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Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública SEGURANÇA, JUSTIÇA E CIDADANIA SENASP / ANPOCS

A reinvenção da \"Cartorialização\": \": análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em \"Delegacias Legais\" referentes a homicídios dolosos

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Pesquisas Aplicadasem Segurança Pública

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SENASP / ANPOCS

Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro da JustiçaLuiz Paulo Teles Ferreira Barreto

Secretário Nacional de Segurança PúblicaRicardo Brisolla Balestreri

Departamento de Pesquisa, Análise da Informação eDesenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública (DEPAID)

Juliana Márcia Barroso

Coordenadora Geral de PesquisaLuciane Patrício Braga de Moraes

EditoresThadeu de Jesus e Silva Filho (MJ) Luciane Patrício Braga de Moraes (MJ)

Conselho Editorial

Antônio Rangel Bandeira (VIVARIO) César Barreira (UFC)Cláudio Beato (UFMG) Cristina Villanova (SENASP - MJ)

Guaracy Mingardi (FBSP) Ivone Freire Costa (UFBA)Jorge Zaverucha (UFPE) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)

Juliana Barroso (SENASP - MJ) Luciane Patrício B. Moraes ( SENASP - MJ)Maira Baumgarten (FURG) Marcelo Ottoni Durante (UFV)

Maria Stela Grossi Porto (UnB) Melissa Pongeluppi (SENASP - MJ)Michel Misse (UFRJ) Naldson Costa (UFMT)Renato Lima (FBSP) Ricardo Balestreri (SENASP - MJ)

Roberto Kant de Lima (UFF) Rodrigo Azevedo (PUC-RS)Sergio Adorno (USP) Thadeu de Jesus e Silva Filho (SENASP - MJ)Wilson Barp (UFPA)

CapaEmerson Soares Batista Rodrigues

FotoMarcos Benjamin

(Ten PMERJ Karla - UPP Cidade de Deus segurando menina Isadora, de 5 anos)

Os artigos são de inteira e exclusiva responsabilidade dos autores

Tiragem: 2.500 exemplares

Todos os direitos reservados aoMINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MJ)

SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA (SENASP)Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede

Brasília, DF - Brasil - CEP: 70064-900Telefone: (61) 2025-3635

Impresso no Brasil

ISSN: 2178-8324 Segura nça, Justiça e Cidadania / Secretaria Nacional de Segurança Pública

do Ministério da Justiça - Ano II, 2010, n. 04. Brasília, DF.

Editorial ............................................................................................................................... 5

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro ................ 9Ignacio Cano / Thais Lemos Duarte

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal ................................................................................................................. 45Joana Domingues Vargas / Ismênia Blavatsky de Magalhães / Ludmila Mendonça L. Ribeiro

O PROTEGE - Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas do Rio Grande do Sul: análise da experiência de implantação em maio de 2000 e implementação até junho de 2005 ................................................................................. 73Evaldo Luis Pauly

Da Escola de Formação à Prática Profissional: um estudo comparativo sobre a formação de praças e oficiais da PMERJ ............................................................................................... 101Haydée Caruso / Luciane Patrício / Nalayne Mendonça Pinto

A Reinvenção da “Cartorialização”: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro .................................................................................................................. 119Ana Paula Mendes de Miranda / Marcella Beraldo de Oliveira / Vívian Ferreira Paes

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil ......... 153Andrea Lessa

O Cibercrime no Brasil ..................................................................................................... 173Henrique Luiz Cukierman

Centros Integrados de Cidadania: avaliação de uma política de prevenção da violência (2003-2005) .................................................................................................................... 219Eneida G. de Macedo Haddad / Jacqueline Sinhoretto / Frederico de Almeida / Liana de Paula

Etnografia das Políticas e Programas de Enfrentamento da Violência Sexual Praticada Contra Crianças e Adolescentes em Fortaleza .................................................................. 261Glaucíria Mota Brasil / Emanuel Bruno Lopes de Sousa

Instruções aos Autores .................................................................................................... 293

SUMÁRIO

Editorial | 5

EDITORIAL

Este é o número inaugural do periódico Segurança, Justiça e Cidadania, novo nome da extinta Coleção Segurança com Cidadania, editada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP/MJ). Trata-se somente de alteração do nome e do registro ISSN da publicação, sem prejuízo do propósito de manter em funcionamento um periódico acadêmico dedicado exclusivamente aos temas da Segurança Pública e da Justiça Criminal em língua portuguesa – daí o número 4 estampado na capa. Além de novo, confere a propriedade devida ao debate ao explicitar o sistema de justiça criminal como um dos componentes fundamentais dessa discussão.

No seu propósito de publicar trabalhos que subsidiem a criação e a gestão de ações e políticas de segurança pública no nosso país, o presente volume de Segurança, Justiça e Cidadania apresenta textos oriundos do 1º Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública – iniciativa conjunta da SENASP/MJ e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Lançada em 2003, financiou projetos de pesquisas aplicadas de curto prazo que investigassem fenômenos associados ao crime e à violência e propusessem ações para aperfeiçoar os órgãos do Sistema de Segurança Pública e de Justiça Criminal do Brasil. A iniciativa foi exitosa e premiou os melhores dos cerca de 400 projetos apresentados, que receberam recursos para a realização das pesquisas. Tanto na SENASP como na comunidade acadêmica, a iniciativa se tornou conhecida como “Prêmio ANPOCS”, cujos resultados vinham sendo solicitados para se tornarem públicos.

Na realidade, públicos já eram desde 2005: a página da SENASP, no portal eletrônico do Ministério da Justiça, disponibiliza todos os relatórios concluídos. Além disso, os nove artigos do primeiro número da Coleção Segurança com Cidadania, publicado em 2009, são textos oriundos do referido “Prêmio ANPOCS”. Para dar visibilidade à produção daquela iniciativa, mobilizamos todos os autores premiados e encontram-se publicados neste número os que se mostraram interessados em transformar seus relatórios de pesquisa em artigos científicos. O resultado está nas páginas seguintes.

O artigo que abre a revista é de autoria de Ignácio Cano e Thaís Lemos Duarte. Cientes de que o desempenho das organizações da Justiça Criminal no Brasil é considerado ineficiente para prevenir e reprimir a criminalidade, afirmam a necessidade de haver estudos que avaliem detalhadamente a capacidade que o sistema tem de identificar, processar e punir os autores dos crimes. Analisando o fluxo do Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro, o texto mensura os níveis de impunidade para os crimes de homicídio e de roubo e os fatores utilizados como critérios para punir autores daqueles crimes no estado. Os autores fizeram uso de amostras de ocorrências

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policiais e de sentenças condenatórias para comparar características dos fatos, dos réus e das vítimas nos dois conjuntos de casos.

Abordando outra faceta do debate apresentado por Cano e Lemos, Joana Domingues Vargas, Ismênia Blavatsky de Magalhães e Ludmila Ribeiro chamam atenção para o fato de que, embora vigore a imagem de que a justiça funciona mal porque é lenta, a investigação sobre o tempo de tramitação de pessoas e papéis na Justiça Criminal é ainda muito incipiente. A fim de contribuir para sanar essa lacuna, as autoras desenvolveram e testaram um método de análise do tempo da Justiça Criminal que permitisse “(1) tratar bases de dados que contenham informações sobre o tempo de processamento, (2) utilizar a técnica estatística de análise de sobrevivência para mensurar de forma adequada este tempo e identificar fatores que o influenciam, (3) criar indicadores para avaliar a morosidade processual; e (4) identificar padrões, regularidades e tendências da morosidade processual”.

Evaldo Luís Pauly apresenta a criação, a atuação protetiva e a peculiaridade do PROTEGE/RS – programa de garantia dos Direitos Humanos para pessoas que, em virtude de sua condição como testemunhas e das investigações policiais, sofrem ameaças efetivas de criminosos ou de suas organizações. Discute a difícil relação entre a exigência da impessoalidade e da transparência do serviço público e a intimidade e o sigilo requeridos pelo serviço de proteção à testemunha. O autor descreve a rotina de trabalho do programa, bem como os impasses observados pelos seus operadores e gestores. Ainda que provisórias, suas conclusões são importantes, assemelhando-se a um inventário de questões ainda não resolvidas.

Haydée Caruso, Luciane Patrício e Nalayne Mendonça são as autoras de “Da Escola de Formação à Prática Profissional: um estudo comparativo sobre a formação de praças e oficiais da PMERJ”. O artigo é fruto de pesquisa exploratória sobre a produção, a transmissão e a aprendizagem dos conhecimentos dos policiais militares do estado do Rio de Janeiro recebidos nas escolas de formação e produzidos no cotidiano de seu trabalho. O texto evidencia as questões relacionadas à (in)adequação daquilo que é ensinado e aprendido nas escolas (de praças e de oficiais) e sua aplicação no dia a dia profissional. Ressalta os diferentes mecanismos de construção do saber prático on the job e seus impasses. Expõe os processos de avaliação aos quais os policiais militares são submetidos demonstrando as contradições de uma profissão que reúne paradigmas civis e militares e suas tensões entre o aprendido e o vivido. Ao descrever os dilemas e limitações da formação inicial e continuada, a construção do saber prático e os processos de avaliação adotados, constitui-se num texto que contribui para o debate sobre os processos de formação policial no Brasil.

Em “A reinvenção da ´cartorialização´: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a

Editorial | 7

homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro”, Ana Paula Mendes de Miranda, Marcella Beraldo de Oliveira e Vívian Ferreira Paes descrevem como agentes e autoridades policiais avaliam o trabalho de registro e de investigação dos crimes de homicídio, analisando também a qualidade destas informações no banco de dados do programa Delegacia Legal. Interessadas em compreender os efeitos gerados pela introdução de novas ferramentas de trabalho na elaboração do inquérito, constatam uma ressignificação das práticas cartoriais da polícia judiciária e suas implicações.

Embora negligenciada no Brasil, a antropologia forense constitui-se especialidade importante no combate à violência e à impunidade em muitos países do mundo. A partir da insuficiência de profissionais desta área no nosso país, Andrea Lessa avaliou o limite do serviço de identificação das ossadas e dos cadáveres que dão entrada nos IMLs sem impressões digitais ou condição de reconhecimento, construindo um quadro que aponta uma área em que se verifica grande carência de especialistas. Além disso, detecta os elementos que dificultam ou impedem a realização das perícias de forma satisfatória, elementos estes que fazem com que grande número de cadáveres saia sem identificação das instituições periciais e com que inquéritos policiais sobre homicídios permaneçam sem resolução.

Ainda no terreno dos temas pouco explorados no campo da Segurança Pública, Henrique Cukierman aborda o cibercrime no Brasil. Seu artigo é fruto de pesquisa que retrata as atividades das delegacias especializadas em crime eletrônico, no qual verifica as relações entre a atividade policial e a discussão de uma legislação federal para a definição dos crimes de informática.

Eneida Haddad, Jacqueline Sinhoretto, Frederico de Almeida e Liana de Paula assinam “Centros Integrados de Cidadania: avaliação de uma política de prevenção da violência (2003-2005)”. O trabalho sintetiza os resultados de uma pesquisa feita pelo IBCCrim sobre os Centros Integrados de Cidadania (CIC), cuja análise se debruçou sobre três pontos: o desenho das políticas de implantação dos três programas existentes (Estado do Acre, Estado de São Paulo e município de Vitória, ES), a participação da sociedade civil na gestão dos programas através dos conselhos e a dos serviços de justiça oferecidos no CIC. Nos três casos, constatam uma ampliação da oferta de serviços de justiça e o acesso aos direitos “por meios não judiciais, por uma atuação não ortodoxa dos serviços judiciais, ou ainda, como no caso do Acre, por uma atuação judicial clássica”. Ao mesmo tempo, asseveram que tal ampliação não corresponde necessariamente a uma reforma das instituições judiciais, mas somente a um aumento do número de postos de oferta de tais serviços, embora “inovação” seja palavra presente nos discursos dos funcionários e gestores envolvidos.

Finalizando o número, figura o artigo de Glaucíria Mota Brasil e Emanuel Bruno Lopes de Sousa. O título, “Etnografia das políticas e programas

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de enfrentamento da violência sexual praticada contra crianças e adolescentes em Fortaleza”, sintetiza os objetivos da pesquisa: “contribuir com as ações de enfrentamento do fenômeno no Ceará”. Depois de apresentar conceitos, aspectos e dinâmicas da violência, os autores adentram o campo onde o artigo se desenvolve mais plenamente, ou seja, as “portas de entrada” da denúncia de violência sexual: os Conselhos Tutelares, a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente, os Projetos Sentinela e/ou S.O.S Criança em funcionamento. A descrição das instituições conforma um diagnóstico da situação de enfrentamento na medida em que explica a dinâmica dos registros de notificações de crimes relacionados à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes no País.

Nosso desejo com a publicação deste número é dar concretude ao investimento feito através do 1º Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e dar visibilidade à pesquisa produzida em Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil. Ao reafirmar a importância deste trabalho, a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça pretende valorizar o campo de conhecimento da segurança pública e da justiça criminal na agenda das discussões travadas nos fóruns científicos, permitir que as políticas públicas desenvolvidas neste campo se beneficiem deste saber, assim como fomentar novas pesquisas aplicadas nesta área.

Boa leitura.

Luciane Patrício B. MoraesThadeu J. Silva Filho

Editores

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 9

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro1

Ignacio CanoThais Lemos Duarte

1. INTRODUÇÃOO funcionamento das organizações da Justiça Criminal atrai uma atenção

crescente da opinião pública e dos gestores de políticas públicas. Freqüentemente, o desempenho desses órgãos é considerado ineficiente para a repressão e a prevenção da criminalidade, gerando fortes debates sobre a impunidade no país. Para balizar a discussão e a formulação de políticas nesta área, é imprescindível contar com estudos que avaliem em detalhe a capacidade do Sistema de Justiça Criminal para identificar, processar e punir os autores dos crimes. Em função desse cenário, a atenção dos pesquisadores a este tema também vem aumentando nos últimos anos (Misse & Vargas, 2007). O presente texto, que é resultado de um projeto de pesquisa realizado pelo CESEC-UCAM, pretende contribuir para o conhecimento do Sistema de Justiça Criminal no estado do Rio de Janeiro.

Os objetivos específicos do trabalho são:

a) mensuração dos níveis de impunidade para os crimes de homicídio e roubo, analisando o fluxo dentro do Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro e a diferença entre o volume de casos nas diversas instâncias: ocorrências, inquéritos, denúncias e sentenças;

b) análise exploratória dos fatores associados com uma maior ou menor probabilidade de punição para os autores dos crimes de homicídio e roubo no estado do Rio. Para tanto, a pesquisa estudou amostras de ocorrências policiais, por um lado, e de sentenças condenatórias, por outro, relativas aos dois tipos de crimes, comparando as características dos fatos, dos réus e das vítimas nos dois conjuntos de casos.

2. ESTUDOS SOBRE O FLUXO NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASILOs estudos sobre violência, criminalidade e justiça criminal, dentro

do contexto brasileiro, começaram a ganhar corpo a partir da década de 1970, sendo ampliados nos anos 1980 e consolidando-se nas duas últimas décadas. Nos últimos anos, foram realizados, entre outros, uma série de estudos relacionados à morosidade processual e à impunidade. Essas pesquisas passaram a influenciar, cada vez mais, as políticas públicas e a administração do sistema. Nesta seção, são apresentados alguns dos principais trabalhos sobre taxas de esclarecimento criminal no Brasil. 1 O presente artigo é resultado da pesquisa “Mensurando a Impunidade no Sistema de Justiça Criminal no Rio De Janei-

ro”, finaciada pela SENASP e desenvolvida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro, sob a coordenação técnica do primeiro autor.

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Coelho (1986) foi um dos pioneiros no país a estudar o processamento de um fato criminoso ao longo das agências do Sistema de Justiça Criminal. Utilizando estatísticas oficiais, publicadas pelo Serviço de Estatística, Demografia, Moral e Política do Ministério da Justiça para o estado do Rio de Janeiro, analisou o fluxo do sistema de justiça entre os anos de 1942 e 1967. De acordo com os dados apresentados no estudo, apenas uma parcela das pessoas indiciadas por crimes e contravenções eram processadas criminalmente, e uma proporção ainda menor era finalmente sentenciada a penas privativas de liberdade. Assim, o autor afirma que no ano de 1967 apenas 16% dos indiciados em inquéritos policiais por roubo, furto, homicídio e estelionato e 35% dos indiciados por contravenção foram condenados a uma pena privativa de liberdade. Surge assim na literatura brasileira a idéia do ‘efeito funil’ no fluxo do sistema de justiça criminal. No entanto, não fica claro no texto em que momento é registrado o desfecho dos casos correspondentes a 1967. Dado que o percurso dos casos ao longo do sistema demora meses ou anos, o lapso de tempo transcorrido até a determinação do desfecho final é um ponto metodológico de grande importância.

Adorno (1994, apud Ribeiro, 2009) analisou o processamento de todos os crimes que tiveram a autoria esclarecida no estado de São Paulo entre os anos de 1970 a 1982. Do total de crimes analisados no ano de 1970, 75% dos autores foram objeto de denúncia, sendo que, ao final do processamento do delito, apenas 27% deles foram condenados. Já tomando como base o ano de 1982, 65% dos autores foram denunciados e só 22% foram condenados.

Soares et al (1996) analisaram os inquéritos de homicídios dolosos instaurados pela polícia na região metropolitana do Rio de Janeiro. O estudo revelou que, considerando os inquéritos lavrados em 1992, apenas 8,1% deles tinham se tornado processos penais até junho de 1994. Assim, tendo em vista que aproximadamente 92% dos homicídios dolosos analisados não chegaram à fase processual, Soares et al (1996) concluíram que, para além de moroso, o sistema de Justiça do Rio de Janeiro era ineficiente e gerava altos níveis de impunidade.

Vargas (2004, 2007) analisou 444 Boletins de Ocorrência (B.O.s) de estupros registrados na Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas, no período entre 1988 a 1992, verificando seus desdobramentos no fluxo procedimental da Justiça até o ano de 2001. O fato que mais chamou atenção em seu trabalho foi a grande filtragem operada na fase policial, quando 71% dos B.O.s iniciais foram arquivados e apenas 29% se tornaram inquéritos. Uma segunda seleção ocorria antes da fase judicial, pois apenas 55% dos inquéritos instaurados resultaram em denúncia. Por sua vez, só 58% das denúncias receberam uma sanção, o que significa que, no final, apenas 9% dos B.O.s iniciais produziram uma condenação.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 11

GRÁFICO 1Fluxo de estupro em Campinas (1988-1992)

Boletim de Ocorrência

Inquérito

Denúncia

Condenação

29%

16%

9%

100%

Fonte: Vargas (2004)

Misse & Vargas (2007) buscaram comparar a produção decisória da Justiça Criminal no Rio de Janeiro em duas séries históricas. A primeira se estende de 1953 a 1957 e a segunda abarca os anos de 1997 a 2001, contemplando, portanto, dois momentos separados por um intervalo de meio século. As taxas de elucidação policial do crime de homicídio são muito baixas nos dois períodos analisados. Um caso pode ser considerado esclarecido quando a polícia considera que há prova suficiente sobre a autoria e materialidade do crime, independentemente do seu desfecho processual final. A taxa média de esclarecimento de homicídios (tentados e consumados) no estado do Rio de Janeiro entre 1953 e 1957 é de 28%. Na segunda série em questão, entre 1997 e 2001, a taxa é de 33%. Conforme Misse & Vargas (2007), não há como negar uma constante nas taxas de elucidação policial de homicídios dolosos no Rio de Janeiro ao longo do tempo.

Uma pesquisa elaborada pelo Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) acompanhou os crimes violentos (homicídio, roubo, roubo seguido de morte, estupro e tráfico de drogas) e não-violentos (furto, furto qualificado e consumo de drogas) registrados em 16 delegacias do município de São Paulo entre 1991 e 1997 (Adorno & Pasinato, 2008). Dos 344.767 BOs registrados, apenas 5,5% converteram-se em inquérito policial. Essa proporção é maior (8,1%) para os crimes violentos, entre os quais a maior probabilidade corresponde ao tráfico de drogas (92,7%), em geral resultado de flagrante. Em seguida, as maiores taxas estão relacionadas aos latrocínios, isto é, roubos seguidos de morte (67,2%), e aos homicídios (60,1%).

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TABELA 1Total de Boletins de Ocorrência registrados e convertidos emInquéritos Policiais, segundo o tipo do crime - 1991 a 1997.

Tipo de Crime Total de B.O.s Registrados

Total de B.O.s convertidos em inquéritos

% de B.O.s que viraram inquéritos

Crimes não violentos 211.832 8.216 3,9

Furto 202.632 6.553 3,2

Furto qualificado 7.811 414 5,3

Uso de entorpecentes 1.389 1.249 89,9

Crimes violentos 117.418 9.553 8,1

Estupro 1.630 364 22,3

Homicídio 4.913 2.954 60,1

Roubo 109.831 5.362 4,9

Latrocínio 372 250 67,2

Tráfico de entorpecentes 672 623 92,7

Ocorrências nãocriminais 15.517 1.139 7,3

Encontro de cadáver 167 105 62,9

Morte a esclarecer 1.618 500 30,9

Resistência seguidade Morte 82 68 82,9

Verificação de óbito 13.650 466 3,4

Total 344.767 18.908 5,5Fonte: (Adorno & Pasinato, 2008)

Uma importante conclusão derivada desses estudos é que maior filtragem do sistema de justiça criminal parece ocorrer durante a fase policial (Ribeiro, 2009). A filtragem continua, em menor medida, nas seguintes fases do fluxo, protagonizadas pelo Ministério Público e o Judiciário.

3. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE OS ESTUDOS DA ÁREAPara mensurar o fluxo no sistema justiça criminal e para avaliar o grau

de impunidade, seria desejável acompanhar o percurso dos casos nas quatro fases tradicionais: a) Registros de Ocorrência policiais; b) Inquéritos policiais; c) Denúncias oferecidas pelo Ministério Público; d) Sentenças do Judiciário. A estas quatro etapas, poderíamos acrescentar ainda a fase do cumprimento efetivo das penalidades, crucial para efetivar a capacidade sancionadora do estado. Quando se trata de penas restritivas da liberdade, os atores centrais desta última fase são o sistema penitenciário e as Varas de Execução Penal.

Entretanto, limitações nos dados disponíveis e condicionamentos de ordem metodológica fazem com que, na prática, seja muito difícil realizar pesquisas que integrem todas essas instâncias. Assim, alguns dos principais

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 13

problemas metodológicos enfrentados neste tipo de estudos são os seguintes:

1. As duas primeiras fases de tramitação de um crime no sistema de justiça correspondem à Polícia Civil, a terceira ao Ministério Público e a quarta ao Judiciário. Cada uma destas instituições conta com um sistema de informações próprio, voltado para si. Por exemplo, os números de registro que identificam cada caso são diferentes em cada órgão (número de B.O.; número de inquérito, etc.) Apesar das melhoras experimentadas nos últimos anos, tanto na qualidade dos sistemas de informação quanto na sua capacidade para acompanhar registros de outras instituições (o Ministério Público de alguns estados, por exemplo, começou a registrar o número do B.O. policial em seus bancos informáticos), inexiste, até hoje, um banco de dados centralizado que permita monitorar o percurso de um crime desde o seu registro policial até a sua sentença, muito menos até o cumprimento final da penalidade. Em função disso, é comum que as pesquisas contemplem apenas algumas das instâncias mencionadas.

2. A unidade de análise não é constante para todas as fontes nem para todos os delitos. Crimes contra o patrimônio, por exemplo, costumam ser registrados e divulgados segundo o número de ocorrências, enquanto crimes contra pessoas geralmente são apresentados de acordo com o número de vítimas. No Ministério Público e no Judiciário, a unidade é o processo, que corresponde a um fato, mas pode incluir mais de uma vítima. Todavia, um processo pode também ser, em algumas circunstâncias, desmembrado em vários processos diferentes e processos diversos podem ser apensados em um processo único. Todas essas considerações dificultam a comparação do número de casos em instâncias diferentes.

3. A tipificação penal inicial de um caso por parte do delegado de polícia pode mudar nas seguintes fases: inquérito, denúncia e sentença. Isso significa que ao acompanhar o percurso de um conjunto de casos relativos a um crime determinado ao longo do tempo, é possível que alguns deles saiam da série ao serem re-tipificados de forma diferente e também que outros casos entrem no conjunto pela mesma razão. Assim, por exemplo, um registro de lesão seguida de morte na polícia pode acabar sendo condenado por homicídio doloso ou vice-versa.

4. A princípio, a melhor forma de mensurar a impunidade seria calcular a proporção de crimes (de uma determinada natureza), registrados num certo ano, que acabou resultando em inquéritos, processos e sentenças. Em outras palavras, a metodologia ideal seria longitudinal ou diacrônica, exigindo o monitoramento de um conjunto de registros policiais ao longo do tempo. Para tanto, é necessário adotar um determinado intervalo de tempo como referência, desde que ele seja suficiente para que as ocorrências, ou pelo menos a grande maioria delas, se tornem inquéritos, processos e sentenças. Entretanto, este lapso de tempo é diferente para cada tipo de crime, o que dificulta a decisão sobre um intervalo geral. De qualquer forma, conforme já mencionado, a análise do percurso de um

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conjunto de casos a partir dos sistemas de informações de diversas instituições acaba sendo muito difícil, pois não há um banco centralizado com todas as informações relevantes. Por isso, uma alternativa comum é trabalhar apenas com uma amostra de B.O.s e procurar esses casos, um a um, nas outras instituições. Tal procedimento costuma ser complexo e prolongado. Não raro, alguns dos casos procurados não são encontrados na outra instituição ou não estão disponíveis no momento. Em função de todas essas dificuldades, muitos pesquisadores optam por uma abordagem transversal ou sincrônica, abandonando o enfoque propriamente longitudinal. Ou seja, comparam, por exemplo, o número de homicídios registrados em um ano com o número de sentenças por homicídio emitidas nesse mesmo ano. Entretanto, os delitos registrados em um ano determinado não são, necessariamente, sentenciados nesse mesmo intervalo, pois muitas das sentenças proferidas num ano correspondem a fatos acontecidos em períodos anteriores. Idealmente, a comparação deveria ser estabelecida entre as ocorrências lavradas em certo momento e os processos penais e as sentenças produzidas num momento posterior, tal que a diferença entre os dois momentos dependesse do lapso médio de processamento em cada instância (número médio de meses transcorridos entre ocorrência e inquérito, entre inquérito e denúncia, etc.). Por sua vez, estes tempos médios variam para cada tipo de crime. Por exemplo, se o tempo médio entre a abertura de inquérito de homicídio e a denúncia por este tipo de crime é de um ano, poderíamos comparar os inquéritos de 2005 com as denúncias de 2006.

Em suma, todas estas considerações dificultam o cálculo de taxas de filtragem ou de impunidade. Quando o número de B.O.s, de inquéritos, de processos e de sentenças é mais ou menos estável a cada ano, a comparação realizada entre os números das diferentes instâncias no mesmo ano é menos problemática. Por outro lado, quando há tendências de aumento ou diminuição em qualquer uma dessas séries temporais, a confiabilidade das comparações entre cifras do mesmo período diminui. Perante esse quadro de dificuldades, outra opção possível é uma abordagem longitudinal retrospectiva, na qual os pesquisadores obtêm as sentenças penais e, a partir delas, conseguem acesso aos documentos das instâncias anteriores (denúncias, inquéritos e B.O.s), que muitas vezes constam dos autos. É possível reproduzir assim, retrospectivamente, o fluxo desses delitos no sistema e calcular, por exemplo, tempos médios em cada fase. Porém, a principal dificuldade desta estratégia é que apenas os casos que chegam ao final do processamento, ou seja, no estágio de sentença penal, estão disponíveis. Estes casos, além de constituírem quase sempre uma minoria, são provavelmente diferentes, em muitas dimensões, daqueles que não conseguiram ultrapassar as fases iniciais, não podendo ser considerados uma amostra representativa do conjunto.

5. Para além dos problemas de acesso às informações relevantes, existem também dificuldades relativas à formatação dos dados disponíveis nos

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 15

sistemas de informação. Entre outras, podemos mencionar o fato de muitas informações chaves não estarem codificadas. Assim, por exemplo, o tipo de crime costuma estar escrito por extenso em alguns casos e com a menção ao artigo do Código Penal, o parágrafo e o inciso. Em razão dessa falta de codificação e também dos erros de digitação, nem sempre é fácil selecionar os casos relativos a determinados tipos de crime.

4. METODOLOGIAPara a consecução do primeiro objetivo da presente pesquisa, a

mensuração do fluxo dos casos dentro do sistema judicial, optou-se por uma análise transversal ou sincrônica, em função das dificuldades apontadas anteriormente para desenvolver uma pesquisa longitudinal. Assim, a ausência de códigos identificadores que permitissem vincular as ocorrências policiais individuais com os inquéritos, as denúncias e as sentenças, de forma a reconhecer o mesmo caso nas diversas instâncias, inviabilizava o monitoramento de um conjunto de crimes no seu percurso dentro do sistema. Uma opção teria sido a procura de uma amostra de casos iniciais nas fases seguintes, mas as dificuldades envolvidas neste processo, a possibilidade de um grande número de casos não encontrados em algumas instâncias e as limitações de tempo e de recursos aconselharam optar por uma metodologia transversal.

A intenção inicial era, portanto, estimar o número de homicídios e de roubos processados anualmente em cada uma das quatro fases básicas: ocorrência policial, inquérito, denúncia e sentença. Entretanto, não foi possível encontrar informação confiável sobre dois desses estágios. O registro policial das ocorrências está plenamente informatizado, mas há certas dúvidas em relação ao registro informatizado dos inquéritos. Embora homicídio e roubo sejam crimes graves, não há garantias plenas de que os Registros de Ocorrência classificados dessa forma se tornem necessariamente inquéritos.

Por sua vez, o Ministério Público também não dispõe de registros informatizados sistemáticos de inquéritos nem de denúncias. Com efeito, na época em que a pesquisa foi realizada o sistema informático do Ministério Público estava limitado às Centrais de Inquérito, que recebiam os delitos não flagrantes. Já os crimes flagrantes eram encaminhados diretamente às Varas Criminais, que não dispunham de um sistema de informações centralizado.

O sistema informatizado do Judiciário registrava o número de denúncias, mas não foi possível conseguir dados completos e confiáveis da totalidade delas. Nas primeiras informações fornecidas pelo Judiciário, listagens impressas em que constavam as denúncias registradas em cada Vara, faltavam algumas varas da capital e do interior para completar o total do estado. Já o banco final disponibilizado pelo Judiciário, que foi utilizado na análise, incluía a variável “Data

16 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

da Denúncia”. No entanto, o preenchimento desta variável não era confiável, pois havia uma proporção significativa dos casos com sentença condenatória que não continha data da denúncia. A tentativa de estimar o número de denúncias a partir do último movimento processual registrado no banco também se revelou inconsistente com a informação proveniente da variável da data da denúncia.

Em suma, as limitações nos dados disponíveis nos obrigaram a renunciar ao cálculo de dois dos estágios intermediários: inquéritos e denúncias. Em função disso, a pesquisa teve de ser ater aos estágios inicial e final: ocorrência policial e sentença. Assim, a variável operativa mais importante será a taxa de condenação, isto é, a proporção dos casos registrados pela polícia resultante em condenação judicial. Vale lembrar que outras pesquisas trabalham com outros tipos de taxas (taxas de esclarecimento, etc.), o que deverá ser levado em consideração na hora da análise.

O segundo objetivo do projeto, a análise exploratória de fatores associados a uma maior ou menor chance de condenação dos crimes, será realizada através de uma abordagem longitudinal retrospectiva, anteriormente descrita. O plano inicial era analisar uma amostra aleatória de 400 registros de ocorrência de homicídios e outra de 400 roubos, e compará-las com amostras paralelas de sentenças do mesmo tamanho para ambos os tipos de crime. Dessa forma, seria possível contrastar o perfil dos crimes registrados na polícia com o dos crimes que, a princípio, resultaram em punição. A diferença entre os dois perfis apontaria para os elementos que podem estar aumentando a probabilidade de esclarecimento e condenação. Da mesma forma, esta análise revelaria que tipos de crimes - de acordo com as características do crime, do autor ou da vítima - estão associados com uma menor chance de resolução e, portanto, com um maior grau de impunidade.

Durante a pesquisa, foi constatado que a proporção de casos correspondentes a crime flagrante era muito elevada entre as sentenças de roubo. A existência de flagrante influencia diretamente a probabilidade de condenação. A polícia se ocupa em investigar basicamente os casos não flagrantes, visto que os flagrantes, a princípio, já partem da identificação do autor e da existência de um conjunto de provas contra ele. Tendo em vista essas observações, foi decidido coletar amostras separadas para crimes flagrantes e não flagrantes, em cada tipo de delito. Dessa forma, evita-se a possibilidade de que uma amostra aleatória simples acabe com um grande número de flagrantes e, como conseqüência, com pouca informação ou com uma informação enviesada, relativa aos elementos que explicam a condenação.

5. FONTES E FORMATOS DOS DADOS UTILIZADOSComo já foi explicado anteriormente, o estudo trabalhou basicamente a

partir de dois estágios, registros policiais e sentenças, buscando estimar a proporção

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 17

de crimes registrados que resulta em condenação. Em primeiro lugar, descrevemos o formato e a maneira de processar os registros das duas fontes respectivas.

5.1 REGISTROS DE OCORRÊNCIA (R.O.S) DA POLÍCIA CIVILForam pesquisados os R.O.s de homicídios e roubos lavrados pela Polícia

Civil do Rio de Janeiro entre os anos de 2000 a 2007, obtidos a partir do site do Instituto de Segurança Pública do estado (ISP)2. Nesse site, encontram-se os totais mensais dos crimes registrados no estado nos últimos anos. Os números relativos aos primeiros anos da série tinham sido obtidos junto à Secretaria de Segurança durante pesquisas anteriores.

No delito de roubo, a unidade divulgada pelo estado é a ocorrência. Assim, ainda que exista mais de uma vítima ou de um autor envolvidos em um mesmo roubo, o fato será contabilizado como um só. Nesse sentido, a unidade de registro coincidia com a da nossa pesquisa, pois o objetivo é estimar a proporção de crimes, e não de criminosos nem de vítimas, que acaba resultando numa condenação.

Entretanto, a divulgação oficial dos homicídios parte de uma unidade de análise diferente e contabiliza, como caberia esperar, o número de vítimas, não o de ocorrências. Como uma ocorrência de homicídio pode envolver mais de uma vítima fatal, tornou-se necessário estimar o número das primeiras (ocorrências) a partir das últimas. Para tanto, partimos dos micro-dados dos Registros de Ocorrência da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro relativos ao crime de homicídio entre os anos de 2000 e 2004 e calculamos a média de vítimas por ocorrência3. O número médio anual de vítimas de homicídio por ocorrência de homicídio doloso oscilava entre 1,10 e 1,12 neste período, com uma média global de 1,11. Assim, estimamos, para o conjunto da série (2000 a 2007), que o número de ocorrências de homicídio seria igual ao número de vítimas dividido por este fator (1,11).

Como foi mencionado, a tipologia criminal ou policial contida no R.O. pode ser alterada no decurso do processamento, de forma que a denúncia ou a sentença sejam proferidas por um crime diferente do originalmente registrado. No estado do Rio, existem diversas outras categorias policiais que podem conter homicídios dolosos: morte suspeita, encontro de cadáver, encontro de ossada, lesão seguida de morte e morte de opositor a ação policial (auto de resistência). Esta última categoria, especialmente, representa um alto número de casos (mais de 1.000 nos últimos anos). Pesquisas anteriores (Cano, 1997) revelam a existência de fortes indícios de que uma parte significativa dos autos de resistência corresponde a execuções sumárias e, portanto, a homicídios dolosos. Em vista disso, esses casos deveriam estar incluídos nos totais de homicídio para o cálculo das taxas de impunidade. No entanto, essa proporção é desconhecida e muito difícil de 2 Site: http://www.isp.rj.gov.br/.3 O banco dos microdados não foi usado de forma geral para esta pesquisa, já que não tínhamos acesso aos microdados

relativos aos anos de 2005 a 2007.

18 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

estimar. Em segundo lugar, sabemos por outras pesquisas complementares que é muito pequena a probabilidade de que as execuções sumárias cometidas por policiais sejam re-tipificadas como homicídios dolosos e resultem em condenação (Cano, 1999; Lengruber et al., 2003).

Considerando que várias das categorias mencionadas acima contêm um número pequeno de homicídios (a maioria dos ‘encontros de cadáver’, por exemplo, é provocada por morte natural) e outras, mesmo contando com muitos homicídios, apresentam uma baixa probabilidade de serem reclassificadas como tais (caso dos ‘autos de resistência’), optamos por considerar, para fins da pesquisa, apenas os homicídios dolosos que foram registrados originalmente como tais. Com efeito, somos cientes de que essa estimativa subestima efetivamente a impunidade, na medida em que não contempla casos que podem ter sido homicídios dolosos, embora registrados de outra forma. Em suma, estamos calculando a taxa de condenação por homicídio apenas sobre os fatos que a própria polícia tipifica inicialmente como tais.

A tabela abaixo mostra a estimativa do número anual de Registros de Ocorrência referentes aos crimes de roubo e homicídio doloso no estado do Rio de Janeiro nos últimos anos.

TABELA 2Estimativa do Número Anual de Registros de Ocorrência de Roubo eHomicídio Doloso por ano: Estado do Rio de Janeiro - 2000 a 20074

Tipo de Ocorrência 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Total

Homicídio Doloso4 5.664 5.552 6.203 5.968 5.800 5.964 5.696 5.525 46.372

Roubo 83.243 97.973 114.720 118.994 111.170 114.262 124.704 137.781 902.847

Fonte: Instituto de Segurança Pública – ISP.

O número de registros de homicídio doloso oscila em torno de 5.500 e não varia muito ao longo dos anos. Já o número de registros de roubos cresce em quase todos os períodos, atingindo seu máximo em 2007 com 137.781 casos. A exceção é o ano de 2004, no qual há um pequeno decréscimo, que se inverte nos anos seguintes.

5.2 SENTENÇAS DO JUDICIÁRIOAs informações foram solicitadas à Diretoria Geral de Tecnologia da

Informação (DGETEC) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que nos forneceu um banco de dados com os processos por homicídio e roubo tombados no Judiciário durante os anos de 2000 a 2007. Mais precisamente, a base continha crimes tombados até agosto de 2007 e possuía apenas as sentenças proferidas em primeira 4 Os Registros de Ocorrência de homicídios são estimados a partir do número de vítimas divulgadas. Como já foi expli-

cado, calculou-se que uma média de 1,1 vítimas por registro de homicídios e foi esse o fator utilizado no cálculo.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 19

instância. O banco de dados continha as seguintes variáveis: Comarca; Serventia; Competência; Data da Distribuição; Número do Processo; Peça de Origem; Data do Delito; Código da Ação Principal; Capitulação do Processo; Situação Atual do Processo; Último Andamento do Processo; Pedido do Ministério Público; Data do Recebimento da Denúncia; Data da Primeira Sentença; Tipo da Primeira Sentença; Data da Última Sentença; Tipo da Última Sentença; Presença de testemunhas. Porém, os técnicos da DGETEC relataram que nem todas as variáveis apresentavam um alto grau de confiabilidade, ora porque o preenchimento era apenas ocasional ou parcial, ora porque muitos casos individuais ficaram sem informação.

A unidade de análise do banco da DGETEC é o réu-processo, isto é, há um registro separado para cada réu presente em cada processo penal. Assim, se um crime tem dois acusados, cada um deles terá um registro diferente na base. Da mesma forma, se uma pessoa é acusada de dois crimes cometidos em momentos diferentes, serão realizados dois registros, um para cada processo penal. Levando em consideração homicídio e roubo, o banco continha um total de 76.815 casos, isto é, 76.815 processos individuais.

A base de dados registrava também crimes em grau de tentativa, ou seja, crimes que não se consumaram por circunstâncias alheias ao agente (Art. 14 II Código Penal), que precisavam ser excluídos da pesquisa. Dessa forma, foram eliminados os casos em que a ‘Capitulação do Processo’ ou ‘Ação Principal’ faziam referência ao artigo 14 do Código Penal. Assim, 11% dos casos, correspondentes a crimes tentados, foram desconsiderados.

Os operadores do sistema informático do judiciário selecionaram os homicídios para a nossa pesquisa através das menções ao artigo do Código Penal (121). Isto significa que o banco inclui tanto homicídios dolosos quanto culposos, cometidos por negligência, imprudência ou imperícia. Entretanto, a nossa pesquisa se centrava exclusivamente nos homicídios dolosos, em que o agente tem a intenção de cometer o delito. Portanto, foram eliminados os casos em que a ‘Capitulação do Processo’ ou ‘Ação Principal’ mencionavam a palavra “culposo”. Em vista disso, 23,5% dos casos foram retirados.

A unidade de análise precisava ser adaptada, pois o banco, como já foi mencionado, apresentava a unidade ‘réu-processo’, enquanto que a análise precisava ser feita exclusivamente em função dos processos. Para tanto, foi necessário identificar os réus-processos que correspondiam ao mesmo fato inicial, sendo que tal procedimento foi realizado através da variável ‘Peça de Origem’ (R.O., flagrante, etc.). Em conseqüência, entre os registros que correspondiam a uma mesma peça original apenas um foi selecionado para análise, de forma a evitar redundância. Entre os casos relativos à mesma peça foi escolhido aquele que tivesse resultado em condenação ou, caso não houvesse nenhuma condenação, aquele que tivesse chegado na fase de sentença ou, pelo menos, de denúncia.

20 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Caso existissem vários casos na mesma condição, foi escolhido aleatoriamente um deles. Dessa forma, 6% dos casos presentes no banco (uma vez que já tinham sido retirados os homicídios culposos e as tentativas de homicídio) foram eliminados por corresponderem ao mesmo fato inicial.

Após esses procedimentos de seleção, o número total de registros disponíveis para a análise passou a ser de 54.815 processos.

Partimos do princípio de que os crimes registrados tinham de fato acontecido (isto é, assumimos que a falsa comunicação de crimes ou a tipificação errada eram muito pouco freqüentes). A partir daqui, era preciso ao menos uma condenação relativa a cada crime para considerar que o sistema de justiça criminal exerceu o seu papel sancionador. Em outras palavras, caso não houvesse nenhuma condenação relativa a um crime, interpretamos que ele ainda estava impune. Esta impunidade pode resultar de diversas situações: a) o crime não se tornou inquérito; b) o inquérito não virou denúncia; c) a denúncia não chegou na fase de sentença; d) a sentença resultou na impronúncia ou absolvição de todos os réus.

O banco do Judiciário foi selecionado pelos operadores da DGETEC de acordo com o ano de tombamento, entre 2000 e 2007. Isso significa que muitos processos ainda estavam tramitando nos cartórios judiciais na época da criação do banco e não tinham chegado ainda na fase de sentença. A partir da variável ‘Tipo da Última Sentença’ - que na realidade corresponde à última movimentação processual referente ao processo - foi construído um sistema classificatório que permitiu a categorização dos casos que resultaram em condenação. Existia ainda outra variável no banco chamada de ‘Tipo da Primeira Sentença’ - na verdade, a movimentação processual anterior -, mas fomos orientados pelos técnicos da DGETEC a utilizar a ‘Última Sentença’, pois o seu preenchimento era muito mais sistemático e satisfatório do que o da outra variável. Quando ambas variáveis estavam preenchidas, o grau de coincidência entre elas era alto, com pequenas diferenças.

A variável ‘Tipo da Última Sentença’ contemplava categorias diversas. Para identificar as medidas judiciais expressas por essas categorias, foram consultados o Código Penal, o Código de Processo Penal e foram entrevistados juízes do Tribunal de Justiça. Essas entrevistas com os operadores do direito foram de grande importância, porque várias medidas judiciais descritas no banco de dados não estão detalhadas explicitamente na legislação.

De fato, consideram-se como ‘sanções’ as sentenças nas quais a culpabilidade do réu fica comprovada, ainda que não se aplique necessariamente uma pena. A pena pode deixar de ser aplicada por vários motivos, entre eles, o perdão judicial, a extinção da pena ou a transação penal. Em outras palavras, estima-se a proporção de delitos cuja culpabilidade é oficialmente estabelecida, embora, em certas ocasiões, o próprio estado decida pela não execução da sentença ou

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 21

conceda algum tipo de perdão aos réus. Assim, a determinação de culpabilidade pode ser interpretada, no mínimo, como uma espécie de advertência, razão pela qual não caberia falar em impunidade nestes casos. Nesse sentido, quando a extinção da punibilidade acontece posteriormente à determinação de culpabilidade (como a extinção por perdão judicial), o caso é considerado dentro dos que resultaram em sanção. Já quando a extinção da punibilidade acontece previamente à determinação de culpa (como no caso da morte do réu antes do fim do processo) o caso é classificado entre os que não recebem sanção. Por sua vez, as medidas sócio-educativas, embora não sejam penas, são tratadas também como sanções.

Entre os casos categorizados como ‘sem sanção’, encontram-se processos penais que não chegaram ainda ao desfecho final, que poderá ou não envolver sanção. Por exemplo, processos cuja última movimentação é a ‘pronúncia’ pelo juiz ainda serão encaminhados para o júri, que decidirá sobre a culpabilidade dos acusados.

A tabela seguinte mostra todas as categorias da variável ‘Tipo da Ultima Sentença’, considerando as ações judiciais que podem ser interpretadas como sanções e as que não resultaram em sanção, pelo menos até o momento da pesquisa.

TABELA 3Categorização da Última Movimentação dos Processos quanto a sua Sanção Penal

Status Natureza da medida

SANÇÃO

Advertência (Art. 112 I, ECA)

Extinção da medida

Extinção da punibilidade por perdão judicial

Inserção em Regime de Semi-liberdade (Art. 112 V, ECA)

Internação em Estabelecimento Educacional (Art. 112 VI, ECA)

Liberdade Assistida (Art. 112 IV, ECA)

Obrigação de Reparar o Dano (Art. 112 II, ECA)

Prestação de Serviços à Comunidade (Art. 112 III, ECA)

Sentença Condenatória

Suspensão Condicional da Pena (Art. 77 a 82 do Código Penal)

Sentença mista

Remissão judicial

Reabilitação

Transação Penal (lei 9099/95)

22 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

SEM SANÇÃO

Sentença absolutória

Absolvição sumária

Arquivamento da representação

Indeferimento da petição inicial (Art. 267 I CPC)

Parado por negligência das partes (Art. 267 II CPC)

Ausência de pressupostos processuais (Art. 267 IV CPC)

Ação intransmissível (Art. 267 IX CPC)

Perempção, litispendência ou coisa julgada (Art. 267 V CPC)

Falta de condições da ação (Art. 267 VI CPC)

Outros casos (Art. 267 XI CPC)

Com mérito do juiz – improcedência (Art. 269 I CPC)

Com mérito do juiz – procedência (Art. 269 II CPC)

Desclassificação

Extinção da punibilidade por morte do agente

Extinção da punibilidade por outros motivos

Extinção da punibilidade por prescrição, decadência ou perempção

Extinção da punibilidade por renúncia à queixa ou perdão (ação privada)

Extinção da punibilidade por retratação

Extinção da punibilidade por retroatividade da lei

Extinção do processo sem exame de mérito

Habeas corpus denegado

Improcedência da representação

Impronúncia

Outras sentenças

Pronúncia

Rejeição de denúncia

Rejeição de representaçãoFonte: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

A partir desta nova variável, a proporção de processos de cada tipo de crime em que houve sanção (isto é, determinação da culpabilidade) pode ser observada na tabela seguinte.

TABELA 4Número de processos referentes aos crimes de homicídio e roubo tombados no Judi-

ciário entre 2000 e 2007 de acordo com a Sanção Penal

Tipo de crime Situação processual Número de casos Percentual

Roubo

Com sanção 16.166 50,4%

Sem sanção 15.930 49,6%

TOTAL 32.096 100,0%

Homicídio

Com sanção 1.883 8,2%

Sem sanção 20.996 91,8%

TOTAL 22.879 100,0%Fonte: Banco de Dados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 23

Assim, a metade dos processos por roubo e apenas 8% dos processos por homicídio doloso tinha recebido sanções no final do período considerado. Essa diferença está relacionada, em parte, com a maior duração do processo penal para os casos de homicídio, que envolve um número maior e mais complexo de momentos processuais (pronúncia, Júri, etc).

Cumpre relembrar que o critério de formação do banco foi o ano do tombamento pelo Judiciário e não o ano da sentença, o que dificulta a estimação do número de sentenças correspondentes aos delitos registrados a cada ano. De fato, a proporção de casos com sanção varia fortemente de acordo com o ano de tombamento do processo5, conforme revelam as tabelas seguintes.

TABELA 5Número de Processos por Crime de Homicídio Doloso, segundo a existência de

Sanção e o Ano de Tombamento do Processo

Ano de Tombamento Total

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2000

Sanção

Não 6679 1151 1806 1677 1930 2660 2851 2242 20996

96,8% 81,7% 83,0% 81,4% 86,1% 92,4% 96,6% 99,2% 91,8%

Sim 221 258 371 382 311 220 101 19 1883

3,2% 18,3% 17,0% 18,6% 13,9% 7,6% 3,4% ,8% 8,2%

Total 6900 1409 2177 2059 2241 2880 2952 2261 22879Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

TABELA 6Número de Processos por Crime de Roubo, segundo a existência de

Sanção e o Ano de Tombamento do Processo

Ano de Tombamento Total

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Sanção

Não 2914 1743 1705 1656 1614 1530 2063 2705 15930

67,5% 51,3% 43,9% 39,8% 37,2% 34,8% 47,2% 84,0% 49,6%

Sim 1406 1656 2178 2510 2729 2865 2306 516 16166

32,5% 48,7% 56,1% 60,2% 62,8% 65,2% 52,8% 16,0% 50,4%

Total 4320 3399 3883 4166 4343 4395 4369 3221 32096

100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

5 A informação sobre o ano de tombamento foi extraída a partir da variável “número do processo” presente no banco de dados do TJERJ.

24 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Para os dois crimes, os processos tombados nos primeiros anos apresentam porcentagens de sanções atipicamente baixos. A partir de 2002, no caso dos roubos, e de 2001 para os homicídios, a proporção de processos com sanção atinge um nível que podemos considerar estável: por volta de 60% dos roubos e de 18% dos homicídios tombados resultam em sanção. Já os últimos anos da série experimentam uma queda gradual e progressiva devida, obviamente, ao fato de que muitos dos casos tombados nesses anos não terem tido tempo ainda de culminarem em sentenças. Essa queda é mais intensa e começa mais cedo para os homicídios (2004), visto que o tempo de processamento para este crime é mais longo. Em suma, a proporção final de casos sancionados depende significativamente do ano do tombamento e isso não pode ser desconsiderado da análise, sob risco de subestimar o número de sanções.

Uma análise mais detalhada pode ser realizada a partir do cruzamento do ano do tombamento dos processos com o ano da ‘Última Sentença’ (última movimentação processual), conforme mostram as tabelas seguintes.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 25

TABELA 7Número de Processos pelo crime de Roubo segundo o ano de Tombamento e o ano

da Última Movimentação processual

Ano de Tombamento Total

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2000

Ano sentença

2000 585 0 0 1 0 0 0 0 586

32,4% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% 3,0%

2001 578 754 1 0 0 0 0 0 1333

32,1% 36,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% 6,9%

2002 167 870 1122 0 0 0 0 0 2159

9,3% 41,5% 42,3% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% 11,1%

2003 119 204 979 1306 1 0 0 0 2609

6,6% 9,7% 36,9% 43,4% ,0% ,0% ,0% ,0% 13,4%

2004 169 118 225 1149 1421 0 0 0 3082

9,4% 5,6% 8,5% 38,1% 44,0% ,0% ,0% ,0% 15,9%

2005 81 78 168 325 1376 1619 0 0 3647

4,5% 3,7% 6,3% 10,8% 42,6% 48,4% ,0% ,0% 18,8%

2006 73 52 112 168 338 1491 1574 0 3808

4,0% 2,5% 4,2% 5,6% 10,5% 44,6% 58,8% ,0% 19,6%

2007 31 20 47 63 92 235 1102 600 2190

1,7% 1,0% 1,8% 2,1% 2,9% 7,0% 41,2% 100% 11,3%

Total 1803 2096 2654 3012 3228 3345 2676 600 19414

100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

De acordo com a evolução dos anos de sentença em função do ano de tombamento, podemos estimar que praticamente a totalidade dos casos de roubos tombados em 2000 teve tempo de acabar o seu ciclo processual e obter um desfecho. A partir de 2005, no entanto, parece evidente que muitos casos ainda não chegaram ao final e, portanto, não tiveram chance de produzir uma condenação. Se o banco incluísse o período de 2008 e 2009, outras condenações relativas a casos tombados em 2006 e 2007 teriam sido contempladas. Em outras palavras, o banco possui um número de sentenças censuradas nos últimos anos, que não tiveram tempo de ser proferidas. Por isso, as estimativas brutas de sanções nos últimos anos estão sujeitas a uma forte subestimação.

26 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

TABELA 8Número de Processos pelo crime de Homicídio Doloso segundo o ano de

Tombamento e o ano da Última Movimentação processual

Ano de Tombamento Total

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2000

Anosentença

2000 19 0 0 0 0 0 0 0 19

2,9% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,4%

2001 70 29 0 0 0 0 0 0 99

10,7% 4,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% 1,9%

2002 117 158 105 0 0 0 0 0 380

17,9% 21,6% 10,4% ,0% ,0% ,0% ,0% ,0% 7,3%

2003 119 176 297 99 0 0 0 0 691

18,3% 24,1% 29,5% 11,0% ,0% ,0% ,0% ,0% 13,3%

2004 110 113 224 271 128 0 0 0 846

16,9% 15,5% 22,3% 30,1% 16,3% ,0% ,0% ,0% 16,2%

2005 94 105 185 244 281 132 0 0 1041

14,4% 14,4% 18,4% 27,1% 35,8% 20,4% ,0% ,0% 20,0%

2006 81 98 130 198 255 339 161 0 1262

12,4% 13,4% 12,9% 22,0% 32,5% 52,5% 38,0% ,0% 24,2%

2007 42 51 65 88 120 175 263 73 877

6,4% 7,0% 6,5% 9,8% 15,3% 27,1% 62,0% 100% 16,8%

Total 652 730 1006 900 784 646 424 73 5215

100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

No caso de homicídio doloso, o problema é ainda mais grave, pois o tempo de processamento é maior. Os casos tombados em 2000 conseguiram, aparentemente, completar o seu percurso processual na sua grande maioria. Entretanto, já a partir do ano de 2003 em diante, podemos supor que um número significativo de sentenças está sendo censurado por não ter tido tempo suficiente para atingir o seu desfecho. Em razão disso, as proporções brutas de sanções obtidas para os últimos anos estão muito abaixo do seu valor real.

Nesse cenário, existem duas opções. A mais simples é levar em consideração apenas os dados relativos a anos de tombamento em que os casos tenham tido tempo suficiente para completar o seu ciclo, descartando os últimos anos. Os primeiros anos também deveriam ser descartados, na medida em que caberia esperar deles um número significativo de sentenças correspondentes a processos tombados em anos anteriores. Assim, os dados relativos a anos intermediários, descartando os iniciais e os finais, representariam um ‘nível normal’ de sentenças a serem esperadas por ano para cada tipo de crime. Essa

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 27

opção nos levaria a estimar em aproximadamente 2.700 as condenações anuais por roubo e em 370 as condenações anuais por homicídio. Estas estimativas ignorariam eventuais tendências temporais de aumento ou diminuição no número de processos e condenações.

Outra opção é tentar estimar, para cada ano de tombamento, o número total de sanções esperáveis no tempo (incluindo anos posteriores a 2007) a partir dos dados existentes. Ou seja, estimar o número de sanções que poderiam ser obtidas se o banco não tivesse limite temporal em 2007 e pudesse continuar até o final de todos os processos. A estimativa foi realizada da forma seguinte. Para cada ano de tombamento, foi calculada a razão entre as sanções emitidas nesse mesmo ano e as proferidas no ano seguinte. Esse cálculo foi feito para todos os anos entre 2000 e 20056. Assim, foi obtida uma razão entre sanções no ano de tombamento e sanções no ano seguinte para cada um desses seis anos de tombamento. A média dessas 6 razões anuais constituía, então, a razão esperável de sanções entre o ano de tombamento e o seguinte. Essa razão esperável foi aplicada aos anos faltantes. Assim, os valores para 2007, que era um ano com informações incompletas, foram estimados a partir dos de 2006, multiplicando o valor obtido em 2006 pela razão esperada.

O mesmo procedimento foi realizado para a razão esperável de sanções dois anos depois do tombamento, em relação às obtidas no próprio ano de tombamento. Essa razão esperável permitiu estimar as condenações esperadas em 2008. A mesma estratégia foi utilizada para estimar as sanções que poderiam ser registradas três, quatro e cinco anos depois do tombamento.

Dessa forma, foi possível estimar as sanções esperadas nos anos futuros a partir dos anos registrados. Para cada ano de tombamento, foi estimado o número de sanções que aconteceriam até, no mínimo, 5 anos após o tombamento. Em suma, no final deste procedimento obtivemos um número total de sanções esperadas por ano de tombamento (independentemente do ano em que a sentença foi proferida). No caso de roubo, foi possível estimar até o ano de 2006; no caso de homicídio, cujos números eram pequenos e que possuía um tempo de processamento dos processos mais longo, a estimativa parecia confiável apenas até 2005.

Os dados do ano de 2007, como já foi explicado, contemplavam apenas o primeiro semestre. Por esta razão, os valores registrados para 2007 foram substituídos em todos os casos pelas estimativas obtidas a partir de anos anteriores.

Os valores finais destas estimativas podem ser conferidos na tabela seguinte.

6 2006 não foi utilizado, pois as informações do ano seguinte (2007) já estavam claramente censuradas e não permitiam uma estimativa válida.

28 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

TABELA 9Número de Sanções Efetivamente Registradas e Estimadas de acordo com

o crime e o ano de Tombamento

ROUBO HOMICÍDIO DOLOSO

Ano Tombamento do Processo

Sanções registradas até 2007

SançõesEstimadas

Sanções registradas até 2007

SançõesEstimadas

2000 1406 1411 221 211

2001 1654 1656 258 244

2002 2178 2202 371 393

2003 2510 2636 382 472

2004 2729 3009 311 431

2005 2865 3243 220 468

2006 2306 3096 101

2007 516 19

Com efeito, as séries de 2004 a 2006 para roubos e de 2003 a 2005 para homicídios apresentam um comportamento bastante estável, quando consideramos a estimativa ao invés do registro bruto. De acordo com a estimativa desses anos, o número de sanções anuais por roubo atinge pouco mais de 3.000 e as sanções anuais por homicídio se situam em torno das 470.

5.3 FLUXO DE CASOS NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL: A MENSURAÇÃO DA IMPUNIDADE

A partir das estimativas de R.O.s e de sanções apresentadas nas seções anteriores, é possível calcular a proporção aproximada de homicídios e roubos que resulta em algum tipo de sanção, de acordo com o ano de tombamento. No caso dos homicídios dolosos acontecidos entre 2003 e 2005 (anos em que a estimativa das sanções é mais precisa) contamos com aproximadamente 6.000 ocorrências anuais e apenas 470 sanções penais por ano. As proporções exatas ano a ano, entre 7% e 8%, podem ser conferidas no próximo gráfico. Os primeiros anos da série, anteriores a 2002, são menos confiáveis e podem ser desconsiderados.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 29

GRÁFICO 2Relação entre Registros de Ocorrências e Sanções Penais estimadas

pelo crime de homicídio doloso: anos 2000 a 2006, estado do Rio de Janeiro

ANO

20072006200520042003200220012000

%100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0

7,857,437,916,344,393,73

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro | Instituto de Segurança Pública – ISP

Por esses resultados, é possível concluir que mais de 92% dos homicídios dolosos no estado do Rio de Janeiro ficam impunes, enquanto que menos de 8% acabam identificando os responsáveis e sancionando pelo menos um deles pelo crime. Esse resultado pode ser comparado com o obtido por Soares (1996), cujo estudo revelava que 92% dos inquéritos de homicídios dolosos cometidos no ano de 1992 não tinham se tornado processos penais, isto é, não tinham resultado em denúncia, até junho de 1994. Entretanto, apesar das coincidências nos percentuais, cumpre ressaltar que nossa variável dependente é diferente, pois Soares estimou o percentual de inquéritos que viraram denúncia e nós estimamos a proporção de delitos que produziram sanção penal. Por outro lado, o prazo na pesquisa de Soares (1996) era mais curto —dois anos em média—, enquanto o nosso estudo estima o desfecho final dos processos independentemente do prazo. De forma geral, podemos dizer, a partir dos dados obtidos, que o prazo estabelecido por Soares (1996) para verificar se o homicídio se tornou ação penal (dois anos) pode ser considerado um tanto curto, pois os tempos de processamento neste crime são, como já foi mostrado, consideravelmente longos.

Para o caso do crime de roubo, entre 2004 e 2006 registramos mais de 110.000 ocorrências anuais, havendo apenas cerca de 3.000 sanções penais por ano. As proporções exatas, sempre inferiores a 3% são apresentadas no gráfico seguinte.

30 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

GRÁFICO 3Relação entre Registros de Ocorrências e Sanções Penais estimadas pelo crime de

roubo: anos 2000 a 2006, estado do Rio de Janeiro

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro | Instituto de Segurança Pública – ISP

Em suma, menos 3% dos casos de roubos culminam em uma sanção penal e mais de 97% permanecem impunes.

As taxas de impunidade aqui calculadas não podem ser comparadas diretamente com as taxas de esclarecimento obtidas em outros estudos de diversos países, pois a taxa de esclarecimento é computada em razão de critérios policiais. Ou seja, o caso é considerado esclarecido quando há pelo menos um indiciamento ou prisão de algum dos acusados. Como é evidente, nem todos os indiciamentos ou prisões resultam em condenações ou sanções. Por isso, cabe esperar uma taxa de esclarecimento no Rio de Janeiro mais alta do que a taxa de impunidade revelada aqui.

De qualquer forma, mesmo levando em consideração essa mudança metodológica, os dados revelam um quadro muito grave no Rio de Janeiro. Por exemplo, as taxas de esclarecimento para os homicídios nos Estados Unidos variaram entre 60% e 70% na última década, de acordo com os números do FBI. O governo britânico anunciou taxas de esclarecimento para o total dos crimes violentos de aproximadamente 50% desde abril até outubro de 1999. As cifras oficiais reportadas às Nações Unidas pelos países europeus e norte-americanos para todos os crimes, no período 1990-1994, revelaram uma taxa média de esclarecimento de 49% e uma mediana de 47% (Kangaspunta et al., 1998).

Se a incapacidade do estado do Rio de Janeiro para esclarecer e punir os crimes é clara, o quadro é ainda mais grave quando não há prisão e flagrante. Assim,

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 31

considerando todos os processos de homicídio doloso tombados entre 2000 e 2007, 26% dos casos de flagrante e apenas 6% dos casos sem flagrante tinham produzido uma sanção penal. Ou seja, era quatro vezes mais provável que um caso originado num flagrante resultasse na determinação da culpabilidade dos responsáveis.

TABELA 10Processos pelo Crime de Homicídio Doloso de acordo com a

Peça Inicial e com a Sanção Penal: Estado do Rio de Janeiro, 2000 a 2007

Status Total

Sem Sanção Com Sanção

Prisão em Flagrante

Não N 19126 1235 20361

% 93,9% 6,1% 100,0%

Sim N 1870 648 2518

% 74,3% 25,7% 100,0%

Total N 20996 1883 22879

% 91,8% 8,2% 100,0%

Quanto aos roubos, a proporção de processos que resultava em punição era bem superior, mas continuava existindo uma brecha significativa entre os dois tipos de situações. Os processos que se iniciaram num flagrante tinham chegado a uma sanção penal em 68% dos casos, enquanto aqueles sem flagrante o faziam em apenas 33% dos casos, ou seja, uma diferença de 2 a 1, menor do que a encontrada entre os homicídios (4 a 1), mas ainda notável.

TABELA 11Processos pelo Crime de Roubo de acordo com a Peça Inicial e com a

Sanção Penal: Estado do Rio de Janeiro, 2000 a 2007

Status Total

Sem Sanção Com Sanção

Prisão em Flagrante

Não N 10976 5459 16435

% 66,8% 33,2% 100,0%

Sim N 4954 10707 15661

% 31,6% 68,4% 100,0%

Total N 15930 16166 32096

% 49,6% 50,4% 100,0%

Em suma, quando não há prisão em flagrante dos suspeitos, a probabilidade de punição é muito reduzida, particularmente nos processos por homicídio.

6. FATORES ASSOCIADOS À PROBABILIDADE DE SANÇÃO PENALConforme abordado na seção metodológica, foi utilizada a estratégia

longitudinal retrospectiva para explorar os fatores que poderiam estar associados a uma maior ou menor chance de esclarecimento e condenação. Em conseqüência,

32 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

pretendia-se comparar as características dos registros de ocorrência dos crimes com as das sentenças condenatórias pelos mesmos tipos de crime, para verificar se existe algum diferencial entre ambas. Para tanto, foram coletadas amostras aleatórias de homicídios e roubos, separando os casos flagrantes dos não flagrantes, considerando que, como acabamos de observar, a existência de flagrante é determinante para a probabilidade de sanção penal e que a proporção de processos oriundos de flagrantes é superior nos roubos em comparação com os homicídios.

A amostra de R.O.s foi obtida a partir dos registros do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Os R.O.s das Delegacias Legais, já informatizados, foram impressos, enquanto os R.O.s das delegacias convencionais tiveram de ser procurados e copiados. Uma vez obtido o documento oficial, a equipe de pesquisa o lia e preenchia um formulário com as informações relevantes. O formulário continha itens sobre o fato, suas circunstâncias, os autores e as vítimas, bem como sobre o processo de investigação policial.

A amostra de sentenças condenatórias foi levantada na Vara de Execuções Penais (VEP), que recebe apenas os casos de condenação, com o objetivo de fiscalizar o cumprimento da pena. A VEP não registra os casos de absolvição. Partindo do suposto já enunciado de que o crime relatado nas denúncias efetivamente existiu - hipótese razoável nos crimes de roubo e homicídio - , o desfecho esperado do processo é uma condenação. Assim, uma absolvição dos réus julgados significaria uma continuação do quadro de impunidade, pela impossibilidade de prender e punir os verdadeiros culpados.

O serviço informático da VEP forneceu, em 2005, dois bancos de dados com as condenações, respectivamente, por roubo e homicídio nos anos de 2000 a 2004. Inicialmente, a meta era analisar as sentenças mais recentes - o ano de 2004 - e depois estudar os Registros de Ocorrência correspondentes ao ano em que, em média, foram lavrados os registros que resultaram nessas sentenças. Assim, se o crime de homicídio demorava em média 3 anos até chegar numa sentença, procurar-se-iam as sentenças de homicídio de 2004 e os R.O.s de homicídio de 2001. No entanto, as limitações das diferentes amostras, particularmente nos casos de flagrantes, obrigaram a incluir casos de vários anos, tanto para os registros quanto para as sentenças. Em função disso, foi preciso desistir da tentativa de vincular temporalmente as sentenças e os registros.

É importante observar que o ano de referência da VEP não era o ano do julgamento, mas o ano do tombamento do processo na própria Vara. Tal data podia ocorrer meses ou anos depois do julgamento ter acontecido. Uma análise dos registros revelou que um número significativo de processos relativos às sentenças proferidas em certo ano continuava chegando à VEP até dois anos depois do julgamento. Posteriormente, ainda chegavam alguns casos, mas em número pequeno. Por outro lado, não era possível supor que esse processo de tombamento dos casos

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 33

fosse aleatório, pois os processos tombados em um curto prazo poderiam, em tese, apresentar características diferentes daqueles que demoravam mais tempo em chegar à VEP. Como conseqüência, adotar como referência temporal um dos últimos anos (por exemplo, 2004), cujas sentenças em boa parte não tinham sido tombadas ainda na VEP em 2005, implicava correr certo risco de viés quanto à natureza dos processos. Em função disso, foi decidido tomar o ano 2002 como referência para as sentenças, sob o suposto de que a grande maioria das sentenças proferidas nesse ano já teria sido tombada na VEP até o ano de 2005. No entanto, nos casos de homicídios não flagrantes, sentenças dos anos de 2000 e 2001 tiveram de ser utilizadas para completar a amostra. A situação era ainda mais restritiva em relação ao número de homicídios flagrantes. Nesse último caso, foi preciso incluir todos os casos dos anos de 2000 a 2004 e, mesmo assim, o número foi ainda inferior ao almejado.

Os pesquisadores preencheram um formulário após a leitura do processo, incluindo a sentença. O mencionado formulário tinha os mesmos campos daquele utilizado para os R.O.s e algumas informações adicionais sobre o andamento do processo na justiça. O processo na VEP armazena, via de regra, os seguintes documentos: a) Carta de Sentença; b) Folha de Antecedentes Criminais; c) denúncia oferecida pelo MP; e d) sentença condenatória. Como o processo penal pelo qual o indivíduo foi sentenciado não está guardado nos arquivos da VEP, nem sempre foi possível extrair os dados desejados e muitos campos ficaram sem informação.

O objetivo inicial era obter uma amostra aleatória de 400 casos para cada tipo de crime: roubo flagrante; roubo não flagrante; homicídio flagrante; e homicídio não flagrante, o que perfaz um total ideal de 1.600 ocorrências policiais e 1.600 sentenças. Como foi explicado, nem sempre foi possível atingir o número de casos desejado, especialmente pela dificuldade em encontrar flagrantes de homicídio. Em vista disso, o total de casos obtidos para a amostra foi de 2.783 casos, divididos da seguinte forma:

TABELA 12Tamanho da Amostra de acordo com o Tipo do Crime

e a Instância do Sistema de Justiça Criminal

Instância Total

R.O. policial Sentença judicial

Tipo de Crime Homicídio Não Flagrante 450 450 900

Homicídio Flagrante 131 218 349

Roubo Não Flagrante 388 445 833

Roubo Flagrante 373 328 701

Total 1.342 1.441 2.783

A estratégia analítica é comparar o perfil dos R.O.s e das sentenças dentro de cada um desses quatro grupos, de forma que a existência ou ausência

34 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

de flagrante não influencie a comparação. Dessa forma, busca-se também explorar a possibilidade de que os fatores que afetam a probabilidade de condenação sejam diferentes para os flagrantes e os não flagrantes. Infelizmente, muitos dados não foram encontrados, dada a escassez de informações registradas em muitas ocorrências e nos processos da VEP. Em conseqüência, as análises foram limitadas pela ausência de dados. Adotamos um limite máximo de 30% de perda de informação para utilizar a variável na análise. Portanto, se a proporção de casos perdidos era superior a 30%, a variável foi desconsiderada.

Em princípio, as seguintes variáveis foram incluídas no formulário e contempladas na análise:

a) Em relação às circunstâncias do crime:

a. Tipo de Local b. Se o fato ocorreu em uma favela c. Número de autores d. Número de vítimas e. Número de testemunhas f. Autores Conhecidos da Vítima ou não g. Relação Autor-Vítima h. Armas apreendidas i. Utilização de armas no crime j. Lesão contra a vítima (crime de roubo) k. Valor estimado dos bens roubados (crime de roubo) l. Motivação do homicídio (crime de homicídio)

b) Em relação ao(s) autor(es) do crime: a. Sexo b. Idade c. Estado civil d. Nível de escolaridade e. Cor f. Antecedentes Criminais g. Antecedentes Policiais h. Se mora em favela

c) Em relação à(s) vítima(s): a. Sexo b. Idade c. Estado civil d. Nível de escolaridade e. Cor f. Anotações na SIP g. Se mora em favela

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 35

As características da investigação e do processo penal não puderam ser usadas na comparação, pois elas só eram conhecidas nos crimes que tinham chegado à fase de sentença, mas não naqueles que tinham sido só registrados nos R.O.s. Dessa forma, apenas as dimensões levantadas por ocorrências policiais e por sentenças simultaneamente podiam ser utilizadas na análise comparativa. Por exemplo, a literatura mostra que a existência de um advogado privado ao longo do processo é um elemento que pode ter incidência na sentença final, mas esta informação não está disponível nos R.O.s e, portanto, não pode ser utilizada.

6.1 HOMICÍDIOS NÃO FLAGRANTESConforme mencionado anteriormente, a variável precisava apresentar um

nível máximo de 30% de dados perdidos para ser incluída na análise. Esta exigência devia ser cumprida tanto para as ocorrências policiais quanto para as sentenças. Em função das perdas de informação, apenas as seguintes variáveis puderam ser usadas:

a) Sexo da vítimab) Local do Fatoc) Número de Vítimas

d) Número de Testemunhase) Uso de arma de fogo

A proporção de mulheres entre as vítimas do crime é de 36% nas ocorrências e apenas 25% entre as sentenças7, contrariamente às expectativas. Em geral, os crimes entre conhecidos, os delitos passionais e os crimes ocorridos em um ambiente doméstico apresentam maiores chances de esclarecimento. Como as pessoas de sexo feminino costumam ser mais vitimadas por esses tipos de delitos, esperava-se uma maior proporção de mulheres nas sentenças, contrariamente ao que aconteceu.

Crimes acontecidos na rua são mais comuns nas ocorrências do que nas sentenças. Isso significa que os homicídios na rua são aparentemente mais difíceis de esclarecer, o que pode estar relacionado com as motivações para o crime e com a vinculação entre a vítima e o autor.

7 Esta diferença é estatisticamente significativa (Chi-quadrado=8,9; g.l.=1; p=0,003). De forma geral o nível de signifi-cância escolhido para os testes será de alpha=0,05.

36 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

TABELA 13Local do crime em Ocorrências e Sentenças:

Homicídios Não Flagrantes

InstânciaTotal

R.O. policial Sentença judicial

Via pública 257 178 435

71,4% 55,8% 64,1%

Residência 10 14 24

2,8% 4,4% 3,5%

Estabelecimento comercial 31 52 83

8,6% 16,3% 12,2%

Veículo 58 74 132

16,1% 23,2% 19,4%

Instituição Pública 4 1 5

1,1% ,3% ,7%

360 319 679

100,0% 100,0% 100,0%

O número médio de vítimas nas ocorrências é de 1,46, enquanto que nas sentenças a média é de 1,70 vítimas. Esta diferença, estatisticamente significativa8, parece apontar ao fato de crimes com mais vítimas, considerados mais graves, tenderem a ser mais facilmente esclarecidos, seja porque o delito é considerado de maior gravidade e recebe maior atenção dos investigadores, seja porque talvez a presença de várias vítimas facilita a obtenção de provas.

Há também diferença significativa no número de testemunhas. Enquanto os R.O.s apresentam em média 2,2 testemunhas por crime, as sentenças registram uma média de 2,69. Isto poderia ser interpretado no sentido de que a presença de testemunhas aumenta, obviamente, a probabilidade de esclarecer o crime. Entretanto, cumpre ressaltar a possibilidade de que a investigação do caso (ainda não realizada nas ocorrências policiais) acabe naturalmente encontrando mais testemunhas.

O registro da utilização de armas de fogo durante o crime acontece em 42% das ocorrências e em 76% das sentenças10. A explicação mais clara seria que a utilização de armas de fogo aumenta a gravidade do crime e pode estar associada a um maior número de vítimas. Mas não e possível descartar que parte dessa diferença resulte do modo como os dois tipos de documentos (R.O.s e sentenças) são elaborados e o grau de detalhe das informações registradas por cada um.

8 F=5,9; g.l.= 1 e 679; p=0,016.9 F=519,8; g.l.= 1 e 688; p<0,001.10 Chi-quadrado=82,2; g.l.=1; p<0,001.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 37

6.2 HOMICÍDIOS FLAGRANTESEsse é o tipo de crime com uma amostra menor, devido à dificuldade de

encontrar sentenças e, sobretudo, R.O.s de flagrantes de homicídio. Em função do critério de uma perda máxima de 30% dos casos em cada um dos dois grupos, as variáveis que puderam ser submetidas à análise foram as seguintes:

a) Sexo do Autorb) Idade do Autorc) Estado Civil do Autord) Cor do Autore) Sexo da Vítimaf) Local do Fatog) Número de Autoresh) Número de Vítimasi) Número de Testemunhasj) Uso de Arma de Fogo

Não há diferenças na composição por sexos dos autores entre R.O.s e sentenças: em ambos os casos 97% dos autores são de sexo masculino. Quanto à idade, a média dos acusados nas ocorrências policiais é 34 anos, enquanto a média dos réus nas sentenças é de 38 anos11. Entretanto, esta diferença é explicada, simplesmente, pelo tempo de processamento do sistema de justiça criminal. Com efeito, quando se observa a data do registro policial original na amostra de sentenças, ele é em média 4 anos anterior à média da data do R.O. na amostra das ocorrências policiais. Por sua vez, estado civil e cor do autor não apresentam variações significativas entre ocorrências e sentenças.

O sexo da vítima também mostra uma distribuição semelhante nos dois grupos. O local do crime, o número médio de vítimas e o uso de arma de fogo, diferentemente do resultado obtido para os homicídios não flagrantes, também não revelam diferenças significativas. O mesmo fenômeno sucede com o número médio de agressores. Já o número médio de testemunhas continua sendo maior nas sentenças (4,7) do que nas ocorrências policiais (3,1)12, provavelmente como conseqüência da investigação policial posterior ao registro.

6.3 ROUBOS NÃO FLAGRANTES O sexo do autor do crime é quase sempre masculino e não apresenta

diferenças entre ocorrências e sentenças. Por sua vez, o sexo da vítima segue o mesmo padrão dos homicídios não flagrantes: a proporção de mulheres é maior nos R.O.s (33%) em relação às sentenças (26%)13. Neste crime, diferentemente dos homicídios, não há uma hipótese clara sobre este resultado.11 F=9,3; g.l.=1 e 324; p=0,003.12 F=47,4; g.l.=328 e 1; p<0,001.13 Chi-quadrado=4,6; g.l.= 1; p=0,032.

38 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

O local do crime também reflete o mesmo resultado dos homicídios não flagrantes: os delitos cometidos na rua são mais freqüentes entre as ocorrências do que entre as sentenças14, sugerindo que esses crimes são mais difíceis de esclarecer que os delitos cometidos nos demais espaços públicos ou privados. No caso dos roubos, talvez os crimes cometidos na rua tenham um planejamento e um lucro menor e, portanto, recebam menos atenção por parte da polícia.

TABELA 14Local do crime em Ocorrências e Sentenças: Roubos Não Flagrantes

InstânciaTotal

R.O. policial Sentença judicial

Via pública 303 191 494

78,9% 43,6% 60,1%

Residência 6 61 67

1,6% 13,9% 8,2%

Estabelecimento comercial 27 123 150

7,0% 28,1% 18,2%

Veículo 46 60 106

12,0% 13,7% 12,9%

Instituição Pública 2 3 5

,5% ,7% ,6%

384 438 822

100,0% 100,0% 100,0%

Os números de autores e de vítimas fazem diferença no caso dos roubos não flagrantes. As sentenças contêm um maior número médio de autores (2,7) e de vítimas (1,8) do que os valores médios de criminosos (2,2) e de vítimas (1,3) encontrados nos R.O.s. Ambas as diferenças são estatisticamente significativas15. A princípio, poderíamos supor que roubos com maior número de criminosos e vítimas são mais planejados, mais graves e rendem maior lucro, razão pela qual a polícia poderia lhes dar mais atenção nas suas investigações.

Tradicionalmente, crê-se que crimes entre pessoas conhecidas sempre apresentam maior chance de esclarecimento do que os delitos envolvendo desconhecidos, visto que, entre outros motivos, a identificação dos supostos autores não precisa ser investigada. Assim, apenas 0,3% dos R.O.s e 7,3% das sentenças registravam que os autores e as vítimas se conheciam entre si16. Este resultado apóia a hipótese acima mencionada.

14 Chi-quadrado=131; g.l.= 4; p<0,001.15 F=24,6; g.l.=1 e 820; p<0,001 para os autores. F=39; g.l.= 1 e 816; p<0,001 para as vítimas.16 Chi-quadrado=24,4; g.l.= 1; p<0,001.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 39

TABELA 15Conhecimento entre Autores e Vítimas em Ocorrências e Sentenças:

Roubos Não Flagrantes

InstânciaTotal

R.O. policial Sentença judicial

Autores e Vítimas conhecidos entre si

Sim 1 28 29

,3% 7,3% 3,9%

Não356 353 709

99,7% 92,7% 96,1%

Total 357 381 738

100,0% 100,0% 100,0%

Outra diferença entre R.O.s e sentenças diz respeito ao número de armas coletadas. Quase não havia armas apreendidas no momento da ocorrência (0,01 em média), sendo importante lembrar que esse valor faz menção a crimes em que não há prisão em flagrante. Já nas sentenças encontramos uma média de 0,18 armas apreendidas por processo. A diferença é clara17, mas poderia ser resultado justamente do próprio processo de investigação, cujo resultado seria a apreensão das armas, não sendo, pois, fruto de uma diferença inicial entre os tipos de crime. No entanto, há outro elemento que reforça a conclusão de que a explicação não é apenas derivada da própria investigação. A proporção de roubos com arma de fogo é claramente superior entre as sentenças (89%) do que entre os R.O.s (74%)18, sugerindo que os crimes cometidos com armas, de maior gravidade, recebem mais atenção do sistema de justiça criminal e, portanto resultam em sanção penal com maior freqüência.

Uma variável interessante é a que se refere ao valor dos bens roubados. Enquanto os R.O.s possuem um maior percentual de roubos de bens com valor inferior a R$1.000 e com valor entre R$10.000 e R$50.000, nas sentenças há maior proporção de roubos com bens de valor entre R$1.000 e R$10.000, e de mais de R$50.00019. Em suma, as sentenças envolvem roubos de alto valor econômico, sendo tal dado condizente com a hipótese de que esse tipo de roubos atrai a atenção preferencial do sistema de justiça criminal.

17 F=40,7; g.l.=1 e 745; p<0,001.18 Chi-quadrado=34,9; g.l.= 1; p<0,001.19 Chi-quadrado=26,2; g.l.=3; p<0,001.

40 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

GRÁFICO 4Distribuição percentual de Ocorrências policiais e Sentenças conforme

o valor dos bens roubados: Roubos não Flagrantes

6.4 ROUBOS FLAGRANTES As variáveis que superaram o limite de perda de informação e foram

submetidas à análise foram as seguintes:

a) Idade do Autor

b) Sexo do Autor

c) Estado civil do Autor

d) Cor do Autor

e) Sexo da Vítima

f) Local do Fato

g) Número de Autores

h) Número de Vítimas

i) Autores conhecidos das vítimas

j) Número de Testemunhas

k) Número armas apreendidas

l) Uso de Arma de Fogo

m) Lesão mais grave contra a Vítima

n) Valor dos bens roubados

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 41

Não há diferenças entre ocorrências e sentenças quanto ao sexo dos autores, quase sempre masculino. Em relação à idade dos autores dos crimes, a média dos R.O.s (26) é inferior à média das sentenças (28)20, mas, como já vimos, esta diferença pode ser explicada pela demora na tramitação do caso no sistema de justiça criminal. Similarmente ao que acontecia com os homicídios flagrantes, o estado civil e a cor dos autores dos crimes não revelam aqui diferenças significativas.

