era seu hábito – a trama musical e a rica sinalização, a tornar o piano, que percorre parte considerável da versão, salvaguarda para cotejamentos. Se essas observações se fazem necessárias, frise--se, não influem na coesão do original face à versão. Transferir determinadas indicações existentes na versão para o original tornou-se imperativo. O facto primordial é a certeza de nos

depararmos com uma obra conclusa, original para piano e rigo-rosamente estruturada na mente e na pena de Lopes-Graça. A timbrística das versões apenas enriqueceria a construção inter-pretativa do original para piano. Demonstra essa polivalente presença instrumental no pensar do autor.a leitura de dois textos emblemáticos, escritos por Jorge Pei-xinho e Mário Vieira de Carvalho a respeito de Canto de Amor e de Morte (1961) em sua versão camerística com piano, leva o leitor a querer conhecer mais aprofundadamente essa obra. Qual a razão dessas menções assinadas por duas figuras essenciais na modernidade musical portuguesa? Lembre-se que ambos des-conheciam o original para piano. Canto... pairaria no cimo da produção musical em toda a História da Música em terras lusía-das, segundo os ilustres autores. Em análise competente, o compositor Jorge Peixinho observa com contundência: “O Canto de Amor e de Morte é, de facto, uma cúpula na música portuguesa: o ponto final de uma dialéctica entre diatonismo e cromatismo, resolvida ainda no âmbito de um contexto tonal levado às últimas consequências e, por isso mesmo, expressão dramática da incapaci­dade de ‘síntese’ que só uma nova organização do espaço sonoro poderia atingir; e, ao mesmo tempo, a obra mais consequente e coe­rente na relação entre os diversos níveis de organização que a música portuguesa, com toda a verosimilhança, terá alguma vez logrado”3. Mário Vieira de Carvalho busca captar esse de profundis que caracteriza a obra: “Movimento em suspensão. Profunda tristeza. Introspecção pungente. Valeram a pena o sonho, a luta, a esperança? A experiência íntima da pessoa que sofre, do artista que se põe em causa e à sua trajectória e ao seu destino, do cidadão frustrado pelo falhanço de alternativas socialmente libertadoras – é essa experiên­cia íntima, onde tudo se mistura e tudo se condensa num sofrimento maior, que está incorporada em cada nota do Canto de Amor e de Morte (1961)”4. Jorge Peixinho escreve ainda que, em Canto de Amor e de Morte, “não é legítimo falar de funções tonais hierarquica­

Ex. 1

Ex. 2

Ex. 3

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mente definidas e muito menos de tonalidades, mas sim de centros virtuais de polarização tonal. A dialéctica entre diatonismo e croma­tismo é, por conseguinte, resolvida não a partir de um sistema restrito de hierarquização tonal, mas de um processo sistemático de organi­zação intervalar, coerente e unificador.”5. canto de amor e de morte torna-se, numa apreensão técnico--pianística, glossário de fórmulas existentes ou que percorre-riam outras criações. Detectam-se na obra elementos recorren-tes e vindouros. Poder-se-ia acrescentar, sob égide outra, que há a presença de um idiomático tipificado, actuante na obra de Lopes-Graça destinada ao piano quando a temática é a morte. Processos que caminham desde os Três Epitáfios de 1930 esta-riam a demonstrar um arquivo técnico-pianístico. A proposta para o terceiro dos Epitáfios – Para o Autor – não anunciaria a presença da morte, acompanhante do compositor em sua tra-jectória como homem, músico e pensador, mors certa hora incerta? Alguns motivos – ou mesmo células geradoras – que tendem ao desenvolvimento estariam a evidenciar que Lopes--Graça tem impregnado esse código voltado à morte, sendo possível supor que a ideia, ao surgir, já encontraria formatações definidas aprioristicamente. Se algumas são originais em Canto..., encontra-se-iam sur le tard nas Músicas Fúnebres (1981-1991), sob diferentes vestimentas. uma situação singular surgiu quando pensei gravar e apre-sentar Canto de Amor e de Morte para piano solo. Pode o intér-prete desrespeitar a intenção do compositor que assinalou tar-diamente – seria possível supor – a palavra “inutilizar” no frontispício do manuscrito? Esse questionamento esteve pre-sente de maneira até conflitante, mercê da leitura prévia do que reza a Tábua... concluída por Romeu Pinto da Silva: “O Canto de Amor e de Morte começou por ser uma peça para piano solo que o compositor decidiu inutilizar, logo após a conclusão da versão de câmara, com o intuito de impedir a sua execução futura. Mas, talvez por esquecimento, não consumou a destruição da partitura que foi encontrada intacta em 1994 pelo próprio Lopes­Graça, durante as pesquisas que precederam a organização desta Tábua. Manifestando a sua total oposição a que a obra fosse executada, o compositor acei­tou mantê­la mas sem número de opus”6.ao concluir a leitura de Canto de Amor e de Morte, na certeza de que ela estava rigorosamente conclusa, corroborava os pensa-mentos de ilustres predecessores no julgamento da obra na ver-são camerística, Jorge Peixinho e Mário Vieira de Carvalho. Acrescentaria que não apenas é uma das cumeeiras da criação em Portugal, como uma das mais significativas composições para piano solo da segunda metade do século XX em termos mundiais. Numa outra visão, considerando o exposto na Tábua..., que me colocou em incómoda posição de consciência, mormente se considerar o afecto pessoal que sempre tive pelo grande mestre Lopes-Graça, desde o convite que ele me fez para um primeiro recital na Academia de Amadores de Música em Lisboa, no distante 1959, fiquei mergulhado num turbilhão de ideias contraditórias. Ao me decidir por apresentá-la em público em Maio de 2010 em várias cidades portuguesas, sendo que a primeira se deu no templo de Lopes-Graça, a A.A.M., fui levado por duas decisões após longos solilóquios: pode uma obra prima ser escondida? Veio-me o pensamento expresso em O Nome da Rosa, de Umberto Eco: “a ciência usada para ocultar, ao invés de iluminar”7. Por que razão Lopes-Graça, um memo-rialista nato, não destruíu de vez o original para piano, reco-mendando a Romeu Pinto da Silva que mantivesse esse primeiro Canto... sem opus? Poetas, escritores, pintores e compositores destroem tantas vezes criações que não lhes agradam... Não ras-

gada ou jogada ao fogo, fatalmente Canto... iria para o acervo do compositor no fundamental Museu da Música Portuguesa, o que realmente ocorreu. Num futuro sem data, serviria para possível tema de mestrado ou doutorado, com envolvimento maior ou menor por parte de um orientando. Antecipei-me, é certo, jamais movido por interesse outro que não a qualidade ímpar de Canto de Amor e de Morte para piano solo, como também pela mais profunda admiração, respeito e gratidão pelo extraordiná-rio compositor Fernando Lopes-Graça8.

1 Teresa Cascudo. Fernando Lopes­Graça. Catálogo do espólio musical. Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1997; Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes Graça. Iniciada pelo compositor. Concluída e acrescentada com documentação e informações várias por Romeu Pinto da Silva. Portugal, Caminho, 2009.

2 Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes Graça, op. ct. p.181.

3 Jorge Peixinho. Canto de Amor e de Morte – Introdução a um Ensaio de Interpretação Morfológica. Porto, Maio de 1966, p.35.

4 Mário Vieira de Carvalho. Pensar a Música, Mudar o Mundo: Fernando Lopes­Graça. Porto, Campos das Letras, 2006, p.95.

5 Jorge Peixinho. op.cit. p.35.

6 Romeu Pinto da Silva. op. cit. P. 181.

7 Umberto Eco. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, 7.ª ed., p. 206.

8 Canto de Amor e de Morte, as integrais das Músicas Fúnebres e de Cosmorame e mais a colectânea Música de Piano para as Crianças foram por mim gravadas em Maio de 2010 na cidade de Mullem, na Bélgica Flamenga, tendo como engenheiro de som Johan Kennivé. Os dois CDs já se encontram masterizados.

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no universo musical do fim do século xix e da primeira década do século XX, um dos aspectos pouco explorados e que, pelo seu significado artístico no contexto social da época, merece ser objecto de estudo, é o que se refere à actividade musical que se praticava nos salões particulares de Lisboa. a origem das festas musicais de carácter privado parece datar, contudo, dos princípios do século XVIII, pois em Lisboa existiu uma tradição de “saraus musicais de senhoras” realizados na Corte, que foi continuada por famílias da aristocracia portu-guesa, e, no século XX, também pela burguesia.os salões que vão ser referidos no presente estudo perten-ciam, uns, a aristocratas amadores de música, outros a pedago-gos e artistas das classes burguesas. Neles, vamos encontrar personalidades não só do mundo da música, mas também das outras artes, e que foram marcos importantes da cultura portu-guesa. É o caso das irmãs Guilhermina e Virgínia Suggia, Vianna da Motta, Alfredo Keil, Alexandre Rey Colaço, Ernesto Vieira, Moreira de Sá, Michel’Angelo Lambertini, Tomás Borba, Teófilo Braga, Jaime Batalha Reis, Manuel de Oliveira Ramos, António Arroyo, Columbano, Malhoa e tantos outros que mencionarei.os concertos privados não tinham todos o mesmo carácter. Uns estavam associados a acontecimentos mundanos; outros tinham nítidas preocupações de divulgação musical. Era o caso dos concertos históricos promovidos por Sarah Motta Vieira Marques e dos concertos de música popular ou erudita portu-guesa no salão da condessa de Proença-a-Velha.quanto ao período escolhido, 1899 a 1911, foram três as razões que me levaram a considerá-lo. 1. É um período de viragem política do Regime Monárquico para a I República, marcado por extrema agitação social a todos os níveis, em que se poderão, de certa forma, avaliar alguns dos reflexos de tal viragem. 2. É, por assim dizer, o “canto do cisne” dos concertos privados, rea-lizados na maioria dos salões. Com excepção dos concertos ocorridos na residência de Elisa de Sousa Pedroso e que, a partir dos anos 20, têm lugar sobretudo em salões públicos, as festas musicais de carácter privado vão escasseando cada vez mais. A importante divulgação musical iniciada por Emma Santos Fonseca, cujos concertos e conferências, também em salões públicos, foram compilados em vários volumes, teve lugar a partir dos anos 20 até aos anos 40. Não será, pois, considerada neste estudo. 3. Consultei revistas da época, com especial realce

para a revista quinzenal A Arte Musical, de 1899 a 1911, fundada e dirigida por Michel’Angelo Lambertini (1862-1920) e na qual eram noticiados todos os concertos públicos e privados, assim como os respectivos programas, compositores e intérpretes, acompanhados de algumas críticas. Trata-se de uma fonte docu-mental preciosa para o estudo do período aqui considerado. Compilada em vários volumes encadernados (desde 1899 a 1915), faz parte do riquíssimo espólio musical do Conde de Redondo, adquirido pelo Núcleo de Musicologia do extinto Ins-tituto Português do Património Cultural, onde trabalhei no fim dos anos oitenta, sob a orientação do saudoso e competente musicólogo Humberto d’Ávila. O referido espólio encontra-se actualmente no Arquivo de Música da Biblioteca Nacional.

o contexto sócio-político e cultural

a partir da segunda metade do século xix, a geração de 70 (Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins...), com as célebres Conferências do Casino, abriu um período de doutri-nação revolucionária que se prolongou até à queda definitiva da Monarquia Portuguesa. Não conseguindo as reformas radicais dos seus quadros e métodos governamentais, o Regime foi enfraquecendo progressivamente até ao colapso. No princípio do século, quem governava efectivamente o País? Era uma classe de burgueses ricos, ligados à banca, ao grande capital, ao grande comércio, aliados à nobreza. Estreitamente ligada ao capital estrangeiro e à exploração das colónias, tal classe via na Monar-quia o símbolo da ordem e da manutenção dos seus privilégios e lucros. Por outro lado, apoiava também a Igreja e contava ainda com as patentes mais importantes do Exército, saídas das suas fileiras. O grande inimigo desta burguesia rica não era, contudo, a classe operária e os camponeses. Era, sim, a classe média, grupo social maioritário que pululava nas cidades de Lisboa e Porto. Este grupo social era composto por pequenos comer-ciantes e industriais, o médio e pequeno funcionalismo público, patentes médias do Exército e da Marinha, estudantes universi-tários e ainda alguns pequenos e médios proprietários rurais. Esta média burguesia irá servir de base de apoio do Partido Republicano que derrubará a Monarquia.a situação política e social era de extrema instabilidade. Durante os dois anos de reinado de D. Manuel (1908-1910), teve este monarca de mudar sete vezes o seu Ministério. Dominavam a cor-rupção política, as questiúnculas pessoais e as lutas partidárias. Todos os sectores da vida nacional se encontravam desorganizados.antes da queda do regime, os dois grandes partidos eram

A música nos Salões Particulares de Lisboa no fim do século XIX e na primeira década do século XXA Humberto d’Ávila, in memoriam

IDALETE GIGA | TEXTO

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o Partido Regenerador e o Partido Progressista. O Partido Repu-blicano, formado por elites intelectuais e pela pequena burgue-sia, foi sempre aproveitando todas as dissenções e instabilidade existentes para, a pouco e pouco, ganhar terreno. Os seus ideais, fortalecidos pela Maçonaria e pela Carbonária, espalharam-se de norte a sul do País. A atmosfera social era de permanente agi-tação. No mundo laboral, por toda a parte, eclodiram greves que se agudizaram em 1909. Lisboa e arredores eram as zonas gre-vistas por excelência.1898 a 1908 é, por outro lado, uma década de ininterrupta for-mação de associações de classe (sindicatos) e realização de con-gressos corporativos e pluriprofissionais. Um sem-número de periódicos, todos de carácter libertário e de inspiração socia-lista e/ou anarquista, é publicado em várias cidades do País. Traduzem-se as obras de Kropotkine (A Anarquia­ Sua Filosofia e seu Ideal; A Moral Anarquista). Publica-se Os Famintos ­ Episó­dios da Vida Popular, de Jean Grave. Traduz-se deste filósofo anarquista A Sociedade Moribunda e a Anarquia. Nascem grupos anarquistas em várias cidades – Alvorada da Liberdade, Acção Directa e Intransigente, os Poliglotas, todos estes em Lisboa. Publicam-se obras de crítica à política cultural como Analfabe­tismo e Educação, de Agostinho de Campos – 1902, Teatro Livre e Arte Social, de Ernesto Vieira - 1902, A Voz do Artista – 1904, Harmonias Sociais, O Problema Humano e a Futura Organização Social - 1907, de Manuel de Arriaga, A Nacionalização do Ensino - 1911, de João de Barros, O Ensino e a Educação em Portugal – 1907, de Velhinho Correia.toda a propaganda revolucionária atacava o Regime Monár-quico e a Igreja, como bodes expiatórios de todos os males sociais – fome, condições miseráveis de trabalho, analfabetismo, falta de escolas, a questão das colónias transformadas em lugares de degredo, as finanças exaustas, a corrupção política e económica.Nesta atmosfera de descontentamento e instabilidade a todos os níveis, e que já ninguém podia conter, não admira que certas

camadas privilegiadas da sociedade lisboeta se refugiassem, por assim dizer, nos seus palacetes, onde as festas e concertos sig-nificavam, certamente, para uns um narcótico para esquecer o incómodo clima revolucionário que então se vivia, e para outros uma realização pessoal, um empenho sincero na divulga-ção da música, uma esperança, uma fresca brisa na aridez cultu-ral em que o País estava mergulhado.após algumas reformas iniciadas pela i república, houve uma certa acalmia. Porém, estavam longe de responder às necessidades sócio-culturais e económicas do País. Reformas radicais não se fizeram. Surgiram, contudo, importantes grupos femininos e feministas que intervieram activamente na socie-dade portuguesa e que os nossos historiadores têm sistematica-mente ignorado. Lutando pela igualdade de direitos e pela sua emancipação, desejando uma sociedade mais justa, mais livre, mais fraterna, muitas mulheres destacaram-se nas Artes, na Ciência, na Educação, na Literatura, no Jornalismo, na Justiça. Criaram grupos de estudo e periódicos para intervir na socie-dade. O direito ao voto, por que tanto lutaram, foi-lhes, con-tudo, negado pela I República. Este sinal de miopia política foi um erro gravíssimo que teve consequências nefastas, quer no desenrolar da situação política, quer no futuro do desenvolvi-mento económico, social e cultural do País, que se viu privado da inteligência e da criatividade das mulheres empenhadas numa verdadeira mudança para Portugal.no campo da música, pedagogos e artistas esperavam reformas sérias. Logo após a implantação da República, muito se discutiu e escreveu sobre a questão da reforma do Conservatório Nacio-nal pela qual se bateram Lambertini, Vianna da Motta, Fran-cisco Bahia, Alexandre Rey Colaço. Tal reforma nunca chegou a concretizar-se. A questão era que a reforma deveria ser reali-zada por pedagogos e artistas profissionais e não por amadores incompetentes e burocratas.Hoje, passado mais de um século, a questão parece manter-se!