Paralelamente aos crimes anteriores, a proporção de vítimas de sexo feminino é menor nas sentenças (25%) do que nas ocorrências (36%)21. Outra variável que segue o padrão dos outros delitos é o local do crime: a proporção de roubos acontecidos na rua é maior nas ocorrências (71%) do que nas sentenças (56%)22, confirmando a hipótese de que os crimes de rua são mais difíceis de esclarecer.

O número de autores do crime é maior nas sentenças (2,5) do que nas ocorrências (2,1)23 e o mesmo fenômeno acontece com o número de vítimas (1,7 versus 1,5, respectivamente)24. Estes dados sustentam a tese de que crimes com mais autores e vítimas, por serem mais graves, atraem os esforços da polícia em comparação com o resto dos delitos.

Diferentemente dos roubos não flagrantes, aqui não há diferenças significativas relativas ao fato de que vítimas e autores sejam conhecidos entre si, sendo a proporção de autores conhecidos baixíssima tanto para ocorrências quanto para sentenças.

De novo, o número médio de testemunhas é maior nas sentenças (2,6) do que nas ocorrências (2,2)25, provavelmente como conseqüência do trabalho de investigação. Mesmo assim, o incremento de testemunhas decorrente da investigação é, tal como nos crimes anteriores, bastante reduzido.

O número médio de armas apreendidas também é maior nas sentenças (0,6) do que nos R.O.s (0,4)26. Aplicam-se aqui os mesmos argumentos do parágrafo precedente. Por sua vez, a proporção dos delitos cometidos com arma de fogo é notavelmente superior nas sentenças (76%) do que nas ocorrências (42%)27. Como nos casos anteriores, poderíamos explicar esse diferencial em termos da maior gravidade dos delitos cometidos com arma de fogo, que, por sua vez, justificaria uma maior atenção do sistema de justiça, embora diferenças na informação tipicamente contida nos dois tipos de documento não possam ser descartadas como possível explicação.

Surpreendentemente, não há diferenças significativas entre sentenças e R.O.s em relação à proporção de roubos flagrantes que resultam em ferimentos

20 F=13,4; g.l.=1 e 654; p<0,001.21 Chi-quadrado=8,9; g.l.=1; p=0,003.22 Chi-quadrado=17,9; g.l.=1; p<0,001.23 F=13,8; g.l.=1 e 694; p<0,001.24 F=5,9; g.l.=1 e 679; p=0,016.25 F=19,8; g.l.=1 e 688; p<0,001.26 F=9,4; g.l.=1 e 684; p=0,002.27 Chi-quadrado=82,3; g.l.=1; p<0,001.

42 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

para as vítimas, embora a proporção seja pequena em todos os casos.

Da mesma forma que se observou nos casos não flagrantes, aqui também a proporção de roubos de maior valor econômico é mais alta nas sentenças do que nas ocorrências. Assim, o percentual de casos com bens roubados por valor superior a R$10.000, e particularmente aqueles com bens superiores a R$50.000, é superior entre as sentenças28. Como em casos anteriores, podemos explicar este efeito pelo foco seletivo do sistema em roubos em que a res roubada é maior.

GRÁFICO 5Distribuição percentual de Ocorrências policiais e Sentenças conforme

o valor dos bens roubados: Roubos Flagrantes

7. CONCLUSÕESAs estimativas de ocorrências de crimes e de sanções penais revelam

que, no estado do Rio de Janeiro, menos de 8% dos homicídios dolosos e menos de 3% dos roubos registrados entre os anos de 2003 e 2006 resultaram em uma sanção penal para os autores. Em outras palavras, mais de 92% dos homicídios e mais de 97% dos roubos permanecem impunes. Estas altas taxas de impunidade comprometem seriamente a capacidade do estado para identificar, processar e punir os criminosos e, como conseqüência, para fornecer proteção e segurança aos cidadãos. O quadro é ainda mais grave se considerarmos que a probabilidade de condenação é ainda muito menor quando não há prisão em flagrante dos acusados, reduzindo a chance de sanção a um quarto no caso dos homicídios e a 28 Chi-quadrado=17,7; g.l.=3; p=0,001.

A Mensuração da Impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro | 43

um meio no caso dos roubos.

Um estudo realizado com amostras de registros policias e sentenças judiciais explorou alguns dos fatores associados a uma maior ou menor probabilidade de esclarecimento e sanção penal. De forma geral, os dados parecem apontar ao fato de que os crimes cometidos contra mulheres e os crimes ocorridos na rua apresentam maiores chances de ficar impunes. Por sua vez, delitos com maior número de autores e de vítimas, e aqueles cometidos com arma de fogo resultam numa maior probabilidade de condenação. Especificamente no caso dos roubos, crimes em que autor e vítima se conhecem e aqueles em que o valor dos bens subtraídos é alto aumentam também a probabilidade de sanção.

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Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 45

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal 1

Joana Domingues Vargas Ismênia Blavatsky de Magalhães

Ludmila Mendonça L. Ribeiro

1. INTRODUÇÃOA demora na tramitação dos processos é hoje tema de debate público no

Brasil, mobilizando a preocupação de muitos: cidadãos, doutrinadores jurídicos, gestores políticos, analistas. A imagem da justiça que funciona mal porque é lenta aparece em pesquisas de opinião veiculadas na grande imprensa2 e constitui hoje uma das maiores preocupações dos decisores da área de Segurança Pública e da Justiça Criminal.3

Contudo, a investigação sobre o tempo de tramitação de pessoas e papéis na Justiça Criminal ainda é muito incipiente, muito embora a morosidade processual seja apontada como um dos principais problemas no acesso à justiça (CAPPELLETTI & GARTH, 1988), como um obstáculo à eficácia e à efetividade da aplicação desta pelo Poder Judiciário (SANTOS ET AL., 1996; FERREIRA & PEDROSO, 1997)4 e como a causa da perda de credibilidade da população nesta instituição (PINHEIRO et.al., 1999).

Considerando-se que pouco se sabe efetivamente sobre o tempo de processamento da Justiça Criminal brasileira e sobre a sua morosidade, o presente trabalho buscou desenvolver e testar uma metodologia quantitativa de análise do tempo da Justiça Criminal que permitisse (1) tratar bases de dados que contenham informações sobre o tempo de processamento, (2) utilizar a técnica estatística de análise de sobrevivência para mensurar de forma adequada este tempo e identificar fatores que o influenciam, (3) criar indicadores para avaliar a morosidade processual; e (4) identificar padrões, regularidades e tendências da morosidade processual.1 Este artigo foi elaborado com base nos resultados da pesquisa “Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade

Processual na Justiça Criminal”, vencedora do Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justi-ça Criminal, realizado em 2005 pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP) e pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS). Optamos por manter as referências originais do texto, mesmo porque atualizá-lo seria alterar as condições nas quais essa proposta de pesquisa se deu, quando o tema do tempo da justiça era praticamente inexplorado, abordado apenas em alguns poucos trabalhos realizados pelo Nú-cleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. A metodologia e os resultados dessa pesquisa foram utilizados em trabalhos realizados pelas autoras publicados posteriormente. Ao final do texto, apresentamos bibliografia que atualiza o tema do tempo do Sistema de Justiça Criminal.

2 De acordo com o Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil), desenvolvido pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (Direito GV) e divulgado em julho de 2010, 88% dos brasileiros avaliam que o Judiciário resolve os conflitos de forma lenta ou muito lenta. Para 80%, os custos para acessar a Justiça são altos ou muito altos e 60% acreditam que ela é nada ou pouco independente. Para 61% das pessoas, o Judiciário é nada ou pouco honesto. Setenta e dois por cento dizem que ele é difícil ou muito difícil de utilizar e 54% o classificam como nada ou pouco competente.

3 Entrevista do Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos ao programa Bom Dia Brasil, da Rede Globo de Televisão, em 3 de janeiro de 2003.

4 Trata-se de pesquisas sobre a morosidade processual desenvolvidas pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, coordenado por Boaventura de Souza Santos.

46 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

O desenvolvimento e teste da metodologia proposta foram considerados importantes por contribuírem para sensibilizar e orientar futuras pesquisas e gestores de políticas públicas quanto às potencialidades da dimensão temporal, tanto para a explicação das atividades de controle exercidas pelos operadores da justiça criminal quanto para a adoção de estratégias mais racionais no desempenho destas atividades.

2. TRATAMENTO LONGITUDINAL DAS INFORMAÇÕES E O TEMPO DA JUSTIÇA CRIMINAL

A abordagem longitudinal nos estudos sobre decisão é relativamente recente. Nos Estados Unidos, onde os primeiros estudos sobre processos de decisão no Sistema de Justiça Criminal foram realizados, o foco foi centrado na fase de sentença e em seus elementos: resultado do julgamento, tamanho da pena, escolha da sanção etc. Em meados da década de 1970 alguns autores foram críticos em relação aos estudos sobre sentença, pois consideraram suas fontes de dados fragmentárias e inadequadas para compreender o funcionamento do sistema e analisar os processos de seleção a que são ali submetidos pessoas e papéis. Argumentaram, portanto, que o tratamento destas questões requer dados longitudinais que expressem a experiência dos réus em seu trânsito pelo sistema.5

No Brasil, são poucos os estudos que adotam a perspectiva longitudinal para investigar os processos de filtragem das ocorrências e dos envolvidos (LIMA, 2000) e mais raros ainda aqueles que investigam o tempo de duração dos processos. A perspectiva longitudinal foi aqui introduzida a partir de um estudo pioneiro sobre o grau de articulação do sistema de justiça criminal brasileiro (COELHO, 1986) e de um diagnóstico realizado sobre o estado das artes das informações criminais (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1987).

O modelo longitudinal de organização de dados criminais foi aplicado pela primeira vez por Coelho (1986) em dados publicados pelo Serviço de Estatística Demográfica Moral e Política do Ministério da Justiça sobre o movimento de inquéritos, denúncias e processos de crimes e contravenções no Rio de Janeiro no período de 1942 a 1967. Posteriormente, um estudo realizado nos tribunais do Júri de São Paulo também fez uso desta metodologia de integração dos dados captando o fluxo de pessoas e procedimentos para verificar os móveis extra-legais que intervêm nas decisões judiciárias e, posteriormente, o acesso diferencial de brancos e negros à justiça (ADORNO, 1994, 1995).

Quanto à análise do tempo, destacam-se os estudos desenvolvidos pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra sob a coordenação de Boaventura de Souza Santos (SANTOS et.al., 1996). O interesse destes estudos centra-se na administração da justiça e nas suas diferentes escalas de tempo 5 A este respeito ver Hagan (1975), (1989).

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 47

(individual, organizacional, institucional e normativo), bem como em um dos maiores problemas desta administração: a morosidade processual. Para tanto, utilizam dados quantitativos organizados longitudinalmente produzidos nesta administração. Uma das maiores contribuições destes estudos é chamar a atenção para a distinção entre a duração necessária do processo que preserve garantias e atenda à defesa dos direitos dos cidadãos, e a morosidade processual, isto é, toda duração excessiva desnecessária à proteção das partes envolvidas.

No Brasil, os estudos realizados no Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da Universidade de São Paulo foram pioneiros na investigação do tempo de duração dos processos. A conclusão de várias pesquisas realizadas neste Núcleo que abordaram, embora não como tema principal, o tempo de duração dos processos no município de São Paulo na década de 1990, é a de que, para os crimes contra a pessoa, o tempo de processamento é estimado entre 12 e 24 meses.

Mais tarde, um estudo sobre violação de direitos humanos também realizado no NEV (PINHEIRO et.al., 1999) tomou como ponto de partida a distinção estabelecida no trabalho português sobre morosidade processual (SANTOS et.al., 1996) que estabelece ser o tempo ideal de duração do processo aquele que harmoniza agilidade e eficiência com proteção aos direitos das partes envolvidas. Entretanto, diferentemente do estudo português que estabeleceu um tempo médio de andamento do processo a partir de prazos de procedimentos estipulados e tempos médios observados in loco, a partir das práticas dos operadores, o estudo do NEV teve que estimar tempos razoáveis para os procedimentos judiciais (tendo em vista muitos destes não serem previamente estipulados). A conclusão apresentada neste estudo é a de que a morosidade processual em processos de homicídios resultantes de linchamento é bastante acentuada, enquanto o tempo de duração dos processos nos homicídios dolosos desenvolve-se em um lapso de tempo razoável, merecendo decisão judicial em até 24 meses. Entretanto, embora tenha contribuído para o entendimento da morosidade processual, a análise do tempo de duração dos processos de homicídios resultantes de linchamentos restringiu-se a poucos casos, não permitindo identificar padrões e regularidades que caracterizam tal morosidade e menos ainda fazer generalizações.

3. AVALIANDO E TRATANDO BASES DE DADOS QUE CONTENHAM INFOR-MAÇÕES SOBRE O TEMPO DE PROCESSAMENTO

Neste tópico procuraremos responder às seguintes indagações de pesquisa: Que formatos de organização apresentam as bases de dados criminais existentes no Brasil? Estas contêm as informações que permitem analisar o tempo de tramitação dos processos? Como deve ser organizada e quais as principais informações que deve conter uma base de dados criminais que permita analisar o tempo da justiça?

48 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Começaremos então respondendo à primeira parte da última indagação enfatizando que o modelo longitudinal, organizando os dados quantitativos no fluxo das decisões tomadas nas diferentes organizações que compõem o Sistema de Justiça Criminal (COELHO, 1986; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1987), é o mais adequado e de maior capacidade explicativa para investigar, por meio da análise quantitativa, o tempo de processamento dessas decisões.

Sustentamos que seria possível, com base nesse modelo, mensurar o tempo gasto no processamento dos crimes, de modo a identificar os fatores que o influenciam. Embora a organização longitudinal dos dados da justiça criminal venha sendo cada vez mais enfatizada em estudos nacionais e internacionais 6, a investigação do tempo, apesar de sua relevância, constitui um tema ainda pouco explorado nos estudos sobre o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal.

Modelo de informações sobre fluxos e taxas de produção da Justiça Criminal

Segmento Organizacional Papéis Pessoas

Polícia MilitarPolícia Civil

Ministério PúblicoJustiça

Penitenciárias

OcorrênciasInquéritosDenúnciasProcessos

PrisõesIndiciados/Implicados

Denunciados/AcusadosCondenados

Populações PrisionaisFonte: Indicadores Sociais de Criminalidade. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1987.

A reconstituição do fluxo de pessoas e procedimentos que atravessam as diferentes organizações que compõem o Sistema de Justiça Criminal – Polícia, Ministério Público, Varas Criminais, Tribunal de Apelação, Departamento Penitenciário - não é tarefa fácil, nem mesmo em países como os Estados Unidos, que possuem, desde a década de 1930, um sistema uniformizado de contabilidade das ocorrências criminais e da sua repressão – os Uniform Crime Reporting (UCR) –, integrando, em nível nacional, as estatísticas oficiais provenientes da Polícia e da Justiça.7

Uma característica inerente aos sistemas de Justiça Criminal modernos

no que se refere a todos os tipos de ocorrências criminais é o fluxo apresentar-se com uma forma de funil. Iniciando-se com um grande número de casos reportados à Polícia e terminando, depois de seleções sucessivas, com um pequeno número de casos sentenciados.

Um dos problemas encontrados para a reconstituição desse fluxo é a dificuldade de articulação das informações sobre o processamento dos casos e dos acusados de forma o garantir o seu acompanhamento no tempo. O acompanhamento praticamente individualizado dos casos explica o caráter localizado da grande maioria dos estudos desta natureza, realizados a partir de bases 6 Ver a este respeito, ver Vargas (2004).7 Os Uniform Crime Reporting (UCR) contêm informações sobre o volume de crimes conhecidos pela Polícia, os crimes

resolvidos pela prisão de seus autores, pessoas denunciadas e pessoas absolvidas ou condenadas, dentre outras. Di-vulgados anualmente, os UCR permitiram conhecer o desempenho das instituições responsáveis pelo controle da criminalidade no país e o tratamento dado por elas à sua clientela. Cf. Fundação João Pinheiro (1987).

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 49

de dados relativamente pequenas. Cabe ressaltar que este enfoque localizado e a desarticulação das informações, também observados em diferentes países, parecem ser um forte indicador de regularidade no grau de autonomia organizacional dos vários subsistemas que compõem o sistema de Justiça Criminal.

Pode-se imaginar não ser pequeno o esforço despendido na criação de tais bancos, visto que, no Brasil “os dados disponíveis – quando existem – dificilmente permitem a construção de séries temporais e comparações sistemáticas inter e intrarregionais” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1987). Dois exemplos deste tipo de trabalho podem ser citados. Um deles foi realizado para os crimes sexuais em Campinas (VARGAS, 2000). O outro foi realizado pela Fundação Seade que, buscando suprir a lacuna apontada anteriormente, obteve a autorização das instituições da área de Justiça, de Segurança Pública e da Penitenciária do Estado de São Paulo para utilizar os dados disponíveis e trabalhou em um modelo de integração longitudinal destas informações para o Estado, cujos registros mais antigos datam de 1976. A existência destes bancos de dados e a possibilidade de explorá-los é que tornaram viável a execução deste trabalho.

4. O TEMPO DE PROCESSAMENTO: AVALIAÇÃO DA BASE DA FUNDAÇÃO SEADENeste tópico iremos avaliar os dados da base da Fundação Seade,

buscando verificar em que medida as informações ali disponíveis permitem a análise do tempo da Justiça Criminal para o crime de homicídio doloso.

Usando o RG do autor como variável chave de ligação dos diversos bancos, os pesquisadores da Fundação SEADE puderam construir um enorme banco de dados com todos os casos criminais iniciados na Polícia Civil de São Paulo, com dados fidedignos para os anos de 1991 a 1998. Para fins do presente trabalho, a base em tela foi recortada apenas para os crimes de homicídio, cujo inquérito policial encerrou-se entre os anos de 1991 e 1998. A partir desta base primária procurou-se não apenas mensurar o tempo despendido entre as diversas fases do processamento criminal, mas também verificar em que medida esses dados confirmam a hipótese de o Sistema de Justiça Criminal assumir um formato de funil, fenômeno a que nos referimos anteriormente, sendo também denominado na literatura internacional como atrito, que faz com que diversos delitos não sejam objeto de julgamento e muito menos de condenação. Embora todos os sistemas de justiça modernos apresentem essa característica, a intensidade do funil configura a incapacidade do sistema de identificar, processar e punir criminosos.

O banco de dados repassado pela Fundação SEADE continha 75.859 casos de homicídios, sendo que todos esses possuíam algum tipo de informação ou sobre o fato em si, ou sobre inquérito policial, ou sobre o processo criminal ou sobre a execução penal. Importante destacar que todos os casos possuíam a data de início do inquérito, razão pela qual essa variável foi utilizada para demonstrar

50 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

o número de casos que compõem o banco de dados. No entanto, ao se analisar o artigo pelo qual o inquérito foi iniciado, o número de casos válidos reduz-se para 68.622, já que alguns inquéritos inseridos no banco de dados de homicídio referiam-se às contravenções penais que são, na realidade, delitos de menor importância e por isso não são sequer considerados crime.

Quadro 1 - Artigo pelo qual o inquérito foi iniciado - São PauloInquéritos policiais finalizados entre os anos de 1991 e 1998

Artigo pelo qual o inquérito foi iniciado Absoluto Percentual

Homicídio 68622 90,5

Outros 7237 9,5

Total 75859 100Fonte: Fundação SEADE

Dessa forma, foi criado um segundo banco de dados, com os 68.622 casos de inquéritos policiais de homicídio finalizados em São Paulo, entre os anos de 1991 e 1998, a partir do qual foram realizadas as análises descritivas referentes à análise do tempo da Justiça Criminal. Quadro 2 - Tempo transcorrido entre a data de abertura e a data de

encerramento do inquérito em dias - São Paulo - inquéritos de homicídioencerrados entre 1991 e 1998.

Tempo para encerramento do inquérito em anos Nº absoluto Percentual Percentual

válido

0 58499 85,25 98,88

1 389 0,57 0,66

2 130 0,19 0,22

3 75 0,11 0,13

4 35 0,05 0,06

5 13 0,02 0,02

6 5 0,01 0,01

7 4 0,01 0,01

8 2 0,00 0,00

9 2 0,00 0,00

10 4 0,01 0,01

18 1 0,00 0,00

19 1 0,00 0,00

20 1 0,00 0,00

60 1 0,00 0,00

Total dos dados válidos 59162 86,21 100,00

Dados ausentes ou c/ problemas 9460 13,79

Total 68622 100,00 Fonte: Banco de dados da Fundação SEADE

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 51

Para a análise do tempo de cada fase decisória do Sistema de Justiça Criminal paulistano, na década de 1990, é necessário considerar, em primeiro lugar, que como a maioria das datas disponíveis no Banco de Dados encontravam-se expressas apenas em ano, o zero como valor mínimo significa que o ato processual ocorreu no mesmo ano. Observa-se a partir do quadro 2 que 98,88% dos inquéritos foram concluídos em prazo inferior a um ano.

Acresce-se a esta questão das datas, na maior parte das vezes expressas em ano, o excesso de casos que não possui informação sobre a data em que o processo foi iniciado (45.599 casos), fenômeno esse que pode indicar a própria seleção efetuada pelo Sistema de Justiça Criminal. Ou seja, essa perda de 45.599 casos dos 68.622 originais pode indicar que os inquéritos finalizados entre os anos de 1991 e 1998, em São Paulo, ainda não tinham se transformado em processos judiciais quando o banco de dados foi repassado para análise (ano de 2004).

Por outro lado, a existência de vários casos com dados incongruentes faz com que essa suposição seja tomada com cautela. Assim, além dos dados sem informação disponível, também foram desconsiderados os lançados como zero (161 casos), aqueles em que o ano de início do inquérito era posterior ao de início do processo (48 casos) e os dados inseridos de maneira errônea, como os dois casos em que o ano de início do processo é 9999 (2 casos). Apesar dessas limitações, feito o cálculo do tempo transcorrido entre o final do inquérito e o início do processo criminal, pode-se constatar que 78,70% dos casos considerados como válidos tiveram o processo iniciado no mesmo ano em que o inquérito se encerrou.

Quadro 3 - Tempo transcorrido entre a data do encerramento do inquérito e a data do início do processo em anos - São Paulo - inquéritos de homicídio encerrados entre 1991 e 1998.

Tempo entre o início do processo e o final do inquérito (em anos) Nº absoluto Percentual Percentual

Válido0 17858 26,02 78,71

1 2804 4,09 12,36

2 842 1,23 3,71

3 541 0,79 2,38

4 367 0,53 1,62

5 163 0,24 0,72

6 61 0,09 0,27

7 33 0,05 0,15

8 13 0,02 0,06

9 7 0,01 0,03

Total de dados válidos 22689 33,06 100,00

Dados s/ informação ou com problemas 45933 66,94

Total 68622 100,00

Fonte: Banco de dados da Fundação SEADE

52 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

O banco de dados da Fundação SEADE apresentava uma variável denominada ano da decisão e, com isso, o tempo de duração do processo pode ser calculado (Quadro 4). Para o cálculo desse tempo foram desconsiderados os casos que não possuíam data de decisão (53.198 casos), os quais podem, inclusive, indicar que o processo ainda não chegou à fase de decisão. Também foram desconsiderados os casos em que a data da decisão era zero (236 casos). Da mesma forma, não foram computados os casos que possuíam a data da primeira decisão, mas, que tinham como a data de início do processo o valor zero (10 casos). Por fim, foram excluídos os casos que possuíam problemas, fazendo com que o ano em que a primeira decisão processual fosse anterior ao de início do processo (131 casos). Com isso, foram considerados para fins desse cálculo apenas 15.047 casos. Isso significa que 78,07% do total de casos iniciais foram excluídos, ou seja, de todos os inquéritos de homicídio paulistanos concluídos entre os anos de 1991 e 1998, apenas 21,93% possuem a data da primeira decisão sem nenhum tipo de problema.

Observa-se com base nos dados válidos que 84% dos casos tiveram a primeira decisão sentenciada no prazo de até 3 anos.

Quadro 4 - Tempo transcorrido entre a data do início do processo e a data de sua primeira decisão, em anos - São Paulo - inquéritos de homicídio

encerrados entre 1991 e 1998.

Tempo para a primeira decisão em anos Nº absoluto Percentual Percentual de

casos válidos0 2930 4,27 19,47

1 4691 6,84 31,18

2 3068 4,47 20,39

3 2004 2,92 13,32

4 1185 1,73 7,88

5 600 0,87 3,99

6 308 0,45 2,05

7 160 0,23 1,06

8 69 0,10 0,46

9 26 0,04 0,17

10 5 0,01 0,03

27 1 0,00 0,01

Total de dados válidos 15047 21,93 100,00

Dados s/ informação ou com problemas 53575 78,07

Total 68622 100,00

Fonte: Banco de dados da Fundação SEADE

Segundo informações disponibilizadas no sítio eletrônico da Fundação Seade, entre o inquérito e a execução da pena, o tempo médio efetivado na polícia e

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 53

na justiça é de 1.431 dias, sendo, portanto, 491% maior do que o tempo prescrito nos códigos, que é de 291 dias (CPP, 1986; SEADE, 2004). Tal fato demonstra a existência de dois tempos distintos para o processamento do delito de homicídio: o ordenado e definido por regras do Código de Processo Penal – CPP e legislações penais específicas - e o efetivado na atividade cotidiana das polícias e tribunais paulistanos.

Embora tenhamos conseguido determinar o tempo despendido entre as principais fases do processamento desse delito, não foi possível, entretanto, calcular com segurança as perdas do Sistema de Justiça Criminal. Isto pode ser verificado de diversas maneiras, dentre elas, com a existência de muitos casos com dados incongruentes (como por exemplo, com data do fato posterior a do inquérito). Assim, não foi possível identificar os inquéritos que foram de fato instaurados e aqueles que foram arquivados.

Outra situação que merece destaque é o fato de a interligação dos bancos não permitir a visualização da prisão do indivíduo (ou o flagrante) ao longo do processo. Isso porque as variáveis que poderiam informar tal circunstância, na maioria dos casos, não são preenchidas pelos respectivos operadores. Conforme veremos mais adiante esta é uma informação fundamental para a compreensão do tempo de duração dos processos. Assim, não foi possível verificar em que medida os inquéritos policiais de homicídio finalizados entre 1991 e 1998, em São Paulo, respeitam ou não o prazo de 30 dias (para réu solto) e 10 dias (para réu preso) estabelecido pelo CPP, bem como os pedidos de prorrogação da prisão, em razão da ausência de informações, no banco de dados da Fundação SEADE, sobre a prisão durante a fase policial.

Outra ausência importante foi a de uma variável que permita a visualização de solicitações da prorrogação do prazo para a conclusão do inquérito policial. Soma-se a ela a ausência de informações sobre a realização e o tempo despendido no exame de corpo de delito, no exame de balística e outras perícias indispensáveis à realização de um inquérito policial efetivo, ou seja, informações capazes de subjazer uma denúncia. Também se destaca a impossibilidade de se identificarem variáveis referentes às atividades judiciais que poderiam estar influenciando o tempo de duração dos processos, tais como pedidos de precatória, citação do réu, localização de testemunhas, etc..

Concluímos assim que, efetivamente, a base de dados da Fundação Seade não permite o tratamento longitudinal dos dados, apesar de todos os esforços feitos pelos pesquisadores desta instituição para constituí-la.

Nas próximas seções serão discutidas e testadas em outras bases de dados, técnicas que permitem mensurar o tempo de duração dos processos, utilizando o modelo de organização longitudinal dos dados e buscar-se-á identificar fatores decorrentes das atividades judiciais que influenciam no tempo de tramitação dos processos.

54 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

5. UTILIZANDO A TÉCNICA ESTATÍSTICA DE ANÁLISE DE SOBREVIVÊNCIA A análise de sobrevivência é uma técnica da estatística que analisa o

tempo. Iremos então sustentar que com a análise de sobrevivência torna-se possível investigar o tempo do processamento das diversas fases do fluxo da Justiça Criminal – inquérito, denúncia, sentença, apelação – bem como aquele que decorre entre o registro da queixa até o resultado da sentença, ou que se estende até o trânsito em julgado, última etapa do processo penal. A descrição das fases do processamento pode ser feita com as técnicas estatísticas de descrição usuais, mas para análise do fluxo a técnica mais adequada para tratá-los é a análise de sobrevivência.

A análise de sobrevivência apresenta-se como a técnica mais adequada para a análise do fluxo dos dados criminais devido à configuração deste fluxo no formato de um funil. Isto porque o fluxo inicia-se com grande número de casos reportados à Polícia terminando, depois de seleções sucessivas, com um pequeno número de casos sentenciados.

Na análise de sobrevivência, a variável dependente é o tempo até a ocorrência do evento. Os casos que não experimentam o evento são chamados de censura. Mesmo censurados, todos os casos devem ser usados na análise, pois eles fornecem informações sobre o tempo do evento a ser estudado. Ademais, a omissão das censuras no cálculo acarreta vícios nos resultados. Neste sentido, a técnica da análise de sobrevivência destaca-se por incorporar à análise a informação contida nos dados censurados (COLOSIMO, 2001; MAGALHÃES, 2002), que, no nosso caso, correspondem aos casos arquivados, sendo por isso a mais recomendada para este estudo.

6. O FLUXO DE FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA PARA O CRIME DE ESTU-PRO EM CAMPINAS

Vimos que um dos problemas encontrados para a reconstituição do fluxo é a dificuldade de articulação das informações sobre o processamento dos casos e dos envolvidos, de forma a garantir o seu acompanhamento no tempo. O acompanhamento dos casos e a sua ordenação longitudinal acabam sendo quase impraticáveis em grandes bases de dados. Isto ocorre, sobretudo, quando se trabalha com dados pré-construídos por cada uma das organizações que compõem o sistema e não organizados previamente neste formato, conforme pudemos verificar a partir da avaliação da base de Fundação SEADE, feita anteriormente. Assim, será utilizada para se testar a adequação da técnica da análise de sobrevivência para o tratamento do tempo da Justiça Criminal uma base de dados montada longitudinalmente para a realização de um estudo sobre o crime de estupro em Campinas (Vargas, 2000).

As informações contidas nesta base foram aquelas que permitiam traçar o fluxo de pessoas e papéis desde a queixa até a fase de sentença. Isto foi

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 55

feito tomando como ponto de partida as informações obtidas em 446 Boletins de Ocorrências (BOs) de estupro registrados na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas entre 1988 e 1992 e os seus desdobramentos nos registros de inquérito e nas fichas de processo até o ano de 2000.

Não foi feito uso de amostras, mas se trabalhou com o conjunto de dados reunidos sobre este crime em todos os boletins elaborados no período delimitado. Vale destacar, dentre os problemas referentes aos dados nesta base, a lacuna de informações, principalmente sobre o agressor envolvido, dentre outras razões, por se tratar de informações geralmente fornecidas pelas vítimas e porque neste tipo de crime não é incomum a não identificação do suspeito.

Gráfico 1: Fluxo do Estupro em Campinas

Boletim de Ocorrência

Inquérito

Denúncia

Condenação

29%

16%

9%

100%

Fonte: Vargas (2004)

Conforme o previsto, o fluxo do estupro em Campinas inicia-se com uma grande base, para em seguida assumir a forma de um funil. O que mais chama a atenção é a grande filtragem operada na fase policial, quando 71% dos BOs iniciais são arquivados. Uma segunda seleção ocorre antes da fase judicial. Nesta prosseguem 55% dos inquéritos instaurados. Dos casos denunciados, 58% resultam em condenação, mas esta porcentagem representa apenas 9% dos registros iniciais. Portanto, verifica-se uma baixa probabilidade de condenação dos casos que deram entrada no sistema.

Feita a descrição do fluxo e de seu formato de funil, resultante do processo de filtragem, passa-se agora à descrição destes dados do fluxo enquanto dados de sobrevivência.

7. A ANÁLISE DE SOBREVIVÊNCIA APLICADA AO FLUXO DA JUSTIÇA PARA O CRIME DE ESTUPRO: A DESCRIÇÃO DOS DADOS

No estudo do fluxo da Justiça Criminal para o crime de estupro foi especificado o tempo de ocorrência de diferentes eventos de interesse. O tempo inicial é o registro da queixa, a escala de medida é estabelecida em dias e os eventos de interesse são a abertura do inquérito, o encerramento do relatório policial, a denúncia e a sentença. Assim, tem-se 8:

a) Tempo do registro da queixa até a abertura do inquérito policial;8 Tomou-se como ponto de partida o registro da queixa, e não a data do fato, porque o intuito é analisar o tempo do

processamento do caso na justiça.

56 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

b) Tempo do registro da queixa até o encerramento do inquérito policial (relatório do delegado);

c) Tempo do registro da queixa até a fase de denúncia;

d) Tempo do registro da queixa até a fase de sentença.

Para o presente artigo serão apresentadas as curvas de Kaplan-Meier (função de sobrevivência) apenas para o tempo do registro da queixa até a fase de sentença, de maneira a demonstrar a validade desta técnica e sua importância para o estudo do tempo de tramitação dos processos.

8. A FUNÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA E O ESTIMADOR KAPLAN-MEIEROs objetivos de uma análise estatística envolvendo dados da Justiça

Criminal como dados de sobrevivência é identificar fatores que podem influenciar o tempo de processamento. O tempo em que ocorre o evento de interesse é especificado pela sua função de sobrevivência ou pela função de risco. A primeira é a probabilidade de uma observação não falhar até um certo tempo estipulado. A segunda é a probabilidade de a falha ocorrer em um intervalo de tempo. A relação existente entre essas duas funções encontra-se no fundamento da técnica.9 Para a descrição dos dados, ou seja, para o conhecimento do fenômeno que se quer estudar, a análise de sobrevivência utiliza métodos não-paramétricos. Isto porque em dados de sobrevivência a hipótese de normalidade é violada. Medidas de tendência central e variabilidade também são invalidadas com a presença de censura. O procedimento adotado é então encontrar uma estimativa para a função de sobrevivência e, a partir dela, estimar estas medidas. A técnica mais conhecida para este propósito é o estimador de Kaplan-Meier (COLOSIMO, 2001; MAGALHÃES, 2002).

Para o presente estudo, o estimador Kaplan-Meier permite estimar medidas de tendência central que indicam, por exemplo, o tempo médio do tempo inicial de registro da queixa até cada evento (inquérito, denúncia etc.) ou o tempo médio para todo o fluxo.10

9. TEMPO DE PROCESSAMENTO DOS AUTOS DE ESTUPRO DO REGIS-TRO DA QUEIXA À SENTENÇA

A análise do fluxo tem o tempo inicial no registro da queixa e o evento de interesse nos processos que alcançaram a sentença, sendo os dados censurados aqueles referentes à interrupção do processamento em algumas das fases anteriores (registros, inquéritos ou denúncias arquivados).

9 Esta relação é dada por h(t) = f(t)/S(t), onde f(t) é a função de densidade de T que se refere à probabilidade inerente a todos na amostra, S(t) é a função de sobrevivência e h(t) é a função de risco, ambas definidas no texto. Esta relação foi uma alternativa criada para se trabalhar com dados parciais permitindo modelar indiretamente o tempo. Ver a este respeito Cox & Hinkley (1974).

10 Para avaliar a precisão deste estimador pode-se construir intervalos de confiança e testar hipóteses para S(t).

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 57

Gráfico 2Curva de sobrevivência: processamento em dias dos casos

de estupro da queixa à sentença

Fonte: Dados da DDM e do Fórum de Campinas (Vargas, 2004)A variável “Fluxo” contém todos os tempos de processamento, aqueles que falharam na sentença e os censurados por não chegarem até esta fase. Dos 446 registros iniciais que se localizam no T0, para 131 foram abertos

inquéritos e 69 deles foram denunciados e seguiram para a fase de sentença.

O tempo médio de processamento dos autos de estupro registrados na DDM e julgados no Fórum de Campinas, desde a data do registro da queixa até o resultado da sentença, é de 1.263 dias. Vale registrar que, se no cálculo desta média só se considerassem os 69 casos sentenciados, esta seria de 932 dias, subestimando o valor real observado. Isto mostra a validade da técnica da análise de sobrevivência que incorpora o tempo referente às informações censuradas (representadas no gráfico pelas cruzes na curva). Neste caso, o tempo referente aos casos que terminaram arquivados aumenta de maneira significativa o tempo médio de processamento dos autos desde o registro da queixa até a sentença.

De acordo com a curva de sobrevivência apresentada no Gráfico 2, a probabilidade de um processo ser sentenciado em 500 dias é de aproximadamente 15%. Ainda observando o gráfico, 80% dos processos são sentenciados dois mil dias após a data do registro do caso, ou seja, quase cinco anos e meio depois.

Cabe perguntar: as probabilidades do tempo da queixa até sentença são as mesmas para réu solto e réu preso? A partir dos dados de todo o fluxo pode-se responder a esta questão e comparar as curvas de sobrevivência para réu preso e réu solto. Para se proceder à comparação destes dois grupos, foram identificados os valores extremos (outliers identificados, como alguns casos com réu revel e dois casos graves que resultaram em absolvição e condenação e que foram processados rapidamente).

58 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

No Gráfico 3, as duas curvas representam as funções de sobrevivência de processo com réu preso durante o processo e daquele em que o réu respondeu ao processo solto. Observando o gráfico, nota-se uma tendência ao sentenciamento mais rápido para o grupo de réus presos. Em mil dias, 80% dos processos com réu preso já haviam sido sentenciados, enquanto, neste mesmo marco, isto acontecera com apenas 10% dos processos com réu solto.

Observa-se que o tempo médio de processamento do réu solto, do registro da queixa ao resultado da sentença, é de 1.716 dias (aproximadamente quatro anos e sete meses), ao passo que o tempo médio de processamento do réu preso durante o processo é de 623 dias (aproximadamente um ano e sete meses). Isto significa que toda análise relativa ao tempo do fluxo da queixa à sentença deve levar em conta a diferença de tempo de processamento entre réu preso e réu solto. Não só o tempo do processamento dos réus soltos é maior, como eles também tendem mais a ter seus processos arquivados nas diferentes fases de decisão, pois, como se vê, o percentual de censuras neste caso é de 66%, enquanto para os réus presos ele é de apenas 13%.

Gráfico 3Funções de sobrevivência para o processamento em dias

dos processos de estupro com prisão e sem prisão

Fonte: Dados da DDM e do Fórum de Campinas (Vargas, 2004)

A forma mais eficiente de se medir o efeito de covariáveis sobre o tempo é utilizar um modelo de regressão apropriado para dados censurados. O objetivo é explorar a relação entre estas covariáveis e o tempo até a ocorrência do evento (instauração do inquérito, denúncia, sentença etc.). As variáveis respostas, ou seja, aquelas que se pretende modelar, são as referentes ao tempo de processamento. Para efeito deste artigo, iremos apresentar a modelagem referente aos fluxos,

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 59

desde a queixa até a denúncia e desde a queixa até resultado da sentença. O intuito é demonstrar a validade da técnica para a modelagem dos dados com o formato de fluxo. No caso específico da base utilizada, trata-se de dados de estupro, então procuraremos mostrar como a técnica nos ajuda a interpretar o tempo de duração dos processos nos casos destes crimes.

Os modelos a serem construídos devem considerar que:

1) Há duas unidades diferentes de análise: aquela referente ao tempo dos procedimentos processuais e aos seus respectivos papéis (registros de BO, inquéritos, denúncias, processos e sentenças) e aquela referente ao tempo dos indivíduos indiciados, denunciados ou sentenciados, pois um indivíduo pode ser indiciado em mais de um inquérito ou processo (serão apresentados os resultados apenas para a unidade indivíduos).

2) É necessário construir modelos para réu solto e réu preso.

As covariáveis testadas são referentes ao perfil sócio biográfico dos envolvidos (idade, cor, estado civil, profissão), à relação entre eles (conhecido, desconhecido), às características da ofensa (uso de arma), ao contexto da ocorrência (coincide local do fato com a residência da vítima); e às características organizacionais (prisão durante o processo, situação do inquérito, natureza da defesa, vara criminal).

10. O MODELO DE REGRESSÃO DE COXJá foi dito que a forma mais adequada de avaliar o efeito dessas

covariáveis é utilizando um modelo de regressão que leve em conta dados censurados. O modelo de regressão linear não é adequado, pois a nuvem de pontos apresenta-se densa nos tempos de sobrevivência curtos e vai diminuindo para os tempos maiores, não se caracterizando, assim, uma distribuição normal, que é condição para utilizá-lo. O modelo apropriado é o denominado modelo de Cox, que tem dois componentes: um não paramétrico, que vai conter todos os fatores que não são controlados (por exemplo, a origem social do agressor, seu abuso na infância etc., ou seja, elementos que eu não posso medir, mas que podem estar atuando), e um paramétrico, que diz respeito às variáveis que eu efetivamente posso mensurar (COX, 1972).

O modelo de Cox é bastante flexível em razão da presença do componente não paramétrico, mas ainda assim é preciso avaliar a sua adequação, pois a violação da suposição dos riscos proporcionais pode acarretar sérios vícios na estimação dos coeficientes do modelo (COX & HINKLEY, 1974). Para realizar o teste é preciso, em primeiro lugar, dividir os dados da covariável em estratos. Como o que foi feito para a variável “prisão no processo”. Curvas não paralelas significam a existência de riscos não proporcionais.

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Tal procedimento consiste na estratificação dos dados de modo que a suposição seja válida para cada estrato. Por exemplo, os riscos podem não ser proporcionais para réus soltos e presos, mas esta suposição pode valer naquele estrato formado só por réus presos ou só por réus soltos. Daí a necessidade de se criar um modelo para cada estrato.

A seguir apresentaremos as interpretações destes modelos, lembrando que os ajustes foram feitos para as unidades indivíduos e para prisão como estrato e como covariável. O pacote estatístico utilizado foi o SAS, em razão do seu procedimento passo a passo, selecionando por ordem de significância as covariáveis que foram mais significativas.11

11. MODELO - DO REGISTRO DA QUEIXA À DENÚNCIAA análise estatística do tempo entre o registro da queixa e a denúncia,

para indivíduos, mostra-nos que quando se desconsidera o efeito da prisão durante o processo, o fator de maior influência neste tempo é a situação do inquérito. O fato de o inquérito ter sido relatado aumenta, em média, em 3 vezes o risco de tempo da denúncia.

Quando se considera a prisão como covariável, ou seja, admitindo-se que ela não seja fundamental na definição dos grupos com mesmas características, esta aparece como o único fator a influenciar este tempo. Para os indivíduos, estar preso acelera em 3 vezes o risco de chegar até a denúncia (ver anexo1).

O tempo decorrido entre o registro da queixa e a denúncia é influenciado por fatores referentes ao processamento penal: a situação do inquérito e a prisão do réu durante o processo. Ambos nos remetem ao trabalho dos operadores em sua fase judicial. O estudo que utilizou esta base de dados verificou que as chances do réu que foi preso em algum momento do processo de ser denunciado é onze vezes maiores do que a de não ser denunciado. Foi sugerido que a prisão durante o processo é tomada por estes agentes como um indício de autoria e que esta precipita a denúncia (VARGAS, 2004). Cabe indagar, para interpretar estes resultados, de que maneira, na altura da denúncia, a prisão acelera o processamento dos casos?

Cabe aos promotores como fiscais da lei, mais do que a qualquer outro operador do Sistema de Justiça Criminal, o cuidado com o cumprimento dos prazos, especialmente daqueles referentes ao réu preso. O manual de atuação dos promotores de justiça do Estado de São Paulo explicita em seu artigo 15 que se deve “evitar a devolução à Polícia de inquéritos em que figure indiciado preso, oferecendo desde logo, e se for o caso, a denúncia e requisitando, em autos de inquérito complementar, as diligências faltantes”.12

11 Os testes dos modelos para o fluxo desde a queixa até a denúncia e até a sentença encontram-se no Relatório final da pesquisa “Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal” sítio da Secretaria Nacional de Segurança Pública.: http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/anpocs/concurso_projetos_premia-dos.htm

12 Manual de atuação dos promotores de justiça do Estado de São Paulo (1999).

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 61

Quanto à situação do inquérito, observa-se na base de dados referida que do total dos inquéritos instaurados, 55% foram relatados, 41% foram arquivados e 4% tiveram outros desfechos, em geral remetido à outra delegacia ou comarca. Vê-se, pois, que a percentagem de arquivamento é grande e que, para o propósito deste trabalho, o inquérito que termina arquivado é três vezes mais lento do que aquele que é relatado.

Pode-se pensar que o arquivamento é uma maneira de impedir que casos com poucas chances de alcançarem uma solução repressiva abarrotem o já tão pressionado sistema judiciário.13 Um tempo bem maior gasto na solução destes casos pode estar indicando que um maior empenho e agilidade são dedicados aos casos que terminam denunciados porque estes terão maiores chances de obter uma condenação.14 Entretanto, é curioso que a prática adotada seja a de “cozinhar” os inquéritos com chances de serem arquivados. Ela pode estar indicando uma certa desarticulação entre a Polícia e o Ministério Publico (VARGAS, 2004).

12. MODELO – DO REGISTRO DA QUEIXA À SENTENÇAA análise estatística do tempo entre o registro da queixa e a sentença

nos mostra, para os indivíduos, que quando se anula o efeito da prisão durante o processo, o único fator que influencia o tempo do fluxo é a idade da vítima. Réus acusados de estupro de vítimas com até 14 anos de idade têm seus processos tramitando quase quatro vezes mais rápidos do que aqueles com vítimas de 14 anos ou mais. Isto também significa que ter 14 anos ou mais é um fator de proteção com respeito ao tempo até a sentença. Já quando a prisão é considerada como covariável esta passa a ser a única a influenciar este tempo. O fato de o réu ter sido preso durante o processo aumenta em mais de 5 vezes o risco de tempo do registro da queixa até a sentença.

O que explicaria a influência da idade da vítima no tempo do fluxo que vai da queixa até a sentença? Acredita-se que a resposta encontra-se, no caso da agilidade, na prescrição prevista no Código Penal (CP) de presunção da violência para vítimas menores de 14 anos e na maior facilidade de se conseguir localizar os envolvidos por se tratar de protagonistas conhecidos entre si.15 Inversamente, a lentidão no caso das vítimas com 14 anos ou mais, pode ser explicada pelos problemas com a investigação e localização dos suspeitos desconhecidos que são os agressores mais representados nesta faixa e pela construção da evidência sempre problemática do não consentimento da vítima ao ato (VARGAS, 2004).

A prisão durante o processo aparece como o principal fator a influenciar 13 Nas palavras de um promotor de Campinas: “O MP faz filtro de tudo aquilo que acha que não vai dar em nada. Se não

há prova suficiente para pedir uma condenação é pedido o arquivamento”.14 O estudo de Davidovitch & Boudon (1964) foi um dos primeiros a apontar o trabalho de filtragem dos casos realizado

pelo Ministério Público de modo a assegurar a melhor repressão possível, levando-se em conta os recursos limitados do sistema.

15 A idade da vítima demarca, do ponto de vista legal, uma das hipóteses da regra da presunção da violência. Isto é, em caso de estupro a violência precisa ser provada, mas se a vítima é menor de 14 anos, esta violência é presumida.

62 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

o tempo de processamento da Justiça Criminal para o crime de estupro em Campinas. O prazo para réu preso é estipulado por lei em 81 dias para o término da instrução criminal e, segundo o CPP, é predominante na jurisprudência o entendimento de que, estando o réu preso e a finalização do processo tendo sido dilatada injustificadamente, constitui constrangimento ilegal o réu permanecer preso.16 Na prática, a liberação do réu depende do empenho do seu advogado. Talvez por isto os funcionários cartorários atribuam principalmente a este o cuidado com o prazo do réu preso. Se a liberação depende do advogado, a preocupação em agilizar o andamento do processo com réu preso encontra-se em todos os operadores: policiais, promotores, advogados, funcionários cartorários, juízes. Esta preocupação revela-se na forma de organizar e classificar os processos com réus presos, de modo a diferenciá-los dos processos com réus soltos. Em Campinas, o sinal mais evidente da preocupação com a agilidade em relação aos processos em que ocorreu a prisão é a identificação destes por meio de uma tarja vermelha. Este atributo lhes é conferido tão logo eles são autuados. Além da tarja, inúmeros documentos anexados trazem carimbos com os ditos “urgente: réu preso”. A tarja e os carimbos desaparecem quando o réu consegue, por meio de seu advogado, que lhe seja concedido responder ao processo em liberdade. Deste momento em diante seu processo muda de classificação e passa a seguir o andamento normal.

13. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO DA TÉCNICA DE ANÁLISE DE SOBREVIVÊNCIA E A BASE DE ESTUPRO DE CAMPINAS PARA A ANÁ-LISE DO TEMPO DE TRAMITAÇÃO DOS PROCESSOS

Foi possível demonstrar, ao longo desta seção, a validade da técnica de análise de sobrevivência para se mensurar acuradamente o tempo de duração dos processos e identificar os fatores que o influenciam. Vimos, em primeiro lugar, que a técnica respeita a estrutura de funil dos dados. Isto porque os casos arquivados são transformados em censuras, de modo a permitir a mensuração do tempo em que estes permaneceram no fluxo de processamento e a computar este tempo na média final de todos os tempos que foram até o evento estipulado como final. No caso em tela, até a sentença. Omitir estes tempos, conforme foi demonstrado, acarreta a mensuração incorreta do tempo sujeito à análise. Uma outra vantagem desta técnica é permitir analisar o fluxo de forma continuada e não interrompida.

Além disto, esta técnica permite identificar a necessidade de se distinguir grupos para se fazer uma análise mais acurada. Na análise apresentada, foi possível demonstrar, por exemplo, a necessidade de se distinguir réu preso de réu solto e considerá-los enquanto grupos distintos da variável dependente.

Já a modelagem dos dados nos permite identificar os fatores que 16 Ver CPP (1986, p. 243).

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 63

explicam o tempo de duração dos processos, bem como vislumbrar e quantificar os resultados encontrados em termos de razão de chance do tempo até a ocorrência do evento, o que facilita sobremaneira a análise.

Contudo, cabe ressaltar que não foi possível até o momento, demonstrar todo o potencial desta técnica em razão da base de dados utilizada. A base de dados longitudinal referente ao crime de estupro em Campinas não foi montada originalmente com o intuito de analisar o tempo de duração dos processos, mas sim, de verificar os determinantes das decisões em relação a este crime. Assim, poucas variáveis apareceram explicando a duração dos processos nos modelos montados. Faz-se, portanto, necessário explorar melhor a atuação de outras variáveis. Fatores referentes aos procedimentos na polícia e no judiciário e o tempo gasto nestes, bem como informações mais detalhadas do contexto das varas criminais e das características de seus operadores, dentre outros, parecem ser importantes para explicar o tempo gasto no processamento das decisões e para permitir a construção de indicadores de medida da morosidade.

Finalmente, é preciso lembrar que esta é a primeira vez que a técnica de análise de sobrevivência está sendo utilizada para tratar do tempo de duração dos processos na Justiça Criminal no Brasil (VARGAS, 2004) e que, portanto, deverá ser mais bem explorada e testada em outros bancos de dados longitudinais.

14. IDENTIFICANDO FATORES EXPLICATIVOS DO TEMPO DE PROCESSA-MENTO E DA MOROSIDADE NA JUSTIÇA CRIMINAL

O propósito desta seção é identificar quais são as principais variáveis que um estudo sobre o tempo da tramitação dos processos e sobre a morosidade processual deve analisar.

Conforme afirmado, um dos problemas das duas bases citadas anteriormente (Base da Fundação SEADE e base do estupro em Campinas) para análise do tempo de duração dos processos é o fato delas não conterem variáveis que se supõem importantes para análise do tempo de duração e a morosidade dos processos tais como: tempo gasto nos procedimentos de investigação e de elaboração das provas, réu foragido, etc. Por isto, uma nova base foi constituída incluindo variáveis importantes para análise do tempo de duração dos processos.

Em se tratando de um banco constituído pela garimpagem das informações nos processos arquivados de homicídio doloso, houve a preocupação e o cuidado com a coleta das informações, no sentido de sua confiabilidade e validade interna, por exemplo, dentre outros procedimentos, foram buscadas definições claras dos conceitos utilizados nos questionários e estes foram submetidos à avaliação dos operadores, etc. Contudo, a validade externa, isto é, o quanto estes dados e a análise deles decorrente pode vir a ser generalizada e aplicada para outros contextos, encontra-se comprometida na medida em

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que os dados não se referem a processos aleatoriamente selecionados dentro de uma população de processos e, certamente, apresentam vieses. Ainda assim, pareceu-nos pertinente a montagem de um banco de informações que pudesse indicar, ainda que de forma preliminar, os fatores que influenciam o tempo de duração dos processos. Isto porque, conforme vimos, há uma enorme lacuna de informações a este respeito em outros bancos e usualmente são enormes as dificuldades encontradas para se ter acesso às informações nas organizações da Justiça Criminal, particularmente para aqueles que buscam reconstituir o funcionamento do sistema a partir de informações levantadas em documentos destas organizações, tais como autos de processos.17

Tal base refere-se, então, a informações coletadas em 93 processos de homicídio doloso arquivados em 2003 no Tribunal do Júri de Campinas. A escolha do crime de homicídio doloso se deve ao fato de ser um dos poucos crimes julgados por tribunal de júri, julgamento este muito mais longo do que o julgamento dos outros crimes porque envolve duas fases: uma decisão preliminar, tomada por um juiz singular que decide se o processo deve ir a julgamento de júri, e a decisão dos jurados.

Foi dito que o modelo adequado para análise do tempo é aquele que organiza as informações que o sistema produz no fluxo de decisões tomadas nas diferentes organizações. No ritual de processamento do Tribunal do Júri, grosso modo, este pode ser assim representado18:

17 Enfatiza-se que a montagem desta base (feita ao longo de 3 meses) só foi possível com a cooperação e o envolvi-mento do juiz e dos funcionários do cartório do Tribunal do Júri de Campinas a quem registramos os nossos agrade-cimentos.

18 Em 2008 várias mudanças foram introduzidas no Código do Processo Penal que alteram os procedimentos proces-suais para o rito comum e rito do tribunal do júri. Ver leis 11.719/08 e 11.698/08. Logo, esse desenho representa a forma como os casos de homicídio doloso eram processados antes dessas mudanças. Para maiores informações sobre como esses casos são processados atualmente ver: RIBEIRO, Ludmila (org). Os novos procedimentos penais: uma aná-lise das mudanças introduzidas pelas leis 11.719/08 e 11.689/08. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos; julho de 2010.

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 65

Após fase investigatória, que consiste na preparação para o exercício da ação penal, é feita a Denúncia pelo Ministério Público. Como foi dito, no Tribunal do Júri o procedimento é bifásico. A primeira fase tem encerramento com a decisão de pronúncia. A segunda fase finda com o trânsito em julgado da sentença do juiz presidente do tribunal do Júri.

Entretanto, é preciso lembrar que a base construída não é uma base longitudinal, tal como viemos definindo até agora, tendo em vista que ela só contempla os casos que foram até o arquivamento final, isto é, ela não permite recuperar as perdas que ocorreram ao longo do processamento. Estando nela excluídos os casos arquivados. Contudo, esta base permite uma análise longitudinal na medida em que contém informações sobre o processamento ao longo do tempo dos autos pesquisados.

Foram consideradas como as principais variáveis relativas ao tempo de duração dos processos (variáveis respostas) a serem analisadas neste banco: 1) tempo da fase policial, 2) tempo entre o encerramento do inquérito até a denúncia (tempo do Ministério Público), 3) tempo entre o recebimento da denúncia e o interrogatório (tempo do Juiz); 4) o tempo entre registro da queixa até a decisão preliminar, 5) o tempo desde o registro da queixa até a sentença do Júri e, finalmente, 6) tempo total, do registro da ocorrência até o trânsito em julgado da decisão final.

Partiu-se da premissa de que uma investigação sobre a duração e morosidade processual deve considerar como variáveis explicativas: 1) variáveis referentes às características do réu e da vítima (sexo, idade, raça, etc.) e características da ocorrência (local, uso de arma, relação de conhecimento entre réu e vítima etc.); 2) variáveis referentes aos procedimentos legais e ao tempo gasto nestes procedimentos (tipos de crime, prazos, decisões legais, prisão, precatória, solicitação de exame e perícias etc.), 3) variáveis referentes aos procedimentos administrativos e o tempo gasto para estes procedimentos (localização de testemunhas, solicitação de mais prazo para investigação, solicitação de informações a órgãos públicos, agendamento de julgamento, etc.), 4) variáveis referentes à organização judiciária e ao contexto local de atuação da Justiça Criminal (quantidade de processo, diferenciação por vara ou por comarca de acordo com número de operadores, grau de burocratização, etc).

A análise dos processos nos permite avaliar os três primeiros conjuntos de variáveis. A hipótese averiguada neste estudo é a de que variáveis legais e variáveis administrativas são particularmente importantes para se explicar o tempo de duração dos processos.

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15. ANÁLISE DE VARIÁVEIS RELATIVAS AO TEMPO DE DURAÇÃO DOS PROCESSOS EM ALGUMAS FASES DO PROCESSO

Nesta subseção serão apresentadas as análises feitas das variáveis relativas ao tempo policial, ao tempo gasto pelo Ministério Público e ao tempo gasto pelo juiz que se estende entre o recebimento da denúncia e a realização do interrogatório. Também serão apresentados os resultados da análise do tempo decorrido entre o registro da ocorrência e a sentença final.19

a) Tempo da fase policial

Foi possível verificar que as variáveis explicativas do tempo gasto na fase policial são o tempo gasto para a realização do exame de corpo delito, bem como na realização de perícia, pedidos de dilação de prazo e a prisão. Pedidos de dilação de prazo para se concluir a investigação é o fator que mais explica este tempo.

Os pedidos de dilatação ou dilação de prazo são o melhor preditor para o tempo da fase policial. Na prática observada da polícia após 30 dias para réu solto e 10 dias para réu preso, conforme prazos estabelecidos no Código do Processo Penal, os autos são literalmente enviados ao promotor para autorizar e ao juiz para referendar mais prazo para investigação, decorrido mais trinta dias ou dez no caso do réu preso novamente este procedimento é tomado e assim segue até o término da investigação. Estes recorrentes pedidos de mais prazo para investigação e o tempo perdido apenas na circulação dos autos constituem pontos de lentidão e de gargalo do processamento neste estágio de processamento. Cabe também observar que quando considerada a prisão, o tempo esperado nesta fase diminui.

b) Tempo gasto pelo Ministério Público

Na análise da variável do tempo gasto pelo Ministério Público, delimitada pelo tempo entre o encerramento do inquérito e a denúncia, as variáveis explicativas significativas foram o pedido de dilação de prazo e a existência de cotas no Ministério Público. Em ambos os casos, pedidos de dilação e cota aumentam exponencialmente o tempo do processo, sendo que pedidos de dilação contribui em maior medida para o aumento deste tempo. Referimo-nos anteriormente ao que significa nas regras do CPP e na prática do funcionamento da Justiça Criminal os pedidos de dilação de prazo. No caso da cota trata-se de solicitação do Ministério Público feita à Polícia para proceder a algum tipo de investigação complementar. Isto é, o juiz ou o promotor, por meio de solicitação formal feita ao juiz, entendeu que era necessário realizar outros procedimentos, ouvir mais testemunhas, juntar documentação etc.

Na análise dos dados em questão, observa-se que se não houver pedido de dilação de prazo nem cotas no Ministério Público, o valor esperado no tempo

19 No primeiro caso a modelagem foi realizada com o auxílio da análise de regressão múltipla. Em razão da exigüidade de espaço os modelos não serão aqui apresentados. Estes podem ser encontrados no Relatório Final da pesquisa no sitio citado anteriormente.

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entre a data da denúncia e a data do encerramento do inquérito policial é de oito dias. Se houver pedido de dilação de prazo, mas não houver cotas no Ministério Público, esse valor esperado passa para 47,5 dias. Se houver pedido de dilação e cotas no Ministério Público, o tempo esperado entre a data da denúncia e a data de encerramento do inquérito policial passa a ser de 90,5 dias.

c) Tempo gasto pelo Juiz

Na análise da variável do tempo gasto pelo Juiz, delimitada pelo tempo entre o recebimento da denúncia e o interrogatório do réu, as variáveis explicativas significativas foram o tempo decorrido entre a data da citação e a data do interrogatório. O tempo esperado neste intervalo é maior para tentativa de homicídio se comparado ao homicídio consumado. A prisão durante o processo contribui para diminuir o tempo esperado nesta fase. A influência do tempo decorrido entre a data da citação e a data do interrogatório pode nos remeter ao desaparecimento do réu, fato este que concorre nesta fase para aumentar o tempo de duração dos processos.

d) Tempo entre o registro da ocorrência e sentença final

Nesta subseção também serão discutidos os resultados da análise da variável referente ao tempo decorrido entre o registro da ocorrência e a sentença final proferida pelo júri. A técnica de análise aqui empregada foi a análise de sobrevivência, tanto na descrição dos dados quanto para a sua modelagem. Esta técnica foi utilizada porque o julgamento por tribunal do júri se faz em duas fases. Na primeira, os indivíduos não pronunciados, isto é, não encaminhados ao tribunal do júri não seguem no sistema até a sentença final tendo, portanto, seus processos arquivados na fase preliminar, sendo estas informações consideradas censuras.

As variáveis que afetam o risco na ocorrência da sentença final, observando o tempo decorrente entre o registro da ocorrência e a sentença final, são: tempo da fase policial, tempo do juiz, tempo até a decisão intermediária, tipo de crime, réu revel, adiamento do julgamento, dificuldade de localizar testemunhas, prisão durante o processo (a que considera réus presos, não presos e pronunciados) e defesa (aqui como fator em dativa, constituída ou ambas).

As variáveis de tempo das três fases citadas - tempo da fase policial, tempo do juiz, tempo até a decisão intermediária - atuam seguindo a relação: a cada dia de acréscimo em cada um destes tempos implica uma unidade de acréscimo no risco da ocorrência da sentença no tempo delimitado entre o registro da ocorrência e a sentença final do júri. Isto indica um efeito cumulativo dos atrasos no andamento dos processos. Este resultado sugere a investigação, em novos estudos, do efeito cumulativo das causas da demora na tramitação dos processos. Como foi observado: “a morosidade é tanto mais forte quanto mais variadas, intensas e cumulativas forem as suas causas” (SANTOS et.al. , 1996, p:442).

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Um fator importante a ser melhor compreendido é a prisão durante o processo. Até a sentença intermediária os processos correm mais rápido para réus presos que para réus não presos. Após esta fase a relação se inverte, passando os réus presos a ter andamento mais lento em seus processos. A prisão durante o processo assume uma complexidade difícil de ser interpretada apenas com dados quantitativos, ademais, há a inclusão da categoria da prisão para pronunciados. Alguns testes foram realizados com interação da prisão com outros fatores, tal como a revelia do réu, contudo esta interação não foi significativa.

16. NOTAS CONCLUSIVASObservou-se, a partir desta pesquisa, que os bancos de dados criminais

analisados apresentam problemas, tanto no que se refere à confiabilidade dos dados para se mensurar o atrito, quanto à existência de variáveis para medir o tempo de tramitação dos processos. Um modelo de um sistema de estatísticas criminais e das condições de sua implementação pelo Ministério da Justiça de forma a tornar possível a construção de indicadores de criminalidade já foi elaborado (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1988) e deveria ser o quanto antes implementado. Informações sobre a data de todos os procedimentos, ou pelo menos os mais importantes20, devem ser contempladas, de maneira detalhada, de modo a que se possa avaliar a duração destes procedimentos em dias, de maneira a contrapô-los aos prazos estipulado nos Códigos, ou melhor ainda, àqueles considerados razoáveis pela jurisprudência ou pela prática dos operadores. Um exemplo dessas informações é a data de encerramento do inquérito, que apresentada de forma completa (e não apenas o ano, como consta do banco da Fundação SEADE) nos permite avaliar se houve ou não dilatação do prazo deste procedimento. Informações detalhadas sobre a prisão também devem ser contempladas (tipo, data da decretação, data do cumprimento, data do alvará de soltura).

Também foi identificado que qualquer abordagem sobre o tempo da Justiça Criminal deve diferenciar o tempo de processamento do réu preso (flagrante ou outro tipo) do tempo de processamento do réu solto. Não o fazer acarreta sérias distorções na análise. Tal distinção já se encontra prevista no Código de Processo Penal, que determina prazos mais curtos para o processamento dos réus presos. O tratamento dos dados de estupro em Campinas nos permite afirmar que o tempo médio de processamento do réu que foi preso em algum momento durante o processo é bem mais curto (duas vezes mais) do que o tempo médio de processamento do réu solto.

Vale observar que os prazos estipulados pelo Código do Processo Penal, que data de 1941, são irreais para o processamento da massa de crimes

20 Data do fato; datas da abertura e encerramento do inquérito; data da distribuição, datas da decretação da prisão, de seu cumprimento e do alvará de soltura; data da denúncia, data do interrogatório; datas das audiências de testemu-nhas; data da sentença intermediária; data do recurso e do acórdão; data do libelo; data da sentença do júri, data do recurso e do acórdão; datas do trânsito em julgado para MP e réu.

Tempo da Justiça: Metodologia de Tratamento do Tempo e da Morosidade Processual na Justiça Criminal | 69

e demandas que hoje chegam ao Judiciário e não se constituem em referência adequada para se analisar a morosidade do Sistema de Justiça Criminal.

Também se deve atentar para o fato de que a natureza do delito intervém de maneira decisiva no seu tratamento e processamento. Este tratamento pode ser diferenciado, seja pelo tipo de rito processual que lhe corresponde, seja por certas regras estabelecidas nos códigos, seja pelas atividades práticas dos operadores da Justiça Criminal em lidar com estes delitos.

Novos estudos quantitativos devem aperfeiçoar a aplicação da técnica de análise de sobrevivência, tendo em vista o seu poder para medir acuradamente o tempo médio de andamento de processos, para identificar as variáveis que também devem ser analisadas como dependentes juntamente com as variáveis de tempo investigadas e para identificar os fatores que influenciam este tempo.

O presente estudo ainda é muito incipiente e pretende contribuir com sugestões metodológicas para que outros estudos possam progredir no conhecimento da duração dos processos e das causas da morosidade processual. Contudo, a busca de um modelo de tratamento do tempo e da morosidade da justiça permitiu identificar, assim como apontam outros estudos, que muitas são as causas da demora na duração dos processos e estas causas são cumulativas. Embora atuar em algumas causas sem atuar em outras possa não resolver o problema, algumas ações poderiam vir a surtir alguns resultados.

Sugere-se dentre estas ações:

1) Estimular a comunicação e a simplificação dos contatos (via telefone, por exemplo) entre a Polícia e o Ministério Público, de maneira a evitar o vaivém dos inquéritos entre estas organizações. Orientar os operadores do Ministério Público no sentido de inspecionarem efetivamente o tempo gasto na investigação.

2) Estimular ações concertadas entre a Polícia e o Ministério Público no que diz respeito à investigação de maneira a diminuir a solicitação de cotas e de pedidos de dilação de prazo.

3) Estimular uma melhor comunicação entre o Instituto de Medicina Legal e a Polícia.

4) Desenvolver um sistema de identificação centralizado para todo país de maneira a dificultar o desaparecimento do réu.

5) Estimular a comunicação em rede das varas criminais de maneira a se obter informação de maneira mais ágil do que por ofício.

6) Desestimular o modelo particularizado de administração das varas criminais, em que cada vara assume “a cara”do seu juiz responsável.

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O PROTEGE | 73

O PROTEGE - Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas do Rio Grande do Sul: análise da experiência de implantação em maio de 2000 e implementação até junho de 2005

Evaldo Luis Pauly

1. INTRODUÇÃOO Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996 previa a necessidade

dos estados brasileiros promoverem a proteção a testemunhas ameaçadas, no capítulo “Luta contra a Impunidade”. Em 1998, a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, estabelece um convênio com o governo de Pernambuco e a entidade civil GAJOP – Gabinete de Assessoria Jurídica a Organizações Populares. Nascia o modelo brasileiro de proteção: os PROVITAs, programas estaduais viabilizados mediante parcerias entre governos estaduais, a SEDH do Ministério da Justiça e entidade da sociedade civil voltada para a defesa dos Direitos Humanos. O objetivo principal dos PROVITAs é proteger e promover a reinserção social das pessoas em situação de risco e, para tal, constituem uma rede nacional de proteção solidária. Após a experiência inicial, o GAJOP e a SEDH começam a articulação com os demais estados. Nasce o PROVITA da Bahia e, logo a seguir, o do Espírito Santo. Assim, se consolida o Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, criado pela Lei nº 9.807 de 13 de julho de 1999. O sistema nacional constitui-se de unidades estaduais e é gerenciado pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça em convênio com o GAJOP. O PROTEGE - Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas do Rio Grande do Sul - pertence ao sistema nacional, integra a articulação promovida pelo GAJOP através, especialmente, do convênio que possui com a SEDH. O PROTEGE/RS, no entanto, não seguiu o modelo dos PROVITAs, assumindo a particularidade de ser, o primeiro e até agora único programa do sistema executado por uma agência estatal. Os PROVITAs executam um serviço público, mediante o convênio, mas é executado por uma entidade da sociedade civil, portanto, de caráter privado. Nos primeiros anos de funcionamento, a rede solidária de proteção do PROTEGE/RS inspirava-se diretamente no modelo PROVITA, especialmente através da figura do “protetor”, um militante dos Direitos Humanos atuante em uma organização não-governamental e residente próximo ao local de proteção da Testemunha. O protetor ajudava a inserção ou reinserção social da testemunha e justificava a chamada “história de cobertura”. Com a consolidação do programa e as fragilidades identificadas nesse modelo, o PROTEGE/RS, ao longo dos anos, foi adotando outras formas de inserção social, sem envolver a figura de protetor ou da protetora local.

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O PROTEGE, os PROVITAs e a SEDH articulam-se em rede nacional que permite a circulação de testemunhas e, quando necessário, sua proteção em qualquer estado da rede, conforme as conveniências sociais, humanas e as recomendações técnicas da segurança. A rede atende, inclusive, testemunhas de estados que não possuem programas de proteção. Os convênios entre os programas estaduais e a SEDH prevêem a possibilidade da realização desses casos, muitas vezes, chamados de permutas. Essa estrutura permite que o sistema de proteção tenha a agilidade e disponha de capacidade imediata de deslocar e instalar a testemunha ameaçada e seu eventual núcleo familiar.

2. O CONTEXTO DE CRIAÇÃO DO PROTEGEO modelo PROVITA foi adotado, porque, muitas testemunhas esclarecem

violações dos Direitos Humanos envolvendo agentes públicos, especialmente policiais. Por óbvio, estas pessoas não se sentem seguras em um programa da própria Polícia. No Rio Grande do Sul, também existem muitas testemunhas que denunciam policiais, mesmo assim avaliou-se como eficiente um programa estatal integrado por Equipe Técnica composta por policiais militares e servidores públicos e um Conselho Deliberativo composto por órgãos públicos e entidades da sociedade civil. Esta pesquisa realizou-se em 2005 e, posteriormente, a partir dos resultados da pesquisa, mas sem a presença do pesquisador, a Equipe Técnica e o Conselho Deliberativo produziram uma sistematização de suas rotinas e elabo-raram um fluxograma do atendimento à testemunha. Apesar dos dados estarem ultrapassados, sua divulgação parece recomendável para fins de comparativos com o desempenho inicial dos PROVITAs e do PROTEGE no sentido de subsidiar outras pesquisas sobre essa incipiente experiência da sociedade e do estado brasileiro de garantia dos Direitos Humanos em situações de extrema violação e abuso.

A redução dos índices de violência para níveis mais compatíveis com a civilidade democrática e a tradição republicana requer o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas sobre a ação das instituições e serviços de Segurança Pública, como é o caso do Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas - PROTEGE/RS, órgão da Secretaria da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul. O PROTEGE pretende enfrentar a “lei do silêncio” através da oferta de um serviço público especializado de proteção humana, social e policial de testemunhas dispostas a colaborar com a investigação policial e/ou com o processo judicial e que, em função desta decisão cívica, sofrem coação ou ameaça. Os regimes democráticos modernos dispõem, há décadas, de sistemas de proteção a testemunhas ameaçadas. No Brasil, a Lei Federal nº 9.807 de 1999 criou o sistema nacional de proteção a testemunhas. No caso gaúcho, o Programa tem base na Lei Estadual nº 11.314/1999, regulamentada pelo Decreto nº 40.027/2000 que criou o PROTEGE em maio de 2000.

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O PROTEGE é um programa estatal com a peculiar característica de ser gerenciado por um Conselho Deliberativo formado por um conjunto de representantes de secretarias estaduais vinculadas, direta ou indiretamente, aos Direitos Humanos, representação do Judiciário Estadual, do Ministério Público, da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e de entidades da sociedade civil vinculadas à luta pela defesa dos Direitos Humanos. Embora vinculado à Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, o PROTEGE tem uma autonomia gerencial diferenciada dos demais órgãos desta Secretaria em função da natureza multifacetada do serviço público que oferece e das necessárias medidas de sigilo e segurança das testemunhas e da própria equipe de operações. O objetivo fundamental do PROTEGE é assegurar a integridade de testemunhas e eventuais familiares que estejam sofrendo coação ou ameaça em função de seu testemunho que viabiliza a ação da Justiça e/ou a investigação da Polícia. A ação da equipe técnica do PROTEGE permitiu que dezenas de pessoas, apesar de ameaçadas, recebessem as garantias necessárias para que colaborassem com a Polícia e com a realização da Justiça, preservando-as, de modo razoável, das ameaças que restringem sua plena liberdade e integridade. Até meados de 2008, nenhuma testemunha ou familiar protegido foi vítima de atentados durante sua permanência no Programa.

O contexto político influenciou na origem do PROTEGE como programa de proteção estatal. Trata-se dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito do Crime Organizado, instalada em 15 de março de 2000, presidida pelo Dep. Paulo Pimenta, sendo Relator, o Dep. Francisco Appio. Aos trabalhos da CPI integrou-se uma Força-Tarefa formada pelo Ministério Público Estadual, Polícia Federal, Polícia Estadual e outros órgãos. O Relatório Final desta CPI foi aprovado em 14/12/2000 e encaminhado ao Ministério Público. Durante as investigações da CPI

colheu o depoimento de 108 testemunhas, efetuou 53 prisões, indiciou 39 pessoas, afastou um delegado da Polícia Civil e 35 agentes. “As nossas melhores expectativas foram superadas”, disse o presidente da CPI, deputado Paulo Pimenta (PT). Desde 24 de março, o disque-CPI recebeu 1.149 denúncias, sendo 632 sobre narcotráfico, 101 sobre roubo de cargas, 39 sobre lavagem do dinheiro, 377 sobre outros temas, além de receber 119 correspondências. Neste período, a CPI recebeu 212 denúncias contra agentes da polícia civil, 31 contra delegados da polícia civil, seis contra policiais militares e quatro contra policiais federais.

A CPI causou profundo impacto na sociedade, conforme esta informação atribuída ao então comandante-geral da Brigada Militar, Jacob Vaz Schumacher que

entregou aos deputados cópia do inquérito policial militar que apurou as denúncias de envolvimento de agentes públicos com o crime organizado. Segundo denúncias que chegaram até Schumacher, policiais militares vinham, desde 1987, facilitando o ingresso de armas e drogas no Presídio Central, em Porto Alegre. O inquérito, que está na fase judicial, reúne o depoimento de 54 pessoas, seis acareações e aponta quatro capitães como suspeitos. Schumacher também falou so-bre o comércio de gêneros alimentícios, na

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cantina do presídio que gera um lucro em torno de R$ 20 mil por mês. Este problema envolvendo policiais, presidiários e disputas territoriais é, no entendimento do comandante, estrutural e já vem de longa data.

A mesma notícia acrescenta outras informações que permitem inferir a dimensão do crime organizado no território gaúcho, especialmente envolvendo tráfico de drogas, roubo de cargas e venda de caminhões roubados

O presidente da CPI considerou vago e impreciso o depoimento do empresário Rudimar Basso, dono de uma das maiores revendas de caminhões do Estado. Com sede em Garibaldi e filial em Sapucaia, a Basso Veículos recolhe apenas R$ 203,00 de ICMS, mesmo tendo em seus pátios mais de 80 caminhões e um helicóptero importado, que serve para facilitar o transporte de seu proprietário na compra e venda das carretas. Em uma só operação, Basso desembolsou R$ 680 mil por 30 caminhões. Em uma outra oportunidade, pagou outros R$ 525 mil. Mesmo movimentando enormes quantias de dinheiro, o empresário disse não saber quanto fatura com a venda de cada veículo e foi evasivo ao responder sobre seu patrimônio pessoal. Segundo ele, sua empresa dispõe de dois gols, de um ônibus, de sede própria e de terrenos em Farroupilha. Ele disse que em dez anos de trabalho, apenas uma vez imagina ter comprado um caminhão suspeito de ilegalidade. O veículo foi adquirido de Luís Jarros, de Araponga, no Paraná. O narcotráfico foi abordado por duas testemunhas encapuzadas que tiveram suas identidades preservadas para não atrapalhar as investigações. Uma delas revelou no-mes e importantes dados sobre a quadrilha do narcotraficante Ney Machado, que envia mensalmente do Paraguai para o Rio Grande do Sul algo em torno de 300 quilos de cocaína. Segundo declarações desta testemunha, Ney Machado é proprietário de oito fazendas e tem mais de 200 homens trabalhando para ele.

O PROTEGE surge num contexto de intensas denúncias do crime organizado e de mobilização de cidadãos e cidadãs e de agentes públicos que se dispunham e se sentiam seguras para denunciá-lo, o programa voltará a ocupar o debate político e o cenário midiático gaúcho num contexto desfavorável por ocasião do suicídio de uma testemunha ocorrido em abril de 2002. O fato foi amplamente explorado pela imprensa e também por acirradas disputas político-partidária. Talvez essa tragédia humana tenha provocado a mais grave instabilidade humana, política e institucional vivida pelo programa até a finalização desta pesquisa. Tratava-se de uma jovem testemunha de 19 anos que havia denunciado uma rede de tráfico de drogas e de exploração sexual de adolescentes no município de Lagoa Vermelha. Havia ingressado no PROTEGE em 2001, tendo recebido assistência policial, psicológica e social. No momento de sua morte, estava sob a guarda permanente de duas policiais militares, mas enforcou-se usando sua camisola enquanto utilizava o banheiro do quarto em que estava hospedada. O caso foi investigado pela Polícia Civil que, na época dos fatos, recolheu bilhetes de despedida que ela dirigiu aos seus familiares e um bilhete de agradecimento à psicóloga que a atendia produzindo o convencimento dos investigadores de que se tratava, de fato, de suicídio. Posteriormente, o inquérito policial corroborou essa convicção inicial.

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Apesar desse intenso envolvimento político e midiático que cerca a prestação de seu serviço público, o programa assumiu características técnicas e institucionais peculiares no sistema de Segurança Pública do Rio Grande do Sul e, talvez, brasileiro. O PROTEGE pode ser definido como uma entidade estatal de defesa dos Direitos Humanos e de promoção da inserção ou reinserção social de testemunhas e familiares ameaçados, além de propiciar informações para a realização da Justiça e melhor desempenho da investigação policial. A Equipe Técnica que executa a proteção realiza uma inusitada combinação entre diferentes serviços profissionais que, apesar de permanentes contradições internas, desenvolve um atendimento multiprofissional que envolve o conhecimento técnico de policiais, todos servidores da Brigada Militar, o conhecimento de profissionais com formação nas áreas do Direito, da Assistência Social e da Psicologia, além de promover o diálogo permanente com as diferentes concepções políticas e culturais das próprias Testemunhas e familiares protegidos, bem como, por óbvio, dos integrantes do Conselho Deliberativo que juntos representam o senso comum da cidadania ou o conhecimento popular inerente à vida em sociedade. A dialética entre os conhecimentos científicos da Equipe Técnica, com o senso comum das testemunhas e dos conselheiros provenientes da sociedade civil e das instituições estatais vinculadas aos Direitos Humanos parece exigir permanentemente a produção de um conhecimento interdisciplinar para a manutenção do serviço público prestado pelo programa à cidadania.

Além da necessidade de serem mantidas as especificidades técnicas e as funções públicas, o atendimento à testemunha ameaçada se desenvolve de forma interdisciplinar porque a gestão do PROTEGE, deliberadamente, estruturou-se de forma a impedir que um determinado conhecimento profissional preponderasse sobre qualquer um dos demais conhecimentos sejam do senso científico ou do senso comum. Pretende-se evitar e parece que se tem conseguido evitar que o conhecimento especializado dos policiais prepondere em relação aos demais, considerando que a ameaça à integridade física da testemunha induz à valorização quase que natural do saber técnico dos profissionais de Polícia. A execução do novo projeto de vida da Testemunha e, eventualmente, de sua família, por evidente, exige que ora prepondere um ou mais conhecimentos, ora outros saberes técnicos envolvendo também a relação destes saberes com o conhecimento popular. A preponderância de um ou outro, todavia, será sempre relativa à análise da situação concreta mediada pelo diálogo possível entre todos os conhecimentos envolvidos no esforço de garantir os Direitos Humanos da Testemunha e, por consequência, das demais vítimas da violação praticada pela atividade criminosa denunciada ou investigada. Um diálogo sempre difícil porque acontece sob intensa tensão e medo. Por exemplo, no momento dos policiais resgatarem uma família ameaçada não levarão em conta o vínculo escolar das

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crianças, no entanto, imediatamente, na projeção do deslocamento para uma localização mais segura em outra comunidade, a segurança contemplará com a Assistência Social e o Operador de Rede, a proximidade da escola em função de preservar a escolarização das crianças. Nesse sentido, para garantir a proteção, o

atendimento dos casos do PROTEGE é realizado por uma equipe interdisciplinar, composta de advogado, assistente social, psicólogo e operadores de segurança responsáveis por escoltas e deslocamentos.

Talvez uma experiência do pesquisador possa ilustrar a importância da interdisciplinaridade na prestação desse serviço público. Ao entrevistar um policial da Célula de Segurança, chamou-me a atenção sua narrativa acerca de seu trabalho que raramente informava acerca de armas, tiroteios, ações de espionagem, de informação e contrainformação de segurança, prisões e carros em perseguições ou fugas velozes. Eu havia lhe perguntado sobre como relacionava seu treinamento militar com o serviço que estava prestando no PROTEGE. Ele me disse que sentia algumas diferenças e para me ajudar a entendê-las me contou que em certa ocasião, ele, alguns colegas e oficiais estavam encarregados de “fazer a segurança” da Equipe Técnica que integravam na instalação de uma família com algumas crianças pequenas em seu “ninho” provisório. Descreveu-me a agitação das crianças dentro da nova moradia. Após o almoço servido à família, ele perguntou às crianças se não deveriam escovar os dentes. Descobriu, então, que elas não possuíam esse hábito. A Assistente Social ficou surpresa e providenciou a compra de escovas e pasta de dentes. Quando chegaram as escovas, aumentou a agitação das crianças que queriam todas ao mesmo tempo experimentar a novidade. Ele me disse que ensinou a uma das crianças a escovar os dentes, porque a Assistente Social estava ocupada com outra. Fiquei admirado com sua disposição e o elogiei, dizendo algo como: “Policial ensinando criança a escovar os dentes, isso é que é ensinar Direitos Humanos!”. Brinquei como se estivesse anotando essa frase em meu caderno. O oficial que trabalhava no computador próximo a nós interrompeu nossa conversa: “Como assim, soldado?”. Ele, então, respondeu ao oficial que, dias antes, já havia verificado a janelinha do banheiro e que não havia “linha de tiro”. Atiradores externos não teriam ângulo para atingir as pessoas através da janelinha do banheiro. Pude, então, compreender que, no PROTEGE, transdisciplinaridade implica numa constante vigilância epistemológica capaz de assegurar a racionalidade técnica e a frieza profissional dos policiais na garantia da vida sem, no entanto, perderem a solidariedade humana para, em parceria com o conhecimento do Serviço Social, ensinar crianças a escovarem os dentes.

3. O ATENDIMENTO PESSOAL NO SERVIÇO PÚBLICO DE PROTEÇÃO A TESTEMUNHA

O Decreto nº 40.027 de 27/03/2000 define que o ingresso no Programa

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acontece por solicitação da própria testemunha por telefone ou pessoalmente na sede administrativa do Programa. O mesmo pode acontecer por solicitação do Ministério Público, da Polícia, do Juiz que instrui o processo ou por parte de entidades civis de defesa dos Direitos Humanos (art. 7º). A inclusão da testemunha sempre depende de manifestação do Ministério Público, mormente pelas restrições que tanto a legislação quanto a operacionalidade do Programa impõe. Ao receber qualquer solicitação, de imediato, a Equipe Técnica analisa as condições jurídicas, sociais, psicológicas e policiais do caso. Havendo suspeita fundamentada de que estão preenchidas as condições legais, a Equipe entrevista a testemunha e expõe as condições do serviço de proteção que o PROTEGE oferece e pode garantir. Se a testemunha aceitar estas condições, algumas das quais podem parecer muito rígidas, a Equipe providencia o imediato ingresso provisório no Programa, quando a célula de segurança planeja o “resgate” e a escolta da testemunha para uma nova residência, chamada de “ninho”. Trata-se de um local seguro em relação à ameaça adequado ao perfil sócio-psicológico da testemunha e de seus eventuais familiares. Durante os procedimentos de rotina, a Equipe Técnica expede as comunicações e solicitações necessárias ao Ministério Público. A Equipe Técnica é bastante ágil nessas ações policiais e sociais de proteção, conforme prevê o § 3º do art. 7º:

Sempre que necessário e levando em consideração a procedência, gravidade e a iminência da coação ou ameaça, a testemunha será colocada sob custódia, pelo Órgão Executor, que comunicará imediatamente o Conselho Deliberativo e o Ministério Público.

Em alguns casos o resgate é imediato ou mesmo instantâneo. Em outros casos, a Equipe Técnica pode recomendar outras medidas técnicas de segurança como a escolta, a vigilância discreta ou “campana”, a serem implementadas por Delegacias de Polícia ou unidades da Brigada Militar. A Equipe Técnica dispõe de recursos para essas operações: “ninhos” seguros disponíveis para abrigo temporário das testemunhas, contatos com entidades civis e públicas para atendimento de determinadas emergências, algumas informações de inteligência policial, etc. Os policiais da equipe possuem treinamento específico, equipamento e armas adequadas à emergência, veículos discretos e, dependendo da gravidade do caso, solicita apoio de policiais externos ao Programa. Há casos de resgates que podem levar algumas horas ou até mesmo dias ou semanas, dependendo da vontade da testemunha e também da noção que as vítimas possuem acerca do risco que estão correndo. Concomitante à operação de resgate, na medida do possível, se realiza um levantamento dos dados jurídicos e das investigações policiais disponíveis. Posteriormente ao ingresso provisório, o caso é analisado pelo Conselho Deliberativo a partir dos diversos pareceres técnicos da Equipe, um dos quais é a avaliação policial acerca do risco, da estimativa do potencial ofensivo das eventuais organizações criminosas e uma avaliação preliminar do comportamento de segurança, das relações sociais, econômicas e jurídicas do caso. A testemunha

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permanece na condição provisória, até que o Conselho sinta-se em condições mais objetivas e melhor informado para deliberar sobre o ingresso definitivo. É possível que o ingresso provisório não se transforme em definitivo. Desde o ingresso provisório a Equipe Técnica e o Conselho Deliberativo vão propondo, avaliando e também planejando um “projeto de vida” com e para a Testemunha. Por ocasião e se houver, o ingresso definitivo, a Testemunha é deslocada do “ninho” para instalar-se no “pouso” que, de acordo com o “projeto de vida” acordado inicialmente entre Equipe Técnica, Conselho Deliberativo e a Testemunha, poderá vir a ser a moradia ou de maior permanência para realizar a inserção social mais adequada para a proteção e a execução do “projeto”. Razão pela qual a elaboração e os encaminhamentos do “projeto de vida” exigem ação e reflexão permanente do conhecimento interdisciplinar tanto das especialidades técnicas entre si, delas com o Conselho Deliberativo e, também, deste conhecimento com o conhecimento popular das testemunhas. Desse modo a interdisciplinaridade se concretiza na melhor garantia possível dos Direitos Humanos no cotidiano da vida da Testemunha.

A permanência da testemunha no Programa depende de diversas condições. A principal delas é o comportamento pessoal, pois a colaboração da testemunha ameaçada é imprescindível para a forma de proteção executada pelo PROTEGE. É o que a legislação chama de “perfil compatível”. As normas pelas quais a testemunha pautará sua conduta são estabelecidas no Termo de Anuência, redigido para cada caso de acordo com o artigo 2º da Lei 9.807/1999:

A proteção concedida pelos programas e as medidas dela decorrentes levarão em conta a gravidade da coação ou da ameaça à integridade física ou psicológica, a dificuldade de preveni-las ou reprimi-las pelos meios convencionais e a sua importância para a produção da prova.

§ 1º A proteção poderá ser dirigida ou estendida ao cônjuge ou companheiro, ascendentes, descendentes e dependentes que tenham convivência habitual com a vítima ou testemunha, conforme o especificamente necessário em cada caso.

§ 2º Estão excluídos da proteção os indivíduos cuja personalidade ou conduta seja incompatível com as restrições de comportamento exigidas pelo programa, os condenados que estejam cumprindo pena e os indiciados ou acusados sob prisão cautelar em qualquer de suas modalidades. Tal exclusão não trará prejuízo a eventual prestação de medidas de preservação da integridade física desses indivíduos por parte dos órgãos de segurança pública.

§ 3º O ingresso no programa, as restrições de segurança e demais medidas por ele adotadas terão sempre a anuência da pessoa protegida, ou de seu representante legal.

§ 4º Após ingressar no programa, o protegido ficará obrigado ao cumprimento das normas por ele prescritas.

§ 5º As medidas e providências relacionadas com os programas serão adotadas, executadas e mantidas em sigilo pelos protegidos e pelos agentes envolvidos em sua execução.

O tempo máximo de permanência da testemunha no programa é de dois

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anos, prorrogáveis por até mais dois. Durante esse período, ela recebe uma bolsa mensal para atender suas necessidades de moradia, alimentação, vestuário e lazer. O Programa também elabora dialogicamente e ajuda a financiar o novo projeto de vida priorizando uma inserção ou reinserção social mais digna e humana. A educação escolar e/ou profissionalizante é prioritária. O “projeto de vida” é personalizado para cada caso e envolve negociações que, muitas vezes, parecem intermináveis. Houve casos de testemunhas que se alfabetizaram durante sua permanência no Programa e um caso de conclusão de um curso de pós-graduação. Todos os filhos em idade escolar são matriculados na escola, mantidos o sigilo e a segurança.

As medidas protetivas previstas no art. 5º daquele Decreto incluem segurança da residência, controle das telecomunicações, escolta policial – discreta e/ou ostensiva – para os deslocamentos das testemunhas, com atenção para os depoimentos e atendimento das audiências. Análise de risco dos trajetos e mapeamento das alternativas de fuga, treinamento de segurança para as Testemunhas. A testemunha recebe orientação e apoio policial para sua proteção, um valor em dinheiro sob a forma de “bolsa”, apoio social, jurídico e psicológico, além de moradia a mais adequada possível para o perfil sócio-econômico da família e a razoabilidade do orçamento público. O Programa garante, caso não haja, o vínculo da testemunha com a Previdência Social, regularizando quando for o caso sua documentação e situação. Oferece assistência médica e odontológica na rede pública ou privada e, se necessário, fornece e monitora o uso da medicação e demais tratamentos. Para casos gravíssimos e quando necessário, o PROTEGE encaminha a troca jurídica do nome da testemunha e de sua família. Essa medida é excepcionalíssima e depende de procedimentos do Judiciário. Apesar de serem raros, ainda há dificuldades técnico-jurídicas ainda não resolvidas de forma adequada no campo do direito previdenciário, trabalhista e direito de família que vão se resolvem caso a caso.

O conjunto das ações do PROTEGE caracteriza uma profunda intervenção estatal na vida privada da testemunha e de sua família que extrapola a normalidade da relação republicana entre cidadão e Estado, mesmo considerando que as intervenções tenham recebido a anuência e o consentimento dos beneficiários. O Programa interfere no cotidiano das relações afetivas, nas práticas maternais, paternais e filiais; propõe e ajuda na elaboração de um novo projeto de vida; busca aumentar a auto-estima e a civilidade das pessoas, quando é o caso. Mobiliza a família para a educação escolar e o aprimoramento profissional. Zela pelo auto-cuidado, especialmente, de usuários abusivos de drogas e álcool. Reforça as funções paterna e/ou materna no cuidado com filhos e filhas. Cada intervenção é planejada pela Equipe Técnica e Conselho Deliberativo e, em alguns casos, adquire caráter claramente coercitivo com a explícita advertência de que a Testemunha poderá ser excluída do Programa. O exemplo comum são casos em que a permanência no Programa é condicionada ao

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tratamento da dependência química e, por conseguinte, de proibição para aquisição e consumo de drogas ilícitas durante a permanência do programa. A Equipe discute a organização do orçamento familiar e monitora as compras de alimentos, móveis, utensílios, remédios e vestuário. O Programa exige e viabiliza a matrícula dos filhos em idade escolar e, inclusive, monitora o aprendizado.

Esta interferência na liberdade e na intimidade das pessoas que estão sob sua proteção precisa ser cotidianamente justificada porque o PROTEGE executa um serviço público que atende cidadãos que não vivem sob as condições normais nas quais o direito à plena liberdade e respeito absoluto à intimidade estão asseguradas pelo Estado democrático de direito. As ameaças reais e subjetivas que sofrem retiram, pelo arbítrio do crime, as condições ideais para o diálogo autônomo e livre entre a cidadania e o Estado. A ameaça constrange os beneficiários a exporem suas intimidades para os técnicos já que suas vidas dependem de um bom planejamento de segurança que, por sua vez, depende destas informações. Em razão do sigilo previsto pela legislação protetiva, esses profissionais estão impedidos de usar tais informações em outros contextos além do próprio serviço público de proteção. Dois casos concretos ilustram essa inusitada situação limítrofe. Um usuário de drogas que testemunhou contra a quadrilha que lhe fornecia drogas, precisou submeter-se ao tratamento de sua dependência química, pois estava impedido de comprar drogas de qualquer fornecedor, sob pena de colocar em risco de vida a si mesmo e aos técnicos que o atendiam. A organização atacadista que abastecia a quadrilha denunciada, por óbvio, recompensaria o distribuidor que informasse sobre a localização dessa testemunha. Houve o caso de uma testemunha que mantinha dois relacionamentos amorosos, sem que as pessoas envolvidas soubessem uma da outra. A informação sobre esse detalhe de sua vida íntima permitiu que a Equipe Técnica planejasse um esquema de proteção mais adequado para ele e as pessoas envolvidas.

A ameaça contra a vida da testemunha produz, de fato, uma violação de direito que justifica, caso a caso, certas restrições aos direitos individuais do cidadão ou da cidadã por parte do Programa para o resguardo do direito à vida da testemunha. A contradição entre restringir direito para garantir direito parece razoável quando se considera que “direitos fundamentais” são imprescritíveis, mas “não são direitos absolutos”, uma vez que a visão sistêmica do direito considera que “todas as posições jurídicas são limitadas, por se encontrarem em relação próxima entre si e com outros bens constitucionalmente protegidos”. Nessa visão, é admissível exercer algum

Controle da restringibilidade admitida pela Constituição, uma vez que a intervenção restritiva do legislador somente se justifica quando houver confronto de, pelo menos, um valor constitucional e de um direito fundamental, decorrendo a exigência limitativa deste, o que somente poderá ser efetuado no caso concreto (SCHÄFFER, 2001, p. 62-63).

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A contradição entre direitos assegurados constitucionalmente, exige que a Equipe e o Conselho tenham consciência de que a ameaça de morte impõe uma relação de dependência da testemunha em relação ao programa. Esta dependência, injustamente imposta pela criminalidade, exige que o Programa estabeleça meios para superá-la, um dos quais é reconhecê-la como tal. Para alguns ex-beneficiários, a intervenção estatal que restringiu alguns de seus direitos durante sua permanência no PROTEGE, permitiu-lhes, por outro lado, mais tarde, alcançar melhores condições para exercitarem sua autonomia e liberdade! Com alguma freqüência, esse fato é reconhecido durante o processo de desligamento de alguns beneficiários. Para esses cidadãos, a tutela protetiva exercida pelo Programa caracterizou-se como um processo emancipatório em relação à tutela violenta que, antes, era exercida pelos indivíduos ou organizações criminosas que ameaçavam a integridade física da Testemunha e, eventualmente, de sua família. A experiência vivida pelas pessoas atendidas pelo PROTEGE, permite concluir com relativa segurança que o serviço estatal de proteção exige algumas restrições da liberdade individual para, desse modo, oferecer garantias efetivas para a vigência dos Direitos Humanos na vida cotidiana de testemunhas ameaçadas pela criminalidade. Nesse dilema entre restrição de direito para a garantia do direito, vivem as Testemunhas, a Equipe Técnica e o próprio serviço público que o Programa realiza.

4. METODOLOGIA DA PESQUISAA pesquisa sobre a criminalidade sofre limitações que, na experiência

do sociólogo norte-americano Howard Becker, são a impossibilidade de conseguir autorização para ingressar no grupo e estudá-lo; a falta de controle sobre as respostas enganadoras; os problemas éticos decorrentes do retorno da pesquisa para avaliação das pessoas pesquisadas; a questão do poder na instituição pesquisada (1994, p. 34-37). Se como diz Becker é difícil estudar a vida dos “praticantes de crimes e delitos” (p. 43-46), também é complexa a pesquisa sobre suas vítimas. Em síntese, Becker propõe que essas pesquisas façam uso do bom senso e da prudência para produzir o conhecimento necessário. Essas qualidades da pesquisa parecem adequadas para o estudo de programas de prevenção da criminalidade inspirados nos Direitos Humanos, tal como é o PROTEGE.

A metodologia de pesquisa inspirou-se na própria prática institucional do PROTEGE que foi desenvolvida pela Equipe Técnica, Conselho Deliberativo e as Testemunhas beneficiárias: o diálogo acerca dos conflitos. Os primeiros cinco anos de atuação do PROTEGE estabeleceram procedimentos administrativos e técnico-científicos deste inusitado serviço público prestado sob estrito sigilo e restrito controle social. O programa atende casos que exigem proteção policial e social com o que se pode chamar de tecnologia humanística. Cada caso representa

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um desafio teórico e prático interdisciplinar para a Equipe e para o Conselho. As rotinas estabelecidas individualmente para o caso seguem, o quanto possível, as rotinas impessoais da gestão pública. A contradição entre essas rotinas se dá em função do imperativo ético e técnico de preservar a vida ameaçada sob todos os meios lícitos possíveis. Essa opção ética e técnica relativiza tanto as rotinas pessoais do caso, quanto as rotinas impessoais do serviço público. É difícil manter a contradição entre o absoluto sigilo e absoluta publicidade, mas, dialeticamente, esta tensão forja a concepção gaúcha da política pública brasileira de proteção a testemunhas ameaçadas.

O método de trabalho da Equipe Técnica e do Conselho Deliberativo do PROTEGE baseia-se na permanente exposição dos conflitos que surgem na execução do trabalho técnico entre os diversos profissionais, os gestores e os beneficiários. A função “ideal” da Equipe seria propor a maior diversidade possível de intervenções técnicas para cada caso. Essa diversidade, a partir de cada caso particular, é considerada nos planejamentos e decisões negociadas pela Equipe Técnica. Além disso, cada caso é analisado e decidido pelo Conselho Deliberativo, em diálogo com a Equipe Técnica e, algumas vezes, com a testemunha e/ou com o conselheiro relator. No momento do ingresso da testemunha, designa-se por ordem numérica pré-estabelecida, um conselheiro como relator do caso. Ele é um integrante do Conselho Deliberativo e sua função é acompanhar pessoalmente a permanência da testemunha no Programa do ingresso à emancipação, apóia e monitora as operações que a Equipe Técnica realiza com a Testemunha. Pode, inclusive, entrevistar-se – garantido o sigilos com a Testemunha. Quando solicitado ou considerar necessário, relata o caso no Conselho. A análise da indicação de exclusão da testemunha do Programa, inicia quando o relator propõe o indicativo de exclusão do Programa. Nesse caso, o Conselho elege outro conselheiro para formular a defesa pela permanência da testemunha, produzindo-se o contraditório para fundamentar a decisão do Conselho, garantindo-se deste modo peculiar, o direito à ampla defesa para a Testemunha, nessa situação peculiar.

A dinâmica institucional do PROTEGE evita um problema metodológico apontado por BECKER. Ele afirma que pesquisas apoiadas na observação participante, permitem que se exerça certa “predileção substancial dos cientistas sociais por teorias de consenso e não de conflito” (1994, p. 37). A prática do Programa prioriza a identificação de conflitos na operação do serviço público de proteção a testemunhas em detrimento da obtenção de consensos artificiais. A observação do processo de solução dos conflitos desenvolvidos entre operadores, gestores e beneficiários estabelece, então, de forma mais ou menos consensual, algumas resoluções e decisões sem descartar aquelas que foram desconsideradas durante o processo decisório. Por esta razão, a Equipe Técnica elabora pareceres técnicos disciplinares (social, segurança, jurídico, psicológico, operador de

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rede) que são discutidos pela Equipe para as decisões executivas. Para os casos encaminhados ao Conselho Deliberativo, esses pareceres disciplinares são analisados e cotejados em relação à ameaça, ao estágio do projeto de vida e à própria capacidade operacional da Equipe Técnica para atendê-lo. O Conselho tenta estabelecer, desse modo, uma síntese interdisciplinar que fundamente sua deliberação sobre o caso. Diferentemente do PROTEGE, a maioria das Equipes Técnicas dos PROVITAs elabora um único Parecer Técnico Interdisciplinar entre as áreas. No caso do PROTEGE, frequentemente acontece que existam contradições entre os diferentes Pareceres. Por exemplo, uma Testemunha, por decisão do Conselho Deliberativo, foi estimulada a trabalhar em uma determinada empresa recomendada fortemente pela área social do PROTEGE e não recomendada pelo Parecer da Segurança. Diante da clara contradição, o Conselho optou pela solução social e aceitou a proposta de trabalho. A Testemunha foi informada dos pareceres contraditórios mas, premida pela vontade de trabalhar, decidiu aceitar o emprego, mas começou a trabalhar com extrema cautela e suspeita, a ponto de conseguir perceber que fora identificada. Imediatamente pediu ajuda e foi resgatada.

A pesquisa foi concebida para servir de subsídio à elaboração do “Diagnóstico Institucional Participativo” do PROTEGE. Desse modo, apresenta alguns resultados quantitativos no esforço de compreender como o Programa enfrenta os tempos e as rotinas institucionais, diante dos tempos e das rotinas das Testemunhas e da criminalidade. Nesse esforço, a pesquisa foi beneficiada pela disponibilidade e vontade de aprender da Equipe Técnica e dos Conselheiros. A base empírica construiu-se pela consulta controlada ao Banco de Dados, por conversas informais, diálogo com alguns grupos de profissionais e conselheiros; leitura da documentação de casos indicados pela Equipe, de excertos de atas liberados pelo Conselho Deliberativo, de alguns laudos técnicos, de atas de seminários de formação nos quais Conselho Deliberativo e Equipe Técnica sistematizam casos e procedimentos.

5. PARA ALÉM DA DENÚNCIA DE AUSÊNCIA DE ESTADONas teorias sobre a violência parece consensual a tese da ausência do

Estado na defesa e garantia dos Direitos Humanos. Na pesquisa sobre o PROTEGE, ao contrário, se analisou um programa estatal que está descobrindo novas possibilidades de superação dessa ausência a partir do próprio Estado ausente! A metodologia assumiu a tese epistemológica de que o PROTEGE é uma agência estatal voltada à superação racional da violência pela presença do Estado reconhecendo sua simultânea ausência na preservação das garantias da cidadania ameaçada pela sua colaboração que, por sua vez, viabilizada uma maior presença do Estado democrático de direito na repressão do crime e das organizações criminosas. Com esse pressuposto, o objetivo do Programa é minorar os níveis de violência através da articulação política e técnica

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entre, de um lado, o monopólio estatal do uso da força pela polícia com, de outro, a ação da sociedade civil que é vítima da violação e beneficiária da garantia dos Direitos Humanos. Definiu-se o objeto da pesquisa no dramático contexto político no qual o Estado disputa pela preservação da vida das testemunhas contra sua ameaça imposta e tentada pelas organizações criminosas. A metodologia, nesse caso, não é isenta, compromete-se com o Programa de proteção a testemunhas, objeto da pesquisa. A neutralidade é objetivamente impossível nesse caso.

Para o pesquisador Sérgio Adorno são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sistema de justiça criminal, no Brasil – agências policiais, ministério público, tribunais de Justiça e sistema penitenciário –, em conter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado Democrático de Direito. O crime cresceu e mudou de qualidade; porém, o sistema de Justiça permaneceu operando como há três ou quatro décadas. Em outras palavras, aumentou sobremodo o fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de impor lei e ordem (2002, p. 50).

A imposição da lei e da ordem deve ser interpretada a partir do ideal moderno de “ordem sob a lei”, de tipo weberiano, onde a polícia representa tanto

[...] a proteção dos direitos e liberdades individuais frente às ameaças a eles representadas pela força e poder das instituições do Estado (o âmbito do controle do uso dos meios de violência na produção policial de ordem) e a proteção da vida e da propriedade dos cidadãos ameaçadas pela violência (o âmbito da eficiência no controle social) [...] (PAIXÃO; BEATO Fº, p. 237-238).

A denúncia da ausência do Estado é necessária, mas insuficiente para instituir meios legais e serviços públicos mais razoáveis para impor a lei e a ordem, respectivamente, democrática e republicana. Tal construção deve ser capaz de articular a cidadania e o Estado na melhor defesa e garantia possíveis para a vigência dos Direitos Humanos diante dos atentados da criminalidade. Para tanto, há de se buscar pelas “causas ligadas à etiologia do crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social)” como têm sido propostos por parte da bibliografia sobre a violência. Essa busca etiológica acaba ampliando “a originária tipificação lombrosiana (criminoso nato) da criminalidade” de modo que o crime seja compreendido não como “decorrência do livre arbítrio mas resultado previsível determinado por esta tríplice ordem de fatores” (ANDRADE, 2003, p. 36). Desse modo, o determinismo não ajuda na crítica aos Programas de Proteção, criados a partir de 1999. Estes programas trabalham a partir da inteligência policial e judiciária, permitindo que as testemunhas exerçam o direito cívico de colaborar com a Justiça. É, portanto, imprescindível ir além da denúncia e da identificação de causas determinísticas da violência. Parece possível medir a profundidade e a largura do fosso existente entre a atuação do Estado e a vigência dos Direitos Humanos. Parece óbvio que a diminuição desse fosso se dará pela inteligência de novas ações públicas e de novas instituições estatais

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especializadas na garantia da segurança do Estado Democrático de Direito. Para diminuir este fosso, se justificam a construção de novos instrumentos técnicos e legais para capacitar o Estado e sua cidadania na imposição da lei e da ordem. O estudo sobre a capacidade reativa do Estado democrático diante da violação dos Direitos Humanos exige a “perspectiva da complexidade” (BAUMGARTEN; SANTOS, 2002, p. 26).

Nesse sentido, um programa de proteção pode ser considerado como serviço público de prevenção e repressão da violência, considerando a corrente teórica da sociologia que entende ser a criminalidade uma forma possível de racionalidade humana. Os criminosos fariam suas opções pela violência a partir de uma determinada escolha racional.

Essa perspectiva, além de considerar que os desviantes têm motivações muito semelhantes às das pessoas normais, enfatiza que a conduta criminal se guia pelas mesmas pautas de racionalidade que orientam a conduta socialmente legítima. Assim, a decisão de executar um crime dependeria da probabilidade de que este redundasse em benefício superior aos custos e riscos envolvidos, entre os quais o mais significativo seria a possibilidade de ser descoberto e enviado à prisão. (AZEVEDO, 2003, p. 23)

6. O PROTEGE COMO ÓRGÃO ESTATAL DE GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS A sistematização dos dados sobre a criminalidade é precária. Mais

precários ainda são os indicadores de avaliação das ações articuladas entre prevenção e repressão policiais. Mesmo assim, é evidente que a

crença que nos sustenta é a de que estas informações, ainda que precárias, são melhores do que informação alguma e que decisões nelas baseadas são superiores às decisões tomadas na base da “intuição” (KAHN, 1997, p. 20).

Os dados estatísticos a seguir apresentados e analisados baseiam-se nas informações coletadas entre maio de 2000 a junho de 2005 pelo próprio sistema do PROTEGE. Informações mais recentes não foram disponibilizadas por razões de segurança e manutenção do sigilo, por serem casos ainda em atendimento ou recentemente concluídos. Parece, no entanto, que são suficientes para subsidiar o debate acadêmico sobre essa recente experiência da política pública de Direitos Humanos em situações limítrofes de violação dos Direitos Humanos.

6.1 O ATENDIMENTO DO PROGRAMA: PERFIL DOS BENEFICIÁRIOSEntre 2000 e 2005, o programa atendeu 163 testemunhas, das quais 64

optaram por ingressar e 99 não aceitaram as limitações necessárias para o ingresso. Em torno de 40% das testemunhas que buscaram ingresso no Programa, de fato, consentiram e sujeitaram-se às normas e restrições de conduta para o ingresso. Qual o significado deste índice? Considerando as restrições que o programa impõe aos beneficiários conforme descritas no Termo de Anuência, o índice parece alto,

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pois a Testemunha muitas vezes precisa sair de sua moradia e comunidade habitual, deixar sua atividade profissional, deslocar familiares, abandonar seus vínculos de amizade e afetivos. Considerando a ameaça de morte que estão sofrendo, o índice parece baixo. A Equipe Técnica e o Conselho Deliberativo entendem que há necessidade de criar sistemas de registro e de análise dos casos de desistências de ingresso, mas reconhece a dificuldade de sistematizar as causas da desistência, de relacioná-las com o grau de risco, considerando também a opção das pessoas ameaçadas em utilizar os meios informais de proteção que as próprias famílias dispõem ou são capazes de estabelecer. Deve-se reconhecer que o Termo de Anuência prevê uma conduta de segurança que cerceia hábitos cotidianos dos quais algumas pessoas não desejam e, às vezes, nem conseguem abster-se. Outro problema não resolvido é determinar se, de fato, em todos os casos e sob todas as circunstâncias, essas normas de conduta são necessárias e em que intensidade se deve exigi-las. Nesses casos, parece que há necessidade de um maior acúmulo de experiência do Programa para fundamentar empiricamente essas análises. O dramático é que num programa dessa natureza, as conseqüências advindas do método de tentativa e erro são graves, fato considerado em qualquer tentativa de introduzir novas normas de conduta ou de relativizar as que estão implantadas. Ao mesmo tempo, o índice de pessoas não ingressantes no programa também acarreta determinados riscos para essas pessoas.

O ingresso no Programa, em muitos casos, exige mudança de moradia e rompimentos no convívio familiar e com a vizinhança habitual. Há casos de desistência porque a testemunha prefere correr o risco de vida para não perder o emprego. A ata de um seminário interno registrou a opinião de um integrante da Equipe Técnica sobre o processo de ingresso, comparando a técnica usada pelo PROTEGE com as técnicas desenvolvidas pela Polícia norte-americana. Refere-se ao esforço que a Equipe Técnica realiza para demonstrar ao candidato à proteção a diferença entre o risco que a pessoa corre fora do programa e as restrições que sofrerá ao nele ingressar. Esse técnico

acha necessário repensar a apresentação do programa para a testemunha, onde essa diferenciação deve ser mais clara. Entende que a visão de cenas violentas ou de corpos decepados não causa o mesmo impacto que nos EUA, pois a maioria das testemunhas é originária de ambientes onde essa violência é cotidiana e observada “ao vivo”. São pessoas que conhecem a violência e não se assustam com sua projeção em imagem. Entende que a primeira entrevista deve conquistar a testemunha pelo psicológico, pelo social e não pelo medo. Para debater a forma de ingresso da testemunha no programa, entende necessário reconhecer que o stress é sentido pelo técnico que está na ponta e não pelos conselheiros. Entende que não pode haver sobreposição da segurança sobre o social, mas uma relação dialética, equilibrada, entre o social e o policial, onde um aspecto deve fortalecer o outro. Acha que deve haver um padrão de equilíbrio necessário entre segurança e social para cada testemunha. A entrevista inicial deveria ser interdisciplinar. É o ideal,

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mas na prática não há estrutura. O PROTEGE atende quem quer contribuir para a prova. Esse é um critério. Acha que não há grande diferença entre equipe de segurança e equipe de atendimento humano. Vê necessidade de maior troca entre o CD e a equipe técnica para definir mais precisamente os limites da equipe e dos conselheiros, p. ex., quando a testemunha quer falar com o conselheiro relator do caso. Outro problema para o projeto social é o caso da bolsa-auxílio, quando o processo judiciário termina antes da conclusão do projeto de reinserção social.

A análise teórica da prática permitiu uma compreensão holística que reconhece, ao mesmo tempo, a autonomia do solicitante e a coação sob a qual se encontra. A questão é se é possível relativizar o conceito de autonomia, bem jurídico inalienável da cidadania republicana? Essa reflexão pode elucidar-se a partir da analogia com a situação limítrofe da autonomia do paciente diante de uma proposta de intervenção da medicina:

No Direito, assim como na Bioética, questionamos o quanto o paciente ou agente da pesquisa estaria ou não em situação de igualdade em relação ao profissional que o submeterá ao experimento ou à técnica, para poder realmente discutir qual a melhor técnica a ser empregada no seu caso concreto. O paciente sabe que necessita dos cuidados, ouve com atenção, confia no profissional, não dispõe, muitas vezes, do conhecimento científico e, se por acaso também dispuser de tal conhecimento, não estará fragilizado pela doença que o acomete? O profissional deve levar este fator em conta, sendo o paciente ou agente maior ou menor, capaz ou incapaz (BAÚ, 2000, p. 290).

O policial desempenha um papel crítico na inclusão, pois a decisão para ingressar ou não dependerá da capacidade desse profissional analisar o potencial do risco de vida e, ao mesmo tempo, apresentar as limitações à vida normal que o Programa precisa impor dado o modelo adotado na legislação. Qual dos dois aspectos o profissional destacará? Como, de fato, ponderará sobre a capacidade operacional de uma organização criminosa que, em tese, não é bem conhecida pela polícia? O dilema moral decorrente do exercício profissional dos policiais precisa ser considerado de modo análogo à discussão dos dilemas de outras profissões cujas decisões afetam a vida e a morte de pessoas. O atendimento inicial do PROTEGE pode ser comparado com a noção médica de consentimento informado, pelo qual, ao

obter o consentimento informado, o pesquisador ou profissional da área médica deverá prestar as informações, sem nenhum tipo de coerção, apontando os benefícios e malefícios do emprego da técnica, levando em consideração a capacidade de entendimento do paciente e seu possível estado de inferioridade e dependência técnica com relação ao profissional. As informações deverão ser prestadas de forma simples e clara, considerando a idade e o nível intelectual e cultural do agente (BAÚ, 2000, p. 293).

6.2 ALGUNS NÚMEROS DO PROTEGENos primeiros cinco anos de funcionamento, aceitaram ingressar no

PROTEGE 64 testemunhas. O número de familiares chegou a 96 pessoas. O programa

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protegeu, portanto, 160 pessoas que dele já se emanciparam por saída voluntária, saída determinada pelo processo de exclusão julgado pelo Conselho Deliberativo, conclusão do projeto de vida ou término do período legal máximo de quatro anos.

No ato do ingresso, constatou-se que doze testemunhas estavam enfermas, perfazendo quase 19% do total. Os diagnósticos indicavam as seguintes enfermidades: lesão por arma de fogo, retardo mental, depressão, dependência química e HIV, entre outros problemas de saúde. Na ocasião do ingresso dessas 64 testemunhas, 40 delas mantinham alguma forma de trabalho. Dos que trabalhavam, quase a metade exercia atividade informal. As profissões identificadas foram as de funcionário público, atividade de comércio, construção civil e atividade agrícola, atuação nas áreas da saúde e dos serviços. Das testemunhas que trabalhavam, 88% possuíam uma renda de até um salário mínimo, 3% de 1 a 2 salários, e 9% recebiam de 3 a 4 salários. O perfil social da maioria das pessoas atendidas, portanto, é o mesmo das classes populares mais pobres. A maioria das Testemunhas pertence às categorias sociais que podem ser classificadas como excluídas. Para muitas testemunhas, o PROTEGE foi o primeiro programa estatal que lhes proporcionou um serviço público qualificado. É freqüente que nas entrevistas de saída do programa mesmo motivadas por exclusão, as pessoas agradeçam às pessoas da Equipe Técnica pelo atendimento que receberam. Sentem-se gratas, apesar das graves restrições que o Programa impõe aos beneficiários. Indicadores econômicos tomados na entrada e na saída do programa podem “medir” a eficácia da inserção/reinserção social, com esse objetivo o Banco de dados dispõe destas informações: fotos da moradia de origem e da nova moradia quando da saída; comparativo da escolaridade da família, do nível salarial, dos tratamentos de saúde, dos diagnósticos sócio-psicológicos sobre as relações afetivas, etc. Esses dados não puderam ser disponibilizados por risco na segurança, mas estão disponíveis para as constantes avaliações realizadas pela Equipe Técnica e pelo Conselho Deliberativo.

Quanto à origem geográfica dos demandantes pelo serviço de proteção a testemunhas: 3% de outros estados, 55% da Região Metropolitana de Porto Alegre e 42% do interior do Estado. Quanto ao gênero: 54% homens e 46% mulheres.

O perfil social de pobreza da maioria das testemunhas protegidas aparenta justificar o senso comum da periculosidade dos pobres. Como afirma Edison Miguel da Silva Júnior, procurador de Justiça em Goiás, “o discurso da desigualdade social ganhou a opinião pública confundindo pobreza com crime” (s.d., p. 1). A discussão dos casos entre a Equipe Técnica, o Conselho Deliberativo e as próprias testemunhas, permitiu verificar tanto a superação da violência sem a superação da pobreza, quanto a superação da pobreza sem a superação da violência. Não se pode aceitar, por razões práticas, teses mecanicistas sobre a violência pois é necessário superar as teses lombrosianas:

Daí a tese fundamental de que ser criminoso constitui uma propriedade

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da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos normais. Ele apresenta estigmas determinantes da criminalidade.

Estabelece-se desta forma uma divisão aparentemente “científica” entre o (sub)mundo da criminalidade, equiparada à marginalidade e composta por uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o “mal”), e o mundo, decente, da normalidade, representado pela maioria da sociedade (o “bem”).

A violência é, dessa forma, identificada com a violência individual (de uma minoria) a qual se encontra, por sua vez, no centro do conceito dogmático de crime, imunizando a relação entre a criminalidade e a violência institucional e estrutural (ANDRADE, 2003, p. 37).

Todas as Tabelas abaixo têm como fonte o Banco de Dados do PROTEGE, organizado pelo setor de inteligência da Célula de Segurança que integra a Equipe Técnica. A Tabela 1 apresenta a distribuição percentual dos beneficiários do Programa por faixa etária.

Tabela 1: Faixa etária

Faixa etária %11 a 20 anos 7

21 a 30 anos 42

31 a 40 anos 20

41 a 50 anos 18

51 a 60 anos 11

mais de 60 2

Quase 2/3 das testemunhas possuem entre 21 e 40 anos sendo, portanto, razoável haver dificuldades na sua inserção no mundo do trabalho, exigência mínima de qualquer inclusão social bem sucedida para a população adulta. É o que se depreende da fala de um servidor descrita na ata de um seminário interno:

Há necessidade de pensar no preparo da testemunha. Há diferentes graus de ameaça. Há também que diferenciar as próprias testemunhas porque muitas delas banalizam/sublimam a violência. Há uma maior demanda pelo social no Programa. Vê necessidade de haver conexão entre o processo jurídico e o de reinserção (em 50% dos casos). As testemunhas não vão mais depor, o risco está diminuído, a questão psicológica resolvida, mas há problema no social e, assim, a testemunha permanece no programa. Sugere investir pesado na qualificação profissional da testemunha, com elaboração de projetos de formação e planejamento.

A Tabela 2 indica a composição étnica das testemunhas:

Tabela 2: Etnia

Etnia %Branco 70

Negro 11

Pardo 11

Sarará 8

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A Tabela 3 indica o estado civil na ocasião do ingresso no Programa:

Tabela 3: Estado Civil

Estado Civil %Solteiro 43

União Estável 21

Casado 20

Divorciado 8

Separado 8

Esses dados sinalizam para a existência de maior dificuldade de o Programa acolher pessoas em união estável. A maioria das testemunhas não possuía família. Parece haver contradição no processo de acolhida, pois é plausível supor que uma testemunha com família sofra um grau de ameaça maior e, por isso, teria mais disposição para proteger-se a si e a seus familiares. A fala de um membro da Equipe Técnica, conforme ata de um seminário interno, sinaliza para essa interpretação. O técnico avalia os procedimentos da entrevista inicial:

A primeira entrevista deve possibilitar tempo para a testemunha poder decidir sobre seu ingresso. Deve ter acompanhamento técnico para ter a tranqüilidade possível. Deve ser um técnico preparado à semelhança, por exemplo, do negociador da polícia. O nível de risco é definido pela equipe de segurança a partir de informações obtidas pela polícia, pelo judiciário, pelo MP, pela própria testemunha e/ou vítima e pelo próprio PROTEGE. A quem cabe definir o nível de risco? Esta é uma das questões teóricas mais importantes para ser elaborada. É preciso desenvolver um referencial para essa determinação.

A Tabela 4 apresenta os dados de escolaridade. Essa informação evidencia a dificuldade para a elaboração do “projeto de vida”. Embora todos os níveis da educação estejam representados entre as testemunhas, há um claro predomínio do Ensino Fundamental incompleto , apesar de essa etapa da escolarização ser obrigatória para a população brasileira (art. 4º, inciso I, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).

Tabela 4: Escolaridade

Escolaridade %Analfabeto 2

Pré-escola 13

Fundamental Incompleto 48

Fundamental Completo 7

Médio Incompleto 15

Médio Completo 11

Superior Completo 4

Essa dificuldade é analisada por estes depoimentos de dois técnicos da área social, conforme a já referida ata:

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Destaca que a reinserção social trabalha com projetos de vida e que em apenas dois anos tal possibilidade é muito remota. É pouco tempo.

A reinserção é importante, mas há limites. É possível que a equipe ofereça os meios, mas a testemunha é que pode ou não aproveitá-los. Por isso, são muito importantes os primeiros laudos técnicos para definir os limites pessoais, as deficiências e as potencialidades da testemunha.

A Tabela 5 distribui os ingressantes por casos federais e estaduais

Tabela 5: Distribuição dos ingressos

CASOS 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Federais 0 0 0 0 10 -

Estaduais 21 20 5 40 33 31

Os casos federais aparecem apenas em 2004 porque o sistema federal de proteção envia seus casos mediante convênio com os respectivos sistemas estaduais, e segundo as suas necessidades. Note-se que a especificação de ingresso é bastante distinta do número anual de pessoas protegidas. A variação no tempo de permanência no Programa pode variar de alguns dias, semanas e de até quatro anos.

A Tabela 6 indica a origem das solicitações de ingresso no Programa:

Tabela 6: Origem da demanda

Órgão Demandante %

Ministério Público 60

Polícia Civil 29

Poder Judiciário 5

Brigada Militar 3

GAJOP 3

Por outro lado, a Tabela 7 indica a classificação dos motivos para o desligamento:

Tabela 7: Motivos para o desligamento

Motivo %

Ordem Judicial 4

Suicídio 1

Decisão do Conselho Deliberativo 20

O desligamento por exclusão que tanto preocupa a Equipe Técnica e o Conselho Deliberativo representa apenas 20% dos casos de desligamentos. É preciso analisar a predominância de desligamentos voluntários. Esse tipo de desligamento evidenciaria algum eventual estímulo da Equipe Técnica ou de técnicos individuais para que aconteça esse tipo de saída? Indicaria a redução do risco de vida? Representaria emancipação do beneficiário pela conclusão de seu “projeto de vida”? Conforme afirmou um Conselheiro em Seminário Interno, seria

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decorrência da “sugestão” de “incluir excluindo, ou seja, no processo de acolhida já se deve iniciar o projeto de exclusão”?

A Tabela 8 indica o tempo de permanência das testemunhas no Programa:

Tabela 8: Permanência no Programa

Permanência no Programa %Até 1 ano 69

1 a 2 anos 22

2 a 3 anos 2

3 a 4 anos 5

Mais de 4 anos 2

De modo coerente com a Tabela 7, o tempo de permanência de 2/3 dos beneficiários é de menos de um ano. Esse fato corrobora as questões levantadas anteriormente, ou significa, que a permanência no Programa, com as respectivas restrições, impediria uma permanência por prazos igual ou superior a dois anos?

A Tabela 9 indica uma espécie de “contrapartida” das testemunhas em favor da sociedade que financia sua permanência no Programa. A proteção garantiu que as testemunhas subsidiassem as seguintes denúncias:

Tabela 9: Crimes denunciados

Crimes denunciados NºContra a pessoa 51

Contra o patrimônio 32

Tráfico de entorpecentes 23

Paz pública (quadrilha ou bando) 19

Contra os costumes 12

Envolvendo a lei de armas 7

Contra a administra-ção pública 6

Fé pública 4

As Tabelas 10 e 11 continuam demonstrando essa “contrapartida”. Os crimes denunciados pelas Testemunhas protegidas propiciaram os seguintes:

Tabela 10: Procedimentos policiais decorrentes das ações de proteção

Procedimentos 2000 2001 2002 2003 2004 2005Inquéritos ins-talados 9 6 3 20 20 10

Inquéritos solucionados 9 5 3 14 20 8

Inquéritos em andamento - - - 6 - 2

Tabela 11: Processos judiciais decorrentes

2000 2001 2002 2003 2004 2005Processos iniciados 9 4 3 10 20 8

Processos em andamento - - - 4 13 8

Processos concluídos 8 4 3 10 7 -

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Das denúncias de crimes contra a pessoa, 66% referiam-se a homicídios, 12% à ameaça, 6% ao cárcere privado, 6% denunciaram práticas de escravidão, 6% de tortura e 4% de lesões corporais. A maioria dos casos denunciados (18 processos) envolvia de um a dois acusados. Em 13 processos, envolviam-se de 3 a 4 acusados. Em seis, o número de acusados variava de 5 a 6. Houve cinco testemunhas contra crimes cometidos por grupos de 7 a 8 pessoas; outras 5 testemunhas denunciaram crimes praticados por mais de 9 acusados. Apesar do número de processos que envolviam o depoimento das testemunhas, vale lembrar a advertência de um técnico, conforme registra a ata de um seminário interno:

Há discussão sobre a relação entre a permanência no programa e a vontade ou não da testemunha depor. Entende-se por unanimidade que a testemunha deve ser levada e apresentar-se para depor quando e onde acertado com o Poder Judiciário, mas o PROTEGE não estimula ou desestimula o testemunho em si mesmo. Limita-se a apresentar a testemunha.

A Tabela 12 sinaliza para o volume de trabalho enfrentado pela célula de segurança formada por policiais. A Tabela evidencia a dinâmica das ações do PROTEGE. O trabalho parece intenso, considerando que a célula de segurança atua em qualquer lugar do país e mantém plantão ininterrupto para eventuais resgates e ações de pronta resposta. As operações computadas como “monitoramentos diversos” incluem a atuação de alguns ou todos os servidores civis da Equipe Técnica.

Tabela 12: Dados gerais sobre o desempenho da célula de segurança

Atividade 2003 2004 Junho 2005Operações 20 21 10

Audiências 20 25 17

Desligamentos Sem dados 15 13

Inclusões Sem dados 11 10

Relocações 13 26 17

Monitoramentos diversos 244 525 171 (até maio)

Km rodados 177.878 319.992 104.185

7. CONCLUSÕES PROVISÓRIASA pesquisa pareceu ter consolidado a convicção da viabilidade e eficácia

de um programa estatal sob relativo controle público destinado à superação da violência pelo combate à “lei do silêncio”. O controle é relativo por razões práticas: a contradição entre o sigilo necessário à proteção da vida ameaçada e a publicidade inerente à intervenção do estado na vida privada de pessoas e famílias. Persistem sem solução diversos conflitos de natureza financeiro-orçamentária inerentes à gestão pública, que se superaram ou permanecem conforme o ritmo da gestão pública, ora acelerado pelos processos eleitorais e partidários, ora freado pelas imposições burocráticas da máquina estatal, considerando a legitimidade dessa aceleração e desaceleração. São exemplos desses impasses gerenciais a

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impossibilidade de promover uma licitação pública para contratar serviços de alimentação, saúde, transporte, lazer, hospedagem, etc. a serem oferecidos às testemunhas protegidas. Os controles administrativo-financeiros são rotineiros e necessários ao funcionamento estatal republicano, mas na ação do PROTEGE, em quase todos os casos, tais controles facilitariam a localização das testemunhas. Essa contradição não tem resolução simples e imediata, é preciso encontrar soluções complexas que garantam tanto o sigilo, quanto a transparência e a publicidade, sem que nenhuma dessas garantias comprometa a outra.

Outra evidência da pesquisa é a necessidade de avançar no conhecimento sobre o cotidiano vivido pela testemunha durante sua permanência no Programa e também após sua emancipação, o que já vem acontecendo naqueles poucos casos em que houve troca jurídica dos nomes da Testemunha.

Outro fator a ser ponderado nas futuras análises refere-se ao aparente alto índice de desligamentos voluntários. Parece necessário considerar a impressão de um integrante da equipe técnica acerca do difícil processo de reinserção social:

a maioria das testemunhas está envolvida com a criminalidade. Portanto, na maioria dos casos, o PROTEGE não faz reinserção, mas inserção social. O programa é o primeiro serviço público no qual a testemunha experimenta um processo civilizatório ou uma sociabilidade cidadã ou democrática. Sugestão: aprofundar o debate e a análise sobre as primeiras entrevistas. Sistematizar a experiência e estabelecer melhor a diferenciação entre assistência social e segurança.

A constatação do envolvimento de algumas testemunhas do PROTEGE com a criminalidade parece real, mas deve ser avaliada com mais objetividade. Como já sinalizado, o art. 2º da Lei Federal 9.807/1999 restringe o ingresso de testemunhas com esse perfil. Por outro lado, a experiência do PROTEGE mostra que muitas testemunhas podem trazer informações importantes porque mantiveram relações próximas com criminosos ou suas organizações. Pelo interesse público no combate ao crime organizado, no entanto, prepondera a necessidade de programas como o SPDE (Serviço de Proteção ao Depoente Especial) mantido pelo Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas que acolhe testemunhas envolvidas ou participantes destas organizações. O depoente especial, ou seja, a testemunha envolvida com o crime, certamente possui informações relevantes para a investigação e, por óbvio, não possui o perfil adequando ao serviço prestado pelo PROTEGE que depende do bom comportamento e da disposição da Testemunha em preservar-se. Pessoas que, mesmo não tendo comportamento criminal, não possuem um perfil psicológico ou personalidade compatível com as regras impostas pelo PROTEGE e PROVITAs. Em várias ocasiões, o Conselho Deliberativo e a Equipe Técnica discutiram a conveniência da criação de um SPDE estadual e de que forma estaria articulado com o PROTEGE. Esse debate não está concluído.

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Outro debate que carece de aprofundamento teórico refere-se à definição mais técnica e objetiva do que seja o perfil “incompatível”. Lima, por exemplo, informa que “no ano de 1997 mais de 1.091 pessoas ingressaram no programa italiano; destas, somente cerca de 50 não tinham nenhuma relação com o mundo do crime” (2000, s.p.). Ou seja, na experiência italiana, certamente, não haveria quantidade suficiente de testemunhas com perfil compatível com um programa de proteção formatado como o brasileiro.

Outro problema identificado é a necessidade de aperfeiçoar a rede social protetiva, compartilhando experiências pela interação das observações individuais, institucionais e coletivas, confrontando e comparando dados quantitativos com dados qualitativos sobre o atendimento realizado em cada caso. Pela intrínseca peculiaridade do Programa deve-se considerar a complexidade das relações que constituem a prática da proteção diante da multidimensionalidade do fenômeno da violência e do da vitimização.

Um desafio teórico permanente é a desconstrução de conceitos fixados que impedem a justificação de novas práticas nas políticas públicas que superem os atuais impasses cotidianos que afetam o desempenho da Equipe Técnica e do Conselho Deliberativo do PROTEGE, tal como vimos para o caso do sigilo e da publicidade, ambos necessários, imprescindíveis e contraditórios entre si. Esta é a razão pragmática dos programas de proteção desenvolverem e proporem para a sociedade política e civil, novas metodologias criativas e também instáveis, inseguras do ponto de vista administrativo em função da segurança necessária à preservação da vida das testemunhas ameaçadas. O atendimento dessa demanda exige suportar a angústia de estabelecer procedimentos técnicos que favoreçam mais a discussão, a descoberta conjunta, interdisciplinar, do que a estabilidade aparente do consenso artificial. Nesse sentido os profissionais e o seu conhecimento técnico específico também necessitam de maior autonomia e liberdade. Assim, as noções de autonomia e liberdade ganham um sentido dinâmico, uma vez que são remetidas ao processo de produção constante de novos modos de existência e de novas práticas sociais, garantidas pela perenidade da política pública executada por ente estatal sob relativo controle social. É nesse sentido que a intervenção do Conselho Deliberativo e da Equipe Técnica, preservadas as respectivas autonomias e liberdades, se articula entre si de forma, às vezes, contraditória, mas sempre voltada para a oferta de um serviço público qualificado, mesmo diante do atentado mais radical que a cidadania democrática e o Estado de direito podem sofrer, qual seja, a ameaça de morte que sustenta a arbitrariedade e a violência da “lei do silêncio”.

Por outro lado, parece também que já estão disponíveis indicadores objetivos para medir a eficácia da proteção promovida pelo PROTEGE, tendo como base teórica as próprias indefinições jurídicas, sociais, pedagógicas e institucionais

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inerentes à recente consolidação do Programa como política de Estado, sob gestão de diferentes mandatários políticos. De 2000 a 2008, o PROTEGE passou por três sucessões no Governo do Estado e por seis titulares da Secretaria de Segurança Pública, mantendo suas características programáticas. Essas transições políticas sempre produziram instabilidade funcional na Equipe Técnica sem, no entanto, afetar de forma significativa a qualidade do serviço prestado aos beneficiários. O fato de a composição do Conselho Deliberativo ser definida pelo Decreto Estadual nº 40.027/2000, permite que o Conselho tenha legitimidade política para negociar com cada novo gestor da Segurança Pública, a conveniência de manter ou substituir cada integrante da Equipe Técnica e dos representantes governamentais no Conselho Deliberativo, preservando-se assim uma relativa autonomia funcional de cargos públicos subordinados ao mandato político. Essas negociações permitiram manter a estabilidade institucional do Programa durante as necessárias transições político-partidárias provocadas pelas decisões eleitorais. Além das garantias legais, essas negociações políticas entre os mandatários eleitos e o Conselho Deliberativo estão consolidando o PROTEGE como programa estatal que, democraticamente, é afetado pelas diferentes formas de gestão político-partidárias sem, no entanto, sofrer solução de continuidade na prestação do serviço de proteção, aliás, como é praxe no regime republicano-democrático.

A construção do serviço público prestado pelo PROTEGE é complexa porque sua ação não é determinada pelos limites clássicos da iniciativa estatal e nem pela livre iniciativa das ações da sociedade civil. A noção de rede protetiva pressupõe a cooperação entre estado e cidadania, entidades estatais e civis sem que haja a preponderância de uma sobre a outra, preservando-se em cada uma delas suas características específicas sob o único critério moral da preservação da vida ameaçada pela criminalidade. A implantação do PROTEGE talvez tenha permitido elaborar uma das concepções políticas previstas pelo programa nacional, segundo a qual, são necessários “instrumentos e mecanismos, que se dão em duas esferas conexas, quais sejam, a esfera de execução, que constitui o campo de atuação dos órgãos executores, e a esfera política, de competência e atuação do Conselho Deliberativo” (BISCAIA, 2002).

A pesquisa demonstrou a utilidade do Banco de Dados e da permanente observação crítica da prestação do serviço por seus executores, gestores e beneficiários. Essas práticas integram a institucionalidade do PROTEGE. Esse funcionamento dialógico permite que o Programa se especialize na combinação entre o desempenho técnico e profissional dos servidores públicos-policiais e civis - com a dedicação apaixonada dos militantes pelos Direitos Humanos. Assim, combinam-se as vantagens do dever regulamentado do servidor público com as vantagens da maior liberdade dos militantes voluntários do Programa e, por outro lado, atenuam-se as desvantagens da impessoalidade na ação do servidor com a dedicação pessoal do servidos voluntário. A potencialização de vantagens associada

O PROTEGE | 99

à redução das desvantagens, aponta para uma das dinâmicas mais promissoras da ação protetiva prestada pelos agentes estatais.

Os Direitos Humanos estão em constante processo de construção e reconstrução e caracterizam a cosmovisão da segurança pública no Estado Democrático de Direito. Tais direitos justificam, caso a caso, as constantes limitações de direitos na vida cotidiana das testemunhas protegidas. Mais do que uma listagem de direitos, para os fins do Programa, os Direitos Humanos são uma declaração de confiança na dignidade humana capaz de superar os graves atentados criminosos contra a vida da testemunha e da democracia.

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Da Escola de Formação à Prática Profissional: um estudo comparativo sobre a formação de praças e oficiais da PMERJ | 101

Da Escola de Formação à Prática Profissional: um estudo comparativo sobre a formação de praças e oficiais da PMERJ

Haydée Caruso1

Luciane Patrício2

Nalayne Mendonça Pinto3

INTRODUÇÃOEste artigo é resultado da pesquisa intitulada Estudo exploratório sobre

a produção e os processos de transmissão e aprendizagem dos conhecimentos práticos construídos pelos Policiais Militares do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), realizada no período de maio a novembro de 2005, no âmbito do Concurso de Dotações para Pesquisas Aplicadas em Formação e Valorização Profissional, organizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP/MJ) em parceria com a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)4.

A pesquisa teve como objetivo compreender a dinâmica de produção, transmissão e aprendizagem dos conhecimentos construídos e acumulados pelos policiais militares no espaço de suas escolas de formação e no cotidiano de seu trabalho5.

Para dar início ao trabalho foi realizado um levantamento bibliográfico sobre formação policial no Brasil, englobando: a) a produção acadêmica das universidades e institutos de pesquisa; b) a produção das escolas de ensino superior da PMERJ; c) levantamento das grades curriculares das escolas de soldados e oficiais, contendo a relação de disciplinas e seu conteúdo; d) documentos técnicos específicos da instituição. Foi feita análise deste material e tecidas breves considerações sobre o acervo bibliográfico recolhido, com o objetivo de tomar conhecimento de como, nos últimos anos, o debate acadêmico vinha discutindo o tema.

1 Doutora em Antropologia pela UFF; Coordenadora da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública da SE-NASP/ MJ; Professora da Universidade Católica de Brasília.

2 Doutoranda em Antropologia pela UFF; Coordenadora Geral de Pesquisa e Análise da Informação da SENASP/MJ; Pro-fessora da Universidade Católica de Brasília.

3 Doutora em Sociologia pela UFRJ; Professora Adjunta do DLCS da UFRRJ; Coordenadora do Núcleo de Análises em Políticas Públicas da UFRRJ.

4 Para ter acesso ao Relatório Final da pesquisa consultar: www.mj.gov.br/senasp. 5 A fim de identificar e analisar os instrumentos de formação e transmissão de conhecimentos práticos entre os Policiais

Militares do Rio de Janeiro pesquisou-se os principais manuais, apostilas, diretrizes e regulamentos, planos de matérias, ementas, de modo a compreender como são construídos e utilizados tais expedientes, tendo como método utilizado para tal a pesquisa exploratória. Para compreender a dinâmica do processo de formação assim como a construção dos conhecimentos práticos entre os policiais militares e as visões de mundo acerca do conhecimento prático aprendido, acumulado e transmitido no espaço das escolas de formação e no espaço das ruas fez-se necessário a realização de trabalho de campo, utilizando a técnica da observação participante, 19 entrevistas individuais semi-estruturadas e 06 grupos focais.

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Em seguida o trabalho destinou-se a descrever o Sistema de Ensino da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com especial atenção às escolas de formação de praças e oficiais6. Foram analisadas as grades curriculares e o processo de ensino-aprendizagem no Curso de Formação de Soldados (CFSD) e no Curso de Formação de Oficiais (CFO), em perspectiva comparada.

Por fim, a pesquisa analisou os mecanismos de transmissão e atualização dos conhecimentos e a construção da prática policial, assim como o processo de avaliação do ensino e da aprendizagem entre praças e oficiais, tanto nas escolas de formação como na sua trajetória profissional. Estas questões serão objeto de reflexão deste paper. A partir dessa abordagem, serão realizadas algumas considerações importantes acerca dos dilemas e questões para o desenvolvimento da formação policial militar, como, por exemplo, a relação entre a grande demanda operacional “polícia na rua” e a necessidade de qualificação profissional.

Este artigo tem como proposta principal apresentar resultados mais significativos da pesquisa anteriormente divulgada através do relatório final entregue a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Dessa forma, o texto a seguir traduz uma descrição do campo realizado e das observações coletadas com vista a contribuir para o debate acerca da formação policial no Brasil7.

PROCESSOS DE TRANSMISSÃO, ATUALIZAÇÃO E APRENDIZAGEM DOS CONHECIMENTOS NA PMERJ

A análise do processo de aprendizagem e transmissão dos conhecimentos práticos entre os policiais militares, sejam praças ou oficiais, foi um dos eixos fundamentais estudados nessa pesquisa.

Há no Brasil, como foi possível constatar no levantamento bibliográfico, uma produção acadêmica relativamente recente sobre formação policial, entretanto, pouco acúmulo existe sobre os processos de construção dos conhecimentos práticos entre os policiais, sobretudo, buscando compreender os mecanismos de atualização e as estratégias de transmissão e assimilação de novos conhecimentos.

Neste sentido, o desafio colocado estava em mapear os mecanismos formais de atualização, disponibilizado pela PMERJ, bem como, através da análise dos discursos dos atores envolvidos, identificar quais eram os caminhos informais que estes buscavam para promover seu aprimoramento profissional.

Ao falar de processo de ensino e aprendizagem ainda cabe lembrar que no interior de instituições militares, como é o caso da PMERJ, tem-se definido, 6 O acesso ao quadro de policiais da PMERJ se dá por duas entradas: ou faz-se um concurso para ingressar como soldado (praças)

ou o candidato submetese ao exame de vestibular para ingressar como oficial. A unidade de ensino responsável pela formação dos soldados chama-se Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e a duração média do curso de formação de soldados é de nove meses. Já a unidade de ensino responsável pela formação dos oficiais chama-se Academia de Polícia Militar D. João VI (APM) e a duração do curso de formação de oficiais é de três anos.

7 Para um debate teórico metodológico sobre o tema ver os trabalhos de CARUSO (2004), MUNIZ (1999); PONCIONI (2004); KANT de LIMA (2003); ARAUJO (2003) MIRANDA, KANT de LIMA e MISSE (2000); NUMMER (2001).

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previamente, que todos os procedimentos devem estar normatizados, através de seus manuais, regimentos e regulamentos; entretanto, ao longo da pesquisa foi possível perceber que há muito tempo não há uma sistematização dos conhecimentos profissionais de polícia que seja acessível e disponível a todos.

Outro aspecto a ser considerado refere-se ao descompasso, em muitos casos, entre a estrutura formal e o discurso dos oficiais, praças e demais integrantes da área de ensino sobre como se aprimora o chamado “fazer policial”, isto é, a prática profissional. É recorrente na fala dos policiais de que “na prática (policial) é outra coisa”; discurso que reforça a dicotomia entre o saber formal, adquirido nas escolas e a prática policial; ou seja, entre um saber que é transmitido coletivamente no espaço da escola e a lógica individualizada que pressupõe que cada um deve correr atrás do “seu” saber de polícia.

Logo, ao pensar o processo de formação dos profissionais de polícia, especialmente a Polícia Militar, um olhar atento sobre as diferentes fases do processo formativo, considerando, sobretudo, o que não está formalmente e explicitamente estabelecido no currículo (comumente chamado de currículo oculto) mostra-se extremamente importante. Neste caso, é necessário buscar compreender em que medida há dissonância ou consonância entre o saber formal e o saber prático e quais são as implicações destas questões na atuação legal e legítima do exercício da autoridade policial.

Diante deste enfoque analítico, a pesquisa buscou dar conta dos seguintes aspectos: a) Como são estruturados os processos de formação continuada; b) Quais são os mecanismos de atualização dos conhecimentos disponíveis; c) Como os atores policiais (praças e oficiais) dizem construir o chamado “saber prático”.

O DESAFIO DA FORMAÇÃO CONTINUADA

“Quem trabalha em educação já tem de cor na mente um ditado que diz que a educação é um processo contínuo e permanente, coisa que vem desafiando a corporação adotar integralmente esse tipo de orientação, porque, não raro, a Polícia Militar forma e depois não submete este homem a treinamentos seqüenciais de curta duração”. (grifo nosso) (Coronel PM, 32 anos na PMERJ).

Na estrutura policial militar de ensino, estão previstos cursos regulares que se constituem como pré-requisitos para ascensão na carreira policial, seja no ciclo de praças como no de oficiais8.

Durante o intervalo de tempo para a realização de um curso regular, pré-requisito para ascensão, é possível realizar cursos complementares à atualização dos 8 No caso das praças, após a realização do Curso de Formação de Soldados, os cursos regulares para ascensão profissional

são: Curso de Formação de Cabos, Curso de Formação de Sargentos e Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos. Já para os oficiais, após a realização do Curso de Formação de Oficiais, os cursos previstos para ascensão são: Curso de Aperfei-çoamento de Oficiais e Curso Superior de Polícia.

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conhecimentos. Tradicionalmente, a PM denomina tais atividades complementares como “instruções de manutenção”, expressão recorrente no mundo militar.

Ao ocorrer qualquer mudança no procedimento operacional, a PMERJ produz as novas diretrizes, numa estrutura conhecida como “Nota de instrução” que é publicado integralmente no Boletim Interno da Polícia Militar – (BOL PM) para que, pelo menos em tese, toda a PM tenha acesso.

Oficialmente é a partir desta publicação que cada unidade deve promover a divulgação dos novos procedimentos para os policiais; realizando, assim, as “instruções de manutenção”.

“Isso aqui, boletim da PM, que é ostensivo, tem circulação restrita, soldado não vê isso.” (Coronel PM (2), integrante da Diretoria de Ensino e Instrução)

Tendo em vista que os soldados correspondem a 49,8%9 do efetivo da instituição, o acesso restrito ao principal documento formal se configura num problema importante para a atualização dos procedimentos operacionais, como será descrito a seguir.

“A polícia ela tem diversos meios de mudar os procedimentos, não é? Mas é através do boletim da PM e o mais normal é se estabelecer, se confeccionar, notas de instrução, que a gente chama. Então, se, por exemplo, tem procedimento com relação a policiamento de praia ‘Vamos reprimir agora raquete de frescobol”. Aí como é que você vai agir em relação a raquete de frescobol? Aí vem publicado no boletim da PM “A raquete de frescobol pode ferir as pessoas”. (Coronel PM, integrante do CFAP).

As atualizações, intituladas “notas de instrução”, carregam em si o esforço da adequação da dinâmica real aos procedimentos policiais; porém, existem alguns problemas relacionados a este esforço que necessitam ser explicitados, a fim de serem melhor compreendidos.

Ao se recorrer a um passado recente tem-se a constatação que na década de 80 a PMERJ promoveu um amplo investimento de produção e sistematização do conhecimento de polícia. Ao longo desta década, e no início da década de 90, foram produzidos diversos manuais que visavam não só sistematizar o conhecimento necessário ao exercício da atuação policial, como também padronizar os procedimentos profissionais, à luz do marco constitucional vigente. Tal esforço foi promovido pelo Cel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que se transformou em importante referência tanto para a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro como para as Polícias Militares dos demais estados do Brasil.

Cabe destacar, a fim de ilustrar a situação atualmente vivida, que o Manual Básico do Policial Militar, que deveria se configurar como o principal guia para a ação policial nas ruas, data de 1987. Desde então, as atualizações são feitas de maneira isolada, através do expediente da “nota de instrução”, com divulgação limitada, como mencionado acima, através da sua publicação em boletim interno da corporação.

9 Fonte: PMERJ/2005.

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Isto significa dizer que no ano da realização da pesquisa, há 18 anos não eram atualizadas de modo sistêmico a filosofia do emprego policial, a doutrina e os procedimentos operacionais através de um único documento ou que estivessem explicitados numa mesma matriz conceitual. O que tem ocorrido, ao longo do tempo, é a proliferação de “notas de instrução” que buscam responder demandas operativas emergenciais e que não guardam, muitas vezes, conexão umas com as outras ou que até mesmo se contrapõem umas às outras. Logo, o fato de constantemente estarem sendo publicados novos procedimentos promove, entre os policiais, a sensação constante de estarem desatualizados, de não terem lido o último informe e de estarem distantes da normatização dos procedimentos, o que, em última instância, vem colaborar para a sua fragilização e desvalorização por parte dos próprios policiais.

O que se constata, em termos de atualização dos novos conhecimentos, é que há uma enorme fragmentação do conhecimento profissional de polícia, tendo em vista, como já dito, que tal lógica só consegue responder a eventos emergenciais.

A implicação clara desta fragmentação dos procedimentos é que os policiais, no exercício diário de atendimento às demandas da população, operam sem um conjunto único de procedimentos padronizados e oficiais que sustente seu trabalho; o que permite que cada um, isoladamente, crie as suas “próprias técnicas” sem dialogar com uma base comum de mecanismos profissionais, já que estes não estão previamente disponíveis.

É importante lembrar que ao se tratar da atividade policial de ponta, os eventos atendidos podem guardar semelhanças entre si, mas nunca serão iguais uns aos outros. Isto significa dizer que a cada evento que demanda uma ação policial, os agentes terão a necessidade concreta de atuarem de uma maneira única porque a situação real também é única. Entretanto, é importante mencionar que os efeitos dessa baixa ou precária ‘procedimentalização’ ou, dito de outra forma, baixa institucionalização dos procedimentos, caminha na direção de uma prática onde comumente cada policial cria (isoladamente ou em subgrupos) seus “próprios procedimentos”, que não dialoguem com um conjunto de orientações básicas, institucionais e balizadoras para todos.

Esta situação provoca recorrentemente a sensação de cada policial está “falando uma língua diferente” e, por conseguinte, que cada unidade policial é, em si, uma polícia específica. Deste modo, a população em geral está diante de um contexto agudo de imprevisibilidade na ação policial, o que provoca dificuldade em aceitar suas ações policiais, mesmo que tecnicamente corretas.

Algumas citações, extraídas das entrevistas e dos grupos focais realizados, ajudam a compreender a problemática relacionada aos limites e as implicações da atualização dos conhecimentos práticos e procedimentos institucionais.

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Formalmente, estão definidas as “instruções de manutenção”, assim como o pleno acesso dado ao policial militar para solicitar de seu superior hierárquico, apoio para atualizar-se em termos procedimentais, como ilustrado abaixo:

“Os mecanismos de atualização nos batalhões são as instruções de manutenção. Todo Batalhão tem um coordenador de ensino e instrução. O policial que se sente desqualificado em qualquer matéria, em qualquer disciplina, em qualquer ação, ele deve procurar esse coordenador para que esse coordenador tenha condições de orientá-lo, de esclarecê-lo, de educá-lo ou, se for o caso, matriculá-lo num curso de reciclagem...”. (Coronel PM, integrante da Diretoria de Ensino e Instrução)

Todavia, ao perguntar sobre os mecanismos de atualização para outro integrante da Diretoria de Ensino e Instrução, este aponta que o mecanismo usual se dá pela troca informal, pelas conversas de corredor, onde um policial passa para outro aquilo que “ouviu falar” em termos de mudanças, como se fosse uma brincadeira de “telefone sem fio”.

“Então, como é que o policial fica sabendo dessas atualizações? Porque o outro fala. Alguém diz pra um, pra outro e um vai falando para o outro e aí a coisa se alastra. É uma fórmula empírica de se adquirir novas informações”.

“Não há um momento no batalhão para ele obter essa instrução? Dificilmente, hoje! O Batalhão vive, hoje, um redemoinho. Muitas das vezes, o soldado não sabe nem qual é o nome do comandante dele. Ele entra no batalhão, tira a falta, vai na reserva, pega o armamento e vai para a rua. Não sabe nem qual é o nome do Comandante, nem se trocou o Comandante”. (Coronel PM (2) – integrante da Diretoria de Ensino e Instrução)

Ao anunciar que a aquisição de novos conhecimentos se traduz numa fórmula empírica, a PM abre um espaço concreto de construção dos conhecimentos a partir de parâmetros essencialmente particulares, que dialogam tangencialmente com os expedientes formais, traduzindo-se em frases do tipo: “na rua sou eu que decido” ou que o PM deve atuar no “calor dos acontecimentos”. Neste sentido, pode-se afirmar que esta falta de regularidade em transmitir as informações necessárias à atuação policial, implica cada vez mais numa dificuldade de controlar e avaliar o desempenho policial.

“Isso (mecanismos formais de atualização) não existe... Existe na Academia, no CFAP, nos BPM’s, talvez no Batalhão de Choque, unidades que tenham o seu efetivo interno. Agora, as unidades eminentemente operacionais, de jeito nenhum. “Isso já existiu, vai num tempo longínquo, quando eu era Tenente...”. (Coronel PM (2) – integrante da Diretoria de Ensino e Instrução)

Há também entre os policiais a ideia de associar a necessidade de atualização dos conhecimentos profissionais a um esforço e interesse pessoal. Como se a informação estivesse totalmente disponível, cabendo exclusivamente ao policial ter iniciativa de aprimorar-se.

“Olha, isso vai da necessidade de cada um, da convicção de cada um. Então, eu vi gente que não se atualiza. Eu vejo gente que tem a 99/95, é tem a lei nova de 95... Pôxa, já tem dez anos já. Em 97, mudou o Código

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de Trânsito Brasileiro, tem gente que não sabe nada, está se referindo ainda ao antigo código, porque foi o que aprendeu aqui”. (Major PM, integrante da Academia de Polícia Militar – APM)

“Se eu não, por livre iniciativa, não voltasse para os bancos escolares às minhas custas, pagando uma faculdade, pagando um curso de mestrado, a corporação não se interessaria em me fazer estudar”. (Coronel PM (2), integrante da Diretoria de Ensino de Instrução)

A citação do Major, acima reproduzida, acaba surgindo como justificativa recorrente entre os policiais (oficiais e praças) de que a melhoria do desempenho policial está atrelada a um interesse pessoal, o que implica em excluir da corporação a sua responsabilidade de criar e difundir os mecanismos formais de atualização de conhecimentos. Por outro lado, a citação seguinte, explicita claramente que a “livre iniciativa de estudar” ocorre na medida em que a corporação sinaliza que a formação continuada não é uma de suas preocupações centrais, e por isso, aqueles que se sentem despreparados irão, de forma isolada, buscar o conhecimento.

Na pesquisa foi possível constatar, através de diversas fontes, que não há uma política integrada e clara de formação continuada para nenhum dos níveis hierárquicos, como constata o policial a seguir:

“O que ela quer saber exatamente é se existe alguma maneira corporativa de atualização de conhecimento. Resposta: não existe. Não existe um incentivo dentro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro que fale: “Olhe, oficiais, de tanto em tanto tempo, vocês irão para o curso de atualização profissional”. Não existe”. (Capitão PM, 14 anos de Polícia)

O QUE PENSAM PRAÇAS E OFICIAIS SOBRE A CONSTRUÇÃO DO SABER PRÁTICO

É comum ouvir dos policiais de ambos os ciclos que “ser policial se aprende na rua”, como estratégia de contrapor aquilo que, formalmente, se aprende ao do que, de fato, se usa e pratica.

No caso específico dos sargentos de 15 a 20 anos de profissão que foram consultados, a ênfase do modelo militar e a baixa qualidade das aulas aparece novamente como fator de desajuste entre o que é ensinado e o que realmente é necessário para se prestar um bom serviço de polícia para a sociedade.

Neste cenário, quais são os caminhos utilizados pelos policiais para obter um conjunto de informações necessárias à sua atuação prática?

Se de fato é na prática que os policiais aprendem; a figura central para que isto ocorra é o chamado “policial mais antigo”, aquele que se busca observar, numa lógica quase que mimética, reproduzindo o que o “mais antigo” está fazendo.

Uma análise crítica deste processo de mimetização leva a destacar o risco de policiais jovens atuarem a partir de procedimentos que policiais antigos julgam ser corretos, sem que ao menos dialoguem, em sua maioria, com o que é legal e formalmente estabelecido.

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Isto não significa dizer que a PMERJ não atue legalmente, reafirma apenas que a falta de expedientes formais atualizados cria uma ambiência favorável para que cada um atue segundo determinados critérios, pessoais ou diferentes dos formalmente estabelecidos.

Outro importante caminho em busca do “saber prático” policial recai sobre o tipo de policiamento em que se vai atuar, logo, o trabalho de campo permitiu perceber que modalidades de policiamentos, tais como, o da Rádio Patrulha (RP) e o famoso Policiamento Ostensivo (PO) são considerados estratégicos.

A RP foi apontada como tipo de policiamento que coloca o policial em contato com a maior diversidade possível de ocorrências dentro da Polícia Militar. Para os policiais, este seria um tipo de serviço mais adequado aos considerados mais “maduros”, com a “personalidade profissional” mais consolidada em virtude da variedade de situações a serem enfrentadas.

O serviço de Policiamento Ostensivo, por outro lado, possibilita um contato mais direto com a população, afinando o chamado “tirocínio”10 policial para os diversos “tipos suspeitos”, com o intuito de diagnosticar as redes locais e os ambientes, além de expor o policial a uma variedade enorme de demandas de uma maneira gradativa.

“(...) Agora, o local pra deixar o policial, na gíria, malandro, descolado, é um bom PO (Policiamento Ostensivo), porque ele vai trabalhar no Policiamento Ostensivo, ele tá ali na rua ele passa a conhecer todas as pessoas; o que fazem as pessoas; como agem (...)”. (Sargento PM, 17 anos de Polícia).

Nas narrativas dos policiais chama a atenção, principalmente dentre os oficiais, que no momento que estão numa atividade ostensiva, aquilo que é formalmente definido, com base na norma jurídica, é colocado em xeque, isto é, “fazer a coisa certa” nem sempre é aquilo que está definido nos manuais. Bom exemplo disto é traduzido no relato a seguir:

“Então, quando eu cheguei ao Batalhão, cheguei realmente cru, sem saber nada, sem maldade nenhuma de nada. Então, por várias e várias e várias vezes, eu me deparei com situações, em que eu tive que pensar o que é que eu estava fazendo ali, se eu tinha uma ordem legal pra cumprir, e, de repente, eu tinha uma ordem – vamos dizer assim – da administração para não cumprir a ordem legal”. (Capitão PM, 13 anos de Polícia)

“Eu me deparei com uma certa resistência, diria até com um certo temor, um certo medo, por parte deles comigo, porque eu queria que as coisas fossem feitas da maneira direita, da maneira certa, mas eu percebia que, misteriosamente, as coisas, para elas serem feitas da maneira certa, elas não eram. Mesmo que viesse a ordem de onde tivesse que vir, vinha uma ordem misteriosa, que fazia com que as coisas não ocorressem da maneira certa, como tinha que ocorrer”. (Capitão PM, 12 anos de Polícia)

10 Jargão utilizado pelos policiais para ilustrar “habilidades” identificadas como fundamentais, tais como: vivacidade, sagacidade, faro, perspicácia entre outros.

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Há um sentimento generalizado entre oficiais intermediários (tenentes e capitães) que ao saírem da Academia11 estarão diante do desconhecido, diante de uma realidade que não foi minimamente apresentada a eles e que não condiz com os expedientes que lhes foram ensinados. Portanto, a prática profissional aparece como algo subjetivo. Como é destacado nesta citação:

“A percepção que nós temos que ter, ela simplesmente ela é subjetiva, ela é afeta a cada um de nós. Chegou no batalhão: “Olha, meu irmão, agora é contigo mesmo. Você se vira”, tipo... Não é se vira, não vai ter orientação; é tipo: cabe a você perceber o que está acontecendo em volta de você; ninguém vai ficar te avisando, não. É mais ou menos... Ninguém falou isso, mas fica uma coisa um tanto quanto subjetiva. Até você descobrir o que está acontecendo, fica um certo tempo no ar. É isso!” (grifo nosso) (Capitão PM, 14 anos de Polícia Militar)

Ao mesmo tempo, como os oficiais são socializados para comandar, gerenciar, “ser o corpo pensante da instituição”, o nível de exigência sobre o seu desempenho profissional é elevado. Entretanto, o que se pode observar é que, passados três anos após o término do seu curso de formação, tais atores afirmam ainda não possuir a maturidade nem a vivência que enfaticamente é atribuída ao número de anos acumulados de trabalho nas ruas.

Logo, uma importante estratégia de sobrevivência adotada é estar próximo das praças, na qualidade de aprendizes, reproduzindo, então, a mesma lógica de aprendizado entre soldados (novatos) e sargentos (mais antigos). Porém, por se tratarem de oficiais, eles apontam que tal relação implica num “teste de fogo” - a todo tempo as praças (subalternos) estão testando a capacidade de seus oficiais (superiores).

“Só que essa palavra “oficial”, ela traz consigo uma carga muito grande, uma carga simbólica muito grande. O oficial é o quê? É o conhecedor do ofício. O oficial é isso: ele é o conhecedor do ofício. Só que quando a gente chega num lugar, a gente não conhece nada, ou conhece muito pouco, você conhece muito menos do que deveria conhecer. Daí, as experiências, você aprende muito com o praça que trabalha ali. Realmente, você aprende!” (Capitão PM, 13 anos de Polícia).

“A gente teve até uma criação dentro de praça; a gente respeita o pessoal que é mais antigo; todos aqui... que estão aqui, até por coincidência, tiveram essa formação. Então, aprendi com eles? Aprendi. Só que eles nos impunham o teste: ‘Vamos ver se é bom mesmo’. E a gente tinha que ir. Chegou ao ponto que nós ficamos viciados em adrenalina... A gente era viciado em adrenalina, porque o dia que a gente não ia pra rua e não trocava tiro, a gente ficava mal-humorado, frustrado”. (Capitão PM, 12 anos de Polícia)

Por fim, destaca-se que o modo de transmissão e aprendizagem de novos conhecimentos práticos, tanto para praças como para oficiais, opera a partir de um jogo de acertos e erros praticados geralmente pelos mais experientes. Segundo os

11 Após 03 anos de curso, os oficiais vão trabalhar nos Batalhões comandando praças com mais anos de polícia (normal-mente 10 ou 15 anos) que o seu tempo de curso, gerando certa insegurança entre eles por um lado e a necessidade de ouvirem “os mais antigos” por outro.

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policiais, estes testes “ao vivo e a cores” permitem-lhes criar parâmetros empíricos para atuar numa próxima situação com maior possibilidade de acerto.

“O que a gente aprende é, às vezes, no erro das pessoas, uma coisa que já tenha acontecido, que você se encontra na mesma situação, e diz: ‘Fulano já fez assim, e deu errado, e fulano fez assim e não deu’”. (Sargento PM, 17 anos de Polícia)

MECANISMOS DE AVALIAÇÃO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZA-GEM DE PRAÇAS E OFICIAIS NAS ESCOLAS DE FORMAÇÃO

Ao propor descrever os mecanismos internos de avaliação, inevitavelmente, foi realizada uma apreciação geral de ambas as escolas de formação, tendo em vista que os processos que avaliam os alunos terminam por refletir a política instrucional das escolas. Por conseguinte, todos aqueles que participaram da pesquisa, sejam alunos ou policiais já formados, acabaram se sentindo à vontade para passar em revista a proposta educacional ora praticada.

Quais são, portanto, os instrumentos de avaliação utilizados na formação de soldados e oficiais?

Dentro da estrutura de ambas as escolas está o setor denominado “Divisão de Ensino” responsável por todo planejamento e execução do ensino e da instrução12. Toda esta estrutura está voltada para a vida acadêmica dos alunos, interface com os professores, instrutores e diálogo com a Diretoria de Ensino e Instrução.

Sem ser diferente das escolas tradicionais, tanto o Curso de Formação de Soldados quanto o de Formação de Oficiais utilizam, em sua grande maioria, o recurso da prova escrita para mensurar o grau de conhecimento do aluno sobre o assunto. Dado curioso é que até mesmo as chamadas disciplinas práticas, priorizam esta forma de avaliação.

Compete a Divisão de Ensino o controle das avaliações, através de provas teóricas e práticas, além de ser responsável pela correção e arquivamento de todas as informações referentes à vida do aluno em termos de notas.

Todavia, o processo de avaliação de um recruta e/ou cadete não se restringe ao seu bom desempenho acadêmico no conjunto de disciplinas que é obrigado a cumprir. Vale destacar que o processo de ensino e aprendizagem numa instituição que carrega a marca militarista implica, sobretudo, na internalização do ethos militar, isto é, na disciplinarização dos alunos às regras deste mundo, buscando efetivamente distanciá-lo das marcas que carregam do mundo civil13.