No conjunto destes salões há que realçar três que foram os mais importantes: O salão de Sarah Motta Vieira Marques, o salão dos condes de Proença-a-Velha e o salão de Alexandre Rey Colaço.Os concertos neles realizados destacavam-se dos restantes por terem, sobretudo, um carácter de divulgação musical. Por outro lado, eram aqueles onde, com mais assiduidade, se realizavam “matinées musicais”. Rey Colaço chegou a organizar, na sua casa, concursos de piano e concertos mensais em dias fixos, para apresentar os seus melhores discípulos que eram, curiosa-mente, na sua maioria, mulheres.O salão de Elisa de Sousa Pedroso (filha dos viscondes de Carna-xide), inaugurado em Março de 1900, adquire uma grande

importância, sobretudo a partir dos anos 20, altura em que, movida pelo espírito nacionalista que então dominava, a pia-nista amadora passa a organizar, não só na sua residência, mas também em salões públicos, concertos anuais destinados à di-vulgação da Música Portuguesa, pedindo inclusivamente aos compositores que lhe enviassem as suas obras.A propósito da importante acção de Elisa de Sousa Pedroso como divulgadora da Música Portuguesa afirma João de Freitas Branco: Elisa de Sousa Pedroso não se limitava ao papel de animadora e patrocinadora, por isso ela própria era pianista de mérito. Levou a públicos estrangeiros a mensagem de compositores portugueses.1

Viscondes de CarnaxideCondessa de Penha LongaCondessa d’AlmedinaCondes de Proença-a-VelhaCondes de SabugosaSarah Motta Vieira MarquesAlexandre Rey ColaçoElisa Baptista de Sousa PedrosoNeuparth e CarneiroHernâni Braga

José Ferreira BragaPalmira Baptista MendesAlberto e Clara SartiManuel PereiraJosé PaciniMme BensaúdeCândida Cília LemosAlexandrina Castagnoli CuradoManuel Garcia da SilvaCarolina Palhares

Maximiano Silva Francisco BahiaAdelaide Lima CruzAntónio ArroyoE.B. KneeseJosé Lino JúniorEulália Costa NevesAntero d’AraújoVictor HusslaPalmira Feio

os salões e os promotores dos concertosRealizavam-se concertos nos salões dos seguintes promotores:

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Concertos de encerramentodas festas de Inverno:- salão da condessa de Penha Longa.“Festas íntimas” com o principalobjectivo de apresentar artistasjá consagrados:- salão de Mme Bensaúde e salão dos viscondes de Carnaxide, que apresentaram o violoncelista espanhol Pablo Casals.Audições exclusivamente dedicadas à interpretação de obras primas: - por exemplo, o Stabat Mater de Pergolesi foi dado, integralmente, no salão dos condes de Proença-a-Velha.Concertos consagrados a um só compositor, precedidos ou não de conferência:- salão dos condes de Proença-a-Velha e salão de Alexandre Rey Colaço. Conferencistas : António Arroyo, Manuel de Arriaga e Jaime Batalha Reis.“Saraus musicais” para festejar o novo ano artístico- salão de Sarah Motta Vieira Marques.Concertos aos quais se associava também a poesia:

- salão de Sarah Motta Vieira Marques e salão de Elisa de Sousa Pedroso.Concertos dedicados exclusivamente à música vocal portuguesa de carácter histórico:- salão dos condes de Proença-a-Velha. Vale a pena citar algumas passagens acerca de um destes concertos: A these da interessantíssima matinée era a adaptação da língua portugueza á melodia vocal e o desenvolvimento da nossa arte pelos elementos estheticos que nos pode fornecer a musa popular e a poesia portugueza de todos os tempos. (...) Escolhemos do riquíssimo Parnaso nacional composições que abrangem toda a evolução poetica do Lyrismo portuguez na sua variedade de escolas, tratadas musicalmente segundo diversas transformações de cada época.E o articulista conclui: (...) Aqui ficam os primeiros esforços para demonstrar que a língua portugueza se presta admiravelmente ao canto, e que as nossas melodias populares encerram a tonalidade da nossa patria.2

Concertos dedicados exclusivamente à música de ópera: - salão dos condes de Proença-a-Velha.

Apresentação de discípulos já consagrados: - salão de Rey Colaço.Festas para despedida de grandes virtuoses: - salão de Mme Bensaúde.Concurso para execução de obras para piano entre as alunas mais talentosas:- salão de Rey Colaço.Audições oferecidas à Imprensa periódica por artistas em princípiode carreira:- salão de Alexandrina Castagnoli e salão de E.B.Knee.Concertos em honra de personalidades do mundo das letras ou da política:- salão de Sarah Motta Vieira Marques e salão de Carolina Palhares.Concertos de carácter histórico, precedidos sempre de conferências:- salão de Sarah Motta Vieira Marques. Conferencistas: Manuel de Oliveira Ramos, Ernesto Vieira, Tomás Borba, António Arroyo.Concertos para comemorar acontecimentos festivos na família dos promotores:- salão dos condes de Proença-a-Velha.

os concertos e seus objectivosGeralmente associados a festas, os concertos tinham, no entanto, os mais variados fins:

Nesta época, para além dos concertos realizados em casas particulares, muito se ficou a dever a outras iniciativas. Vamos encontrar os seus fundadores a colaborar, com frequência, nos saraus musicais dos grandes salões. As três iniciativas mais importantes foram:

1 - Sociedade de Amadoresde Música de Câmara Esta sociedade, criada em 1899 por um pequeno número de artistas (Michel’ Angelo Lambertini - piano; Augusto Gerschey - violino; António Lamas - violeta; D. Luiz da Cunha Meneses - violoncelo), dava três séries de concertos anuais para a divulgação da música de câmara. Em 1909 organizou o 1.º Concurso de Música Portuguesa para obras de música de câmara, no qual foi premiado Luiz de Freitas Branco, assim como Júlio Neuparth e Rodrigo da Fonseca, com obras que ficaram na História da Música Portuguesa.

2 - A Schola CantorumFundada por Alberto Sarti (professor de canto, maestro e pianista), realizou inúmeros concertos que eram sempre noticiados na rubrica “Concertos” da revista Arte Musical. O seu grande objectivo era a divulgação da música sacra, realizando ciclos de conferências e ciclos de concertos históricos.Alberto Sarti dava também aulas gratuitas de canto, destinadas aos alunos que desejavam seguir a carreira do teatro e não dispunham de recursos para custear a sua educação musical.

3 - A Sociedade Artísticade Concertos de CantoFundada por um grupo de amadores de música, presidido pela condessa de Proença-a-Velha, juntamente com a Schola Cantorum, contribuiu para a divulgação de várias obras primas da música vocal. Os concertos eram geralmente precedidos de conferência – Oratórias de Perosi, Stabat Mater de Pergolesi, Chansons de Miarka de Alexandre George, Olav Trygvason de Grieg, Missa do Papa Marcello de Palestrina, fragmentos da Paixão Segundo S. Mateus de Bach, Terra Prometida de Massenet, As Sete Palavras de Cristo de Haydn.

os compositores

Através dos programas de que há referência, noticiados na revista A Arte Musical, analisando o conjunto dos 89 concertos realizados nos salões particulares entre 1899 e 1911, pude constatar quais os compositores que apareciam repetidamente nos referidos progra-mas: Schumann, Chopin, Beethoven, Grieg, Mozart, Bach, Massenet, Wagner, Saint-Saëns, Mendelssohn, Liszt, Brahms e Schubert.

Nota-se assim, uma predominância dos compositores românti-cos, com excepção de Mozart e Bach. Contudo, um grande número de outros compositores eram apreciados. Mencionarei a seguir, por anos, todos os compositores que figuraram nos programas. Indicarei apenas as datas de nascimento e morte dos menos conhecidos.

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1899 – Liszt, Bach, Sarasade, Wieniawski, Gounod, Mascagni, Grieg, Schumann, Chopin, Lacome, Massenet, Lassen (1830-1904) - compositor belga, de origem dinamarquesa, Chaminade, Rossini, Pergolesi, Scarlatti, Beethoven, Popper (1843-1913) – violoncelista e compositor checo, Saint-Saëns, Victor Hussla, Godard (1849-1895) – compositor francês, Rotoli (1847-1904) – compositor italiano e professor de canto , Vidal (1863-1931) - compositor francês, Raff (1822-1882) – pianista e compositor suíço, assistente de Liszt em Weimar, Mozart, Dubois, Schubert, Paisielo, Rubinstein, Mendels-sohn, Verdi, Bizet, Alexandre George.1900 – Saint-Saëns, Godard, Alfredo Napoleão, Óscar da Silva, Schubert, Wagner, Bach, Beethoven, Liszt, Mendelssohn, Brahms, Chaminade, Schumann, Sinding (1856-1941) – um dos maiores composi-tores noruegueses, Grieg, Noguez (?), Fillipucci, Verdi, Lacome, Chopin, Tosti.1901 – Bach, Scarlatti, Weber, Beethoven, Schumann, Widor, Couperin, Quaranta, Massenet, Grieg, Svendsen (1840-1911) - compositor e director de orquestra norueguês, Wagner, Saint-Saëns, Popper, Godard, Chopin, Rameau, Moszkowski (1854-1925) – pianista e compositor de origem polaca, Wieniawski, Sinding,

Mendelssohn, Dohler (1814-1856) - pianista e compositor de ópera, austríaco, que viveu quase sempre em Itália, Liszt, Lefebvre, Chaminade, Brahms, Rubio, Mary-Anne Holmes (1847-1903)-compo-sitora francesa de origem irlandesa, aluna de César Franck e amiga de Saint-Saëns.1902 – Mozart, Mendelssohn, Schubert, Haydn, Bach, Falconeri, Peri, Caccini, Monteverdi, Cavalli, Cesti, Scarlatti, Haendel, Pergolesi, Jomelli, Gluck, Weber, Berlioz, Rossini, Wagner, Beetho-ven, Chopin, Sgambati (1841-1914) – pianista e compositor italiano, aluno de Liszt e amigo de Wagner. Widor, Marcos Portugal, Artur Napoleão, Tomás Borba, Rey Colaço, Óscar da Silva, Vianna da Motta, Salvini, Bizet, Tirindelle (1858-1937) – violinista e compositor italiano.1903 – Wagner, Beethoven, Schumann, Alkan, Brahms, Mozart, Schubert.1904 – Wagner, Massenet, Bizet, Schubert, Chopin, Beethoven, Mendelssohn, Mozart, Gluck, Schumann, Hunbolt, Chaminade.1905 – Wagner, Lefebvre, Bizet, Beethoven, Grieg, Gounod, Fauré, Schumann, Brahms, Tosti, Pinserti, Puccini, Bach, Scarlatti, Chopin, Debussy, Delioux, Liszt, Saint--Saëns, Alkan, Massenet, Mendelssohn, Weber, Arenski, Haydn, Rubinstein, Bellini.1906 - Mendelssohn, Brahms, Widor,

Vidal, Grieg, Foá, Fontenailles, Schumann, Haendel, Mozart, Gluck, Massenet, Strauss, Chopin, Quaranta, Óscar da Silva, Locatelli, Millandre, Liszt, Martucci (1856-1909) – pianista, compositor e director de orquestra italiano.1907 – Chopin, Schubert, Rey Colaço.1908 – Claude Gervaise (1540-60) – compositor francês que escreveu um considerável número de obras instru-mentais, Peri, Monteverdi, Praetorius, Cavalli, Lully, Haendel, Bach, Couperin, Rameau, Pergolesi, Gluck, Haydn, Mozart, Beethoven, Wagner.1909 - Weber, Schubert, Mendelssohn, Schumann, Chopin, Rossini, Berlioz, Wagner, Brahms, Grieg, César Franck, Saint-Saëns, Massenet, Rimsky-Korsakov, R. Strauss, Debussy, Delibes, Taubert, Lalo, Pierné, Lehman, Liszt, Tschaikowsky, Mozart, Beethoven, Bach, Widor, Chaminade, Gabriel Grovlez.1910 – César Franck, Puccini, Wagner, Gallupi, Rameau, Mozart, Arensky, Schumann, Chopin, Brahms, Svendsen, Donizetti, Liszt, Verdi, Bach, Saint-Saëns, Weber, R. Strauss, Saint Heller, Tschaikowsky, Vianna da Motta, Berlioz.1911 – Liszt, R. Strauss, Papini, Ries, Saint-Saëns, Mendelssohn, Schumann, Arensky, Czerny.

Os concertos históricos

Ai do Payz em que os homens só se juntempara tratar de política!Ai d’esses homens, mas sobretudo ai de nós,sujeitos aos seus desvarios!

(Ernesto Vieira, in “Conferência do 1.º concerto histórico”)

Realizados no salão de Sarah Motta Vieira Marques e partindo da sua própria iniciativa, os quatro concertos históricos tiveram início em Dezembro de 1908 terminando em Fevereiro de 1909. Pretendiam mostrar a evolução da música erudita através das diferentes épocas e eram precedidos de uma conferência expli-cativa. A revista Arte Musical publicou, na íntegra, quer os pro-gramas quer as conferências dos quatro concertos em que inter-vieram, respectivamente, Ernesto Vieira, Tomás Borba, António Arroyo e Manuel Ramos. Qualquer das conferências é notável não só pela grande erudição, mas também pelo rigor histórico revelados pelos seus autores. Há, naturalmente, aspectos discu-tíveis, vistos à luz da musicologia contemporânea, o que não

retira valor às conferências realizadas há mais de um século, e cujo conteúdo poderá servir para estudos futuros.No primeiro destes concertos, Ernesto Vieira desenvolve a sua conferência incidindo em obras quer vocais quer intrumentais de compositores que vão do Renascimento ao Barroco (neste começando com o nascimento da ópera), terminando o mesmo com obras de Haendel e J.S. Bach. É muito interessante a análise que Ernesto Vieira faz, por exemplo, comparando estes dois grandes génios da História da Música, concluindo que Bach é divino e Haendel humano.No segundo concerto histórico, Tomás Borba vai retomar o pe-ríodo barroco apresentando obras instrumentais de Couperin, Rameau, obras vocais de Pergolesi e Gluck, passando pelo periodo clássico da escola de Viena com Haydn e Mozart e ter-minando com Beethoven. A conferência do terceiro concerto histórico, apresentada por Antonio Arroyo, é a mais extensa das quatro realizadas. O autor comenta não só as obras, mas sintetiza também a vida de cada compositor e o contributo que cada um deu na sua época, para

Como se pode verificar, há uma repetição constante dos mesmos compositores do passado, exceptuando os compositores portugueses que raramente aparecem, e um ou outro da mesma época. Os compositores portugueses estavam, sobretudo, interessados, e de certa forma comprometidos, com o espírito nacionalista que então dominava, e foi nele que, de modo geral, se inspiraram para criar as suas obras. Por outro lado, o grande apego ao passado não desencadeou nenhum movimento anti-romântico que se possa considerar significativo.

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o enriquecimento da História da Música. Incide sobretudo em obras vocais (duetos de ópera) e instrumentais (piano), de compositores românticos - Weber, Schubert, Mendelssonh, Schumann, Chopin e Rossini.O quarto e último concerto histórico teve como conferencista Manuel Ramos que continuou o comentário de obras vocais e instrumentais de compositores românticos e pós-românticos (Berlioz, Wagner, Brahms, Grieg, C. Franck, Saint-Saëns, Mas-senet, R. Korsakoff, R. Strauss, terminando com uma obra vocal e outra instrumental - quarteto de cordas - de Debussy).Na rubrica “Concertos” da Arte Musical de Dezembro de 1908, refere o articulista: Graças á corajosa e porfiada boa vontade da Exma Srª D. Sarah Motta Vieira Marques, realizou­se em 20 d´este mez o primeiro d´estes concertos. Amadora que é uma artista, e temperamento verdadeira­mente rico em dotes vários, a Srª D. Sarah Marques estava natural­mente indicada para fazer vingar esta sympathica e civilizadora tentativa, d´uma tão alta intenção esthetica e d´um tão distincto cunho educativo.(...) Assim, limitar­nos­hemos a agradecer á srª D. Sarah Marques, em primeiro logar o novo e importante serviço que á educação musical portugueza quiz prestar com a organização dos seus concertos d´um tão intellectual relevo, e depois a distincção con­cedida a este jornal, permitindo­nos nós juntar n´este ponto, ao seu illustre nome o nome egualmente consagrado de Ernesto Vieira, o qual não esqueceu de certo os admiradores e amigos que n´esta folha tem.3

Sobre o segundo concerto histórico:De antemão, o applaudido compositor e crítico musical que é Thomaz Borba, soube justamente apreciar o que seria essa inolvidavel sessão musical; e nós nada melhor poderiamos accrescentar ao que elle disse a tal respeito.Limitamo nos pois a saudar a fórma superiormente modelar como os diversos numeros do programma foram executados, e o relevo artís­tico e a elevação esthetica que lhes deram as Sras D. Sarah Marques, D. Elisa Baptista de Sousa Pedroso, D. Ida Blanck, D. Maria Macieira Lino, D. Gabriella Strauss e D. Ernestina Freixo, nomes já todos elles

devidamente consagrados e justamente queridos, e os Srs. Rey Colaço, Benetó, Maurício Bensaúde, C. Mackee, Antonio Lamas e Luiz da Cunha, profissionaes ou amadores que ninguem desconhece, nem nunca deixou de applaudir.4

Sobre o terceiro concerto histórico:Eis o programma do 3.º Concerto Histórico, que no palacete Ferreira Marques se effectuou em 3 de janeiro passado. A seguir á enunciação das peças que compuzeram esse programma, reproduzimos a magis­tral conferência do sr. Antonio Arroyo, primoroso trabalho historico e crítico, que sentimos o mais justificável desvanecimento em publi­car, e que constituirá, assim o esperamos, para os nossos amaveis leitores, um verdadeiro regalo d´arte.5

Sobre o quarto concerto histórico:Damos hoje publicidade á ultima conferencia effectuada nas salas da talentosa amadora de canto, srª D. Sarah Vieira Marques, comple­tando assim a serie dos quatro notaveis discursos, que acompanharam os concertos historicos pela mesma illustre senhora organizados. Vem firmada esta ultima conferencia pelo sr. Major Manuel d´Oliveira Ramos, um dos nossos mais auctorizados críticos d´arte .6

No mesmo concerto refere Manuel Ramos, no início da sua con-ferência: (...) Entendo, pois, que o primeiro dever de justiça, é assig­nalar o serviço que á nossa cultura musical Madame Sarah Marques, acaba de prestar. Madame Sarah Marques, certamente no seu amor desinteressado, na sua dedicação tenaz por esta ordem de cousas, estou certo que voltará a uma nova iniciativa.(...) É claro que ha mil modos de fazer series interessantíssimas no que diz respeito á cultura musical. Poderia, por exemplo, fazer succeder a esta serie historica uma serie geographica. Podia tratar­se separadamente da musica franceza, allemã, scandinava e russa. Este é um ponto de vista, mas elles multiplicar­se­hiam.(... ) Madame Sarah Marques, que levou a cabo, com tão brilhante exito, esta serie de concertos historicos, encontrará no seu espirito esclarecido e na sua cultura musical, certa­mente, todos os elementos para uma nova cruzada.7

os intérpretes e a crítica

Quanto aos intérpretes, vamos encontrar, entre eles, os pró-prios promotores dos concertos. É interessante referir que nes-tes havia quase sempre a colaboração simultânea de simples amadores e profissionais, o que denota, certamente, uma preo-cupação de que tais “festas íntimas” apresentassem um bom nível artístico. Vão aparecer nomes bem conhecidos que se celebrizaram internacionalmente, juntamente com outros mais apagados, mas também significativos no meio artístico lisboeta da época.Em relação à crítica, pouco há a referir de relevante. Em geral, era favorável quer em relação aos promotores dos concertos, quer aos intérpretes. Não admira que assim fosse, dado o ambiente familiar, íntimo, em que aqueles se realizavam. Intér-pretes e audiência repetiam-se sistematicamente. Os concertos tinham geralmente uma audiência restrita, composta por fami-liares e amigos dos seus promotores, assim como outras pessoas das suas relações (artistas, pedagogos, etc.) que eram convida-dos para o efeito. Por outro lado, haveria certamente interesse em estimular os artistas que, no meio de tão grande aridez cul-tural, iam praticando, com entusiasmo, a arte dos sons.

A revista Arte Musical recebia, habitualmente, convites para assistir a tais concertos, o que lhe permitia noticiá-los, publi-cando, na íntegra, os programas, intérpretes e alguma crítica.