O setor responsável por promover a transformação de um jovem em policial militar é o Corpo de Alunos, setor que se diferencia da Divisão de Ensino

12 Tal estrutura de Divisão de Ensino se repete no CFAP, exceto em relação a biblioteca, tendo em vista que o CFAP não possui.

13 Para compreender melhor os processos de disciplinarização do eu em instituições militares consultar a obra de Michel Foucault. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes.1975.

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no sentido de ter a responsabilidade exclusiva de acompanhar e avaliar a vida do aluno fora da sala de aula, isto é, avaliar disciplinarmente sua conduta enquanto futuro praça e/ou oficial, bem como sua postura diante dos colegas.

O comportamento fora da escola também faz parte da avaliação disciplinar, o que leva os alunos, durante o curso, a manterem-se em constante estado de vigília. Ações ou atitudes reprováveis na visão social podem resultar em punições ou na exclusão do aluno. “Por exemplo, foi uma coisa que um aluno fez fora, andar com o carro de placa raspada, e foi expulso” (Aluno CFAP).

É comum que os integrantes da PMERJ refiram-se ao Corpo de Alunos como lugar onde se “formata” os indivíduos para serem policiais militares. Isto é, lugar onde cotidianamente os valores e símbolos da corporação são cultivados.

Durante a formação policial, a disciplina Ordem Unida possui vasta carga horária e não por acaso, desempenha papel fundamental neste exercício diuturno de internalização da regras e do ethos militar. Neste sentido não causou estranhamento o fato de que oficiais e praças vinculados ao Corpo de Alunos também fossem responsáveis pela aplicação desta disciplina.

Todo o processo ritual militar conduzido pelo Corpo de Alunos baseia-se nos Regimentos Internos do CFAP e da APM D. João VI, mas, sobretudo, no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar - RDPM. Já o recurso utilizado para registrar a vida disciplinar do aluno ao longo de seu processo de formação é conhecido como Ficha de Avaliação Disciplinar – FAD. Esta ficha configura-se em importante instrumento para definir sua colocação geral. A FAD é intitulada vertical por se tratar de uma avaliação que o oficial do Corpo de Alunos faz sobre cada aluno.

A Ficha de Avaliação Disciplinar busca mensurar atributos que para instituição aparecem como fundamentais aos futuros policiais, todavia, muitos destes itens configuram-se como extremamente difíceis de serem mensurados de modo quantitativo14. Eis alguns dos principais aspectos avaliados: praticidade e objetividade, criatividade/imaginação, motivação, maturidade, interesse, adaptação grupal, auto-confiança, lealdade, além de perseverança e tenacidade.

Percebe-se que o processo de ensino e aprendizagem dos valores da corporação está substancialmente pautado numa avaliação disciplinar que tem como principal sustentáculo a punição.

Agora, cabe compreender quais são, preferencialmente, as indisciplinas praticadas passíveis de punição. Neste caso, o foco punitivo está no não cumprimento estrito das regras do mundo militar. Tal citação pontua alguns dos desvios passíveis de punição:

14 A FAD é empregada ao final do 1º e do 2º semestre. É aplicada por um avaliador designado pelo Corpo de Alunos e utiliza os seguintes parâmetros de classificação: Muito Bom (8,33 ou maior); Bom (entre 6,66 e 8,33); Regular entre 5,0 e 6,66 e Insuficiente (menor que 5,0).

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“Acho que algumas vezes é um pouco exagerado, né? Perder o final de semana porque não arrumou a cama; esqueceu de engraxar o coturno; acho que cobrança é meio exagerada e isso é constante; você perde sexta, sábado e domingo porque não penteou o cabelo”. (Aluno APM, 1º ano)

Portanto, não seguir à risca as exigências da postura e doutrina militares, como marchar corretamente; carregar uma arma de maneira inadequada; não respeitar os símbolos militares; estar desleixado com sua aparência e não cumprir as referências aos seus superiores de modo adequado, pode levar a uma punição severa, tornando-se rotineira na vida do aluno e ganhando, em muitos casos, mais espaço no processo de formação do que as exigências relacionadas a aquisição de conhecimentos necessários ao exercício da atividade policial15.

A análise, em separado, do discurso dos alunos do CFAP e dos alunos da APM mostra ser possível constatar que os primeiros apresentam certo descontentamento sobre sua escola de formação, já que parte do tempo que estariam programados a assistir aulas, estão envolvidos em atividades que não correspondem ao processo de formação propriamente dito.

Dito de outra forma, é fato recorrente que os alunos do CFAP estejam, constantemente, sendo empregados em atividades relacionados à manutenção da unidade, realizando faxina, pintura e demais atividades braçais ou em outras situações onde, antes mesmo de estarem formados, já começam a atuar no policiamento ostensivo em praias, shows e demais eventos públicos. Vale ressaltar que é comum o comprometimento da carga horária de determinadas disciplinas previstas nos respectivos planos de disciplinas em detrimento da necessidade – decisão imputada ao comando da instituição ou de seu estado maior geral - de emprego dos ‘policiais-alunos’ em atividades de policiamento ordinário.

Ao observar as estruturas físicas do CFAP, no momento de realização da pesquisa, não havia neste espaço uma ambiência favorável para o estudo, já que não dispunha de biblioteca, sala de informática, nem qualquer outra estrutura que estimule o processo de ensino e aprendizagem da profissão policial.

Por outro lado, a APM é avaliada como tendo excelente infra-estrutura para que os alunos se desenvolvam, até mesmo em comparação com outras escolas de oficiais do país. Entretanto, a maior crítica feita é a falta de uma cultura acadêmica de produção de conhecimento, aspecto que se traduz no fato dos alunos oficiais não produzirem monografias ao final de sua formação, bem como não utilizarem instrumentos metodológicos científicos para a produção do conhecimento adquirido. O viés jurídico na formação é bastante valorizado, como destacado ao longo do trabalho, inviabilizando, por muitas vezes, uma abordagem multidisciplinar da problemática policial ou de segurança pública.

15 Outro instrumento de avaliação levantado pela pesquisa intitula-se Ficha de Informações de Graduados que é utiliza-do para avaliar Sargentos (graduados) quando estão atuando nos Batalhões Operacionais. Neste instrumento está pre-visto avaliar o policial em 17 atributos entre qualidades classificadas como pessoais e funcionais. Eis alguns exemplos: A - Caráter (lealdade e amor a verdade, energia e perseverança, entre outros); C- Espírito e conduta policiais militares (espírito de camaradagem e relações humanos, entre outros) e G – Capacidade Física (resistência à fadiga, disposição para o trabalho).

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Outra avaliação realizada por ambos os segmentos aponta, ao longo da formação, um profundo afastamento entre os alunos oficiais e os alunos praças. Não está estruturada formalmente nenhuma perspectiva de aproximação destes dois mundos, somente a referência distante de que, um dia, no espaço do Batalhão, uns estarão comandando e outros obedecendo. Neste sentido, ambos os ciclos configuram-se essencialmente em mundos de formação paralelos e, como tal, nunca se comunicam; todavia, no momento em que estão prestes a atuar numa unidade operacional, se encontram diante do fato de terem necessariamente que trabalharem juntos, sem ao menos compreenderem claramente a “natureza da missão” de cada um.

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS IMPACTOS DO PROCESSO DE FORMAÇÃO NA PMERJ

A partir das descrições e análises realizadas acerca do processo de formação dos policiais, assim como sobre os processos de atualização e transmissão dos conhecimentos adquiridos ao longo da sua trajetória profissional, foi possível identificar dois pontos importantes.

Serão descritas a seguir as implicações do processo de formação e sua relação com a constante demanda do aumento de policiais trabalhando nas ruas. O que faz mais diferença neste sentido: a qualidade ou a quantidade?

Outro aspecto importante descrito abaixo recai sobre a avaliação dos policiais militares em sua rotina operacional de trabalho. Uma vez formados, os profissionais são submetidos a um processo de avaliação cujos critérios são bem distintos dos adotados nas escolas de formação, gerando mais uma vez contradições entre a formação e a aplicação desta no seu dia a dia.

Dentre os inúmeros discursos apresentados ao longo dos 06 meses de realização da pesquisa, foi possível registrar alguns pontos que se configuram como centrais para a PMERJ, ao se tratar de temas relacionados à formação básica e à qualificação continuada de seus quadros.

O grau de importância dada à formação pela PMERJ e por seus integrantes não pode ser compreendido isoladamente, tendo em vista a relação entre a qualificação profissional e a demanda operacional por policiamento no Estado do Rio de Janeiro.

Tendo estas questões como norteadoras, optou-se por apresentar os dilemas para melhor compreender a dinâmica da instituição, sem a pretensão de apresentar conclusões.

Ficou evidenciado que o tema da formação não é uma prioridade

institucional, sobretudo se comparado a constante e inequívoca demanda de ‘mais polícia’ nas ruas. No caso específico das praças, maioria esmagadora do

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efetivo, a PMERJ opera no curtíssimo prazo, buscando responder a demandas emergenciais de ampliação de seus quadros, ainda que com comprometimento do período de formação, traduzindo-se, como muitos de seus integrantes relatam, numa “fábrica de produzir soldados”.

Consequentemente, a influência política nas diretrizes da instituição sobre o aumento dos seus quadros provoca uma oscilação no número de meses destinados à formação de seus policiais, bem como na escolha das disciplinas que serão ofertadas. Tal fato é percebido pelos integrantes como um enorme descaso da instituição, o que provoca fragilização e falta de credibilidade nas instituições de ensino policial, abrindo espaço para valorização da experiência adquirida na rua, na empiria, na lógica do jogo de acertos e erros, segundo os próprios critérios dos policiais, em detrimento do que é ensinado nos centros de formação e nas academias de polícia.

“Também varia. Hoje, nós estamos com um curso um pouquinho mais longo de 08 meses. Já foi de 1 ano, já foi de 06. Isso vai variando de cada tempo e a necessidade da corporação em ter efetivo. Esse é o nosso maior dilema: efetivo! Muitas das vezes, o número pretere a qualidade. Precisamos colocar mais 4.000 homens na rua, mais número. E a qualidade fica a desejar. Ele vai aprendendo durante o exercício da profissão. Evidentemente, é um erro”. (grifo nosso) (Coronel PM, integrante da DEI)

“Pela própria demanda de serviços, e a própria voz do povo, isso não está muito forte não, porque o pessoal quer polícia na rua, não importa qual a qualificação que esse policial tenha. Ele quer ver um boneco na rua, quer se sentir seguro com algum fardado na rua. E a corporação, de modo geral, está sendo arrastada por essa voz do povo querendo o policial na rua”. (Coronel PM, integrante do CFAP)

Este sentimento de descaso ou de não importância à formação sinalizada pela instituição tem desdobramentos em todos os profissionais da polícia, independente da graduação ou patente, revelando, como já dito anteriormente, que, como estratégia de sobrevivência institucional, os policiais por conta própria procuram se qualificar a fim de responder às demandas operacionais que se colocam diante deles.

“Apesar de todos os vieses eu acredito que ele sabe que no fundo, no fundo, aquilo ali é importante pra ele; ele sabe que é importante, só que ele despreza por fatores adversos; pelo próprio fato da Instituição em si, às vezes, não demonstrar essa importância quando tira ele da sala de aula pra poder empregar no policiamento e não é nem por culpa não, é o sistema em si, o cobertor é curto, ele não tem como...” (Major, integrante da APM)

Os sargentos que participaram dos grupos focais ressaltaram um importante aspecto a ser considerado. Na sua visão, a não valorização da qualificação profissional (internamente e institucionalmente) tem impacto direto na imagem que a polícia tem junto a sociedade, já que o produto “policial” que é colocado na rua não está preparado a altura de atender as demandas da população.

Logo, para este grupo de policiais (praças), a Polícia Militar não prima

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por uma formação qualificada e, por isso, as praças são as mais atingidas por este descaso. Ainda segundo esta visão, isto seria um grande erro da corporação, visto que sua imagem está intimamente relacionada à qualidade do serviço prestado por estes soldados, cabos e sargentos, que representam mais da metade da corporação.

“(...) Só que quem tá na rua são os soldados e cabos e os sargentos também, esse homem tem que ser preparado porque esse homem é vai vender o produto, que vende o produto policial militar. (....) Tem uma frase de Platão que ele fala assim: “Aos sábios cabe o governo, os sábios são feitos pra dirigir e aos menos inteligentes cabe apenas obedecer cegamente” Então, é isso que eles acham; que eles são sábios e que nós somos ignorantes, então basta obedecer. Então, quando vai pra rua tá aquele policial ali, ele não sabe o que faz, na verdade, a polícia não quer o serviço do policial, ela quer o policial de serviço”. (Grupo focal com Sargentos)

DEPOIS DA FORMAÇÃO: CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO DO POLICIAL MILITAR NO DIA A DIA

Ao dialogar com os policiais, praças e oficiais com mais de 10 anos de profissão, estes acabaram suscitando o debate sobre como a corporação os avalia, isto é, como é mensurado o chamado “desempenho policial”.

Logo, o que é ser efetivo em termos policiais?

Neste momento da análise, pode-se afirmar que há uma inversão de prioridades. Enquanto que no processo de formação inicial do policial é maior o grau de exigência em torno do cumprimento da ritualística militar; no exercício da profissão a exigência se volta para o ‘desempenho policial’, de modo que este se traduza em resultados “positivos” para a corporação, ou seja, quando se logra êxito em prender indivíduos e apreender drogas e armas.

Portanto, tanto oficias quanto praças sinalizam estarem divididos basicamente entre dois paradigmas de avaliação: o grau de ajustamento do policial à doutrina militar, em sua postura e apresentação pessoal; e a chamada “produção policial”, ou seja, a quantidade de prisões e apreensões realizadas em um período determinado. Este dois paradigmas os colocam, freqüentemente, diante da dicotomia de ser “bom” ou “mau” policial de acordo com os critérios de avaliação da instituição.

O debate realizado com os participantes da pesquisa sobre o “bom policial” conduziu a algumas observações interessantes. O discurso inicial era de que a corporação busca um policial ajustado à doutrina militar – bota engraxada, barba feita, farda impecável, dócil e que não questiona as ordens de seus superiores.

No entanto, foram apresentados discursos que se encarregaram da desconstrução desta ideia, anunciando que o importante para um batalhão eram os altos níveis de “produção policial”. Sendo assim, o “bom policial” para estas unidades apareceu como um policial sujo e maltrapilho que acabou de voltar de um dia inteiro de incursões que engordaram as estatísticas (de prisões

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e apreensões) de seu Batalhão. Baseado nestes critérios, o policial que exerce funções administrativas dificilmente seria bem avaliado; a não ser que mantenha relações próximas com alguma instância de poder: o comandante da unidade, algum oficial intermediário ou superior, e, até mesmo, um praça que esteja estrategicamente posicionado na pesada estrutura burocrática da corporação.

Tal questão sinaliza para o fato de não existem critérios claros de avaliação do desempenho policial, residindo aí um grande problema. A avaliação por “produção policial” geraria um paradoxo intrigante: o mesmo policial que é bem avaliado a partir destes critérios em sua unidade, é o que normalmente vende a má imagem da corporação em função das estratégias escusas que a “tirania dos números” justifica que sejam utilizadas. É muito comum que estas artimanhas produzam espaços de promiscuidade entre o legal e o ilegal, o policial e o traficante, as atividades de manutenção da ordem organicamente envolvidas numa estrutura tácita (mas quase explícita e institucionalizada) de corrupção e ilegalidade.

“O que eu quero dizer com isso? Que esse policial que vende a boa imagem ele também pode vender a má imagem; ele também pode vender a má imagem, mas o que segura Comando, na minha visão, posso estar até errado, é a estatística”.

“(...) o policial excelente para o Comando é esse que o companheiro aqui falou, tá entendendo? Que eles dois falaram ali. Agora, quem sofre com isso, com esse bom policial para o Comando é a própria sociedade, tá? Porque, normalmente, nós sabemos as estratégias que ele usa... que eles usam, melhor dizendo, pra escusas, pra levantar estatística... porque lá no batalhão nós temos companheiros que chega ao ponto de comprar arma com a própria vagabundagem pra fazer apreensão pra levantar a estatística do Coronel, porque o Comandantes de Companhia disse que se não tiver estatística naquele mês vai colocá-lo no PO (Policiamento Ostensivo) (...)” (grifo nosso) (Sargento PM, 20 anos na polícia)

O que ficou evidenciado é que nem a corporação, nem os policiais

ou a própria sociedade tem claros e explícitos os critérios para avaliar o serviço prestado pelo policial militar.

Vale aqui ressaltar um ponto importante: a inadequação destes critérios, tanto para dentro quanto para fora da corporação. Como visto anteriormente, a chamada “produção policial” produz distorções estruturais em função de estratégias escusas amplamente utilizadas por policiais para atender a demanda por estatísticas de prisões e apreensões.

Por não serem claras e institucionalizadas, as relações e avaliações pessoais acabam encarregando-se de atribuir conceitos positivos e negativos para os policiais, sendo que tal tipo de situação cria centros de poder em torno de certos indivíduos. A pontuação para promoção, por exemplo, pode acabar virando um instrumento de barganha interna e punição.

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O foco nos números deixa de fora um espectro imenso de atividades policiais importantes, tais como: controlar desordens; incivilidades; preservar a ordem pública; prevenir que o crime ocorra; promover interação comunitária, entre outros; que, por isso, tem baixa visibilidade e peso avaliativo.

No momento de realização da pesquisa, ao consultar os indicadores de “produção policial” estabelecidos pela Secretaria de Estado de Segurança Pública/RJ, através do Instituto de Segurança Pública, constatou-se que o modo de mensurar o desempenho policial focaliza, exclusivamente, três aspectos: a) apreensão de armas; b) apreensão de drogas; e c) prisão de criminosos16.

Todavia, analisando os dados registrados nos Talões de Registro de Ocorrência (TRO) da PMERJ, observa-se que grande parte, dos atendimentos realizados (em torno de 70%) trata de ocorrências classificadas como assistenciais, contravenções, trânsito e diversas (outras ocorrências)17. Tais atividades policiais são ocorrências tipificadas como não criminais. No entanto, estas não estão contempladas nos indicadores formais de avaliação do desempenho policial, revelando um descompasso entre as demandas impostas cotidianamente pela sociedade e as valorizadas na avaliação policial.

CONSIDERAÇÕES FINAISEste paper procurou trazer importantes elementos sobre o processo de

formação (inicial e continuada) e avaliação dos policiais militares, à luz de um estudo exploratório realizado no âmbito da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2005. Sendo fruto de um relatório de pesquisa, procurou apenas pontuar os aspectos mais evidentes e relevantes identificados na pesquisa e de uma perspectiva comparada: a formação inicial, os dilemas e limitações da formação continuada, a construção do saber prático e os processos de avaliação adotados.

A partir desta reflexão, fica clara a importância da realização de estudos desta natureza, que se debrucem, sobretudo, nos processos institucionalmente estabelecidos de formação dos quadros policiais e, evidentemente, nas formas não institucionais frequentemente adotadas na transmissão e aplicação dos conhecimentos adquiridos no dia a dia. Por outro lado, sendo a Polícia Militar uma instituição de natureza civil, mas eivada por um paradigma militarista, também foi possível perceber como tal concepção influencia a avaliação destes profissionais, seja em seu processo formativo nas academias, seja no cotidiano do seu trabalho. Esperamos, tanto com este estudo como também com as demais etnografias e análises sobre os processos formativos das instituições de segurança pública, promover reflexões e sugerir uma agenda de proposições, com vias a dotar os gestores públicos, profissionais do ramo e os próprios profissionais de segurança pública de instrumental reflexivo e pragmático para aprimorar suas instituições e seus processos de formação e transmissão de conhecimentos.16 Instituto de Pesquisa em Segurança Pública do Rio de Janeiro. Disponível em www.isp.rj.gov.br acesso em nov/2005.17 Fonte Assessoria de Planejamento, Orçamento e Modernização - APOM/PMERJ (2005).

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|119A reinvenção da “cartorialização”: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro

A reinvenção da “cartorialização”: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro

Ana Paula Mendes de Miranda1

Marcella Beraldo de Oliveira2

Vívian Ferreira Paes3

INTRODUÇÃOEste artigo apresenta uma síntese dos resultados da pesquisa Avaliação

do trabalho policial nos registros de ocorrências e nos inquéritos referentes a homicídios dolosos consumados em áreas de Delegacias Legais4, que teve como objetivo avaliar o trabalho policial, no que se refere aos procedimentos de registro e investigação de homicídios dolosos em cinco unidades integrantes do Programa Delegacia Legal5, no município do Rio de Janeiro. Mais especificamente, tratou-se de identificar como os agentes e as autoridades policiais avaliam o trabalho de registro e investigação dos crimes de homicídio; bem como analisar a qualidade das informações referentes aos homicídios encontradas no banco de dados do Programa Delegacia Legal.

Buscou-se problematizar como a introdução de novas ferramentas de trabalho influenciou a elaboração do inquérito, marcado por procedimentos inquisitoriais (Kant de Lima, 1995, 1999; Misse, 2010), o que, consequentemente, afeta a elucidação dos homicídios, que outras pesquisas já demonstraram ser baixa (Soares, 1996; Zaverucha, 2003; Misse, 2010). Considerando o levantamento realizado pela equipe de pesquisadores do ISP, em 2003, que identificou que a taxa média de elucidação de crimes nas dez delegacias legais com maior número de vítimas em 2003 era de 2,7% (Miranda, 2003), partimos da hipótese de que a introdução de novas tecnologias de gestão da informação, bem como 1 Doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de São Paulo (USP); Professora do Programa de Pós-

Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense/RJ, Coordenadora do Curso de Especialização em Po-líticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública (UFF-RENAESP), Coordenadora Executiva do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP-UFF), Pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) - Contato: [email protected].

2 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Contato: [email protected].

3 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Contato: [email protected] A pesquisa foi aprovada no Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justiça Criminal promo-

vido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), em parceria com a Associação Nacional de Pós-Gradu-ação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Foi realizada por uma equipe selecionada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), no período de maio a novembro de 2005. A coordenação geral do projeto ficou a cargo de Ana Paula Mendes de Miranda, diretora do ISP na época, sendo o restante da equipe composta pelas pesquisadoras Marcella Beraldo de Oliveira, Vivian Ferreira Paes, e dos assistentes de pesquisa Eliane Santos da Luz, Luciano dos Santos, Marcos Vinícius Moura Silva, Wilson Santos de Vasconcelos (Miranda et al, 2006).

5 O Programa implantado em 1999 visou uma reestruturação do trabalho na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, cujas principais alterações serão analisadas adiante. Ver também: Gomes (2008); Miranda, Beraldo de Oliveira e Paes (2007); Oliveira (2008); Paes (2006); Peixoto (2008).

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de novas formas de organização do trabalho policial, estaria produzindo uma ressignificação das práticas cartoriais da polícia judiciária sem, no entanto, alterá-las substancialmente.

Optou-se por centrar a análise dos registros apenas no título “homicídio doloso” por se referir a categoria com o maior número de vítimas fatais no Rio de Janeiro. É preciso salientar que este título não abrange todas as situações relacionadas ao evento “morte”, que pode ser tipificado em outras formas legais em função daquilo que a polícia interpreta como a intenção do fato. Um bom exemplo é o caso do “latrocínio”, cuja classificação leva em conta em primeiro lugar a existência de um roubo, ou seja, um crime contra o patrimônio, que resultou em morte. Porém, além das diferentes classificações penais sobre uma “morte”, há também as classificações administrativas policiais, tal como a categoria “encontro de cadáver”6, que é utilizada quando não é possível identificar de imediato o que provocou a morte. Assim, para compreender o processo de registro de ocorrências é preciso levar em consideração que “dar um título” a um crime é uma tarefa complexa e que articula mais de um sistema de classificação, devido à multiplicidade de eventos concorrentes para o desfecho do fato 7.

Ressalta-se ainda que na área de segurança pública, a única base de dados que possibilita comparações entre diferentes regiões (nacionais e internacionais) é a que se refere às taxas de homicídios dolosos, já que outros tipos de crime variam muito em função das formas de definição e registro. Daí a importância de analisar como os policiais tratam os registros e inquéritos referentes a este crime.

O propósito deste artigo é apresentar uma reflexão sobre o processo de implantação de políticas públicas de segurança, em especial, no que se refere à possibilidade de se compreender os obstáculos e as resistências aos processos de transformação, suscitadas pela introdução de uma intervenção institucional.

A metodologia adotada baseou-se na análise das práticas e representações dos agentes sociais diretamente envolvidos na aplicação da política – os policiais civis. Para atingir o objetivo proposto optamos por dois tipos de estratégias:

6 O título “Encontro de cadáver” foi e ainda é objeto de contestação dentro e fora do ambiente policial, pois é uma ca-tegoria provisória, que deveria ser substituída por outra categoria mais apropriada do ponto de vista legal, na medida em que avançasse o inquérito policial ou quando o Delegado recebesse o resultado do exame cadavérico. O que ocorre na prática é que, uma vez classificado numa denominação provisória, o título do registro de ocorrência acaba ficando com esta denominação. Sendo assim, pouco do que é classificado como “encontro de cadáver” recebe outra titulação posteriormente. Ressalta-se ainda que, no passado, existia o título “Morte suspeita”, que funcionava como paliativo ou servia como título de “escape”, servindo também, em grande medida, para reduzir os números de homicídios dolosos. Tais práticas sempre foram objeto de contestação de pesquisadores, pois diminuíam as incidências do delito sem, na verdade, reduzir os números da violência letal (Miranda e Dirk, 2010: 271).

7 A classificação feita pelos policiais difere da classificação médica utilizada pelo Ministério da Saúde (DATASUS) para classificar as mortes, que é dada pelo Código Internacional de Doenças – 10ª Revisão (CID-10). Assim, o que para a Polícia Civil pode ser chamado de latrocínio (roubo seguido de morte), para o Ministério da Saúde terá a classificação de agressão. Outros títulos podem gerar estas diferenças são a “lesão corporal seguida de morte”, a “rixa com evento morte” etc (Dirk, 2007).

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a) A análise qualitativa e quantitativa da amostra de 392 Registros de Ocorrência e Inquéritos de homicídios dolosos do ano de 20028, confeccionados em cinco unidades de Delegacias Legais, localizadas em diferentes regiões da capital do estado do Rio de Janeiro, são elas: 6ª DP (Cidade Nova); 12ª DP (Copacabana); 20ª DP (Vila Isabel); 21ª DP (Bonsucesso); e, 34ª DP (Bangu). Estas delegacias foram escolhidas de acordo com uma avaliação do padrão de casos de homicídio dolosos consumados registrados no período de 2000 a 2003 conforme a distribuição nas Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP)9. As delegacias selecionadas representavam 30,1% de todos os registros elaborados em Delegacias Legais na capital. Cabe ressaltar que desses 392 registros analisados, onze constituíam flagrantes.

Mapa 1: Localização das delegacias analisadas na Cidade do Rio de Janeiro (2005)

b) A realização de 42 entrevistas com inspetores e delegados lotados nas delegacias selecionadas. As entrevistas ocorreram no ambiente das delegacias pesquisadas com horários previamente agendados, por telefone, diretamente com os próprios entrevistados. Também foram realizadas entrevistas com profissionais que atuavam em outros órgãos que possibilitaram compreender melhor o processo de registro e investigação dos homicídios, a saber: Corregedoria da Polícia Civil, Delegacia de Homicídios da Zona Oeste da capital e Grupo Executivo da Polícia Civil. Além das observações de campo durante as entrevistas.

8 Este foi o ano escolhido porque se avaliou a possibilidade de encontrar casos já elucidados. Ao mesmo tempo, não era um ano muito próximo da implantação do Programa Delegacia Legal (1999), o que tornava possível a análise do trabalho investigativo da polícia.

9 A AISP era um projeto de correspondência geográfica entre a área de um batalhão da Polícia Militar e uma ou mais circunscrições de delegacias da Polícia Civil contidas nessa área. Essa reformulação pressupunha a responsabilidade compartilhada no planejamento, coordenação, controle e avaliação permanentes das estratégias e ações da Secretaria de Segurança Pública.

122 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

A análise dos dados dos registros e inquéritos ocorreu por meio de acesso ao Sistema de Controle Operacional (SCO)10 das Delegacias Legais, mediante as senhas de acesso disponibilizadas à coordenadora da pesquisa, que na época ocupava o cargo de direção do Instituto de Segurança Pública (ISP). As informações compiladas no banco de dados da pesquisa foram referentes aos dados dos procedimentos no dia em que o sistema foi acessado, visto que o SCO fornece informações que são, a todo o momento, atualizadas pelas investigações em curso.

As entrevistas foram fundamentais para compreender como os policiais concebem e realizam suas atividades de trabalho em face às novas rotinas introduzidas pelo Programa Delegacia Legal, tendo em vista que o papel do pesquisador numa análise que envolve uma instituição estatal é buscar compreender os sentidos que os agentes dão às suas práticas, de modo a “desnaturalizar” o Estado, a fim de perceber como essas práticas são construídas, se reproduzem e ensejam problemas “sociais” e/ou “sociológicos”(Bourdieu, 1989, 1996).

Há muito tempo que se afirma que os estudos sobre as organizações burocráticas não podem ter como única fonte de dados os documentos oficiais, já que por não terem sido produzidos com objetivos científicos, esses documentos não seriam suficientemente detalhados e não esclarecem sobre as relações informais no ambiente das instituições. Assim, a pesquisa que se baseia na leitura de documentos oficiais deve ser complementada com outras técnicas, tais como entrevistas, observações das rotinas, das atitudes e das emoções dos funcionários (Merton, 1952), para que possam contribuir para a análise na medida em que se reconhece que há subjetividade no processo de conhecimento, e que a interação entre pesquisados e pesquisadores pode ser marcada por sentimentos de desconfiança e até antipatia (Miranda, 2001; Crapanzano, 1985).

Por outro lado é preciso reconhecer que as condições de realização desta pesquisa diferem da realização de um trabalho de campo “tradicional”, no qual o antropólogo mantém-se numa posição de maior distanciamento. No caso, a perspectiva adotada na pesquisa era mais voltada à construção de conhecimentos por cientistas sociais que pesquisam e trabalham com a temática das políticas públicas (Hinshaw, 1980) e que estavam diretamente vinculados a um órgão estatal, cuja função primordial era a divulgação dos dados oficiais. Na discussão sobre políticas públicas, a contribuição da abordagem antropológica está relacionada à análise dos processos institucionais de administração de conflitos, visando a elucidação da complexidade das redes de relações envolvidas no processo de formulação e implantação de uma intervenção pública (Bernard, 1974; Kant de Lima, 2008; Kant de Lima, Tiscornia e Eilbaum, 2008; Nader, 1972). Por estes motivos, o esforço do pesquisador deve ser marcado por um cuidado na descrição e observação dos fenômenos, para compreender as redes de significados dos sujeitos.

10 O Sistema de Controle Operacional (SCO) é o sistema no qual são inseridas todas as informações pertinentes aos Regis-tros de Ocorrência, Inquéritos policiais e rotinas operacionais das delegacias incluídas no Programa Delegacia Legal.

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ANÁLISE DOS REGISTROS DE OCORRÊNCIAS: OS PROCEDIMENTOS DA TIPIFICAÇÃO DOS CRIMES

Com a implantação do Programa Delegacia Legal, notou-se a convivência de dois modelos de delegacia (Paes, 2006), que passaram a ser identificadas pelos policiais como “delegacia legal” e “delegacia tradicional”. As primeiras eram as delegacias que iam passando pela reestruturação sob coordenação do Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal. No segundo, aquelas que ainda mantinham as rotinas e procedimentos tradicionais da Polícia Civil. Neste último caso, é comum que estas delegacias sejam chamadas de “convencionais” ou “ilegais, onde o procedimento de registro de ocorrência é o preenchimento de um formulário-padrão em uma máquina de escrever, que é encaminhado para o setor administrativo, onde é protocolado e distribuído para os setores de investigação11 ou é arquivado.

Uma das metas do programa de modernização Delegacia Legal da Polícia Civil era a reorganização do trabalho policial, dos quais destacamos a proposta de supressão dos sessenta e seis livros de registros que existiam no cartório da delegacia, que seriam substituídos pela informatização do serviço. Nos cartórios de uma delegacia são registradas as ocorrências policiais e as verificações de procedência da informação (VPI), e são construídos os inquéritos policiais inquisitoriais que, apesar de sua natureza administrativa, são entranhados nos processos judiciais (Kant de Lima 1995, 89).

Assim, o Registro de Ocorrência (R.O.) é o documento básico da Polícia Civil, destinado ao registro dos fatos considerados crimes ou contravenções penais, que diferente do Talão de Registro de Ocorrência (T.R.O.) da Polícia Militar, que registra diversas ocorrências, crimes ou não12. Desta forma, tomar como base de análise o R.O. da Polícia Civil significa partir de uma classificação policial, do que é por eles considerado crime. A utilização dos registros de ocorrência policiais como fonte de pesquisa foi problematizada em vários estudos já realizados na área de Segurança Pública e Justiça Criminal13, nesse sentido, podemos destacar duas razões principais para a análise desses documentos: eles revelam a criminalidade oficialmente registrada e por eles é também expresso o retrato da atuação da instituição.

Desta forma, é importante a realização de uma análise crítica da forma e da lógica que regula a produção dos registros. A análise desses dispositivos policiais tem como intuito desvendar como a polícia “constrói a verdade” criminal (Foucault, 1999) e como isto influencia no modo de investigação e de registro dos eventos criminais. Ou seja, entender quais são as características do processo de produção de verdade policial possibilitará uma compreensão da sua atuação em 11 Os setores costumam ser divididos por “especializações” em torno de crimes. Essa foi outra prática que o Programa

Delegacia Legal pretendeu superar, alegando que nenhum policial seria “especialista” em homicídio ou roubo. Ver também Nascimento (2008).

12 Para uma análise sobre o TRO ver Guedes (2008) e Ramos (2002).13 Ver Paixão, 1983; Coelho, 1988; Kant de Lima, 1995; Misse, 1999; Cano, 2000; Muniz, 2000;Vargas, 1998; Zaverucha,

2003; Borges e Dirk, 2006; Dirk, 2007.

124 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

relação aos conflitos sociais e também em que medida um Programa de Governo influencia ou não as práticas policiais de “construção de verdade”.

O Programa Delegacia Legal foi criado com o objetivo de reestruturar modelos de atuação e práticas que tradicionalmente eram desenvolvidas pela Polícia Civil fluminense. O Programa foi proposto junto a um conjunto de reformas para a segurança pública, no Governo de Anthony Garotinho, em 1999 (Garotinho e Silva, 2002; Garotinho, 2005; Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2000; Soares, 2000). Salientamos aqui algumas das principais transformações empreendidas:

1) A implementação de uma nova forma de organização do trabalho: antes três policiais ficavam em momentos distintos responsáveis pela investigação (modelo de trabalho nas delegacias convencionais), no modelo legal, o inspetor se torna responsável pelos procedimentos que atende, devendo registrá-lo e também conduzir esta investigação. Esta ação possibilitaria um maior controle das atividades de cada policial, o que pudemos observar que provocava muita resistência.

2) Os procedimentos das Delegacias Legais são compilados e processados sob uma nova forma de registrar a ocorrência, pois todos os procedimentos passam a ser informatizados e feitos diretamente no computador, em formulários online com terminologias predefinidas. Tradicionalmente, os espaços para o preenchimento de características físicas dos envolvidos nos Registros de Ocorrência, por exemplo, eram preenchidos de forma livre em formulários de papel. Acreditava-se que esses procedimentos iriam estimular a padronização da capitulação dos crimes, já que o policial deveria escolher uma opção dentre as oferecidas pelo programa no Sistema de Controle Operacional.

3) O Programa pretendeu com a padronização impor uma mudança comportamental que se tentou alcançar mediante cursos de capacitação constante dos policiais, para que estes soubessem manusear os novos instrumentos disponíveis. Ressalta-se ainda que os policiais que seguiam os cursos recebiam uma bolsa no valor de R$ 500,00.

4) Com o objetivo de valorizar a transparência, o monitoramento e o controle das atividades policiais, todos os procedimentos da delegacia passaram a estar socializados em uma rede que liga todas as delegacias inseridas no Programa Delegacia Legal, o que permitiria o acesso de todos ao banco de dados mediante senhas de acesso.

5) Visando o aperfeiçoamento, tanto do trabalho policial quanto dos processos de formação/capacitação, eram realizadas atividades de monitoramento policial por parte do Grupo Executivo do Programa de Delegacia Legal, com intuito de analisar o trabalho dos agentes e autoridades policiais mediante a varredura dos dados do sistema.

A padronização proposta na classificação das ocorrências pelo Programa

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Delegacia Legal levou à construção de uma tabela com os detalhamentos possíveis dos delitos (Barros, 2003). Essa proposta baseava-se na lógica de que quanto mais detalhada fosse a circunstância do crime em um primeiro momento, melhor seria desenvolvido o trabalho policial no processo de sua investigação. Além disso, houve a preocupação de que esse detalhamento deveria seguir um padrão para toda a Polícia Civil, o que não acontecia até então.

É interessante salientar que a forma como os policiais aplicam e interpretam essas classificações quando se trata de um “evento morte” demonstram uma subjetividade no ato de tipificar. Assim, pode-se afirmar que o registro é um ato interpretativo do Estado por meio das polícias. Assim, na tradição jurídica brasileira, o registro em cartório é necessário para dar publicidade, autenticidade14, segurança e eficácia aos atos praticados, assegurando o cumprimento das formalidades legais necessárias a cada situação.

Durante a pesquisa de campo nas Delegacias Legais observamos algumas vezes a seguinte situação:

Um inspetor bate na porta do delegado e pergunta a ele qual o título que deve ser atribuído ao caso que estão atendendo naquele momento. O inspetor conta a história oralmente, enquanto aguardávamos para continuar a entrevista, e prontamente o delegado diz qual é o crime do Código Penal que deveria ser atribuído. Essa situação ocorreu mais de uma vez durante a pesquisa de campo em duas delegacias distintas. (Anotações de campo)

Ao contrário do que foi falado pelos delegados e inspetores durante as entrevistas realizadas, observamos que o discurso sobre a tipificação não condiz com o que observamos na prática. Nas entrevistas eles falavam que dois fatores eram fundamentais para a primeira tipificação atribuída ao delito: a ida ao local do fato e a preservação do local do fato. Verificamos ainda que na legislação penal a ida ao local do fato é um ato obrigatório que deve ser realizado pela autoridade policial15 e a preservação do local deve ser feita tanto pela Polícia Civil quanto pela Polícia Militar, que aguardará a chegada dos peritos para que realizem o seu trabalho de “coleta da materialidade do crime impressa no local”. Porém, ao longo da pesquisa etnográfica verificou-se que os policiais civis raramente compareciam ao local do fato e a preservação do mesmo era muito precária.

A primeira tipificação que consta no Registro de Ocorrência, segundo os policiais em entrevistas, estaria relacionada à ida ao local da autoridade policial para a verificação do estado do corpo. Por exemplo, verificam se existem marcas de violência, se havia algum vestígio no local que pudesse identificar o crime, para conversar com pessoas que estão no local que podem fornecer alguma informação

14 Embora a “fé pública” não assegure o conteúdo do documento, funciona como atestação de veracidade. Deve-se lembrar que, no Brasil, os documentos públicos possuem valor de “prova plena”.

15 De acordo com o Código de Processo Penal, em seu artigo 6o, inciso I “logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais”. Esclarecemos que a autoridade policial é entendida na Polícia Civil como apenas o delegado.

126 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

sobre o crime. Por outro lado, a preservação do local, segundo os policiais, é fundamental para o trabalho pericial que permitiria uma tipificação “mais precisa”, feita de acordo com os laudos enviados posteriormente à delegacia.

Nos 392 registros de ocorrência analisados, 64% dos casos foram tipificados como “homicídio por PAF” (homicídio provocado por projétil de arma de fogo), acompanhados do artigo 121 do Código Penal (“matar alguém”). Logo em seguida, a tipificação que apareceu com maior freqüência nos registros foi “homicídios outros”, atribuído também o artigo 121 do Código Penal, em 12% dos registros. Nota-se que mais de 50% dos homicídios analisados foram classificados na mesma categoria (“homicídio por PAF”), então, mesmo havendo diversas classificações possíveis e padronizadas implantadas a partir do Programa Delegacia Legal, na prática a morte é classificada mais comumente como homicídio provocado por arma de fogo.

Além da ida ao local, os policiais destacaram também a importância das informações oferecidas pelos laudos periciais que são de duas naturezas: os provenientes do Instituto Médico Legal (IML), os chamados exames cadavéricos, e os laudos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) – perícia de local onde ocorreu o crime.

Tabela 1: Tempo decorrido entre a solicitação e a entrega de laudos periciais(Instituto de Criminalística Carlos Éboli - ICCE)

Quantos dias passaram desde a primeira solicitação do laudo ICCE até o dia em que os laudos chegaram à delegacia - Inquéritos

Desvio

234 3 401 56,74 68,04Fonte: Miranda et al (2006)

Tabela 2: Tempo decorrido entre a solicitação e a entrega de laudos periciais(Instituto Médico Legal - IML)

Quantos dias passaram desde a primeira solicitação do laudo IML até o dia em que os laudos chegaram à delegacia - Inquéritos

Desvio

305 0 778 83,19 100,51Fonte: Miranda et al (2006)

Na prática, observamos que os laudos não contribuíam para a primeira tipificação do delito, já que os laudos demoravam em média 84 dias (IML) e 56 dias (ICCE) para chegar às delegacias depois de solicitados. Nesse sentido, os laudos só influenciariam em uma posterior alteração da classificação elaborada pelo policial, o que resultava em um Registro de Aditamento, de acordo com os procedimentos formais de investigação. Esse Registro de Aditamento ficava armazenado no sistema das Delegacias Legais, de modo que é possível

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acompanhar as mudanças de classificação no decorrer da investigação. Assim, um caso que teria sido tipificado no momento de confecção do registro de ocorrência como “tentativa de homicídio”, poderia ser depois classificado nas estatísticas como “homicídio”, já que houve alteração na sua tipificação. O controle dessas informações é relevante para evitar o que se chama comumente de “maquiagem das estatísticas”, mas na prática essas alterações só eram contabilizadas se o registro de aditamento ocorresse no prazo de um mês, antes do “fechamento” dos dados, caso o aditamento não ocorresse nesse prazo ficaria fora da “estatística”.

Tabela 3: Tempo decorrido entre a solicitação e a entrega de laudos periciais(Instituto de Criminalística Carlos Éboli - ICCE) por delegacia de polícia

Quanto dias passaram desde a primeira solicitação do laudo ICCE até o dia em que os laudos chegaram à delegacia - Inquéritos

Desvio

006 DP 59 3 232 45,15 42,53

012 DP 6 13 52 29,67 15,19

020 DP 18 6 63 32,61 14,42

021 DP 86 8 312 65,34 73,32

034 DP 65 8 401 65,08 86,46Fonte: Miranda et al (2006)

Tabela 4: Tempo decorrido entre a solicitação e a entrega de laudos periciais(Instituto Médico Legal - IML) por delegacia de polícia

Quanto dias passaram desde a primeira solicitação do laudo IML até o dia em que os laudos chegaram à delegacia - Inquéritos

Desvio

006 DP 65 3 524 83,49 42,53

012 DP 5 0 88 30,20 15,19

020 DP 21 19 224 74,08 14,42

021 DP 121 0 503 74,12 73,32

034 DP 90 6 778 100,52 86,46Fonte: Miranda et al (2006)

Observa-se que, de todas as delegacias que analisamos, é na delegacia que fica em uma das áreas nobres da cidade (Copacabana), que os laudos da perícia chegam em menor tempo. Poderia se argumentar que a delegacia teria também um pequeno número de casos, mas notamos que a 20ª DP (Vila Isabel) também apresentava um menor número em relação às demais delegacias, mas o tempo de entrega dos laudos era maior.

Os principais argumentos dos policiais para a demora da entrega dos laudos são a dificuldade de preservar o local, a falta de estrutura da perícia e o excesso de burocracia que demanda o trabalho dos peritos. Segundo um delegado:

É porque o local não está preservado, mas você tem também dificuldades técnicas, porque a perícia deveria ser mais bem aparelhada. Devia investir

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mais na perícia. Então, enquanto você não tiver um investimento pesado mesmo em perícia técnica, e com os PM [Policiais Militares] também, porque os PM chegam no local e são os primeiros a esculhambar tudo. Então, você tem que ter uma cultura de preservação do local, você tem que ter uma perícia mais bem aparelhada e também um número maior de peritos. Você tinha que ter em cada unidade uma equipe de peritos. Ocorreu um homicídio aqui e aí você liga para a perícia e a perícia (começa a estalar os dedos) demora pra caramba. Olha, demora para entregar o laudo é devido ao fato de você ter um número muito pequeno de peritos e uma sobrecarga de trabalho. O perito também tem um monte de coisa para fazer e você vai a um local de homicídio e tem trinta dias para entregar o laudo.

Um inspetor nos informou que a demora na entrega dos laudos, na verdade, seria resultado de um trâmite meramente burocrático. Disse que o IML geralmente faz o laudo na hora para o corpo ser sepultado:

Para enterrar o corpo tem que ter laudo do IML, o laudo é feito rápido, mas ele demora a chegar aqui porque o perito escreve, depois outro digita, depois o assistente do perito que fez o laudo leva para ele, que tem que assinar, depois eles encaminham para o diretor do instituto assinar também, e só com estas assinaturas todas o laudo é encaminhado para cá.

É importante observar ainda que, no sistema do Programa Delegacia Legal, se o policial não atribuir um título ao Registro de Ocorrência, ele não consegue finalizar o preenchimento do mesmo no sistema, o que dificulta, de certa forma, a incompletude e a ausência de dados no campo destinado à classificação dos fatos considerados crimes. Ressalta-se ainda que a impossibilidade de finalização do procedimento no Sistema Operacional, por ausência de dados fundamentais, é percebida por alguns policiais como um fato negativo, o que, segundo eles, “torna o atendimento mais lento, porque o sistema os impede de trabalhar”.

Por outro lado, a possibilidade de saber como foi classificado e re-classificado um evento por meio das informações, que ficam registradas no sistema permite um controle do trabalho policial, diminuindo as possibilidades de manipulação da informação, bem como permite a reorientação da capacitação a partir do monitoramento dos erros cometidos pelos policiais.

No que se refere à qualidade dos registros de ocorrência analisados foi possível verificar que as informações sobre sexo e cor dos envolvidos16 nos casos analisados apresentaram os seguintes índices de não preenchimento: 20% (cor) e 2% (sexo)17 dos respectivos campos de preenchimento no Registro de Ocorrência estavam em branco. Salientamos que essa ausência de informação sobre cor e sexo dos envolvidos no crime é bem menor se comparada à análise dos antigos registros feitos nas delegacias de polícia tradicionais (Cano, 2000; Muniz, 2000).

Além disso, todos os registros apresentavam um título, isto é, a classificação do evento. Mesmo que fossem títulos provisórios criados administrativamente, não

16 “Envolvidos” é um termo que se refere às seguintes categorias: a vítima morta, a vítima hospitalizada, a testemunha, o autor e o adolescente infrator, categoria atribuida pela equipe de pesquisa durante a análise.

17 Esses critérios geralmente são classificados pelos próprios policiais sem que haja a possibilidade de auto-identificação das pessoas.

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apareceu um registro sem essa informação, o que ocorria nos registros em papel. Sendo assim, pode-se concluir que o modo informatizado de preenchimento de dados aumentou a qualidade das informações do registro de ocorrência quanto ao sexo e cor dos envolvidos, bem como a presença de títulos em todos os registros analisados. Porém, isso não pode ser considerado um fator relevante para a elucidação dos casos de homicídios, conforme veremos mais adiante.

DINÂMICA DO FATO: AS INFORMAÇÕES SOBRE O CRIME VERSUS AS INFORMAÇÕES SOBRE O PROCEDIMENTO

Além da classificação policial do “evento morte”, os agentes da Delegacia Legal devem preencher um campo chamado dinâmica do fato do Registro de Ocorrência (R.O.), onde deve conter de forma resumida a descrição do evento. Nesse campo é possível verificar as características destacadas e tomadas como importantes pela lógica policial quando se trata do homicídio. Essa é a segunda reconstrução do fato na lógica institucional policial, a primeira é enquadrar o fato em uma classificação penal ou administrativa, isto é, dar um título ao fato criminoso. Nesse segundo momento, o interesse é resumir o fato em poucas palavras em um campo do R.O.18

A partir da Resolução nº 760/2005, da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Corregedoria da Polícia Civil ficou responsável pela revisão dos Registros de Ocorrência, principalmente no que dizia respeito à verificação da correspondência entre a “dinâmica do fato” e a tipificação do delito.

Em entrevista realizada com o Corregedor da Polícia Civil à época, ele explicou que as alterações classificatórias podem ser feitas no decorrer das investigações, porém algumas vezes essa correção não era realizada e a atividade da Corregedoria é identificar dos erros e de solicitar a correção desses títulos.

Além disso, de acordo com o Corregedor da Polícia Civil, a dinâmica do fato é o campo mais importante do Registro de Ocorrência. Assim, um erro grave seria uma informação fundamental, que deveria constar no registro, é a descrição de como e onde o corpo foi encontrado, o que geralmente não acontecia:

É bom que o policial venha fazendo essa descrição, o corpo foi encontrado tantas horas na rua tal. Coloque como foi encontrado, se o local é mal iluminado, se é local de desova... Porque isso é fechar uma linha de investigação para saber se no local tem grupo de extermínio, saber se é comum naquele local a desova.

Ao analisarmos os registros pudemos observar que, na dinâmica do fato, a descrição é “técnica”, ou seja, referia-se mais aos procedimentos que foram realizados pelas instituições, do que ao fato em si, o que explicita ainda mais o caráter cartorial do procedimento. Tal situação foi confirmada por outro inspetor entrevistado que trabalhava na Corregedoria:18 Ver Miranda e Dirk (2010) e Pita e Olaeta (2010).

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Eles colocam mais informações sobre a parte técnica realizada do que sobre o fato em si. Por exemplo, o policial militar estava patrulhando no local, quando foi acionada por Maré Zero, foi ao local e acionou o bombeiro. [O registro] dá mais informação sobre os passos administrativos do que o próprio homicídio. Na verdade, neste espaço o policial poderia aproveitar para descrever o local e não só as providências que foram realizadas logo que tomou conhecimento do fato delituoso. Isso deveria estar na parte de diligências realizadas no local e não na parte da dinâmica do fato. Essa parte das diligências é importante ver também, porque aqui você vai saber sobre o trabalho policial que foi realizado, mas eles misturam muito esses dois campos, da dinâmica e das diligências no SCO. As diligências dizem respeito ao que o Policial Civil autor do registro fez, ali deve ir descrito se ele também foi ao local, se tirou foto ou não, se encontrou alguma coisa etc. Talvez não venha nada escrito neste campo, mas não é porque o policial não fez nada, mas porque, ás vezes, escreve no local errado, põe na dinâmica junto às diligências realizadas pela Polícia Militar.

Acreditamos ser importante ressaltar que este tipo de situação não corresponde apenas a uma falha no preenchimento. Ao contrário, tal forma de relatar está relacionada à visão que os policiais têm acerca da função de um registro de ocorrência. Trata-se, na realidade, de um documento que serve mais para atender às formalidades burocráticas e cartoriais do inquérito policial, e não um documento que orienta à prática da investigação, que não representa a principal preocupação no cotidiano das delegacias, o que pode ser demonstrado pela avaliação de uma inspetora, que afirmou que geralmente a Polícia Civil não vai ao local e o que consta no relato da dinâmica são as informações fornecidas pela Polícia Militar. Ou seja, apesar da maioria dos policiais afirmar que é de extrema relevância para a classificação do evento, tanto quanto para a sua posterior investigação, a ida ao local do crime, foi amplamente verificado durante as entrevistas, que essa não é uma prática comum na Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Na dinâmica se coloca o que o PM tem a dizer sobre o fato, já que nem sempre a Polícia Civil vai ao local. Então o PM vem até a delegacia e conta sobre o ocorrido e o policial civil digita no computador.

A partir da análise da qualidade dos relatos nos 392 Registros de Ocorrência observamos que 57% dos registros tinham mais informações sobre as diligências realizadas pelo policial militar no local e não sobre as características do fato em si.

Observamos também que em 82,4% dos Registros não foi possível identificar a circunstância do delito por meio da “dinâmica do fato”. Sendo assim, somente 17,6% das “dinâmicas do fato” analisadas continham informações que identificassem a circunstância do crime.

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Tabela 5: Tipo de relato no campo dinâmica do fato encontrado nos registros de ocorrências analisados

Porque é possível ou não identificar a circustância do delito na dinâmica do fato? (tipo relato)

Frequency Percent Valid Percent

Cumulative Percent

Valid Relato padronizado da PM 224 57,1 57,1 57,1

Relato padonizado da PC 16 4,1 4,1 61,2

Redação confusa 5 1,3 1,3 62,5

Contém informações relevantes 143 36,5 36,5 99,0

Relato Padronizado Bombeiros 1 0,3 0,3 99,2

Relato Padronizado Agente Penitenciário 0,8 0,8 0,8 100,0

Total 392 100,0 100,0Fonte: Miranda et al (2006)

A tabela 6 demonstra que na grande maioria dos registros analisados não foi possível obter informações sobre a circunstância19 da morte somente a partir da leitura da dinâmica do fato. Somente em 17,6% dos Registros de Ocorrência analisados foi possível saber a circunstância do delito a partir da leitura da dinâmica do fato.

Tabela 6: Relação entre a qualidade da informação no campo dinâmica do fato e as circunstâncias do crime

É possível através da dinâmica do fato saber a circustância do delito?

Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent

Valid Sim 69 17,6 17,6 17,6

Não 323 82,4 82,4 100,0

Total 392 100,0 100,0Fonte: Miranda et al (2006)

Além de constarem na dinâmica do fato as informações detalhadas sobre a vítima e sobre o local do crime, essas informações deveriam aparecer em campos categorizados do Registro de Ocorrência no Sistema de Controle Operacional (SCO) das Delegacias Legais. Isto porque foram criados campos específicos de preenchimento no SCO com informações bastante detalhadas sobre os envolvidos no crime – vítima, autor, testemunhas, etc. – que deveriam constar no RO. Esses são campos para a qualificação dos envolvidos, existe um espaço para dizer se há tatuagem, marcas de alguma cicatriz, cor dos cabelos, altura, cor da pele, etc.

19 Vale ressaltar que a “circunstância de um delito” é diferente de uma “motivação do delito”, a primeira diz respeito à situação ou o contexto em que ocorreu o crime, já o motivo é algo muito subjetivo e individual, muito difícil de ser identificado no ponto de vista policial.

132 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

ABERTURA DO INQUÉRITO: PRÁTICAS INFORMAIS E FORMAISConforme prevê o ordenamento jurídico no Brasil, os crimes de homicídio

têm como titular da ação penal o Estado, que deve abrir o Inquérito tão logo tome conhecimento do fato em suas instituições. Na prática, tal medida não é levada a cabo nas delegacias, os policiais muitas vezes atrasam a abertura do Inquérito propositalmente. Por exemplo, uma das formas identificadas de driblar esses prazos legais foi por meio das chamadas Verificação de Procedência de Informação (VPI), que apesar de serem informais, estão institucionalizadas na polícia20.

Verificamos durante a pesquisa a existência da chamada VPI em casos inicialmente classificados como “encontro de cadáver”. Se tipificarem logo como “homicídio” o inquérito deverá ser instaurado imediatamente, conforme estabelece o Código de Processo Penal Brasileiro. Percebemos, em nossa amostra, que alguns inquéritos de homicídio demoravam mais do que 30 dias para ser instaurados. Dos 381 registros de homicídios dolosos analisados, o Inquérito foi instaurado no mesmo dia ou um dia depois da elaboração do Registro de Ocorrência em 124 casos (32,5%). Observamos, entretanto, que o tempo médio de abertura do inquérito nas Delegacias Legais corresponde a 29 dias depois do registro inicial. Cabe ressaltar que do total de 392 casos analisados, foram excluídos onze casos de flagrantes, pois estes seguem um prazo e procedimentos diferenciados de envio para a justiça. Excluíndo os casos de flagrante temos a análise do total de 381 casos.

Tabela 7: Tempo de Abertura de Inquéritos Policiais emcasos de Homicídios Dolosos

Tempo de Abertura do Inquérito (dias)

Número de Registros %

0 –30 260 68,2

31-60 44 11,5

61-90 21 5,5

91-120 13 3,4

121-150 19 5,0

151 em diante 11 2,9

Não foi aberto o inquérito 13 3,4

Total 381 100,0FONTE: Miranda et al (2006)

Um dos delegados entrevistados disse que são feitas as verificações preliminares para saber o que ocorreu e depois instaura o inquérito. Os autos em VPI têm uma capa branca e essa VPI tem um prazo interno administrativo de 30 dias para se concluída. Esse mesmo delegado informou que quando o registro não fornece ainda informações suficientes era comum o policial ir deixando como VPI e não instaurar logo o inquérito, pois assim eles teriam mais 30 dias para decidir como agir no caso.

20 Kant de Lima (1995) já havia constatado em sua pesquisa sobre a Polícia Civil a existência deste procedimento informal na polícia.

|133A reinvenção da “cartorialização”: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro

Por competir à Polícia Civil tanto a atividade de polícia investigativa quanto a de polícia judiciária, esta instituição se insere formalmente em uma lógica burocrática na qual todos os produtos de seu trabalho devem ser reduzidos a escrito e consubstanciados em documentos para que tenham validade legal. De tal modo, ao pesquisar informações que sejam relevantes para a investigação da autoria do crime e das circunstâncias do fato, deve a Polícia Civil transformar essas informações em documentos a fim de que estes sejam, por conseguinte, transformados em provas.

Apesar disto, no decorrer das investigações inúmeras são as atividades levadas a cabo pelos policiais que não são reduzidas a termo, deste modo,

a atividade de investigar não se restringe aos documentos produzidos no bojo do inquérito policial; longe disso, muitos procedimentos são levados a efeito pela autoridade policial e seus agentes e ficam encobertos pelo véu da informalidade (Acadepol, 2005: 6).

Seguindo um jargão jurídico brasileiro, que preconiza que “o que não está nos autos não está no mundo”, para que o inquérito policial tenha valor legal, faz-se imperativa a necessidade da forma escrita em todas as etapas de investigação, caso contrário, é como se não existisse (no mundo jurídico) as informações e atos policiais.

Assim, podemos concluir que a investigação policial se constitui de atos policiais formais e informais, mas o inquérito, como exteriorização das provas colhidas, se consubstancia apenas de atos formais, porquanto somente destes são quem dele constam (Acadepol, 2005: 7).

Nota-se que deve à Polícia Civil consubstanciar os chamados fatos objetivos (vestígios materiais) e subjetivos (testemunhos sobre os fatos) em documentos para que estes possam se transformados em prova legal. Porém, dada a “carência de informações”, os policiais afirmaram que as melhores informações que eles conseguem são com os próprios autores ou partícipes no homicídio, para eles, “as melhores testemunhas são os próprios bandidos”. Disseram que em homicídios decorrentes do tráfico, eles começam a coletar informação com os próprios traficantes presos.

Olha esse termo de declaração aqui! O cara falou tudo! Agora se alguém da favela falasse tudo isso aqui sobre ele, ele mandava matar, mas ele próprio fala! As melhores informações que eu tenho são dos próprios chefes do tráfico. Agora, você não pode humilhar eles não, eles só vão falar se você der crédito, e eles vão falando tudinho que você perguntar. O bandido é melhor informante do que qualquer testemunha, eles assumem tudo que eles fazem, eles assumem, mas também não falam de ninguém. É importante que você fale com ele logo que o prendeu, porque depois quando chega o advogado, aí eles não falam nada. Quando tem um PM do lado dele, aí que ele não vai falar nada mesmo, porque eles têm muita bronca com a Polícia Militar! Não que eu pense que os advogados queiram atrapalhar o trabalho da polícia não, eles fazem é o papel deles. Essa parte de tomar o depoimento das pessoas, essa parte de investigar tem um pouco de arte! Tem que gostar! Com

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outras pessoas que a gente toma depoimento, se elas começam falando que só vão falar no tribunal a gente apela. A gente fala logo: “isso é conversa de bandido, não perde a sua condição de trabalhador não”.

Uma apostila do curso de capacitação de policiais informava que:A confissão é apenas e tão somente mais uma fonte de prova que, se não guardar harmonia com o conjunto probatório, não tem qualquer valor para embasar uma condenação. O investigador que reduz seu trabalho ao círculo acanhado da confissão, amesquinha, inferioriza a nobre missão de investigar. (Acadepol, 2005: 15-16).

Em outra passagem, porém, é questionada a validade dos depoimentos prestados pelos autores, afirmando que:

O verdadeiro investigador deve trabalhar com duas hipóteses em relação ao autor do crime. A primeira hipótese é a de que o autor não irá confessar o delito e a segunda é a de que ele o fará, mas a seu modo, tentando se proteger, omitindo aquilo que possa lhe trazer maiores conseqüências punitivas. (Acadepol, 2005: 23).

Por último, informa a apostila que “depois do local do crime o autor do delito é a mais importante fonte da verdade” (Acadepol, 2005: 40).

Com base nestes argumentos, o que se pode concluir é que para “embasar a condenação” seria prioritário para os policiais a coleta de vestígios do crime mas, na prática, a confissão alcança um estatuto de verdade mais legitimada. Assim, o que se observa é que, para os policiais, os suspeitos são a priori culpados, porque ou eles não vão confessar, ou vão mentir para se proteger, ou vão confessar e reconhecer seus atos. A presunção da culpa, neste sentido, já orienta as expectativas por parte da polícia de uma verdade que ela só precisa confirmar. Os acusados têm o direito de não se incriminar, mas a prática policial brasileira parte do pressuposto de que o acusado seja culpado. Por outro lado, os acusados têm o direito de mentir, já que o crime de perjúrio só é aplicado às testemunhas.

Um policial uma vez nos relatou que quando tinha dois suspeitos de ter praticado um crime, colocava-os em duas salas diferentes e dizia para um que o outro o tinha delatado, que era melhor para ele falar sobre o que na verdade aconteceu porque a polícia já sabia de tudo. Dizia o policial que quando os suspeitos começam a fornecer informações é quando acham que a polícia já tem conhecimento sobre o fato. Para ele, os suspeitos falariam porque têm em vista a diminuição da pena.

O que é possível concluir neste momento é que há uma lógica policial, onde todos são suspeitos em potencial. Assim, a vítima precisa ter a vida investigada, a testemunha tem suas razões para depor questionadas todo o tempo, e os suspeitos, sobre quem já pesa a culpa, resta apenas confessarem-se culpados.

Outro fator que caracteriza o funcionamento do nosso sistema jurídico é que os procedimentos realizados no âmbito policial podem, e devem, ser repetidos no judicial, apesar do resultado do primeiro trabalho, por ser uma primeira versão

|135A reinvenção da “cartorialização”: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro

institucional sobre o fato, balizar a denúncia ou uma condenação por parte do juiz (Kant de Lima, 1999). Em entrevista, um policial nos relatou que:

Para pedir a prisão cautelar do acusado, o investigador tem que convencer primeiro o delegado, depois o delegado vai ter que convencer o Ministério Público que depois vai passar para o juiz. Então para um pedido de prisão ser aceito tem que passar por essas três etapas de convencimento. É um trabalho muito bonito e que parte do investigador! Aqui neste caso (apontou para a peça de despacho do MP no caso de uma garota de 13 anos que foi assassinada) o MP não aceitou o pedido de prisão cautelar, disse que ainda não estava bem fundamentada, ou seja, primeiro o MP tem que ficar convencido para depois passar para o juiz. Mas tem que ter aquela confiança no trabalho da gente, essas coisas não funcionam somente com base no papel.

Então, o trabalho da Polícia Civil dirige-se a documentar todas as informações que possam ser esclarecedoras do fato da verdade que se deseja confirmar.

Cumpre observar que, antes da implantação do sistema Delegacia Legal, a polícia não tinha acesso aos inquéritos que já haviam sido enviados à justiça, algumas informações sobre o Inquérito ficavam registrados em “Livros de Registro” na Delegacia, mas não havia contato com o Inquérito inteiro. Assim, caso fosse necessário resgatar uma informação era preciso ir ao Fórum para ver esses documentos ou ao acervo cartorário, se esse já tivesse sido arquivado. A partir do Programa Delegacia Legal, os documentos ficaram disponibilizados virtualmente, então, foi possível ter acesso a todos os registros e inquéritos independentemente do fato dos documentos estarem na delegacia, na justiça ou no arquivo. É importante observar que este é um dos exemplos do tipo de controle que passou a existir com relação ao trabalho policial a partir da criação do Programa.

Outra forma de controle que foi implantada se refere ao cumprimento dos prazos na polícia. Na tela do computador aparece com um destaque em vermelho quantos dias os procedimentos estão fora do prazo. A partir dos dados coletados dos 392 Registros de Ocorrência foi possível verificar que deste total, somente 22 Registros se encontravam fora do prazo, ou seja, 5,6% da amostra.

Quanto à percepção e avaliação dos agentes e autoridades policiais sobre o trabalho de investigação dos crimes de homicídio, foi possível constatar que existe uma preocupação maior com o trabalho de cumprimento dos prazos do que com a investigação. Cumprir prazo pode ser considerado um avanço trazido pela reforma, mas não necessariamente influencia uma melhor investigação, de modo que se trata apenas de um aprimoramento da prática cartorial.

O Ministério Público, por sua vez, demora, em alguns casos, mais de três meses para despachar e devolver os casos à polícia para que esta prossiga com os procedimentos. Isto pode ser demonstrado se considerarmos que, dos 381 Inquéritos analisados (os não-flagrantes), 63% estão no Ministério Público em situação de “enviados à justiça”, e não nas delegacias. Quando o Ministério Público os devolvia, geralmente não especificava as diligências que deveriam ser

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realizadas pela polícia. Nos casos em que o Inquérito é enviado definitivamente à Justiça para o oferecimento da denúncia, a situação que consta no banco de dados do SCO da Delegacia Legal é de “relatado à justiça”. Porém, dos 381 Inquéritos analisados (não-flagrantes), somente 14 deles, o que corresponde a 3,7% do total, se encontravam nesta situação no momento da coleta dos dados. Desta forma, a maior parte dos inquéritos estava na situação “enviado à justiça” (63%), o que significa que eles estão aguardando a manifestação do Ministério Público quanto ao seu andamento.

Uma inspetora argumentava que o tipo de trabalho que ela faz de solicitação de novo prazo era somente o cumprimento de um rito burocrático:

Como este fato aconteceu em 2002, a única possibilidade de manusear o inquérito é ficar cumprindo os prazos, pois dificilmente irá conseguir mais alguma coisa. Aí o inquérito fica indo e voltando da justiça. A gente não encontra ninguém. Aí o Ministério Público acha que a gente não fez nada, porque o inquérito vai para lá do mesmo jeito que chegou.

O argumento da inspetora reforça a idéia de que a polícia acaba fazendo apenas um trabalho burocrático e não investigativo, ou seja, as ações ficam restritas ao trabalho cartorial. O novo prazo pedido é para cumprir uma determinação legal e não para, de fato, dar seguimento às investigações do crime. A idéia do Programa que era de suprimir a cartorialização da delegacia é, portanto, confrontada por práticas cartorárias que estão arraigadas na instituição, e que se renovam apenas pelo fato de estarem informatizadas.

INVESTIGAÇÃO: VONTADE DO POLICIAL VERSUS TIROCÍNIO O Programa Delegacia Legal ao implantar a prática de registro

informatizado pretendeu que as informações deveriam ficar disponíveis e organizadas no banco de dados, cujo acesso se daria mediante senhas com diferentes níveis de acesso. Com isso acreditava-se que não haveria mais a existência de arquivos particularizados por parte dos policiais. Assim, as informações seriam de caráter institucional e não mais pessoais. Porém, não foi isso que ocorreu. A prática de registro digital acabou sendo muito precária e, consequentemente, as investigações deixavam a desejar21. A lógica policial não é a do registro no banco de dados, mas a de particularização da informação, ou seja, o registro em um formato que somente ele possa ter acesso. Os motivos desse não registro podem estar relacionados a diversas causas, porém, importa aqui salientar que essa lógica impede a realização efetiva do Programa Delegacia Legal.

Outro ponto que merece destaque diz respeito ao modo como os policiais percebem o trabalho de investigação. Segundo eles, este trabalho está mais relacionado a uma característica pessoal do agente, ligado antes a uma

21 Uma situação excepcional foi observada durante a implantação da primeira Delegacia Legal (Oliveira, 2008).

|137A reinvenção da “cartorialização”: análise do trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Legais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro

“vontade de investigar” do que a uma infra-estrutura, uma norma institucional, ou uma técnica que se aprenda.

Não tem tanta diferença [a delegacia legal x delegacia convencional], depende da boa vontade do investigador. É claro que com relação a estrutura houve uma mudança significativa, mas se o policial não gosta do que faz um computador não vai mudar a mentalidade dele. A questão é muito particular de cada um. Não adianta você colocar um policial que gosta de fazer serviço externo para ficar aqui dentro mexendo no computador, isso não adianta! Ele não vai funcionar em um computador.

Mais especificamente, com relação aos homicídios os agentes e delegados dizem que o profissional deve ser mais “sensível”, mais “perspicaz”, deve ter “tirocínio”, entre outras características apontadas, ou seja, uma característica nata do agente policial.

O policial que investiga homicídio é um policial mais dinâmico, perfeccionista, tem mais sagacidade [...] e os delegados têm que ter a sensibilidade em perceber e alocar cada policial para o que ele é bom em fazer.

Outro delegado não concordava com essa argumentação. Dizia que a capacidade investigativa não é algo que “nasce com o indivíduo”, mas algo que ele pode aprender durante sua carreira por meio de cursos de especialização para investigação do homicídio.

Essas opiniões divergentes entre delegados e agentes sobre um “caráter pessoal” das investigações ficam ainda mais claras quando tratamos da questão das “equipes especializadas” 22, que antes existia nas Delegacias “Convencionais”.

Uma das críticas feitas com insistência por quase todos os agentes e delegados entrevistados dizia respeito à proposta de supressão das “equipes especializadas”, para que o policial registrasse e investigasse qualquer ocorrência que fosse a ele destinada. Nas Delegacias Convencionais existiam núcleos de investigação formados por uma equipe de policiais que investigavam as ocorrências depois de separadas por tipos de crimes, assim, os inquéritos de homicídios eram destinados a uma equipe que iria investigar somente aquele tipo de crime.

Mesmo trabalhando em uma delegacia inserida no Programa Delegacia Legal, um delegado, contrariando a lógica do Programa, disse claramente que, na delegacia em que trabalha, ele instituiu e priorizava as especializações:

Eu presumo que a especialidade da convencional seja mais producente, porque você tem aquele policial que sabe conduzir aquela investigação. Na Delegacia Legal os policiais agora vão ter de fazer tudo, e não dá para ter um expert em todos os assuntos. Na Delegacia Legal é bom porque você tem mais informação. O Sistema de Controle Operacional é ótimo, mas você tem que selecionar um policial porque o trabalho policial não é matemático, tem que ter o ‘tirocínio’ do cara. Esses policiais que trabalham em homicídio, eles não servem para investigar outros tipos de crimes, porque eles estão mais sensíveis aos detalhes e mais observadores, se eles ouvirem determinado tipo de coisa, fala com a pessoa para ela se aprofundar naquilo, ou perceber contradições. O trabalho deles é mais demorado, eles ficam cozinhando aquilo, chamam

22 Sobre as limitações do trabalho especializado na polícia ver Nascimento (2008).

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a testemunha de novo... Agora, esse cara é muito lento para trabalhar roubo de loja, por exemplo, porque esse é um crime que pede uma investigação mais rápida, se ele demorar muito para investigar um roubo, o cara já roubou várias outras lojas, já fugiu e você não encontra ele mais. Isso depende das peculiaridades de cada policial. Aqui eu separo, para trabalhar nos inquéritos de homicídio, vão dois policiais, para roubo em estabelecimento comercial eu coloco outros policiais.

Segundo este mesmo delegado é importante ter os policiais especializados, porque se torna possível relacionar aquele fato que ele está atendendo com as outras ocorrências de mesmo gênero que estão sob sua responsabilidade.

Dependendo da área, se você levanta, por exemplo, um homicídio em um morro decorrente de tráfico e têm vários outros crimes pendentes, dependendo da área em que estão acontecendo àqueles crimes, eles têm relação. O policial então vai poder vincular com aqueles casos que ele têm, se colocar todos os policiais para fazer tudo, o procedimento que um fez não vai ter vínculo nenhum com o que o outro fez, os policiais nem vão ficar sabendo do outro. Já se você tem o policial que investiga só aquilo, então quando você levanta um, você já pega mais três ou quatro casos.

Portanto, a manutenção da especialização nas delegacias é considerada válida, pois, por meio delas seria possível trabalhar com as particularidades e características de cada policial. Ele critica as alterações implantadas pelo Programa:

No meu ponto de vista o que prejudica na investigação principalmente dos crimes graves na delegacia é essa necessidade de todos terem que fazer clínica geral e não ter a especialização como existia na delegacia antiga, na convencional. [...] Às vezes o que acontece: o policial do atendimento na Delegacia Legal, eu vou te dar um exemplo, eu sou um policial e estou ali na mesa, um inspetor fazendo registro, “ah, chegou a conhecimento um caso de homicídio”, fiz registro e a partir do momento eu sou vinculado aquele homicídio para apurar o fato até o final. Claro, tem na resolução que passa homicídios, extorsão, tráfico é encaminhado para o GIC [grupo de investigação continuada], que tem a função de fazer a investigação desses crimes mais graves. Mas o que é que aconteceu? O policial que atendeu não foi o primeiro que chegou ao local, por mais que o cara ponha no papel ‘esmiuçadinho’ o que ele fez, o cara que vai pegar depois o caso não foi o que esteve no local. Mas eu acho que deve compartimentarizar aqui dentro da delegacia, dentro da minha equipe a existência desses grupos, dar preferência, às vezes acaba até transferindo, olha, dá procedimento para um, dá procedimento para outro, você vai trabalhar com fulano, isso vai ser do cicrano, entendeu?

Ao contrário da maioria dos entrevistados, um delegado afirmava que, na realidade, não existem especialistas que sejam peritos em um tipo de crime na polícia, porque a experiência de manutenção do modelo que prioriza as “equipes especializadas” não resultou em melhores resultados nas investigações, mas sim um acúmulo de procedimentos sem andamento.

Esse sistema de não ter especialista implementado pelo Programa Delegacia Legal, pelas estatísticas, produz muito mais resultados do que dos chamados especialistas! Como é que explica isso? Porque números não mentem!? O que acontece, é que eles já empregam esse tipo de especialização nas delegacias e por isso que os resultados são baixos.

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Mas por que os resultados são baixos? Por falta de compromisso. O brilhante especialista também não faz coisa nenhuma! Vamos chegar lá, são 146 casos de homicídios, por exemplo, numa determinada delegacia, em seis meses. 146 casos! Quantos casos foram resolvidos? Dois! E têm especialistas! Bom, para mim não são especialistas, porque têm 146 casos e se resolve dois. Eu acho que alguma coisa está errada! E os delegados ainda continuam com essa história de especialistas... Os especialistas nada mais são do que aqueles caras que não fazem coisa nenhuma. Se você pegar os inquéritos você vai ver que eles estão parados, os especialistas não estão trabalhando em especialização nenhuma.

A questão de haver ou não policiais especialistas é bastante controvertida entre os policiais, porém, o que importa salientar é que esse discurso sobre a especialização traduz-se em formas distintas de perceber o processo investigativo pelos policiais. Para alguns, a especialização contribuiria para uma melhor elucidação dos casos, por outro, ela, como argumenta outro policial sobre os números das estatísticas de elucidação na polícia, não influenciam de nenhuma maneira a elucidação dos casos. Deve-se ressaltar que um dos principais objetivos preconizados pelo programa era responsabilizar o policial pela ocorrência que atende, ou seja, de criar uma relação entre o fato, a investigação, o policial e o resultado do trabalho realizado por ele. No entanto, segundo observamos, é principalmente no que diz respeito ao esforço de impor novas formas de controle e avaliação do trabalho policial que os policiais mais resistiam. A crítica aos “policiais especialistas”, desse modo, deve ser entendida como uma forma de particularizar as responsabilidades e cobrar resultados, o que provocava uma grande irritação entre esses policiais.

O PERFIL DOS HOMICÍDIOS POR ÁREA DE DELEGACIA: “CADA CASO É UM CASO”

É comum no meio policial ouvir que “cada caso é um caso”, o que impossibilitaria a construção de estratégias de análise a partir da definição de padrões dos crimes, o que criaria uma maior dificuldade para pensar a investigação dos homicídios.

Nesse sentido procuramos compreender o que representava essa singularidade dos casos. Iniciamos por analisar a particularidade dos conflitos em cada uma das delegacias pesquisadas, a partir da interpretação que os próprios policiais faziam dos crimes e da análise das informações referentes aos casos selecionados. De modo que o banco de dados construído representou uma sistematização dos conflitos em documentos por parte da Polícia Civil, ou seja, a forma como os policiais lêem e formalizam os fatos em termos de procedimentos.

Na 12a DP, em Copacabana, notamos que das sete vítimas de homicídios dolosos existentes em 2002, duas morreram por questões passionais, outras duas por crimes homofóbicos e as três restantes porque estavam ligadas ao tráfico de

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drogas. As explicações dos entrevistados para a baixa ocorrência dos homicídios em Copacabana relacionam-se à maior renda da população que ali reside, o policiamento em Copacabana que seria maior em relação aos outros bairros, e ao fato do tráfico em Copacabana não concentrar suas atividades somente nas favelas que seriam dominadas somente por uma facção criminosa (Comando Vermelho), mas “pulverizadas no asfalto”, na esquina, nos quiosques, nas boites, etc. Além disso, destacaram que esta criminalidade violenta também está vinculada à prostituição. Os homicídios em Copacabana, segundo entrevistados, têm outra característica muito peculiar: ocorrem intramuros e os corpos são encontrados em lugar fechado, já em estado de putrefação, vários dias depois do fato.

Na 34a DP, em Bangu, o perfil era outro. De acordo os entrevistados, a grande maioria dos homicídios desta área estava relacionada à disputa entre três facções do tráfico – “Terceiro Comando”, “Comando Vermelho” e “Amigos dos Amigos” – que atuavam nas favelas da região. Em menor número, os policiais identificavam os homicídios relacionados a conflitos entre contraventores (caça-níqueis) e às disputas por pontos de vans. Um delegado identificou existirem casos de “autos de resistência” nesta delegacia. Também apontou como uma das razões dos altos índices de homicídio na 34a DP, o fato de ocorrer muitos conflitos que resultam em homicídios no presídio, que fica na região. Os crimes passionais foram considerados raros e geralmente estavam relacionados às lesões corporais.

Verificamos em consulta ao banco de dados que 70,7% dos homicídios ocorridos em Bangu se deram por emprego da arma de fogo. Em relação à circunstância que estes fatos se deram, em 29,9% dos casos não temos nenhuma informação, em outros 19,7% das informações disponíveis no inquérito não se pode inferir nenhuma circunstância, 12,9% dos casos envolviam mortes decorrentes dos conflitos no presídio, 11,7% eram homicídios decorrentes do tráfico de drogas, 8,8% dos crimes ocorreram por motivos fúteis, 6,8% eram decorrentes do confronto policial, crimes de vingança e passional contribuíram com 3,4% cada, 1,4% foi morte ocasionada por bala perdida.

Quanto ao uso de armas, das 76,5% das mortes provocadas por tráfico foram provocadas por arma de fogo e 60% dos crimes passionais com uso da arma branca. No que diz respeito às mortes nos presídios, sobre 42,1% dos casos não temos a informação sobre o meio utilizado, 21,1% foram praticados através da agressão física e fogo, 15,8% com uso de arma branca e 10,5% dos casos se tratavam de enforcamentos.

Já na 6a DP, na Cidade Nova, os delegados afirmaram que o maior problema era um conflito violento em vários morros, onde também atuariam três facções distintas do tráfico, as mesmas que em Bangu. Outra modalidade que apontaram ser muito frequente é o roubo de carro para a “desova” de corpos das vítimas exterminadas pelo tráfico de entorpecentes. Segundo eles, os crimes

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relacionados ao tráfico em Cidade Nova dizem respeito à briga entre quadrilhas rivais que disputam o monopólio da venda de drogas, à quebra de alguma regra imposta pelo tráfico em sua área de atuação, por conta da dívida de usuários de drogas ou por conta do confronto entre a polícia e os traficantes.

Em consulta ao banco de dados pudemos observar que, em 2002, 44,4% dos homicídios em Cidade Nova estavam ligados ao tráfico de drogas; 5,6% dos homicídios estavam relacionados a confrontos policiais, casos de “motivo fútil” e conflitos em presídios; 4,4% dos crimes envolvem vingança; 2,2% de crimes passionais e sobre os 31,2% restantes não foi possível identificar as circunstâncias do crime.

Quanto ao uso de armas, 75,6% dos homicídios ocorridos em Cidade Nova ocorreram com uso da arma de fogo, os policiais afirmaram em entrevista que a maioria das vítimas por arma de fogo na região morreu com um tiro no rosto, o que sinalizaria uma prática de execução sumária por parte de traficantes. Dos homicídios decorrentes do tráfico de drogas, 82,5% se deram por arma de fogo, 7,5% com fogo e em 10% dos casos os registros não forneciam informação.

Conforme os agentes e delegados entrevistados que atuavam na 21a DP, em Bonsucesso, a maioria dos homicídios dolosos ocorridos dizem respeito ao tráfico, apontaram ainda a ocorrência frequente de homicídios culposos, por conta da malha viária que abrange (Linha Vermelha e Avenida Brasil), e também de autos de resistência e latrocínios. Em relação ao tráfico, os policiais afirmaram que os conflitos ocorriam de duas maneiras: diziam respeito ao “alcaguete” morto pela própria quadrilha, ou correspondiam ao conflito entre facções. Em ambos os casos, tanto a vítima como o autor estariam envolvidos de alguma forma com o tráfico. O principal modo de execução relativo ao tráfico seria o esquartejamento e queima dos corpos (para dificultar a identificação da vitima por parte da polícia), a desova dos corpos em malas de carros roubados e “balas perdidas”.

Em Bonsucesso, os crimes também ocorreram em sua maioria com uso da arma de fogo (87,2%), mas salientamos que a falta de informação sobre o instrumento utilizado aparece em segundo lugar (9%). No que diz respeito às circunstâncias dos homicídios, observamos que, 36,7% dos casos se referiam ao tráfico de drogas, em 30,9% não há informação alguma sobre a circunstância do delito, em 7,4% dos casos há alguma informação nos registros, mas deles não podemos deduzir qual a circunstancia que abarca23, em outros 7,4% os casos envolvem o confronto policial, em 5,3% deles a bala perdida, 4,3% eram vinganças, 3,7% eram crimes praticados por motivo fútil, 2,1% eram execuções de policiais, os dois casos restantes se sucederam em decorrência do não pagamento de dívida e da legítima defesa do patrimônio.

23 Em algumas análises agrupamos as circunstâncias “sem informação” (ausência total de informações sobre o fato, apenas informações técnicas sobre o procedimento adotado pelo policial) e “sem definição” (havia informações sobre o fato, porém, a partir delas, não era possível classificar ou identificar o evento). Essas categorizações foram elabora-das pela equipe de pesquisa. Para mais informações sobre a elaboração dessas categorias ver Miranda et al. (2006)

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Dos homicídios provocados por arma de fogo, nos primeiros lugares aparecem os 36,6% homicídios decorrentes do tráfico de drogas e 30% de casos sem informação.

Na 20a DP, em Vila Isabel, os entrevistados afirmaram que os autos de resistência se sobrepunham aos homicídios dolosos na região. Em relação aos homicídios que têm por circunstância o tráfico, afirmaram que não existiam conflitos entre facções rivais em Vila Isabel, pois o Complexo do Andaraí e o Morro dos Macacos “pertenceriam” ao Comando Vermelho. Neste sentido, os delitos na área são provenientes dos conflitos dos traficantes pertencentes a uma mesma facção, e os corpos das vítimas depois de executadas são desovados geralmente em lixeira e malas de carros roubados.

CRITÉRIOS DE ÊXITO E ELUCIDAÇÃO DOS CRIMES DE HOMICÍDIOS DOLOSOS

De acordo com os policiais entrevistados, elucidar um crime é chegar a sua autoria e obter sua materialidade, isto é, obter provas para que o delegado possa fundamentar seu relatório final de inquérito e enviá-lo à justiça. O relatório final é uma peça do inquérito produzida obrigatoriamente pelo delegado de polícia. É essa peça que encerra o Inquérito policial. Nesse documento o delegado deveria fazer um resumo de toda a investigação, para dar base a uma possível denúncia do promotor, que por sua vez daria início a ação penal.

Todos os agentes e delegados entrevistados concordaram que elucidar um crime é conseguir comprovar a sua autoria, porém quanto à definição dos critérios de êxito policial nas investigações houve duas linhas distintas de entendimentos: a visão de que obter êxito é o mesmo que elucidar. Outra interpretação é que obter êxito é “dar por encerrada as investigações, com ou sem autor”, ou seja, é relatar à justiça o inquérito com ou sem autoria.

Um caso relatado sem autoria ocorreria quando não existem mais meios para chegar a um possível autor. Tudo já foi tentado, todos os meios de investigação já teriam sido acionados, mas é impossível a elucidação do ponto de vista policial. Nas explicações dadas pelos policiais, nesses casos “impossíveis”, os delegados deveriam relatar logo o fato à Justiça e pedir o seu arquivamento, desocupando, assim, a delegacia e evitando que esta cumpra apenas os prazos burocráticos de envio. Na avaliação dos policiais caberia ao Ministério Público aceitar ou não. Um policial disse:

O relatório deve estar muito bem fundamentado para um promotor querer arquivar um caso de homicídio antes do seu prazo de prescrição que é de 20 anos! E se o Ministério Público não aceitar, ele devolve à polícia para prosseguir nas investigações.

Um delegado afirmou que em sua delegacia havia vários casos que

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poderiam ser relatados à Justiça para arquivamento por não ter se chegado à autoria. Enquanto o relatório não é produzido e o caso não é arquivado, tem-se o que os policiais chamaram de “ping-pong” entre o Ministério Público, por meio da Central de Inquéritos, e a delegacia com intuito de cumprir prazos.

Algumas vezes o Ministério Público não aceita o pedido de arquivamento do delegado, e faz o inquérito voltar para a delegacia solicitando mais investigações. Em alguns casos o Ministério Público não especifica o que deve ser feito para que as investigações do crime prossigam, apenas colam uma etiqueta, onde está escrito “Prossiga-se nas investigações”. A polícia, por sua vez, não faz nenhuma diligência, pois do seu ponto de vista não há mais nada a fazer. Essa supervisão do Ministério Público é vista como uma intromissão nos procedimentos policiais.

Quando se constatam indícios de autoria e de materialidade do delito, os policiais afirmavam que o relatório deveria ser muito bem fundamentado para que o acusado fosse indiciado no inquérito policial, visto que deveria convencer o Ministério Público a denunciar e dar início a ação penal contra o possível autor identificado na fase policial.

Começa, então, um processo judicial, orientado pela lógica do contraditório. Mas se o crime foi intencional contra a vida humana, sem relação com crimes contra a propriedade24, há mais uma instância, que se verifica no chamado Tribunal do Júri.

Como cada instância dessas – inquérito policial, processo judicial e julgamento pelo Tribunal do Júri – tem uma forma de produzir a verdade judiciária diferente, a saber, respectivamente, inquisitorial, contraditória e de prova legal – os sistemas de verdade se encontram hierarquizados judiciariamente, cabendo à polícia, em todo o sistema, o estágio mais baixo e menos afeito ao estado democrático de direito: o procedimento inquisitorial.

Verificamos que, dos inquéritos analisados, apenas catorze casos foram relatados à justiça, dos quais cinco apontavam autoria e nove foram relatados, mas não apresentavam indícios de autoria. Observamos que, a maioria dos casos estava na situação de “enviado à justiça”, sem indicação de nenhum autor. Se tomarmos como parâmetro os critérios policiais que definem o êxito de uma investigação, podemos dizer que alguns consideram êxito somente os casos relatados à justiça com autoria. De acordo com esse critério, verifica-se que o percentual de êxito nesses 381 casos (não-flagrantes) analisados referentes ao ano de 2002 é muito baixo, pois correspondem a apenas 1,31%, ou seja, somente cinco casos foram relatados à justiça com autoria.

Se considerarmos que o êxito do trabalho policial deve ser verificado com base nos inquéritos relatados à justiça, mesmo sem autoria identificada, o resultado se altera um pouco, pois teríamos 14 casos foram relatados à justiça 24 Neste caso, é tipificado como latrocínio e julgado por um juiz singular, de forma análoga aos outros crimes.

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nessa situação, ou seja, 3,67%. Assim, o critério de êxito da investigação está centrado na produção, ou não, de relatórios finais pelo delegado25.

Poderíamos pensar também que a qualidade destes relatórios poderia formar um terceiro critério de êxito: conseguir o arquivamento nos casos que não há mais o que investigar ou a denúncia quando existe a indicação de uma autoria.

CONSIDERAÇÕES FINAISA análise dos procedimentos de registro de ocorrência, inquérito e

investigação policial evidenciam que a lógica “cartorial” continua permeando os procedimentos jurídico-burocráticos, o que implica que o registro é feito pelo Estado para o próprio Estado, com o objetivo de criar uma interpretação autorizada sobre os fatos.

Nesse sentido, podemos concluir que o Programa Delegacia Legal promoveu mudanças físicas nas delegacias e nos processos de trabalho, estimulando a profissionalização dos policiais e a reestruturação da gestão da delegacia. Porém, não se pode afirmar que houve uma mudança profunda nas práticas policiais, em especial, ao que se refere às práticas cartoriais e a confecção do inquérito.

O que foi possível verificar no período de seis meses de realização da pesquisa foi uma transformação no que se refere à qualidade dos dados gerados pela Polícia Civil no que se refere ao preenchimento de campos relacionados ao perfil das vítimas, o que foi identificado também em outras pesquisas:

Há que se reconhecer e louvar as iniciativas nesse sentido. Não apenas no que diz respeito à concepção do projeto, que envolveu a criação de um sofisticado sistema de informática. Investiu-se também no processo de qualificação dos profissionais de polícia e de controle sistemático da geração de informações policiais. Essas iniciativas produziram, ao menos no caso dos crimes sexuais, uma redução da quantidade de campos não preenchidos nos Registros de Ocorrência. No que se refere aos meios empregados na consecução do crime de Atentado Violento ao Pudor, por exemplo, o percentual de dados “não informados” foi reduzido de 21,9% para 11,9% entre 2001 e 2003. Nos casos de estupro, nesse mesmo período, a falta de informação diminuiu de 15,9% para 3,7% (Moraes, Soares e Conceição, 2005: 3).

Porém, nos campos relacionados às informações que poderiam contribuir para a delimitação de linhas de investigação do homicídio, notou-se que ainda há vários problemas. Em especial, o campo “dinâmica do fato”, estava sendo preenchido pelos policiais com informações sobre os procedimentos técnicos e não com informações sobre o crime, o que revela que a confecção de um registro de ocorrência e a construção de um inquérito são procedimentos

25 Se considerarmos os critérios de êxito os casos relatados à justiça com ou sem autoria, é possível afirmar que a 34a DP teve o maior número de casos relatados à justiça (7) e também o maior número de inquéritos relatados com autoria (3). A delegacia de Copacabana estaria em segundo lugar com dois inquéritos relatados à justiça com autoria. A delegacia de Bonsucesso teve três inquéritos relatados sem autoria e a de Cidade Nova dois relatados também sem autoria. E finalmente a delegacia de Vila Isabel, em último lugar, não teve nenhum inquérito relatado à justiça até o momento da análise dos casos.

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institucionais que caracterizam o trabalho da Polícia Civil, mas que demandam a interação da instituição com outras agências dos sistemas de segurança pública e justiça criminal.

A análise da qualidade das informações também foi feita no que se refere a uma provável relação entre vítima e autor, as circunstâncias do homicídio e os instrumentos utilizados para o crime. Quanto a isso, observamos que a provável relação entre vítima e autor é uma informação pouco compilada pelos policiais, apesar de ser considerada de extrema importância para a investigação. Nos dados das delegacias analisadas, esta informação estava ausente em mais de 50% dos casos com vítimas mortas.

Em relação à circunstância do delito, considerando os 392 casos analisados, observamos que 30,6% dos casos eram ligados ao tráfico de entorpecentes; 25,5% não tinham informação que pudesse identificar uma provável circunstância em que aconteceu o homicídio; 14,5% dos casos continham informações relevantes no inquérito, porém não era possível identificar a circunstância, sendo classificados pela equipe de pesquisa como “sem definição”; 6,4% motivo fútil; 5,9% confronto policial; 4,8% conflitos em presídio; 3,8% vingança; 3,3% erro de execução; 1,8% eram crimes passionais; 1,3% execuções de policiais; 0,5% homofobia; 0,5% erro de pessoa; 0,5% não pagamento de dívidas; e, 0,5% legítima defesa do patrimônio.

E, finalmente, cruzamos as informações sobre o meio utilizado para o crime com a circunstância do delito e concluímos que 86,6% das vítimas ligadas ao tráfico de entorpecentes foram mortas com arma de fogo e esse foi o instrumento mais utilizado para o cometimento dos homicídios analisados nas cinco delegacias. Porém, a maioria das vítimas de homicídios passionais (66,7%) foi morta por arma branca. Houve ausência de informação sobre o meio utilizado no crime em 11% dos casos.

Quanto à percepção e avaliação dos agentes e autoridades policiais sobre o trabalho de investigação dos crimes de homicídio foi possível constatar que existe uma preocupação maior com o trabalho de cumprimento de prazos do que com a elucidação dos homicídios. Mas é importante ressaltar que o trabalho da Polícia Civil depende do trabalho de outros órgãos, tais como o do Ministério Público e ressaltamos a importância do trabalho da perícia técnica. Não há como concluir um inquérito com a titulação de “homicídio doloso” sem os laudos de local (ICCE) e cadavérico (IML) e, consequentemente, será difícil definir uma linha investigativa se não houver informações sobre a forma como a pessoa morreu, com qual instrumento, se há indícios de tortura, etc.

Também julgamos importante observar a relação entre as polícias civil e militar. Cabe destacar que os policiais militares sempre aparecem como

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testemunhas nos registros de ocorrência, porque comparecem com mais freqüência aos locais do crime do que a polícia civil, como mostrado. Em 50,4% dos registros verificamos a existência somente de duas testemunhas arroladas; e, na análise qualitativa, observamos que essas duas testemunhas eram exatamente os policiais militares que estiveram no local do homicídio e que foram à delegacia prestar depoimento. Assim, muitas vezes é unicamente o relato destes policiais que serve de base para que o fato delituoso seja descrito na dinâmica e que se defina uma linha investigativa. Além disso, os policiais militares realizaram a prisão em flagrante dos autores dos crimes conforme constatamos nos onze casos de flagrantes analisados, e impediram o linchamento em uma ocasião.

Considerando a contribuição da antropologia na análise de políticas públicas, buscamos analisar a efetividade do Programa Delegacia Legal, no que se refere ao trabalho de registro de ocorrências e de investigação do crime de homicídio doloso. Observamos que os mecanismos de monitoramento que o Programa oferece, representaram um avanço no controle da qualidade da informação. Embora alguns policiais continuem resistindo a inserir determinadas informações em sistema com vistas a escapar a este tipo de controle.

O debate acerca da especialização das equipes também revela que existem resistências. O objetivo do Programa de tentar acabar com os grupos “especializados” nas delegacias tinha como principal argumento, o fato de que os policiais que trabalhavam nessas equipes não dominavam técnicas e práticas que sejam específicas para a investigação para cada crime. Os policiais eram alocados para os grupos de trabalho independentemente se tinham formações naquela área, mas de acordo com suas habilidades e relacionamentos pessoais. O Programa buscou acabar com essa divisão interna que é somente formal e não tinha resultado prático, e propôs que a especialização deveria existir a partir do esforço de aperfeiçoamento continuado desses profissionais. Apesar disso, identificamos que na prática, esses setores especializados de investigação continuam a se reproduzir nas Delegacias Legais, porque representa um papel importante para reconhecimento das relações de prestígio policiais.

Observa-se a oposição clara entre o modelo de profissionalismo, proposto pelo Programa, e o modelo onde o funcionário resiste à formalização de padrões para avaliação do trabalho policial, a fim de manter seus poderes e vantagens.

Ressalta-se que a organização e análise dos dados propostos pelo Programa Delegacia Legal são importantes por dois aspectos: permite que as instituições policiais possuam insumos de qualidade para realizar seu trabalho, visando reduzir a vitimização de cidadãos; além de permitir que a administração pública conheça os principais problemas do ponto de vista da população. Isto é importante porque, como apontaram diversas pesquisas já citadas sobre o trabalho policial, sabe-se que somente é registrado o que é considerado

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mais importante, e a padronização da informação faz parte de um esforço de estruturação e organização das instituições, como forma de centralizar o acesso aos dados na administração central e com o objetivo de reduzir o arbítrio policial. Trata-se de buscar formas de controle institucionais, que assegurem a qualidade e a padronização da informação e do trabalho da polícia.

Com base nas entrevistas, pudemos identificar que na percepção dos policiais uma boa investigação não está pautada apenas na identificação da autoria, mas também na quantidade e qualidade das informações coletadas no inquérito policial, o que demonstra o esforço empregado no trabalho policial em elucidar o homicídio. Em alguns casos, apesar de haver uma reunião enorme de provas e indícios que levassem à autoria, não foi possível identificar o autor. Por outro lado, alguns casos apresentaram ausência de informações fundamentais para a elucidação, tais como os laudos periciais e declarações de testemunhas. Nesses casos, pode-se especular que o trabalho policial não foi realizado corretamente e, é claro, não se pôde identificar uma autoria.

Cabe salientar que a prevalência de homicídios relacionados ao tráfico de drogas é uma explicação apresentada pelos policiais para justificar a falta de testemunhas, o que seria devido a uma estratégia de coação dos moradores, que ficam temerosos em descrever o que viram, ouviram ou presenciaram. Considerando-se o universo de 392 casos analisados (flagrantes e não-flagrantes), concluímos que o percentual de elucidação foi de 4,1%, esse percentual representa os cinco inquéritos relatados à justiça com autoria e os onze registros de flagrantes.

Se ainda não houve um impacto na eficiência policial, ou seja, se a produtividade no que se refere à elucidação de crimes ainda é baixa, é bom lembrar que antes da implantação do Programa Delegacia Legal havia pouca possibilidade de saber quais crimes teriam sido registrados e resolvidos.

A resistência ao Programa no que se refere às novas práticas procedimentais de investigação deve ser pensada como um indicador de que houve uma tentativa de mudança da lógica policial, para que deixasse de ser uma rotina cartorial e se transforme numa ação mais investigativa. Nesse sentido, pode-se especular que o Programa produz um impacto sobre a Polícia Civil, na medida em que os policiais tiveram de desconstruir práticas há muito consolidadas na instituição; eles tiveram que utilizar os novos instrumentos seja para se incorporarem ou criarem obstáculos à proposta reformadora que ainda está em curso.

Acreditamos que a contribuição da pesquisa está relacionada a uma possibilidade de se compreender os obstáculos e as diversas formas de resistência aos processos de transformação provocados pela implantação de uma política pública. Nesse sentido, podemos arriscar afirmar que o Programa Delegacia Legal produziu um impacto sobre a Polícia Civil, na medida em que os policiais tiveram

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de enfrentar práticas há muito consolidadas na instituição. Todavia não se pode imaginar que ao se tentar romper com as práticas tradicionais de registro de ocorrência e produção de inquérito por meio da utilização de novos instrumentos, em especial, da tecnologia computacional, tenha sido suficiente para romper com um modelo inquisitorial que vige em todo o sistema de justiça criminal e segurança pública no país.

Portanto, embora propostas de reforma do funcionamento da Polícia Civil tenham sido desenvolvidas no Rio de Janeiro, no marco de políticas públicas que buscam uma maior eficiência no desempenho do estado na área da segurança pública e da justiça, é possível observar as dificuldades das instituições em consolidar, através de práticas institucionais, o direito de acesso à justiça, enquanto componente básico dos direitos de cidadania (Marshall, 1965), prevalecendo nas formas de administração institucional dos conflitos nesses espaços modos desiguais e hierárquicos de acesso aos serviços públicos. Tal fato pode ser observado pelo tratamento diferenciado no encaminhamento de laudos para as delegacias que atuam em áreas nobres da cidade que é mais rápido do que para as demais delegacias.

O trabalho de campo nas delegacias também revelou que as formas de atendimento e administração de conflitos pelos policiais variam não só de acordo com a natureza dos conflitos, mas também de acordo com o status e/ou as relações das pessoas envolvidas neles, dificultando o acesso à justiça e a um tratamento igualitário. No caso dos homicídios dolosos isso se manifestava pelos critérios de encaminhamento de casos para as três Delegacias Especializadas em Homicídios do Estado, não tratam de todos os homicídios ocorridos no Estado, mas trabalham com avocação de inquéritos de outras delegacias, atendendo aos critérios definidos na Resolução da Secretaria de Segurança Pública n° 636, de 19 de julho de 2003:

I – Apuração dos homicídios que causem grande clamor público e comoção social, ou ainda aqueles que, pela complexidade ou envolvimento de grupos de extermínio, imponha sua atuação;

II – Apuração de outros crimes, a critério do chefe de polícia;

III – Colaboração com as demais delegacias policiais na elucidação dos crimes de autoria desconhecida, nos primeiros 30 dias de ocorrência, fazendo-se presente no local da infração,quando solicitada, bem assim o seu prosseguimento, por determinação do Chefe de Polícia, ou solicitação do respectivo titular;

IV – Realização de diligencias e investigações para esclarecimento dos fatos inscritos em suas atribuições, mantendo arquivos atualizados de identificação de criminosos;

V – Coordenação de programas preventivos de controle e redução da criminalidade;

VI – Descoberta de paradeiro de pessoas desaparecidas.

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As Delegacias Especializadas dedicam-se então apenas aos inquéritos que foram iniciados em outras delegacias e que, por causarem “clamor público”, “comoção social” ou ser de “grande complexidade”, são avocados das delegacias distritais pelo Chefe de Polícia para que tenham um “tratamento especial”, que está relacionado menos ao tipo de crime – homicídio, mas ao tipo de pessoa:

tinha muitos casos de bêbados em birosca, muita morte de bêbado e viciado, que ficava devendo e acabava por ser morto. Agora, os casos que são trabalhados na delegacia [especializada] são crimes mais complexos que, às vezes, os próprios promotores que pedem para o Chefe de Polícia para avocar para cá, porque acham que a delegacia que está atendendo não dá uma prioridade aos casos.

Como mencionamos, essa forma de administração institucional segue a tradição judiciária brasileira de conferir privilégios processuais a certas categorias sociais (Kant de Lima, Eilbaum e Pires, 2008). Nesse sentido, ressalta-se que a ausência de mecanismos de administração adequada de conflitos de natureza diferente dos “crimes de repercussão”, ou que envolvem “pessoas especiais”, promove também o crescimento da violência e da sensação de impunidade e falta de confiança nas instituições.

Acreditamos que, no caso do sistema burocrático judiciário criminal contemporâneo, o sistema da obrigatoriedade do registro pode levar, por exemplo, a uma dificuldade no registro e acompanhamento dos procedimentos judiciários criminais, por operar distorções estruturais de difícil avaliação. Assim é que no Rio de Janeiro, a impossibilidade de a polícia cumprir o princípio da obrigatoriedade provoca reação correspondente na figura das verificações preliminares à abertura de inquéritos (VPI) que, no entanto, são registradas oficiosamente e encapadas como se inquéritos fossem – em autos. O princípio da obrigatoriedade também leva, no âmbito do judiciário, a um desnecessário acúmulo de processos iniciados, mas não concluídos.

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Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |153

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil

Andrea Lessa1

INTRODUÇÃOO notável crescimento da violência nas grandes metrópoles, tanto em

países desenvolvidos como em vias de desenvolvimento, acabou por inseri-la como uma das principais preocupações no campo da saúde coletiva em todo o mundo há quase duas décadas (Minayo, 1994; 2004).

Nos Estados Unidos, a violência interpessoal já é a principal causa de mortes prematuras entre adultos jovens (Cornwel et al., 1995), sendo considerada uma epidemia e um problema prioritário de saúde em todo o mundo. Esta situação levou a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) a criar o Plano de Ação Regional para prevenção e atuação contra o crescimento da violência (OPAS, 1994).

No Brasil, a análise dos dados de mortalidade da década de 1980 lhe garantiu o posto de segunda causa de óbito no país a partir de 1989, contribuindo com 15,3% da mortalidade geral, atrás apenas das doenças cardiovasculares (Souza & Minayo, 1995).

Embora esta situação de crescimento das taxas de morbi-mortalidade associadas à violência seja mais crítica nos países em desenvolvimento, este fenômeno alcançou proporções mundiais, inclusive entre os países desenvolvidos.

O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, elaborado pela Organização Mundial de Saúde, adverte que mais de um milhão de pessoas morreram em 2000 como resultado da violência e milhares sofrem com lesões não fatais. Nos anos de 1999 e 2000 a taxa de mortalidade por lesão intencional foi de 65,1 por 100 mil habitantes na Colômbia; 27,7 no Brasil; 15,6 na França e 11,5 na Alemanha (Souza et. al, 2003). Especificamente para o Brasil, em 2000 os homicídios lideraram a mortalidade entre as causas externas, correspondendo a 38,3% do total (Gawryszewski et al., 2004).

É fato, portanto, que a redução da mortalidade causada pelo fenômeno da violência constitui-se um dos grandes desafios da atualidade em quase todas as regiões do mundo. Seu caráter multifacetado, o qual pode associar fatores econômicos, culturais, ideológicos e individuais, determina o envolvimento dos vários setores da sociedade de forma integrada e complementar.

Por um lado, pesquisadores das áreas da saúde e das ciências sociais procuram identificar suas causas no plano regional e sob uma perspectiva histórica, e compreender seu impacto na população visando orientar ações sociais 1 Professora Adjunta - Setor de Antropologia Biológica - Departamento de Antropologia - Museu Nacional/UFRJ - Pesqui-

sadora CNPq - Contato: [email protected]

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e serviços de saúde. Por outro lado as autoridades responsáveis pela segurança pública desenvolvem ações policiais de repressão aos principais atores do cenário de violência que assola o país.

Mas, como todos sabemos, muitos aspectos relacionados a este fenômeno ainda merecem mais atenção e ações efetivas. A impunidade é um deles. Como destacado por Souza (1993), os mediadores entre a situação macro-social e as altas taxas de homicídio incluem a deterioração das relações interpessoais e o predomínio da injustiça e da impunidade.

Com relação a este último aspecto, uma questão crucial foi discutida durante a elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública (SENASP, 2003), no qual um dos pontos de destaque refere-se à urgente necessidade de reformulação dos órgãos periciais. Via de regra, estes órgãos encontram-se sucateados e distantes da comunidade científica, bem como desprovidos de equipamentos modernos e treinamento especializado. Foram enfatizadas as principais deficiências nas atividades de perícia, como a ausência de procedimentos adequados para remoção e identificação de cadáveres, além da imperiosa necessidade de preservação da cena do crime e da existência de especialistas para coleta de vestígios.

Buscando reverter este quadro, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) vem se esforçando na tarefa de dotar a polícia de mais apoio científico e técnico, capacitando-a melhor para a resolução de investigações criminais e conseqüentemente para a redução da impunidade de criminosos.

A partir desta nova orientação, a Senasp/Ministério da Justiça promoveu em 2005 o Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justiça Criminal, com a sub-área Dotações para Pesquisas Aplicadas em Estruturação e Modernização das Instituições Periciais, com o objetivo de promover o desenvolvimento científico na área da perícia criminal, bem como identificar de forma mais precisa seus pontos de fragilidade ou inoperância.

No âmbito deste concurso, foi realizado o projeto de pesquisa Avaliação da Demanda de Peritos em Antropologia Forense para aprimoramento e Modernização das Instituições Periciais, elaborado e coordenado pela autora deste artigo.

Entre todas as áreas da perícia criminal amplamente desenvolvidas em muitos países, mas ainda deficiente no Brasil, a Antropologia Forense se destaca pela sua expressiva contribuição para a resolução de inquéritos criminais.

No Brasil, esta prática forense reveste-se de singular importância em função das estatísticas dos registros de pessoas desaparecidas e do crescente número de denúncias de cemitérios clandestinos, tornados públicos diariamente nos veículos de comunicação.

Exemplos extremos desta situação e da impunidade são caracterizados pela descoberta da vala clandestina de Perus em 1990, localizada no cemitério de

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |155

Dom Bosco, na periferia de São Paulo, onde foram encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da morte (Teles, 2000); e de uma vala clandestina no cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, de onde foram exumadas 2.100 ossadas de indigentes e presos políticos (Araújo, 1995).

Diante do quadro exposto, o referido projeto teve como objetivos fornecer dados quantitativos e qualitativos que demonstrassem a real necessidade de peritos especializados em Antropologia Forense nas instituições periciais brasileiras. A partir destes dados, foi avaliado o limite do serviço de identificação das ossadas e dos cadáveres que dão entrada nos IMLs sem impressões digitais e/ou condição de reconhecimento por parte dos familiares. Buscou-se construir um quadro de referência a partir das diferentes regiões do território nacional, apontando as áreas de maior demanda de especialistas, além de detectar os elementos que atualmente dificultam ou impedem a realização das perícias de forma satisfatória.

CONCEITUALIZAÇÃONos países onde a Antropologia Forense está institucionalizada,

como Estados Unidos, Argentina, Colômbia, Guatemala e Peru, ela é situada como um ramo especializado da Antropologia Biológica. Seu surgimento partiu da necessidade de se construir um corpo teórico-metodológico com base em conhecimentos científicos específicos, e ao mesmo tempo multidisciplinares, que fosse capaz de lidar com restos humanos esqueletonizados associados às cenas de crimes, ou, em situações menos comuns, com corpos mumificados ou cujas marcas dactilares tenham sido extirpadas. Suas atribuições são exumar, analisar e identificar ossadas provenientes de fossas clandestinas individuais ou múltiplas, produzidas em casos criminais de narcotráfico, políticos, civis, de guerra etc., além de descobrir em que circunstâncias ocorreu a morte do indivíduo e reconstituir a cena do crime (Byers, 2002; Cuenca, 1994; Ubelaker, 2000).

Apesar de a Antropologia Forense ser considerada um ramo especializado da Antropologia Biológica, ela na realidade agrega uma série de conhecimentos que extrapolam os limites desta última disciplina. Nos Estados Unidos, país pioneiro na sua prática, as Ciências Sociais ocupam um lugar importante na formação dos profissionais, além de ser enfatizado não apenas o estudo dos tecidos duros (ossos e dentes), mas também as técnicas da arqueologia para a escavação, documentação e coleta dos vestígios (Kerley, 1992; Hunter, 2005; Ubelaker, 2000).

As análises macroscópicas, dependendo da contextualização e do grau de preservação do material, podem fornecer estimativas acuradas de sexo, idade, altura, lateralidade, ancestralidade, causa de morte (arma de fogo, instrumento pérfuro-cortante, estrangulamento, etc.), forma de morte (natural, homicídio, suicídio, acidente), além de características individualizadoras como doenças ou alterações biológicas ocorridas ao longo da vida do indivíduo e marcas de estresse

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ocupacional. Os dados obtidos através desta análise osteobiográfica são a chave para a identificação positiva de pessoas desaparecidas, além de alimentarem de forma mais precisa e completa bancos de dados utilizados em pesquisas epidemiológicas, como o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM).

METODOLOGIA GERALInicialmente, foi apresentada uma metodologia padronizada para o

levantamento dos dados nas cinco capitais eleitas. Com o decorrer do trabalho, no entanto, tornou-se fundamental a adaptação da metodologia proposta em função da diversidade de contextos observada. Esta diversidade reproduz tanto as especificidades sócio-culturais e geográficas de cada cidade estudada, como as distintas formas de organização estrutural das instituições em pauta.

Os critérios para escolha das capitais representativas de cada região foram a sua classificação como metrópoles globais, nacionais ou regionais (IBGE, 2004), onde a intensa e acelerada urbanização sem dúvida contribui para altas taxas de violência, além da existência de IMLs. A fim de contemplar todas as regiões do território Nacional, as cidades eleitas foram Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Goiânia, Porto Alegre e Salvador.

O recorte temporal abrangeu os anos de 2000 a 2003, e a definição dos tipos de cadáveres de interesse antropológico foi feita em função da impossibilidade de identificação positiva através de exame necropapiloscópico ou de reconhecimento por parte dos familiares. Os tipos de cadáveres de interesse são as ossadas, os carbonizados, os mutilados e os putrefeitos. A coleta de dados foi realizada a partir de quatro blocos de atividades:

1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos cadáveres de interesse (principalmente ossadas) através de aplicação de questionário fechado em autoridades policiais da Polícia Civil. O objetivo foi avaliar a capacitação profissional dos encarregados deste serviço, bem como saber se os procedimentos adotados são adequados. Foram entrevistadas autoridades policiais de todas as delegacias responsáveis por inquéritos de homicídio em cada uma das capitais. Os questionários, com os resultados apresentados por cidade, assim como a lista dos entrevistados, constam no relatório final da pesquisa disponível no site oficial da SENASP2.

2. Coleta de dados quantitativos referentes à localização e remoção dos cadáveres de interesse para a Antropologia Forense através dos Boletins de Ocorrência emitidos pelas delegacias de Polícia Civil, com o objetivo de identificar as DPs que apresentam maior demanda deste serviço. Este bloco da pesquisa foi realizado apenas para o Rio de Janeiro, uma vez que para as demais cidades este procedimento não se mostrou factível e/ou informativo (gráfico 1).

2 http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/anpocs/proj_aprov/aval_deman_per_andrea

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |157

3. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos cadáveres de interesse para a Antropologia Forense através de entrevistas com os médicos legistas lotados nos necrotérios dos Institutos Médico-Legais. O objetivo foi avaliar a capacitação profissional dos legistas, bem como saber se os procedimentos de análise são realizados de forma correta e suficiente, e se há adequação das condições de trabalho para uma tentativa de identificação positiva dos cadáveres de interesse antropológico. Foram aplicados questionários abertos e fechados, e ao final da entrevista era perguntado ao legista se ele teria algum comentário ou sugestão complementar às questões apresentadas. Nos IMLs onde não foi possível entrevistar todos os legistas, foram contemplados profissionais de todos os plantões da semana para garantir a sua representatividade. Os questionários, com os resultados apresentados por cidade, assim como a lista dos entrevistados, constam no relatório final da pesquisa disponível no site oficial da SENASP.

4. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos cadáveres de interesse para a Antropologia Forense através dos protocolos de entrada de cadáveres nos IMLs, com o objetivo de avaliar de forma acurada e precisa sua representatividade em relação ao total de cadáveres que dão entrada nestas instituições. A quantificação foi feita separadamente por ano e para cada tipo de cadáver de interesse com base no total de cadáveres periciados e no total de cadáveres sem identificação. Foram feitas as seguintes quantificações:

- dos cadáveres não identificados sobre o total de cadáveres que deram entrada na instituição;

- do total de cadáveres na condição de interesse sobre o total de cadáveres não identificados;

- de cada tipo de cadáver na condição de interesse sobre o total de cadáveres na condição de interesse;

- do total de cadáveres com identificação positiva após análise pelos peritos sobre o total de cadáveres na condição de interesse (não foram incluídos os cadáveres submetidos a exame de DNA).

Em relação a este último bloco de atividades, devido à abrangência da pesquisa, serão apresentados neste artigo apenas os dados mais relevantes para a discussão, quantificados apenas para os valores totais observados para cada cidade (tabela 1). As tabelas por cidade e ano investigado no relatório final da pesquisa disponível no site oficial da SENASP.

METODOLOGIA ESPECÍFICA POR CIDADE ESTUDADA Rio de Janeiro

1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

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No Rio de Janeiro, a Polícia Civil, através das delegacias distritais, é responsável pela coordenação da remoção de cadáveres. A coleta dos dados qualitativos foi realizada através de entrevistas com 30 autoridades policiais lotados em delegacias do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense.

2. Coleta de dados quantitativos referentes à localização e remoção dos materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

Cada Delegacia Distrital é responsável pela emissão da Guia de Remoção do cadáver ou ossada localizados no distrito sob sua jurisdição, bem como pela investigação do caso, sendo portanto importante a identificação das DPs que apresentam maior demanda deste procedimento.

Desta forma, foi feito um levantamento dos dados quantitativos relativos ao encontro de cadáveres registrados nos Boletins de Ocorrência das Delegacias Distritais e Delegacias de Acervo Cartorário (onde estão armazenados os dados das Delegacias Distritais antes de se tornarem Delegacias Legais) do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Não foi feito o levantamento dos dados nas Delegacias de Homicídio uma vez que nelas não são gerados Registros de Ocorrência (apenas a Delegacia de Homicídios da Zona Oeste (DHO) possuía registros de ocorrência à época da pesquisa), sendo os mesmos enviados a partir das delegacias de origem do caso.

Esta etapa da pesquisa foi realizada exclusivamente para o Rio de Janeiro, em função das suas especificidades de contexto, conforme discutido adiante.

3. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense.

Os dados foram coletados através de entrevista com 12 médicos legistas do IML-Central/ Rio de Janeiro, mediante aplicação de questionários fechados e abertos. Esta instituição não consta com um setor específico de Antropologia Forense. Os legistas entrevistados são lotados exclusivamente no necrotério, e foram contemplados plantões de cinco dias distintos da semana, garantindo-se a representatividade da amostra com relação ao total de médicos legistas da instituição. Para uma verificação mais exata dos dados qualitativos, eles também foram quantificados.

4. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense.

Os dados foram coletados através dos protocolos de entrada de material e dos dossiês cadavéricos não informatizados no IML Central do Rio de Janeiro.

São Paulo1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos

materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

Na cidade de São Paulo, a Primeira e a Segunda Delegacia de Homicídios

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |159

são as responsáveis pelos casos em que são encontrados cadáveres na condição de interesse antropológico. Comparecem ao local do achado uma autoridade policial, além de uma equipe com perito de cena, papiloscopista e fotógrafo, a qual faz parte da divisão de homicídios. No entanto, no caso do corpo (em qualquer estado) estar enterrado ou em local de difícil acesso, o Corpo de Bombeiros é acionado para fazer a exumação. A coleta dos dados relativos à localização e remoção das ossadas foi realizada através de entrevistas com dez autoridades policiais lotados na Primeira e Segunda Delegacias de Homicídios.

2. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense.

O IML de São Paulo conta com quatro unidades, além de um Setor de Antropologia Forense, responsável pelos cadáveres esqueletizados, semi-esqueletizados e carbonizados. Os cadáveres putrefeitos (estado inicial ou avançado) eram enviados para o IML Central até 2003, estando atualmente sob a responsabilidade do IML Oeste.

Os dados de maior interesse para o objetivo da pesquisa foram coletados através da aplicação de questionário nos dois legistas lotados no Setor de Antropologia Forense, bem como através da análise de laudos emitidos por este setor. A título de complementação dos dados, em função exclusivamente das perícias realizadas em cadáveres putrefeitos, foram aplicados também questionários em 10 médicos legistas lotados nos necrotérios das unidades Centro e Oeste. De uma forma geral, no entanto, estes últimos legistas não foram receptivos à pesquisa, alegando que não tinham como responder ao questionário ou não tinham interesse em colaborar porque este era um assunto que devia ser tratado com o Setor de Antropologia. Na tentativa de se obter pelo menos as informações mais gerais, o questionário foi adaptado e foram excluídas as perguntas relativas aos procedimentos de análise antropológica. Foram contemplados plantões de distintos dias da semana, garantindo-se desta forma a representatividade da amostra com relação ao total de médicos legistas da instituição.

3. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense.

Os dados foram coletados através dos protocolos de movimento diário, papeletas e laudos arquivados nas distintas unidades do IML de São Paulo.

Goiânia1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos

materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

Em Goiânia, todos os casos que envolvem o encontro de ossadas são encaminhados para a Delegacia de Homicídios, que conta atualmente com nove delegados, dos quais sete foram entrevistados. Antes de ser iniciada a pesquisa na

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DH, o Delegado de Planejamento foi entrevistado para obtenção de informações gerais sobre a organização institucional e os procedimentos relativos à perícia das ossadas no local de encontro.

2. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense.

O IML de Goiânia conta com um setor de antropologia forense (SAFOL – Setor de Antropologia Forense e Odontologia Legal), serviço criado em outubro de 2004. O setor ainda não está formalizado na instituição, mas trabalha de forma sistemática, com sala própria e três médicos que trabalham exclusivamente na perícia antropológica. Os cadáveres putrefeitos são periciados pelos legistas lotados na necropsia, sendo encaminhados para o setor de Antropologia Forense apenas quando já estão em estado adiantado de decomposição.

Foram entrevistados os três legistas do setor de Antropologia Forense, além de 12 legistas do setor de necropsia. As perguntas relativas aos dados obtidos após análise do material foram dirigidas exclusivamente aos legistas do setor de Antropologia Forense.

3. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense.

Os dados foram coletados através dos protocolos de entrada de cadáveres e de laudos arquivados no IML de Goiânia.

Belém1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos

materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

Mais uma vez foi necessária a adequação da metodologia inicialmente proposta em função da especificidade de contexto encontrada em Belém. Após entrevista com o Delegado Geral de Polícia Civil, e com dois delegados de Delegacias Seccionais, ficou constatado que os casos que envolvem o encontro de ossadas, especificamente, não ocorrem no perímetro urbano de Belém, mas nas áreas rurais e de mata que cobrem grande parte do estado. Na capital, são utilizados como “locais de desova” o volumoso rio Guamá e afluentes. Desta forma, os delegados lotados na capital não têm experiência com este tipo de ocorrência, mostrando-se pouco informativas as entrevistas para os objetivos da pesquisa.

O encontro de ossadas ocorre normalmente de maneira fortuita por populares, e a Delegacia de Polícia Civil da cidade ou distrito aciona o Centro de Perícias Renato Chaves, em Belém, para que seja providenciada a perícia de local e remoção do material. Este procedimento padrão, no entanto, raramente é realizado de fato, conforme discutido adiante. Diante do contexto apresentado, a entrevista foi realizada com o diretor do Centro de Perícias, responsável direto pelas ações, o qual forneceu todas as informações necessárias.

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |161

2. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense

O Centro de Perícias Científicas, instituição desvinculada da Polícia Civil, é composto pelo Instituto de Criminalística e pelo Instituto Médico Legal, o qual, por sua vez, conta com um Setor de Identificação Antropológica. Após um exame breve pelo médico legista, as ossadas e os cadáveres carbonizados são entregues a este setor, sendo então periciados por odonto-legistas. Foram entrevistados seis odonto-legistas, os quais trabalham tanto no Setor de Identificação Antropológica quanto na Gerência de Vivos.

3. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense

Os dados foram coletados através das fichas de entrada de cadáveres no IML de Belém.

Porto Alegre1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos

materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

Em Porto Alegre a Polícia Civil, através das delegacias distritais, é responsável pela coordenação da remoção de cadáveres. A coleta dos dados relativos à remoção de ossadas foi realizada através de entrevista com dezesseis autoridades policiais.

2. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense

No IML de Porto Alegre há um setor de Antropologia Forense desde 1997, criado por iniciativa de dois médicos que organizaram e sistematizaram este setor e ainda hoje são responsáveis pelas perícias em ossadas e cadáveres em avançado estado de putrefação. O setor tornou-se referência em todo o estado, o que fez aumentar a demanda de serviço, uma vez que outros municípios, cientes da perícia especializada, mandam material para esta instituição. O grande número de exames de despojos exumados (praticamente dobra o valor quantificado na tabela para ossadas) também contribui para a demanda do setor.

Foram entrevistados os dois legistas do setor de Antropologia Forense, além de 11 legistas do setor de necropsia para informações complementares. As perguntas relativas aos dados obtidos após análise do material foram dirigidas exclusivamente aos legistas do setor de Antropologia Forense.

3. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense

Os dados foram coletados através dos arquivos informatizados dos protocolos de entrada de cadáveres no IML de Porto Alegre.

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Salvador1. Coleta de dados qualitativos referentes à localização e remoção dos

materiais de interesse para a Antropologia Forense (ossadas).

Na cidade de Salvador, as delegacias distritais são as responsáveis pelos casos em que são encontradas ossadas. O Departamento de Polícia Técnica é desvinculado da Polícia Civil, e um perito de local sempre comparece ao local do achado. A coleta dos dados foi realizada através de entrevistas com os responsáveis diretos pelas ações de perícia, o diretor do Departamento de Polícia Técnica, o diretor do Instituto de Criminalística, a coordenadora de Perícias Externas, e o coordenador de Perícias de Crimes contra a Vida.

2. Coleta de dados qualitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense

O IML de Salvador conta com um setor de Antropologia Forense onde trabalham dois médicos legistas. Infelizmente, no entanto, eles não puderam ser entrevistados devido à incompatibilidade de tempo com a pesquisadora, uma vez que ambos comparecem à instituição uma vez por semana (caso não haja nenhuma perícia urgente). Nos dias em que a pesquisadora e os legistas se encontravam na instituição, foram priorizadas as demais entrevistas com os diretores de perícia e com o próprio diretor do IML, o qual forneceu todas as informações necessárias.

3. Coleta de dados quantitativos referentes à análise e identificação dos materiais de interesse para a Antropologia Forense

A coleta de dados foi realizada através de arquivos informatizados de Recepção de Cadáveres no IML de Salvador.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

1. DADOS QUALITATIVOS REFERENTES À LOCALIZAÇÃO E REMOÇÃO DOS MATERIAIS DE INTERESSE PARA A ANTROPOLOGIA FORENSE

No Rio de Janeiro, as entrevistas com autoridades policiais demonstraram que apesar do Instituto de Criminalística, responsável pelas perícias, ser vinculado à Polícia Civil, é rara a presença de peritos de local durante as operações de remoção de ossadas. A coleta do material, etapa crucial no processo de perícia científica, é feita pelo Corpo de Bombeiros, sem que haja qualquer cuidado na sua execução. Os contextos geográfico e social da cidade certamente influenciam na ausência de peritos de local para realização deste trabalho, uma vez que a grande maioria das ossadas é localizada em encostas e no alto de morros ocupados por favelas, locais de difícil acesso além de extremamente perigosos.

As demais cidades estudadas apresentam situações semelhantes, com pequenas particularidades, onde a escavação e documentação das ossadas

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |163

e contexto associado não são realizadas segundo os métodos e técnicas da arqueologia. Em São Paulo as ossadas também são coletadas por bombeiros ou pelos próprios policiais civis.

Nas cidades de São Paulo, Goiânia e Porto Alegre, a coleta de ossadas segue um procedimento padrão no qual estão presentes na área do achado um perito do Instituto de Criminalística, uma autoridade policial da delegacia responsável pela emissão da guia de remoção, a Polícia Militar e um auxiliar de necropsia do IML. Após o isolamento da área pela PM, os peritos criminalistas examinam a área à procura de evidências (roupas, sangue, projéteis, etc). Em seguida o espaço é liberado para a remoção do cadáver (ossada), a qual é feita pelo auxiliar de necropsia. O auxílio dos bombeiros só é necessário quando o cadáver encontra-se em locais de difícil acesso.

Em Salvador, os peritos de local evidenciam a ossada quando está parcialmente enterrada, mas quando há necessidade de escavação o trabalho de coleta é feito pelos bombeiros. O trabalho realizado pelos peritos criminalistas, ainda que de total importância, não é completo, já que não contempla a escavação, documentação e retirada adequadas das ossadas. O auxiliar de necropsia, por sua vez, tampouco tem os conhecimentos de anatomia óssea necessários para a coleta, documentação e armazenamento do achado de forma adequada, principalmente quando se trata de enterramentos secundários3, duplos ou múltiplos.

Em Belém, além da falta de capacitação específica por parte dos peritos de local, os contextos geográfico e social da capital e do estado influenciam bastante no quadro observado para ações de perícia em ossadas. A enorme dimensão do estado, composto na sua maior parte por áreas rurais ou de mata fechada, dificulta muito o estabelecimento de procedimentos padrão para a perícia. Normalmente, o material é encontrado de forma fortuita por populares, os quais removem as ossadas ou solicitam o serviço do coveiro da cidade, sendo então encaminhadas para a Polícia Militar. A PM, por sua vez, encaminha o material para o Centro de Perícias em Belém. Mesmo quando os peritos são chamados, toda a cena do crime já está absolutamente descontextualizada, tanto em função da dificuldade em isolar a área, quanto em função da demora para se chegar ao local. Muitas vezes é necessário atravessar centenas de quilômetros em estradas de terra e de barco, demorando até três dias de viagem. Ainda que estes problemas sejam de difícil resolução, eles certamente poderiam ser atenuados. As medidas mais imediatas passam pela capacitação específica de peritos, além da instrução das autoridades policiais para isolamento imediato da área e conscientização da população para que não haja intervenção no material.

Pelo exposto, fica evidente que em todas as cidades estudadas faz-se absolutamente necessário o treinamento especializado de equipes de bombeiros 3 Enterramentos secundários: quando os despojos, esqueletonizados ou não, são desenterrados e novamente deposita-

dos no solo, enterrados ou não.

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ou peritos de local, ou ainda o ingresso de peritos em antropologia forense nas instituições periciais. A forma como o material atualmente chega aos IMLs, descontextualizado, documentado e coletado de forma inadequada, torna ainda mais difícil o trabalho dos legistas, os quais necessitam associar uma série de evidências e informações específicas aos dados observados durante as análises.

Outro ponto crítico observado durante esta etapa da pesquisa foi a constatação de que não existe nas delegacias de Polícia Civil um banco de dados de pessoas desaparecidas onde constem informações de interesse antropológico para confrontação com os dados obtidos após a perícia. O objetivo final da perícia antropológica é identificar nas ossadas características individualizadoras, portanto a confrontação dos dados é procedimento indispensável para que possa ser feita uma identificação positiva do cadáver. Faz-se urgente, portanto, a elaboração de bancos de dados estaduais de pessoas desaparecidas com informações antropológicas, como características físicas, doenças, e histórico hospitalar e odontológico.

2. COLETA DE DADOS QUANTITATIVOS REFERENTES À LOCALIZAÇÃO E REMOÇÃO DOS MATERIAIS DE INTERESSE PARA A ANTROPOLOGIA FORENSE

Entre os tipos de cadáver de interesse antropológico, as ossadas, mais especificamente, devem ser periciadas no local do achado e removidas por especialistas, em função das suas peculiaridades e por encontrarem-se normalmente enterradas. Os dados quantitativos referentes à localização e remoção das ossadas apontam as regiões mais críticas da cidade do Rio de Janeiro, cujas delegacias apresentam maior demanda de remoção deste tipo de material.

Em ordem decrescente, as delegacias de Polícia Civil onde houve maior número de ocorrências nas áreas sob sua jurisdição são as seguintes: 32ª DP (Ilha do Governador) apresentando um valor excepcionalmente alto, com 22 casos; em seguida a 22ª DP (Penha) apresentando 10 casos; e a 21ª, 32ª e 36ª DPs (Bonsucesso, Jacarepaguá e Santa Cruz, respectivamente) apresentando 9 casos cada uma (gráfico 1).

Mais uma vez em função da geografia da cidade do Rio de Janeiro e da concentração de criminosos nas favelas bem delimitadas, determinadas áreas são reconhecidamente utilizadas como “locais de desova”. No entanto, as ossadas e cemitérios clandestinos são geralmente localizados de forma fortuita por civis, os quais acionam a Polícia Militar. Os dados apresentados, certamente subrepresentados, apontam para uma concentração maior de casos em pelo menos cinco delegacias, o que pode auxiliar no mapeamento de áreas específicas para prospecções sistemáticas de cadáveres e ossadas, cuja localização auxiliaria

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |165

na investigação e resolução de inquéritos criminais.

Por outro lado, uma vez que não é regular a presença de peritos para a exumação das ossadas, podem ser identificadas as delegacias que mais se beneficiariam com uma concentração de esforços para treinamento especializado de pessoal.

3. COLETA DE DADOS QUALITATIVOS REFERENTES À ANÁLISE E IDEN-TIFICAÇÃO DOS MATERIAIS DE INTERESSE PARA A ANTROPOLOGIA FORENSE

O IML do Rio de Janeiro não possui um setor de Antropologia Forense, e as perícias em cadáveres de interesse antropológico são realizadas no mesmo laboratório e pelos mesmos legistas que periciam os cadáveres frescos. Através dos questionários aplicados observa-se uma total falta de treinamento para análise do material. As respostas dadas às perguntas específicas sobre análise do material demonstram que um número muito pequeno de legistas utiliza metodologias adequadas para identificação de características individualizadoras, como estimativa de altura, ancestralidade e causa da morte, esta última sendo identificada apenas em casos muito específicos como os ferimentos por arma de fogo. Nenhum legista demonstrou aplicar metodologias adequadas para identificação de doenças ou alterações biológicas e de marcas de estresse ocupacional.

Vale mencionar, no entanto, a iniciativa dos poucos legistas que realizam de fato análises antropológicas, ainda que de forma insuficiente e prejudicadas pelo recebimento do material totalmente descontextualizado, uma vez que buscaram capacitação por iniciativa própria. Não houve, até bem pouco tempo, qualquer incentivo por parte da instituição para a prática da perícia antropológica, fato que parece estar mudando frente a um projeto da direção que visa à implementação de um laboratório específico, mas que aguarda a liberação de recursos.

Além da falta de espaço e equipamentos específicos, outro ponto crítico apontado pelos legistas é a escassez de tempo, uma vez que a demanda de perícias de rotina é extremamente grande, e a condição dos cadáveres frescos exige a priorização das necropsias em detrimento das ossadas.

A situação nos demais IMLs estudados mostrou-se totalmente distinta daquela observada para o Rio de Janeiro. Em São Paulo, Goiânia, Belém, Porto Alegre e Salvador existem Núcleos de Antropologia Forense com laboratórios e alguns equipamentos específicos, onde os profissionais se dedicam integralmente à análise de ossadas, carbonizados e eventualmente putrefeitos em estado avançado. Não existe, entretanto, espaço ou equipamento para a limpeza física/química dos cadáveres em estado inicial de putrefação sem condições de análise necropapiloscópica.

Os principais problemas apontados pelos legistas como impeditivos para a realização de laudos conclusivos são a falta de capacitação específica para a análise

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do material, uma vez que as instituições ou não dão qualquer apoio à realização de cursos, ou, mesmo quando há apoio, os cursos são oferecidos esporadicamente e não podem contemplar simultaneamente muitos profissionais; a indisponibilidade de documentação prévia para confronto (registros médicos e odontológicos); além da má qualidade dos dados fornecidos pela perícia de local, com informações sumárias, sem descrição das características da área do achado e das evidências materiais associadas, dificultando o estabelecimento de causa e mecanismo de morte, além de fatores concorrentes e eventos peri-mortem e tafonômicos.

O diretor do IML de Salvador no momento da realização desta pesquisa, especialista em Antropologia Biológica mas na época ausente da função de perito, a partir do seu conhecimento das peculiaridades da Antropologia Forense, discutiu outros pontos relevantes que também são negligenciados. Ele apontou como principais empecilhos para a sua prática, além daquelas anteriormente citadas, a falta de incentivo para a realização de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de metodologias de análise específicas para populações brasileiras, como por exemplo para variantes epigenéticas e estimativa de altura.

Os laudos emitidos pelos legistas das instituições citadas demonstram adequação dos métodos utilizados nas análises, ainda que os questionários apontem para deficiências relacionadas principalmente à identificação de doenças ou alterações biológicas e marcas de estresse ocupacional, os quais são aspectos fundamentais para a identificação de características individualizadoras. Os próprios legistas enfatizam a necessidade de cursos sistemáticos de especialização, uma vez que a capacitação destes profissionais, via de regra, ocorreu por iniciativa própria, sem apoio da instituição.

Vale ressaltar como exceções os IMLs de Salvador e Belém, bastante comprometidos com a adequação física, material e de pessoal para o bom andamento das perícias antropológicas. No IML de Belém, a previsão de ingresso de peritos com formação específica através de concurso, a constante atualização dos odonto-legistas que já trabalham no setor de identificação antropológica, e a compra de material bibliográfico e equipamentos para implementação de um laboratório mais adequado estão entre os projetos em execução da atual direção.

Apesar da atual existência dos setores de Antropologia Forense nos IMLs de São Paulo, Goiânia, Belém, Porto Alegre e Salvador, viabilizando a realização de perícias de alto nível nos cadáveres de interesse antropológico, esta situação se deve apenas ao interesse pessoal de alguns legistas e diretores. Todo este investimento pessoal e institucional, no entanto, parece ter um caráter um tanto efêmero, uma vez que não há garantias de que este interesse seja renovado. Seria importante a formalização do cargo e dos profissionais com formação específica, garantindo assim a continuação da prática das perícias antropológicas pelas futuras gerações de legistas.

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |167

4. COLETA DE DADOS QUANTITATIVOS REFERENTES À ANÁLISE E IDENTIFICAÇÃO DOS MATERIAIS DE INTERESSE PARA A ANTROPOLOGIA FORENSE

Os dados quantitativos, de uma forma geral, indicam que o percentual de cadáveres na condição de interesse antropológico é bastante expressivo em relação aos cadáveres que saem dos IMLs sem identificação positiva. Em ordem decrescente, os valores são os seguintes (tabela 1): 78,5% para Belém; 65,5% para Porto Alegre; 58,7% para o Rio de Janeiro; 52,5% para Goiânia; 30,2% para Salvador; e 13,4% para São Paulo. Estes valores mostram que das seis capitais estudadas, em pelo menos quatro delas mais da metade dos cadáveres ignorados poderia ter a sua identidade e a do seu agressor legalmente reconhecidas se as condições materiais e de capacitação profissional fossem satisfatórias para a perícia antropológica.

Apesar de expressivos, é correto afirmar que estes valores estão subrepresentados, uma vez que os achados ocorrem sempre de maneira fortuita e não são realizadas prospecções direcionadas para este fim, mesmo em locais reconhecidamente depositários de ossadas relacionadas a eventos de narcotráfico e crimes políticos. Neste ponto, convém destacar que faz-se absolutamente necessário um registro mais acurado nos bancos de dados oficiais da localização de cemitérios clandestinos e de regiões específicas onde são localizadas ossadas, o que favorecerá a formulação de políticas públicas mais adequadas e eficazes.

As condições adversas anteriormente citadas se materializam na ineficiência das práticas antropológicas, comprovada através dos dados relativos à identificação dos cadáveres após a perícia. Das seis instituições avaliadas, em apenas três foram realizadas identificações positivas, com percentuais muito baixos: 11,6% para São Paulo, 2,6% para Porto Alegre, e 0,6% para Belém.

Em São Paulo, Porto Alegre e Salvador, o tipo de material mais comum são as ossadas, representando respectivamente 44,6%, 78,9% e 83% do total de cadáveres de interesse antropológico. Esses dados indicam as regiões onde se faz mais necessária a capacitação do perito de local ou o ingresso do antropólogo forense nos Institutos de Criminalística.

No Rio de Janeiro, Goiânia e Belém, o tipo de material mais comum são os cadáveres putrefeitos, representando respectivamente 65,9%, 71,4% e 92,9%. Este é um fator que torna a situação ainda mais complicada, uma vez que para se proceder à análise antropológica deste tipo de material é necessário que ele passe por um processo físico ou químico de limpeza, dependendo do grau de preservação dos tecidos moles. Este dado confirma a necessidade de implantação de Laboratórios de Antropologia Forense bem equipados, onde os cadáveres putrefeitos possam ser tratados e periciados de forma adequada.

168 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Além das conseqüências já mencionadas, a diminuição dos percentuais de cadáveres ignorados após perícia também contribuiria expressivamente para a diminuição da demanda de exames de DNA nos laboratórios de todo o país. Para citar alguns exemplos, o procedimento padrão no IML de São Paulo – Unidade Oeste, responsável pelos cadáveres putrefeitos, é efetuar coleta sistemática de tecido ósseo do esterno e epífise proximal de fêmur de todos os corpos com identidade ignorada para futuro exame de DNA. O IML de Porto Alegre, por sua vez, possui um laboratório de DNA para onde é enviado um expressivo percentual de amostras de cadáveres que não puderam ser identificados através de exame necropapiloscópico, odontológico ou antropológico. Especificamente com relação às ossadas, das 153 encontradas entre 2000 e 2003 (não estão incluídas as exumações), 28,1% foram enviadas para exame de DNA. Desta forma, apesar do laboratório ser bem equipado, a grande demanda ocasiona uma demora de até 6 meses para a conclusão de uma análise, além de concentrar um volume substancial de recursos destinados para a área criminal.

CONSIDERAÇÕES FINAISOs resultados da pesquisa comprovam a importância da existência formal

de especialistas em Antropologia Forense nas instituições periciais, contrariando a idéia geral de que a perícia antropológica é um “exame complementar”, “de menor importância”, ou “pouco acurado”.

A inexistência de cursos de graduação e mesmo pós-graduação em Antropologia Forense no país, situação contrária àquela observada nos Estados Unidos, Europa e América Latina, fez com a disciplina ficasse adormecida durante muitas décadas, andando na contramão da tendência mundial no que concerne à promoção de uma maior eficiência e modernização das instituições periciais.

Capacitar profissionais, no entanto, não é o maior desafio imposto às instituições periciais, mas sim desenhar uma estrutura organizacional onde haja um intenso e fluido diálogo entre os três componentes da engrenagem que mantém ativa a perícia antropológica eficiente: em um primeiro momento a etapa de campo com todos os procedimentos adequados para a escavação, documentação e remoção dos cadáveres; em um segundo momento a etapa de análise osteológica, realizada por especialistas e em laboratório adequado; e finalmente a etapa de confrontação entre os resultados observados nas análises e aqueles provenientes de bancos de dados de pessoas desaparecidas que contenham informações de interesse antropológico.

A falha em qualquer uma das etapas mencionadas torna ainda mais difícil alcançar os objetivos máximos da Antropologia Forense, o de realizar a identificação positiva em cadáveres e contribuir efetivamente para a resolução de inquéritos criminais. A situação observada no país tem condenado a sua prática

Perícias Forenses e Justiça Criminal sob a Ótica da Antropologia Forense no Brasil |169

a uma mera formalidade institucional, o que só contribui para alimentar a cadeia formada pela insuficiência das ações policiais, pela impunidade e pela violência.

Porém, muito mais do que modernizar as instituições periciais brasileiras, estamos falando de podar alguns tentáculos da violência que se estendem muito além das vítimas reveladas pelas estatísticas, mas sufocam toda a sociedade. Estamos falando em amenizar o sofrimento e as dificuldades legais das milhares de famílias que passam pela terrível situação de ter um parente desaparecido e ficar durante anos, ou até mesmo a vida toda, sem qualquer informação a seu respeito.

E no contexto dos infortúnios gerados pelo atual status de epidemia mundial alcançado pelo fenômeno da violência em todos os seus recortes, não deve ser esquecido também o custo financeiro que ele representa para os cofres públicos.

No caso do Brasil, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 3,3% do PIB é gasto com os custos diretos da violência (Briceño-Leon, 2002), o que representa um valor três vezes maior do que os custos que o país investe em Ciência e Tecnologia (Minayo, 2005).

Este é um assunto de especial interesse para a Senasp desde a implementação de laboratórios de DNA em todo o país. Embora tenha representado um grande avanço nas atividades periciais, os exames de DNA são bastante dispendiosos. Ainda assim, conforme demonstrado neste trabalho, cada vez mais eles vem tomando o lugar de exames mais simples e baratos, como o da Antropologia Forense.

Por este motivo, a Senasp colocou esta pesquisa entre as primeiras a serem aplicadas, embora parcialmente, dentre todas as contempladas pelo Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justiça Criminal. Os resultados foram apresentados para médicos legistas de todo o país no intuito de qualificar melhor a escolha de realização dos exames, limitando o uso dos exames de DNA para as situações necessárias e levando a uma economia enorme de recursos públicos (SENASP, s/d).

Finalmente, vale lembrar que a manifestação da violência é reconhecidamente um fenômeno que acompanha as sociedades humanas desde o alvorecer da espécie, caracterizando-se como um elemento inerente à vida em sociedade. A perspectiva histórica nos mostra que, apesar de sua persistência ao longo do tempo, as motivações, a aplicação, o impacto, e o entendimento da violência mudaram muito ao longo da trajetória humana, estando sempre intimamente relacionados ao contexto sócio-cultural onde está inserida. Mas revela também que diferentes mecanismos têm sido utilizados na busca por um maior equilíbrio da homeostase social (Lessa, 2004).

Esta busca, sem dúvida, deve percorrer todos os caminhos possíveis nos variados setores da sociedade comprometidos com o bem estar da população. Os resultados apresentados por esta pesquisa, infelizmente, indicam que os

170 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

altos custos sociais e econômicos da violência e da impunidade são situações recorrentes, mas acenam para possíveis rumos a serem trilhados a partir de uma contribuição efetiva da Antropologia Forense para o fortalecimento da justiça criminal em nosso país.

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ANEXOSGráfico 1: Distribuição das Delegacias de Polícia Civil / Rio de Janeiro,

em ordem decrescente de demanda de remoção de ossadas

172 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

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O Cibercrime no Brasil |173

O Cibercrime no Brasil

Henrique Luiz Cukierman4

1. INTRODUÇÃOO tema do cibercrime passou a fazer parte definitiva do cotidiano nacional

com presença constante na mídia. O fenômeno é relativamente recente no que diz respeito à sua notoriedade, embora sua gravidade já tenha sido reconhecida no país desde o final dos anos 90, quando começaram a surgir algumas iniciativas públicas de combate ao cibercrime. Refere-se aqui especialmente à criação em algumas polícias estaduais de núcleos e delegacias especializadas em crime eletrônico, as quais, apesar do esforço realizado, não conseguiram repercutir seu trabalho a ponto de inserir o problema do cibercrime no Plano Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (2002), obra de fôlego no que diz respeito à questão da segurança pública no Brasil. Ausência tão significativa é sintoma da baixa visibilidade pública do cibercrime na virada do século 20 para o 21 antes que explodisse na mídia a partir de meados dos anos 2000. Quando foi proposta a presente pesquisa, em janeiro de 20045, o cibercrime ainda não era tema do cotidiano. Atualmente não é preciso muito mais convencimento a respeito da sua gravidade. Fraudes bancárias – quase todos conhecemos alguém que teve dinheiro desviado de sua conta – pedofilia, desrespeito à privacidade, enfim, uma legião de episódios que quase diariamente aparecem nos jornais, rádios e TV’s, dão conta da gravidade e da extensão do problema.

Os dois principais objetivos da pesquisa, concluída em 2005, foram: 1) formular um retrato das atividades dessas delegacias especializadas, procurando identificar, através da consulta aos seus arquivos e em entrevistas com os seus efetivos, os diversos aspectos colocadas pelo crime eletrônico no Brasil conforme enquadrados pela atividade policial no tocante à tipificação dos crimes e dos criminosos, ao (à falta de) enquadramento legal e à elaboração dos inquéritos policiais; 2) verificar as relações entre a atividade policial e a discussão de uma legislação federal para crimes de informática.

As duas hipóteses que estiveram presentes durante toda a realização da pesquisa foram:

1) novos corpos, novos crimes;

as ações policiais e os dispositivos legais têm de enquadrar os crimes virtuais em suas materialidades de mundo real, em especial a mais encarnada delas: o corpo do criminoso. “Trazê-

4 Programa de Engenharia de Sistemas e Computação - COPPE/UFRJ - Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE/UFRJ

5 No âmbito do Concurso de Dotações para Pesquisas Aplicadas em Gestão do Conhecimento e Informações Criminais, promovido pelo Ministério da Justiça, conforme especificado no Anexo ao Edital de Licitação nº 04/2003.

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lo de volta” ao mundo real revela igualmente “a carne e o osso” do que parecia ser puro éter. Só é possível “trazê-lo de volta” porque o ciberespaço, por ser uma rede heterogênea (e que, portanto, só pode ser entendida sociotecnicamente) feita de usuários, servidores, cabos, roteadores, endereços IP, provedores, regulações, etc, pode ser rastreada através de seus traços materiais e encorpados. Atravessar as fronteiras entre o mundo real e o virtual só é possivel justo por não existir um ciberespaco puramente informacional.

Portanto, o ciberespaço, tal qual enquadrado pela ação policial e pela lei, emerge como um universo híbrido, como um espaço de fronteiras difusas entre o real e o virtual, habitado por entidades híbridas melhor descritas como constituídas por fluxos de informação, lembrando assim as propostas originais da cibernética. Criaturas híbridas de informação e encarnação, habitantes de um mundo ambiguamente natural e construído, que só pode ser apreendido em meio a essa confusa mistura do real e do virtual.

2) novos códigos, novas leis

o ciberespaço não possui uma “natureza” dada de antemão. Ele apenas possui código – o software e o hardware que fazem do ciberespaço o que ele é – e seu código é sua lei. Engenheiros de software são também legisladores. Podemos – e devemos – escolher que tipo de ciberespaço queremos e quais as liberdades que desejamos assegurar. Todas essas escolhas dizem respeito à arquitetura: sobre qual tipo de código irá governar o ciberespaço, e quem/o quê irá controlá-lo. Neste sentido, o código é a forma mais significativa de lei, e, portanto, cabe aos advogados, ao formuladores de leis e políticas e especialmente aos cidadãos decidirem quais os valores a serem incorporados pelo código.

Foram pesquisadas as seguintes delegacias: no Rio de Janeiro, a DRCI - Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática; em Minas Gerais, a DERCIFE - Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Informática e Fraudes Eletrônicas; e no Espírito Santo, o NURECCEL, Núcleo de Repressão Contra Crimes Eletrônicos. Foram pesquisados ainda o Serviço de Perícias em Informática da Polícia Federal, tanto na sede em Brasília quanto na Superintendência Regional do Rio de Janeiro. Também foi entrevistado o deputado federal Luiz Piahuylino a

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respeito da legislação federal para crimes praticados na Internet6.Infelizmente para o resultado desta pesquisa, não foi possível incluir

o estudo da delegacia paulista, conforme inicialmente planejado. Não bastou à polícia de São Paulo o coordenador e executor do projeto apresentar-se como professor da UFRJ, à frente de uma pesquisa com o apoio da SENASP – Secretaria Nacional de Seguraça Pública, nem sequer com o reforço de um pedido encaminhado posteriormente pela própria SENASP, assim como também não foi possível saber quais as credenciais e documentos adicionais que teriam sido necessários. Lamentavelmente, o mesmo se sucedeu em relação à FEBRABAN – Federação Brasileira de Bancos.

Ao longo deste artigo, utilizam-se várias denominações para o crime em questão: crime eletrônico, crime cibernético ou cibercrime e crime de informática. Para efeitos desta pesquisa, devem ser considerados como termos sinônimos. Alguns mais versados na literatura sobre o direito penal informático associarão aos nomes as distinções entre o crime de informática puro – brevemente, aqueles que visam sistemas de informática, em todas as suas formas ou manifestações – e impuro – não visam o sistema de informática, e a informática é apenas um meio para perpetrar o crime7. Todavia, o objetivo é o de passar ao largo de discussões marcadamente jurídicas, que alcançam bem além da brevidade com que aqui acabam de ser expostos os conceitos de crimes de informática, para simplesmente concentrar a atenção naqueles que, entre todos os crimes investigados pelas delegacias estaduais e pela Polícia Federal, são perpetrados (e se materializam, conforme ficará claro mais adiante em Transformando éter em carne e osso) no ciberespaço8.

2. TRANSFORMANDO ÉTER EM CARNE E OSSO9

Amparadas (bem ou mal) pelas leis vigentes, as táticas e estratégias no combate ao cibercrime mostram que as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) vêm rompendo os velhos limites estáveis e referenciais do ser humano, tradicionalmente considerados como os limites de seu corpo naturalizado, sede “natural” da sua capacidade como agente. De forma breve, o argumento é que um novo corpo está tomando forma na medida em que se vão constituindo 6 Embora não tenha como citar nominalmente todos aqueles policiais com quem conversei (ao longo de 2005) nas delegacias

de MG, RJ e ES, quero agradecer-lhes por disporem de parte do seu precioso tempo atendendo às demandas da pesquisa, principalmente a paciência para responder a tantas perguntas. Agradeço especialmente aos delegados Andréa Nunes da Costa Menezes, da DRCI/RJ, Valter Nunes de Freitas, William Leroy e Andréia Ferreira Silva Araújo da DERCIFE/MG, e Robson de Lemos Martins, do NURECCEL/ES, e aos peritos federais Paulo Quintiliano da Silva, chefe do Serviço de Perícia em Infor-mática da PF (Brasília) e Luis Carlos de Almeida Serpa, perito da Regional do Rio de Janeiro. Os resultados da pesquisa devem muito à sua extraordinária cooperação. Agradeço ainda ao pessoal da SENASP, Andréia de Oliveira Macedo, Leonardo Dias Moreira e Marcelo Ottoni Durante, a solicitude e a disposição para ajudar no que fosse preciso.

7 Haveria ainda o crime de informática misto, onde não se visa o sistema de informática, mas a informática é instrumento indispensável para consumação da ação criminosa.

8 Vale ressaltar que as delegacias se diferenciam pelo escopo dos crimes a serem investigados. O exemplo mais eloqüente é o da DERCIFE/MG, cuja atuação dá-se predominantemente no combate à pirataria de áudio e vídeo (62% dos inqué-ritos instaurados em 2005 – vide A marcha dos números) através da apreensão de fitas, CD’s e DVD’s piratas, crime perfeitamente cabível dentro do rótulo de crime eletrônico, mas inadequado para caber na categoria de cibercrime.

9 Parte deste tópico foi desenvolvido conjuntamente com o Professor Ivan da Costa Marques (IM/DCC-UFRJ) e apre-sentado à Conferência Anual da 4S (Society for Social Studies of Science), realizada em 2005 na cidade de Pasadena, Califórnia, EUA. Uma adaptação foi publicada sob o título Novos corpos, novos crimes (e vice-versa) em (Almeida, Vergara, 2008, pp. 219-230).

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novos portões entre os mundos real e virtual, e que, concomitantemente, vai se acordando quais/quem seriam seus guardiões, quais/quem seriam os “agentes aduaneiros” a vigiar essas fronteiras.

A presente análise parte da negação ao cibercrime do status que lhe é normalmente atribuído de “completamente desmaterializado”, propondo justo o contrário, a saber, que os elementos e as evidências materiais do cibercrime são sempre encontráveis. Ou melhor, tem de ser encontráveis, pois sem sua materialidade, é impossível à polícia tomar qualquer providência. Esta idéia foi expressa exemplarmente pelo Delegado da DERCIFE/MG, quando declarou a respeito do seu trabalho, quase como um desabafo: “temos de transformar éter em carne e osso”. A reflexão sobre o tema torna-se mais iluminada a partir de um exemplo bastante simples e comum de crime no ciberespaço, o envio de mensagem com falsa comunicação de débito, reproduzida na figura 110, e investigada por essa mesma DERCIFE/MG. Neste caso, a evidência material do crime – sua materialidade – é um papel impresso com o conteúdo de uma mensagem de correio eletrônico, na qual se encontram diferentes elementos gráficos (tais como as letras do alfabeto) e os títulos, textos e legendas que organizam-nos e dão-lhes sentido. São eles:

- “NOME” nome de um provedor de acesso à Internet@nome de um provedor de serviços da Internet.com.br - o (falso) remetente 11;

- “COMUNICADO DE COBRANÇA” - o assunto (falso) da mensagem;

- “Dia 23/02/2005 No valor de R$ 615,12” “Dia 14/03/2005 No valor de R$ 897,56” - as quantias que estão sendo (falsamente) cobradas

- “Visualizar extrato” - solicitação de um clique que (potencialmente) causará danos ao destinatário da mensagem

Essas são as evidência materiais do crime e, se assumimos as “referências circulantes” de Bruno Latour (1999, cap 2), essas são as matérias/formas de uma longa cadeia que circula entre o crime e o criminoso. Está-se diante de um cibercrime não somente porque envolve a Internet mas também porque o caminho da materialidade do crime à materialidade do criminoso passa pelo ciberespaço.

Ao lidar com o cibercrime, tanto a polícia como a própria lei têm de atravessar continuamente as fronteiras entre o mundo real e o ciberespaço de forma a enquadrar e resolver o cibercrime em suas materialidades “físicas”, “tangíveis” e “reais”, principalmente a mais encarnada de todas elas: o corpo do criminoso (veja figura 2).

10 As figuras contêm documentos extraídos de inquérito policial. Para preservar o anonimato de todas as partes envol-vidas, os documentos são propositadamente de difícil legibilidade.

11 O provedor de acesso à Internet é, no caso, uma operadora de telefonia. O provedor de serviços de Internet é a em-presa que fornece os serviços de correio eletrônico.

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Figura 1

Figura 2

Figura 3

De fato, é preciso que a informação seja minimamente encorpada, materializada, para poder mapear o criminoso “virtual” de volta ao mundo “real”. Vindo do espaço virtual, o corpo do criminoso não se materializa de um éter

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elusivo mas sim de uma rede material e heterogênea feita, entre outros, além de corpos humanos encarnados, de servidores, cabos, roteadores, endereços IP, provedores, regulações, registros de usuários. Vindo do espaço real do crime (suas evidências materiais no e-mail) para o ciberespaço no encalço do corpo do criminoso, o delegado focaliza-se nos elementos nos quais é possível encontrar indícios encarnados e materiais que levarão ao corpo do criminoso – neste caso, o indício é o endereço IP (veja figura 3). A esta materialidade altamente informacionalizada, a ponto de quase nem ser reconhecida como material, chamo de “materialidade desmaterializada” (cf. Hayles, 1999, p. 100).

A travessia do mundo “real” ao mundo “virtual” (e vice-versa) é possível exatamente porque não existe um espaço “puramente” informacional no qual a informação seja uma entidade desencorpada, sem qualquer suporte, vínculo ou constituição material. Ao contrário, veja-se que o endereço IP pertence ao provedor de Internet – uma entidade encorpada que é parte do mundo real. Verifica-se assim um balanço entre materialidade e virtualidade, uma espécie de distribuição de densidades informacionais e materiais, enfim uma materialidade desmaterializada (veja Figura 4). Mais que uma fronteira rígida a separar o “real” do “virtual” (daí o uso dos termos entre aspas, ou seja, não são categorias dicotômicas), tem-se em verdade um fluxo de diferentes densidades, ora mais imaterial – o chamado “virtual” – ora mais material – o chamado “real”. É por conta das marcas inscritas em um pedaço de papel no mundo real (o e-mail) que o/a Delegado/a alcança um endereço IP que pertence ao ciberespaço, e daí a um provedor de Internet que pertence ao mundo real. Conseqüentemente, o provedor de Internet é ao mesmo tempo uma entidade do mundo real, um portão no mundo real através do qual o criminoso passa para o ciberespaço como também um portão no ciberespaço, através do qual o/a Delegado/a passa do ciberespaço (um endereço eletrônico, um endereço IP) ao mundo real e encarnado do (corpo do) criminoso. Nesta seqüência, o provedor de Internet é parte do mundo real para o corpo do criminoso, uma vez que estão ambos no mundo real, como também é parte do mundo virtual para o/a Delegado/a desde que o/a Delegado/a tenha em suas mãos (virtuais) as chaves virtuais (endereço eletrônico, endereço de IP) que conduzam ao provedor.

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Figura 4

Portanto, o ciberespaço, conforme enquadrado pela ação da polícia e pelas normas legais, emerge como um universo híbrido: um espaço de fronteiras difusas e pouco nítidas entre o “real” e o “virtual”, habitado por entidades híbridas – corpos híbridos. Tais corpos são melhor descritos como constituídos por fluxos de informação, segundo as propostas básicas da velha cibernética, ou como ciborgues, segundo a proposta mais contemporâneas de Donna Haraway (1991), a saber, criaturas concomitantemente reais e ficcionais, habitando um mundo ambiguamente natural e construído que só pode ser percebido como uma mistura indissociável e em permanente imbricação do “real” e do “virtual” (veja figura 5).

Figura 512

Para concluir a investigação, é necessário (veja figura 6):

1) identificar, através do provedor de acesso à Internet, a quem foi atribuído o endereço IP nnn.nnn.nnn.222 em 18 de julho de 2005, às 07:55:51;

12 O que consta apontado pelo texto “O portão do criminoso para o ciberespaço/o portão da polícia para o corpo do criminoso” é a identidade IP do provedor, ou seja, foi repetido pelo órgão policial a identidade obtida no site Registro.br, exibido na Figura 4.

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2) obter do provedor de serviços de Internet os dados cadastrais e todos os relatórios (chamados de “logs”) de conexão do endereço eletrônico “NOME” (nome de um provedor de acesso à Internet@nome de um provedor de serviços da Internet.com.br).

A sugestão de que tanto o provedor de acesso à Internet quanto o provedor de serviços de Internet sejam espaços cercados alinha-se à discussão de Lawrence Lessig (1999) sobre a suposta falta de controle do ciberespaço. Lessig enfatiza justo o argumento oposto, chamando a atenção para o crescente controle comercial e privado da Internet. O ciberespaço, inicialmente concebido como um espaço público, segue sendo continuamente cercado pelas demandas cada vez mais intensas dos proprietários de conteúdo quanto aos seus direitos de propriedade sobre produções intelectuais em formato digital. Este movimento constituiria um segundo movimento de cercamento, desta feita não de terra e propriedade física como ocorreu nos primórdios do capitalismo industrial, mas de criações intelectuais e das redes digitais por onde trafegam.

Figura 6

Tanto o provedor de acesso à Internet quanto o provedor de serviços de Internet são portões do espaço real através dos quais o corpo do cibercriminoso teve acesso ao ciberespaço, onde perpetrou o crime de “phishing scam” e no qual deixou rastros de sua corporeidade, encontrados posteriormente pelo/a Delegado/a.

Ora, as novas tecnologias de comunicação e informação permitiriam a travessia desses portões em fração de segundo, bastando que se conectasse o computador do/a Delegado/a aos computadores tanto do provedor de acesso à Internet quanto do provedor de serviços de Internet. Desde que, é claro, os portões estivessem escancarados, sem nada/ninguém que os guardasse. Porém, não é definitivamente o caso: quem/o que é o guardião dos portões? Caso se decidisse que o potencial das TICs teria de ser plenamente utilizado, a função de guardador desses portões seria delegada a um agente de software. Dito de outra forma, um programa de computador decidiria se o/a Delegado/a estaria

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autorizado a receber todas as informações de posse tanto do provedor de acesso à Internet quanto do provedor de serviços de Internet a respeito de seus clientes. Sua privacidade seria decidida pelo código apropriado de software.

Mas não é o que se verifica nesses casos. O guardião tradicional da privacidade é um agente muito mais lento: um juiz, cujo corpo naturalizado é ponto de passagem obrigatória para suas decisões, recusa-se terminantemente a delegar sua função de guardião da privacidade dos cidadãos (veja figura 7).

Figura 7

Por outro lado, parece que os projetistas da Internet não se dispuseram a deixar instalar na rede portões controlados.

Nada mais que um data, uma hora e um endereço IP (ver figura 8). Parece simples e, de fato, é simples, ao menos quando se iniciam as investigações13. O TCP/IP, o protocolo da Internet, é minimalista, um minimalismo embutido no seu próprio projeto. Como lembra Lawrence Lessig, o minimalismo foi ao mesmo tempo uma decisão técnica e uma decisão política – uma decisão por um projeto otimizado de rede sem qualquer controle das comunicações. Em suas palavras, “os projetistas não estavam interessados em avançar na direção do controle social; o que eles levaram em conta foi a eficiência da rede. Então, esse tipo de projeto expulsa a complexidade dos protocolos básicos de Internet, legando às aplicações, ou aos usuários finais, a incorporação de qualquer sofisticação que um serviço em particular venha a requerer” (Lessig 1999: 33).

Provavelmente os projetistas da Internet estavam conscientes da eventual necessidade de portões controlados, mas preferiram, caso houvesse necessidade, que fossem instalados nas proximidades do usuário final. Assim, cuidaram para que não houvesse portões controlados no ciberespaço, embora não haja qualquer garantia de que esta opção persistirá (Lawrence Lessig, por exemplo, argumenta que trata-se de opção com os dias contados se nada for feito para evitá-lo) 13 Há complicações à vista, melhor detalhadas mais adiante em Crimes e criminosos, relacionadas à complexidade do

cibercrime, geralmente operado em rede e não por um agente isolado e solitário.

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Figura 8

Para se investigar o trio IP/data/hora de forma a chegar ao corpo do criminoso, é preciso dispor de outra materialidade, a do log de auditoria do provedor, pois é ele que registra a atividade da rede. Portanto, é necessária uma regulação apropriada para tê-lo à disposição, sob pena da investigação não ter como seguir adiante, uma vez que, conforme apropriadamente manifesto no pedido do Delegado ao Juiz (vide figura 7), trata-se da “única rota investigatória possível de prosseguir”. A questão é tão crucial que incorporou-se à pauta do G-8 (Figura 9). Seus membros acordaram em começar a esboçar as respectivas legislações nacionais obrigando os provedores de Internet e as companhias de telecomunicações a manter, preservar e liberar arquivos de log de auditoria às agências responsáveis pela fiscalização e cumprimento das leis (que têm plena autoridade legal para requisitá-los). Os arquivos de logs de auditoria registram determinadas atividades nas redes de provedores e servidores, formando assim a base tanto para a cobrança de serviços como para a monitoração de segurança. Enquanto muitos (mas não todos) provedores preservam os logs de auditoria, não há entre os países membros do G-8 uma regulação uniforme para o formato desses arquivos e para o tempo de sua guarda.