No salão do visconde de Carnaxide escreve Ernesto Vieira na rubrica Concertos:O exmo Sr. Visconde de Carnaxide, em íntima reunião, offereceu no dia 5 de fevereiro alguns momentos deliciosos de boa musica, primo­rosamente desempenhada. Sua exma filha, a exma srª D. Elisa Bap­tista de Sousa executou a “Phantasia Hungara” de Liszt; Moreira de Sá um trecho da 4ª sonata de Bach, as “Arias Bohemias” de Sarasate e uma mazurka de Wieniawski; a exma srª condessa de Proença a Velha cantou o “Sonho de Elisa” e a ária da “Dinorah”.8

“Matinée musical” no salão dos condes de Proença-a-Velha:A Srª condessa mimoseou o selecto auditorio com a execução, deveras primorosa, dos mais variados trechos de Massenet, Saint­Saëns, Schumann, Wagner, Bach, Rossini e outros. Como se vê, generos totalmente diversos em que a nobre dilettante evidenciou mais uma vez a grande maleabilidade do seu talento e uma intelligencia de interpretação, bem pouco vulgar.9

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“Festa íntima” no mesmo salão:(...)O eminente poeta Theophilo Braga illustrou o programma com uma tradução portugueza d´uma ballada de Goethe, Le Roi des Aulnes, em que o divino Shubert se inspirou para a composição de uma das suas dolentes melodias. Esta melodia foi magistralmente interpretada pela srª condessa, estando ao piano Mlle Baptista de Sousa.10

No salão de Sarah Motta Vieira Marques:(...) O cyclo foi fechado por forma brilhante e variada em casa do exmo sr. Antonio Ferreira Marques. Sua exmª esposa, a tão apre­ciavel cantora D. Sarah Ferreira Marques encantou o auditorio com trechos de Paisello, Pergolesi, Rossini, Rubinstein, Saint­Saëns, apresentando assim specimens de differentes epocas e oppostos estylos. Sauvinet, Jose Carneiro, Julio Magalhães, dr. Ferreira Cardoso ( o primoroso flautista) os professores Collaço e Bahia, todos contribuiram para que variedade e abundancia constituissem a nota caracteristica do programma. Em todo o caso, excellente musica, optimamente interpretada e enthusiasticamente applaudida.11

“Matinée de alumnos” no salão de Rey Colaço:(...) Ouvindo os discípulos de Colaço transvê­se a cada passo a mão genial que os conduziu e admira­ se a precisão, a pureza de technica, o mimo, o primor da dicção, que constituem outras tantas qualida­des do mestre e que, seja dito em boa verdade, alguns dos alumnos apresentados tem conseguido assimilar com raro talento.12

Concerto e concurso no mesmo salão:Efectuou­se em casa de Rey Colaço um explendido concerto, em que tomaram parte a srª D. Elisa Baptista de Sousa Pedroso, com o im­promptu em la bemol de Schubert e a polonaise em la de Chopin, as srªs D. Laura Wake Marques e D. Gabriela Jardim, que cantaram um dueto, a srª Etelvina Serra que disse um monologo, as srªs D. Christina Mouchet e D. Beatriz Corrêa que tocaram o rondó em la menor de Chopin e o sr. Angelo Barata que tocou o Clair de lune.Houve alem disso um concurso com o Capricho em fa sustenido menor de Mendelssonh, em que foram concorrentes algumas das melhores discípulas de Rey Colaço. O Jury, que era composto da srª D. Elisa Pedroso e dos srs Augusto Machado e Thomaz Borba concedeu os pre­mios ás alunas D. Maria Costa, D. Albana de Sommer e D. Laura

Condessa de Proença-a-Velha, Condessa de Alto Mearim, Sarah Motta Vieira Marques, Clara Sarti e Alberto Sarti, Maria Teresa Dinis, Paulo Quental, viscondessa de Almeida Araújo, Andrés Perello, Pallet, De Luca (estes três últimos, cantores de S. Carlos), Angelina Valadim, Laura Sauvinet, Gabriela Strauss, Leonor Marques Costa, Leopoldina Cordeiro, Maria de Jesus Câmara, Sofia de Roldan, Alberto

Macieira, Ferrucio Corradeti (cantor do S. Carlos), Maria Pia Castelo Branco, Berta Lupi, Maria Meireles Canto e Castro, Carolina Palhares, Virgínia Melo e Castro, Cândida Cília Lemos, Ema Navarro Hogan, Laura Matos, Marcos Foá, Léon Jamet, Laura Wake Marques, Artur Trindade (cantor bolseiro do Governo), Cândida Kendall, Maurício Bensaúde (barítono famoso), Maria Emília Macieira Lino, Berta Bivar

(esposa de Vianna da Motta), Ermelinda Stegner, Mme Bensaúde, Ida Blanck, Alice Rey Colaço, Joana Colaço, Maria Colaço, Irene Gilman, Emília Possoz, Joana Possoz, Maria José Arroyo, Alvaro Baptista, Guilherme Ribeiro, Luis Coruche (discípulo laureado de Sarti), Mlle Bettencourt, Mme Pinto Leite, Mlle Saldanha da Gama, Pinto da Cunha, Adélia Heinz, Africa Calimerio.

Na apresentação dos nomes a seguir indicados, que foram extraídos dos programas dos concertos privados, publicados na revista Arte Musical, podemos constatar, de facto, a presença de muitos artistas profissionais e amadores que actuavam, frequentemente, nos salões particulares:

cantores

Croner, consistindo esses premios em volumes de musica, offerecidos expressamente pelo illustre e antigo amador, o Dr. João D´Korth.13

Alguns anos mais tarde, já no princípio da I República, a propó-sito de uma matinée musical em casa de Rey Colaço para apre-sentação dos seus melhores alunos e em que o próprio partici-pou asim como Elisa de Sousa Pedroso, Joana Rey Colaço e Maria Antónia de Castro Freire, refere a Arte Musical: Resumindo a nossa impressão pessoal, podemos affirmar, que, na lamentavel situação artística a que a nossa capital está reduzida, a audição Rey Colaço, como manifestação de boa arte, marcou uma excepção que encantou a todos.14

As irmãs Guilhermina e Virgínia Suggia aparecem com frequên-cia, quer em concertos públicos, geralmente de beneficência, a favor das mais variadas causas sociais, quer nos concertos realizados nos salões particulares.

No salão de Sarah Motta Vieira Marques (depois de terem reali-zado um concerto de beneficência em favor das Escolas Móveis, no dia 25 de Abril de 1904, em Lisboa) tal como é referido na rubrica Concertos da Arte Musical:As duas talentosas irmãs offereceram no dia seguinte uma interes­sante matinée á illustre amadora a srª D. Sarah Marques em cujo palacete foram também muito ovacionadas.15

No salão de Alberto e Clara Sarti:Alberto Sarti e sua esposa D. Clara Sarti dois habilíssimos educa­dores de canto, que tem poderosa e efficazmente concorrido para o seu desenvolvimento em Lisboa, organizaram duas matinées em sua casa Rua Castilho, 34, onde se apresentaram os seus melhores discípulos d´ambos os sexos.16

Pelo seu significado artístico, é interessante referir um dos concertos realizados no salão de Mme Bensaúde: Deliciosa mati­née no dia 19 em casa de Madame e Alfredo Bensaúde, para despe­dida das duas insignes virtuoses Mlles Gabriella Jardim e Christina Mouchet. (...) Mlles Mouchet e Jardim partiram já para a Madeira e Açores onde vão realizar alguns concertos, sendo interessante regis­tar que são as duas primeiras artistas portuguezas educadas aqui que se dedicam á carreira de concertistas.17

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pianistas

Vianna da Motta, Alexandre Rey Colaço e suas discipulas laureadas (Maria Costa, Albana de Sommer, Laura Croner, Carolina Alzina), Francisco Bahia e suas discípulas (Ema Caldeira, Sara Alcobia, sua filha Maria do Carmo Baía, Arminda Cruz, Lucinda Carraça) Michel’Angelo Lambertini, Óscar da Silva, Moreira de Sá, Vírgínia Suggia, Elisa Baptista de Sousa Pedroso, Maria José Baptista de Sousa, Timóteo da Silveira, Joana Távora Folque, Judite Deslandes, Alberto Sarti, Alberto Sousa, Hernani Braga, Berta Coelho Campos, Ester de Campos, Delfina Pinto, Maria Magalhães, Luisa da Mota Cardoso, Adriana Magalhães, Judite Cordeiro Fernandes, Palmira Baptista Mendes, Virgínia Moreira, Lídia Rangel dos Santos, Ernestina Freixo, Cristina Mouchet, Beatriz Correia, Angela Barata, António

Joyce, Palmira Rangel, Joana Colaço, Desiré Pacques , Artur de Greef, Virgínia Baptista.

instrumentistas de corda (violoncelistas, violetistas, violinistas e harpistas)

Guilhermina Suggia, Pablo Casals, José Carneiro, Júlio Magalhães, Cunha e Silva, Henrique Sauvinet, Rodrigo da Fonseca (harpista), Cecil Mackee, Victor Hussla e sua discípula laureada (Alice Dias da Silva), Alexandre Ferreira, Sousa Coutinho, Andrés Goni, Nastrucci, Augusto Morais Palmeiro, António Duarte da Cruz Pinto, José Henriques dos Santos, Enrique Arbós, Agustin Rubio, Josefa Martinez Vieira (harpista do S. Carlos), Neuparth e Carneiro, Câmara Fernandes, Manuel Gomes, Francisco Benetó, António Lamas, Luiz da Cunha Meneses, Júlio Cardona, Alexandre

Bettencourt, Bernardo Moreira de Sá, Luiz Barbosa, Tomaz de Lima, João Aires de Campos, Camilla Casais de la Rosa, Eugénio Crespo, Luisa Campos, Ivo da Cunha e Silva, Mathieu Crickboom, Carlos Estevão de Sá, Miguel Ferreira, Elsa Ruegger, João Evangelista da Cunha e Silva.

flautistas

Ferreira Cardoso, Henrique dos Santos.

organistas

Ernesto Maia, José Bonet.

declamadores

Adelaide Weinstein, Augusto Rosa, Etelvina Serra, Branca de Gonta Colaço, José Castro Guimarães.

Como podemos observar, há uma predominância de cantores e pianistas. Este facto prende-se com o tipo de obras que integravam os programas onde a voz e/ou o piano eram uma constante.

o povo anónimo de lisboa

Não deixa de ter interesse referir o que se passava, simultanea-mente, entre as camadas populares da capital.Na rubrica “Noticiário” da Arte Musical de Setembro de 1910, encon-tramos uma curiosa estatística sobre a tabela de instrumentos que entraram na Alfândega de Lisboa durante o ano de 1909:

Pianos, Harmónios e Pianolas 343Harpas 1Violinos 133Violoncelos 8Violas francesas 124Instrumentos de latão 1Instrumentos para banda 1Realejos 1Acordeões 6.615

Perante esta disparidade de números, com uma incidência no exagerado número de acordeões, o articulista tira, num tom iró-nico, a sua conclusão: (...) A conclusão mais interessante que podemos tirar do quadro é que o verdadeiro, o grande enthusiasmo

artístico do povo de Lisboa, está no accordeon (...) uma bagattella de 6.615 accordeons n´um anno, ou seja um accordeon para cada 54 habitantes.18

Não tendo acesso aos salões particulares da aristocracia ou da alta e média burguesia lisboeta, não estando sequer cultural-mente educado para acorrer aos concertos públicos frequenta-dos também pela burguesia endinheirada, o povo manifestava- -se e continuaria, aliás, a manifestar-se, de forma bem diferente, sem ter verdadeiro acesso aos escassos bens cultu-rais e sem ter, possivelmente, consciência de que eles existiam. Os sucessivos governos da República não souberam ou não qui-seram fazer reformas radicais, que apostassem seriamente na educação do povo. O analfabetismo continuou a reinar de norte a sul de Portugal, cujos reflexos deixaram muitas sequelas que não desapareceram completamente, até hoje. Apesar da pro-gressiva democratização do ensino desde a Revolução dos Cra-vos, a verdade é que ainda não existem iguais oportunidades concretas de acesso ao ensino e à cultura musical para todos os cidadãos portugueses.

estilos e formas musicais

A forte dependência da influência italiana, de carácter operático, por um lado, e alemã, com os grandes românticos, por outro, reflectiu-se nos estilos e formas musicais então praticados. Há, assim, uma predominância da música vocal. Os duetos, árias de ópera, de oratórias, romanzas, barcarolas, preghieras, lieder, eram uma constante nos concertos dos salões particulares.O piano, o rei dos instrumentos do século XIX, estava sempre

presente, ou em composições a solo (sonatas, nocturnos, valsas, mazurcas, polacas, etc.) ou como instrumento acompanhador do canto. Porém, muito mais raro na música de câmara (sonatas para violino e piano ou violoncelo e piano, por exemplo).Quanto à música de câmara para instrumentos de corda, a solo ou em pequenos conjuntos (quartetos, quintetos), a sua prática era insignificante se comparada com a música vocal e pianística.

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conclusão

Apesar do seu carácter privado, num ambiente apenas acessível a grupos pertencentes, em geral, à aristocracia e alta burguesia, é inegável a importância artística que a actividade musical adquiriu nos salões particulares de Lisboa. Essa importância, que aos olhos do observador actual poderá ser minimizada atra-vés de juizos de valor precipitados, tinha, contudo, um signifi-cado de peso na sociedade de então.O objectivo deste pequeno estudo foi mostrar, como num filme, a paisagem musical num determinado contexto, tal como foi pintada, tal como foi vista e vivida pelos artistas, quer amadores quer profissionais, dessa sociedade, na viragem do século XIX para o século XX e, simultaneamente, na viragem política da Monarquia para a República.Um excerto da revista Arte Musical de Março de 1900, na rubrica Concertos, ajudar-nos-á a compreender melhor o que, a nível musical, puderam significar as iniciativas particulares se compa-radas com a restante actividade musical praticada em Lisboa. Com a excepção da Academia dos Amadores de Música, o articulista lamenta-se das poucas audições musicais da quinzena, sobretudo os concertos públicos, cada vez mais raros na capital :Vemos um Conservatorio, cuja principal ambição é produzir muito, sem se preocupar se produz bem.

Vemos um Theatro lyrico, onde se não cuida senão de proteger à outrance as pretensões gananciosas dos emprezarios, que occupados nas mil combinações uteis e praticas da assignatura, não podem ou não querem incommodar­se com assumptos de arte, de que a propria maioria do seu publico não faz afinal grande caso. É que no fim de tudo vemos a par d´isso a indifferença, o desprezo, e por vezes o sorriso compassivo e humilhante d´aquelles que podendo fazer alguma cousa pela arte preferem gastar a sua influencia e a sua actividade nas substanciosas luctas da eleição e na edificante collocação dos afilhados.A conttrapor­se a todo esse abandono governamental e a essa indi­fferença por parte das grandes entidades pseudo­artísticas, temos, louvado Deus, a iniciativa particular, sempre enthusiastica e cora­josa e que apesar das mil difficuldades que a cada momento se anto­lham, vae seguindo o seu caminho com a confiança e a serenidade dos que cumprem uma missão civilizadora e util. (...) É pois á ini­ciativa individual que temos de fazer os mais clamorosos appelos; com o resto suppomos que não se pode contar19.Isto passava-se em 1900! Com a implantação da República, dez anos depois, vamos assistir a um arrastamento destes problemas.Foram, de facto, os concertos privados realizados sobretudo nos salões particulares que, no estreito ambiente cultural lisboeta, não deixaram morrer a Música.

1 in História da Música Portuguesa, Publicações Europa-América, Lisboa, 1995, p.307

2 in Arte Musical nº 98 de 31 de Janeiro/1903, Anno V, pp. 20-21

3 in Arte Musical n.º 241 de 31 de Dezembro de 1908, Anno X, p. 246

4 in Arte Musical n.º 242 de 15 de Janeiro de 1909, Anno XI, p. 9

5 in Arte Musical n.º 244 de 15 de Fevereiro de 1909, Anno XI, p. 40

6 in Arte Musical nº 245 de 28 de Fevereiro de 1909, Anno XI, p. 64

7 idem, p. 65

8 in Arte Musical n.º 3, de 15 de Fevereiro de 1899, Anno I, pp. 25-26

9 in Arte Musical n.º 6, de 31 de Março de 1899, Anno I, p.47

10 in Arte Musical n.º 11 de 15 de Junho de 1899, Anno I, p. 89

11 in Arte Musical n.º 12 de 30 de Junho de 1899, Anno I, p. 98

12 in Arte Musical n.º 28 de 28 de Fevereiro de 1900, Anno II, p. 31

13 in Arte Musical n.º 122 de 31 de Janeiro de 1904, Anno VI, p. 49

14 in Arte Musical n.º 289 de 31 de Dezembro de 1910, Anno XII, p. 245

15 in Arte Musical n.º 128 de 30 de Abril de 1904, Anno VI, p.118

16 in Arte Musical n.º 126 de 31 de Março de 1904, Anno VI, p. 95

17 in Arte Musical n.º148 de 28 de Fevereiro de 1905, Anno VII, p. 47

18 in Arte Musical n.º 282 de 15 de Setembro de 1910, Anno XII, p. 191

19 in Arte Musical n.º 29 de 15 de Março de 1900, Anno II, pp. 35-36

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glosas | número 4 | novembro | 2011 | 75

A obra para piano de

Manuel Faria uma primeira abordagem

padre e compositor, Manuel Faria nasceu em São Miguel de Ceide a 18 de Novembro de 1916 e faleceu no Hospital de Santo António, no Porto, a 5 de Julho de 1983. Em 1928, entrou para o Seminário de Nossa Senhora da Conceição (Braga), onde estudou Música com o Pe. Alberto Brás, sendo ordenado sacerdote em 1939. Seguiu então para Roma em 1939, onde estudou no Ponti-ficio Instituto di Musica Sacra (P.I.M.S.), com Rafael Casimiri

ANDRÉ VAZ PEREIRA | TEXTO

(Polifonia) e Licinio Recife (Composição). Tendo regressado a Portugal no final desse ano lectivo, devido aos conflitos provo-cados pela II Guerra Mundial, voltou a Roma em 1942 para aí obter o diploma de Maestro em Composição e a Licenciatura em Canto Gregoriano (1943). regressado a braga em 1946, passou entretanto por Paris, onde recebeu influências dos compositores franceses (facto que se reflecte em grande parte da sua obra). Em Braga, onde é no-meado professor do Seminário Conciliar, iniciou uma intensa actividade no ensino, direcção coral e animação musical religiosa, dedicando-se ainda à composição e à crítica musical. Foi bol-seiro do Instituto de Alta Cultura e da Fundação Gulbenkian, para estudos que realizou mais tarde em Itália. Obteve ainda o “Prémio Nacional de Composição Carlos Seixas” da Secretaria de Estado de Informação e Turismo, em 1971. a partir de 1976, iniciou um movimento de Coros Paroquiais, que desenvolveu uma intensa actividade musical na região, tendo como princípio “proporcionar aos milhares de coralistas meios de aperfeiçoamento espiritual e técnico, através de cursos e encontros de nova feição” (Faria, Manuel: 1981). Foi neste espírito pró--activo que, em 1979, se realizou o I Curso de Formação de Regentes de Coros Amadores na Póvoa de Varzim, sob a direcção de Mário Mateus e Manuel Faria.foi director do orfeão de braga e foi também um dos funda-dores e directores da Nova Revista de Música Sacra (N.R.M.S.)1, publicada em Braga, tendo regido um Curso Livre de Harmonia destinado a estudantes de Humanidades, Filosofia e Teologia dos Seminários. Entre 1976 e 1981 colaborou ainda com a Rádio Renascença no programa “Ao Encontro da Grande Música” (Faria:1992, Martins: 2008, Pereira: 2009). as obras investigadas no âmbito da minha tese de mestrado2

foram: Fantasia brilhante sobre dois temas do hino do Seminário (1934), O Barbosa foi ao mar (1935), Marcha fúnebre (1941), Adeus

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(1948), Quatro pequenas peças para piano (1961) e Sonatina para piano (1982). Para além destas, estão também presentes no espólio as obras: Romanza senza parole (1942), Fala um anjo (1950), O meu relógio (1955) e Tiroliro (incompleta e sem data) que terão aqui algum espaço de análise. Também se encontram catalogadas as peças Momento musical (1979) e Dança de Roda (1975) que foram englobadas na Sonatina para piano (1982) como 2.º e 3.º andamentos, respectivamente. as obras serão apresentadas por ordem cronológica, com pequenas incursões às palavras de Manuel Faria, presentes em vários artigos escritos pelo próprio, que espelham os contextos popular, religioso e académico em que esteve envolvido.