Enquanto essa regulação não chega, os membros do G-8 alinharam-se à idéia básica e preventiva de “congelar e preservar”, concretizada na formação de uma rede de informações funcionando 24 horas por dia, durante os sete dias da semana – a rede 24/7 (à qual o Brasil está integrado) – , conectando de forma cooperativa todos os países interessados em investigar crimes no ciberespaço. Assim, cada país cuida de preservar os logs sob investigação até que a devida ordem judicial, necessariamente mais lenta, venha a liberar o sigilo de seu conteúdo. Mediante a formação de um estoque temporário de informações, este acordo de “congelamento e preservação” constrói a ponte entre o espaço-tempo de um corpo naturalizado (o do juiz) que habita o mundo “real” e o espaço-

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tempo do mundo “virtual” da Internet. Por cautela, e de forma implícita, o acordo também “congela e preserva” o corpo naturalizado, e, desta forma, assume a defesa de fronteiras mais tradicionais e conhecidas, ganhando um precioso tempo até que novas fronteiras, cuja estabilização ainda é controversa (por exemplo, a utilização de dispositivos biométricos), possam ser estabelecidas de forma pacífica e acordada. O desempenho das TICs conduz à redefinição de convenções, especialmente quanto a fronteiras entre o “real” e o “virtual”, presentes nos próprios corpos de humanos, ou seja, daquilo que se inscreve como Natureza e como Sociedade nos corpos humanos naturalizados.

Figura 9

Cabe agora explorar, ainda que de forma breve, as tendências do atual processo de redefinição de fronteiras tal qual se pode entrever em meio ao fabuloso avanço de performance das novas TICs.

As TICs tendem a configurar o corpo tradicional e naturalizado como um corpo do passado. Entenda-se por uma situação do passado aquela na qual, para transladar-se da Natureza no corpo tradicional (o corpo físico nu) em direção à Sociedade inscrita neste mesmo corpo - através, por exemplo, da qualificação de criminoso associada a este corpo -, faz-se necessário partir de impressões digitais (supondo-se que o corpo não tenha sido reconhecido por uma testemunha) que serão vinculadas a um nome, o qual, por sua vez, viabilizará o acesso a uma ficha criminal localizada em algum arquivo institucional. Essa translação só é possível por conta da existência neste corpo do passado de fronteiras estáveis e bem definidas entre aquilo que é Natureza e aquilo que é Sociedade, como também por conta de um canal de “banda estreita” pelo qual se processa a comunicação entre Natureza e Sociedade (veja figura 10).

Esse canal de “banda estreita” – por exemplo, uma almofada de tinta e um pedaço de papel onde se registrem impressões digitais – favorece e confere existência a certas convenções e práticas que dizem respeito à identidade e à privacidade.

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Figura 10

Os recentes dispositivos biométricos (para tomada de impressões digitais, leitura da íris e identificação/decodificação de DNA) tornam concebível, ou melhor, viabilizam que se conecte-os a redes de computadores que realizarão o translado de um corpo físico nu ao seu status criminal em frações de segundo. Desta forma, o nome associado ao corpo deixa de ser um intermediário. A inscrição produzida por um instrumento capaz de “ler” o corpo serve como chave para consultar uma base de dados com todas as informações necessárias sobre o corpo “lido”. Trata-se de um cenário no qual turvam-se as fronteiras existentes no corpo entre Sociedade e Natureza a partir da existência de um canal de “banda larga” entre Natureza e Sociedade (veja figura 11). Resultam, portanto, novas convenções a respeito de definições e práticas referentes à privacidade e à identidade.

Valem aqui as palavras de Donna Haraway em seu Manifesto Cyborg (1991, p. 163): “As estratégias de controle irão se concentrar nas condições e nas interfaces de fronteira, bem como na taxa de fluxo entre fronteiras, e não na suposta integridade de objetos supostamente naturais (...) Nenhum objeto, nenhum espaço, nenhum corpo é, em si, sagrado; qualquer componente pode entrar em uma relação de interface com qualquer outro desde que se possa construir o padrão e o código apropriados que sejam capazes de processar sinais por meio de uma linguagem comum”. Portanto, bastarão as senhas apropriadas para que se estabeleçam novas e potentes conexões entre Natureza e Sociedade (veja figura 12).

Figura 11

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Figura 12

Esses dispositivos recém desenvolvidos tornaram-se importantes atores no esforço aparentemente infindável não só de identificar a todos individualmente de forma precisa, como também de realizá-lo rotineiramente14. Poderosas metáforas de naturalização são convocadas para esse gigantesco esforço, onde os limites de dimensões e de posições da sociedade nos corpos humanos – por exemplo, o direito dos cidadãos à privacidade – estremecem ante a precisão das medidas de dimensões e de posições da natureza nos corpos humanos. Esses dispositivos estabelecem canais de “banda larga” entre antigos limites terminais do corpo humano (basicamente sua epiderme) e gigantescos bancos de dados, desfazendo assim fronteiras outrora tradicionais entre corpo, indivíduo, natureza e sociedade. Desaparece o velho corpo humano, entronizado por uma velha biologia como a cidadela protegida da individualidade e da privacidade. A polícia, o exército, e outras instituições médicas, industriais e comerciais tendem a ser incorporadas aos nossos corpos não mais metaforicamente, como costumava-se dizer, mas sim literalmente. O novo corpo escapa a essencialismos biológicos não somente por conta dos novos dispositivos de identificação mas também graças às novas possibilidades de intervenção da biomedicina. Seja como for, toda a aproximação do corpo empreendida pela tecnociência é mediada por informação processada em silício, ou dito de outra forma, o novo corpo tende a ser produzido como um efeito de banco de dados (vide figura 13). A associação entre um corpo e um endereço IP é apenas mais uma entre tantas novas possibilidades informacionais o que faz supor, se me permitem brincar de futurólogo do cibercrime e do judiciário, que o velho juiz, ancorado em seu “velho” corpo naturalizado, tenderá a dar lugar a uma nova entidade, um híbrido de matéria e informação, um juiz-IP.

14 A ficção científica de Minority Report, filme de Steven Spielberg, ilustra bem o caso. Devido ao eficiente e sofisticado sistema de segurança existente em toda a cidade, baseado em leitores de íris, as pessoas são monitoradas permanente-mente através de câmeras que escaneam suas retinas. Nos shoppings e nas lojas, os olhos dos clientes, usados de forma semelhante aos cookies da Internet, permitem a sua identificação. Esse recurso torna-os reféns dos lojistas que sabem o que foi comprado anteriormente e assim podem bombardeá-los com ofertas de novas mercadorias.

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Figura 13

3. INVESTIGANDO O CIBERCRIMEA exemplo do que ocorre com praticamente todo o campo da investigação

policial, o cibercrime pode ser investigado de duas formas: 1) a “proativa”, na qual a polícia age por iniciativa própria; 2) a “reativa”, na qual a polícia é comandada por uma demanda externa (ou uma ocorrência). Em verdade, trata-se de uma divisão simplista pois, afinal de contas, uma forma relaciona-se à outra no dia-a-dia das delegacias. Todavia, para os termos de uma abordagem inicial da ação policial no combate ao cibercrime no Brasil, como foi o caso desta pesquisa, pode ser de alguma valia. Assim, cabe ponderar que uma tarefa é a de tentar capturar o ciberestelionatário a partir de uma queixa registrada na delegacia, outra é a de desbaratar uma quadrilha de venda de drogas no Orkut sem que qualquer comunicação de crime tenha sido registrada no cartório policial, ou então se fazer passar por pedófilo para investigar as redes de exploração de pedofilia.

As polícias entrevistadas tem um perfil predominantemente “reativo”, à exceção da delegacia fluminense que busca a “proatividade” em algumas de suas investigações15. Todavia, quanto maior a “proatividade”, mais recursos são necessários, sejam de hardware e software, seja em especial a disponibilidade de pessoal altamente especializado. Como os recursos são escassos (veja adiante Recursos (in)disponíveis), é preciso conciliar de alguma maneira “proatividade” com especialização. A solução encontrada pela polícia fluminense reside em uma divisão do trabalho de apuração dos crimes entre o técnico e o investigativo. Por técnico, entende-se a disponibilidade de recursos para a apuração do crime (hardware, software e pessoal altamente especializado) enquanto por investigativo entende-se o trabalho policial propriamente dito (escuta telefônica, campana, obtenção de dados, etc). Em relação a este último, prevalece nas

15 Cabe destacar que o conflito entre a posição reativa e a posição pró-ativa da atuação das polícias é apenas uma das faces do problema a ser enfrentado para empreender respostas mais eficientes e efetivas frente à criminalidade. Pode-se citar, entre outros exemplos do que deve ser igualmente enfrentado, a necessidade de uma melhor articu-lação entre os diferentes órgãos públicos e a própria sociedade. O próprio Sistema Único de Segurança Pública – o SUSP – foi criado tendo por meta articular as ações federais, estaduais e municipais na área da segurança pública e da Justiça Criminal. O objetivo do SUSP é prevenir, criar meios para que seja possível analisar a realidade de cada episódio, planejar estratégias, identificar quais os métodos e mecanismos que serão usados. Para dar conta da complexidade do empreendimento, o SUSP propões 6 eixos de atuação: 1) gestão unificada da informação; 2) gestão do sistema de segurança; 3) formação e aperfeiçoamento de policiais; 4) valorização das perícias; 5) prevenção; 6) ouvidorias inde-pendentes e corregedorias unificadas.

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entrevistas a afirmação, não sem uma elevada dose de orgulho e auto-estima, de uma espécie de “sexto sentido” do bom policial, sendo comum a utilização de termos como “faro”, “sentimento”, “coração”, “instinto”. Dada a ausência de uma intermediação tecnológica mais maciça nas investigações, chega-se mesmo a falar no uso de “força bruta” nas investigações, embora também seja destacada a capacidade do bom policial em estabelecer uma rede de contatos, especialmente junto às instituições que, por serem vítimas dos crime de informática, estão diretamente interessadas em seu combate, embora a cooperação se passe bem mais no terreno da informalidade do que na celebração de acordos formais e explícitos. A conclusão dos entrevistados é que o técnico pode ser trazido “de fora”, ainda que pudesse estar “dentro” se houvesse disponibilidade de recursos para investir. Ou seja, como já é “tradicional” a escassez de recursos, prefere-se valorizar o bom policial, sob o argumento de que não adianta um bom técnico se não houver um bom investigador. Perguntados se tais atributos de um bom policial seriam ensináveis, responderam afirmativamente.

Parte da questão deságua no perfil do ciberpolicial. De fato, não há nenhuma especificação mínima para o seu perfil, fato facilmente observável a partir da ausência de qualquer treinamento especial, à exceção da Polícia Federal que tem, além de uma prova específica para o perito de informática, treinamento apropriado quando do ingresso de um novo perito. Nas demais polícias pesquisadas, a reclamação quanto à falta de treinamento é unânime, ficando a especialização por conta das iniciativas dos policiais, sustentadas com dinheiro do próprio bolso16.

Outra parte da questão deságua no perfil do cibercriminoso, uma vez que sem ele, não é possível imaginar o que seria necessário à formação de um ciberpolicial. A este respeito, é esclarecedora a entrevista com um policial mineiro oriundo da delegacia de tóxicos. Perguntado sobre a transição do combate ao tóxico para o combate ao crime eletrônico, sua resposta principiou justo pelo perfil do criminoso: “no tráfico: armado, perigoso, truculento, e não muito inteligente” (para além das palavras usadas pelo policial, é possível entender “pouca inteligência” como sendo “pouca escolaridade”); “no crime eletrônico: educado, polido, não violento”. Só então que, acoplado ao perfil do criminoso, surgiu na entrevista o perfil do ciberpolicial no que diz respeito à forma de atuação: “no combate ao tráfico, o policial tem que estar na rua, pois a informação está na rua, enquanto o policial do crime eletrônico tem que estar no ciberespaço, pois a informação está na máquina”. Perguntado mais adiante quanto à necessária preparação do policial para enfrentar um criminoso mais “inteligente”, e, portanto, mais preparado, respondeu que “se você quer conhecimento para

16 Cabe salientar que a questão da motivação, vontade de fazer, etc, encontra-se presente, de forma generalizada, na atu-ação das polícias, pois sua formação dá-se geralmente na rua, a saber, no próprio embate direto com a criminalidade. A ausência de gestão contribui para criar este ambiente onde a iniciativa individual é fundamental para o aperfeiçoamento da prática. Veja a esse respeito a tese de Jacqueline Muniz “Ser Policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” (IUPERJ, 1999).

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trabalhar, tem que buscar por si só, tem que buscar a informação, tem que buscar o software”. Provocado então sobre qual seria o ponto de partida para o trabalho do ciberpolicial, uma vez que não havia institucionalmente qualquer formação inicial, respondeu: “vontade de fazer, motivação, vontade de desempenhar minha missão, sou policial desde pequeno, minha família toda é de policiais”. A entrevista resume o quadro geral: o ciberpolicial atua de forma voluntarista, sobrepujando sua falta de preparo com qualidades de ordem pessoal (motivação, “faro”, etc), de ordem familiar (a exemplo deste caso, ser policial faz parte de uma espécie de saga familiar) e, quando necessário um maior aporte de recursos, tenta buscá-los em parcerias informais com entidades privadas.

Resta ainda indefinido o perfil do cibercriminoso. Antes de mais nada, cabe esclarecer que um perfil nada mais é do que uma brutal simplificação, sempre desafiada pela complexidade do caso a caso. Todavia, vale referir-se a um perfil como resultado do esforço em observar e construir padrões a partir de um conjunto significativo de casos. Não há como confundir uma aproximação de ordem estatística, o perfil, com a complexidade do real, mas também não há motivo para rejeitá-lo como um indicador, ao menos na qualidade de uma fotografia da qual se espera uma imagem bem enquadrada e bem focalizada. Não é o que ocorre em termos do perfil do cibercriminoso brasileiro. Todas as entrevistas revelam a repetição de um padrão bem genérico e pouco nuançado, cuja fonte indisfarçável é a literatura internacional, segundo a qual o cibercriminoso é jovem de classe média, de boa escolaridade, com idade entre 16 e 24 anos. De fato, não há como deixar de repetir informações requentadas uma vez que não existe nenhum esforço de coletar informações a respeito do cibercriminoso local. A consagrar a “internacionalidade” do padrão, desponta um clássico da ficção científica, Neuromancer, de William Gibson (1984): “Case estava com 24 anos. Aos 22, já era um cowboy, um gatuno, um dos melhores do Sprawl. Foi treinado pelos melhores, McCoy Pauley e Bobby Quine, lendas no ramo. Operava com uma taxa de adrenalina quase sempre alta, um subproduto da juventude e da competência, plugado em um deck ciberespacial customizado que projetava sua consciência desencorpada em direção à alucinação consensual que era a Matrix”. (p.5)

A insistência desta pesquisa em obter algo diferente desse padrão internacional acabou conduzindo ao conhecimento de um caso muito instigante, ocorrido na jurisdição da delegacia capixaba. Além de narrado pelo próprio delegado, o caso foi noticiado pela imprensa local (A Tribuna, Vitória, 18/06/2005). Um estudante de 17 anos – “garoto pobre, não tinha onde cair morto, não era de classe média alta. A mãe pagou o computador, comprado a prestação nas Casa Bahia. Na sua casa, dormia no chão” - transferia fraudulentamente dinheiro de contas bancárias para contas de amigos, que ganhavam duzentos reais cada vez que o dinheiro era depositado. A estimativa é de que o golpe no ciberespaço rendia

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cinco mil reais por semana. Sua prisão ocorreu por acaso: o rapaz encontrava-se dentro de um táxi, esperando por alguém, com a porta do táxi aberta. Policias da radiopatrulha 979, da ronda bancária do 4º. Batalhão (Vila Velha), manobravam-na no local (Bairro Divino Espírito Santo), quando pediram que a porta do táxi fosse fechada para facilitar a manobra. Surpreendentemente, foram destratados pelo rapaz e decidiram então solicitar seus documentos e revistá-lo. Foi então que encontraram com ele uma pedra de crack, um mil e quatrocentos reais e vários cartões de banco em nome de outras pessoas. Logo depois, começaram a aparecer alguns dos colegas do rapaz, em verdade titulares de alguns dos cartões de crédito que estavam em seu poder. Coisa mais insólita ainda estava por acontecer: a mãe do menor, ao ser perguntada sobre o filho, não hesitou em afirmar aos policiais que ele era um hacker. Com tamanha mistura de primarismo e sofisticação, o caso expõe, apesar de algumas afinidades, fortes dissonâncias com o padrão. O rapaz, se lembra o Case de William Gibson pela juventude e pela adrenalina (evidenciada pelo consumo de crack), dele se afasta pela ingenuidade.

Quanto à investigação propriamente dita, ela já foi em parte analisada no capítulo anterior. Repetindo as explicações anteriores de forma muito breve, pode-se dizer que o sucesso das investigações depende fundamentalmente da obtenção, junto ao provedor de conexão à Internet ou junto ao provedor do serviço criminosamente atacado, do endereço IP de onde foi cometido o crime, para, a partir deste endereço, chegar-se ao provedor de serviços de telecomunicações, que também tem de colaborar oferecendo o número da linha e o cadastro do assinante. Portanto, pode-se concluir que todos os embaraços e impedimentos ao curso das investigações surgem: 1) ou a partir da alegação de sigilo por parte de um dos dois investigados (provedor de acesso à Internet ou provedor do serviço de telefonia), em obediência aos ditames legais vigentes no país; 2) ou a partir dos limites jurisdicionais quando algum desses provedores tem sede fora do país.

Um exemplo alegado pelos entrevistados na delegacia fluminense são os crimes contra a honra (têm andado ultimamente em destaque na cobertura de imprensa – veja adiante comentários mais específicos a este respeito). A Lei 9.296, que regulamenta o art 5º. da Constituição, prevê a hipótese de quebra de sigilo, porém apenas para crimes punidos com reclusão. Como crimes contra a honra são punidos com detenção, não é possível, nesses casos, avançar nas investigações pela negação à quebra de sigilo. Os policiais reconhecem que a pena de detenção é devida, mas que deveria haver mecanismos de investigação compatíveis com a prática deste tipo de crime, ou seja, a quebra de sigilo, para se poder chegar ao autor. Todavia, as demais delegacias, consultadas sobre esse possível constrangimento às investigações, adiantaram que já há entendimento suficiente por parte do Judiciário para a devida liberação do sigilo telemático também para esses casos.

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A questão do sigilo parece consensual entre todos quanto ao entendimento de que há um equívoco a seu respeito, ao menos se for feita uma comparação com as investigações nas quais se solicita, com sucesso, mediante simples ofício, o cadastro de um cliente a uma concessionária de serviços públicos tais como luz ou gás. E, se assim não fosse, alegam quanto ao equívoco que, no caso das comunicações telefônicas, a Constituição preservaria a privacidade das conversações/trocas de mensagens, mas não o cadastro, e que, portanto, a liberação do cadastro não violaria o sigilo. O argumento parte de uma simples analogia: considerando que o IP do computador nada mais é que a placa de um carro, e se o cadastro do carro está disponível, por que não o de um IP?

O enquadramento mais preciso e objetivo para a questão da privacidade foi fornecido pelo perito em informática da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Segundo Luis Carlos de Almeida Serpa, “anonimato é uma coisa, privacidade é outra – tudo que combata o anonimato é fundamental na Internet”. Assim, passou ao largo da polêmica interpretação dos policiais fluminenses quanto à inviolabilidade do sigilo de correspondência e comunicações consagrado na Constituição Federal, porém tratando de salvaguardar que, face aos interesses policiais, deveriam ser asseguradas todas as formas de combate ao anonimato. Aqui devem ser demarcadas as diferentes visões sobre segurança no ciberespaço (a rigor, não somente no ciberespaço mas sobre segurança em geral). Para a polícia, quanto mais controle, tanto melhor. Evidentemente que sua reivindicação por segurança máxima e, portanto, por controle máximo, é feita dentro da lei e em nome do interesse da sociedade, porém vale lembrar que nem todos partilham da mesma visão maximizadora da segurança. A Internet foi construída com a premissa, defendida até hoje por muitos, de que qualquer pessoa deveria poder acessá-la de forma anônima. O compromisso com o anonimato decorre da necessidade de assegurar plena liberdade de opinião e de expressão. Se for aceitável que a insegurança seja propiciada pelo anonimato, terá de ser igualmente aceito que a identificação do/a cidadão/ã pode ser usada para tornar eficiente a vigilância e a censura, fontes de ameaça à democracia, à liberdade e aos direitos individuais.

A discussão vai muito além do escopo da presente pesquisa, especialmente em um mundo posterior ao 11 de setembro do ataque ao World Trade Center. Uma discussão que vai além da polícia, e que inclui os próprios engenheiros do ciberespaço. Como propõe Lawrence Lessig (1999, p.59), “escolhas entre valores, escolhas sobre regulação, escolhas sobre a definição de espaços de liberdade – tudo isso é matéria da política. O código codifica valores e mesmo assim, estranhamente, a maior parte das pessoas fala como se o código fosse apenas uma questão de engenharia” . Portanto, é importante deixar claro que as opções entre anonimato e privacidade não são consensuais, e que seu esclarecimento está relacionado ao debate sobre o mundo em que queremos viver, e, em especial, sobre a democracia que queremos construir.

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4. OS CRIMES DE INFORMÁTICA E SEU ENQUADRAMENTO LEGAL O Congresso Nacional prossegue discutindo uma lei de crimes de

informática há quase duas décadas, sem todavia ter conseguido sancioná-la até hoje. Pelo visto, a considerar o cenário político vigente, a pendenga prosseguirá, sem horizonte de conclusão a curto prazo de um acordo que proveja finalmente uma lei específica para o país. A princípio, o retardo deve-se principalmente aos diversos projetos que estão em pauta na Câmara e no Senado, cada um deles motivado pela inclusão de algum aspecto ignorado pelos demais projetos. O Deputado Luiz Piahuylino, figura de destaque nas discussões por sua longa militância em prol da lei, sendo inclusive autor do projeto mais conhecido, o PL 84/99, lamenta esse excesso de discussão com um desabafo: “... com a velocidade e com o andamento da Internet e da informática, se você for esperar que a situação se consolide, [de nada vai adiantar pois] todo dia isso está mudando... a gente tem que ter uma lei... embora sabendo que naquele dia em que a lei for aprovada já precisará de modificações, já existirão coisas novas”.

As motivações para a existência de uma lei específica foram bem resumidas pelo deputado em sua entrevista, a começar por sua importância para a inserção internacional do Brasil no combate ao cibercrime: “O Brasil precisa de uma lei pois o país está sem poder assinar as convenções e os tratados internacionais e isso é gravíssimo porque os crimes de informática e Internet não são brasileiros, são mundiais; não tem fronteiras (...) Existem diversas demandas para o Brasil assinar, convênios, e está sem poder assinar por conta de não ter a sua própria legislação...” 17.

Outro argumento exposto pelo deputado é o princípio consagrado no primeiro artigo do Código Penal, a saber, não há crime sem lei anterior que o defina nem há pena sem prévia cominação legal. Portanto, é preciso estabelecer uma lei que defina e puna crimes cibernéticos atualmente inimputáveis com base no Código Penal. São vários os casos, não cabendo aqui esgotá-los, mas a título de exemplo, tome-se o uso desautorizado do computador, conhecido como furto de uso ou de tempo, que não é crime, de modo que quem utiliza equipamento alheio sem pedir autorização ao proprietário, ou quem usa provedor de terceiro para acessar a Internet, não pode ser processado criminalmente. O deputado ilustra o argumento da ausência de uma lei específica através de uma situação delicada: “... a polícia prende e o juiz libera porque não tem lei prevendo o crime”.

Todavia, do ponto de vista da ação policial, a ausência de uma lei específica está longe de tornar-se um impedimento. Ao contrário, o que se constata é que as polícias trabalham muito bem com o atual Código Penal, mesmo porque a grande maioria dos crimes que investiga (contra a honra, contra o patrimônio

17 Ainda segundo o deputado, o então Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Jorge Armando Felix, era um dos mais insistentes na cobrança de uma lei específica para a questão de crimes no espaço virtual, para assim permitir que o país possa aderir a acordos internacionais. Tentamos contatar esse Gabinete por várias vezes através de seu website, sempre sem sucesso.

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e contra a fé pública) são tipicáveis face à legislação penal. Ante as possíveis dificuldades, tem contribuído para a sua superação o estreitamento das relações entre as polícias e o Judiciário, e como fizeram questão de apontar os próprios delegados, segundo a unanimidade de seus depoimentos, tem sido desenvolvido um diálogo franco e cooperativo com os juízes, pelo qual procuram esclarecer-lhes a respeito das particularidades do cibercrime, obtendo assim o necessário apoio do Judiciário às suas demandas. Não quer isso dizer que não haja problemas, pois também foram ouvidas algumas queixas em relação ao comportamento de certos juízes, especialmente na DRCI/RJ. Além das críticas ao desconhecimento de parte do Judiciário a respeito das questões atinentes aos crimes de informática, ouviu-se também críticas à mentalidade denominada “garantista” de parte do Judiciário. Entende-se por “garantista” o excesso de zelo de alguns juízes quanto a certas garantias legais. Um exemplo de excesso “garantista” seria a não aceitação do pedido de quebra de sigilo bancário amparado pela Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. Um exemplo da mistura entre desconhecimento das leis do ciberespaço e excessos “garantistas” é o caso de um bordel virtual que funcionava ilegalmente no centro do Rio de Janeiro. O juiz arquivou o caso considerando-o atípico por conta da ausência de um encontro carnal que tipificasse a existência de um prostíbulo, ignorando todos os demais elementos típicos da prostituição (o “atendimento” era feito via web-câmera e o pagamento era efetuado via cartão de crédito).

O fato é que as polícias estaduais não foram chamadas ao debate sobre uma lei específica contra o cibercrime, ainda que, segundo assegurou o deputado, tenha havido ampla participação de vários setores interessados, entre eles a Universidade, a Polícia Federal, o Judiciário (através de juizes e desembargadores), e a representação de rede de usuários. A presente pesquisa solicitou aos delegados suas críticas e sugestões ao PL 84/99, e obteve na DRCI/RJ uma crítica generalizada à mentalidade denominada “desapenadora”, consagrada a partir da lei Lei Nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, e que teria se estendido ao próprio PL 84/99, cujas penas são também consideradas pequenas, como se o PL 84/99 estivesse igualmente contaminado pela tal mentalidade “desapenadora”. O exemplo claro é o do furto, cuja punição no PL é menor do que no próprio Código Penal. Diga-se de passagem que a crítica não é exclusiva da polícia fluminense. Ela também é formulada pela Dra. Maria Luiza Ribeiro Cabral, Promotora do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, para quem, segundo diálogo por e-mail, é procedente a queixa quanto às penas extremamente baixas do PL, ainda mais considerando que no Código Penal, para condutas imbuídas do mesmo desvalor social, as penas são mais altas.

De fato, a unanimidade das polícias em termos de impedimento legal à ação policial é a falta de dispositivos legais que tornem obrigatória a identificação de usuários de cibercafé (vide Investigando o cibercrime) e a guarda dos logs

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de conexão à Internet por parte dos provedores. Justo por não ter força de lei, é criticada a mera “recomendação” do Comitê Gestor da Internet para que os provedores mantenham arquivados os logs de acesso por 3 a 5 anos.

Ainda na linha de sugestões “endurecedoras”, a DRCI/RJ aventou a possibilidade da lei, a exemplo dos EUA, equiparar a clonagem de cartão à falsificação de moeda.

Concluindo, seria preciso integrar as polícias estaduais às discussões da legislação específica para o cibercrime. Certamente, tal legislação é importante para a participação do Brasil no cenário internacional. O deputado vai mais longe e prenuncia que “...quando se tem uma legislação e essa legislação é eficaz e tem esse mecanismo de poder comprovar, pegar a prova [refere-se aos logs de conexão], é evidente que isso vai reduzir [o índice de crimes eletrônicos]”. Embora afinada com o espírito de toda e qualquer lei, a afirmativa é duvidosa, especialmente no caso do cibercrime, posto que uma outra lei, o código que constitui o ciberespaço, é quem dá boa parte das cartas, à revelia da discussão mais formal de juristas e legisladores. A compreensão de que o código do ciberespaço é a sua própria lei foi brilhantemente articulada por Lawrence Lessig, em seu livro Code (1999). Nele, Lessig argumenta que a idéia corrente de que o ciberespaço não pode ser regulado – de que ele é, em sua essência, imune ao controle do governo ou de quem quer que seja – é totalmente equivocada, pois não é da natureza do ciberespaço estar fora do alcance de qualquer regulação, ou melhor ainda, que o ciberespaço não possui uma “natureza” dada de antemão. Ele apenas possui código – o software e o hardware que fazem do ciberespaço o que ele é – e que o código pode criar um lugar de liberdade, a exemplo da arquitetura original da Internet, ou um lugar de controle terrivelmente opressivo.

Ainda segundo Lessig, se falhamos em percebê-lo, então falharemos em dar conta de como o ciberespaço já está mudando. Sob a influência do comércio, o ciberespaço está se tornando um espaço altamente regulado, onde nosso comportamento é muito mais fortemente controlado que no espaço real. Mas tal situação tampouco é inevitável. Podemos – e devemos – escolher que tipo de ciberespaço queremos e quais as liberdades que desejamos assegurar. Todas essas escolhas dizem respeito à arquitetura: sobre qual tipo de código irá governar o ciberespaço, e quem/o quê irá controlá-lo. Neste sentido, o código é a forma mais significativa de lei, e, portanto, cabe aos advogados, ao formuladores de políticas e especialmente aos cidadãos decidirem quais os valores a serem incorporados pelo código.

5. RECURSOS (IN)DISPONÍVEIS Impressionou o fato de que todas as delegacias estavam precariamente

instaladas. Bem humorado, um policial da DERCIFE/MG referiu-se assim às instalações da delegacia mineira: “É quase um puxadinho”, e, diga-se de passagem,

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a expressão poderia ser igualmente aplicada à delegacia fluminense, aboletada no segundo andar de uma delegacia de bairro, espremida em menos metros quadrados do que seria recomendável. Por sua vez, a delegacia capixaba encontrava-se provisoriamente instalada em um prédio que foi esvaziado para ser reformado e servir futuramente de laboratório para exames periciais. A imagem do puxadinho reflete na arquitetura a falta de um lugar próprio na estrutura das polícias. As delegacias funcionam como extensões do aparato já existente e, portanto, sem espaço próprio. Todas estão marcadas por algum grau de existência provisória que, no caso da DERCIFE-MG, constitui de fato sua identidade institucional, uma vez que a Resolução nº 6.318, de 17 de novembro de 1998, criou-a em “caráter provisório”. Uma variante de existência provisória é a da delegacia capixaba que, na verdade, como sempre fez questão de lembrar o próprio delegado, não era uma delegacia mas um núcleo, um arranjo de recursos já existentes, criado por uma portaria do Secretário de Segurança (portaria no. 001-R de 22/02/2000) sem qualquer novo investimento. A mesma falta de investimentos se deu com a DRCI/RJ, criada pelo Decreto Nº 26.209, de 19 de Abril de 2000, no qual consta, em seu Art. 3.º, que a sua estrutura seria instituída “sem aumento de despesas” .

Por essas razões, todas as delegacias tinham, em maior ou menor grau de explicitação, planos de expansão cuja motivação maior é a criação de uma “personalidade” própria. Em MG, o plano previa a transformação da DERCIFE em DIVISÃO DE REPRESSÃO AOS CRIMES DE INTERNET – DRCnet. O plano mineiro mostrou-se o mais formalizado e ambicioso, deixando entrever a magnitude do que se pretende, a saber:

- a construção de um prédio próprio de 3 a 4 pavimentos, com área construída de 1200 a 1600 metros quadrados;

- a criação de vários cargos inexistentes, e a ampliação do quadro em percentuais cuja ordem de grandeza mínima seria de 200%, conforme se pode ver no quadro a seguir:

Projeto de expansão da DERCIFE/MG - Pessoal

CARGO Qtd. atual Qtd. prevista % de aumento

Delegado de Policia 2 06 200

Perito Criminal 0 02 -

Inspetor 1 01 0

Sub-Inspetor 0 05 -

Chefe de Cartório 1 01 0

Agente de Policia 15 100 567

Escrivão de Policia 2 10 400

Psicólogo 0 02 -

Assistente Social 0 02 -

Assistente Jurídico 0 02 -

O Cibercrime no Brasil |195

- completa reestruturação do organograma, com a criação de delegacias especializadas (pedofilia, pornografia e divulgação de imagens; honra e fraudes diversas; violação de direito autoral; furto de sinal)

- a expansão do parque de equipamentos instalados, em percentuais cuja ordem de grandeza variava de 180% a 2000%, conforme mostrado no quadro abaixo:

Projeto de expansão da DERCIFE/MG - Equipamentos

EQUIPAMENTOS Qtd. atual Qtd. prevista % de aumento

Micro computador 10 28 180

Note book Pentium 01 10 700

Impressora jato de tinta 08 30 275

Impressora matricial 01 5 400

Scanner 01 5 400

Maquina fotográfica digital 01 20 1900

Pen Drive 01 21 2000Obs. Nenhuma dos micros possuiam em 2005 a configuração adequada para o desempenho das funções.

No ES, um plano menos explícito previa a criação de uma delegacia especializada em investigações de crimes cometidos por meio eletrônico e contra o sistema informático, que sairia da esfera do Gabinete do Chefe de Polícia e faria parte da estrutura da Superintendência de Polícia Especializada como órgão específico e competente para investigações do tipo.

A DRCI/RJ não tinha nenhum plano explícito mas revelou ao longo das entrevistas possuir projetos de expansão.

A perícia da Polícia Federal tinha planos para triplicar o efetivo de aproximadamente 80 peritos, prevendo a admissão de mais 75 novos peritos.

Um dos projetos em comum entre todas as delegacias era a construção de um laboratório, cujos objetivos seriam, entre outros, antecipar-se à fraude, investigar os modos de operação dos hackers e auxiliar eventualmente na sua prisão. Todavia, não foi elaborado nenhum projeto mais formalizado no qual estivessem especificados os recursos necessários de instalações físicas, de hardware, de software, de comunicações, de pessoal e de treinamento. Para a DRCI/RJ, a falta de um projeto formal não era nenhum grande empecilho posto que, dada a sua simplicidade, bastaria haver recursos disponíveis para montá-lo rapidamente.

Outro recurso fundamental na luta contra o cibercrime, além de não constar de nenhum plano, nem sequer foi aventado. Trata-se da sinergia entre as polícias, da cooperação mútua, única possibilidade efetiva de superar a barreira de fronteiras estaduais, nacionais e internacionais, obviamente inexistentes na constituição do ciberespaço. Uma possível cooperação poderia ser iniciada com poucos investimentos (embora eles sejam necessários para implementá-la de

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fato), a saber, a utilização plena e efetiva do próprio ciberespaço para colocar as polícias conectadas em rede. Como exemplo para uma possível iniciativa nesta direção, a criação de um fórum eletrônico de discussões, de troca de experiências, de atualização sobre produtos de hardware e software, certamente contribuiria para o aperfeiçoamento do combate ao cibercrime.

Em verdade, impressionou a escassez de relacionamentos não somente entre as polícias como também entre elas e as demais instituições interessadas no combate ao cibercrime. O questionário da presente pesquisa reservou um bloco inteiro de perguntas destinado a verificar a existência de uma rede de relações capaz de fortalecer a ação policial. Infelizmente, o que se constatou é a total ausência dessas relações, restritas unicamente aos atores e instituições diretamente envolvidos por dever de ofício, a saber, o Ministério Público e alguns juizes, e as polícias estaduais. Perguntados sobre seus relacionamentos com as Forças Armadas, com o Comitê Gestor da Internet, com a Febraban (bancos), com o mundo empresarial (associações industriais e comerciais, etc), provedores, universidades e instituições de pesquisa, cidadãos e opinião pública (Procon’s, ONG’s, etc), legislativos estaduais, municipais e federal, organismos internacionais (à exceção da Polícia Federal, especialmente por conta da sua conexão com a rede 24/7), fornecedores de tecnologia e profissionais de segurança da informação e com as próprias tecnologias (entendida como a familiaridade com as principais tecnologias de combate ao crime eletrônico), as respostas percutiram monotonamente o “nenhuma relação”. Como esta pesquisa contou com o apoio da SENASP, vale mencionar em especial que também ela foi incluída no mesmo bolo da ausência de qualquer relacionamento.

Finalmente, um recurso extraordinário que nenhuma delegacia possuía era a disponibilidade de um sistema de informações à altura do combate ao cibercrime. Tome-se como exemplo o caso do Rio de Janeiro. A base de dados de sua Polícia Civil, informatizada a partir do Programa Delegacia Legal, não atendia às especificidades dos crimes de informática. Como exemplo de suas limitações, foram citadas pelos próprios policiais: 1) a impossibilidade de cruzar o nome do beneficiário de uma fraude bancária ao longo dos diversos Registros de Ocorrência (RO), de tal sorte que, com um sistema apropriado, se poderia descobrir que um determinado beneficiário de operações bancárias fraudulentas apareceria em diferentes RO’s (fato provável, pois a tática dos fraudadores é pulverizar o dinheiro desviado das contas); 2) a base de dados não registrava o modus operandi, restringindo-se à dinâmica do fato. Conseqüentemente, como ficavam todas as informações acumuladas em formato de texto livre na descrição do modus operandi, não havia campos específicos para informações fundamentais. Entre elas, por exemplo, a(s) URL(s) do(s) site(s), o montante desviado, o(s) e-mail(s) de onde partem os ataques, as contas de beneficiários de fraude. À época, ainda que de forma precária, uma base de dados mais apropriada estava sendo

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organizada localmente. Porém, por tratar-se de empreendimento de porte, no qual a inteligência do cibercrime, tanto a do criminoso quanto a do policial, tem de ser inscrita em software, torna-se necessário que se realizem investimentos de maior envergadura na informatização das polícias.18

6. CRIMES E CRIMINOSOSOs números das estatísticas (vide A marcha dos números) indicam que

a maior incidência recai sobre crimes contra o patrimônio (60 a 70% do total). Os principais alvos são os bancos, de forma que é possível afirmar que os assaltos a banco aumentaram significativamente (e tendem a aumentar mais ainda, dada a expansão acelerada da automação dos bancos – vide A marcha dos números), embora não na sua forma “física”, a qual, por sua vez, entrou em declínio, ou mais propriamente, em queda livre a depender dos números do Estado do Rio de Janeiro, conforme demonstram os dados abaixo:

ROUBO A BANCOSérie Histórica de Roubo a Banco no RJ - Valores Absolutos e

Taxa Anual por 100 Mil Habitantes

Ano Total Taxa Anual1991 347 2,7

1992 227 1,8

1993 225 1,7

1994 310 2,3

1995 440 3,3

1996 288 2,1

1997 156 1,1

1998 351 2,5

1999 274 1,9

2000 168 1,2

2001 164 1,1

2002 124 0,8

2003 56 0,4

2004 37 0,2

2005 18 -Fonte: Instituto de Segurança Pública – Boletim de outubro de 2005. http://www.isp.rj.gov.br/ O boletim não traz nenhuma referência ao cibercri-me.

Todavia, tais números escondem o alto volume de dinheiro desviado criminosamente dos bancos através do crime eletrônico, cujos dados não aparecem nos relatórios da Polícia Civil, nem em qualquer outro lugar (a não ser nas estatísticas do NURECCEL/ES). Costuma ouvir-se, embora não haja qualquer instituição que o assuma publicamente, que o furto eletrônico a bancos já é responsável por 80% dos assaltos a bancos.

18 Este é o caso típico no qual se pode estabelecer um relacionamento frutífero entre a polícia e a Universidade para o desenvolvimento de sistemas informatizados adequados.

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Infelizmente, sem a participação dos bancos não é possível avançar na discussão. O sítio da FEBRABAN não tem praticamente nenhuma informação relevante, nem sequer suas instruções de segurança dão conta do problema. Por exemplo, não há nenhuma recomendação ao correntista do que fazer em caso de fraude na sua conta bancária. Ao menos em tese, compreende-se que não seja do interesse dos bancos divulgar as fragilidades e inseguranças dos serviços on-line de forma a não provocar a desconfiança dos seus clientes. Ainda na linha de manter o problema o máximo possível longe da esfera pública, os bancos optaram por ressarcir o correntista de eventuais prejuízos, restringindo desta forma qualquer discussão ou demanda ao âmbito privado de sua administração. Todavia, fica em aberto a questão a respeito da legitimidade dos bancos assumirem privativamente o ônus dos cibercrimes sem comunicá-los às autoridades policiais (desta forma, ficam essas autoridades sem as devidas informações sobre o panorama das fraudes bancárias eletrônicas). Também fica em aberto até onde e quando poderão os bancos manter sob administração privada um problema cuja dimensão alcança necessariamente a esfera pública. Se não pela divulgação explícita de informações e esclarecimentos, ao menos nos investimentos formais e públicos, especialmente em convênio com as polícias, seja no seu aparelhamento adequado, seja na pesquisa de novas formas de combate ao cibercrime.

Não há maiores novidades quanto à dianteira dos crimes contra o patrimônio. A surpresa fica mesmo por conta dos crimes contra a honra. No período em que a pesquisa foi realizada no interior das delegacias, foi possível testemunhar cenas angustiosas de mãe e filha, ou de uma jovem sozinha, aos prantos diante de imagens de sexo explícito publicadas por ex-namorados. Ou cenas menos dramáticas, mas igualmente insólitas, de brigas entre jovens da paróquia do bairro que transbordaram para um sítio de relacionamentos denominado “Eu odeio Fulano”. O mentor do sítio, um jovem rapaz aturdido pela situação de estar depondo em um cartório policial, bem como por se ver diante da possibilidade de que Fulano viesse a processá-lo por crime contra a honra, confessou cabisbaixo: “eu não sabia que era crime, está cheio disso nesse sítio”.

A capacidade do ciberespaço como instrumento de difusão de conteúdo confere outra dimensão aos crimes contra a honra. Já foi apontada sua gravidade, e a presença desta modalidade criminosa nas estatísticas (vide A marcha dos números), na faixa de 10 a 20% dos delitos, indicam que seria preciso desenvolver uma reflexão específica para esta questão. Evidentemente, uma vertente para enfrentá-la diz respeito ao código – o da lei e/ou o do ciberespaço – mas tudo leva a crer que talvez haja uma vertente educativa importante a ser explorada, ou seja, muito provavelmente serão necessárias campanhas de esclarecimento.

Menção especial tem de ser feita à pedofilia, crime que não aparece nas estatísticas das delegacias. Segundo a pesquisa na delegacia fluminense, as razões para sua ausência relacionam-se à dificuldade de empreender qualquer investigação,

O Cibercrime no Brasil |199

uma vez que os sítios pedófilos, em sua imensa maioria, estão localizados no exterior. De fato, por sua conexão intensamente internacional, a pedofilia tem de ser combatida com estreita cooperação entre polícias de diversos países (a este respeito, reitere-se o ponto de vista desta pesquisa que o combate aos crimes cibernéticos, sejam eles quais forem, tem de ser feito em estreita cooperação nacional e internacional entre as diversas polícias). Um excelente exemplo de cooperação foi a realização pela Polícia Federal, em junho de 2005, da operação Anjo da Guarda, que cumpriu 18 mandados de busca e apreensão em oito estados, com o objetivo de recolher material de informática, fitas e CD’s contendo pornografia infantil. Durante a operação, foram apreendidos na casa do professor de lutas marciais Anderson Luís Juliano Borges Costa, de 33 anos, em Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro, 167 CDs com cerca de 250 mil imagens de sexo explícito envolvendo crianças e adolescentes. Para desbaratar a quadrilha, foi necessária a cooperação entre as polícias brasileira e espanhola, pois foi a partir das investigações por parte de autoridades espanholas que o Brasil foi localizado como a origem de material pornográfico com crianças enviado para sítios espanhóis.

Cabe aqui destacar o esforço que a Polícia Federal, através de seu Serviço de Perícias em Informática, estava realizando em prol da cooperação internacional no combate ao cibercrime. Além da já mencionada conexão à rede 24/7 (veja em Transformando éter em carne e osso), estava sendo desenvolvido o projeto IPCCCC (Internet Police Cooperation Combat Cyber Crimes), de autoria do perito Paulo Quintiliano, apresentado em 2003 à Organização dos Estados Americanos, cujo objetivo era o de estabelecer a cooperação entre países para a elucidação de crimes digitais. Seu mecanismo básico constitui-se na nacionalização das evidências de forma a realizar a persecução penal no país onde o crime se origina.

Quanto aos criminosos, parte da questão já foi discutida anteriormente (veja em Investigando o cibercrime), especialmente no que diz respeito às tipificações ora disponíveis, essencialmente relacionadas a criminosos de outros países, especialmente os que atuam nos chamados países centrais. Retomando a discussão a partir do caso de um jovem hacker, Otavio Bandettini, preso em um hotel do Rio de Janeiro, acusado de desviar criminosamente R$ 2 milhões de contas bancárias, as entrevistas na DRCI/RJ especularam, em suas perguntas, a respeito da organização deste tipo de atividade19. Basicamente, queria se saber até onde tal tipo de atividade criminosa poderia ser considerada como pertencente ao crime organizado, ou até que ponto seria uma iniciativa isolada de um jovem hacker, rapaz de classe média com excelente nível de instrução, e cúmplice dos próprios pais (o pai era dentista em uma cidade do interior paulista). Parece evidente que não há como agir sozinho, que há, de fato, uma organização criminosa no ciberespaço, por mais individualizado que pareça o criminoso, que coloca em contato íntimo e virtual (e não “fisicamente”) os mais diversos atores

19 Foi tentado um contato com o jovem, preso na Polinter, porém não foi possível fazê-lo por restrições legais.

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do crime (intermediários virtuais do desvio de dinheiro, fornecedores de software com finalidades criminosas, etc).

Cabe aproveitar o exemplo para esclarecer que o retrato do cibercrime não fica completo se o considerarmos como perpetrado por um único indivíduo (embora este quadro tenha sido utilizado em vários pontos deste relatório por mera consideração didática, na medida em que, a partir da ação hipotética de um único indivíduo, torna-se mais fácil explicar e compreender o cibercrime). Claro está que é possível imaginar uma “artesania” do crime, construída a partir de uma imagem “romantizada” do cibercriminoso (parte da literatura do cibercrime, especialmente a mais popular, costuma cultivar esta imagem). Mas é muito mais apurado considerar que o cibercrime é organizado em rede (com variados graus de articulação entre seus nós, a depender da rede), e que os ataques são empreendidos por redes de computadores, nelas incluídos os equipamentos que foram invadidos e colonizados por máquinas do cibercrime.

Ainda na DRCI/RJ, revelou-se nas entrevistas um temor pela associação do tráfico com o crime eletrônico, atualmente mais evidenciado pela existência de sítios de apologia ao crime. O “vilão” dessa história seriam os programas de inclusão social e digital. Questionados sobre se tal temor poderia ser entendido como uma oposição a programas de inclusão, ficou esclarecido que não se tratava de combater políticas de integração social e digital, consideradas justas e necessárias, mas sim de cobrar desses programas que exigissem um cadastramento efetivo dos usuários do ciberespaço de forma a permitir sua identificação imediata em casos de crimes de informática. Mais uma vez, se está diante do combate ao anonimato, já discutido anteriormente (veja em Investigando o cibercrime), porém, independentemente da repercussão que a identificação do usuário de programas de inclusão digital teria sobre a conexão tráfico-crime eletrônico, é perfeitamente possível imaginá-la como um cenário futuro, uma vez que não há porque se esperar que o mundo do crime tenha fronteiras rígidas entre as diversas modalidades criminosas.

Finalmente, deve ser destacado que parte dos cibercrimes contra o patrimônio estavam relacionados a fraudes em sítios de compra e venda. Repete-se neste caso o exemplo dos bancos no que diz respeito à carência de informações e esclarecimentos divulgados publicamente. Contudo, é bom que se diga que, ao passo que os bancos tinham por hábito ressarcir integralmente os prejuízos de seus clientes, os sítios de compra e venda tinham o hábito oposto, ou seja, o de se desresponsabilizar pelas fraudes20. Talvez fosse o caso de questionar até onde podem esses sítios legitimamente (e não só legalmente) declinar das responsabilidades

20 Em um desses sítios, informa-se que o provedor do sítio “não será responsável pelo efetivo cumprimento das obri-gações assumidas pelos Usuários. O Usuário reconhece e aceita que ao realizar negociações com outros Usuários ou terceiros faz por sua conta e risco. Em nenhum caso o [nome do provedor do sítio] será responsável pelo lucro cessante ou por qualquer outro dano e/ou prejuízo que o Usuário possa sofrer devido às negociações realizadas ou não realiza-das através do [nome do provedor do sítio]”.

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envolvidas na comercialização de bens realizada sob a sua tutela. Sugere-se que, dada a marcha dos números do cibercrime contra o patrimônio (vide A marcha dos números), as empresas de comércio eletrônico e os bancos sejam instados a tomar as rédeas do problema e investir em maciças campanhas educativas.

7. A MARCHA DOS NÚMEROS

Números não foram facilmente obtidos. O quadro é desolador, especialmente por revelar que não havia (e provavelmente continua não havendo) informação disponível justo em delegacias cujo instrumento primeiro de atuação, por dever de ofício, é a informação. Não havia dados sobre crime eletrônico preparados e divulgados regularmente pelos serviços centrais de estatísticas das polícias. Nada surpreendente, uma vez que os sistemas de informação disponíveis nesses órgãos centrais não tratavam de forma devida as especificidades do cibercrime. Por exemplo, um sistema como o da Delegacia Legal, no Rio de Janeiro, tinham indicadores de temporaliddade e espacialidade que nada tem a ver com o cibercrime, tais como, o dia e o horário nos quais certo tipo de crime mais incide, ou seja, de relevância nula para o crime eletrônico. Na ausência de sistemas centralizados adequados, as delegacias buscavam desenvolver localmente seus sistemas de gerenciamento de informações, geralmente precários. Em todas as delegacias, todos os números solicitados pela pesquisa tiveram de ser previamente tabulados, à exceção da NURECCEL que já tinha uma parte dos dados devidamente tabulada. Graças à sua eficiência na utilização do Excel, software da Microsoft especializado em gerenciamento de planilhas eletrônicas, o núcleo capixaba surpreendeu com o cálculo simples e altamente informativo da quantia de dinheiro envolvida com as fraudes eletrônicas. Como os crimes contra o patrimônio são a maioria dos crimes eletrônicos, ficando com aproximadamente 60 a 70% das ocorrências, sua contabilização constitui uma informação preciosa. Todavia, o grande problema ocasionado por soluções “caseiras” desenvolvidas localmente, além das dificuldades inerentes ao seu desenvolvimento (e por isso todas as delegacias, exceto a capixaba, não tinham praticamente nenhum sistema finalizado localmente, mas sim apenas iniciado ou por iniciar) é sua dificuldade de interligação com os demais sistemas de informação existentes.

É bom que se diga que o problema não era específico do crime eletrônico. Havia dificuldades com o gerenciamento de informações em Minas Gerais, que estava reformulando seus sistemas, e no Espírito Santo, ainda com várias delegacias não conectadas em rede.

Os números são apresentados a seguir:

202 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

RIO DE JANEIRO

Resumo de ocorrências por detalhamento de delito

Os dados de 2004 foram computados somente a partir de 2 de julho de 2004, data na qual a DRCI passou a integrar o Programa Delega-

cia Legal. O ano de 2005 inclui os dados até o dia 14 de junho.Delitos sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente, espe-cialmente a pedofilia, não aparecem com destaque uma vez que

não geram RO’s por conta da dificuldade de empreender qualquer investigação uma vez que os sites, em sua maioria, estão localizados

no exterior. delitos em ordem alfabética

2004

2005

Tota

l an

ual

%

ameaça 9 1 10 2,2

apologia de crime ou criminoso 4 3 7 1,5

apreensão (outros) 2 1 3 0,6

apreensão de adolescente infrator (artigo 104 e 107 da lei... 0 2 2 0,4

apreensão de arma de fogo 0 1 1 0,2

apreensão de veículo 0 3 3 0,6

apreensão de objeto 2 0 2 0,4

apresentação, produção, comércio, divulg ou public 1 2 3 0,6

calúnia 7 1 8 1,7

casa de prostituição 2 0 2 0,4

corrupção ativa 0 1 1 0,2

crimes contra a ordem tributária, econômica, ... 1 0 1 0,2

crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valor ... 0 1 1 0,2

cumprimento de mandado de prisão 0 9 9 1,9

desacato 0 1 1 0,2

difamação 19 7 26 5,6

divulgação de segredo 0 1 1 0,2

estatuto da criança e do adolescente 2 0 2 0,4

estatuto do desarmamento (lei 10826/2003 1 1 2 0,4

estelionato (outros) 72 45 117 25,2

estelionato (outros) - tentativa 3 4 7 1,5

estelionato com emprego de cartão de crédito 7 1 8 1,7

estelionato com emprego de cartão de crédito - tentativa 1 0 1 0,2

estelionato por fraude na entrega de coisa 1 1 2 0,4

exercício arbitrário das próprias razões 1 0 1 0,2

extorsão (outros) 1 0 1 0,2

falsa identidade 2 2 4 0,9

falsidade ideológica 5 5 10 2,2

falsificação de documento particular 2 0 2 0,4

falsificação de documento público 1 1 2 0,4

fato atípico 1 2 3 0,6

furto (outros) 71 53 124 26,7

furto (outros) - tentativa 0 1 1 0,2

O Cibercrime no Brasil |203

furto a instituição financeira 3 0 3 0,6

furto de arma de fogo 0 1 1 0,2

furto de sinais de comunicação 3 0 3 0,6

furto no interior de condomínio 0 1 1 0,2

injúria (outros) 11 10 21 4,5

injúria por preconceito 1 0 1 0,2

interceptação de comunicações telefônicas, informática ... 13 4 17 3,7

invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agr ... 0 1 1 0,2

jogo do bicho 1 0 1 0,2

lei de entorpecentes (outros) 1 1 2 0,4

medida assecuratória de direito futuro 5 2 7 1,5

perturbação da tranquilidade 2 0 2 0,4

preconceito de raça ou de cor 1 0 1 0,2

produção artística, com cena de sexo explícito ou porno 0 1 1 0,2

proteção à propriedade intelectual de programas de com... 2 0 2 0,4

proveniente de prisão cível (pensão alimentícia) 4 0 4 0,9

quadrilha ou bando 4 4 8 1,7

receptação 1 0 1 0,2

receptação qualificada em atividades comerciais ou indust 1 0 1 0,2

recompensa por apreensão de arma de fogo (lei 4365/2004) 0 1 1 0,2

regula os direitos e obrigações relativos à propriedade i 1 0 1 0,2

resistência - tentativa 0 1 1 0,2

roubo de veículo - tentativa 0 1 1 0,2

sindicância sumária (outras) 1 4 5 1,1

tráfico com associação 0 1 1 0,2

tráfico de entorpecente 0 1 1 0,2

uso de documento falso 1 3 4 0,9

violação de comunicação telegráfica radioelétrica ou t 1 0 1 0,2

violação de direito autoral 1 0 1 0,2

violação de direito autoral qualificada 0 1 1 0,2

TOTAL 276 188 464 100%

Na tabela abaixo, busca-se focalizar a ocorrência dos delitos segundo aqueles de maior incidência. Neste sentido, procurou-se agrupar alguns deles segundo três grandes categorias do Código Penal, a saber, os crimes contra o patrimônio, contra a honra e contra a fé pública. Uma vez assim agrupados, percebe-se que os crimes contra o patrimônio representam praticamente 60% das ocorrências, seguidos pelos crimes contra a honra, que representam aproximadamente 13 % do total das ocorrências. A presença razoavelmente expressiva dos crimes contra a honra vem sendo sinalizada até mesmo na imprensa, como é o caso do jornal O Globo, que deu destaque ao problema na capa de sua revista dominical da edição de 17 de julho de 2005.

204 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Resumo de ocorrências com agrupamento de delitos de maior incidência

2004 2005 Total anual

% anual

todos os estelionatos (crimes contra o patrimônio) 84 51 135 29,1

todos os furtos (crimes contra o patrimônio) 77 56 133 28,7

calúnia, difamação,injúria (crimes contra a honra) 40 18 58 12,5

todas as falsificações (crimes contra a fé pública) 11 11 22 4,7

interceptação de comunicações telefônicas, informática ... 13 4 17 3,7

ameaça 9 1 10 2,2

cumprimento de mandado de prisão 0 9 9 1,9

quadrilha ou bando 4 4 8 1,7

apologia de crime ou criminoso 4 3 7 1,5

medida assecuratória de direito futuro 5 2 7 1,5

sindicância sumária (outras) 1 4 5 1,1

proveniente de prisão cível (pensão alimentícia) 4 0 4 0,9

apreensão (outros) 2 1 3 0,6

apreensão de veículo 0 3 3 0,6

apresentação, produção, comércio, divulg ou public 1 2 3 0,6

fato atípico 1 2 3 0,6

apreensão de adolescente infrator (artigo 104 e 107 da lei... 0 2 2 0,4

apreensão de objeto 2 0 2 0,4

casa de prostituição 2 0 2 0,4

estatuto da criança e do adolescente 2 0 2 0,4

estatuto do desarmamento (lei 10826/2003 1 1 2 0,4

lei de entorpecentes (outros) 1 1 2 0,4

proteção à propriedade intelectual de programas de com... 2 0 2 0,4

apreensão de arma de fogo 0 1 1 0,2

corrupção ativa 0 1 1 0,2

crimes contra a ordem tributária, econômica, ... 1 0 1 0,2

crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valor ... 0 1 1 0,2

desacato 0 1 1 0,2

divulgação de segredo 0 1 1 0,2

exercício arbitrário das próprias razões 1 0 1 0,2

extorsão (outros) 1 0 1 0,2

invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agr ... 0 1 1 0,2

jogo do bicho 1 0 1 0,2

preconceito de raça ou de cor 1 0 1 0,2

produção artística, com cena de sexo explícito ou porno 0 1 1 0,2

receptação 1 0 1 0,2

O Cibercrime no Brasil |205

receptação qualificada em atividades comerciais ou indust 1 0 1 0,2

recompensa por apreensão de arma de fogo (lei 4365/2004) 0 1 1 0,2

regula os direitos e obrigações relativos à propriedade i 1 0 1 0,2

resistência - tentativa 0 1 1 0,2

roubo de veículo - tentativa 0 1 1 0,2

tráfico com associação 0 1 1 0,2

tráfico de entorpecente 0 1 1 0,2

violação de comunicação telegráfica radioelétrica ou t 1 0 1 0,2

violação de direito autoral 1 0 1 0,2

violação de direito autoral qualificada 0 1 1 0,2

TOTAL 276 188 464 100%

Fonte: Delegacia Legal – Polícia Civil

ESPÍRITO SANTO

206 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Fonte: NURECCEL

Obs: todos os dados do NURECCEL foram aqui apresentados em formato preparado pelo próprio NURECCEL.

POLÍCIA FEDERAL SERVIÇO DE PERÍCIAS EM INFORMÁTICA

Ano nº. de laudos periciais

2000 214

2001 324

2002 464

2003 795

2004 1149

2005 (até agosto) 722Fonte – Polícia Federal

MINAS GERAIS

Artigo de inquérito instaurado em 2005 no. de inquéritos

184, §2º do CPB - pirataria de áudio e vídeo 198

171 do CPB - Estelionato 54

139 do CPB - Difamação 30

155, §3º do CPB - Furto 14

140 do CPB - Injúria 1

147 do CPB - Ameaça 7

O Cibercrime no Brasil |207

12 da Lei 9609/98 - pirataria de software 6

307 do CPB - falsa identidade 2

154 do CPB - violação do segredo profissional 1

299 do CPB - falsidade ideológica 3

297 do CPB - Falsificação de documento público 1

298 do CPB - Falsificação de documento particular 1

138 do CPB - Calúnia 1

14 da Lei 10.826 - Porte ilegal de arma de fogo 1

Total 320

INQUÉRITOS POLICIAIS INSTAURADOS EM 2005 No DE INQUÉRITOS % ANUAL

pirataria de áudio e vídeo 198 61,9%

todos os furtos/estelionatos (crimes contra o patrimônio) 68 21,3%

calúnia, difamação,injúria (crimes contra a honra) 32 10,0%

todas as falsificações (crimes contra a fé pública) 7 2,2%

ameaça 7 2,2%

pirataria de software 6 1,9%

violação do segredo profissional 1 0,3%

porte ilegal de arma de fogo 1 0,3%

Total 320 100,0%

TIPO DE AÇÃO ANO RESULTADO

Registro de Fatos Policiais 2004 779

Registro de Fatos Policiais 2005 (até 26/07) 615

Inquéritos Instaurados – Crimes pela Internet 2004 48

Inquéritos Instaurados – Crimes pela Internet 2005 (até 04/07) 53

Registros de Furto de Sinal (Clonagem) 2004 55

Registros de Furto de Sinal (Clonagem) 2005 (até 10/07) 33

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 1999 67844

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 2000 100832

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 2001 60523

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 2002 60628

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 2003 46217

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 2004 61435

CDs, DVDs, MP3, VCDs apreendidos 2005 (até 26/07) 53473Fonte: DERCIFE/MG

208 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

OUTRAS FONTESTotal de incidentes18 na Internet no Brasil

1999 07

2000 5.997

2001 12.301

2002 25.092

2003 54.607

2004 75.722

2005 (até junho) 29.960Fonte: Cert.br/Comitê Gestor da Internet

- Avanço da automação bancária no Brasil

Número de transações por cada meio (em bilhões)

2000 2004 Variação 00/04 Participação

Auto-atendimento (caixa eletrônico) 6.616 9.891 49,50% 32,9%

Internet 0.370 2.045 452,7% 6,8%

Na boca do caixa 4.027 3.609 -10,37% 12%

Número de cheques compensados 2.638 2.107 -20,12% 7%

Call center 1.294 1.151 -11,05% 3,8%

Número de equipamentos disponíveis2000 2004

Caixa eletrônico multifuncional (*) 15.639 48.220

Terminais de saque e saldo 47.618 56.708

Terminal de depósito 15.700 19.174

Terminal de extrato e saldo 22.260 3.410

Terminal de emissão de cheques 7.184 14.074

TOTAL 108.401 141.586(*) Saque, saldo, extrato, pagamento, investimento, empréstimo e depósito

Fonte: Febraban apud O Globo

8. SUGESTÕESAs sugestões seguem abaixo resumidas por pontos, sem qualquer

hierarquia de importância:

1) O esforço policial no combate ao crime cibernético carece de enredamento e sinergia entre as polícias. Todas elas comportavam-se segundo um viés territorial que não é adequado para se combater as práticas criminosas no ciberespaço. Sugere-se que seja criado algum mecanismo que promova o encontro e a troca de experiências, quando não a própria ação conjunta, entre os diversos organismos policiais. Sem pretender estabelecer uma forma que viabilize e estimule a sinergia entre as polícias, forma esta que certamente as próprias

O Cibercrime no Brasil |209

polícias saberão definir com mais propriedade, a sugestão é a da realização de um fórum de polícias especializadas no combate ao crime eletrônico, em nível nacional, sem distinguir polícias estaduais da federal, sem hierarquias, que se reúna com uma periodicidade satisfatória ao longo do ano (pelo menos de uma a duas vezes por ano), e que esse fórum estabeleça, na medida em que avancem as discussões, a formação de comissões mistas com finalidades específicas (por exemplo, uma comissão de software para avaliar os produtos disponíveis);

2) Certamente a falta de recursos contribui para aumentar as dificuldades no combate ao crime cibernético. Uma sugestão mais específica não pode ser feita com os elementos ora disponíveis. As propostas de investimentos na expansão dos recursos são ainda muito genéricas, servem muito mais como um roteiro de discussões do que propriamente como um orçamento. Um fórum, como o sugerido acima, poderia pensar com mais clareza uma proposta em comum, bem elaborada, apresentando-a especialmente à SENASP. Um primeiro orçamento poderia privilegiar aquele que é o pedido de todos, a saber, o financiamento para a construção de um laboratório e, portanto, especificá-lo seria uma das primeiras tarefas desse fórum;

3) Especificar, desenvolver e implantar sistemas de informação adequados ao combate ao cibercrime;

4) Integrar as polícias estaduais à discussão da legislação específica de crimes de informática, bem como pressionar para que o Congresso Nacional aprove a lei o mais rapidamente possível;

5) Formalizar a existência plena das delegacias, alocando os recursos necessários. Com sua existência plena, é possível abrir concurso próprio e realizar treinamento apropriado de forma permanente;

6) Discutir a possibilidade de implementar uma campanha educativa de combate ao crime contra a honra;

7) Fortalecer a iniciativa da Perícia em Informática da Polícia Federal em construir uma cooperação internacional adequada para o combate ao cibercrime;

8) Cultivar os relacionamentos ora inexistentes com todos os parceiros em potencial no combate ao cibercrime (como por exemplo, buscar parcerias com as universidades e institutos de pesquisa para o desenvolvimento de sistemas de informação – vide sugestão 3);

9) Dada a marcha dos números dos cibercrimes contra o patrimônio, as empresas de comércio eletrônico e os bancos devem ser instados a tomar as rédeas do problema e investir em maciças campanhas educativas.

9. METODOLOGIA DA PESQUISAA pesquisa desenvolveu-se através de quatro vertentes: 1) realização

de entrevistas semi-estruradas (guiadas por um questionário que segue abaixo)

210 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

com os delegados estaduais e com os peritos em informática da Polícia Federal; 2) realização de pesquisas em arquivos centrais (por exemplo, os dados fornecidos pelas bases do programa Delegacia Legal, no Rio de Janeiro) e locais (por exemplo, as tabelas compiladas pelo núcleo capixaba) e documentos em todos os lugares visitados; 3) observação participante junto às instâncias estaduais (5 dias em Belo Horizonte, 3 dias em Vitória e várias visitas à delegacia fluminense), além de entrevistas não estruturadas com vários policiais dessas delegacias; 4) uma entrevista não estruturada com o Deputado Luiz Piauhylino. Como o objetivo era primordialmente o de traçar um retrato inicial, não houve nenhuma preocupação da pesquisa em (e, portanto, não se a planejou para) estabelecer possíveis comparações entre os casos estudados, ou então possíveis generalizações que permitissem elaborar um retrato nacional. Segue abaixo o questionário:

BLOCO 1: OPERAÇÃO Obtenção de informações administrativas e operacionais

• DISPOSITIVO LEGAL DE CRIAÇÃO DO ÓRGÃO

• ORGANOGRAMA

• ORÇAMENTO

- especificado anualmente

• QUADRO DE PESSOAL

- previsto, atual, ideal.

• ROTATIVIDADE DO QUADRO DE PESSOAL

- previsto, atual, ideal.

• TREINAMENTO/QUALIFICAÇÃO DO QUADRO

- prévia ao ingresso no órgão bem como as práticas correntes.

• RECURSOS DISPONÍVEIS

- máquinas, equipamentos, viaturas, softwares, etc.

• PROCEDIMENTOS

- modo de funcionamento cotidiano do órgão (o início da atuação a partir do registro de ocorrência (RO) ou por solicitação de uma outra delegacia; momento e tipo da informação inserida em algum banco de dados (local, nacional ou internacional, sistemática de avaliações, etc).

• MUDANÇAS PREVISTAS

- Mudanças (em fase de efetivação/em vias de efetivação/idealizadas) no que diz respeito à operação do órgão (em alguns/todos os itens acima).

O Cibercrime no Brasil |211

BLOCO 2: ESTATÍSTICAS DE ATUAÇÃORegistro de quantitativos e sua distribuição pelo tempo, especialmente

desde a criação da delegacia, por ano e, se possível, por mês, dos seguintes itens:

• COMUNICAÇÕES DE CRIME

• ORIGEM DAS COMUNICAÇÕES

• COMUNICAÇÕES REDISTRIBUÍDAS

• DESTINO DAS COMUNICAÇÕES REDISTRIBUÍDAS

• INQUÉRITOS ENCERRADOS

• INQUÉRITOS EM REALIZAÇÃO

• TEMPO DECORRIDO ENTRE A COMUNICAÇÃO DO CRIME E O ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO

• CONDENAÇÕES

• CRIMES POR TIPO (CLONAGEM DE SÍTIO, DIFAMAÇÃO, EXTORSÃO, FRAUDE, ETC)

• REAIS TRANSFERIDOS ILICITAMENTE

• PRISÕES

• ESTIMATIVAS DO QUANTITATIVO DE CRIMES NÃO COMUNICADOS

• OUTROS DADOS RELEVANTES

• DADOS INTERNACIONAIS

BLOCO 3: TIPIFICAÇÃO/ENQUADRAMENTO LEGAL DOS DELITOSCriticar/complementar os itens abaixo:

• TENTATIVAS DE ENQUADRAMENTO NOS ESTATUTOS LEGAIS EXISTENTES

TIPO DE DELITO ENQUADRAMENTOCalúnia Art.138 do C.P.

Difamação Art.139 do C.P.

Injúria Art.140 do C.P.

Ameaça Art.147 do C.P.

Divulgação de segredo Art.153 do C.P.

Furto Art.155 do C.P.

Dano Art.163 do C.P.

Apropriação Indébita Art.168 do C.P.

Estelionato Art.171 do C.P.

Violação ao direito autoral Art.184 do C.P.

Escárnio por motivo de religião Art.208 do C.P.

Favorecimento da prostituição Art.228 do C.P.

212 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Ato obsceno Art.233 do C.P.

Escrito ou objeto obsceno Art.234 do C.P.

Incitação ao Crime Art.286 do C.P.

Apologia de crime ou criminoso Art.287 do C.P.

Falsa identidade Art.307 do C.P.

Inserção de dados falsos em sistema de informações Art.313-A do C.P.

Adulterar dados em sistema de informações Art.313-B do C.P.

Falso testemunho Art.342 do C.P.

Exercício arbitrário das próprias razões Art.345 do C.P.

Jogo de azar Art.50 da L.C.P.

Crime contra a segurança nacional Art.22 / 23 da Lei 7.170/83

Preconceito ou Discriminação Raça-Cor-Etnia-Etc. Art.20 da Lei 7.716/89

Pedofilia Art.247 da Lei 8.069/90- ECA

Crime contra a propriedade industrial Art.195 da Lei 9.279/96

Interceptação de comunicações de informática Art.10 da Lei 9.296/96

Interceptação de E-mail Comercial ou Pessoal Art.10 da Lei 9.296/96

Crime de lavagem de dinheiro Art.1º da lei 9.613/98

Crimes Contra Software “Pirataria” Art.12 da Lei 9.609/98

• Praticados especialmente pelos responsáveis legais dos Provedores.

Favorecimento pessoal Art.348 do C.P.

Desobediência Art.330 do C.P.Fonte: DADALTI, Adolpho. Atribuições da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática,

in Site da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro

• CONFLITOS/PROBLEMAS DE ENQUADRAMENTO

- ex. 1-> estelionato (a clonagem de um cartão de crédito exige a utilização do meio físico, e, portanto, crime a ser tratado pela delegacia de defraudações).

- ex. 2-> páginas clonadas: enquadrado através de delitos acessórios tais como interceptação de dados ou violação da propriedade material.

• TRANSBORDAMENTOS

- ex. -> pirataria: não são necessários conhecimentos técnicos específicos e por isso não pertence ao escopo de atuação da delegacia

• CRÍTICAS/SUGESTÕES AO PROJETO DE LEI EM TRAMITAÇÃO NO SENADO

- prevê delitos de: acesso indevido ou não autorizado a dados ou informações armazenadas em computador; alteração de senha ou de meio de acesso a programa de computador ou dados; obtenção, manutenção ou fornecimento indevido, ou

O Cibercrime no Brasil |213

não autorizado de dado ou instrução de computador; dano a dado ou programa de computador; criação, desenvolvimento ou inserção em computador de dados ou programa de computador com fins nocivos (programas de vírus de computador, worms ou cavalos-de-tróia); violação de segredo armazenado em computador, meio magnético, de natureza magnética, óptica ou similar.

BLOCO 4: TIPIFICAÇÃO/INSTRUMENTOS DOS CRIMINOSOS• instrumentos do crime: sniffer de rede; trojans; etc.

• tipificação de autores: curiosos, pichadores digitais, espiões, ciberterroristas, ladrões, estelionatários, organizados, ingênuos, etc.

• tipificação segundo seu modus operandi: crackers de sistemas, crackers de programas, phreakers, desenvolvedores de vírus, worm e trojans, piratas de programas, testas-de-ferro (especialmente nos casos de fraudes bancárias).

• propriedades/impropriedades das tipificações acima

BLOCO 5: RELACIONAMENTOSVerificação dos diálogos / tensões / negociações / confrontos / alianças com

os atores abaixo (cuidando de acrescentar algum ator eventualmente não listado):

• FORÇAS ARMADAS

- Política de Guerra Eletrônica de Defesa MD32-P-01, etc.

• COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL

- NBSO - Grupo de Resposta a Incidentes para a Internet brasileira

• BANCOS

- Febraban, etc.

• EMPRESAS

- Federações de Indústria, de Comércio e de Serviços, etc.

• PROVEDORES

• UNIVERSIDADES/INSTITUIÇÕES DE PESQUISA

- UFRJ, UERJ, UFF, etc

• CIDADÃOS/OPINIÃO PÚBLICA

- Procons, ONG’s, etc.

• LEGISLATIVO

- Municipal, Estadual e Federal

• JUDICIÁRIO/MINISTÉRIO PÚBLICO

214 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

- Justiças Federal e Estadual

• ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA

- Municipal (Guarda Civil), Estadual (Polícias Civil e Militar, SSP), Federal (Polícia Federal, Secretaria Nacional de Segurança Pública), etc.

• DEMAIS ÓRGÃOS DO PODER EXECUTIVO

- Municipal, Estadual e Federal (p. ex., a Política de Segurança da Informação nos órgãos e nas entidades da Administração Pública Federal - Decreto nº3.505 de 13 de junho de 2000)

• ORGANISMOS INTERNACIONAIS

• FORNECEDORES DE TECNOLOGIA/PROFISSIONAIS DE SEGURANÇA DA INFORMAÇÃO

• TECNOLOGIAS

- familiaridade (ou não) com as principais tecnologias de combate ao crime eletrônico

BLOCO 6: DIFICULDADES• TECNOLOGIAS

- ausência de recursos de hardware e software; dificuldades de rastreamento de IP; etc.

• RELACIONAMENTOS

- a questão do sigilo na fraude bancária (na qual se precisa a cooperação de todos: delegacia, bancos, provedores e vítimas); etc.

• ENQUADRAMENTO LEGAL

• JUSRISIÇÃO TERRITORIAL

- ex.-> IPs de páginas clonadas são internacionais ou de outros estados;

• FALTA DE RECURSOS

- locais, nacionais e internacionais

• OUTRAS DIFICULDADES

- locais, nacionais e internacionais

BLOCO 7: SUCESSOS• INOVAÇÕES

- em tecnologias, em procedimentos investigativos, em fluxos de trabalho, etc;

• DOMÍNIO DE PROCEDIMENTOS INVESTIGATIVOS

O Cibercrime no Brasil |215

- melhoria na produtividade das investigações, etc.

• DOMÍNIO DE FLUXOS DE TRABALHO

- melhoria na produtividade do trabalho, etc.

• DOMÍNIO DE TECNOLOGIAS

- melhoria na utilização de recursos tecnológicos de combate ao crime eletrônico

• REDUÇÃO/FREIO DA EXPANSÃO DO CRIME ELETRÔNICO

• OUTROS SUCESSOS

BLOCO 8: IMAGINÁRIO • Metáforas/imagens/ficções/símbolos a respeito do trabalho policial,

do ciberespaço e do crime/criminoso eletrônico

BLOCO 9: OUTRAS QUESTÕES NÃO ABORDADAS

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Centros Integrados de Cidadania: avaliação de uma política de prevenção da violência (2003-2005) |219

Centros Integrados de Cidadania: avaliação de uma política de prevenção da violência (2003-2005)

Eneida G. de Macedo HaddadJacqueline SinhorettoFrederico de Almeida

Liana de Paula

Esse artigo é uma síntese dos resultados da pesquisa realizada pelo Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) sobre os Centros Integrados de Cidadania (CIC), com o financiamento da Senasp/MJ, por meio do Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justiça Criminal, no ano de 2005.

A pesquisa foi organizada em três temas, cada um deles com fontes específicas e métodos próprios de coleta e organização dos dados, constituindo três níveis diferenciados de análise: 1) o desenho das políticas de implantação dos três programas existentes, no Estado do Acre, no Estado de São Paulo e no município de Vitória, analisando os modelos de gestão e prestação de serviços, concentrando a observação sobre instituições estatais e gestores governamentais; 2) a participação da sociedade civil na gestão dos programas através dos conselhos, o que se realizou apenas em São Paulo, dado a inexistência da gestão participativa nos outros programas, tendo sido utilizado o método de observação direta das reuniões e entrevistas com conselheiros e ativistas ligados ao CIC; 3) descrição e análise dos serviços de justiça oferecidos no CIC, o que também, por razões práticas ligadas ao custeio, ocorreu apenas em São Paulo, tendo sido utilizados como fonte a observação direta dos atendimentos e audiências, as entrevistas com os operadores da justiça e funcionários e as entrevistas com os usuários dos serviços. O relatório completo foi publicado em Haddad et al (2006).

Os dados aqui relatados são todos referentes ao período de coleta e não necessariamente ainda correspondem à realidade atual de funcionamento dos programas, os quais estão sempre sujeitos a mudanças.

Cabe ainda uma observação sobre o lugar de fala dos autores da pesquisa. Mesmo tendo desenvolvido o estudo no âmbito de uma organização como o IBCCrim, que é claramente ativista de uma visão sobre o que deveria ser o CIC, a equipe de pesquisa foi coordenada por pesquisadores profissionais, os quais atuaram com independência e objetivos de produção de conhecimento.

1. O DESENHO DE UMA POLÍTICA FEDERAL E A IMPLANTAÇÃO LOCAL DOS CIC

Os Centros de Integração da Cidadania – CIC foram idealizados por um

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grupo de juristas paulistas preocupados com a reforma do sistema de justiça, no sentido da melhoria do acesso e da democratização de seus serviços, no contexto dos movimentos da redemocratização política, do associativismo dos operadores do direito e da redefinição do papel das instituições e do direito, no contexto de transição democrática do final dos anos 80, início dos 90.

A proposta dos idealizadores compreendia não apenas a descentralização dos serviços de segurança e justiça, mas também uma mudança qualitativa na relação entre os cidadãos e o Estado. Assim, tão importantes quanto a desburocratização do acesso e a integração daqueles serviços eram a participação da comunidade e a mudança da mentalidade dos operadores jurídicos. Para tanto, a aposta do projeto inicial estava na integração física e operacional dos serviços, no aprendizado do exercício da cidadania e nos investimentos em formas alternativas de resolução de conflitos (Ver Haddad et al, 2006; Sinhoretto, 2007a, 2007b).

Um ponto central do projeto original era o deslocamento do foco repressivo, que tradicionalmente marcava a ação do Estado em relação às classes populares, para uma ênfase na solução pacífica de conflitos cotidianos e na promoção dos direitos humanos. Daí o objetivo de ter-se o CIC como espaço de participação popular, solução alternativa de conflitos, acesso a instituições públicas de justiça e prevenção da violência – tanto aquela originada dos conflitos interpessoais quanto aquela praticada pelos agentes públicos, que passariam a se submeter ao controle mútuo e da comunidade.

Em 1996, os CIC tornaram-se um programa da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, com a instalação da primeira unidade na periferia da zona leste da capital. Em 2001, com a ascensão de um Ministro da Justiça simpatizante da proposta e com ligações com o grupo de juristas idealizador do projeto, o CIC passou a integrar as ações de prevenção da violência previstas pelo Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), a ser implantado com recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), administrado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Apesar da origem dos recursos na Senasp, até 2002 as ações de prevenção do PNSP eram gerenciadas pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, voltado para a segurança de Estado e cujos cargos eram privativos de oficiais das Forças Armadas. Neste momento, o programa sofreu uma inflexão em seus objetivos institucionais: de um projeto de reforma da justiça, os CIC passaram a ser vistos como estrutura de apoio a ações de repressão à criminalidade e de intervenção do Estado em territórios vulneráveis ao domínio do crime organizado. Emblemática dessa inflexão foi a instalação de um CIC no município de Santo André, na Grande São Paulo, com foco na expansão de serviços de policiamento ostensivo e de polícia judiciária, e tendo como meta a redução dos índices de criminalidade.

Centros Integrados de Cidadania: avaliação de uma política de prevenção da violência (2003-2005) |221

Em 2003, com a mudança na gestão do governo federal, o programa CIC passou a ser gerenciado pelo Ministério da Justiça. Foi criado um grupo intersecretarial para sua gestão, com participação de representantes da Senasp (que continuava gestora dos recursos financeiros), da Secretaria de Reforma do Judiciário e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, sob coordenação da Chefia de Gabinete do Ministério. Também a partir da coordenação do Gabinete, o Ministério da Justiça buscou identificar, junto a tribunais de justiça estaduais, a existência de experiências afins e sensibilizar seus dirigentes para a implantação de CIC.

Em paralelo, o Ministério fomentou um debate em São Paulo – com participação do grupo de juristas idealizadores do CIC e de outros operadores jurídicos, gestores, militantes da sociedade civil e pesquisadores – com o objetivo de estabelecer diretrizes políticas e metodológicas para a difusão e a fiscalização do programa nacionalmente. Apesar de o encontro ter resultado em um documento com diretrizes relativas aos princípios gerais do programa, aos seus serviços essenciais e aos mecanismos de integração, a pesquisa constatou que essas referências não foram, ao final, plenamente incorporadas como política governamental, embora tenham sido recebidas e discutidas pelo já citado grupo intersecretarial responsável pela coordenação dos CIC.

Independentemente dessas iniciativas, os projetos apresentados por estados e municípios continuaram tramitando pela Senasp. Entrevistados para a pesquisa, os gestores da secretaria manifestaram que sua maior preocupação, no momento da análise e da aprovação dos projetos, era garantir que os objetivos e metas propostos efetivamente correspondessem a ações de prevenção da violência. Essa preocupação representou um obstáculo à aprovação de projetos, uma vez que muitas das instituições proponentes não tinham clareza de metas e objetivos e, no que se refere à prevenção da violência, a ausência de conhecimentos e experiências acumulados resultava em projetos tecnicamente frágeis. Foi o caso, por exemplo, do projeto apresentado pelo estado do Acre em 2005, rejeitado pela Senasp por conta da ausência de um diagnóstico sobre a violência e de objetivos e metas para sua prevenção.

Em relação aos projetos aprovados, a preocupação manifestada pelos gestores da Senasp era a de fiscalização do cumprimento de metas e objetivos e do emprego dos recursos. Novamente, a ausência de informações precisas e conhecimentos acumulados sobre prevenção da violência tornava difícil esse controle, justificando o receio dos gestores de que os recursos do CIC poderiam ser empregados em ações diretas de repressão à criminalidade. Por esse motivo, muitos projetos estaduais financiados pela Senasp não tiveram seus convênios renovados. Foi o caso, por exemplo, do projeto de São Paulo, que não conseguiu demonstrar dados que indicassem resultados na prevenção da violência.

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Outra característica do financiamento dos CIC locais, e que também afetou a relação do Ministério da Justiça com o estado de São Paulo, foi a opção daquele órgão em privilegiar ações que integrassem o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), estruturado a partir de convênios com as secretarias de segurança locais, e que deveria abranger ações de qualificação de pessoal, repressão e prevenção. No caso de São Paulo, a adesão estadual ao SUSP dava pouca ênfase a ações de prevenção da violência, e portanto a proposta paulista do CIC foi feita sem interligação com as ações constantes do convênio do estado com o SUSP. A Secretaria de Justiça de São Paulo contestou os critérios adotados pela Senasp para a rejeição de seu projeto de CIC, mas não apresentou uma proposta de integração com o SUSP no estado.

Para a gestora da Senasp responsável pela aprovação de projetos, o caso de São Paulo ilustrou a importância da articulação prévia entre as instituições e serviços integrados no projeto de CIC. O critério de aprovar apenas projetos que manifestem essa articulação prévia asseguraria, na visão da Senasp, a adesão e a oferta de serviços pelas instituições parceiras, além de permitir que o CIC pudesse servir de espaço de convergência de políticas e de debate dentro do estado sobre a sua intervenção nas questões ligadas à violência e à segurança. Nesse aspecto, a participação da sociedade civil no CIC é valorizada como essencial para o debate e o aperfeiçoamento institucional em direção às necessidades locais de segurança.

Àquela gestora, a participação da sociedade civil aparecia também como forma de preservação dos objetivos do CIC, na medida em que a apropriação do espaço e a fiscalização de seu funcionamento pela comunidade seriam capazes de impedir o desvirtuamento do programa e sua utilização como instrumento de políticas repressivas. Embora elogiasse a participação da sociedade, a gestora da Senasp entrevistada para a pesquisa afirmava, com base em sua experiência, que o desenho e a implantação efetiva do programa acabaria sempre sendo determinados pelo perfil de quem conduz a articulação entre as instituições parceiras e o detalhamento das ações a serem executadas. Nesse aspecto, citou o CIC de Vitória, Espírito Santo, como exemplo não só pelo detalhamento das ações propostas, como também pela capacidade de seus gestores de manter a articulação das instituições e serviços componentes do projeto, e de produzir informações sobre seu funcionamento.

Além de delinear o desenho da política pública dos CIC em nível federal, a pesquisa buscou comparar iniciativas locais (Acre, São Paulo e Vitória), de acordo com alguns critérios de análise: desenho institucional dos programas; instalações dos postos; serviços oferecidos; modelos de parceria; potencialidade e atuação na prevenção da violência e no incremento do acesso à justiça. Conforme se vê nos quadros 1 a 3, os programas existentes nos estados do Acre e São Paulo e na cidade de Vitória-ES são heterogêneos quanto aos seus objetivos,

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serviços oferecidos e mecanismos de integração das instituições envolvidas com o projeto. Além disso, é importante frisar que nem todos os serviços listados são permanentes ou mesmo presentes em todas as unidades nos estados que contam com mais de uma instalação do projeto.

Quadro 1: Centros Integrados de Cidadania: instituições responsáveis,objetivos e unidades instaladas (Brasil, 2005)

ACRE SÃO PAULO VITÓRIA-ES

Instituição responsável Tribunal de Justiça Secretaria Estadual de Justi-

ça e Defesa da Cidadania

Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos

Humanos

Objetivos

Acesso à justiçaExpansão territorial

dos serviços judiciáriosAcesso à documenta-

ção civilPrevenção da violência

Acesso à justiçaMediação de conflitos

Organização e participação popular

Acesso e qualidade dos serviços públicos

Acesso à documentação civilPrevenção da violência

Acesso à justiçaPromoção da cidadaniaAcesso e qualidade dos

serviços públicosAcesso à documenta-

ção civilPrevenção da violência

Unidades instaladas

Rodrigues AlvesMarechal Thauma-

turgoPorto WalterPorto AcreAssis Brasil

Epitaciolândia Brasiléia

Capital:Leste – Itaim PaulistaSul – Jardim São Luiz

Oeste – Parada de TaipasNorte – Jova Rural

Feitiço da VilaFrancisco Morato

Ferraz de Vasconcelos

Vitória

Fonte: Haddad et al. (2006).

Todos os programas têm entre seus objetivos principais a ampliação do acesso à justiça (Quadro 1), o que se reflete na prevalência de serviços relacionados às instituições de justiça nos programas pesquisados (Quadro 2), com destaque para o CIC do Acre – basicamente, um projeto de expansão e fixação territorial dos serviços judiciários do Tribunal de Justiça do estado, e que tem antecedentes no Projeto Cidadão, que de forma esporádica e itinerante, em esquema de mutirão, leva serviços judiciais, expedição de documentos e outros serviços a comunidades do interior do estado. No caso de Vitória, o objetivo de ampliação do acesso à justiça foi incluído posteriormente no projeto inicial, que previa apenas a concentração física e a qualidade dos serviços públicos, especialmente aqueles relacionados à documentação civil. Por sua vez, a ênfase do programa paulista na resolução pacífica de conflitos e na prevenção da violência faz com que não haja atividade de justiça criminal em suas unidades – mesmo a Polícia Civil é estimulada a mediar conflitos, estando vedadas as atividades de registro formal de ocorrências, investigação e repressão.

224 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Nos CIC de São Paulo e de Vitória, a existência de serviços de mediação de conflitos mantidos pelas secretarias responsáveis pelos programas (Escritório de Mediação e Atendimento Intrafamiliar, respectivamente), e de PROCON vinculados aos respectivos governos, incrementa as potencialidades de enfrentamento do problema do acesso à justiça. A vinculação (física, inclusive) da unidade de Vitória à Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos também parece reforçar o objetivo de promoção da cidadania daquele programa, por meio da associação do CIC a outras iniciativas específicas daquela secretaria nas áreas de gênero, raça e infância, com destaque para programas de apoio a vítimas de discriminação e violência e a familiares de vítimas de homicídio, embora a atuação efetivamente integrada desses programas ocorra apenas eventualmente; o Ministério Público instalado nesse CIC também mantém projetos específicos na área de infância e família. Nos CIC do Acre foi possível constatar, além da atividade jurisdicional clássica, intensa atividade informal de orientação jurídica e administração alternativa de conflitos, tanto por parte dos funcionários permanentes, quanto por parte de juízes, promotores e defensores públicos presentes apenas nos dias de audiência.

Em todos os programas locais analisados, a atuação do CIC aparece de forma mais ou menos relacionada com a prevenção da violência, embora na maior parte dos casos essa conexão se dê em torno do discurso genérico de que a presença do Estado, o acesso a serviços públicos e a administração pacífica de conflitos têm o condão de prevenir a conflitualidade violenta; não há, em geral, iniciativas ou serviços específicos voltados à prevenção da violência, e é curioso notar que justamente em Vitória, onde o CIC convive com outros programas de educação em direitos e atendimento a vítimas de violência, a ênfase de seus gestores nesse potencial preventivo do programa é menor, justamente por seu caráter difuso e de difícil mensuração. Em todos os CIC pesquisados o acesso à documentação civil tem papel importante na organização dos programas; outros serviços extrajudiciais complementam os desenhos dos programas (Quadro 2).

Quadro 2: Centros Integrados de Cidadania: serviços judiciais, extrajudiciais de reso-lução de conflitos e outros serviços extra-judiciais (Brasil, 2005)

ACRE SÃO PAULO VITÓRIA-ES

Serviços judiciais

Juizado Especial Cível (*)Juizado Especial Criminal (*)

Varas cíveis (*)Varas criminais (*)Ministério Público

Defensoria Pública (orientação jurídica e assistência judiciária)

Juizado Especial CívelAnexo da vara de família e de infância e juventudeJuizado Especial Federal

Política MilitarPolícia Civil

Ministério PúblicoOrientação jurídicaLiberdade Assistida

(FEBEM)

Juizado Especial CívelJuizado Especial CriminalJuizado Especial Federal

PrevidenciárioTribunal Regional do

TrabalhoPolícia Civil

Ministério PúblicoDepartamento de Assis-tência Jurídica (orienta-ção jurídica e assistência

judiciária) (*)Justiça Comunitária

(posto móvel)

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Serviços extrajudiciais de resolução de conflitos

Escritório de mediação (*)PROCON estadual (*)

Atendimento Intrafami-liar (*)

PROCON municipal (*)

Serviços extra-judiciais

Expedição de documentação civil

Cartórios extra-judiciais (registro civil, notas, protestos, pessoas jurídicas e imóveis) (*)

Expedição de documen-tação civil

Companhia habitacional estadual

Balcão de empregosInclusão digital

Empréstimo de livros (*)

Expedição de documen-tação civil

Programas de direitos humanos (*)

Cartório extrajudicial (registro civil)

Serviços bancáriosCorreios

(*) Serviços mantidos pela própria instituição responsável pelo programa CIC local.

Fonte: Haddad et al. (2006).

A pesquisa do IBCCRIM pôde constatar, ainda, que nem todos os mecanismos de integração dos serviços e instituições envolvidos, previstos nos desenhos básicos de cada programa, têm efetividade prática, sendo que a manutenção das parcerias se dá de formas diferentes, muitas vezes calcada nas relações cotidianas e na proximidade física entre os parceiros (Quadro 3). Nesse sentido, é importante frisar que a concepção arquitetônica do prédio do CIC de Vitória – onde também funciona a secretaria municipal responsável pelo programa – especialmente planejado para garantir a acessibilidade de portadores de deficiências e analfabetos, e o agrupamento de serviços funcionalmente conexos em setores identificados por cores, dá um caráter diferenciado à integração pelo espaço físico. As unidades mais recentes instaladas na Região Metropolitana de São Paulo também apresentam configuração espacial própria e serviços igualmente agrupados por setores, o que, contudo, restava prejudicado pela ausência de serviços importantes, constatada à época da pesquisa.

Quadro 3: Centros Integrados de Cidadania: mecanismos de integraçãoinstitucional e comunitária (Brasil, 2005)

ACRE SÃO PAULO VITÓRIA-ES

Integração institucional

InformalAtividade juris-dicional (partes

processuais)

FormalDireção das unidades

Treinamento/capacitação comuns (*)

Conselho Estadual de Inte-gração da Cidadania (*)Conselhos de parceiros

FormalDireção da unidade

Treinamento/capacitação comuns

Integração PROCON-Juizado Especial Cível

Integração Departamento de Assistência Jurídica-Atendimen-

to Intrafamiliar

Integração comunitária Ausente Conselho Local de Integra-

ção da Cidadania Ausente

(*) Mecanismos previstos mas inexistentes.

Fonte: Haddad et al. (2006).

A integração do programa do Acre baseia-se na própria estrutura do Tribunal de Justiça, responsável pela coordenação e pelas atividades centrais do

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CIC, incluindo os cartórios extrajudiciais. O envolvimento das demais instituições – Defensoria e Ministério Públicos – tem bases informais ao nível de suas cúpulas, mas decorre principalmente do tipo de serviço prestado pelo CIC, já que a atividade jurisdicional clássica do Estado vincula os membros daquelas instituições às suas respectivas funções no processo judicial: a acusação, a defesa, a fiscalização da lei, a decisão, etc. Há ainda parcerias informais com as prefeituras dos municípios onde estão instalados os CIC, que fornecem funcionários para os serviços de expedição de documentos, manutenção e limpeza. Um aspecto relevante da experiência acreana, constatado pela pesquisa, é que o papel dos funcionários dos CIC nas respectivas comunidades, bem como o entusiasmo e dedicação por parte dos membros das instituições envolvidas têm considerável importância na consolidação dessas parcerias informais.

O programa CIC de São Paulo é o que mais conta com instrumentos especificamente voltados para a integração de serviços e instituições em seu desenho institucional básico. Há um decreto estadual (nº 46.000/2001) que formaliza sua existência e seu desenho básico, e são celebrados convênios e termos de cooperação com as instituições parceiras da Secretaria de Justiça para atuação no âmbito do programa. Após a celebração das parcerias ao nível das cúpulas, contudo, não há atuação integrada das direções dessas instituições para a gestão permanente do programa, incluindo planejamento de metas, avaliação global de resultados e alocação de recursos, apesar da previsão de instalação de um Conselho Estadual de Integração da Cidadania, composto pelas instituições públicas e por entidades da sociedade civil; no outro extremo, o conselho de parceiros, previsto para funcionar em cada uma das unidades e composto pelos servidores de cada instituição nelas alocados, não tem autonomia para decidir sobre essas questões, além de não contar com a presença de diversos parceiros. Resta, desta forma, a gestão do programa como um todo pela Secretaria de Justiça, e a administração cotidiana das parcerias, em cada CIC, pela direção da unidade. Além desses aspectos, contudo, a pesquisa não observou canais de integração mais estreitos entre o funcionamento de cada um dos serviços, especialmente no que se refere ao encaminhamento e tratamento de demandas apresentadas. Treinamento e capacitação comuns aos parceiros, previstos inicialmente e ocorridos na inauguração da primeira unidade de São Paulo, contudo, não voltaram a acontecer. Por fim, como já foi dito, o programa de São Paulo é o único que contempla a existência de uma integração da comunidade local à gestão de cada unidade, por meio do Conselho Local de Integração da Cidadania que, contudo, não está instalado em todas unidades.

A integração dos serviços e instituições que compõem o CIC de Vitória, como já dito, deve-se em grande parte ao espaço físico especialmente planejado para abrigá-los; só recentemente as parcerias entre as instituições envolvidas e a

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Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos foram formalizadas por meio de contratos e convênios específicos, nos quais se repactuaram objetivos e responsabilidades. A direção da unidade, bem como o interesse dos parceiros em participar do programa têm papel importante na manutenção da coesão e da estabilidade dessa integração. Ressalvados esses aspectos, contudo, não se observou integração entre o funcionamento dos serviços existentes, com exceção das mantidas entre PROCON e Juizado Especial Cível, e entre Atendimento Intrafamiliar e Departamento de Assistência Jurídica, no que se refere ao encaminhamento de demandas e enfrentamento global dos problemas. A secretaria responsável pelo CIC de Vitória investe em planejamento estratégico, capacitação inicial e atualização – em temas como atendimento ao público, acessibilidade e cidadania – mas, embora essas iniciativas estejam voltadas para o programa como um todo e eventualmente abertas à participação de membros de outras instituições, elas de fato foram absorvidas pela equipe da própria secretaria.

No que se refere à prevenção da violência e ao aumento do acesso à justiça, a pesquisa constatou que a informalidade e o voluntarismo de certas modalidades de integração institucional, bem como a ausência ou ineficiência de mecanismos formais de coordenação e comunicação entre as instituições parceiras, ao nível de suas cúpulas, pode comprometer os objetivos de longo prazo de programas como o CIC; afinal, sem esses espaços permanentes de integração institucional, propostas complexas e ambiciosas de políticas públicas, que prevejam a integração de organizações com culturas, práticas e objetivos tão diversos, podem padecer por falta de planejamento, coordenação e avaliação conjunta de cada uma das atividades a serem desenvolvidas no interior dos programas. Além disso, a própria concepção e implantação da política no âmbito de uma única instituição responsável também comprometem a integração, na medida em que o projeto por ela apresentado é praticamente imposto às eventuais instituições parceiras que, efetivamente, têm a opção apenas de aderir ou não ao programa; isso faz com que tenha se observado, nos programas pesquisados, situações de inadequação do espaço físico destinado a certos serviços nas unidades de CIC, e mesmo de desconhecimento ou inadequação por parte de diversos servidores lotados no programa em relação aos seus objetivos e forma de ação. Outro dado que comprova e acentua essa falha dos programas pesquisados é a descontinuidade, no espaço e no tempo, da prestação de muitos serviços importantes para a garantia de direitos, sendo comum observarem-se serviços existentes em apenas algumas unidades, serviços prestados eventualmente e serviços que simplesmente deixaram de ser prestados.

A simples união de diversos serviços num único local, nos moldes de um pólo de serviços públicos de alta qualidade, como o Poupatempo de São Paulo ou o Shopping da Cidadania da Bahia, se por um lado apresenta a inegável vantagem

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de facilitar a acessibilidade dos cidadãos e de representar ganhos quantitativos e qualitativos na oferta desses serviços, especialmente em regiões antes carentes deles, por outro lado pode limitar a integração a nada mais do que isso: o mero agrupamento de organizações e serviços extremamente diferenciados e, muitas vezes, funcionalmente desconexos. Daí a importância, além do planejamento comum ao nível da gestão do programa, de atividades de treinamento e capacitação permanentes e integradas para todos os servidores alocados nas unidades, independente de função ou instituição de origem. Outros resultados das pesquisas do IBCCRIM confirmam essas carências, ao demonstrarem as dificuldades do CIC em tratar certas demandas e cumprir seus objetivos, especialmente no que se refere ao acesso à justiça e à prevenção da violência: a ausência de serviços importantes, como a assistência judiciária integral, e não apenas de orientação, que impede que demandas sejam solucionadas exclusivamente pelo CIC, sendo encaminhadas a outros serviços; o apego à importância de pessoas “vocacionadas” para o sucesso dos programas, em detrimento de esforços de definição de um perfil profissional para seleção e treinamento; a extrema dependência do funcionamento do programa à personalidade e à capacidade de liderança e coordenação das direções das unidades; a resistência de concepções de justiça e de formas tradicionais de resolução de conflitos à introdução da mediação leiga ou comunitária; a incapacidade dos operadores de justiça em lidar com situações especiais como a violência contra a mulher, relações de família e a situação da vítima de crimes violentos; o espaço deixado para o abuso e o arbítrio por parte de operadores que são estimulados a deixar de lado suas atribuições clássicas, e a investir em uma atuação “informal”, etc.

2. PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA GESTÃO DOS CENTROS DE INTEGRAÇÃO DA CIDADANIA DE SÃO PAULO

A participação da sociedade civil organizada na gestão dos Centros de Integração da Cidadania tem sido vista como fundamental para que as diretrizes propostas por essa política pública de fato se materializem. Assim, a regulamentação de conselhos de participação corresponde a um dos elementos primordiais do ideário que fundamentou a concepção dos CIC, isto é, a imprescindível integração entre os agentes governamentais e a comunidade destinatária do programa de modo a legitimar e fortalecer a organização e as atividades comunitárias, garantindo mecanismos eficazes de decisão conjunta, sugestão, acompanhamento e fiscalização dos serviços prestados.

A pesquisa sobre a participação da sociedade civil e o funcionamento dos conselhos concentrou-se na experiência paulista, por ser essa única a contar com conselhos formalmente instituídos e com reuniões periódicas.

O dispositivo legal de criação do programa paulista (Decreto Estadual

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46.000/2001) regulamentou a implantação do Conselho Estadual de Integração da Cidadania - formado por representantes dos órgãos públicos parceiros e das entidades da sociedade civil, organizadas segundo sua atuação setorial - e de Conselhos Locais de Integração da Cidadania – CLIC, em todos os postos fixos das unidades do CIC21.Além da participação em conselhos, são também consideradas fundamentais atividades de formação permanente em cidadania voltadas ao público do CIC e o estímulo à participação popular22.

Em função do próprio desenho do programa, tal como idealizado e formalizado nas normas que o institucionalizaram no Estado de São Paulo, a pesquisa realizada de maio a novembro de 2005 buscou responder como ocorre a participação dos cidadãos na gestão do CIC, uma vez que essa política pública é pautada pela ação conjunta entre Estado e comunidade. Os dados coletados a partir de observações de reuniões do CLIC, encontros e outras atividades, além de entrevistas semi-dirigidas com representantes de entidades, lideranças locais e gestores, com o então coordenador do programa junto à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, com usuários e com um dos idealizadores do programa que vem acompanhando os trabalhos desenvolvidos em algumas unidades de São Paulo, foram importantes para verificar se e como ocorre a participação da comunidade no funcionamento dos CIC.

Antes mesmo do início do levantamento empírico já se sabia que o Conselho Estadual não estava atuante e que os CLIC funcionavam em poucas unidades. Face à participação bastante tímida das comunidades locais, a proposta inicial foi alterada. Concluiu-se que não seria suficiente comparar os resultados colhidos em apenas duas unidades da cidade de São Paulo a fim de identificar os diferentes graus de envolvimento da comunidade na dinâmica dos CIC. Dessa forma, a observação foi ampliada para mais um posto, o que permitiu um maior aprofundamento no conhecimento da questão que envolve a esperada integração entre os representantes dos serviços públicos oferecidos e a comunidade local para os quais eles se destinam. Procedeu-se a coleta de dados em três unidades

21 Conforme Art. 7º do referido decreto. Outros artigos desse Decreto enfatizam o papel dos Conselhos no planejamen-to e na avaliação da política de implantação dos CIC: “Art.9º - O Conselho Estadual de Integração da Cidadania, com a função de planejar e avaliar as ações da política desenvolvida pela Coordenadoria de Integração da Cidadania - CIC, será composto pelo Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania, que será o seu Presidente, e por representantes governamentais e representantes das comunidades atendidas pela Coordenadoria, na forma prevista em resolução do Secretário; Art.10 - Os Conselhos Locais de Integração da Cidadania, de caráter consultivo, serão formados nos Centros de Integração da Cidadania, postos fixos, e a eles caberá: I - apresentar sugestões representativas das necessidades da comunidade ao dirigente ou aos seus representantes; II - promover a divulgação dos serviços prestados à população em todas as localidades da sua região, incentivando os cidadãos a participarem das atividades desenvolvidas nos Cen-tros de Integração da Cidadania; III - avaliar a qualidade dos serviços públicos prestados à população local; IV - manter intercâmbio com entidades similares.Parágrafo único - O Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania, mediante resolução, disciplinará a composição dos Conselhos Locais de Integração da Cidadania, que contarão com represen-tantes governamentais e representantes da comunidade diretamente atendida.” Observe-se que em 2002 foi editada a Resolução SJDC 67, regulamentando o funcionamento e a composição dos conselhos estadual e locais, confirmando o disposto no Decreto 46.000/2001.

22 O Art. 3º do Decreto 46.000/2001 arrola os princípios que deverão ser observados pela Coordenadoria responsável pelo programa em relação à participação da sociedade civil na gestão dos Centros de Integração da Cidadania: III - a participação de associações e movimentos populares no planejamento, na execução e na avaliação das ações desem-penhadas; VIII - a aproximação do Estado e da Comunidade; IX - o estímulo à organização popular.

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na cidade de São Paulo, inauguradas na fase inicial de implantação do programa, bem como no CIC de Francisco Morato instalado em 2002:

• CIC Leste – localizado em Encosta Norte, no distrito do Itaim Paulista, Extremo Leste do município, criado em 1996.

• CIC Oeste – localizado no Jardim Panamericano, distrito de Jaraguá, em Parada de Taipas, Sudoeste do município, criado em 1999.

• CIC Sul – localizado no distrito de Jardim São Luís, na zona sul da cidade, criado em 2000.

• CIC de Francisco Morato – localizado na Grande São Paulo, criado em 2002.

CIC Leste Quando foi realizada a pesquisa, as instalações e os serviços de limpeza do

CIC Leste eram precários. Conforme a afirmação de uma liderança da comunidade, enquanto eram obtidos recursos para a construção de instalações modernas em outras unidades, não houve investimento no CIC Leste, que estava deteriorado. Daí, a reivindicação no sentido de mudar o CIC para outro local mais apropriado.

Os dados levantados numa tensa reunião ocorrida no posto do CIC Leste por solicitação de representantes da sociedade civil, com duração de mais de três horas, demonstraram a complexidade que envolve a materialização do CIC como espaço público a ser ocupado pela cidadania23. As falas de representantes do Governo do Estado e da Prefeitura Municipal presentes na reunião apontaram a disputa política para a conquista das organizações que atuam na comunidade. Na medida em que outros personagens foram se manifestando, ganharam destaque, de um lado, a competição pelo cargo de direção da unidade e a política adotada pela Secretaria da Justiça e, de outro, os limites de atuação das lideranças locais, como também a frágil participação da comunidade. A crítica se fez presente na fala de um dos idealizadores, representante do IBCCRIM, que vem acompanhando as constantes modificações do projeto que pretendia implantar um novo conceito de justiça.

Um conhecido líder comunitário, reportando-se aos primeiros anos de funcionamento do CIC Leste, ressaltou a burocratização como responsável pelo afastamento das pessoas. A diretora da unidade, exaltando a qualidade do trabalho por ela desenvolvido, mencionou que, apesar da falta de recursos, buscava superar as dificuldades com o auxílio da comunidade. Foi, contudo, contestada pelo mesmo líder comunitário, que desde o início da reunião havia demonstrado descontentamento com a atual condução do CIC: “As coisas não 23 Participaram da reunião representantes do Governo do Estado e da Prefeitura Municipal, dois representantes da

Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania (além da diretora da unidade, o coordenador do programa CIC), um representante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/IBCCRIM (um dos idealizadores do CIC) e representantes das seguintes organizações: Associação de Moradores Marechal Tito; Associação Comunitária Beneficente Conjunto Residencial Itajuíbe; Associação União de Famílias Conjunto Fazenda Itaim; Clube Atlético Itaim Paulista Projeto CAIP e Movimento Artístico Organizando Solidariedade Mãos. Dois pesquisadores observaram o desenrolar da reunião.

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são bem assim como a diretora coloca; a comunidade não participa do CIC e, há muito, as coisas mudaram. As entidades não são convidadas a participar das reuniões.” Outro líder reafirmou a fala do companheiro: “as portas do CIC estão fechadas para os líderes da comunidade.”

O coordenador do programa, incomodado com as intervenções, procurando defender a diretora e a forma como a unidade funcionava, imprimiu um tom de agressividade em sua fala: “as lideranças sempre são convidadas a participar do CIC. Foram envidados os esforços para a concretização do Estatuto do CIC; tendo sido solicitada a colaboração das entidades, poucas responderam ao chamado. Da nossa parte, estamos sempre abertos a reivindicações, sugestões e críticas da comunidade.”

Visivelmente incomodado, o representante do IBCCRIM, tomou a palavra, colocando-se como um dos idealizadores do programa. Afirmou que participara de reuniões no CIC em que a comunidade estava presente, diferentemente do que vinha acontecendo. Ressaltou, ainda, que “a comunidade é que deve dizer o que quer e não é o CIC que deve dizer o que a comunidade precisa”. Lembrou que a filosofia inicial, fundada na integração de serviços, objetivava trabalhar a cidadania e não a mera prestação de serviços. “A comunidade não precisa ser convidada para participar. Ela é o CIC! Inverter isso é inverter a filosofia do CIC”, enfatizou.

Num outro momento, insistiu que “não há possibilidade de existir CIC sem a presença do Estado. Têm que estar presentes o juiz, o promotor, o estagiário. Mas nada disso é suficiente se a comunidade não estiver presente. O que ela precisa, o que ela tem necessidade? É preciso saber, caso contrário, se torna burocrática.”

Explicou que o CIC exerce várias funções e que desenvolve práticas impossíveis de serem implementadas em outro local; acrescentou, finalmente, que essa política pública deveria oferecer uma justiça informal, voltada ao atendimento das necessidades de uma população que não sabe como exercer os seus direitos.

A maioria dos líderes comunitários ficou em silêncio. As reivindicações foram expressas somente nos corredores e em conversas informais; embora não tivessem sido verbalizadas de forma clara, o subtexto evidenciou a busca pela participação da comunidade na gestão do CIC. As lideranças manisfestaram descontentamento em relação aos rumos que o programa vinha tomando, especialmente a tendência à burocratização e a desatenção às necessidades da comunidade. A reunião foi encerrada sem que nenhuma deliberação tivesse sido encaminhada.

As reuniões do Conselho Local de Integração da Cidadania, ocorrendo geralmente à tarde, não contavam com a presença de muitas lideranças. Demonstrando dificuldade em conduzi-las – talvez pelo não cumprimento da pauta e, por vezes, devido à falta de clareza sobre seus itens – a diretora do CIC

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Leste, nas duas reuniões observadas, insistiu na importância de ampliar o número de entidades participantes do CLIC. Os representantes presentes concordaram que seria necessário organizar jornadas24 para tentar atraí-las novamente.

Nas reuniões do CLIC, observou-se que as atividades são programadas para a comunidade e não com a comunidade, fazendo da mesma partícipe da execução de propostas nas quais não teve voz. Em outras palavras, as organizações locais não decidem as ações que devem ser desenvolvidas, embora muitos participantes pensem estar envolvidos em todo o processo. Verificou-se, também, grande preocupação em divulgar o CIC através de eventos que causem impacto junto ao grande público. As atividades são definidas em função das repercussões políticas e dos resultados quantitativos e não do significado que deveriam ter em função da missão institucional do órgão.

Em 12 de julho de 2005, na reunião realizada para o planejamento da comemoração dos nove anos do CIC Leste, ficou evidente que o evento estaria voltado para a promoção das administrações estadual e municipal, cujos chefes são “ambos do mesmo partido político”, como lembrou um dos presentes. Na lógica política das associações, parece aceitável que elas invistam na organização de comemorações para causar boa impressão aos administradores públicos. Afinados com essa visão de participação, os representantes das organizações, em geral, aceitam as propostas que lhe são trazidas pela Secretaria da Justiça. Um deles, embora tecesse críticas à coordenação do programa e à atuação do CLIC (“O arco da cidadania murchou. Gostaria de um CLIC mais atuante. Eu sou um grande fiscalizador e quero ajudar”), valorizou a visita do prefeito ao bairro como uma forma de conquistar visibilidade para os seus problemas. À medida que a reunião foi se desenrolando, ficou clara a tentativa do mesmo líder de mostrar sua importância na comunidade, concordando com as propostas da diretora e mostrando-se disponível para colaborar no que fosse possível.

É marcante a disputa entre os representantes das organizações. Entende-se que lideranças locais muito antigas, suficientemente cristalizadas no processo de “responder em nome do povo”, podem ser reforçadas em processos semelhantes a esse. Sentindo-se importantes em demonstrar a rede de contatos que mantêm, achando-se indispensáveis ao governo, independentemente de siglas partidárias, fazem questão de reforçar seu poder através da representação em organizações.

Duas outras observações merecem registro. A primeira refere-se ao fato de que a prática de realizar reuniões entre os funcionários dos órgãos ter sido instituída desde o início do programa, sem que, contudo, atenda às disposições normativas que o regulamentam. Constatou-se que, no CIC Leste, ao invés de 24 As Jornadas da Cidadania são eventos de prestação itinerante de serviços na região de atuação das associações, muito

utilizadas no início do programa para conquistar o apoio das entidades ao CIC e divulgar os seus serviços junto ao público.

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os representantes dos órgãos públicos e os das associações populares tomarem parte do mesmo conselho, são realizadas reuniões separadas, apontando, pois, a ausência de integração entre os agentes governamentais e a comunidade destinatária do programa. A segunda corresponde à dificuldade em atender outro objetivo do programa, qual seja, desenvolver atividades de formação permanente em cidadania voltadas ao público do CIC e de estímulo à participação. Apesar dos esforços de alguns palestrantes num evento denominado “Bate-papo”, observou-se que o discurso por eles utilizados pareceu, o tempo todo, desconectado da realidade vivida pelo público, no caso, alunos da 8ª série de uma escola vizinha ao CIC. Não houve diálogo. Os jovens demonstravam estar ali obrigados. O silêncio dos presentes chegou a ser constrangedor. A expectativa de um momento marcado pelo diálogo sobre direitos e cidadania com um conteúdo social crítico não se concretizou. Compreende-se que os temas a serem apresentados devem não apenas contemplar os interesses e necessidades do público-alvo, mas ocorrer também um investimento em técnicas de comunicação, utilização de dinâmicas, audiovisuais, textos, que envolvam os participantes no debate, sobretudo quando o público for composto de pré-adolescentes, cuja vivência com o exercício da cidadania está ainda em construção. Para que isso seja possível, entretanto, os funcionários do CIC dedicados à organização de palestras devem possuir e utilizar conhecimentos de comunicação e educação.

De modo geral, pode-se afirmar que as atividades propostas para a comunidade e o modo como são desenvolvidas demonstram um conjunto de dificuldades para a participação autônoma da sociedade civil na gestão cotidiana do CIC Leste. Não existem instrumentos de participação da sociedade civil na avaliação do programa e dos serviços, como preconizados pelos instrumentos jurídicos que regem os Centros de Integração da Cidadania

Francisco MoratoFrancisco Morato, localizada na Grande São Paulo, tem uma população

de, aproximadamente, 160.000 habitantes. Segundo a Secretaria da Justiça, o CIC foi instalado para atuar na prevenção e no combate à criminalidade, uma vez que a cidade apresentava alta taxa de mortalidade por homicídio. O CIC está localizado na região central da cidade, na principal rua de comércio, às margens da linha do trem.

Na primeira visita a essa unidade, constatou-se que o CLIC ainda não tinha sido formado. Segundo a diretora, a população da cidade vê o CIC como o único local capaz de resolver qualquer problema, onde toda a população pode acessar seus direitos. O padrão de qualidade é conseguido pelas críticas e queixas feitas pelos usuários. A integração entre os parceiros “não é fácil, mas não é impossível”. Revelou que o papel do diretor do CIC é funcionar como

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uma ouvidoria dos serviços, em que as queixas são encaminhadas às chefias dos serviços, podendo vir a ser assunto entre os secretários. Reclamou da falta de um compromisso escrito sobre o atendimento a ser prestado. A parceria não é formalizada; com isso os instrumentos de controle dos parceiros são reduzidos.

Sobre a participação popular e a possibilidade de organizar o Conselho

Local de Integração da Cidadania, a diretora afirmou que enfrenta dificuldades. Segundo ela, as entidades estavam participando das reuniões, mas afastaram-se, influenciadas por um político local impedido de tirar proveito do CIC para eleger-se prefeito. “Enquanto trabalhamos com entidades soltas, foi ótimo. Quando se tentou organizar o Conselho Local, não foi possível.” Acrescentou que “os movimentos locais não acreditam no Estado. É muito difícil coordenar o pessoal. Quando chegou o momento de inscrições para a eleição dos conselheiros do CLIC [16 vagas] só quatro entidades se inscreveram. O processo eleitoral foi anulado por falta de quórum.”

Na segunda ida à unidade de Francisco Morato , em 10 de junho de 2005, ocorreu a capacitação de parceiros para a instalação de um posto de atendimento remoto do Juizado Especial Federal. Nesse evento, foi possível registrar o discurso do coordenador do programa aos parceiros a respeito da importância da integração entre eles e dos mesmos com a comunidade. Estavam presentes representantes de três entidades. Em seu discurso, o coordenador dos Centros de Integração da Cidadania fez um breve histórico do projeto, ressaltando não se tratar de mero agrupamento de serviços, mas sim da aproximação do Estado com a sociedade. Apontou dois momentos da integração – entre os serviços e destes com a comunidade – e destacou três “pilares” do projeto: serviço integrado com a comunidade, educação para a cidadania e gestão democrática com participação popular. Sobre os princípios do CIC, afirmou que o principal é a busca de soluções alternativas de conflitos, bem como sua prevenção. Destacou ainda a existência de um Conselho Local em cada unidade e os critérios para a escolha dos locais de implantação dos postos.

Nesse evento, ocorreu também a apresentação dos parceiros, tendo ficado evidente a falta de comunicação e de conhecimento entre eles. Foram também apresentadas as entidades envolvidas com a criação do CLIC de Francisco Morato, cuja instalação foi anunciada para agosto de 2005. Enfim, não foi constatada a participação da sociedade civil organizada no CIC de Francisco Morato, nem tampouco a busca de integração entre os agentes governamentais e a comunidade destinatária do programa.

CIC SulDas atividades programadas que envolvem a comunidade foram

observados alguns eventos – um encontro denominado “Bate-Papo”, um curso e

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uma reunião do CLIC – e realizadas entrevistas com um líder comunitário e com o juiz titular da unidade.

Poucas pessoas se fizeram presentes no “Bate-Papo” sobre violência urbana promovida pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, diferentemente da freqüência observada nas atividades de capoeira e música.

O curso, intitulado “Marketing Pessoal”, ministrado por uma mulher negra, de 40 anos aproximadamente, ex-funcionária da área de recursos humanos, que atua como voluntária no CIC, contou com a presença de dez mulheres. O objetivo era ensinar às pessoas a investirem na aparência antes de se submetem a uma entrevista para conseguir emprego. A professora discorreu sobre o uso de bijuterias, da maquiagem, do esmalte. “Usar bijuterias é recomendável, como, por exemplo, um par de brincos.” Embora as participantes fossem mulheres, a voluntária orientou também os homens: “Se um homem largou a mulher porque ela não lavava sua roupa, não pode falar assim na hora da entrevista, diga que houve incompatibilidade de gênios. É assim que se fala”. Enfim, ao longo da exposição, foram sendo arroladas as atitudes que devem ser adotadas para se conseguir um emprego. Esta atividade demonstrou uma estratégia de acomodar as pessoas às exigências do mercado de trabalho, sem, contudo, promover uma discussão acerca da intensa e desleal competição no mercado de trabalho e sobre os direitos do cidadão.

Na reunião do CLIC, havia um pequeno número de presentes (7 mulheres e 3 homens), embora a diretora tenha informado que mensalmente são convocadas 40 entidades. Constatou-se ser a primeira vez que as entidades participavam. Após a abertura dos trabalhos, a diretora queixou-se da falta de recursos do CIC o que, segundo ela, impede a resolução de muitos problemas sociais, inclusive o recebimento de cestas básicas por pessoas sem recursos. Nenhum dos presentes atendeu ao seu pedido de ajuda. A diretora informou que o inexpressivo envolvimento das organizações estava impedindo a eleição para a formação do CLIC. Uma das participantes que iria inscrever sua entidade nas eleições, após ouvi-la explicar que o CIC presta serviço à comunidade e cabe ao Conselho Local de Integração da Cidadania avaliar esses serviços, reivindicou creche e moradia para sua comunidade. A diretora explicou que esses pedidos deveriam ser feitos na subprefeitura.

A diretora reclamou que o “Bate-Papo” não contava com a participação da comunidade. A sugestão de que ele fosse oferecido na sede das entidades foi por ela rebatida, esclarecendo que não há profissionais suficientes e que o público das organizações é muito pequeno.

Ao discutirem as estratégias de mobilização da comunidade para as atividades, as propostas foram de caráter punitivo: “quem não vier à reunião não

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recebe o leite que é distribuído na entidade.” O tom era de reclamação: “nem na reunião do ticket do leite eles vão!”. Nessas manifestações, foi notado um tom de desdém em relação à população assistida. As entidades não representam as pessoas que atendem, a relação transparece uma tentativa de controle e de clientelismo baseado na administração dos recursos de assistência social. Compreendeu-se que o CIC Sul não tem uma agenda clara de trabalho e permite a discussão de assuntos de interesse das entidades assistenciais, não necessariamente integrados aos serviços oferecidos no CIC.

Uma discussão observada sobre a definição de papéis entre Estado e sociedade civil demonstrou o quão iniciais são os debates desse grupo. Se houvesse um trabalho consistente e duradouro entre os órgãos públicos e as entidades que participam do CLIC, esses papéis já estariam bastante definidos. A visão sobre o governo e sobre a população apareceu como tendencialmente negativa. Nas falas dos participantes, o governo apareceu como corrupto e o povo como leniente, desinteressado nas questões coletivas (“não vão às reuniões”, “não têm consciência ambiental”). Quando se tentou salvar a imagem do governo, a fala do gestor apareceu em tom corporativo: não se deveria criticar na presença dos seus representantes.

A parceria a custo zero foi a política apresentada pelo CIC. Em certo momento, uma discussão desencadeada sobre geração de renda através da reciclagem do lixo, reduziu-se a ter ou não dinheiro para repassar para as entidades. A diretora do CIC atribui toda a responsabilidade da organização de atividades e projetos às entidades (“vocês é que têm que fazer”) e elas aceitam essa relação (“não é para esperar sentado”). E o que recebem em troca? Os serviços. Porém a oferta e qualidade da prestação desses serviços não foram discutidos. Dessa forma, o CLIC se torna uma instância exclusivamente política, onde o diretor de um equipamento público busca aliança junto a lideranças de entidades assistenciais, em troca da oferta de serviços. A que então interessaria às lideranças estreitar essa aliança?

Resta ainda mencionar o contato e a entrevista com o juiz titular do CIC Sul e com um líder comunitário. Comparando-se as informações fornecidas pelo juiz e as colhidas no decorrer da reunião do CLIC foram constatados vários desencontros. Em primeiro lugar, o juiz informou que havia um constante trabalho de esclarecimento junto à comunidade com a finalidade de garantir a integração. Contudo, os participantes do CLIC não estavam integrados a nenhuma ação planejada. Num segundo registro, o juiz titular afirmou que fazia palestras na comunidade sobre os direitos das crianças e adolescentes, particularmente nos condomínios do CDHU, ao passo que, pela informações acima, a diretora do CIC não aderiu à idéia de que os palestrantes pudessem se deslocar às entidades. Não bastasse, segundo o juiz, quando o convite para a participação em eventos era feito boca à boca, o resultado

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mostrava-se positivo. A coordenadora do CIC afirmou que encontrava muita dificuldade em mobilizar pessoas e entidades sociais. O juiz se entusiasmou quando falou da mobilização da comunidade, principalmente para as jornadas da cidadania, inclusive sobre as jornadas mensais, sequer comentadas durante a reunião do CLIC. Finalmente, segundo o juiz, 6 mil pessoas das comunidades eram beneficiadas com 560 cestas básicas oferecidas pelo Rotary e pelo Lions. A coordenadora não sabia como fazer para conseguir uma cesta básica para um homem necessitado que havia chegado ao CIC naquela semana.

O líder comunitário entrevistado, participante antigo das lutas dos trabalhadores, durante muitos anos foi diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Residia no Capão Redondo desde 1950, atuando junto à comunidade e na organização popular. Era presidente da Associação de Moradores e do CONSEG de Capão Redondo, integrante do Grupo do Meio Ambiente e do Conselho da Santa Casa de Misericórdia. Envolvia-se também com muitas atividades de saúde, segurança pública, cidadania e proferia muitas palestras em escolas da região, promovia festas e eventos na sede da Associação de Moradores, coordenava e administrava, no período noturno, um curso de alfabetização para adultos. Valorizou a instalação do CIC Sul, apontando os ganhos para a população, inclusive no controle dos homicídios. Segundo ele, com a derrocada da ditadura, a população voltou a participar da vida pública:

O CIC é um serviço para ajudar o povo, que valoriza o povo. Ao invés das pessoas irem até aos serviços, os serviços é que vão até o povo. Por exemplo, tem gente que não tem dinheiro para pegar condução para tirar um documento, uma identidade: é só ir ao CIC. Além disso, tem o trabalho de fazer a Caravana da Cidadania. Aqui na nossa Sociedade de Bairro, sempre recebemos a visita da cidadania do CIC. O pessoal vem do CIC para fazer identidade, certidão de casamento, registro de nascimento, atendimento de corte de cabelo, tirar foto para colocar nos documentos, manicure, tudo de graça. Eles têm levado justiça na escola, nas entidades, a polícia dá cobertura e também se reúne com o pessoal do CONSEG. Houve uma melhora dos homicídios, que caiu bastante porque tem o CIC funcionando e tem bastante gente da população participando. Tão se acordando, tão participando. No tempo da ditadura militar, o povo participava bastante. Ia preso, mas participava. Com a democracia, o povo se acomodou, jogou água fria na cabeça do povo. Eles pararam de lutar. Mas agora o povo voltou a participar devido aos acontecimentos políticos. (...) O Governador está de parabéns. (...) E tem também o Poupatempo. É um atendimento 100% excelente. Eu conheço pouco o CLIC, mas vou conhecer melhor. Tenho interesse.

Entusiasmou-se ao descrever as dificuldades enfrentadas pelas entidades em sua ação de cunho assistencialista, ressaltando a importância que têm para a população.

As atividades desenvolvidas com a comunidade, os temas abordados, a atuação da diretora e das entidades sociais durante a reunião do CLIC, o desencontro entre o que se diz e o que se faz (as observações registradas sobre a reunião do CLIC

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comparadas com as declarações do juiz titular), a dificuldade de atuação do líder comunitário entrevistado, tão disponível à participação e a maneira como apreende a importância representada pelo CIC e pelo CLIC (tomadas como propostas separadas do governo) apontam que os princípios relativos à participação de associações e movimentos populares no planejamento, na execução e na avaliação das ações desempenhadas pelo CIC Sul; a aproximação entre o Estado e a comunidade local; o estímulo à organização popular, previstos no Art. 3 do Decreto 46.000/01 estão longe de estarem de fato embasando essa política pública.

CIC OesteNo CIC Oeste, não foi observada nenhuma atividade referente à

participação da sociedade civil. Os poucos registros decorreram de conversa com uma estagiária que atua na orientação jurídica. Tendo militado em Pastoral, ela explicou que estava se fortalecendo teoricamente para retornar ao trabalho voluntário. Mostrou-se preocupada com a distância entre os agentes governamentais e a comunidade local. Percebeu-se que era uma pessoa muito preocupada com a necessidade de acesso à justiça da população local. Lamentou o fato do CIC Oeste não contar com os serviços da Promotoria e de defensores públicos25. Contou que voltava triste das reuniões da Secretaria da Justiça porque os gestores não tinham iniciativa para resolver as deficiências do CIC e atrair a população local. Relatou que, quando da eleição para a escolha do Conselho Tutelar, teve a idéia de trazer os candidatos no CIC a fim de que a comunidade tivesse oportunidade de participar de um debate, ter mais informações, saber da importância dos conselheiros, votar conscientemente. Lembrou que o então diretor aceitou a ideia, ressalvando os cuidados que deveriam ter para não manifestarem suas preferências. Com o afastamento desse diretor, não foi possível colocar em prática essa proposta. Indagada se o governo do Estado interfere na condução do projeto CIC, respondeu que ele ainda não descobriu o “potencial” do CIC, “felizmente”.

Ao término da coleta de dados nas unidades mencionadas, concluiu-se que, a despeito das diferenças no que tange ao espaço disponível, aos serviços oferecidos, ao funcionamento dos mesmos e à demanda da população, à atuação das diretoras e às atividades desenvolvidas, os CIC não podem ser caracterizados como espaços públicos ocupados pela cidadania. Continuam sendo espaços meramente oficiais.

A entrevista realizada em setembro de 2005 com um dos idealizadores do projeto, desembargador aposentado, cuja fala apareceu na reunião solicitada pelas lideranças locais do CIC Leste, permitiu o aprofundamento das observações. Segundo ele, o CIC, tal como vinha sendo implementado, não fortalecia a

25 A Defensoria Pública no Estado de São Paulo foi criada pela Lei Complementar 988, sancionada em 9 de janeiro de 2006.

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comunidade, impedindo que ela tivesse liberdade de expressar o que pensa e o que quer. Referiu-se ao fato de o projeto inicial ter previsto a integração entre todos os prestadores de serviços entre si e deles com a comunidade. Todavia, sua fala concentrou-se na figura do juiz, o qual, se quisesse cumprir devidamente sua função, não poderia permanecer estranho aos problemas e particularidades da população por ele atendida. Em sua opinião, com a criação do Juizado Especial Cível – JEC, a possibilidade de integração ficou comprometida; ocorreu a formalização das relações, embora numa proposta de informalização da justiça. Para ele, os novos magistrados deveriam fazer estágio em unidades do CIC, considerando que a sua preparação é meramente técnica, já que a universidade não abriria espaço para que o operador da justiça tivesse conhecimento da realidade. Além disso, a verticalização inerente à carreira do juiz, a competição entre os pares, a defesa de um status diferenciado, enfim, a cultura jurídica não incentivaria o compromisso com a população. Continuando a criticar a forma como vem ocorrendo o funcionamento dos CIC, insistiu que a formalização é responsável pela ausência de integração entre os agentes governamentais e a comunidade destinatária do programa. O entrevistado entende que a população se distancia do CIC porque sabe que está sendo usada politicamente.

Um líder comunitário, referindo-se aos primeiros tempos do funcionamento do CIC Leste, relatou o significado que teve para ele a aproximação das “autoridades” públicas, reforçando, sem saber, a análise do desembargador:

Olha, a visão da cidadania eu já tinha, porque eu já praticava há muito tempo, antes do CIC chegar. Essa é a grande verdade. Mas a da justiça não. A da justiça eu confesso que eu tinha um aprendizado, mas não o conhecimento que o CIC me proporcionou. Eu tinha um aprendizado pelos acontecidos comigo. Agora, o conhecer veio com a história do CIC. Porque veio mais abertura e eu comecei a ver de maneira diferente aquilo que eu pensava - que era um autêntico bicho-de-sete-cabeças. O fato de você chegar junto de um secretário da justiça e conversar com ele tranqüilamente, junto com um comandante da Polícia Militar, e fazer sugestão e o cara acatar, aquilo começou a me transformar. Sinceramente. Hoje eu percebo que a mudança foi radical mesmo.

Em outro momento da entrevista, afirmou: Olha, eu tinha uma imagem muito cruel de juízes. Porque a gente conhecia muito pouco do trabalho dos juízes e davam a impressão que eram senhores de outro mundo. Mas diante do quadro que a gente começou a perceber, alguns seminários, a gente começa a perceber que tem juízes e juízes. Existem juízes “seres humanos” e existem juízes “mecânicos” - aqueles que tem uma visão fechada e direcionada a um só critério. Então o trabalho do juiz, hoje, eu faço uma avaliação de que é importante. É bom para a comunidade ter próximo de si juízes, até como forma de respeito. Promotores... O CIC aqui deu sorte. Passou aqui promotores fantásticos. Como passou um juiz aqui que marcou - não porque ele era uma pessoa ótima, mas pela sua rigidez.

A partir dessa e de outras entrevistas realizadas, levantou-se a hipótese

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de que houve um momento em que o programa CIC comportou tentativas de novas relações de sociabilidade e de novas relações com a Justiça.

Diferentemente do que ocorrera em outros períodos, nos postos do CIC que constituíram objeto dessa investigação, no momento da coleta de dados, não estavam sendo ministrados cursos voltados para a educação em direitos, para a difusão de conhecimentos relativos à cidadania participativa e ao controle democrático das instituições, envolvendo o corpo profissional, os usuários, os parceiros e a população em geral. As relações entre as autoridades e os usuários dos serviços produziam uma distância, isto é, não havia lugar para o desenvolvimento de novas formas de sociabilidade, defendidas no projeto original. As observações registradas nas reuniões dos CLIC demonstram a ausência de integração entre os agentes governamentais e a comunidade. Durante o período destinado à coleta de dados, as unidades não realizaram plenárias e audiências públicas, importantes para a publicização das demandas. O CIC não é canalizador das reivindicações da população, não atua em conjunto com os movimentos populares organizados existentes no local em que se instala. Conseqüentemente, as lideranças locais não fiscalizam e não participam na gestão da oferta e prestação de serviços. Enfim o CIC, como se apresentou a essa pesquisa, não estimula uma cultura de participação popular cidadã.

Nas periferias de São Paulo a participação popular é histórica. Possivelmente, a dificuldade de sua participação decorra da comunicação, da inserção e da relação do CIC com a realidade local. Na linguagem neoliberal, assimilada nos meios populares, a parceria resulta não em partilha, mas em repasse da responsabilidade do Estado, como bem expressa uma gestora do CIC: “nossa proposta é essa: vocês se mobilizem e façam”. Sob esse enfoque, como esperar a participação comunitária?

3. A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE JUSTIÇA NO CIC DE SÃO PAULOO terceiro módulo da pesquisa teve como principais objetivos avaliar a

prestação dos serviços de Justiça para o atendimento das demandas levadas aos Centros de Integração da Cidadania de São Paulo e observar seu grau de integração com outros serviços neles oferecidos e com a sociedade civil. Nesse sentido, procurou-se levantar dados sobre a atuação dos operadores da Justiça (juízes, promotores, procuradores do Estado, conciliadores, mediadores e delegados) na intervenção de conflitos. Principalmente nos casos de conflitos tipificados como crimes, buscou-se aferir quais os procedimentos adotados por esses operadores, como o encaminhamento às instâncias criminais ou o uso de técnicas de mediação e de expedientes alternativos de solução de conflitos.

Como o primeiro objetivo era avaliar a prestação dos serviços de justiça, a presença do Poder Judiciário foi considerada essencial na seleção dos postos

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do CIC onde ocorreu a coleta de dados. Assim, o CIC Leste (Encosta Norte), o Sul (Jardim São Luís) e o Oeste (Jaraguá) foram escolhidos por contarem, na época da pesquisa, com Juizados Especiais Cíveis – JEC.26 Além das audiências de instrução e conciliações judiciais dos JEC, foram também considerados como serviços de justiça aqueles oferecidos pela Orientação Jurídica, pela Polícia Civil, pelo Escritório de Mediação e pelo Ministério Público.

Esses serviços foram sistematicamente observados pela equipe nos meses de maio (CIC Leste), junho (CIC Sul) e setembro (CIC Oeste) de 2005. Ao todo, foram 336 registros de observação, sendo a maior parte delas no CIC Sul (ver Tabela 1). É importante salientar que, durante esse período, a equipe procurou acompanhar os atendimentos de todos os serviços de justiça selecionados. Os dados das observações foram coletados em formulários e tratados de forma quantitativa, com a codificação de variáveis e a produção de bancos de dados, e qualitativa, com a análise dos casos relatados.

Tabela 01: Serviços oferecidos nos CICs segundo tipos selecionadosSão Paulo - SP (2005)

Serviço

CICLeste Sul Oeste Total

n. abs. % n. abs. % n. abs. % n. abs. %

Total 104 100 153 100 79 100 336 100

OrientaçãoJurídica 30 28,85 19 12,42 25 31,65 74 22,02

Poder Judiciário 60 57,69 76 49,67 48 60,76 184 54,76

Polícia 3 1,88 20 13,07 6 7,59 29 8,63

Mediação 11 10,58 - - - - 11 3,28

Ministério Público - - 38 24,84 - - 38 11,31

Fonte: Centros de Integração da Cidadania - CIC Leste, Sul e Oeste; IBCCrim Núcleo de Pesquisa.

Como pode ser observado na Tabela 1, o Poder Judiciário (54%) foi o serviço que contabilizou o maior número de atendimentos observados, seguido da Orientação Jurídica (22%). O Ministério Público, terceiro com maior número do total de observações (11%), merece destaque por ter apresentado uma alta demanda 26 Os outros postos do CIC que existiam em 2005 – a saber, a Casa da Cidadania (PEFI Imigrantes), na Zona Sul, e o CIC

Norte (Jova Rural) – não foram visitados durante a coleta de dados. O Poder Judiciário não atuava na primeira e o se-gundo recebia visitas periódicas do Juizado Itinerante. Após o término do trabalho de coleta, recebeu-se a informação de que o Poder Judiciário do CIC Sul (Jardim São Luís) iria transferir-se para o CIC Feitiço da Vila, que estava sendo inaugurado. Atualmente, há 10 postos do CIC em funcionamento. São eles: CIC Leste (Encosta Norte), CIC Sul (Jardim São Luiz), CIC Oeste (Jaraguá), CIC Norte (Jova Rural), CIC Casa da Cidadania, CIC Feitiço da Vila, CIC Guarulhos Bairro dos Pimentas, CIC Ferraz de Vasconcelos, CIC Francisco Morato e CIC Campinas (ver www.justiça.sp.gov.br).

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(24%) no único CIC onde seu serviço estava plenamente disponível, o CIC Sul.

O número de atendimentos feitos pela Polícia Civil também foi maior no CIC Sul em relação aos demais. Lá, embora o delegado não atendesse ao público, havia dois investigadores que se revezavam nessa função. Já no CIC Leste, onde houve o menor registro de procura por serviços da Polícia Civil (3% dos serviços ali oferecidos), havia dois investigadores. Durante o período de coleta de dados, o delegado designado estava prestando serviços, em caráter eventual, no distrito policial. No CIC Oeste, houve dificuldade em observar a demanda por esse serviço porque o delegado esteve em licença durante boa parte do período de levantamento de dados.

No que se refere aos conflitos que levaram os usuários a buscar os serviços de justiça dos CIC, observa-se, na Tabela 2, que aqueles relacionados a consumo e prestação de serviço (32%) foram a maior demanda, seguidos dos conflitos familiares (30%).

Conflito

CICLeste Sul Oeste Total

n. abs. % n.

abs. % n. abs. % n.

abs. %

Total 104 100 139 100 75 100 318 100

Acesso a Serviços Públicos 11 10,58 4 2,88 5 6,67 20 6,29

Acidente de Trânsito 9 8,65 13 9,35 19 25,33 41 12,89

Consumo, Prestação de Serviço 48 46,15 35 25,18 20 26,67 103 32,39

Família 14 13,86 68 48,92 16 21,33 98 30,82

Questões Imobiliárias 10 9,62 7 5,04 7 9,33 24 7,55

Questões Trabalhistas 4 3,85 1 0,72 - - 5 1,57

Vizinhança 3 2,88 6 4,32 7 9,33 16 5,03

Outros 5 4,81 5 3,60 1 1,33 11 3,46

Fonte: Centros de Integração da Cidadania - CIC Leste, Sul e Oeste; IBCCrim Núcleo de Pesquisa.Conversão: (-) para fenômeno inexistente.

Porém, cada tipo conflito apontado acima apareceu de forma diferenciada em cada serviço de Justiça estudado, conforme trataremos a seguir.

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Orientação JurídicaA Orientação Jurídica gratuita, serviço de fundamental importância para

assegurar aos cidadãos menos favorecidos o acesso à justiça, não era oferecida pela Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado de São Paulo – PAJ/SP – em nenhum dos CIC estudados.27 No CIC Sul, ela era feita por advogados conforme convênio firmado entre a PAJ/SP e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. Já no CIC Leste e no Oeste, ela era realizada por estagiários de direito selecionados pela Associação de Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo – Arpen – para cuidarem da orientação sobre certidões em geral. Nesses postos do CIC, o convênio com a OAB garantia somente a presença de advogados dativos para as audiências no Poder Judiciário.

A maior demanda pelo serviço de Orientação Jurídica focou-se na resolução de conflitos de família (dissolução de união estável; violência doméstica; pensão alimentícia; guarda de filhos e reconhecimento de paternidade), totalizando 2/3 dos atendimentos observados deste serviço no CIC Oeste; 52%, no CIC Sul e 20%, no CIC Leste. Outra demanda importante correspondeu à busca de acesso a serviços públicos, principalmente a regularização de documentos (certidão de nascimento, casamento, atestados de óbito, para pessoas que residem tanto em São Paulo quanto em outros estados). No CIC Leste, essa demanda foi a motivação de 1/3 dos atendimentos observados e, no CIC Oeste, de 16%. Também nesses postos, houve demanda referente a questões imobiliárias, sendo 8% dos casos no CIC Oeste e 13% no CIC Leste. A regularização de documentos e as questões imobiliárias apareceram de forma pontual no CIC Sul, tendo tido maior destaque questões referentes a consumo e prestação de serviços (15%) e vizinhança (10%).

Muitas demandas trazidas ao serviço de Orientação Jurídica não foram resolvidas no CIC devido à impossibilidade de postulação de ações, tornando-se um grande entrave para a efetivação do acesso à justiça para a população usuária, a qual era encaminhada a outras entidades de assistência judiciária gratuita. Outra questão observada foi a inexperiência e a insuficiência de conhecimentos jurídicos por parte dos estagiários atuantes nos CIC Leste e Oeste. Já no CIC Sul, o fato dos advogados serem plantonistas dificultava uma interligação com os demais serviços desenvolvidos no CIC.

Poder JudiciárioO Poder Judiciário, representado pelos Juizados Especiais Cíveis –

JEC, foi o serviço de justiça mais procurado em todos os postos pesquisados, perfazendo um total de 57% dos casos observados no CIC Leste; 49%, no CIC Sul e 60%, no CIC Oeste (Ver Tabela 1). A maior demanda dos usuários por esse serviço referiu-se a questões de consumo e prestação de serviços, sendo 70%

27 Em 2005, quando foi feita a coleta de dados, a assistência jurídica gratuita era efetuada, no Estado de São Paulo, pela PAJ. A Defensoria Pública no Estado de São Paulo foi criada pela Lei Complementar n. 988, sancionada em 09 de janeiro de 2006.

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dos casos observados no JEC do CIC Leste; 47%, no CIC Sul e 39% no CIC Oeste. Outra demanda significativa foi referente a conflitos decorrentes de acidente de trânsito, sendo essa a motivação de 15% dos casos observados no CIC Leste; 19%, no CIC Sul e 41%, no CIC Oeste. Ambas as demandas (consumo/prestação de serviços e acidentes de trânsito) estiveram relacionadas a conflitos que envolviam o pagamento de dívida (contas atrasadas ou não pagas, concerto de automóvel). Demandas referentes a questões imobiliárias e vizinhança também foram observadas, porém, de forma menos acentuada.28

No CIC Sul, havia uma configuração diferenciada dos demais postos visitados por contar, além do Juizado Especial Cível, com uma designação especial de Juízo Auxiliar das Varas de Família e Infância e Juventude, do Fórum de Santo Amaro. Por essa razão, parte significativa dos conflitos ali tratados relacionou-se a questões familiares (22%), tais como fixação de pensão alimentícia, regularização de guarda, tutela e curatela.

Audiências de ConciliaçãoNo Juizado do CIC Leste, as conciliações eram realizadas

preferencialmente por um dos funcionários do cartório (sempre o mesmo) e, na sua ausência, por outro funcionário (também determinado). O juiz também atuava nas conciliações.

O ritual de início dos trabalhos de audiências ocorria com o pregão dos envolvidos nos processos que compunham a pauta do dia. Os processos eram entregues a uma servidora que fazia uma primeira chamada dos presentes para conferência de documentação e eventual existência de acordos prévios. As partes aguardavam a chamada nos bancos, junto aos seus advogados, quando presentes. O número de audiências que efetivamente ocorria num dia dificilmente excedia sete ou oito. Quando havia uma pauta extensa de audiências de conciliação, o juiz repartia-a com o conciliador. Por conta dessa organização, as audiências de instrução eram agrupadas em alguns dias, ficando o restante da pauta liberada para as conciliações.

As audiências de conciliação judicial realizadas por funcionário do cartório tinham lugar, geralmente, em uma ante-sala contígua à do juiz. Em volta de uma mesa retangular sentavam-se as partes e o conciliador, dispondo de um computador. As audiências tinham início com uma breve explanação sobre o procedimento, a averiguação de possíveis acordos pré-estabelecidos e o interesse das partes em fazer proposta para solução do problema ou conflito.

A dinâmica dessas sessões visava conseguir um acordo. Notou-se que, quando as partes manifestavam desinteresse ou mesmo resistência à aceitação de um acordo, o conciliador deslocava-se da posição de imparcialidade e colocava-se

28 No CIC Leste, 8,32% dos casos observados no JEC referiu-se a questões imobiliárias, 3,17%, no CIC Sul e 8,70% no CIC Oeste. Já vizinhança foi mais presente nos CIC Sul (4,76%) e Oeste (8,70%).

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como parte interessada no desfecho negociado. Para isso, mobilizava argumentos para convencer a parte resistente, sendo comum a antecipação do julgamento, comunicando que ela não ganharia a causa integralmente no caso de adjudicação. Fazia-se também menção à morosidade da justiça como um argumento para evidenciar a vantagem do acordo.

Foi comum observar que os dois funcionários responsáveis pelas conciliações encaminhavam ao juiz, no mesmo dia, casos em que as partes resistiam à composição. Nesses casos, o juiz tentava novamente realizar a conciliação, às vezes recorrendo à antecipação de julgamentos e a argumentos que destacavam a lentidão da justiça e os custos do prolongamento de uma demanda judicial. Veja-se o exemplo que segue: o conciliador fazia uma audiência referente a uma colisão de veículos, cujo móvel era o ressarcimento de danos. O réu questionava não haver provas suficientes e o conciliador dizia que o réu era culpado e dificilmente conseguiria provar sua inocência, sendo difícil ganhar a causa. Quando o operador chegou ao final de seus argumentos e não conseguiu o acordo, preparou-se para marcar nova audiência. Foi quando o juiz, que ouvia tudo de sua sala, interveio e disse ao conciliador: “deixa que eu vejo isso”. Leu o processo, formou um julgamento e dirigiu-se ao réu: “é melhor um acordo do que você ficar com o nome sujo”. O réu se manteve em sua decisão inicial de não concordar com os valores a serem pagos, alegando não possuir condições para tal. Foi então marcada a segunda audiência.

No juizado do CIC Sul, as audiências de conciliação e de instrução ocorriam nos mesmos dias sem critério de ordem para cada fase do procedimento. Todas as audiências de conciliação e instrução eram executadas pela juíza e não havia conciliadores trabalhando neste CIC.

O ritual para o início dos trabalhos de conciliação e audiência se dava com a chamada do dia, quando eram conferidos a presença, a documentação e os possíveis acordos pré-estabelecidos. Enquanto aguardavam a audiência, as pessoas se aglomeravam nos poucos bancos disponíveis. Quando entravam para a audiência de conciliação ou instrução, as partes não eram informadas sobre como ocorreria o procedimento. Era dado como certo e sabido que entendiam o funcionamento do Judiciário e que sabiam o que era esperado delas numa audiência de conciliação ou de instrução.

A juíza operava sozinha a sala de audiências. Os únicos atos em que o funcionário participava eram o pregão e o preenchimento dos dados das partes na ata ou sentença. Tudo era elaborado e digitado por ela; conseqüentemente, os procedimentos eram extremamente silenciosos, permeados de longas pausas em que a única pessoa que atuava era a juíza.

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Nas conciliações, a juíza perguntava se havia possibilidade de acordo entre as partes. Quando houve uma negativa, não insistia, a não ser perguntando novamente se não havia nenhuma possibilidade. E, rapidamente, punha-se a digitar. Se houvesse uma proposta, permitia um diálogo espontâneo por alguns momentos. Não foi observada repressão incisiva à introdução de argumentos relativos ao mérito da causa, embora ela controlasse, com a limitação do tempo, a palavra.

Quando havia advogados, eles procuravam explicar às partes o que estava ocorrendo. Em caso contrário, verificou-se muita insegurança dos leigos no momento em que a juíza mencionava a apresentação de testemunhas na audiência de instrução. As pessoas procuravam se certificar se era necessário trazer testemunhas e o que poderia ser considerado como prova. A juíza não explicava as conseqüências jurídicas de apresentar ou não testemunhas e provas e, por economia de tempo e esforço, limita-se a dizer: “traga só se tiver”.

A economia de explicações foi a tônica do desenrolar dos atos judiciais no CIC Sul. Daí que, muitas vezes, foi difícil apreender, durante a observação, as questões envolvidas no conflito. Nesse sentido, observou-se que alguns usuários deixavam as audiências aparentando não ter compreendido perfeitamente os procedimentos adotados ou o desfecho atingido.

No CIC Oeste, as audiências de conciliação e as de instrução e julgamento eram preparadas por uma funcionária e realizadas em dias diferentes. O juiz não estava presente no CIC às sextas-feiras e, às segundas e quartas-feiras, havia estudantes de Direito, voluntários, atuando nas conciliações, diferenciando o JEC do CIC Oeste em relação aos demais.

Todas as conciliações conduzidas pelos conciliadores, numa sala separada, eram encaminhadas ao juiz, no mesmo dia, independentemente do resultado. Levadas ao juiz, as partes eram novamente orientadas antes da homologação do acordo. No caso de não ter ocorrido acordo, ele iniciava novamente o procedimento da conciliação. Dada a instituição dessa dinâmica, a intervenção do conciliador era breve. Entre os litigantes freqüentes, como empresas e advogados, verificava-se que as partes, já sabedoras do costume local, não se colocavam disponíveis para o acordo diante do conciliador, mas aceitavam elaborar o acordo diante do juiz.

O juiz adotava um tom marcadamente formal e objetivo na condução das audiências e no relacionamento com as partes e os funcionários. Estes, sempre aguardavam permissão para entrar na sala e para falar com ele. Em todas as sessões observadas, o juiz seguiu rigorosamente os procedimentos judiciais próprios de uma audiência. Ouviu as partes e, posteriormente, abriu espaço para que os advogados (quando existiam) fizessem suas perguntas. Este procedimento se repetia, de acordo com o numero de partes e testemunhas. Ao final dos depoimentos, o juiz proferia a sentença, digitada simultaneamente por sua auxiliar. Na seqüência, ocorria a assinatura das atas.

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Audiências de Instrução e JulgamentoAs audiências de instrução e julgamento no CIC Leste foram realizadas

na sala do juiz, onde as mesas ficavam dispostas em “T”, sendo que a mesa do juiz estava num patamar superior. Os réus sentavam-se à sua esquerda e os autores à direita. O funcionário, equipado com computador e impressora, auxiliava o juiz antes, durante e depois de cada audiência. As audiências podiam contar com a participação de advogados, cuja presença é obrigatória quando o valor da causa excede 20 salários mínimos, e facultativa em causa com valor inferior, se do interesse das partes.

Nos casos em que os réus compareceram com advogados constituídos, os autores que não podiam constituir defensores tiveram sua assistência jurídica realizada no ato por advogado dativo designado ad hoc. O advogado dativo era participante do convênio da PAJ/SP com a OAB para a prestação de assistência judiciária gratuita, podendo atender vários e diferentes casos no mesmo dia. Como sua designação era feita no ato, em geral tomava conhecimento da demanda por meio de uma leitura rápida do processo já durante a audiência, sem tempo para análises minuciosas ou debates com seus clientes.

Muitos usuários que chegaram ao Juizado do CIC Leste não o conheciam antes. Porém, foi comum encontrar prepostos de empresas que tinham certa familiaridade com os procedimentos e os funcionários do Juizado. Esse aspecto parece ser decorrência da grande demanda relacionada ao direito do consumidor, apontando para uma tendência à presença habitual de certos usuários – concessionárias de serviços públicos, principalmente, mas também empresas da economia local.

Nas audiências de instrução e julgamento do CIC Sul, primeiro era dada a palavra ao réu e o autor devia ouvir em silêncio. Nem sempre isso ocorreu e a juíza teve dificuldades em explicar que se tratava de um procedimento. Foram momentos tensos, porque os autores queriam se manifestar, mas ela fazia sinal para aguardarem. Ela ouvia as partes, geralmente em pé, com o gravador na mão. Não se observou nenhum caso em que ela sentenciasse no ato.

Às vezes, as partes perguntavam quanto tempo demoraria para que conhecessem o resultado da sentença. A juíza costumava atribuir a demora ao cartório. Em um caso, um homem litigava contra o plano de saúde para conseguir fazer uma cirurgia. Depois que ele se retirou da sala, mandou perguntar, através do escrevente, qual o prazo da sentença. A juíza respondeu ao escrevente que não era um caso de vida ou morte e que demoraria uns dez dias.

A palavra “execução” foi outra fonte de problemas. Algumas pessoas assustavam-se quando a ouviam, pois não a compreendiam em seu sentido jurídico, mas num uso mais corrente, significando eliminação física das partes.

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As audiências de instrução e julgamento no CIC Oeste também seguiam as formalidades de praxe dos atos judiciais: uma funcionária sentada à porta da sala inicialmente confirmava a presença das partes e advogados e pedia seus documentos; era ela também quem convocava as partes a entrarem na sala de audiência. Lá dentro, outra funcionária indicava os assentos das partes, redigia os termos, e operava o gravador que registrava os depoimentos das testemunhas.

Como já foi observado, o juiz tinha bastante apego ao formalismo processual, o que fazia com que fosse minucioso ao ouvir as testemunhas. Mas fazia também com que cultivasse uma rígida separação de papéis entre o julgador e o orientador jurídico. Nos casos em que as partes estavam desassistidas de advogado, quando os indivíduos interpunham perguntas ao juiz, ele costumava indicar o balcão do cartório e não responder as dúvidas. Mesmo no caso de insistência, ele se recusava a responder, por acreditar que o juiz não devia orientar as partes, sob risco de favorecer uma em face da outra. Esse cuidado, porém, pode resultar em barreira ao acesso à justiça e ao aprendizado sobre os procedimentos judiciais, as leis e os direitos.

Assim, embora o desconhecimento do mundo jurídico não seja exclusividade dos usuários do CIC Oeste, neste posto puderam ser observadas as dificuldades de acesso à justiça enfrentadas por usuários que não puderam contar com uma orientação jurídica prévia.

PolíciaO atendimento da Polícia Civil, segundo o projeto de idealização do

CIC, deveria ser pautado por uma abordagem não-criminalizadora e de resolução alternativa de conflitos. Por isso, a Delegacia do CIC não registra boletins de ocorrência e não faz inquéritos policiais. O trabalho de polícia orienta-se para a resolução informal de conflitos e para a orientação jurídica. Entretanto, isso abre possibilidade de práticas não codificadas e favorece a confusão entre orientação jurídica e orientação moral.

O trabalho típico da Delegacia do CIC é visto internamente pela instituição policial como o “trabalho social da polícia”. Esse trabalho “social” já foi estudado por diversos sociólogos e é uma prática antiqüíssima da função policial no Brasil, que tem atravessado gerações de profissionais e perdurado, apesar das mudanças do perfil profissional da polícia29. Historicamente, tem sido uma função controversa em razão de realizar-se segundo costumes inteiramente amparados na cultura policial informal, ao largo das disposições legais para o acesso à justiça e o processamento judicial dos conflitos.

29 Cf. Luciano Oliveira. Sua excelência o comissário e outros ensaios de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004; Marcos Luiz Bretas. O informal no formal: a justiça nas delegacias cariocas da República Velha. Discursos Se-diciosos, Crime Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996, 213-222; Paula Poncioni Mota. A polícia e os pobres: representações sociais e práticas em delegacias de polícia do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado. RJ: Escola de Serviço Social/UFRJ, 1995.

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Contrastando com a grande procura que já teve em outros momentos, a Delegacia de Polícia do CIC Leste funcionava, na época da coleta de dados, de forma bastante precária. Durante o período em que foi feito o levantamento empírico, constatou-se que ela não atendia diariamente, havendo dois investigadores trabalhando em dias alternados. Além disso, quando aberta ao público, seu período de funcionamento era menor que o dos demais serviços existentes. Sobre essa questão, foi observado por uma das pessoas que trabalhavam ali que: “no CIC Leste, só está funcionando o Judiciário; o delegado não vem, não tem nenhum membro do Ministério Público. Isto aqui está abandonado”.

Assim, poucos casos foram observados. Um deles foi o atendimento a um jovem que havia perdido os documentos e precisava obter uma declaração para encaminhar o pedido da segunda via. O investigador o encaminhou à unidade do Poupatempo30 mais próxima.

Outro caso referiu-se ao tratamento dispensado a uma mulher que estava sofrendo ameaça de morte pelo ex-companheiro, de quem estava separada havia três anos e com quem tinha um filho de cinco anos. O investigador alegou não poder fazer nada em relação às ameaças, pois, se perguntasse ao agressor sobre os fatos, o mesmo os negaria. Num segundo momento, o investigador perguntou à vitima: “A senhora tem testemunha?” Ela respondeu que sofria ameaças na presença do filho de 5 anos. Orientou-a, então, a provocar o ex-companheiro para que a ameaçasse na presença de pessoas adultas. “Não adianta fazer BO sem ter testemunha”. Num terceiro momento, devido à insistência da vítima quanto à gravidade da situação, o investigador orientou-a a fazer uma “separação juridicamente correta, que iria estabelecer a guarda e uma sentença obrigando o marido a pagar a alimentação para o filho”. Como ela continuasse afirmando que estava sendo ameaçada de morte, encaminhou-a para a orientação jurídica. Explicou aos pesquisadores: “em casos semelhantes, prefiro mandar para a orientação jurídica ou mediação, pois, como investigador, não posso chamar as partes porque seria usurpar a função do JECrim. Há casos em que encaminho para a Delegacia da Mulher”.

Na Delegacia do CIC Sul, embora houvesse um delegado e dois investigadores, eram esses últimos que se revezavam para fazer o atendimento ao público e dar encaminhamento aos casos. Durante o período da coleta de dados, o delegado não fez atendimentos. Segundo ele, “quase não tem o que fazer numa delegacia de polícia no CIC”, em razão de não serem usados os instrumentos legais da polícia judiciária. Assim, os casos eram resolvidos por composição entre as partes ou encaminhados para outros órgãos. Um dos investigadores revelou, em entrevistas informais, sentir-se desamparado para exercer a mediação de conflitos.

30 O Poupatempo é um programa estadual de São Paulo que reúne em grandes unidades, em locais de fácil acesso por transporte público, diversos serviços ligados à documentação fornecida por órgãos estaduais. Tem como marca o atendimento informatizado e prazos reduzidos para a obtenção dos serviços.

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A maioria dos casos atendidos pela Delegacia (57%) referiu-se a conflitos familiares, envolvendo a dissolução do núcleo conjugal. Em alguns casos, a dissolução estava em vias de acontecer e a polícia era buscada para ajudar a negociar a separação. Geralmente, os casos envolviam ameaça à pessoa e violência doméstica. Em outros, a dissolução já tinha ocorrido, mas a relação entre os ex-cônjuges ainda não tinha se estabilizado e a polícia era chamada a intervir quando um dos dois decidia iniciar um novo relacionamento. Era nesse momento que ocorriam ameaças à pessoa e ameaças envolvendo a guarda e o pagamento de pensão para os filhos. Mesmo que um novo relacionamento não estivesse em pauta, a polícia podia ser acionada para a execução de vingança de um cônjuge sobre o outro. Em um dos casos envolvendo o conflito conjugal, um homem procurou a polícia porque sua ex-mulher iniciou um novo namoro. O conflito deu-se porque eles ainda não estavam divorciados. O homem levantou a suspeita de que o namorado da ex-mulher abusava de sua filha, cuja guarda ficou com a mãe. Ameaçou tirar-lhe a guarda, se o namorado não fosse afastado da residência. A menina ficou doente e passou a noite no pronto-socorro. No dia seguinte, estavam os pais na delegacia, sendo a mãe acusada de não conseguir manter a criança com saúde. A intervenção do policial foi no sentido de afirmar para a mulher que seu dever era, em primeiro lugar, zelar pelos filhos. Ela não deveria deixar o namorado entrar em sua casa, pelo menos até a tramitação do divórcio (o que leva dois anos após a formalização da separação).

Além dos casos de família, houve tentativa de conciliação a respeito de danos materiais causados por acidentes de trânsito, encaminhados com insistência para a celebração de um acordo. Houve ainda atendimento envolvendo vizinhos, acerca de uma construção que ameaçava desabar sobre outra. Embora sejam casos que envolvem direito de propriedade, típicos do Juizado Especial Cível, os usuários procuraram a polícia, por acreditarem ser uma instância de resolução mais eficaz. A polícia, por seu turno, atendeu esses casos com a justificativa de evitar o uso da violência entre as partes.

O caso mais emblemático das dificuldades para o exercício da função policial no CIC foi o de uma mulher grávida que procurou a Delegacia porque seu marido a havia expulsado de casa com os filhos. Horrorizados com a “imoralidade” do comportamento do homem, os policiais intimaram-no para prestar explicações. O homem apresentou-se supostamente alcoolizado, com as roupas sujas, e trouxe num saco uma galinha preta morta, com as penas, e uma garrafa de pinga – identificados como material de despacho de macumba, ou “kit macumba”, conforme nomeado pelo policial. Segundo esse último, o homem estava tomado de uma força descomunal e tentou agredir o delegado: “Tomou a pinga de encruzilhada e vai saber a força extra que ele não ganhou nessa...”

A versão de agressão não restou confirmada ao final do dia, mas

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foi exaustivamente repetida pelo policial. Na agitação, os policiais agarraram o homem, o lançaram ao chão e o algemaram, dando-lhe voz de prisão. Foi chamado o reforço do distrito policial para a condução do acusado e o registro de ocorrência de desacato à autoridade. Como o reforço demorou a chegar, o homem ficou algemado, em pé, por várias horas, até ser conduzido num camburão, escoltado por outras viaturas, tendo ao todo dez agentes policiais, entre civis e militares, acompanhado sua condução. No distrito, foi registrado um termo circunstanciado de perturbação do sossego, ficando claro que o policial não conseguiu sustentar sua versão de tentativa de agressão e desacato.

O fato de a situação envolver uma mulher grávida conferiu uma singularidade à reação dos policiais. O homem reafirmava sua suspeita de que o filho não fosse seu. Os outros filhos da mulher eram de relacionamentos anteriores.

Quando a mulher perguntou-lhe porque ele havia se apresentado naquele estado alterado, todo sujo, o homem respondeu ter recebido a notícia do falecimento de sua mãe. A situação foi tornando-se cada vez mais densa quando o homem conseguiu, dada as circunstâncias subjetivas e objetivas, fazer uso da palavra. Ele chorava, falava da perda da mãe, da traição da mulher e da sua honra masculina. A mulher chorava, defendia a imagem do homem, não aceitava seu enquadramento como bandido, demonstrando estar muito preocupada com o que iria acontecer com seu companheiro. Perguntava “será que eles vão judiar dele?”

Para o policial, o conflito entre o casal já não importava e mesmo com a manifestação de solidariedade entre os dois e sua disposição em entrar num acordo sobre sua situação conjugal, prevaleceu a solução da prisão, não tendo dispensado mais atenção à resolução do conflito conjugal. Embora se pudesse caracterizar o conflito como violência contra a mulher, também não foi essa a solução penal dada ao caso, já que nenhum registro oficial foi realizado sobre isso. O fato de homem ter agredido sua mulher, grávida, só importava para agravar seu status de criminoso, que pretendia agredir a autoridade policial.

A análise deste caso mostra como o atendimento da Polícia Civil não comporta uma atuação técnica nos casos de violência contra a mulher. Os policiais e a promotora não estavam preparados para lidar com a dinâmica própria deste tipo de conflito, já amplamente estudada e com protocolos de conduta estabelecidos. A intervenção policial verificada não atingiu o núcleo do conflito e nem transformou a situação que levou à busca dos aparelhos estatais, já que no caso descrito, o conflito não foi mediado e o casal, muito provavelmente, pode ter vivenciado novos episódios violentos. A solução repressiva descontentou a ambos, já que a mulher pediu em diversas oportunidades que soltassem o marido e se opôs ao tratamento criminalizador a ele dispensado. Além disso, nenhuma medida de proteção à sua integridade foi estabelecida. O homem, por seu lado, responsabilizava a mulher pelo tratamento indigno a que foi submetido.

252 | Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública

Em diversos episódios, o atendimento caminhava para a dispensa dos usuários, sem que nenhum vínculo se firmasse entre o cidadão e o policial. Um mesmo atendimento era interrompido diversas vezes para atender ao telefone, dialogar com outro funcionário que viesse à sala da delegacia, ou mesmo retirar-se da sala.