Fantasia brilhante sobre dois temas do hino do semi-nário (1934)

a fantasia brilhante sobre dois temas do hino do Seminário de Nossa Senhora da Conceição foi composta em Braga a 24 de Março de 1934 e estreada em “Braga, na Academia de Santa Cecília” (Faria, Cristina: 1992). Baseia-se num hino escrito pelo Pe. Benjamin de Oliveira Salgado, e foi escrita quando Manuel Faria era aluno do Pe. Alberto Brás, no Seminário de Nossa Senhora da Conceição. É uma das suas primeiras peças, visto que as obras mais antigas datam de 1934. A Fantasia foi dedicada da seguinte forma:

Ao amigo, companheiro e conterrâneo Benjamin de Oliveira Salgado, exímio composi­

tor e ilustre pianista, oferece, dedica e consagra o autor, Manuel Ferreira Faria (Faria,

Manuel: 24 de Março 1934).

benjamin de oliveira salgado (Joane, 8 de Maio de 1916 – Joane, 28 de Janeiro de 1978)3 foi colega de Manuel Faria no Seminário de Nossa Senhora da Conceição, na altura, sendo também aluno do Pe. Alberto Brás. Foi uma pessoa muito importante na vida do compositor, como nos relata o seu irmão Francisco Faria e o seu afilhado e aluno de piano Boaventura Faria:

Foi um homem muito importante na sua vida. (…). A vila de Famalicão sofreu uma

alteração profunda com a administração dele. Seguiram de certo modo caminhos dife­

rentes, o Manuel nunca exerceu nenhum cargo político ou público, o Padre Benjamin sim,

seguiu esse caminho. (…) Podemos até dizer que o Padre Benjamin era mais do gosto

popular do que o meu irmão. O meu irmão era mais erudito… (Faria, Francisco: 2009)

No que concerne a sua relação com Benjamim Salgado, posso afirmar que este compo­

sitor retribuía a Manuel Faria a mesma cordialidade e evidenciava a sua admiração

pelo talento artístico deste (Faria, Boaventura: 2009)

esta fantasia é referida no primeiro catálogo feito por Francisco Faria na N.R.M.S. em 1983 duas vezes, e com títulos parecidos: Fantasia brilhante e Fantasia brilhante sobre dois temas do hino do Seminário. Após pesquisa na B.G.U.C. verificámos que, de facto, existem duas partituras escritas com um dia ape-nas de diferença. No entanto, e após análise dos manuscritos originais, apurámos que a versão de 24 de Março de 1934 é uma versão mais elaborada da primeira versão, tendo o manuscrito original (M.O.) final uma capa onde escreve a dedicatória, rea-firmando a data de 24 como a data de composição.no que diz respeito à linguagem musical, esta obra ainda não evidencia quaisquer traços do modernismo que tanto caracteri-zará a obra de Manuel Faria. É uma obra tonal que visa explorar não só os temas do Hino do Seminário, como também as capaci-

dades técnicas do intérprete. Acaba, assim, por ser um primeiro testemunho da importância do contexto religioso na sua obra.

o barbosa foi ao mar (1935)

a obra o barbosa foi ao mar foi escrita em Braga a 12 de Novembro de 1935 e é um dos primeiros exemplos do naciona-lismo presente na obra de Manuel Faria. O tema utilizado tem uma raiz popular, provindo de um contexto lúdico (Faria, Fran-cisco: 2009). Manuel Faria colocou também no M.O. as quadras desta canção: “O Barbosa foi ao mar/ Em manhã de nevoeiro /O que trouxe no anzol /Foi os cornos dum carneiro/Olha para a água/Ri­te para mim/Bate o pé na areia/Faz terrim, tim, tim.”. assim, manuel faria “brincou” com este tema, harmoni-zando-o de forma romântica. Constatámos esta alusão ao nacio-nalismo romântico no espólio literário, através da conferência Comemoração do Centenário de Frederico Chopin (1949):

Era ao piano que [Chopin] matava as saudades da pátria, ora evocando as glórias do

passado nas polacas grandiosas, cavaleirescas, ora desenhando em graciosos ritmos

de mazurka ou valsas a imagem fagueira da sua vida familiar e campesina. (Faria,

Manuel: 1949: p. 5)

manuel faria não deixa dúvidas quanto ao seu amor pelo género popular, dando a este uma importância vital não só na sua obra, mas na sua vida quotidiana:

A música popular tem para nós a mesma importância da terra onde nascemos, da fa­

mília onde crescemos, como da educação que nos encaminhou nos primeiros passos

nas sendas do mundo. (Faria, Manuel: S/d Música popular e música erudita: p.20)

tiroliro (incompleta e sem data)

à semelhança da peça o barbosa foi ao mar, esta obra é tam-bém testemunho da importância do contexto popular na sua obra. Apesar do documento não ter data, o material utilizado, bem como o tipo de obra (variações), é em tudo idêntico às peças escritas entre 34-39. Ainda sobre a música popular, o composi-tor refere:

A autêntica música popular é como o “alecrim doirado, ­ que nasce nos montes – sem

ser semeado”. Assim o povo a canta, sem a ter aprendido de ninguém. Não se sabe de

quem nasceu, nem onde, nem como. É como uma cristalização da própria alma portu­

guesa (Faria, Manuel: Música popular e música erudita: p. 10).

Quanto à integração dos actuais compositores nessa tradição, não vejo mesmo outra

saída, pois como vamos assimilar culturas estranhas, se não somos capazes de assi­

milar a nossa? Se no passado nos faltam «grandes» é precisamente por olharem mais

para fora do que para dentro. (Faria, Manuel: 1961).

tiroliro apresenta um manuscrito de duas páginas escritas a lápis, sendo o discurso interrompido a meio da segunda página. A obra é pautada por uma linguagem tonal, apresentando o tema principal em vozes internas na mão direita.

marcha fúnebre (1941)

a marcha fúnebre, apesar da tentativa de a tornar numa obra para orquestra, permanece como sendo uma obra para piano

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solo. As duas primeiras páginas do M.O. têm várias marcações a lápis, fruto de tentativas de orquestração, acrescentando várias notas que iriam alterar profundamente o sentido tonal da obra (apesar desta conter várias influências impressionistas na secção central “Religioso”). No M.O. da Marcha fúnebre verificámos que Manuel Faria refere como local de composição S. Miguel de Ceide. Manuel Faria escrevia as suas obras em S. Paio de Ceide e, como se sentia “expatriado” em S. Paio, por ser natural de S. Miguel de Ceide, acabava por referenciar as obras como tendo sido compostas em S. Miguel de Ceide (Faria, Francisco: 2009). escrita em dezembro de 1941, esta obra situa-se num período de transição entre a primeira e a segunda vez que esteve em for-mação no P.I.M.S. de Roma (para onde voltou em Fevereiro do ano seguinte).esta obra resulta, assim, de uma homenagem não só a D. Maria Clementina Pires de Lima Tavares de Sousa mas também à própria família Pires de Lima, uma vez que foi através desta que conseguiu contacto com António Faria Carneiro Pacheco4, que era, na altura, embaixador de Portugal no Vaticano (Faria, Francisco: 2009). Maria de Lourdes Pires de Lima Tavares de Sousa efectuou recolhas e harmonizações de canções populares, sendo autora do livro Folclore musical e tendo igualmente reali-zado conferências no âmbito do folclore musical, como Uma Canção popular minhota e sua origem litúrgica (1940). Apesar das dúvidas que se possam colocar sobre o facto desta obra ser para piano (uma vez que as extensões escritas para a mão direita são impossíveis de alcançar em simultâneo por um só intérprete), a primeira página do M.O. (Faria, Manuel: 1941) não deixa dúvi-das, tendo sido acrescentado a lápis um ponto de interrogação por outro autor. ao nível da linguagem musical, é uma obra que apresenta dois ambientes contrastantes em carácter, bem como ao nível das influências e técnicas de composição. Ao nível da forma, a obra tem uma estrutura tripartida, sendo a terceira parte uma reexposição da primeira, aproveitando temas também da segunda parte.

Figurações rítmicas

da primeira parte.

assim, na primeira parte, verificamos um discurso tonal (em Ré menor5), desenvolvido através de uma célula rítmica, com a utilização de tercinas [reminiscente da Marcha fúnebre (1.º andamento) da 5.ª Sinfonia de Mahler]. Ainda na primeira sec-ção, utiliza ritmos de colcheia pontuada com semicolcheia, muito utilizados no período romântico, nomeadamente por Beethoven ou Chopin.

Em cima: tema da secção central da obra com pedal de tónica na mão esquerda (m.e.)

e acordes de 7.ª na m.d. Em baixo: junção dos dois temas principais na coda final.

na secção central, domina uma linguagem impressionista, utilizando longos pedais de tónica, dominante e sub-dominante na mão esquerda, com utilização constante de pedal (própria da linguagem impressionista), enquanto que na mão direita se observam sequências de acordes de 7.ª sucessivos, todos execu-tados sem levantar o pedal de ressonância. Na terceira secção e na coda final, verificamos a utilização dos temas da primeira e segunda secção em simultâneo, dando assim uma maior coesão e sentido de unidade à obra.

romanza senza parole (1942)

Obra composta em Roma a 28 de Julho de 1942 (manuscrito com quatro páginas a lápis), Romanza senza parole resulta de um exercício académico, pelo que podemos verificar em vários pontos do manuscrito com a indicação “Tema Dato” a lápis azul. Esta peça desenvolve-se numa tonalidade de Mi Maior, englo-bando três temas referenciados pelo compositor (Tema A, c. 1-17, tema B, c. 18-55 e tema C, c. 56 até ao final). À semelhança das Quatro pequenas peças para piano, é fruto não só do contexto académico em que Manuel de Faria se inseriu, mas também um testemunho da sua formação em Itália, onde teve como profes-sores D. Gregório Suñol (Canto Gregoriano), Cesare Dobici (Contraponto), Raffaele Casimiri (Polifonia), Eduardo Dagnino (Crítica e Estética), Licínio Recife (Composição) e Ferruccio Vignanelli (Órgão) (Martins: 2008).apesar desta ser uma obra completa, a última página do manuscrito não apresenta o discurso musical de forma continu-ada devido às várias correcções feitas pelo compositor.

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adeus (1948)

a peça adeus foi composta em braga a 16 de Outubro de 1948, não tendo nenhum dedicatário. O M.O. da peça tem apenas duas páginas escritas a lápis, existindo no verso da primeira uma harmonização de Manuel Faria do Hino da Juventude Cristã Por­tuguesa do compositor Armando Leça. Adeus é uma peça com uma linguagem modernista, com utilização de acordes de 7.ª e 9.ª, típicos do impressionismo francês. A utilização de 7.ª e 9.ª acaba muitas vezes por se traduzir na sobreposição de acordes com tonalidades que têm entre si várias notas em comum.

fala um anjo (1950)

esta obra, escrita em braga, contém referências contraditó-rias em relação ao facto de ser para piano ou órgão. Também a sua data, apesar de estar referida no manuscrito, tem sido alvo de leituras ambíguas. Na tese de Cristina Faria está catalogada como sendo uma obra para piano que data de 1950. Contudo, há duas referências na biblioteca que a classificam como reportó-rio para órgão e com data de 7 de Fevereiro de 1958 ou 7 de Novembro de 1958. Estas divergências justificam-se com o facto de o compositor tanto utilizar numeração romana como árabe na data do mês, para além da pouca clareza na indicação do ano. Analisando o manuscrito, verificamos que a leitura mais prová-vel será 7 de Novembro de 1950. a ambiguidade da instrumentação também é justificada; no entanto, a indicação no início da partitura “Tudo uma 8.ª acima do princípio ao fim” (Faria, Manuel: 1950) e a tessitura das notas agudas escritas (uma oitava abaixo do que soa), indiciam que a obra é, efectivamente, para piano. Se a ausência de indicações de pedal poderia sugerir uma obra para órgão, podemos tam-bém constatar no segundo andamento da Sonatina para piano que nem sempre o compositor escrevia pedais. Ao nível do dis-curso musical, desenvolve-se uma certa “metamorfose” até à tonalidade de Dó Maior (com que acaba), apresentando a sua 7.ª maior logo no primeiro compasso, iniciando a viagem até ao acorde perfeito maior final. À semelhança da peça Adeus, apre-senta várias sucessões de acordes de 7.ª e 9.ª, com uma recor-rente utilização de cromatismos, de alguma forma característi-cos de um certo modernismo francês, pelo qual Manuel Faria tinha especial apreço.

o meu relógio (1955)

esta é uma pequena peça infantil cujo manuscrito tem duas páginas. Podemos ler a dedicatória “para a Cristininha” feita no aniversário de Cristina Faria, já nos anos 60. Foi executada em Braga pela dedicatária, numa audição de intercâmbio entre o Conservatório Regional de Coimbra e o Conservatório Calouste Gulbenkian de Braga (Faria, Cristina: 1998). Foi composta no mesmo ano que O livro da Maria Frederica (1955) do seu amigo e compositor Frederico de Freitas, com o qual contactou desde 1951, quando este era maestro da Orquestra Sinfónica do Con-servatório de Música do Porto. Existe correspondência trocada entre os compositores até Dezembro de 1979, um mês antes da morte de Frederico de Freitas. Boaventura Faria, aluno de piano do compositor, relata-nos ainda o seguinte:

Manuel Faria foi, enquanto professor, o Mestre dos mestres. Pedagogo inato, nunca

desistia de um aluno, com a desculpa de que não tinha ouvido (sempre o ouvi dizer:

“o ouvido educa­se!”). Inerente à exigência que colocava no ensino da música, era,

igualmente, a sua compreensão para quem denotava maiores dificuldades, a sua ge­

nerosidade para com os que erravam. (Faria, Boaventura: 2009).

quatro pequenas peças para piano (1961)

as quatro pequenas peças para piano foram compostas em Roma. As datas de composição variam poucos dias entre si em Outubro de 1961, sendo a primeira (Invençãozinha) composta a 16, a segunda (Prelúdio) e a quarta (Scherzetto) a 18, e a terceira (Melodia) a 19. Foram investigados dois manuscritos diferentes desta obra, constando a seguinte dedicatória no verso da capa da partitura original oferecida a Cristina Faria: “Para a Cristininha, com muitas desculpas por estas esquisitices, o tio Manuel” (Faria, Manuel: 1961: p. 2). No outro manuscrito, verificamos que este contém várias anotações de instrumentação das quatro peças que são (segundo informação resultante da investigação de Paulo Bernardino sobre a música instrumental de Manuel Faria) a instrumentação das peças n.os 3, 7, 8 e 9 das Nove pequenas peças para orquestra de câmara (1961-65), havendo algumas diferenças entre esta instrumentação e a versão final. a estreia destas peças data de 7 de julho de 1962, em Braga, pela pianista Maria de Lourdes Álvares Ribeiro, sobre a qual o compositor escrevia, a 12 de Junho, no Diário do Minho, as seguintes palavras:

Cumpre dizer duas coisas: ­ que a pianista os valorizou com uma execução muito in­

teligente, e que o público as recebeu com uma surpresa cheia de simpatia, premiando

assim o muito esforço (senão valor) dum compositor, que será talvez insignificante no

panorama nacional, mas é em Braga, até à data, o único no género, bem que posto à

margem de tudo o que não seja trabalho desinteressado. (Faria, Manuel: 1962).

estas peças são fruto do contacto de Manuel Faria com Goffredo Petrassi, enquadrando-se no contexto académico. As últimas três peças são escritas usando uma linguagem dodeca-fónica serial. No entanto, a peça Invençãozinha (primeira peça a ser escrita) contém em si uma pequena homenagem a J. S. Bach, que se expressa não só na sua polifonia, como também na suges-tão de cadência picarda final após intensa politonalidade (utili-zando doze tons no mesmo compasso). As restantes três peças são escritas segundo os padrões dodecafónicos seriais, podendo--se vislumbrar a série dodecafónica logo no início do Prelúdio. Manuel Faria referiu-se ainda ao dodecafonismo destas obras em carta a Frederico de Freitas:

Depois de ter estudado o dodecafonismo estou como o burro no meio da ponte. Por um

lado não há meio de forçar a minha sensibilidade a aceitar as cacofonias (para mim é

o termo) do Schoenberg e do Webern. Por outro lado, encontro cheios de beleza o Alban

Berg e o Dallapicola (embora com restrições a respeito deste), e doutra parte ainda, fui

há dias ouvir as minhas três peças dodecafónicas (rigorosamente) para piano e sabe

que as achei bonitas? Por isso não sei o que faça. (Faria, Manuel: 1962).

no entanto, o tratamento interpretativo destas peças, principalmente ao nível do pedal de ressonância, teve como principal referência o compositor Olivier Messiaen, em que a utilização do pedal tem uma função preponderante na obtenção de sonoridades que sustentem as várias dissonâncias e choques harmónicos criados pela série dodecafónica. Tal facto foi-nos relatado em entrevista pela pianista Maria de Lourdes Ribeiro:

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O que mais preocupava o P. Faria era o espectro tímbrico, (…) é necessário compre­

ender que movimento e gesto são coisas diferentes porque o último está acoplado à

intencionalidade e o primeiro não. Ora nos sons do arco­íris essa acoplagem, implica

a participação do braço e de todo o corpo, com especial incidência nos aspectos de­

pendentes dos pedais, uma vez que temos de jogar com a palete dos harmónicos (…).

Quanto aos compositores nomeados temos sobretudo Messiaen (Ribeiro, 2009).

maria de lourdes ribeiro acrescenta ainda que “era preciso uma experimentação sonora que quase abusasse do pedal para dar o efeito das sonoridades e coloridos necessários” (Ribeiro, 2009). O manuscrito revela também no final a seguinte frase: “O uso do pedal requer especiais cuidados, com a preocupação do timbre.” (Faria, Manuel: 1961). manuel faria escreve ainda, em relação a Olivier Messiaen, as seguintes palavras no seu artigo Olivier Messiaen ­ compositor católico:

M.O. de Olivier Messiaen ­ compositor católico, p.10.

Messiaen, longe de ser um académico pedante, que giza regras para pontificar numa

escola, mostra­se antes o artista seguro da sua técnica, que toma plena consciência

dos seus meios pelo que se exprime e se realiza a sua mensagem de beleza. [p.10] (…)

Parece­me até que, se podemos considerar a música de Stravinsky paralela ao cubis­

mo, e a de Schöenberg a certas congeminações colorísticas derivadas de Picasso, tam­

bém podemos ver em Messiaen um fruto espontâneo do clima em que vagueia mais ou

menos tontamente o existencialismo literário. [p.12] (Faria, Manuel, S/d: p.9-12)

é também importante salientar que, em 1959, Jorge Peixinho estuda em Roma com Goffredo Petrassi (Martins: 2008), com-pondo as Cinco pequenas peças para piano6, atonais, usando diversas técnicas de origem dodecafónica, tal como nos relata Cândido Lima:

As Cinco pequenas peças (1959) abrem um novo universo no pensamento e na obra

de Jorge Peixinho. O dodecafonismo e o serialismo, que nestas peças têm a sua primei­

ra manifestação, ainda de natureza claramente académica, irão desempenhar uma

função estruturadora e catalizadora em toda a sua música.

no entanto, o experimentalismo seguido por Peixinho não encontrava eco na obra de Manuel Faria que, no seu artigo Música de Laboratório, dizia o seguinte:

Terá a música de ser apeada do seu milenário trono de rainha das Artes para se sentar

envergonhada no banco de aula de ciências electroacústicas? (…) Venham (…) to­

dos os ensaios e novas técnicas disciplinares – música dodecafónica, serial, concreta,

electrónica (…) atómica ou sideral (…) venha (…) como subsídio para a grande sín­

tese (…). Agora fazer de isso a música pura que substitui toda a do passado, não nos

comove (…). (Faria, Manuel, 1960).

sonatina para piano (1982)

a sonatina para piano foi composta em braga no mês de Junho de 1982, aproximadamente um ano antes do falecimento do compositor. Esta, enquanto obra de três andamentos, foi dedi-cada a Maria de Lourdes de Sousa Álvares Ribeiro. Apesar dos

manuscritos presentes na B.G.U.C. não terem dedicatória, encon-trámos, no verso da partitura oferecida pelo compositor à pianista, a seguinte dedicatória: “A Maria de Lourdes A. Ribeiro com admi­ração e afecto, Natal de 1982.” (Faria, Manuel: 1982). No entanto, apenas o primeiro andamento foi composto nesse ano, uma vez que o segundo e o terceiro andamentos eram peças já existentes e que foram integradas na Sonatina para piano em 1982.assim, o segundo andamento foi composto originalmente como Momento musical, sendo esta peça composta em Ceide, a 4 de Março de 1979, e dedicada no aniversário de Cristina Faria como consta no manuscrito: “À Cristininha no dia dos seus radio­sos 18 anos, o tio Manuel” (Faria, Manuel: 1979: p. 1). O terceiro andamento da Sonatina para piano foi escrito, em primeira ins-tância, como Dança de Roda, composta em Ceide, a 5 de Feve-reiro de 1975. Esta peça foi também dedicada a Cristina Faria.a estreia desta obra esteve mais uma vez a cargo da pianista Maria de Lourdes Álvares Ribeiro, a 7 de Julho de 1984, num concerto organizado pela Associação de Coros Paroquiais de Vila Nova de Famalicão, que teve lugar no auditório da Fundação Cupertino de Miranda (Martins, 2008 e Faria, Francisco: 2009). Neste concerto participou também o Coro D. Pedro de Cristo dirigido por Francisco Faria (Faria, Francisco: 2009).existem dois manuscritos da Sonatina para piano na B.G.U.C., sendo que num deles não figura a primeira página do segundo andamento. A obra apresenta uma grande heterogeneidade de estilos entre os três andamentos, o que poderá dever-se ao facto de ter sido escrita em períodos diferentes (embora todos perío-dos de maturidade). Essa era também uma das características de Manuel Faria enquanto compositor, como nos relata o seu irmão em entrevista: “Pode­se dizer que foi um compositor que dedicava muito pouco tempo à composição, de modo que hoje fazia um pouco e parava e só continuava passado um tempo.” (Faria, Francisco: 2009). assim, verificámos no primeiro andamento raízes dodecafó-nicas, tendo também influências neoclássicas e neomodais, uti-lizando a escala de tons inteiros em conjunto com a escala cro-mática para obter sonoridades com os 12 tons, alcançando assim um dodecafonismo não sistemático. A sua forma é muito seme-lhante à forma sonata utilizada por Francis Poulenc (com uma forma ABA, sendo que o B é exposto mais como um tema lento do que propriamente como um desenvolvimento de sonata).

c. 7-8 com escalas de tons inteiros intercaladas na mão direita e terceiras cromáticas na

mão esquerda.

o segundo andamento apresenta uma linguagem com uma envolvência e tratamento típico do impressionismo francês. A utilização de acordes de 7.ª e 9.ª é abundante, tal como nas peças Adeus e Fala um anjo. Ao nível da utilização de pedal, apenas o M.O. do Momento musical (1979) apresenta as indicações de pedal do compositor. Nenhum dos dois manuscritos da Sonatina para piano (1982) presentes na B.G.U.C. apresenta qualquer tipo de indicação de pedal.

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o terceiro andamento é uma peça de cariz nacionalista moder-nista, muito à semelhança de Bartók ou Lopes-Graça. Os ritmos vivos e bem marcados das danças de roda tradicionais (como aliás sugere o título da peça Dança de roda, escrita em 1975 e “reutilizada” neste andamento), são assim o mote para um tra-tamento rítmico e melódico simétrico. Os intervalos apresenta-dos ao longo de uma grande parte da obra são executados de forma simétrica, utilizando entre eles eixos de simetria, marca-dos pela dissonância Lá com Lá # em simultâneo, sendo a obra pautada por intervalos de 4.ª e 5.ª.

conclusões nas obras investigadas, identificámos vários métodos de composição com os quais qualquer intérprete deverá estar familiarizado para melhor compreender e interpretar a obra para piano solo de Manuel Faria. Uma utilização cuidada a nível do pedal, no que diz respeito à música com forte influência francesa, ou um extremo cuidado com a articulação e gradação dinâmica, patente na Segunda Escola de Viena, são alguns dos requisitos básicos para podermos executar de forma esclarecida e academicamente fundamentada as obras investigadas. Por último, de salientar os contextos popular, religioso e académico, que formam a espinha dorsal da sua produção musical e que não devem ser negligenciados na análise da obra para piano de Manuel Faria. Segundo o seu irmão Francisco Faria: “aquele espírito foi cimentado em duas colunas firmes – a alma do povo e a fé na igreja de Jesus Cristo e moldado por dois amores: o amor à sua terra e aos seus e o amor a Deus.” (Faria, Francisco: 1983: p. 2).

referências bibliográficas

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musicografia (todos os documentos fazem parte do Espólio musical de Manuel Faria, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra)

Faria, Manuel. S/Dt. Tiroliro.Faria, Manuel. 7 de Novembro, 1950. Fala um anjo. Faria, Manuel. 1955. O meu relógio. Faria, Manuel. 24 de Março, 1934. Fantasia brilhante sobre dois temas do hino do seminário. Faria, Manuel. 12 de Novembro,1935. O Barbosa foi ao mar. Faria, Manuel. Dezembro, 1941. Marcha fúnebre. Faria, Manuel. 28 de Julho, 1942. Romanza senza parole. Faria, Manuel. 16 de Outubro, 1948. Adeus. Faria, Manuel. Outubro, 1961. Quatro pequenas peças para piano. Faria, Manuel. 5 de Fevereiro, 1975. Dança de roda. Faria, Manuel. 4 de Março, 1979. Momento musical. Faria, Manuel. Junho,1982. Sonatina para piano.

1 A Nova Revista de Música Sacra é publicada trimestralmente e a primeira edição data de Janeiro de 1971, sendo que a última revista da 1.ª série data de 1973. Só em 1977 a N.R.M.S. voltou a ser impressa, tendo a primeira revista da 2.ª série o número 1. O ano de publicação era assim o Ano IV. A N.R.M.S. teve como directores o Cónego Manuel Faria entre 1971 e 1983 (ano da sua morte) e António Azevedo de Oliveira, que sucedeu ao compositor após a sua morte.

2 A catalogação de referência para esta investigação, bem como da tese de mestrado Manuel Faria e o Piano. Das fontes primárias à performance de 2009, apresentada na Universidade de Aveiro sob orientação de Helena Marinho, foi a de Cristina Faria (Faria, Cristina: 1992 e 1998), que foi o resultado da sua tese de 1992, editada em 1998 pela Câmara Municipal de Famalicão. Na catalogação referida verificamos várias obras para piano presentes na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (B.G.U.C.). (Pereira, André. 2009)

3 Padre, compositor e director de coros. Foi também professor de Canto Gregoriano, História da Música, Piano e Harmónio no Seminário Concilia de Braga. Foi também director do Correio do Minho e director-geral da Fundação Cupertino de Miranda. Foi membro da comissão bracarense de Música Sacra, tendo colaborado com a N.R.M.S., onde tem obras publicadas.

4 (1887-1957) Professor de direito em Coimbra e Lisboa. Foi Ministro da Instrução Pública de 18 de Janeiro de 1936 a 28 de Agosto de 1940. Fundador da Mocidade Portuguesa (1936), da Mocidade Portuguesa Feminina (1937), sendo deputado entre 1934 e 1938. Embaixador de Portugal no Vaticano de 1940 a 1946.

5 Já a 17 de Maio de 1937, Manuel Faria compunha um Requiem também em Ré menor, no “dia do falecimento do saudoso mestre Sr. Padre Alaio”.

6 Gravadas pelo próprio Jorge Peixinho e, recentemente, pelo pianista Miguel Borges Coelho, sendo actualmente investigadas por Francisco Monteiro, juntamente com a restante obra para piano e música de câmara do compositor.

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com uma maior incidência a partir da segunda metade do século XIX, a ilha do Faial e mais concretamente a cidade da Horta tornaram-se num ponto de confluência dos mais diversos meios culturais. Vários factores contribuíram para esta confluência cultural à terceira cidade insular em termos de importância, situada na periferia do reino português.a história da cidade da horta reflecte um crescente grau de cosmopolitismo, construído ao longo dos séculos. Isto acon-tece já aquando do seu povoamento, em finais do século XV, com a chegada de flamengos, assim como de gentes provenientes do Norte e do Sul do continente português. A baía onde é implan-tada a cidade, desde o primeiro povoamento, oferece carac-terísticas excepcionais como porto de abrigo. Este facto será preponderante na história desta cidade aberta ao mar. Será, pois, a exploração do mar como meio de comunicação, um dos factores dos quais advirão os proveitos a nível económico, social e, consequentemente, a nível cultural1.no século xix irá existir um crescente fluxo de navios a deman-dar o porto da Horta, nomeadamente navios a vapor. Com a cons-trução do porto artificial em 1876, apesar da abertura da doca de Ponta Delgada, acentua-se cada vez mais este fluxo marítimo. Este facto potencia o estabelecimento na Horta de empresas de apoio a esses mesmos navios, fornecendo-lhes carvão, víveres, reparação de avarias, entre outros serviços2.a primeira empresa a radicar-se na Horta para esse serviço é a do cônsul-geral dos Estados Unidos da América nos Açores, John Bass Dabney. Esta empresa atingirá o seu apogeu com o seu filho Charles William Dabney3. A família Dabney será, até à sua retirada do arquipélago em 1892, determinante a nível cultural na Horta do século XIX. Esta família de origem americana pertencente a uma classe burguesa endinheirada irá promover os mais diversos eventos sociais, nos quais a música estará destacadamente representada. A elite burguesa da cidade fará também parte integrante deste círculo social4.

entre os navios que demandam o porto da Horta encontram- -se grandes navios de passageiros, assim como navios de guerra das potências mundiais. Estes últimos incluem os maiores navios de linha das respectivas marinhas de guerra de países como os Estados Unidos da América, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, entre outros. Com estas esquadras geralmente vinha uma banda de música ou outro agrupamento musical que, a pedido das autoridades locais, apresentavam-se em concertos na cidade ou em recepções dadas pela elite local aos oficiais dos navios5. Esta interacção irá ser importante para a criação, assim como para o desenvolvimento, das bandas filarmónicas locais, que se começa a fazer sentir de forma mais sistemática a partir da década de setenta do século XIX.os saraus musico-literários eram eventos sociais caracterís-ticos da burguesia local. Neles, os membros das famílias mais proeminentes tinham a oportunidade de exibirem a sua habili-dade, tanto musical, como também literária. Os programas misturavam música e poesia. O programa musical compunha-se de pequenas peças para piano ou para voz e piano, ou outro ins-trumento, como o violino ou a flauta. Estas compreendiam valsas, fantasias, romanzas, ou árias avulsas retiradas das óperas mais conhecidas de compositores como Giuseppe Verdi, Gaetano Donizetti ou Vincenzo Bellini. Compositores amadores locais também aparecem representados nestes programas, escrevendo peças de carácter mais ligeiro, como polkas ou mazurkas, sobre-tudo para piano. A poesia, regra geral, era da autoria de escri-tores locais versando a temática da insularidade como também da saudade6. Estes poetas chegam a ganhar alguma popularidade na ilha do Faial, ilhas vizinhas, e até mesmo a nível regional. Estas reuniões culturais realizavam-se em amplas salas, geral-mente em edifícios públicos (como é o caso do palacete do Governo Civil), ou em casas da burguesia mais abastada como é disso exemplo o Palacete de Santana, pertença de Rodrigo Alves Guerra, segundo barão de Santana7. as sociedades e clubes também têm um papel importante na prática musical na Horta do final do século XIX. Estas também promovem soirées e bailes onde se reúne a burguesia da cidade8. Sociedades como o Ginásio Clube, Sociedade Amor da Pátria,

Luís C. F. Henriques | Texto

Cosmopolitismo Musical na

Cidade da Horta no Final

do Século XIXCidade da Horta com a vista do Pico Fayal – Açores. Bilhete-postal emitido no início do século XX. Editor deconhecido.

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Sociedade Humanitária, são autênticos motores da cultura, subsi-diando escolas, constituindo bibliotecas e promovendo a prática do teatro assim como da música9.a burguesia estrangeira também tem um papel activo nestas reuniões. O já mencionado vice-cônsul americano Charles Dabney, assim como o vice-cônsul alemão, entre outros, pro-movem soirées, jantares e outros eventos, onde é convidada a burguesia local. Estes eventos decorrem nos mesmos moldes que os patrocinados pela burguesia, utilizando também os mes-mos espaços acima mencionados.estas festas são também animadas por agrupamentos instru-mentais de maior dimensão: as orquestras10. Estas têm um papel fundamental na vida musical da cidade da Horta e até mesmo nas ilhas do Faial e Pico. Contam-se cinco agrupamentos deste tipo na Horta a partir da década de setenta11. Estes grupos tinham as mais diversas funções, que iam desde a actuação nas festas da sociedade e no teatro até ao acompanhamento de cerimónias litúrgicas. Estas orquestras começam por surgir no âmbito das associações recreativas. Cada associação possuía um palco onde se realizavam espectáculos de vária ordem com frequência. É disso exemplo a Sociedade Humanitária que, no início da década de oitenta, cria a sua própria orquestra, sob a direcção do pianista José Cândido Bettencourt Furtado12. Esta orquestra irá, em 1884, dar origem à célebre orquestra “João de Deus”.a orquestra “joão de deus”13 surge assim, em 1884, de músi-cos pertencentes à orquestra da Sociedade Humanitária com a inclusão de novos elementos. Tem por fundadores João de Deus Teixeira e o pianista e organista Henrique de Sousa Fur-tado. Esta orquestra parece ter sido a primeira a funcionar como uma associação autónoma. Contudo, não o podemos afirmar com certeza pois um outro agrupamento do género já existente, a orquestra “4 de Novembro”, parece partilhar o mesmo esta-tuto. Esta será, indubitavelmente, a orquestra mais bem organi-zada que existirá na cidade da Horta. Será também a orquestra mais requisitada, para os mais variados eventos. Estes serviços são, na sua maioria, de acompanhamento das cerimónias litúr-gicas celebradas nas igrejas da Horta, como também por toda a ilha do Faial14. A igreja detém a maior percentagem de requi-sições. Esta orquestra, junto com a capela da Matriz da Horta, irá estrear a 21 de Agosto de 1898, nas Festas do Bom Jesus de São Mateus do Pico, a música composta especialmente para a festa pelo, na altura recém-laureado, Tomás Vaz Borba. A orquestra também tem um papel importante no teatro União Faialense no acompanhamento das companhias de zarzuela e de variedades que passam pela cidade.para além da orquestra “joão de deus” tiveram actividade na Horta a já citada orquestra “4 de Novembro”, a orquestra “União Musical” e a orquestra “Simaria”. A orquestra “4 de Novembro” parece ser, destas formações, a mais antiga. O seu nome já apa-rece na imprensa faialense na década de setenta15. Esta orques-tra mantém-se em actividade até meados da década de noventa, altura em que deixamos de ter notícia sobre as suas actividades. Muito provavelmente, dada a hegemonia da orquestra “João de Deus”e a criação de uma nova orquestra, terá sido dissolvida. Esta nova orquestra surge em 1894 e dá pelo nome de “União Faialense” por estar ligada ao teatro com o mesmo nome, e tem por director José Cândido Bettencourt Furtado. Mantém-se em actividade até 1902, altura em que se funde com a orquestra “Simaria”, da qual era director Francisco Xavier Simaria. Sima-ria, primeiro violino na orquestra do Teatro de S. Carlos, chega à Horta como director musical de uma companhia de zarzuela. Acaba por se fixar na cidade da Horta em 1896. A presença de

Simaria na Horta é decisiva para vida musical na cidade16. Este, para além de violinista, torna-se director musical tanto da orques-tra que funda como também de várias filarmónicas da ilha, abrindo uma aula de música em 189617. Será uma das figuras musicais da ilha durante a primeira metade do século XX.francisco xavier simaria irá ter um papel preponderante na dinamização e florescimento de algumas bandas filarmónicas como a Nova Artista Flamenguense e Artista Faialense. As bandas filarmónicas constituem-se na ilha do Faial ao longo da segunda metade do século XIX. Estas são muito provavelmente as entida-des musicais mais cosmopolitas na Horta dos finais do século. Isto acontece sobretudo pelo motivo apontado anteriormente. As esquadras das Marinhas de Guerra de vários países escalavam o porto da Horta, para receber carvão e víveres. Ao fazê-lo demo-ravam-se alguns dias pelo porto, sendo que as bandas que vinham a bordo costumavam ir a terra e presentear a cidade com um concerto, geralmente no coreto do jardim público.esta proximidade proporcionava o contacto e a troca de experi-ências, assim como de repertório18. Existem casos em que obras escritas por compositores locais, como é o caso de Simaria, são oferecidas a essas mesmas bandas19. Começam também a figurar nos programas, publicados nos jornais da cidade, anunciando concertos pelas filarmónicas de obras com títulos que sugerem uma ligação a esses navios de passagem pela Horta. Do Brasil também chegam obras, que são tocadas tanto pelas filarmónicas como pelas orquestras já mencionadas no teatro da cidade.o teatro tem um papel central na sociedade da cidade da Horta. É aqui que se desenrola grande parte da vida musical da cidade. Aliada à prática teatral existe também uma prática musical que se estende desde os concertos por assinatura à zar-zuela e opereta, passando pela comédia ornada de música20. Os amadores locais têm um papel importante, promovendo récitas e espectáculos de variedades em que está sempre pre-sente uma das orquestras da cidade. Passam também pela Horta, companhias de zarzuela e ópera cómica. É disso exemplo a com-panhia do actor micaelense radicado em Lisboa, Pedro Cabral. Nesta companhia vem como director musical Alexandre Ferreira, músico da orquestra do Teatro de S. Carlos21. Vem também vários anos à Horta a companhia de Santos Jr., da qual é director musi-cal o já mencionado Francisco Xavier Simaria, acabando este por se radicar na Horta. Os espectáculos promovidos no teatro, na maioria dos casos por assinatura, conjugam a recitação de poesia com números musicais, geralmente voz ou instrumento solista acompanhado de piano.o piano é um instrumento central na música burguesa do final do século XIX. Na Horta, como na ilha do Faial, isso não é excepção. Não existe exactidão quanto ao número destes ins-trumentos existentes na ilha mas, pelo número de oficinas de manutenção, presume-se que o seu número seria elevado. Chegam a existir na cidade da Horta, no início da década de noventa, cinco casas de pianos22. Estas dedicavam-se à impor-tação dos instrumentos de França, Inglaterra e Estados Unidos da América. Para além disso também disponibilizavam serviços de manutenção dos instrumentos, como sejam a afinação, encordoamento ou outro trabalho específico.a casa que terá maior actividade na comercialização e manu-tenção de pianos será a casa de João de Deus Teixeira. João de Deus, como era conhecido, nasce na ilha do Pico em 1852. Filho de pai incógnito, cedo vem para a Horta onde passa a sua juventude no Asilo de Infância Desvalida, instituição pública que acolhia os órfãos, filhos fora do casamento e expostos. Aí deve ter rece-

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bido alguma educação musical, provavelmente por via eclesiástica. Teixeira vem a abrir a sua casa e oficina não só de importação e manutenção de pianos como também de outros instrumentos, nomeadamente de órgãos de tubos. Para além de artífice, tam-bém é músico sendo fundador da orchestra que ostentará o seu nome, fundada em parceria com Henrique de Sousa Furtado, onde, para além de director, também é primeiro violino.merece especial destaque a existência na cidade da Horta, nos finais do século XIX, de duas oficinas de organaria. A primeira oficina pertenceu a João de Deus Teixeira (1852-1904) e a segunda a Manuel de Serpa da Silva (1848-1928). Estes não são propriamente construtores de órgãos de tubos, apesar de serem frequentemente tidos como tal23. Estes mestres marceneiros, como frequentemente eram designados, encomendam órgãos, produzidos em série, nos Estados Unidos da América, França ou Reino Unido, montando-os mais tarde nas igrejas a que se desti-nam24. Durante o processo de montagem dos instrumentos por vezes introduziam melhoramentos por eles desenvolvidos, como é o caso dos foles e do método de inserção de ar nos mesmos.o marceneiro e organeiro (títulos pelos quais é tratado) Manuel de Serpa da Silva nasceu na cidade da Horta em 1848. Na década de oitenta emigra para os Estados Unidos da América primeiramente para trabalhar como marceneiro na então flores-cente e lucrativa indústria baleeira. Nos Estados Unidos parece ter adquirido e aperfeiçoado os conhecimentos que já possuía, regressando à ilha do Faial no final da década de oitenta. Abre oficina nesta cidade, iniciando a importação de uma série de órgãos de tubos da Costa Leste americana. Estes órgãos são uma inovação em termos técnicos pois são instrumentos “moder-nos”, não possuído quaisquer semelhanças aos instrumentos já existentes, de características ibéricas25.os seus órgãos encontram-se distribuídos pelas ilhas de S. Miguel, Terceira, S. Jorge, Faial e Flores. Para além de montar os instrumentos, a oficina de Serpa da Silva também reparava e mantinha tanto os instrumentos encomendados, como tam-bém os outros instrumentos “históricos” já existentes. Note-se a peculiaridade de serem, na sua maioria, provenientes das casas Machado e Cerveira e Fontanes. Este, por assim dizer, “serviço de manutenção” levava Serpa da Silva a frequentes viagens para todas as ilhas do arquipélago onde, por vezes, se demorava alguns meses nas reparações e manutenção dos órgãos assim como também em concertos de harmónios, ins-trumento bastante popular nas ilhas durante este período26. A oficina de Manuel de Serpa da Silva, para além da comercia-lização de órgãos de tubos e harmónios, também se dedicava à manutenção de pianos e à construção e comercialização de instrumentos de cordas. Antes de se especializar na organaria, Serpa da Silva já construía bandolins, violas da terra, guitarras e cavaquinhos. Especial destaque tem o rabecão (contrabaixo de cordas) que fez para a orquestra “4 de Novembro”, na qual tocava violino. Aquando da sua morte, em 1928, há referência à existência na sua oficina de um piano de meia cauda em estado avançado de construção27.na horta, para além da oficina de Manuel de Serpa da Silva, também se dedica à importação e montagem de órgãos de tubos a casa do já mencionado João de Deus Teixeira. O volume de negócio de Teixeira é bem mais modesto que o de Serpa da Silva, ficando-se pela montagem de quatro instrumentos, distribuí-dos pelas ilhas do Faial e Pico. Como Serpa da Silva, também João de Deus Teixeira, através da sua casa, repara estes instru-mentos, deslocando-se com frequência à ilha do Pico. Estes órgãos têm um papel central na prática de música religiosa.

a música sacra, pela ligação à igreja católica, tem bastante importância no contexto da prática musical no Faial. Na cidade da Horta todas as igrejas (Conceição, Carmo, São Francisco, Matriz e Angústias) possuem uma capela de música, algumas com órgão de tubos28.destas capelas destaca-se a capela da matriz pela sua intensa actividade musical. A igreja Matriz da Horta, pela sua importân-cia central na cidade, tem um papel difusor da música religiosa na ilha do Faial e vizinha ilha do Pico. A Capela da Matriz é fre-quentemente requisitada para cerimónias religiosas nestas duas ilhas. É escrita música propositadamente para esta capela. Esta provém do Brasil, onde músicos emigrantes enviam obras de sua autoria ou de autores conhecidos para serem feitas nas festividades das suas paróquias de origem. Na ilha do Pico tam-bém isso acontece, com especial relevo para as festividades do Senhor Bom Jesus, na freguesia de São Mateus. a horta do século xix é uma cidade que se situa na periferia do Reino de Portugal, mas, ao mesmo tempo, é uma cidade que se situa no centro do Atlântico, ligando a Europa à América. Este ponto é determinante para o entendimento da vida musical desta cidade, na segunda metade do século XIX. Apesar da sua condição periférica, a cidade da Horta possui todas as caracte-rísticas de uma cidade cosmopolita, recebendo em certa forma, para além da cultura local, uma cultura internacional.

1 Ricardo Madruga da Costa, “Faial (Ilha)”, Enciclopédia Açoriana, http://pg.azores.gov.pt/drac/enciclopedia.html.

2 Maria Isabel João, Os Açores no Século XIX: Economia, Sociedade e Movimentos Autonomistas (Lisboa: Edições Cosmos, 1991), 198.

3 Ibid., 117.

4 João Afonso, “Dos Anais da Família Dabney para a história oitocentista dos Açores numa perspectiva atlântica” in O Faial e a Periferia Açoriana nos Sécs. XV a XIX (Horta: Núcleo Cul-tural da Horta, 1995), 231-266.

5 O Telégrafo, 27 Setembro, 1894.

6 O Telégrafo, 30 de Novembro, 1896.

7 Marcelino Lima, Famílias Faialenses (Subsídios para a História da Ilha do Faial) (Horta: Tip. Minerva Insulana, 1922), 525-526.

8 O Telégrafo, 30 de Dezembro, 1895.

9 Marcelino Lima, Anais do Município da Horta (História da Ilha do Faial), ed. facsimilada (Horta: Câmara Municipal da Horta, 2005), 450.

10 O termo “orquestra” não é utilizado na sua acepção actual mas sim significando um grupo instrumental heterogéneo, que actualmente poder-se-ia designar como “ensemble”.

11 Luís C. F. Henriques, “As Orchestras no Faial 1880-1940: A Orchestra 4 de Novembro”, Inédito.

12 Lima, Anais do Município da Horta, 450.

13 O seu nome advém de João de Deus Teixeira, co-fundador e director da mesma até 1900.

14 Luís C. F. Henriques, “As Orchestras no Faial 1880-1940: A Orchestra João de Deus”, inédito.

15 O Faialense, 29 de Setembro, 1878.

16 Carlos Lobão, org., Francisco Xavier Simaria: In Memoriam (Horta: Centro de Estudos e Cultura da Câmara Municipal da Horta, 1989), 10.

17 O Telégrafo, 21 de Outubro, 1896.

18 Ibid.

19 Ibid., 5 de Dezembro, 1894.

20 João A. Ribeiro, “Espectáculos no Faial e na Periferia Açoriana no Século XIX” in O Faial e a Periferia Açoriana nos Sécs. XV a XIX (Horta: Núcleo Cultural da Horta, 1995), 373-387.

21 Ibid., 12 de Julho, 1890.

22 O Faialense, 15 de Maio, 1892.

23 Luís C. F. Henriques, “Manuel de Serpa da Silva: Breve Resenha Biográfica” Inédito.

24 Ibid.

25 Ibid.

26 Ibid.

27 A Democracia, 2 de Junho, 1928.

28 Luís C. F. Henriques, “A Prática de Música Religiosa no Faial no Final do Século XIX”, Inédito.

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tomás vaz borba nasceu na freguesia de Nossa Senhora da Conceição da cidade de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Arqui-pélago dos Açores, a 23 de Novembro de 1867.cedo se manifestou a sua vocação. Ainda criança, iniciou a sua aprendizagem musical na chamada Claustra da Sé, sendo simultaneamente moço-cantor da Capela da Catedral de Angra. Aí teve como professores Guilherme Augusto da Costa Martins, Zeferino da Silveira e José Pedro Soares, entre outros, tendo como condiscípulos Aniceto dos Santos, Vieira Mendes, Alfre-do Campos, António José da Rocha, o notável tenor Francisco de Paula Moniz Barreto e o distinto compositor Pedro Machado de Alcântara.estudou no seminário de angra, onde se formou em Teologia. Depois de ordenado Presbítero, por não poder continuar a desen-volver a sua vocação musical, dadas as limitações da Claustra da Sé, vai viver para Lisboa, partindo de Angra a 21 de Abril de 1891.no conservatório faz um percurso brilhante, estudando piano com Francisco de Lacerda, outro açoriano, da ilha de S. Jorge, e harmonia, fuga e contraponto com Frederico Guimarães e Eugénio Ricardo Monteiro de Almeida. Foi tal a sua dedicação ao estudo que concluiu os cinco anos do curso de Piano em apenas três; Harmonia , que se distribuía por três anos, concluiu-a Tomás Borba em apenas um; frequentou também a aula de con-traponto e fuga conseguindo fazer o curso de cinco anos em apenas três .

terminados os estudos oficiais, não deixou de continuar a apetrechar-se de conhecimentos que o levariam ao magistério, quer no Conservatório Real de Lisboa, quer na Real Academia de Amadores de Música, na Escola Normal de Lisboa, no Liceu da Lapa, cujo orfeão dirigiu, e no Liceu Maria Pia, onde, com o apoio da reitora, Dr.ª Domitila de Carvalho, realizou revolu-cionária e inovadora acção pedagógica, introduzindo a ginástica rítmica nos currículos escolares daquele estabelecimento de ensino. Os conhecimentos, adquiridos por aturados estudos, haviam de conferir-lhe também o necessário métier que trans-formaria radicalmente as suas composições, tornando o seu tal-ento – antes experimental, frágil e amadorístico – depois sólido, amadurecido e profissional.tomás borba possuía uma curiosidade natural e insaciável por aprender e saber. Assim é que, simultaneamente com a forma-ção teológica e musical, vai frequentar o Curso Superior de Letras de Lisboa. Na altura, estudar letras era, sobretudo num sacerdote, uma escolha relativamente ousada. Se se considerar que o Padre Tomás Borba vai estudar, além de Filosofia Moderna, Sânscrito e Literatura e Filosofia Védica, a curiosidade e o res-peito pelo pensamento oriental, que ele manifestamente assume, afiguram-se quase heréticos.para além de teófilo braga, foram também seus professores neste curso Augusto Maria da Costa e Sousa Lobo, Guilherme de Vasconcelos Abreu, Francisco Adolfo Coelho, e Zósimo

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TOMÁS BORBADUARTE GONÇALVES-ROSA | TEXTO

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Consiglieri Pedroso. A abertura a novas ideias e o convívio com intelectuais de quadrantes ideológicos diferentes não o faziam vacilar nas suas convicções. Em entrevista a Dinis da Luz, já no fim dos seus dias, refere: “Teófilo Braga foi meu professor no Curso Superior de Letras. Além disso, mais do que isso, foi meu amigo e conselheiro até. Falava­me sempre com a maior delicadeza espiri­tual, embora tivéssemos filosofias opostas.”. A amizade e admira-ção são recíprocas. Borba escreveu algumas canções para letras do seu professor, algumas de pendor religioso: disso é exemplo uma peça coral natalícia, Nasceu o Messias, que também aparece num cânone, porém com o título de Hora de Resgate. A 16 de Outubro de 1913, Teófilo Braga, em bilhete-postal, mostra a sua admiração pelo seu antigo discípulo nestes termos:

Ex.mo amigo

Dá­me muita honra a elaboração musical de qualquer texto meu pelo delicado talento

do meu glorioso patrício, com o que só compete confessar­me imensamente obrigado

e seu velho amigo e admirador

Teófilo Braga

ainda, sobre a composição sacra e o seu relacionamento com Teófilo Braga, Borba inclui numa conferência sobre a Música Sacra Renascentista – que proferiu a 31 de Outubro de 1938, a anteceder um concerto com música daquela época –, um pará-grafo com que argumenta a sua predilecção pela música para as escolas, apesar da superioridade da música de inspiração religiosa:

Uma vez dizia­me Teófilo Braga, que foi dos meus mestres – por mais paradoxal que

isto vos pareça, tratando­se de um filósofo desorientado e de um padre no exercício das

suas funções – foi dos meus mestres o que melhores conselhos me deu, não só na ori­

entação da minha vida artística, mas ainda na conduta moral da minha vida social:

“Meu amigo, não se agarre demasiado à música profana; componha um Stabat

Mater, um Te Deum, um Salmo, uma Missa, um Dies Irae, uma Salve Regina,

porque na música religiosa encontrará temas de expressão e força emotiva, que noutra

parte não achará nunca, por mais talento que possua ou mais técnica escolar que ten­

ha adquirido. Ninguém tem pejo ou vergonha de se dirigir a Deus, para Lhe pedir um

pouco do seu amor ou da sua clemência sobre as misérias da vida, ao passo que nen­

hum homem, por mais sincero que se suponha ser, se dirige sem certo acanhamento

a uma dama, para lhe dizer, embora com requintes de delicadeza: minha senhora, eu

amo­a.”. Pena foi que, por circunstâncias superiores à minha vontade desordenada,

eu não tivesse seguido à risca este conselho bom do mestre, que não era, sei­o eu, tão

ateu como as ligeiras críticas biográficas o têm pintado. Porque eu, em vez de compor

hinos de louvor ao Deus Eterno, como me competia – sendo padre, de mais a mais

– tenho levado quase a vida inteira a escrever cantigas, sem número, para a rapaziada

das escolas. Resta­me a consciência de que também não cometi um grande pecado

assim procedendo.

na realidade a maior parte das composições de Tomás Borba destinam-se ao ensino da música nas escolas e à prática coral dele decorrente.a sua grande preocupação foi a educação musical do povo. Para a implantação destas disciplinas nos currículos escolares muito lutou, designadamente como vogal do Conselho Superior de Instrução Pública. Foi ele o primeiro a ocupar este cargo, após a reforma que decretou que este Conselho passasse a incluir um professor do Conservatório.além disso, foi encarregado de fazer os programas aprovados pelo Decreto 6.203, de 7 de Novembro de 1919 – para o ensino primário geral e superior, e para o ensino normal –, elaborar manuais, ser o mentor da legislação que regulamentava a con-tratação de professores . O Diário do Governo, a 30 de Agosto de 1919, mandaria, pelo Ministro de Instrução Pública, que, nas condições estipuladas pelo n.º 2 da Portaria, de 8 de Agosto de 1919, Tomás Vaz de Borba e Pedro José Ferreira fossem agre-gados à comissão de elaboração de programas, a fim de se encar-regarem dos de Canto Coral e Ginástica, respectivamente. Para os níveis de ensino antes referidos, Borba publicou os manuais Escola Musical, em três volumes, O Canto Coral nas Escolas, em quatro volumes, Canções para as Crianças, para as Mães e para as Escolas, em dois volumes, Vá de Roda, O Canto Infantil e Toadas da Nossa Terra.no que respeita ao ensino liceal, o Decreto 6.132, de 26 de Setembro de 1919, nos quadros de distribuição das disciplinas, atribuiria à disciplina de Canto Coral a mesma carga horária antes definida pelo diploma de 1918, porém, tanto num como noutro decretos, os programas da recém-criada disciplina ainda não eram incluídos. Só em 1932, o Decreto 21.150 de 13 de Abril aprovaria e especificaria os programas de Canto Coral para as 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª classes dos liceus, tendo Tomás Borba edi-tado apara esse ensino os manuais Solfejos, Canções e Cânones, em dois volumes.para elaborar os primeiros manuais, como em Portugal ainda não houvesse o tipo musical, comprou na Alemanha os instrumentos e máquinas necessárias e, em sua casa, em parce-ria com o violinista Gustavo de Lacerda (irmão de Francisco), mesmo perdendo dinheiro, venceram a luta, sendo editadas as obras musicais para crianças.outra luta vencida foi a introdução do solfejo entoado nas escolas de música e noutros graus de ensino. No entanto, a má orientação política desviou os propósitos do pedagogo de alcan-çar os objectivos em que assentava a sua nobre intenção de edu-car artística, estética e musicalmente, o povo português. Luís de Freitas Branco, na conferência que proferiu no primeiro aniversário do falecimento de Borba, lembra as palavras que

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o mestre lhe dissera na última vez em que falaram: “Nunca estivemos tão mal em matéria de ensino de solfejo e de canto nas esco­las, desde que, em tempos, chegámos a ter um início de organização bem orientada.”. Neste estado de espírito viria a falecer, lem-brando Luís de Freitas Branco que, nos alicerces da renovada escola musical nacional, “as primeiras pedras foram colocadas pelo Prof. Padre Tomás Vaz de Borba”. desde que assumiu o cargo de docente no Conservatório – onde leccionou Harmonia, Contraponto, Composição, Português, Canto Coral, e História da Música e Literatura Musical, disci-plina esta criada por sua iniciativa, a qual vinha regendo ainda antes dela ser criada oficialmente –, Borba esteve presente em todas as reformas do Conservatório, destacando-se de modo particular a de 1919, que criou disciplinas de cultura geral por que tanto se debatera. A cultura do artista músico era uma das suas preocupações. Também para o ensino especializado da música publicou manuais: Exercícios Graduados de Solfejos, em três volumes, Novos Exercícios Graduados de Solfejo, em dois volumes, Solfejos Autógrafos de Compositores Portugueses, Manual de Harmonia, Trechos Selectos para Uso das Classes de Português do Conservatório Nacional de Música de Lisboa e Trechos Selectos para Uso da Classe de Francês do Conservatório Nacional de Música. Em co-autoria com Fernando Lopes-Graça, foi publicado após a sua morte um Dicionário de Música, em dois volumes.para além de funções docentes, exerceu, no Conservatório, os cargos de Director da Biblioteca e Conservador do Museu. Por várias vezes o quiseram nomear Director do Conservatório, e, apesar de várias recusas, exerceu o cargo provisoriamente em 1913 .lopes-graça, seu aluno, refere-se ao cuidado que o mestre colocava numa pedagogia musical correcta, afirmando que, à frente de um escol de dois ou três pioneiros, por direito histórico, está Tomás Borba, lutando contra “ideias e concepções rotineiras”, vendo “com mais clareza e sem preconcebimentos escle­rosantes os complexos problemas de uma arte complexa entre todas”. Nunca, como professor, Borba foi o mestre-escola cuja férula cortasse os arrojos e as audácias das índoles mais rebeldes. Era um “espírito fundamentalmente liberal”. Ao orientar determi-nado aluno (hoje sabemos ter sido o próprio Lopes-Graça), na aula de composição, perante a liberdade responsável do pupilo, Borba reconhecia os “direitos que a personalidade artística tem a desabrochar e a afirmar­se de acordo com os imperativos do seu eu íntimo, da sua visão ou concepção pessoal do fenómeno criador”; ao examinar uma partitura desse discípulo, “primeiros frutos da sua, aos olhos de tantos, iconoclasia artística”, disse o Mestre estas palavras, decerto tolerantes e incitadoras: “Eu já não posso acom­panhá­lo. Mas ande para diante, você é que deve estar na razão.”.

a coragem e nobreza de carácter de Borba manifestam-se claramente ao enfrentar o poder político do Estado Novo, convi-dando, em 1941, Lopes-Graça a assumir funções em instituição de que era director, a Academia de Amadores de Música, quan-do aquele vira o pertinente concurso anulado e fora proibido de ensinar pelo Ministério do Interior, devido às suas convicções políticas. Borba arrostou com uma situação que lhe poderia ter saído muito cara, apesar da sua idade, da condição de sacerdote e da posição destacada que ocupava. na academia de amadores de música, para onde entrou como docente em 1906/07, como Director Artístico – cargo que ocu-pou entre 1922 e 1932, e 1937 até morrer em 1950 –, elevou o nível daquela instituição que, em 1922, via o seu futuro muito negro. Borba encetou um trabalho de “restauração”, de modo que o número de alunos aumentou, e o nível de ensino também, dada a qualidade dos docentes contratados. Nos concertos que promoveu, deu lugar aos mais novos , aos artistas e compositores portugueses. O interregno na direcção artística deveu-se ao Decreto 19.244 de 16 de Janeiro de 1931, que regulamentava o ensino particular, e que dizia no art.º 17, § único: “é proibido aos funcionários [do ensino oficial] dirigir ou exercer o ensino em cursos de explicações, salas de estudo ou pensionatos escolares [no ensino particular] a alunos do grau ou curso a que pertencem os esta­belecimentos de ensino [oficial] em que estão empregados.”. Após a sua aposentação, em Novembro de 1937, retomou o cargo de Director Artístico da Academia. Colaborou com Emma Romero Santos Fonseca da Câmara Reys na organização de primeiras audições em Portugal de peças de diversas épocas e nacionalidades.como compositor, em 1895, findos os estudos, estreou-se com uma Missa para solistas, coro e orquestra, executada na presença da Família Real, na Igreja dos Mártires. Por encomenda da Comissão do Centenário da Índia, compôs um grande Te Deum para solistas, coro e orquestra, obra de grandes proporções, de pathos wagneriano, onde se misturam a linguagem modal e cromática, com momentos impressionistas. Por questões orçamentais, a obra não chegou a ser estreada. Mais tarde, foi executada acompanhada só com piano.em idade madura, a sua composição veio a confinar-se a um es-tilo de cunho nacional marcado pela singeleza, que contém pá-ginas de verdadeiro interesse. Borba defendeu a criação de uma canção erudita portuguesa assente numa estilização da música popular e nos modos gregorianos .a sua obra divide-se por vários géneros. O catálogo foi por mim elaborado entre 2005 e 2008, sob orientação do arquivista José Elmiro Rocha, tendo sido publicado on­line a 1 de Outubro de 2008, contendo o meu nome como primeira menção de res-ponsabilidade.

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de todas as suas composições, as suas eleitas são, conforme afirmou em entrevista a Dinis da Luz, aquelas que escreveu para crianças .tal foi o seu entusiasmo na educação musical das crianças que introduziu no Liceu de Maria Pia de Lisboa, como já se disse, a experiência da Ginástica Rítmica, para a qual escreveu as cha-madas Canções de Gestos .o documento que melhor sintetiza o pensamento borbiano é a tese que proferiu no Primeiro Congresso dos Músicos Portu-gueses, realizado em Lisboa, em Junho de 1913 : • Razões para uma urgente criação da disciplina de Canto Coral

nas escolas.• Razões para que o artista músico fosse apetrechado com uma

sólida cultura geral.• A criação de uma música portuguesa eminentemente assente

nas características da identidade nacional.é-me difícil resumir a personalidade de borba. Aconselho a leitura de testemunhos de alguns dos seus alunos . Entre muitos discípulos, foram seus alunos nomes eminentes da música portuguesa: Francine Benoît, António Lima Fragoso, Croner de Vasconcellos, Flaviano Rodrigues, Varella Cid, Ruy Coelho, Eduardo Libório, Lopes-Graça, Artur Santos, Armando José Fernandes, Florinda Santos, Luís de Freitas Branco, Pedro de Freitas Branco, Ivo Cruz, Artur Fonseca – primeiro director do Conservatório Regional de Angra do Heroísmo –, Marina Dewander Gabriel, também natural de Angra.na apresentação, no conservatório de lisboa, a 29 de Março de 2009, da monografia que publiquei com o título Tomás Borba, para a inauguração, em Maio de 2008, da Escola de que é pa-trono e que tem o seu nome, em Angra do Heroísmo, Rui Vieira Nery, que também foi o prefaciador da obra, disse – cito de memória –: “Sem embargo, em Borba temos o exemplo de um sacer­dote que vem dos Açores, de quem seria de esperar uma postura conservadora, mas que, pelo contrário, é um homem que é um pensa­dor livre e que se dá com os melhores intelectuais portugueses, sem acepção política e ideológica, estabelecendo amizade com Manuel Arriaga, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro, entre outros. Numa época em que se notava a divisão entre uma direita e uma esquerda esquizo­frénicas, que não falavam uma com a outra, da qual são conhecidos os atritos ferozes entre a República e a Igreja, Tomás Borba lida com esses intelectuais com um à­vontade e uma independência de espí­rito surpreendentes, revelando uma natural capacidade de navegar nestas águas, mantendo relações cordiais e fraternais com pensa­dores, poetas, compositores e intelectuais de todo o espectro ideológico e cultural português.”.acerca da sua vocação pedagógica, na já mencionada confe-rência que proferiu, sobre música sacra renascentista, a convite

de Emma Romero Santos da Fonseca da Câmara Reys, Borba, com o requintado humor e com a riquíssima escrita que lhes eram peculiares, conta um interessante episódio com ele passado:

Eu não sei se o hábito faz o monge ou se é o monge que faz o hábito. Do que eu não

duvido é que as nossas profissões imprimem carácter. Estando eu em Roma, por ocasião

das festas jubilares do Ano Santo, hospedado, com uma das minhas sobrinhas, numa

pensão religiosa, onde se hospedavam também alguns portugueses e vários sacerdotes

de nacionalidades diferentes, um deles verdadeiro tipo de alemão, porque alemão era,

cumprimentando­me no momento da partida para o seu país, quis saber não só qual

era a minha nacionalidade, mas ainda que funções exercia na minha terra. Fiz­lhe

constar, naturalmente, que não passava de um simples padre, que dizia quotidiana­

mente a sua missa, porquanto era um músico modesto e empregava toda a minha

actividade no lugar de professor que ocupava no Conservatório, embora sem prestí­

gio notável. O jovem sacerdote chama imediatamente para junto de nós os do grupo

de que fazia parte e, com ar alegre e sorridente de quem se sentia muito satisfeito,

grita­­lhes, com toda a força de que os seus pulmões germânicos dispunham: “Eu não

vos dizia que este padre tinha cara de professor?” O que tinha na minha cara, e tenho,

além das rugas e tecidos flácidos – prenúncios fisiológicos de uma idade já adiantada

– não sei. Mas fiquei a ruminar no caso, e cada vez me convenci mais e convenço de

que o hábito do cachimbo nos põe a boca à banda, como muito bem expressa o nosso

prolóquio popular.

lopes-graça sintetiza a personalidade do artista e do Mestre nestes termos: “Um apóstolo da educação, um mestre exemplar, um espírito ilustrado, tolerante, liberal e largamente compreensivo.” .na sua última aula, no conservatório, a 23 de Novembro de 1937, Borba leccionou uma grande lição sobre o tema: Labor omnia vincit (O trabalho tudo vence) . A concluir deixou a men-sagem da consciência de responsabilidade que o artista tem perante a comunidade. O valor nacional será engrandecido com a colaboração séria dos artistas que, com a sua produção, alimentam a Pátria:

Nas minhas prelecções vos repeti mais duma vez, como hoje, que quem nesta casa

[o Conservatório] entra iluminado, por Deus, com uma pequena faixa que seja do

fogo sagrado da divina arte, contrai perante o país inteiro uma grande e grave respon­

sabilidade por que é em nós que a Pátria tem postos os olhos como factores necessários

da sua grandeza nacional. Porque uma nação estruturiza­se não pelo número de espa­

das, de baionetas, nem pelo tiro mais ou menos acertado dos seus canhões, mas com

as telas harmoniosas dos seus pintores, os contos elevados dos seus poetas, os sonhos

elevados dos seus arquétipos e as sinfonias inspiradas dos seus compositores. Camões,

Duarte Lobo, Marcos Portugal, Luísa Rosa de Aguiar, Grão Vasco e Afonso Domingos

deram à Pátria que glorificaram muito mais que os mais arrojados impulsos conquis­

tadores de D. Afonso Henriques, as mais ardilosas diplomacias do Marquês de Pombal

e os mais impetuosos avanços guerreiros de Afonso de Albuquerque ou Sá da Bandeira.

Os guerreiros e os diplomatas defendem­na, mas somos nós que a alimentamos.

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1 A aula de Harmonia era “denominada desde há muitos anos Curso Elementar de Composição”. Cf. Francine Benoit. “No Centenário de Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes. N.º 198, Lisboa, Novembro de 1967.

2 Cf. “Thomaz Borba”, Eco Musical (29-1-1911). N.º 5, Lisboa. “Na música tem­se distinguido de uma maneira tão elevada, que poucos têm sido os grandes músicos portugueses que o têm igua­lado. Dedicou­se com tão ardente amor ao estudo, que fez o curso geral de piano (5 anos) em 3 anos, e completou o curso de harmonia (3 anos), apenas em um ano. Frequentou depois a aula de contraponto e fuga, regida por Frederico Guimarães, e conseguiu fazer este curso em 3 anos. Não pararam porém aqui os seus estudos artísticos, porque algum tempo depois empreendia uma viagem aos mais notáveis países da Europa, procurando com todo o ardor, completar o estudo prático que o nosso Conservatório lhe não pôde dar.”

3 Domitila de Carvalho notabilizou-se pelos três cursos que frequentou na Universidade de Coimbra (Matemática, Filosofia e Medicina), pela acção a favor da educação das mulhe-res na defesa da criação do primeiro Liceu feminino, Liceu de Maria Pia de Lisboa de que foi primeira reitora, pela participação em iniciativas feministas e pacifistas, sendo Monár-quica e católica, e por um percurso político que a levou a pertencer ao grupo das três pri-meiras deputadas do Estado Novo.

4 Cf. “Thomaz Borba”, Eco Musical (29-1-1911). N.º 5, Lisboa. “(…) não podíamos certa­mente olvidar uma alma eleita de artista e de bondade, que pelos seus vastos estudos literários e pela afabilidade e rectidão do seu carácter, tem conquistado a consideração e a estima de todos aqueles que têm a honra de bem o conhecerem. Referimo­nos a Tomás Borba, esse raro vulto de professor erudito que o nosso Conservatório se orgulha de possuir. Caminhando sempre só, sem auxílios nem proteccionismos, contando unicamente com a grandeza do seu talento e a vontade invencível do saber, Tomás Borba chegou a triunfar completamente nos estudos musicais e literá­rios, completando estes últimos no Curso Superior de Letras, onde teve como professor o grande filósofo Teófilo Braga. (…) Tomás Borba tem o Curso Superior de letras, e a sua autoridade de literato e músico proficiente honra sobremaneira a classe musical do nosso país que, ao contrário do que dizem alguns pedantes, possui verdadeiros talentos, tanto artísticos como literários.”

5 Cf. Dinis da Luz “O Padre que Ensinou Solfejo a Portugal”, Diário dos Açores (18-12-1948), N.º 21032, Ponta Delgada

6 A reorganização do Conselho Superior de Instrução Pública, após a proclamação da Repú-blica, foi estabelecida pelo art.º 4.º do capítulo I do Decreto de 27 de Abril de 1911.

7 Cf. Tomás Borba. Ninguém melhor do que Eu (carta a destinatário não mencionado). Lisboa, 1937. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo. Fundo Tomás Borba. (PT/BPARAH/TB/03 – 01/02).

8 Cf. Carta a Hermínio do Nascimento, pertencente ao fundo deste compositor e professor do Conservatório (que se encontra depositado na Biblioteca Nacional) sobre a feitura dos seus manuais escolares e de solfejo; diz Tomás Borba: “(…) Limitei­me a fazê­los – e com que canseiras e lutas! – quando ninguém pensava no solfejo cantado nas escolas, montando uma tipografia para editar os primeiros volumes e perdi dinheiro. (…)”.

9 Cf. Luís de Freitas Branco. “No Primeiro Aniversário do Falecimento do Professor Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, n.º 6, Lisboa, Março de 1951.

10 Cf. Arte Musical (28-2-1913), n.º 341, Lisboa. “Pela recusa do Sr. Alexandre Bettencourt de Vasconcelos para desempenhar provisoriamente as funções de director do Conservatório, foi nomeado para esse lugar o professor Tomás Borba.”

11 Cf. Fernando Lopes-Graça, “No Primeiro Centenário do Nascimento de Tomás Borba”, A União (1 – 4 – 1968), n. º 21 694, Angra do Heroísmo.

12 Em 1944/45, já coadjuvado na Direcção Artística por Fernando Lopes-Graça, e com cola-boração da cantora Marina Dewander Gabriel (também natural de Angra do Heroísmo), Borba organizou uma série de recitais para apresentação de Jovens concertistas, entre os quais se destacou José Carlos Sequeira Costa que interpretou obras de Bach: Prelúdio e Fuga em fá menor, e Prelúdio e Fuga em dó sustenido menor; de Beethoven: Variações em fá maior op.23, e Rondó e Capricho op.129; de Chopin: Sonata em si menor op. 58 – a) Allegro maestoso, b) Scherzo: molto vivace, c) Largo, d) Presto ma non tanto; de Vianna da Motta: Balada; de Ravel: Jogos de Água; e de Liszt: S. Francisco de Paula Andando sobre as Ondas. Lopes-Graça iniciou a sua actividade na Academia como colaborador de Tomás Borba, em 1941. Todavia a referência à sua coadjuvação na direcção artística de Borba só é referida pela primeira vez no Relatório de Contas de 1944/45. Data de 2 de Outubro de 1943 o termo de posse de Fernando Lopes Graça como professor de Piano e Composição, decorrente da sua nomeação a 14 de Agosto do mesmo ano, que derivava da indicação e parecer favorável do director artístico Tomás Vaz de Borba, conforme o termo de posse que consta no Arquivo da Academia.

13 Cf. Tomás Borba. “A Canção Portuguesa”, Eco Musical (16-7-1912, 23-7-1912, 1-8-1912). N.os 74, 75, 76, Lisboa.

14 Em cujos títulos encontramos, dentre outros, obras didácticas, música sacra, canção erudita de câmara, música para orquestra, música de câmara, música para piano, recolha de música popular e teatro escolar musicado (a propósito do teatro escolar musicado, importa lembrar que muitos dos libretos, inspirados em contos tradicionais, são de Virgínia Gersão (1896-1964). Licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra, e pos-suindo também o Curso da Escola normal de Coimbra, foi professora da Escola Normal de Benfica e do Ensino Secundário. Na sua carreira parlamentar, Virgínia Gersão integrou a Comissão de Educação Nacional, Cultura Popular e Interesses Morais e Espirituais).

15 Cf. Dinis da Luz. “O Padre que Ensinou Solfejo a Portugal”, Diário dos Açores (18-12-1948), n.º 21.032, Ponta Delgada.

“ — Dos seus trabalhos – pergunto – quais mais aprecia?

— Os que fiz para as escolas, toadas e obras didácticas.”

16 Cf. Frederico de Freitas, “Tomás Borba – Troveiro do Canto Infantil, Lembrado no Seu Centenário”, Panorama. n.º 25, 4.ª série, Lisboa, Março de 1968. “Estas canções de gestos não são outra coisa do que jogos ritmo­musicais, experiências semelhantes às que Jacques Dalcroze, pela mesma época, defendia no seu livro L’ Éducation par le Rytme (1907) como processo de pedagogia infantil. Dado, porém, que só por 1912 Dalcroze realiza as primeiras demonstrações públicas dos princípios propostos no seu método, poderá concluir­se que a prioridade das experi­ências na educação da criança pelo ritmo, música e movimento — princípios dos quais derivou o que mais tarde veio a ser conhecido por ginástica rítmica — pertence ao Prof. Tomás Borba.”

17 Cf. Tomás Borba, terceira tese do primeiro Congresso dos Músicos Portugueses: “Educação dos Artistas Músicos, Seu Aperfeiçoamento Técnico e Instrução Literária: Vantagens da Associação para o Desenvolvimento Intelectual dos Associados”, Boletim da Associação de Classe dos Músicos, Tomo I, n.º 6, Lisboa, 1913.

18 Francine Benoît, “No Centenário de Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, n. º 198, Lisboa, Novembro de 1967; Luís de Freitas Branco. “No Primeiro Aniversário do Falecimento do Professor Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, n.º 6, Lisboa, Março de 1951; “Um Exemplo Raro”, Arte Musical (22 – 2 – 1937), n.º 251, Lisboa.

19 Este compositor tinha uma grande admiração por Borba: “(…) Ele tinha uma enorme admiração por três professores: Tomás Borba, Luís de Freitas Branco e Marcos Garin (…)”.Cf. Mónica Brito, “Associação António Fragoso: entrevista a Eduardo Fragoso Martins Soares”, Glosas (Maio de 2010). N.º 1, Lisboa. A afeição era recíproca. Por ocasião da morte prema-tura de António Fragoso, Borba chorou-o publicamente: “A terrível epidemia que reina – ou o quer que fosse – roubou­nos agora, há dias, sem piedade nem dó (…) a amais bem fundada e lídima esperança da nossa escola de arte, um rapaz de vinte anos, que (…) deixa em preciosas páginas de música que todos devemos beijar, a afirmação mais bem argumentada que se pode levar aos tribunais da história, a afirmação e a prova do seu talento e da sua grande alma de artista. (…) Se como mestre muitas vezes o feri no seu legítimo orgulhos – porquanto os voos da sua ima­ginação, ou antes dos seus sonhos de criança, não queriam conhecer outras regras que as da fan­tasia e do sentimento – como artista e, mais ainda, como português, choro hoje lágrimas de sangue sobre a tumba que no­lo arrebatou para sempre, e sem dó sequer de quem via em António Fragoso mais que o afecto esfacelado de um pai que chora, o bem esperançado orgulho de uma raça que precisa futuro. (…) António Fragoso (…) tem a abençoar­lhe a memórias lágrimas íntimas mas muito sinceras dos que lhe adivinharam o talento. Chorá­lo­á Marcos Garin e Luís de Freitas Branco, chorá­lo­ei eu.”.

20 Cf. Tomás Borba. “António Fragoso”, Eco Musical (10-9-1917). N.º 307, Lisboa. António Fragoso havia dedicado ao seu mestre Tomás Borba o Trio em dó sustenido menor op. 2, exe-cutado em concerto, inteiramente preenchido com obras suas, na Academia de Amadores de Música, a 16 de Maio de 1916.

21 Cf. Emma Romero Santos da Fonseca da Câmara Reys. Divulgação Musical – Programas, Conferências, Crósticas. Vol. 5: (1938-1939), [s. ed.], Lisboa, 1940.

22 Cf. Fernando Lopes-Graça. A Música Portuguesa e os Seus Problemas. Edições Cosmos, Lisboa, 1973.

23 Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo, Fundo Tomás Borba. Texto da última lição, PT/BPARAH/TB/02/09.

Compositores a descobrirna próxima rubrica

Adivinhe quem é o compositor a descobrir da próxima edição da glosas e receba um CD com obras de António Victorino

d’Almeida. Será premiada a primeira resposta correcta recebida. Envie as suas sugestões para [email protected] .

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A CONVITE DA GLOSAS, UMA PEÇA INÉDITAANTERO ÁVILA | PRELÚDIO

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Now & Then está disponível no iTunes e Amazon. O Concerto para Guitarra está disponível gratuitamente na página do compositor.www.patriciodasilva.com

apesar do seu percurso ser pouco conhecido em Portugal, Patrício da Silva goza de uma carreira em contínuo crescimento nos Estados Unidos da América, onde a maior parte da sua edu-cação musical teve lugar, permitindo assim a participação neste disco de nomes como Michael Kudirka, Yevgeniy Milyavskiy, What’s Next? Ensemble, e ainda Ian Whitcomb – considerado estrela de rock durante a Invasão Britânica dos anos 60, histo-riador de música popular americana e celebrado autor de After the Ball.“now & then” apresenta novas obras do compositor com uma enorme diversidade de caracteres, técnicas e resultados sono-ros consequentes, bem como uma série de arranjos de canções populares da era da Grande Depressão Americana. Das várias obras originais destaca-se o Concerto para Guitarra pela sua entusiástica recepção do público e críticas favoráveis: “Smooth, Refreshing and Exciting” – Paulo Alves Guerra, RDP Antena 2; “Amazing and Inspiring” – William Powers. o compositor confirma assim a tendência para a produção musical de qualidade em tempos erróneos, visto este disco não ter sido criado para a actual situação de “Grande Depressão” mas antes como uma consequência inevitável da mesma, trazendo uma lufada de ar fresco ao ambiente repressivo. Tal como afirma Ian Whitcomb: “When you have bad times, you have great music.”. patrício da silva estudou piano com Jorge Moyano e compo-sição com António Pinho Vargas na Escola Superior de Música de Lisboa, prosseguindo os seus estudos no Califórnia Institute

Patrício da Silva Now & Then

O novo CD do compositor Patrício da Silva, gravado ao vivo em Dezembro de 2010 em Pasadena, Califórnia, foi recentemente lançado, fruindo em pouco tempo de generosas críticas positivas e uma óptima recepção por parte do público. Como sugere o seu título, este CD responde à actual crise mundial que progressivamente se compara à Grande Depressão Americana de 1929.

Now & Then:Music from the Great Depression(s) 2010/1929

of the Arts (MFA) e na Universidade da Califórnia (Ph.D). Realizou ainda um pós-doutoramento em composição algo-rítmica no Ircam (França). O seu currículo prima por diversos prémios, entre os quais Internacional Barto Prize, Gould Family Foundation Composers Award, Ojai Festival Music for Tomorrow, Fundação Luso-Americana e American Music Center, tendo ainda obtido a Otto Eckstein, a Norton Stevens e a Susan and Ford Schumann Fellowships. as suas obras já foram apresentadas em diversos palcos de renome internacional como Ojai Music Festival, Aspen, Ruhr Festival, Schleswig Holstein Music Festival, London Festival of American Music, Auditório de Galícia, Yamaha’s YASI em Nova York, LASO e Culturgest. Em 2009, por convite do maestro Christoph Eschenbach, a sua obra Three Movements for Solo Piano foi executada por Tzimon Barto num concerto organizado pela Beethoven-Haus em Bonn para a aquisição do manuscrito das Variações Diabelli. Trabalhou com diversas orquestras e instru-mentistas como Memphis Symphony Orchestra, Moscow Piano Quartet, What’s Next? Ensemble, Stefan Asbury, Gloria Cheng, Joana Carneiro, entre tantos outros, destacando-se a Berkeley Symphony Orchestra, na qual foi compositor residente (2008-10).

JOANA ROCHA | TEXTO

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Excerto de Keep Calm and Carry On (Concerto para Guitarra), gentilmente cedido pelo compositor

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esta edição, ao contrário de outras que se estenderam ao Porto (Casa da Música) e a outros espaços de Lisboa (Instituto Franco-Portu-guês, Fundação Calouste Gulbenkian, Mosteiro dos Jerónimos), limitou-se ao CCB, o que por certo será consequência dos cortes orçamentais que todos conhecemos na Cultura em Portugal. Ainda assim, numa atitude de coragem e perseverança, que tem sido, aliás, uma das características da MisoMusic Portugal (a face mais vísivel da intensa actividade de Miguel e Paula Azguime), o Festival apresentou-se com um programa extremamente apelativo e diverso, do qual se destacam, para além do concerto inaugural, a noite em torno do compositor António de Sousa Dias – compositor em foco nesta edição –, o concerto bipartido entre a Orquestra de Altifalantes e o Quarteto de Cordas de Matosinhos e, finalmente, o concerto protagonizado por Pierre-Yves Artaud e Ana Telles.no concerto inaugural, protagonizado pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble e dirigido por Laurent Cuniot, o programa apostou na diversidade estética e apresentou na primeira parte O Farfalhar das Folhas, do brasileiro Flo Menezes, e ainda as estreias absolutas

de The Hymn of the Pearl, da chinesa Leilei Tian, e Golden Circle, do irlandês John McLachlan. A segunda parte foi exclusivamente portuguesa e apresentou outra estreia, Avant, de José Luís Ferreira, e ainda Um silêncio a somar­se ao silêncio, de Tiago Cutileiro. Este foi, desde logo, um dos factores positivos do concerto: em cinco peças, três delas eram estreias e todas surgiram como resultado de encomendas feitas pela MisoMusic ou pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble. Outro aspecto positivo foi o facto de a lotação do Pequeno Auditório estar praticamente esgotada.a direcção de laurent cuniot foi muito competente ao longo do concerto, demonstrando grande segurança e clareza no gesto, sendo que o maestro se revelou bastante confortável com a diver-sidade de estéticas que este programa propôs. Da peça de Flo Menezes será interessante realçar a abordagem escolhida, com um claríssimo cariz dramático: uma placa de plástico flexível e transparente pendurada no lado esquerdo do palco para onde, em determinados momentos, um dos músicos do ensemble se deslocava e intervinha, ou abanando a referida placa (simulando o som do vento em agitação), ou ganhando relevo instrumental sobre o ensemble.a peça de leilei tian, The Hymn of the Pearl, de uma enorme sensi-bilidade e delicadeza, foi uma surpresa muito positiva, revelando

No passado dia 9 de Setembro, a 17.ª Edição Festival Música Viva deu início ao seu programa de concertos e workshops no Centro Cultural de Belém em Lisboa. Este festival, que sempre se caracterizou pelo estímulo dado à criação musical e interdisciplinar (portuguesa e internacional) e pela divulgação da música que é feita hoje, promovendo a enorme diversidade estética que se vai reinventando permanentemente, assume um papel de relevo maior na oferta cultural portuguesa.

festival música viva 2011concerto de abertura

TIAGO CABRITA | CRÍTICA

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Na foto, da esquerda para a direita: Joana Gama (piano), Suzana Lidegran (violino), Nelson Ferreira (violoncelo), Monika Streitová (flauta transversal), Nuno Pinto (clarinete), Laurent Cuniot (direcção).

um equilíbrio interessante entre uma postura contemplativa, própria da cultura oriental, e uma estética ocidental marcada, por exemplo, pela inclusão do ruído, de efeitos multifónicos ou ainda através do trabalho mais acentuado de elementos como o ritmo. Deste modo, a peça de Leilei Tian ajudou a diversificar e a surpreender, trabalhando o som e o seu pormenor com cui-dado e riqueza. Destaque ainda para o papel da flautista Monika Streitová, de inquestionável e sólido domínio técnico.de golden circle, do irlandês John MacLachlan, importa realçar o trabalho harmónico e textural do Ensemble, desde texturas pontilhistas até sonoridades mais cheias e contínuas. a peça de josé luís ferreira, Avant, foi um dos momentos altos deste concerto. Em constante e rico diálogo com a electrónica (aliás, uma das grandes qualidades desta obra), o ensemble produziu variadíssimas texturas, trabalhando e produzindo timbres muitíssimo interessantes. Muito bem articulada em termos formais, com uma linguagem clara e apelativa, Avant foi executada com visível segurança e prazer pelos músicos do Sond’Ar-te e Laurent Cuniot.a obra de tiago cutileiro, Um silêncio a somar­se ao silêncio, deixou uma sensação agridoce. Desde logo, existe um lado profun-damente contemplativo em que, tal e qual como numa paisagem, as

alterações se processam de uma forma muito lenta e quase imperceptível. Estas transformações progressivas permitem ao ouvinte aperceber-se do trabalho que o compositor realiza com o som: rico, interessante e cuidado. É uma peça, por isso, que convida à introspecção e à viagem a outras paisagens que não as urbanas. A electrónica funciona como uma espécie de pedal que se vai, também, alterando de modo quase imperceptível, ao longo da obra. O amargo de Um silêncio a somar­se ao silêncio prende-se com a sua duração. Apesar de todas as qualidades referidas ante-riormente, atrevo-me a dizer que vinte minutos tornam a peça, em determinados momentos, previsível, o que acaba por fazer esmorecer um pouco a expectativa criada ao longo da primeira dezena de minutos. protagonizado por um ensemble cujos músicos se revelam extremamente empenhados, competentes e entrosados na inter-pretação das mais diversas novas músicas da actualidade, sempre com alto padrão qualitativo, este concerto inaugural do Festival Música Viva foi mais um momento marcante na divulgação da Música em Portugal. Outro factor positivo, como já anteriormente referido, foi a aposta clara num concerto representativo de uma enorme diversidade estética. Que venham, por este e por muitos outros motivos, pelo menos outros 17 Festivais Música Viva.

OBRAS DE ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA

“Este disco reúne quatro obras do compositor António Victorino d’Almeida que são bem demonstrativas do seu domínio das formas e estruturas musicais, facto que confere ao compositor uma versatilidade inquestionável, mantendo intacto o seu cunho pessoal. Marca indelével que permite identificar, com relativa facilidade, uma linguagem que apresenta características próprias, sem embargo de se reconhecer uma natural evolução, fruto da experiência criativa acumulada e da igualmente natural maturação do pensamento estético do compositor, reflectindo a sua actual forma de ser, ver e estar no Mundo.” Victor Dias (2011)

Sinfonia para um Homem Bom, op. 146; Concerto para Flauta, op. 161 (Encomenda da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, Estreia Mundial no 32.º Festival Internacional de Música de Verão de Paços de Brandão); Abertura Breve, op. 145; Sonata n.º5, op. 44.

DANSE DES SYLPHESAdriana Ferreira, flauta transversal Isolda Crespi, piano

Este registo discográfico assume este título – “Dança dos Silfos” –; não só por ter uma obra representativa desta inspiração “sobrenatural”, mas porque se apresenta auspiciosamente como um registo singular de obras cintilantes de repertório para flauta (e piano), alicerça-das numa energia além- -humana. Por entre sopros, influxos e respirações, flutuaremos entre obras vibrantes em linguagens e posturas próprias, voaremos por diferentes geografias e espaços.

Sonate, de Mélanie Bonis (1858­1937); Ballade et Danse des Sylphes, Op. 5, de Joachim Andersen (1847­1909); Minuetto, de Joaquim dos Santos (1936­2008); Sonatine, de Henri Dutilleux (1916); The Panic Flirt, de Alexandre Delgado (1965­); Sonata, de Serguei Prokofiev (1891­1953).

SWING.PTNuno Silva, clarineteMitchell Fennell, direcção musicalBanda Sinfónica do Exército

SWING.PT é um CD gravado pelo clarinetista português Nuno Silva, acompanhado pela Banda Sinfónica do Exército e com direcção musical do maes-tro americano Mitchell Fennell. A ideia deste projecto surgiu em 2004 quando Nuno Silva fez uma digressão pela costa oeste dos EUA com o California State University Wind Ensemble, interpretando Black Dog de Scott McAllister. O sucesso destes concertos em Los Angeles, San Francisco e Reno foi o gerador desta ideia que foi sendo amadu-recida desde então, culminando na concretização deste trabalho. As obras apresentadas neste CD foram escolhidas com o intuito de poder demonstrar alguma da excelente música ameri cana composta exclusivamente para instrumentos de sopro. A es-treia nacional das obras aqui gravadas foi da respon-sabilidade de Nuno Silva.

Black Dog, Scott McAllister; Derivations, Morton Gould; Summertime, George Gershwin; Prelude, Fugue and Riffs, Leonard Bernstein

CANÇÕES DA ÁSIACoro de Câmara de LisboaTeresita Gutierrez Marques, direcção

As canções populares têm uma importância enorme junto das populações, afirmando e fortalecendo a sua identidade cultural. Assim, a escolha do repertório aqui incluído foi feita criteriosamente, tomando em consideração a qualidade musical das harmonizações, mas também a popularidade, o significado, e a carga simbólica das canções em si. Tal como a canção popular é a manifestação da identidade cultural, ela também reflecte os intercâmbios culturais que se realizaram ao longo de séculos. Neste contexto, a passagem dos portugueses por estas regiões (Malaca, Indonésia, Malásia, Singapura, Coreia, Formosa, Macau, Japão, Tailândia, Filipinas, Timor--Leste) deixou marcas indeléveis, visto que ainda hoje a língua portuguesa continua presente em muitas canções e nas próprias línguas locais, quando não dando origem a línguas que, etimologicamente, se baseiam no idioma português.

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