Os casos encaminhados para a delegacia nem sempre eram aceitos pelo policial, demonstrando a existência de conflitos de interpretação sobre o encaminhamento a ser dado aos casos, situações que não foram raras no CIC, testemunhando a ausência de integração no atendimento. Como o caso de uma usuária que procurou o serviço da delegacia para relatar que seu vizinho fez um aterro acima do nível do terreno de sua propriedade e construiu uma casa. Em conseqüência desse aterro, a casa da usuária estava cedendo e “chegou até estalar”. O investigador demonstrava-se impaciente, já que a senhora falava de forma pausada e confusa, e perguntou o que ela queria. Ela respondeu que queria saber se havia risco, iniciando uma frase que não pode concluir, interrompida que foi pelo investigador. Este afirmou que seria preciso mover uma ação de obrigação de fazer e que ela deveria ir ao cartório, ao Judiciário. A usuária então disse ser sozinha e que o vizinho “fica tirando sarro”. “Você tem a justiça do seu lado!”, proferiu o investigador, conduzindo-a de volta à recepção do CIC, onde a ajudou a explicar o caso, encerrando o seu atendimento.

O discurso dos policiais às partes não era pautado pela orientação jurídica, nem pela referência às leis, e sim por uma moralidade supostamente comum entre os policiais e os usuários. Elementos dessa moralidade puderam ser apreendidos, como a subordinação dos filhos às regras dos pais, a subordinação das mulheres aos homens e dos cidadãos comuns aos policiais. A rememoração das regras era tida como uma intervenção suficiente e o conflito foi devolvido à esfera privada para aí encontrar seu ajustamento31. Assim, assistiram-se casos de ameaça à vida serem resolvidos com um telefonema ao marido agressor ou ainda se fazendo recurso à intimidação do agressor diante da vítima.

Os casos de violência contra a mulher, com ameaça à vida, foram cotidianos no CIC Sul e não seria possível relatar todos os que foram observados. Não se falou em proteção, nem se cogitou o auxílio de uma delegacia especializada no atendimento à violência contra a mulher, ou em relação às crianças, o Conselho Tutelar ou outros órgãos competentes. Mesmo havendo no CIC um representante do Ministério Público e um juiz com designação para atuar em casos da Vara da Infância e Juventude, os casos de violência intrafamiliar recebidos pela Polícia Civil não se desdobraram em ações judiciais de proteção da integridade ou da vida das mulheres e crianças, como está previsto na legislação brasileira e é efetivado por políticas públicas destinadas a vítimas de violência.

O CIC Oeste contava com um investigador e um delegado de polícia. 31 Wânia Pasinato Izumino utiliza-se do conceito de “reprivatização do conflito” para descrever a atuação das instâncias

do sistema de justiça nos casos de violência contra a mulher.

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O trabalho deste era dedicado à tentativa de composição de conflitos, sendo que o investigador era responsável pela entrega de intimações e pela localização das partes envolvidas.

O delegado alternava em seu linguajar o vocabulário técnico-jurídico e gírias próprias da atividade policial. Contou que, no CIC, ao contrário de uma delegacia, viu-se obrigado a ouvir as duas partes de um conflito, sem sensibilizar-se pela primeira versão do ofendido. Segundo ele, achava seu trabalho no CIC mais tranqüilo do que na “linha de frente” da atividade policial, e diz que, agindo de maneira menos formal e procedimental, chegava a economizar quase doze mil folhas de papel por ano ao Estado, justamente por não registrar ocorrências que, muito provavelmente, não resultariam em nada.

Informou que a maioria dos casos que atendia tinha causas sociais e que deveriam ser solucionados pelo Serviço Social. Porém, a polícia que era procurada. Muitas vezes, ele encaminhava ao Serviço Social porque – considerava – trabalhavam bem em parceria. Contou que veio transferido de outra unidade por motivo de saúde. Gostava muito de trabalhar no CIC porque ali era um trabalho mais voltado para a Polícia Comunitária.

Os casos atendidos foram bem variados e incluíam também problemas cíveis. Dos casos observados, apenas um envolvia propriamente um delito criminal, com ameaças à pessoa e danos patrimoniais. Nos demais, a intervenção policial justificava-se apenas como alternativa à intervenção clássica do direito civil, sendo a polícia uma das vias de acesso ao sistema de justiça. Na verdade, não era muito fácil compreender porque aqueles casos foram canalizados para a polícia e não para o Juizado Especial Cível. Um deles envolvia a proteção de menores de idade e seria um caso específico de intervenção do Conselho Tutelar. O próprio delegado teve este entendimento e tentou encaminhar as reclamantes, mas elas se escusaram, queixando-se da ineficácia do órgão. Assim, a polícia foi buscada como instância de recurso, como mais uma das alternativas de resolução de um problema que é da alçada de diversas instâncias e, ao mesmo tempo, não é de competência exclusiva de nenhuma delas.

O atendimento da Polícia Civil no CIC Oeste não teve o mesmo conteúdo de orientação moral encontrado no CIC Sul, embora estivesse permeado pela visão conservadora dos problemas sociais que tinha o delegado. Essa visão apareceu nas críticas que ele fez às leis penais, muito brandas, e na disposição de colocar os instrumentos coercitivos a favor da resolução dos problemas.

MediaçãoO Escritório de Mediação funcionava somente no CIC Leste, totalizando

10% dos serviços ali observados (ver Tabela 1). Esse número poderia ser mais alto; porém, as observações dos atendimentos estiveram suspensas por quase quinze dias devido a questões burocráticas, que impediram a equipe de acompanhar o serviço.

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O serviço era realizado por voluntários e juízes de paz escalados para atuar como mediadores32 que trabalhavam em duplas. Seu trabalho tinha início com uma explicação às partes sobre o objetivo da mediação. Quando havia necessidade, os mediadores redigiam uma carta-convite a ser entregue à outra parte pela própria pessoa que iniciou a queixa. Era agendada uma data (no máximo após 15 dias) para que as partes comparecessem.

As duplas de mediadores trabalhavam de modo entrosado, sendo bons ouvintes e interlocutores, educados e respeitosos com as partes. Intervinham oportunamente, com bom senso e isenção. A habilidade dos mediadores possibilitava que as pessoas se descontraíssem e descrevessem as razões do conflito.

As audiências de mediação observadas versaram sobre conflitos entre vizinhos, familiares, proprietários e inquilinos, dívidas de pequena monta, entre outros.

As entrevistas realizadas com pessoas que utilizaram os serviços de Mediação apontam que a maioria mostrou-se satisfeita com o atendimento dispensado, uma vez auxiliada na resolução dos seus problemas. Entretanto, era baixa a demanda desse serviço, o que, talvez, decorra da pouca informação circulante sobre as condições em que pode ocorrer uma resolução negociada dos conflitos.

Ministério PúblicoO Ministério Público estava presente, durante o levantamento de

dados, somente no CIC Sul, sendo responsável por grande parte do movimento de usuários nesse local.33 Embora o atendimento ao público fosse a principal função da promotora dessa unidade (existia uma agenda diária, controlada por senha, com até dez atendimentos), em virtude de o Juizado atender processos de família, infância e juventude, ela atuava também nesses processos e nas audiências correspondentes. A grande maioria (86%) dos casos atendidos por ela foi relativa a problemas atinentes ao direito de família, tais como acordos de fixação de pensão alimentícia, regularização de guarda e curatela, sendo a promotoria mais procurada por mulheres. Os homens, quase todos, reivindicavam providências quanto ao impedimento de visitas regulares dos pais aos filhos. As providências da promotora foram de intimar as mães e prontamente encerrar o atendimento.

O tratamento dispensado aos conflitos com potencial de violência revela os limites do atendimento para lidar com os casos urgentes, que envolvem ameaças e iminência de agressões e até de mortes. O relato a seguir aponta nessa direção.

Uma jovem, grávida, colocada na rua e ameaçada pelo marido viciado em drogas, procurou a Polícia Civil do CIC, que a orientou a buscar abrigo na casa da mãe. A jovem insistia que sua mãe não teria como acolhê-la e que tudo que possuía estava dentro da casa. Explicou também que havia saído do emprego

32 Os mediadores foram capacitados por curso oferecido pela Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, órgão responsável pelos CIC.

33 No CIC Oeste, havia, em 2005, uma funcionária administrativa cedida pelo Ministério Público para realizar o serviço de fornecimento de segunda via de certidões de nascimento. Porém, o serviço foi fechado naquele mesmo ano.

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e dado todo o fundo de garantia para o marido comprar um carro. Estava sem roupa, sem comida, sem dinheiro, sem documento.

Foi conversar com a promotora, a qual, apressada, reafirmou a orientação da polícia, e não quis se envolver com o caso ou com sua solução. Como nenhum encaminhamento foi dado, a jovem retirou-se em desespero, responsabilizando a promotora pelo que poderia vir a acontecer.

Percebeu-se, no conjunto dos atendimentos observados, uma tendência à adoção de práticas de moralização da conduta da população pobre da periferia. Essas práticas manifestavam-se na forma de perguntas e comentários que tinham por função transmitir valores cultivados pela promotora a respeito da constituição e da natureza das famílias, da regulação do número de filhos e da conduta sexual, claramente tendentes a uma visão conservadora. Num dos registros de atendimento, referente a reconhecimento de paternidade e pensão alimentícia, a promotora perguntou à usuária – uma jovem que, tendo um filho de relacionamento anterior, vivia em união estável com outra pessoa – de forma generalizadora: “Vocês não sabem namorar sem casar?” E depois: “Olha a sua situação agora”.

A promotora, claramente, fazia distinção entre os “casados no papel” e os “amasiados”, numa interpretação peculiar dos direitos e obrigações decorrentes da união civil estável. Veja-se este atendimento, dispensado a um idoso que solicitava um alvará, visando obter junto ao INSS uma quantia devida à sua mulher, recém-falecida. A promotora pediu a certidão de óbito. Ao lê-la, disse que o senhor não tinha direito porque eram separados judicialmente. Ele explicou que voltaram a viver maritalmente havia dezesseis anos, existindo testemunhas disso. A promotora perguntou sobre filhos ou pais e descobriu que o único parente de sangue vivo era um irmão da falecida e sentenciou que só ele poderia receber o dinheiro. O senhor tentou argumentar, repetiu que viviam juntos novamente desde muitos anos, procurando provar os laços afetivos e de solidariedade: “eu que fiz o enterro”. Mostrou a correspondência bancária dela para provar a coabitação e disse que ia junto ao banco receber a aposentadoria. A promotora não quis ouvir mais argumentos ou analisar provas e encerrou: “é, mas o senhor não pode receber. É o irmão dela que tem que receber. Aqui estão os documentos para ele vir aqui. Boa tarde.”

Em muitos casos, a conveniência e a organização do trabalho sobrepuseram-se à orientação e efetivação dos direitos. Num atendimento, a promotora desentendeu-se com uma usuária porque ela trouxe um comprovante de residência que não estava em seu nome, mas no nome de sua mãe. Dada a presença do pesquisador, a estagiária que auxilia a promotora justificou-se, reforçando uma visão estereotipada: “eles têm a vida deles bagunçada e querem que a gente seja igual”. A promotora não discordou, reforçando que não se pode transigir no que é obrigatório.

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A postura de vigilância moral da conduta dos cidadãos transpareceu, além dos casos já narrados, nas perguntas interpostas pela promotora e nas afirmações lançadas quando se discutia a regularização de tutela e guarda de crianças. A promotora interessava-se em saber se as mães que estavam prestes a perder a guarda de seus filhos para as avós tinham “vida regular” e por que não criavam seus filhos. Nesses casos, circulavam histórias de uso de drogas, desemprego e novos casamentos, as quais sempre eram analisadas pela promotora como justificativa para a perda da guarda. As avós, ao contrário, representariam a “estabilidade”, importante para a educação das crianças.

O tratamento aos casos de violência nos CIC de São PauloO Centro de Integração da Cidadania foi idealizado para oferecer justiça

e segurança à população residente nos bairros periféricos dos centros urbanos. Objetivando ser um espaço de administração de conflitos, busca intervir nos casos de violência. Seu funcionamento prevê a integração dos diversos órgãos responsáveis pela distribuição da justiça e a ação conjunta entre Estado e comunidade a fim de garantir a participação dos cidadãos na gestão da política pública.

O decreto de sua criação estabelece que seu objetivo é atuar na prevenção de conflitos interpessoais e de grupos e define ainda que serão prestados serviços de segurança pública nos postos. Além da normatização, o programa paulista recebeu investimentos federais da área de segurança pública, que contribuíram para fixar sua vocação na prevenção da violência.

Não obstante, os casos de ameaça, agressões, violências diversas, abandono material e intelectual de crianças são demandas freqüentes no cotidiano do CIC.

Constatou-se não haver, em 2005, uma rotina preparada para a identificação e o acolhimento das situações de violência iminente. Se uma vítima de situação violenta procurasse um posto do CIC, seu encaminhamento dependeria do conteúdo introduzido em curtas frases que trocasse na recepção com o atendente, o qual decodificava uma questão jurídica a ser encaminhada a um dos serviços disponíveis no posto. Assim, casos semelhantes puderam ser canalizados para o atendimento policial, para a promotoria, para a orientação jurídica e até para o Juizado Especial Cível, dependendo de como o usuário iniciava a apresentação de seu problema.

Algumas situações podem ilustrar os mecanismos dessa triagem. Se uma mulher estivesse envolvida num conflito com o marido e iniciasse seu relato ao atendente afirmando o desejo de se divorciar, o caso não poderia ser atendido no CIC, ou haveria apenas uma orientação jurídica, sem que o processo judicial pudesse ser iniciado por ali. Se a pessoa iniciasse seu relato ao atendente, identificando o ex-cônjuge como oponente, e fosse mencionada a disputa sobre o pagamento da pensão alimentícia para os filhos, o caso poderia ir à promotoria, para que fosse

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restabelecido o pagamento. Nesses casos, o tratamento se concentrava em torno da obrigação legal de pagar a pensão e dos valores adequados.

Contudo, se a situação de violência fosse declarada desde o início pela pessoa que procurasse o CIC, o mais comum era que ela fosse encaminhada para o atendimento policial. Também foi muito freqüente que a própria pessoa identificasse a polícia como canal, pedindo para falar com o delegado.

A instituição policial é, entre as agências de controle clássicas disponíveis no CIC, a mais conhecida da população dos bairros periféricos. É com freqüência a instância mais acionada para a proteção de direitos violados e o acesso à justiça. O número 190, da Polícia Militar, foi muitas vezes citado entre os usuários como o primeiro recurso a ser buscado e, por vezes, é através do atendimento da viatura que se toma conhecimento do CIC.

Os policiais civis que atuavam nos CIC eram majoritariamente homens que, antes de estarem ali, serviam em distritos policiais comuns e, via de regra, não receberam treinamento especializado para lidar com as questões peculiares da violência doméstica – o tipo mais freqüente levado aos CIC. Daí decorreu que o encaminhamento dado aos casos foi menos especializado que aquele que se poderia talvez encontrar numa Delegacia de Defesa de Mulher. Contudo, pelas comparações possíveis com estudos que relatam o atendimento de casos de violência doméstica realizados em Distritos Policiais, o atendimento policial aos casos de violência realizados nos CIC não se diferenciou daquele realizado numa delegacia comum.

A grande diferença do atendimento policial no CIC em relação ao recebido no Distrito Policial foi que, neste último, o caso de violência doméstica ou interpessoal concorre com o atendimento de outros casos mais valorizados pela cultura organizacional da polícia, como o crime patrimonial e o tráfico de drogas. Ao passo que, no CIC, esses casos constituíram a principal demanda.

Isso não significa que o acesso ao agente policial fosse facilitado no CIC. Geralmente, os usuários, ao chegarem, eram encaminhados à recepção onde era feita a triagem; eram atendidos num balcão ou mesa, vendo-se obrigados a expor publicamente “seu caso”. Porém, quando se trata de um conflito com potencial de violência, esse procedimento pode inibir a vítima, se estiver fragilizada.

O atendimento policial adquire ainda uma importante peculiaridade no CIC, em razão de ser interditado o uso dos instrumentos típicos do trabalho de polícia judiciária, como o registro de boletins de ocorrência, a instauração de inquérito policial, as atividades de investigação criminal. Como a atividade típica de polícia é interditada, os policiais, preparados para os procedimentos da investigação criminal, viram-se numa situação de trabalho atípica, na qual não podiam utilizar as técnicas que lhe são as mais familiares e evidentes. Contudo,

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os casos eram complexos e se sucediam no seu cotidiano, e era preciso de alguma forma “resolvê-los”. Era dessa resolução que se esperava um efeito preventivo de violência. Entretanto, as observações colhidas no levantamento de campo indicaram a fragilidade dessa expectativa.

A consciência da precariedade do atendimento e da ineficácia da sua atuação nesses casos foi externada pelos policiais, os quais reiteradamente queixaram-se de não terem recebido preparo para desempenhar as funções que lhe são atribuídas, de não terem “estrutura” de trabalho e não serem convidados a participar das capacitações promovidas pela Secretaria de Justiça ou por sua própria corporação. Em sua visão, a iniciativa para a reorganização de seu processo de trabalho deve vir de seus superiores ou dos gestores do CIC. Na visão dos usuários, os policiais deveriam se esforçar mais para oferecer um serviço melhor e mais eficiente na proteção dos direitos e da segurança das pessoas.

De ambos os lados, seja dos policiais, seja da população atendida, a avaliação sobre o serviço prestado pelo CIC nos casos de violência doméstica foi negativa. A avaliação empreendida por essa pesquisa é a de haver imprecisão e incerteza quanto ao tipo de violência que o CIC se propõe a prevenir e quais os recursos necessários para que essa prevenção seja eficaz.

O discurso da prevenção da violência, ao ser destituído de um conteúdo técnico, torna-se apenas retórico, não se materializando em investimentos humanos e em programas de atendimento. A retórica de que a simples presença do Estado tem um potencial de prevenir a violência encontra seu limite nos dramáticos casos de violência que batem às portas do CIC. Este, tal qual acontece com outros órgãos públicos, converte-se apenas em mais um espaço de negação da efetivação de direitos e promoção de cidadania, mais um serviço público reprodutor de violência.

4. CONSIDERAÇÕES FINAISA pesquisa revelou diferentes apropriações dos Centros Integrados de

Cidadania como política pública, ao deixar evidentes as disputas sobre formas e conteúdos atribuídos aos diversos programas pesquisados. Nas três experiências é constatada ampliação da oferta de serviços de justiça e acesso aos direitos, por meios não judiciais, por uma atuação não ortodoxa dos serviços judiciais, ou ainda, como no caso do Acre, por uma atuação judicial clássica.

Essa ampliação, contudo, não corresponde a uma reforma das instituições judiciais, como se pretendia nos anos 90, quando o projeto começou a ser formulado, apenas a um aumento no número de postos de oferta dos serviços, onde se pratica tratamento semelhante àquele que se encontraria em outros postos de atendimento das instituições envolvidas no programa. A dimensão

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de inovação, entretanto, é bastante presente nos discursos dos funcionários e gestores envolvidos. A proposta de construir um programa público em parceria com a sociedade civil, por meio de gestão participativa – implantada apenas na experiência pioneira de São Paulo – também apresentou muitos problemas de realização na prática, em vista de uma burocratização da gestão por parte do Estado e de um desestímulo à participação.

No que tange aos objetivos de prevenção da violência, contatou-se não haver atuações específicas e qualificadas para cumpri-los. Há uma retórica generalizada que apresenta a oferta de serviços estatais, sejam eles quais forem, como suficiente para produzir efeitos de redução dos índices de violência, mesmo que esses serviços restrinjam-se à regularização de documentos e à administração de conflitos cíveis. Não há, por parte dos programas, qualquer avaliação sobre esses objetivos inespecíficos, nem qualquer forma de avaliação sistemática de seus resultados nessa área.

Finalizando, como resultado do trabalho analítico empreendido no contexto da pesquisa realizada, algumas sugestões foram feitas para o aperfeiçoamento da política de implantação dos Centros Integrados de Cidadania, seja por parte do financiador federal, seja pelos órgãos responsáveis pela sua gestão nos estados e municípios.

As propostas feitas à Senasp podem ser assim sintetizadas: definir mais claramente as diretrizes de implantação, estabelecendo objetivos específicos e conjunto mínimo de serviços imprescindíveis; divulgar suas diretrizes junto aos entes federados financiados por ela, cobrando seu cumprimento por meio de fiscalização e avaliação de resultados; condicionar o financiamento de projetos à execução de uma agenda no estabelecimento das parcerias entre os órgãos públicos necessários à oferta dos serviços imprescindíveis, contemplando desde o debate de objetivos comuns, a definição da oferta de serviços, o planejamento dos espaços destinados a cada parceiro no projeto arquitetônico, a ocupação do edifício, até o início do atendimento ao público; a criação de mecanismos de incentivo à implantação de CIC em outros estados, passando a atuar de forma indutora dessa política, mesmo no contexto de aprovação de outros financiamentos, como ocorre com o Sistema Único de Segurança Pública/ SUSP.

Aos executores de programas propõe-se o investimento na definição de diretrizes claras e a definição de um conjunto mínimo de serviços imprescindíveis; o investimento em capacitação dos funcionários e técnicos quanto aos objetivos e princípios delineados; a criação de mecanismos de articulação com as instituições parceiras a fim de assegurar a sua adesão aos objetivos do programa e a oferta permanente dos serviços, desde a elaboração do projeto, a definição de metas, o projeto arquitetônico até a alocação de funcionários e recursos; criar instrumentos

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e práticas de avaliação permanente dos resultados a fim de facilitar a prestação de contas, o aperfeiçoamento dos serviços, a transparência frente aos parceiros e à sociedade civil, contribuindo para a difusão da política; criar mecanismos de participação popular na gestão e na fiscalização, como forma de garantir a continuidade do programa face às mudanças na administração pública e a adequação dos serviços às necessidades locais; investir na capacitação de agentes da sociedade civil para a administração alternativa de conflitos e a difusão de conhecimento sobre os direitos de cidadania e o acesso à justiça; investir na produção e disseminação de conhecimentos específicos sobre os fenômenos violentos e sobre ações de prevenção adequadas à realidade local.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Frederico de. Breves considerações sobre a integração de serviços de justiça. VI Seminário de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos – Violência, Vítima e Direitos Humanos, Belo Horizonte, Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos, 2006.

HADDAD, Eneida G. de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline; ALMEIDA, Frederico de; PAULA, Liana de. Centros Integrados de Cidadania: desenho e implantação da política pública (2003-2005). São Paulo: IBCCrim, 2006.

SINHORETTO, Jacqueline. Ir aonde o povo está. Etnografia de uma reforma da justiça. Tese de doutorado em Sociologia. Universidade de São Paulo, 2007a. Disponível em www.teses.usp.br

SINHORETTO, Jacqueline. Reforma da justiça (estudo de caso), Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 2, novembro 2007b, pp. 157-177.

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Etnografia das políticas e programas de enfrentamento da violência sexual praticada contra crianças e adolescentes em Fortaleza

Glaucíria Mota Brasil1

Emanuel Bruno Lopes de Sousa2

1.INTRODUÇÃOEm 2004, de acordo com a Matriz Intersetorial de Enfrentamento

da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (fruto da parceria realizada entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos - SEDH, o UNICEF, a Comissão Intersetorial de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e a Universidade de Brasília – UnB), foram identificados 937 municípios e localidades brasileiras com ocorrências de práticas de exploração sexual comercial contra a população infanto-juvenil. Dentre estes, 298 (31,8%) estão no Nordeste, ficando o Ceará na 3ª posição do ranking da Região, com um total de 41 municípios. Frente a essa realidade, faz-se mister a realização de estudos e pesquisas que enfoquem a temática em suas várias dimensões para que se busquem iniciativas de enfrentamento.

Outros dados importantes nesse cenário são o cruzamento do fenômeno

da violência sexual de crianças e adolescentes com o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes. A pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial (2001 a 2002) – PESTRAF ao traçar o perfil das vitimas adolescentes e crianças informa que estas geralmente já sofreram algum tipo de violência: Intrafamiliar (abuso sexual, estupro, sedução, atentado violento ao pudor, abandono, negligência, maus tratos, dentre outros) e Extrafamiliar (os mesmos e outros tipos de violência em escolas, abrigos, em redes de exploração sexual e em outros tipos de relações).

Nesse sentido, o presente artigo é uma contribuição da pesquisa

aplicada na área das ciências sociais ao abordar a problemática numa dada situação e local, integrando, portanto, uma das iniciativas referidas acima e, orientado pelas diretrizes estabelecidas em congressos nacionais e internacionais, pactuadas e regulamentadas no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes. De acordo com o Plano, um dos eixos estratégicos – análise da situação – prevê a realização de diagnóstico da situação de enfrentamento. Esse diagnóstico inclui uma análise qualitativa e explicativa da dinâmica dos registros de notificações de crimes relacionados à exploração sexual comercial de crianças

1 Doutora em Políticas Sociais pela PUC-SP, professora da Universidade Estadual do Ceará-UECE, pesquisadora do CNPq e coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética-LabVida-UECE. @ [email protected]

2 Doutorando em Políticas Sociais da UFF, pesquisador associado do LabVida-UECE. @ [email protected]

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e adolescentes no País. Por outro lado, pesquisas realizadas sobre a temática vêm denunciando a dificuldade de avaliações quantitativas do fenômeno.

Isto se dá por vários motivos, dentre os quais, as diferentes dinâmicas e padrões estatísticos utilizados para registrar e tipificar as notificações de crimes praticados contra crianças e adolescentes. Diante da problemática em tela, e, no sentido de contribuir com as ações de enfrentamento do fenômeno no Ceará ,o estudo em questão se propõe a realizar uma etnografia das ações e políticas de enfrentamento da comercialização da exploração sexual de crianças e adolescentes na cidade de Fortaleza.

O texto é um recorte de um estudo mais amplo realizado no período de maio a outubro de 2005 com a execução do projeto de pesquisa aplicada: “Estudo e análise comparativa das dinâmicas, padrões estatísticos espaciais e fatores explicativos da incidência de crimes relacionados à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, entre a cidade de Fortaleza e sua Região Metropolitana, financiado pelo Ministério da Justiça. Foram nomeados como sujeitos da pesquisa os agentes ligados ao campo institucional das denominadas “portas de entrada” de casos de violência sexual: os Conselhos Tutelares; a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente, os Projetos Sentinela e/ou S.O.S Criança implantados e em funcionamento (esses dois últimos projetos acabaram sendo desativados ou incorporados por outras ações).

A pesquisa realizada junto às entidades e aos programas que compõem a rede de enfrentamento em Fortaleza, delimitou a coleta dos dados estatísticos ao ano de 2004 e ao primeiro semestre de 2005. Considerando que a pesquisa de campo foi iniciada em junho de 2005, desta maneira a pesquisa buscou fazer uma análise dentro desse espaço de tempo, das dinâmicas e dos padrões estatísticos e espaciais dos dados sistematizados por essas entidades e programas em decorrência dos serviços prestados ao público alvo destas. Foram pesquisadas 10 instituições em Fortaleza (Projeto Sentinela/ Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará-SEDAS; Projeto Sentinela (Prefeitura); SOS – Criança / Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará-SEDAS; Conselhos Tutelares I, II, III, IV, V e VI; Delegacia Especializada de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes DCECA).

2. VIOLÊNCIA SEXUAL: CONCEITOS, ASPECTOS E DINÂMICASA violência sexual cometida contra crianças e adolescentes é um

fenômeno social que não se restringe a uma determinada classe social ou área geográfica específica. Pode se manifestar de diversas formas, sendo as de maior ocorrência, o abuso sexual dentro dos limites do ambiente familiar, na maioria das vezes, com características incestuosas e a exploração sexual para fins comerciais, como o turismo sexual, a pornografia e o tráfico para fins sexuais. Para o

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entendimento e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, é necessário observar que o abuso sexual e a exploração sexual comercial são formas diferentes de um mesmo fenômeno que viola direitos fundamentais da pessoa humana, mas que, no entanto, requerem abordagens distintas.

O abuso sexual é uma das expressões da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes que se incorpora às relações inter-pessoais (intra-familiar e extrafamiliar) e deve ser entendido como uma “situação de ultrapassagem (além, excessiva) de limites: de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusador pode consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e tabu” (Faleiros, 2000,p.15). Azevedo e Guerra (1988, p.42) definem abuso sexual “como todo ato ou jogo sexual relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outrem”. Segundo as autoras, o abuso sexual inclui atos classificados em três grupos. Não envolvendo contato físico: abuso verbal, telefonemas obscenos, vídeos/filmes obscenos, voyeurismo; envolvendo contato físico: atos físico-genitais, o coito (ou tentativa de), a manipulação de genitais, o contato oral-genital e anal; envolvendo contato físico com o uso da força: estupro, brutalização e assassinato.

O conceito comporta, assim, dois tipos de abusos específicos, intra e extrafamiliar. O abuso sexual intra-familiar ocorre dentro do seio familiar e é praticado por pais e/ou familiares (biológicos ou por afinidade), tios, irmãos, avós, primos, tutores. Prática caracterizada como incestuosa, ou seja, praticada entre pessoas que a lei ou os costumes proíbem. O incesto é entendido, segundo Azevedo e Guerra (1988:8) como “toda atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18 anos e um adulto que tenha para com ela seja uma relação de consangüinidade, de afinidade ou de mera responsabilidade”.

O abuso sexual realiza-se predominantemente em ambiente doméstico, produzindo-se nas relações mais próximas das crianças e dos adolescentes. Na maioria das situações, o vitimizador é do sexo masculino – o pai, irmão mais velho, tio e avô – e os (as) vitimizados3 (as) do sexo feminino, com idade entre 7 e 13 anos, faixa etária que coincide com a fase de transição da infância para adolescência, envolvendo grandes mudanças no corpo e na sexualidade feminina3. O abuso sexual doméstico contra crianças e adolescentes, devido a sua natureza incestuosa, constitui-se um tabu. Nesta perspectiva, o tabu do incesto apresenta-se como necessário à preservação da imagem da família como um lugar ausente

3 Informações coletadas a partir da pesquisa “O perfil das crianças e adolescentes vitimizados por abuso sexual domés-tico em Fortaleza nos anos 2000-2001”, financiada pela Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa- FUNCAP, realizada por Ariadna Queltre Nobre Alves e Maria Loureto Barroso sob a orientação e coordenação das professoras Glaucíria Mota Brasil e Leila Maria Passos.

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de conflitos, símbolo de ordem e equilíbrio.

Existe uma prevalência de casos de abuso sexual cometidos no seio desse modelo familiar, historicamente vislumbrada como um lugar ideal e completo para o desenvolvimento da criança e, como unidade básica no processo socializador e de proteção de seus membros, sobretudo, a família nuclear burguesa4.

A concepção de “lar doce lar”, o mito da “Sagrada Família”, atravessa todo o âmbito social, contrariando as estatísticas existentes, onde a família aparece como propulsora de violência. A família é a instituição mais difícil para identificar a violência sexual cometida contra a população infanto-juvenil, porque ela se reveste da tradicional característica do sigilo, onde os envolvidos assumem um “pacto de silêncio”. A ocultação e o silêncio que impera nas famílias são estratégias para manter um clima de violência doméstica, fortalecido pelas práticas coercitivas, pressões psicológicas, físicas, morais e religiosas, impedindo que se tenha uma noção precisa acerca do fenômeno. Neste sentido, enfatiza Faleiros:

O problema da violência sexual doméstica está envolto em relações complexas de família, pois os abusadores são parentes ou próximos das vítimas, vinculam sua ação, ao mesmo tempo, à sedução e à ameaça. A violência se manifesta pelo envolvimento dos atores na relação consangüínea, para proteção da “honra” do abusador e da subsistência da família. A família, nesse caso, funciona como um clã, isto é, fechada e articulada (FALEIROS, 1998, p.8).

Cabe ressaltar que, nas famílias onde ocorre o abuso sexual, existe uma transgressão do “poder de proteção” dos pais sobre os filhos, evidenciando a desigualdade de geração. Essa desigualdade se realiza numa relação assimétrica de poder, onde crianças e adolescentes são aprisionados e subordinados à vontade do adulto, restando-lhes a submissão e a renúncia aos próprios desejos. O abuso sexual doméstico envolvendo crianças e adolescentes ocorre, conforme afirmam Azevedo e Guerra (1988), num tipo de família, intitulada incestogênica. Família essa, onde o afeto entre os membros é dado de forma erotizada, cuja organização é fundada no segredo e onde impera o complô do silêncio, no qual crianças e adolescentes se calam enquanto os demais membros da família se negam a enxergar a realidade.

O complô do silêncio é um dos fatores que mais favorecem a continuidade e a reprodução da violência dentro do ambiente familiar, em especial, nos casos de abuso sexual. Isso porque os (as) vitimizados (as) costumam receber as mais diversas ameaças (de morte sobre si ou outros familiares), especialmente, por parte dos abusadores, como forma de intimidação, para que não revelem o sucedido. 4 A Família Nuclear Burguesa foi consolidada nos meados do século XVIII, composta por pai, mãe e filhos, se intitulava

como modelo único e ideal a ser seguido. A esfera da vida pessoal passou a ser divorciada dos modos de produção, estabelecendo uma visível separação do privado e do público. A esfera pública passou a ser domínio exclusivo dos homens, provedor material da casa e inspirador de respeito perante a sociedade. A mulher ficou confinada à esfera privada do ambiente doméstico, cabendo-lhe a educação dos filhos e a organização da casa. Cria-se a imagem da família como um espaço de afeição e segurança, local ausente de conflitos, fonte de intimidade, proteção e forma-ção de cidadãos de bem ( Curso de Capacitação Técnica no Enfrentamento da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes do CECOVI).

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Além das ameaças, o abusador faz com que as crianças e/ ou adolescentes sintam-se culpados e envergonhados, como se tivessem provocado o abuso, dando-lhes a impressão de que serão estigmatizados à medida que revelem os fatos.

Devido, sobretudo, à culpa, à vergonha e ao medo da revelação, a ocorrência desse tipo de crime tende a ser ocultada ou somente denunciada quando o problema se tornou insustentável. Isso quer dizer que crianças e adolescentes podem passar anos sofrendo, sem que os serviços de proteção, defesa e atendimento sejam alertados.

O abuso sexual extra-familiar é a violência praticada por pessoas que não tenham laços familiares com a criança e o adolescente vitimizados. Pode ser praticado pelos conhecidos/amigos, vizinhos, professores, religiosos – ou por pessoas desconhecidas do vitimizado.

A exploração sexual infanto-juvenil é uma das mais graves modalidades de violência sexual contra crianças e adolescentes. Ela pode ocorrer com ou sem violência física, mas a violência psicológica estará sempre presente. Seu conceito é recente, segundo a incipiente literatura sobre a temática. Para Maria Lúcia Leal (2001, p.7),

a exploração sexual comercial é uma violência que se realiza nas relações de produção e mercado, através da venda dos serviços sexuais de crianças e adolescentes pelas redes de comercialização do sexo, pelos pais ou similares, ou pela via do trabalho autônomo.

Ainda na metade da década de 90, a existência de crianças e adolescentes no mercado do sexo era designada como prostituição infanto-juvenil. Pesquisas e estudos realizados sobre a problemática em âmbito mundial mostram uma realidade marcada por uma variedade de fatores e formas, o que exige uma análise não mais focada somente na prostituição infanto-juvenil5, mas nas várias formas de exploração sexual comercial, que vão da própria condição de prostituição infanto-juvenil às formas mais recentes de produção industrial pornográfica (principalmente via internet), sexo-turismo e o tráfico com fins de trabalho sexual escravo.

O turismo sexual infanto-juvenil é considerado o mercado mais amplo da espécie exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, porque essa população é atração turística, portanto, bem de consumo. A pornografia sexual infanto-juvenil e na internet acontece quando crianças e adolescentes são induzidas e utilizadas para produção de material pornográfico (fotografias, revistas, filmes, vídeos, etc.) mostram crianças e adolescentes tendo relações sexuais ou expondo os genitais. Na internet, ela ocorre através da troca e venda de materiais

5 Barbosa (2003, p.217-19) nos informa que especialistas que vêm discutindo a temática, observaram e chegaram a con-clusão de que o termo prostituição deve ser empregado apenas à prostituição adulta, pois esta tem a liberdade sexual, portanto, disponibilidade sobre seu corpo. O adulto já alcançou maturidade. O termo prostituição não é, portanto, adequado à criança e ao adolescente, que, por Lei são considerados pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, ou seja, são pessoas cuja capacidade de decisão ainda está em formação.

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pornográficos através de sites, salas de bate papo e e-mail. O tráfico de crianças e adolescentes é uma espécie de crime organizado de caráter transnacional que ocorre dentro ou através das fronteiras dos países, onde crianças e adolescentes são levados para outras cidades, estados ou países, a fim de servirem a propósitos sexuais. O tráfico de pessoas é considerado uma forma de escravidão, porque há venda de vítima, submetida a trabalhos forçados, à servidão, às práticas idênticas de escravidão. Conforme o Guia do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil da ABRAPIA6, no Brasil, o tráfico acontece com maior freqüência, das pequenas e médias cidades do interior para os grandes centros urbanos, principalmente nas Regiões Sudeste e Nordeste e ainda, para o exterior. Neste processo, envolvem-se desde caminhoneiros que transportam crianças e adolescentes e os donos de boate que os acolhe até os aliciadores que os induzem a manter relações sexuais e, por vezes, os próprios pais que, sobrevivendo em situação de extrema pobreza, os entregam em troca de dinheiro ou bens materiais.Muitos deles são os próprios agenciadores dos(as) filhos(as) na comercialização sexual.

3. POLÍTICAS E PROGRAMAS DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL EM FORTALEZA: ETNOGRAFIA DAS “PORTAS DE ENTRADA” DA DENÚNCIA

Fortaleza tem assumido relevância e destaque no cenário nacional e internacional pela suas belezas naturais, praias e outros atrativos. No entanto, a cidade tem o desafio de enfrentar uma série de problemas sociais, dentre os quais se destacam o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes. Vários equipamentos sociais foram criados para desenvolver ações de enfretamento a essa modalidade de violência.

O município de Fortaleza está dividido administrativamente em seis grandes regiões coordenadas pelas Secretarias Executivas Regionais (SERs)( a caracterização e descrição das Regionais tem como fonte os dados do ANUÁRIO DO CEARÁ, 2005). O acesso e visita a esses espaços foram indispensáveis e necessários para realização da pesquisa que subsidia o presente artigo. Foram, portanto, interlocutores fundamentais para inserção dos pesquisadores em campo e nas atividades de coleta de dados primários e secundários. Antes de conhecermos as dinâmicas de funcionamento das “portas de entrada” das denúncias contra a violência sexual praticada contra adolescentes e crianças na cidade de Fortaleza, faremos uma etnografia descritiva dos espaços geográficos em que estão inseridos esses dispositivos com o objetivo explícito de melhor compreender o contexto de suas atuações, portanto suas potencialidades e limites.

A Secretaria Executiva Regional I é composta por 15 bairros e abriga 340.134 mil habitantes. Existem na região áreas de risco, ocupações e problemas

6 ABRAPIA - Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência é uma organização não-gover-namental, sem fins lucrativos, de defesa e proteção dos direitos das crianças e adolescentes.

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de infraestrutura que se aglomeram pela costa litorânea e no interior dessa Regional. Na área mais densamente povoada da cidade, as estimativas oficiais são de que a Regional I precise de 6.060 novas moradias e de que outros 9.481 domicílios necessitem de melhorias estruturais como saneamento básico e rede de esgotos. A falta de uma política habitacional adequada, a ausência de saneamento básico em vários locais e o lixo acumulado em calçadas e terrenos baldios são apenas alguns dos problemas presentes nesta área. Existem 38 favelas e 19 áreas de risco nos bairros da Regional I, sendo que a maioria apresenta problemas de alagamento e desmoronamento. Segundo o estudo Política Habitacional de Interesse Social do Município de Fortaleza (PHIS), elaborado pelo Centro de Treinamento e Desenvolvimento (CETREDE) em junho de 2003, a SER I caracteriza-se pela alta densidade demográfica (142 hab/km2) e elevado número de assentamentos com situações inadequadas de moradia. Outra característica da SER I é o grande número de pessoas que sobrevivem com baixos salários. No ano 2000, a renda média mensal dos chefes de família da Regional I era de 3,49 SM, bem inferior à média do município que era de 5,61 SM.

A Secretaria Executiva Regional II com uma população de 311.842 habitantes ocupa a região central e a região leste da cidade. É composta por 20 bairros. A expansão habitacional da região teve início no começo do século XX, momento histórico no qual um grande número de famílias ricas que moravam no centro da cidade, mais precisamente na Av. Francisco Sá e proximidades, fugiram da expansão das indústrias na área e migraram para o lado leste da cidade. Entre os bairros que integram a SER II, figura o que mais arrecada impostos dentro do Município de Fortaleza. Tais condições são favoráveis à concentração de shopping centers, condomínios residenciais e edifícios ocupados por comércio e serviços. Com relação aos índices de saúde, a região apresenta o maior número de unidades de saúde do SUS.

Essa área se configura como líder em indicadores sociais de educação e economia, abrangendo o principal foco turístico da cidade e o metro quadrado mais caro de Fortaleza, a SER II apresenta também contradições econômicas e sociais. Entre o Bairro Meireles (o melhor IDH-B da capital) e a comunidade do Cais do Porto, por exemplo, a variação do IDHM-B é de 137,31%. Entre outras características, a região apresenta também um trânsito caótico, a multiplicação de áreas de risco, o adensamento populacional e uma agravante verticalização urbana.

A Secretaria Executiva Regional III é composta por 16 bairros. Abriga uma população de 340.516 habitantes. Na SER III existem 58 favelas e 15 áreas de risco, onde vivem 1.862 famílias.O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal por Bairro - DHM-B7 é de 0,495, inferior à média de Fortaleza que é de 0,508. A renda média mensal dos chefes de família que residem na regional era, em 2000,

7 Para definir o Índice de Desenvolvimento Urbano Municipal por Bairro (IDHM-B) são avaliados os seguintes critérios: taxa de analfabetismo, número médio de anos de estudos e o rendimento médio do chefe de família. No quesito analfabetismo, contabiliza-se moradores acima de 15 anos de idade. Quanto mais próximo de 1, melhor a condição de vida do local.

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de 4,10 S/M, número inferior à média da capital, que ficou em 5,61 S/M. No espaço da Regional III estão instaladas 26 unidades do Sistema Único de Saúde, sendo 14 unidades básicas, 01 unidade de atenção especializada, 01 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), um Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) e uma unidade Hospitalar. Com relação à educação, existem 61 unidades de educação e 31.794 alunos matriculados, em 2004. Em 2000, 13,91% da população (42.977 pessoas) com cinco anos ou mais era analfabeta. Dos 67,64 hectares do espaço da regional destinados à construção de praças, áreas livres, verdes e parques municipais, 40,05 hectares encontravam-se invadidos.

Outras características do espaço SER III são os graves problemas habitacionais, de saneamento básico e criminalidade. O balanço da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social demonstra a expansão da criminalidade. Um estudo comparativo realizado entre os primeiros semestres de 2003 e o de 2004, aponta que os roubos à pessoa passaram de 777 para 998 e, em estabelecimentos comerciais passaram 202 para 284 no período. Os homicídios também tiveram um acréscimo de 30 para 33 (dos 229 homicídios ocorridos em Fortaleza).

A Secretaria Executiva Regional IV é formada por 19 bairros, a Regional IV apresenta como particularidade o fato de ser favorecida por equipamentos institucionais. No Benfica, por exemplo, encontram-se alguns equipamentos da Universidade Federal do Ceará – UFC (Centro de Humanidades, as Casas da Cultura, a Reitoria, a Casa Amarela Eusélio de Oliveira e a Rádio FM Universitária), o Centro Federal de Educação Tecnológica - CEFET, o Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará - UECE, o Estádio Presidente Vargas - PV, e o 23º Batalhão de Caçadores. No Bairro Itaperi localiza-se o campus universitário da UECE, no bairro Aeroporto, o antigo aeroporto, as sedes da Companhia de Água e Esgoto do Ceará - CAGECE, da Prefeitura de Fortaleza e na Serrinha, o novo aeroporto Internacional Pinto Martins.

Dos sete terminais de ônibus de Fortaleza, dois estão na Regional IV: Parangaba e Lagoa. O terminal da Parangaba é o que possui mais linhas de ônibus na capital (39) e o segundo em número de passageiros/dia, mais de 200 mil, número inferior apenas em relação ao número de passageiros que utilizam o terminal do Papicu. O terminal de ônibus da Lagoa tem 19 linhas de ônibus e um fluxo de cerca de 90 mil passageiros/dia.

A região representa um dos maiores pólos de compra e venda da capital, região vocacionada ao comércio pela grande diversidade e concentração de produtos comercializados. É uma das Regionais mais expressivas quanto ao uso e ocupação do solo com base institucional. Contudo, esses equipamentos institucionais não são bem aproveitados, porque não proporcionam o que se chama de intervenção qualificada, ou seja, uma intervenção que integre os diversos setores que estão presentes na Regional IV. Essa configuração geográfica

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espacial talvez seja o motivo pelo qual a mesma possui menos invasões de terra. Em 3.500 hectares, apenas 12 são invadidos. Porém, essas particularidades não têm contribuído para diminuir os problemas sociais da Regional, que possui cerca de 2.500 famílias vivendo de modo subumano em 15 áreas de risco, com déficit habitacional de 5.462 moradia e mais de 4.100 necessitando de melhorias.

Possui, ainda, mais da metade de seus domicílios, cerca de 37.425, sem ligação com a rede pública de esgoto. A maioria da população, ainda usa fossa séptica em condições rudimentares. São valas que poluem rios e lagoas, e, em muitos desses bairros, os esgotos estão a céu aberto. As cinco lagoas existentes na área da Regional estão poluídas ou em situações críticas.

A Regional IV depois da Regional II, é considerada uma região com melhores indicadores sociais, embora conviva com as contradições de uma cidade apartada, uma realidade enganosa ao ser diluída na totalidade da área, os problemas parecem não existir.

A Secretaria Regional V é composta por 17 bairros e grandes conjuntos habitacionais Abriga, segundo dados do IBGE (2000), uma população de 452.875 habitantes distribuída numa área geográfica de 6.346,70 hectares e apresenta uma densidade demográfica de 71,4 hab/hec. A SER V responde por uma área onde os chefes de família possuem a menor renda mensal da capital. Apenas 2,78 salários mínimos, quando a média de Fortaleza é de 5,61. Outra realidade que revela um sério problema da região é que cerca de 74,5% dos bairros são desprovidos de esgotamento sanitário.

Além disso, das 112 áreas de risco de Fortaleza, 18 estão situadas na SER V, soma-se a esta realidade mais 40 favelas. No total são 3.700 famílias residindo nesta área. A Regional apresenta ainda, o pior índice de Desenvolvimento Urbano por Bairro (IDHM-B). Apenas 0,444, contra 0,508 de Fortaleza. Dos cinco bairros com pior índice, três pertencem a essa Regional. Quanto às unidades de saúde, a SER V é a que possui o menor número de postos. Apenas 25 para atender à demanda populacional dos 17 bairros. Com relação ao abastecimento de água 91,32% dos domicílios particulares são atendidos pela rede geral de água. Com relação à Educação, dados do IBGE (2000) informam que 82,17% da população da Regional é alfabetizada. A População analfabeta compreende 17,03%.

A Secretaria Executiva Regional VI é composta por 28 bairros que abrigam uma população de 436.204 habitantes. O espaço urbano desta grande região que ocupa 40,26% do território de Fortaleza possui o maior crescimento econômico da cidade, apresenta, contudo, um quadro de disparidades e desigualdades sociais. Há três décadas atrás, uma boa parte dessa área de Fortaleza era considerada “semi-rural”, hoje é vista como um dos filões do setor imobiliário, processo de transformação que pode ser facilmente percebido com o aumento do número de residências de classe média e alta em alguns bairros da região.

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Se por um lado, a instalação de grandes equipamentos, como a Universidade de Fortaleza-UNIFOR, Centro de Convenções, Tribunal de Justiça, Estádio, colégios, bares, centros comerciais, shopping, dentre outros, contribuíram para a expansão e valorização dessa parte da cidade, tornando-a em parte, reduto da classe média e alta, contraditoriamente, a região também apresenta áreas com extrema pobreza.

A região abrange os bairros mais pobres da capital e a maior quantidade de áreas de risco de Fortaleza, 26% do total, onde habitam 17.078 famílias. Possui ainda o segundo mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano por Bairro (IDHM-B), 0,462. Na SER VI, está situado o maior número de bairros com baixo IDHM-B, num total de 15, entre todos os bairros de Fortaleza.

No contexto operacional, cada Regional possui um Conselho Tutelar (CT), com o objetivo de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes residentes nos bairros que compõem as Secretarias. O estudo aborda a situação de funcionamento dos seis CTs, a realidade vivenciada por cada unidade, especificidades, problemas locais, pontos comuns e divergentes, considerando o fenômeno da violência sexual de crianças e adolescentes, uma problemática com múltiplas feições e que tem necessitado de ações e intervenções de caráter multisetorial, uma vez que o enfrentamento do fenômeno em tela não pode ser tratado de modo compartimentalizado, dissociado das demais políticas públicas.

3.1 OS CONSELHOS TUTELARES: REGISTROS/NOTIFICAÇÕES, ENCAMI-NHAMENTOS, ASPECTOS E CONDIÇÕES DE TRABALHO

O Conselho Tutelar I, localizado na área da SER I, possui um espaço físico adequado e tem boa estrutura física, sendo composto de uma sala de espera, uma recepção, uma cozinha, dois banheiros, uma garagem, uma sala de arquivos e seis salas para o atendimento. No que se refere à organização do material de trabalho foi observado que os prontuários estavam bastante desorganizados. O livro para registros das denúncias não era preenchido corretamente, faltando informações importantes para se conhecer o perfil sócioeconômico e familiar das crianças e adolescentes vitimizados e dos vitimizadores, bem como as tipificações das ocorrências apresentavam alguns equívocos conceituais.

Quanto ao Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA), os conselheiros tutelares entrevistados informaram que estava funcionando e que era alimentado regularmente, no entanto, ao serem perguntados se a estatística oficial repassada pela instituição estaria sendo gerada pelo referido sistema, disseram que não, uma vez que existia um único computador e nem sempre os conselheiros tinha tempo para alimentá-lo. Outra dificuldade apontada por um dos conselheiros em alimentar o SIPIA devia-se ao fato de que o computador disponibilizado não contar com o sistema ligado em rede. Ao ser analisado o Livro de Registro, verificou-se que foram catalogadas 14 denúncias em 2004 e em

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2005 (até o mês de junho), 04 registros. Desses casos, três foram encaminhados à DCECA, oito às redes de serviços, um ao IML e em seis não constam informações.

O Conselho Tutelar II se localiza na SER II. A inserção nesse espaço teve pequenos entraves, uma vez que os conselheiros impuseram a condição de só participarem da pesquisa com a presença de todos os membros do Conselho, o que não foi possível pela incompatibilidade de horários por parte dos conselheiros. Pelo mesmo motivo, também foi inviabilizado o acesso às informações referentes aos casos denunciados e notificados pela instituição, já que os processos estavam divididos entre os conselheiros, ficando os mesmos de posse dos dados. Ou seja, a instituição não era a detentora dos dados, uma vez que estes estavam divididos entre os conselheiros e sob suas guardas individuais. Essa realidade inviabilizou a coleta de dados.

O Conselho Tutelar III pertencente à SER III, foi implantado em julho de 2004, entretanto, começou a funcionar efetivamente em outubro do referido ano devido à falta de infra-estrutura da sede. Apesar das reformas providenciadas pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, entre os meses de julho e outubro de 2004, a qualidade do atendimento deste Conselho estava afetada pela precariedade de suas instalações. Apenas duas das cinco salas dos conselheiros tinham condições de funcionamento e não havia computadores no local. Os conselheiros reclamaram da falta de material de trabalho, até os prontuários utilizados nos atendimentos existem em número reduzido.

O SIPIA não foi implantado no Conselho Tutelar III e a não informatização da instituição dificulta a sistematização e o conhecimento ampliado de todas as violações de direitos notificadas. Especificamente sobre os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, não há nenhuma estatística elaborada pela entidade. Os instrumentais de notificação utilizados pelo Conselho são o Livro de “Notificações” e o Livro de “Processos”. No Livro de Notificações estavam os registros de todos os documentos entregues aos responsáveis pela violação de direitos da criança e do adolescente. Tais documentos são intitulados como “Notificação” e são instrumentos a partir dos quais os violadores são formalmente chamados a comparecer ao Conselho Tutelar para uma audiência.

No Livro de Processos constavam os casos de violação de direitos atendidos pelo Conselho. São registrados neste instrumental: o nome da criança ou do adolescente que sofreu a violação, sua idade e seu bairro de residência, o nome da pessoa ou instituição que o conduziu, a data do registro, o nome do violador, o(s) direito(s) violados(s), o encaminhamento realizado, o nome do Conselheiro responsável pelo atendimento e a medida que este aplicou – requisição de serviço a alguma instituição, notificação do violador etc.

Segundo informações coletadas junto aos conselheiros entrevistados, o Conselho Tutelar III tinha poucos casos de violência sexual notificados, um dos

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fatores responsáveis por isso poderia ser o seu pouco tempo de funcionamento. Conforme os dados disponibilizados, que se referem aos meses de janeiro a maio de 2005, foram recebidas cinco denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Quando perguntados sobre os outros serviços de notificação do município, os conselheiros citaram o Projeto Sentinela e a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente – DCECA.

Acerca dos encaminhamentos/procedimentos realizados após a notificação, afirmaram que os casos eram encaminhados à DCECA que encaminhava para atendimento médico e exame de corpo de delito. Em seguida era feito um encaminhamento ao Projeto Sentinela para ser realizado o atendimento social e psicológico. O acompanhamento familiar era realizado pelo próprio Conselho

Com relação às medidas de proteção e defesa oferecidas às vítimas e seus familiares no Município, os conselheiros afirmaram não saber. Foi ainda certa falta de cuidado com o registro e armazenamentos dos prontuários de notificação, alguns estavam guardados na sede do Conselho Tutelar III e outros eram levados para a casa dos Conselheiros. No Livro de Processos de 2005 não constavam informações sobre os encaminhamentos realizados, nem informações sobre a criança ou adolescente que sofreu a violação de direitos. Além disso, os espaços reservados à violação que foi denunciada geralmente não eram preenchidos e não existia padronização nos preenchimentos. Durante a pesquisa os conselheiros não sabiam onde se encontrava o Livro de Processos do ano de 2004.

O Conselho Tutelar IV está localizado na SER IV, sua estrutura não é tão precária quanto a do Conselho Tutelar da SER III, entretanto, a qualidade do atendimento é afetada principalmente pela não implantação do SIPIA e por não haver computadores suficientes. O Sistema deveria ter sido implantado até o mês de abril de 2005, essa foi a previsão dada pela Prefeitura Municipal.

O instrumental de notificação utilizado pelo Conselho era o Livro de Processos. No que diz respeito à tipificação das notificações, não havia um padrão estabelecido pelos cinco conselheiros que formavam o Conselho Tutelar IV. No Livro de Processos aparecem notificações tipificadas como violência sexual, assédio sexual, exploração sexual, abuso sexual, estupro, sedução, atentado violento ao pudor. A tipificação usada nos relatórios também segue esse estilo, um dado importante foi o fato dos entrevistados utilizarem bastante o termo “prostituição”.

Assim como nos demais Conselhos, a estatística elaborada não corresponde à realidade dos fatos devido à desorganização no preenchimento do Livro de Processos e à falta de cuidado com os registros da instituição. No Conselho Tutelar IV só existem estatísticas referentes ao período de julho de 2004 a março de 2005, ou seja, não havia registros da gestão anterior. O Livro de Processos de 2004 estava ainda mais incompleto do que o de 2005, pois nele constavam apenas as

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informações referentes ao período de julho a dezembro. Não há anotações sobre todos os encaminhamentos e nem sempre o perfil das crianças e adolescentes atendidos estava registrado.Foram notificados em 2004, foram registrados 07 casos, sendo 04 como abuso sexual, , 02 por prostituição infantil e aliciamento. Em 2005, 11 casos, 03 abuso sexual, 02 exploração sexual, 04 assédio sexual e 02 violência sexual.

Com relação às providências e aos encaminhamentos tomados pela instituição após a notificação das denúncias, foi informado pelos conselheiros que variava de acordo com cada caso. Em geral ara realizado o encaminhamento à DCECA e a outras instituições que possam oferecer acompanhamento psicológico, no entanto, o Projeto Sentinela não foi citado. As medidas de proteção e defesa às vítimas e aos seus familiares também variavam, podendo ser realizados encaminhamentos para o Programa de Família Substituta, Abrigos e para o Projeto Escola que Protege.

O Conselho Tutelar V localiza-se na SER V, criado em 2000, sendo o segundo Conselho a ser instalado no município de Fortaleza. Cinco conselheiros compõem o colegiado e a atual gestão iniciou-se em outubro de 2002. O Conselho Tutelar V funciona dentro da Unidade Profissional de Atendimento ao Menor – UPAM Barros Pinho, e tem uma estrutura física inadequada para os padrões. Entre os problemas institucionais mencionados pelos conselheiros estava a falta de manutenção dos computadores e de agentes administrativos e profissionais qualificados para receber as denúncias feitas por telefone, o que inviabiliza um suporte para o trabalho dos conselheiros e uma melhor qualidade do atendimento.

O SIPIA não estava sendo alimentado devido à falta de manutenção nos computadores, impedindo a elaboração de estatísticas aproximadas da realidade trabalhada pelo Conselho. A estatística elaborada pelo Conselho não é apropriada para a análise das notificações dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes porque citava apenas a quantidade de registros dessas denúncias, não especificando o perfil dos vitimizados e vitimizadores. O instrumental utilizado para notificação era denominado Livro de Processos e segue os moldes do Conselho Tutelar III. Ao observarmos e analisarmos o preenchimento deste instrumental, referentes aos anos de 2004 e 2005, foi constatado as mesmas falhas nos Conselhos Tutelares III e IV. Há muitos espaços de registro deixados em branco pelos conselheiros, portanto, nem todos os atendimentos foram registrados.

Em alguns casos não há anotações sobre os encaminhamentos realizados, e, em outros, o espaço reservado ao tipo de violação cometida não estava preenchido. Quanto à tipificação, foram encontrados dois casos tipificados como assédio, um estupro, um abuso e outro, definido como sedução. Alguns casos eram registrados como um determinado tipo de violação de direitos e, no decorrer do

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acompanhamento, a família revela que se tratava de exploração ou abuso sexual, mas no Livro permaneceu o registro inicial. Ou seja, se um caso foi denunciado como desvio de conduta e, durante as visitas e atendimento à família, for constatado que a criança ou o adolescente estava sendo vitimizado por exploração sexual, o que permanece no Livro é o registro do desvio de conduta. Não há o cuidado de corrigir a denúncia registrada. A ausência da sistematização dos dados impede a identificação do total de casos notificados que foram confirmados, assim como conhecer o perfil das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Os casos notificados no ano de 2004 foram 17 como abuso sexual, 05 exploração sexual, totalizando 22 registros.

A propósito dos outros serviços de notificação do município, os conselheiros citaram o Projeto Sentinela e a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente – DCECA. Com relação aos encaminhamentos/ procedimentos realizados após a notificação, afirmaram que os casos são encaminhados à DCECA que os encaminha para atendimento médico e exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal. Em seguida para o Projeto Sentinela para que seja realizado o atendimento psicossocial. O acompanhamento familiar é realizado pelo próprio Conselho. Com relação às medidas de proteção e defesa oferecidas às vítimas e seus familiares no Município, os conselheiros ressaltaram o trabalho realizado pelo Projeto Sentinela. Estas informações demonstram que há conhecimento acerca do fluxo da denúncia-notificação e dos serviços oferecidos pela rede de enfrentamento da violência sexual no Município.

E por último, o Conselho Tutelar VI localizado na SER VI. Foi observado que sua estrutura física era de boa qualidade, sendo composta por uma área de espera, uma recepção, cinco salas para atendimento, um corredor que funciona como escritório, três banheiros, uma cozinha e um depósito. A atual gestão do Conselho teve início em 2003 e na época da pesquisa de campo era compostos por cinco conselheiros, um agente administrativo, um motorista e um auxiliar de serviços gerais.

O SIPIA estava implantado, mas não estava sendo alimentado por falta de estrutura técnica e computadores. Foi observada pouca disponibilidade para a realização da entrevista, sendo necessária certa insistência por parte dos pesquisadores de campo. A representante do Conselho que atendeu os pesquisadores demonstrou insegurança nas respostas às questões relativas à dimensão conceitual do fenômeno em foco. Por diversas vezes a mesma forneceu respostas que pouco ou nada tinham a ver com a pergunta, contradizendo-se inclusive. Além disso, foi observado um discurso bastante carregado de preconceitos, discriminação e juízos de valor, fato que pode influenciar diretamente na qualidade da defesa dos direitos das crianças e adolescentes vitimizados pela violência sexual.

A estatística de notificação oficial repassada pelo Conselho estava escrita

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manualmente e de forma não sistematizada, não especificando informações acerca da data, sexo, idade e dados do suposto agressor. Foi observado que no “Livro de Registros” não constavam tais dados, embora houvesse espaço apropriado na ficha de notificação da denúncia para informações sobre nome da vítima, dos pais, endereço, data de nascimento, raça/etnia, escolaridade etc. Foi fornecido um número geral de dados referente ao período equivalente ao ano de 2004 e do período de janeiro a junho de 2005, sendo 05 de abuso sexual, 01 aliciamento, 01 sedução, 01 exploração sexual comercial, um atentado violento ao pudor, totalizando 09 registros.

Ainda com relação aos casos constantes do Livro de Registros no mesmo espaço de tempo, dos nove casos notificados, quatro casos foram encaminhados à DCECA, dois para as casas abrigo e três constavam no livro apenas como casos denunciados. Não constavam, no entanto, encaminhamentos ao Programa Sentinela, onde seria realizado o acompanhamento psicossocial dos casos, ficando a vítima, portanto, sem suporte de atendimento. Tal fato revela a ausência de uma articulação mais consistente com a rede de atenção a crianças e adolescentes vítimas de violência.

3.2 PROGRAMA SOS CRIANÇAO Programa SOS Criança foi criado 1992 pela então Secretaria do

Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará, depois denominada Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS). Tinha como objetivo a busca de alternativas de intervenção nas circunstâncias de dificuldade, ameaças ou perigos que envolvem crianças, adolescentes e seus familiares. Serviço emergencial que se utilizava de diversos equipamentos sociais para atender às necessidades de crianças e adolescentes em situação de violência física, psicológica ou sexual. Nesta perspectiva, foi observado que o Programa ainda reproduzia o sistema tradicional do encaminhamento, não intervindo de uma forma mais complexa e estratégica na dinâmica do enfrentamento da violência sexual.

Sua dinâmica de funcionamento estava dividida em três áreas distintas: setor de denúncias, de recepção e de desaparecidos. O setor de denúncia atendia pelo telefone 1407, ou pessoalmente, quando a comunidade procurava o programa para relatar atos de violência ou omissão cometidos contra crianças e adolescentes. O setor de recepção era onde ocorre o atendimento às crianças, aos adolescentes, familiares ou terceiros que queiram utilizar o serviço para encaminhamentos diversos ou informações em geral. O setor de desaparecidos trata dos casos nos quais crianças ou adolescentes encontram-se perdidos ou fugiram do lar. O trabalho é realizado através do encaminhamento de fotos de crianças e/ou adolescentes para uma emissora de televisão local, a fim de serem divulgadas em um programa com grande índice de audiência como os programas policiais.

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O espaço físico onde o programa era executado estava passando por reformas, visando à instalação e funcionamento do Núcleo de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes (inaugurado em 2005, como parte das comemorações do dia 18 de Maio, dia nacional de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes). O Núcleo de Enfrentamento compreenderá os serviços do SOS Criança e do Sentinela (estadual) e estava subordinado ao setor de Coordenação da Proteção Social Especial da então Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará passando a integrar também o Complexo de Articulação e Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes. Integrarão o complexo juntamente com a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) e a Unidade de Recepção Luiz Barros Montenegro (URLBM), instituições já presentes naquela área, contando também com um posto avançado do Instituto Médico Legal, o Programa Justiça Já e a nova sede da Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes (DCECA) para atender às vítimas e suas famílias.

Com relação à reforma da sede do então Programa SOS Criança, segundo informações da coordenação do Programa, foram investidos R$ 445.578,65 na sua construção, com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Na época da pesquisa, apesar da reestruturação do Programa já ter sido iniciada, foi observado uma total falta de informação tanto entre os funcionários, como por parte da coordenação, sobre como se dará esse processo após a reestruturação. Foi constatada a inexistência de um projeto escrito contendo informações sobre a nova dinâmica de funcionamento desse espaço de integração e articulação das atividades de proteção e atenção às crianças e adolescentes vítimas de violência.

No que diz respeito ao acesso as informações acerca das denúncias e das notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes presentes nesta instituição, bem como a cópia do modelo de instrumental de notificação da denúncia, primeiramente foi negado, sob a alegação, por parte da coordenação, de que se tratavam de informações sigilosas. No entanto, após a intervenção da coordenadora da pesquisa que explicou a relevância deste trabalho investigativo e a necessidade de se estar analisando o material/ instrumental de trabalho de cada instituição que trabalhava diretamente no atendimento de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, foi obtido o apoio dos gestores do Programa. O apoio se deu não só no acesso às estatísticas oficiais e ao referido modelo de notificação da denúncia, como também ao livro de denúncias, aos formulários de notificação e ao roteiro de entrevista utilizado pelo programa.

Após catalogação dos casos denunciados que constavam no livro de denúncias foi constatado que 102 denúncias haviam chegado ao SOS Criança entre os anos de 2004 e 07 de junho de 2005. Destas, 13 haviam sido encaminhadas ao Projeto Sentinela do Município, 77 ao Projeto Sentinela do Estado, três à DCECA,

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uma ao Conselho Tutelar do município da região metropolitana, uma ao Conselho Tutelar de município do interior, duas foram arquivadas e cinco não constavam no encaminhamento do livro de registros. Foi observado que dos 102 casos catalogados, 11 estavam notificados como casos de “prostituição infantil”, termo não mais utilizado desde o Congresso de Estocolmo/Suécia, em 1996, ocasião em que foram discutidos vários conceitos referentes à temática e pensadas ações estratégicas para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Outro equívoco conceitual foi observado quanto ao entendimento das causas da violência sexual. Um dos profissionais afirmou: “a característica física das vítimas é uma das causas que levam à prática desse tipo de violência, tendo exposto que as garotas hoje estão mais bonitas e atraentes”. Tal postura acaba reforçando a idéia presente no senso comum de que as crianças e adolescentes são também culpados pela situação de violência pela qual são vitimizados sexualmente.

Foi constatado ainda, na época da pesquisa de campo, que a instituição não possuía estatísticas para traçar de forma mais complexa, o perfil sócio-econômico e familiar das crianças vitimizadas pela violência sexual, mesmo que ainda se constitua como uma “porta de entrada” de denúncias que são encaminhadas ao Programa Sentinela.

Com relação aos encaminhamentos, outro equívoco foi identificado na articulação com os Conselhos Tutelares, já que não foi verificada uma rotina de encaminhamento dos casos que chegam ao SOS Criança para aquelas entidades. Foi percebido certo descrédito por parte de alguns profissionais com relação à criação do Núcleo de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes, segundo opiniões, trata-se apenas de “chefe novo que quer mudar o birô de lugar e dizer que fez grandes modificações estruturais”.

Outro problema apresentado durante a realização da pesquisa diz respeito ao regime de trabalho dos educadores sociais que trabalham em regime de plantão de 12 h x 13(os efetivos) e 12h x 15 (os terceirizados). No caso dos terceirizados, estes trabalhavam um número maior de horas mensais (180h), enquanto que os funcionários efetivos que trabalhavam em regime de plantão de 12hx13 trabalham 156h mensais e os do setor administrativo da instituição trabalham 8 horas diárias (160h mensais). Segundo um dos educadores sociais, “o SOS Criança precisa de recursos humanos, materiais e informatização, a reestruturação do citado Programa não vai garantir a ampliação do serviço à população, apenas dará uma maior agilidade aos procedimentos”.

3.3 PROGRAMA SENTINELA Criado em 2001, o Programa Sentinela visava cumprir as metas do Plano

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Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, o mesmo estava vinculado à Política de Assistência Social. Como uma política pública de alcance nacional, o Programa buscava prestar um atendimento integral às crianças e aos adolescentes vitimizados pela violência sexual. Este trabalho tinha como exigência a articulação de uma rede de serviços que permitisse a proteção integral do seu público alvo. Sua operacionalização era efetivada por meio da criação de condições para a garantia dos direitos fundamentais e o acesso aos serviços públicos existentes nos diversos municípios tanto na área de assistência social, como de saúde, educação, justiça, segurança, esporte, cultura e lazer. No Município de Fortaleza existiam dois Programas Sentinela, um vinculado à Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará e o outro à Fundação da Criança e da Família Cidadã – FUNCI, da Prefeitura Municipal de Fortaleza.

3.3.1 PROGRAMA SENTINELA ESTADUAL O Programa Sentinela do Estado era composto por uma equipe

multidisciplinar (três (03) assistentes sociais, três (03) psicólogos e sete (07) educadores sociais). Os assistentes sociais eram responsáveis pelos encaminhamentos dos usuários aos programas sociais de transferência de renda como a Bolsa Família, através do cadastramento das famílias no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal-CADÚNICO, ao Benefício de Prestação Continuada – BPC, bem como pelos encaminhamentos das vítimas ao Instituto Médico Legal – IML, Delegacias e Conselhos Tutelares. O setor de psicologia fazia o acompanhamento psicológico das vítimas e os educadores sociais realizavam a primeira visita ao local da denúncia, bem como a abordagem de rua.

Com relação aos servidores, foi observada uma evidente falta de motivação em relação aos trabalhos realizados pela instituição e revelada em vários relatos. Entrevistados chegaram a mencionar que se tratava de “muito trabalho para pouco reconhecimento”. Informaram, ainda, que os salários além de baixos estavam em atraso. Também foi mencionado, como motivo de desapontamento com o trabalho, a inexistência de programas e projetos que atendessem ao grande número de crianças e adolescentes usuárias dos serviços da instituição.

Foi relatado que muitas vezes não era possível realizar encaminhamentos aos projetos de geração de emprego e renda e/ou cursos de capacitação, pois a maioria das vítimas não possui o perfil exigido pelos mesmos. Outro fato relevante observado em campo foi a capacidade de atendimento e acompanhamento por parte do Programa Sentinela/Estado, que deveria atender uma demanda mensal de 80 (oitenta) crianças e/ou adolescentes, mas que chegava a ultrapassar mais que o triplo de atendimentos e acompanhamentos previstos.

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Ainda, no que diz respeito às relações de trabalho, talvez pelo fato da pesquisa de campo ter coincidido com o período da reestruturação da dinâmica de trabalho da instituição (a criação do Núcleo de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes) outro ponto também evidenciado nos relatos dos entrevistados foi a questão do horário de trabalho. Este, que antes compreendia regime de plantão possibilitava aos funcionários plantonistas exercerem atividades em outros espaços institucionais gerando uma renda mensal complementar, agora passou a ser de oito (08) horas/dia igualmente a todos os servidores, sem que tivesse sido alterado o valor dos salários. Como no caso dos profissionais terceirizados do SOS Criança (estadual), há insatisfações com horário de trabalho, no caso específico do Programa Sentinela, com o agravante dos baixos salários e dos constantes atrasos no pagamento deste.

Os trabalhos desenvolvidos por esse programa eram realizados em parceria com outros órgãos como o anteriormente citado SOS Criança (estadual), a Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes - DCECA, a Sociedade Civil de Bem Estar Familiar no Brasil – BEMFAM, a Maternidade Escola da Universidade Federal-UFC dentre outros. Tendo em vista que o Programa Sentinela atuava juntamente com o Programa SOS Criança, os dados gerais referentes às denúncias fornecidos pelo primeiro eram compatíveis com os do segundo, visto que quando entrava qualquer denúncia de violência sexual no SOS, o caso era enviado para o Programa Sentinela. Ainda com relação às parcerias, foi destacado uma falta de articulação com os Conselhos Tutelares. Os casos que deveriam ser encaminhados para os Conselhos para que fossem aplicadas medidas de proteção, eram enviados apenas através de relatórios contendo as informações referentes às denúncias, devido ao descrédito por parte dos profissionais em relação ao trabalho realizado pelos Conselhos. Dessa forma as medidas de proteção eram realizadas pelos próprios profissionais do Programa Sentinela.

Ao ser observado o Livro de Registro de Notificações verificou-se que não havia uma prática sistemática de preenchimento do mesmo, evidenciando falha na dinâmica de notificação principalmente quanto aos dados referentes aos encaminhamentos da denúncia.Contudo, no referido livro existiam espaços destinados a esses tipos de informações.

3.3.2 PROGRAMA SENTINELA MUNICIPAL O Programa Sentinela municipal estava funcionando desde 2003

e era executado pela FUNCI – Fundação da Criança e da Família Cidadã, órgão da Prefeitura Municipal de Fortaleza. O número de notificações recebidas pelo Programa, desde sua inauguração até o mês de maio de 2005, era de 644. As instalações da instituição se assemelhavam às de uma casa, tornando o espaço mais acolhedor e apropriado ao atendimento de crianças e adolescentes

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vitimizados pela violência sexual e de suas respectivas famílias. Entretanto, fazia-se necessária uma ampliação da capacidade de atendimento do Programa e, conseqüentemente, da sua estrutura física. Implantado para acompanhar 80 crianças e adolescentes, o Sentinela tinha como desafio atender, com as mesmas condições de trabalho do início, 352 casos (dado das estatísticas do Programa referente ao número de atendimentos de maio de 2005). A equipe técnica era composta por dois assistentes sociais, dois psicólogos e um coordenador. Acerca dos encaminhamentos/procedimentos realizados após a notificação, foi afirmado que todos os casos eram encaminhados para os Conselhos Tutelares, através de relatórios ou se for necessário solicitava-se acompanhamento.

Os encaminhamentos eram realizados de acordo com cada caso, ao IML, hospitais, abrigos. Quando necessário, eram agendados também os acompanhamentos psicossociais. Caso a denúncia não viesse da DCECA era realizado o encaminhamento para a referida instituição. Foi informado, ainda, sobre a articulação do Projeto Sentinela com outras instituições de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual – Abrigos, projetos da FUNCI, Projeto Escola que Protege e outros. Analisando os prontuários da instituição, percebeu-se que os casos eram tipificados como abuso ou exploração sexual, na descrição do caso e nos documentos do prontuário estava especificado como o mesmo ocorreu e como foi tipificado na DCECA. Quanto aos encaminhamentos à DCECA, em 2004, 77 casos foram encaminhados à referida delegacia, e até Maio de 2005 foram encaminhados 31 casos. Com relação à quantificação dos casos notificados, mensalmente a instituição elaborava um relatório estatístico informando as notificações recebidas, as notificações arquivadas, o perfil dos vitimizados, a procedência das notificações, o número de acompanhamentos e atendimentos, o número dos abrigados na Casa de Passagem8, as atividades realizadas e o número de encaminhamentos realizados. Outro relatório era elaborado semestralmente com os dados sobre as notificações e sobre o perfil dos vitimizados e dos vitimizadores.

A instituição realizava sistematicamente a divulgação dos serviços oferecidos, através do Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual, de palestras nas escolas e campanhas. A coordenadora do Programa afirmou que há uma preocupação especial com a sistematização dos dados referentes às notificações porque eles possibilitam um melhor conhecimento no enfretamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Há também uma preocupação ético-profissional com o sigilo acerca das histórias de vida das crianças e adolescentes atendidos pelo Programa e de suas famílias.

Os dados estatísticos gerados pela instituição eram gerais e não classificadas segundo o tipo de violência sexual notificada. Do total de notificações,

8 A Casa de Passagem do Projeto Sentinela era um abrigamento emergencial à criança ou ao adolescente que, em virtude de risco de vida, não pode permanecer na família.

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a instituição dispunha de dados arquivados em 2003, que compreendem um total de 70. Em 2004, foram arquivadas 170 notificações e, em 2005, conforme as estatísticas fornecidas pela instituição, apenas os dados referentes ao mês de maio foram registrados, representando 26 arquivadas do total de 31 notificações. Do total de notificações realizadas pela instituição de fevereiro de 2003 a maio de 2005, 323 foram acompanhadas. As notificações segundo motivos de arquivamento são apresentadas de forma geral, compreendendo fevereiro de 2003 a maio de 2005, não havendo uma separação por ano, apenas segundo o tipo de violência sexual notificada.

Os casos que não apresentavam o perfil da instituição, ou seja, que não se tratavam de violência sexual eram encaminhados para outras instituições como Conselho Tutelar e S.O.S Criança. Quanto às notificações canceladas, correspondiam às denúncias repetidas. Com relação à mudança de área de abrangência, justifica-se pela divisão realizada no Município de Fortaleza, em seis regiões administrativas, que são divididas entre os dois Projetos Sentinela Municipal e Estadual.

Chamava atenção nos registros do Projeto Sentinela do município de Fortaleza a preocupação de realizar o registro estatístico do total de casos atendidos, classificando-os por sexo e faixa etária, contudo, algumas informações imprescindíveis não constavam como sexo e idade dos vitimizadores, locais das ocorrências, tipo de abuso, situação familiar, entre outras. Assim como no Projeto Sentinela do Estado, as estatísticas não fornecem uma distribuição etária segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, qual sejam infância (até 12 anos) e adolescência (12-18 anos), mas, pelas faixas de idade compreendidas entre 00 – 06 anos, 07 – 14 anos e 15 – 18 anos.

4 . DELEGACIA DE COMBATE À EXPLORAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES - DCECA

A Delegacia criada em 1996, funcionou inicialmente em um Trailer, no mesmo ano foi transferido para outro local, passando a atender semanalmente. Existia uma proposta para que a instituição funcionasse 24h no Complexo de Articulação e Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes, o que, segundo uma das delegadas, ampliaria o atendimento e facilitaria a realização de flagrantes. No Complexo, inaugurado em maio de 2005, havia a proposta de oferecer um atendimento centralizado às crianças e aos adolescentes. Já funcionam no local a DCA – Delegacia da Criança e do Adolescente, a Unidade de Recepção Luiz Barros Montenegro e o Núcleo de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes administrados pela Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará. A proposta acima mencionada é que além da DCECA, passassem a funcionar no mesmo espaço do Complexo o Programa Justiça Já e um setor avançado do Instituto Médico Legal - IML. O ambiente físico da então delegacia

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não favorecia o atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Além de a recepção ter poucas acomodações não era aconchegante, e as salas, em geral, pequenas. Outro fator que comprometia o atendimento e a investigação dos casos notificados era a falta de viaturas.

Quanto à tipificação dos casos notificados, a DCECA seguia os termos utilizados pelo Código Penal Brasileiro e o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. O instrumental de notificação são os Boletins de Ocorrência-BOs. As estatísticas da instituição eram geradas a partir desses boletins e continham informações sobre o perfil dos vitimizados e dos vitimizadores, sobre o local de ocorrência das denúncias, a origem das mesmas, os tipos de violência praticada contra crianças e adolescentes, os tipos de violência sexual e os inquéritos.

Foram disponibilizadas as estatísticas do ano de 2004 e, de 2005, até o mês de março. Em 2004, foram registrados 1.116 ocorrências, 76 corrupção de Menor (Art. 218 CPB), 76 Sedução, (Art. 217 CPB), 207 atentado violento ao pudor (Art. 214 CPB), 161 estupro (art. 213 CPB), 05 Exploração sexual de Menor ( Art. 224 e ECA) e 08 favorecimento a prostituição (Art.288 CPB), totalizando 1.618. No período de janeiro a março de 2005, foram totalizados 437 casos, sendo 299 ocorrências, 17 corrupção de Menor, 11 sedução, 64 atentado violento ao pudor, 41 estupro, 04 Exploração sexual de menor e 01 favorecimento a prostituição. Não há como saber quantos inquéritos de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes foram instaurados e remetidos à Justiça porque as estatísticas não trazem as informações dos inquéritos. Contudo, sabe-se que a delegacia tem esse controle.

Os encaminhamentos das notificações são efetuados pela Agência da Cidadania que funcionava na DCECA, mas não havia nenhuma quantificação ou sistematização desses procedimentos devido à demanda e à precariedade das instalações da Agência. As Agências da Cidadania são administradas pela Prefeitura, através da Fundação da Criança da Cidade - FUNCI, e estão distribuídas em 30 bairros de Fortaleza, segundo o critério de baixo Índice de Desenvolvimento Humano por Bairro (IDH-B). O atendimento das Agências conta com uma equipe multidisciplinar composta de advogado (a), assistente social, psicólogo (a) e assessor (a) comunitário (a). O objetivo geral das Agências é garantir o funcionamento de uma rede articulada de ações jurídico-psicossociais junto às comunidades, visando integrá-las às políticas públicas para crianças, adolescentes e suas famílias através da construção e potencialização de processos de emancipação e autonomia pessoal e comunitária. A Agência da Cidadania que funciona nas dependências da DCECA viabilizava junto à instituição um suporte de apoio técnico dado por profissionais de Direito, Psicologia e Serviço Social. Além dos encaminhamentos formais aos Abrigos, Projetos, Conselhos Tutelares e outras instituições que sejam necessárias, os assistentes sociais da Agência mantêm contato com as famílias, com as instituições que recebem os encaminhamentos e que encaminhavam casos

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à DCECA, e com prefeituras e órgãos do interior do Estado, objetivando aprimorar a qualidade do atendimento às crianças e aos adolescentes.

5. ALGUMAS REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES É a partir de uma leitura etnografia das observações e dos dados

coletados junto às entidades, programas e instituições consideradas porta de entrada da denúncia contra a violência sexual praticada contra adolescentes e crianças (e junto aos seus representantes e interlocutores), objeto da pesquisa que orienta o presente artigo, que faremos algumas reflexões e considerações sobre as dinâmicas de funcionamento e articulação desses dispositivos na constituição da rede de proteção às crianças e aos adolescentes vitimizados pela violência sexual na cidade de Fortaleza.

Mesmo com algumas dificuldades e limites nas suas ações, pode-se dizer que existiram avanços na execução dos Projetos Sentinela e SOS Criança, e estes foram um diferenciador na rede de enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. Esse diferencial pôde ser observado no desempenho mais efetivo de suas ações junto ao seu público alvo, nos atendimentos e encaminhamentos realizados, subsidiado por uma compreensão mais ampla do fenômeno por grande parte dos seus técnicos, ao mesmo tempo em que buscavam dar certa organicidade às rotinas de trabalho através da sistematização dos dados trabalhados como se constatou através da leitura dos relatórios e dados estatísticos. O que não quer dizer que não existissem falhas. Elas existiam, porque como práticas de intervenção, elas tinham seus limites operacionais no interior da política local de enfrentamento que estava sendo executada. No caso específico do Projeto Sentinela (estadual), com relação aos servidores, foi observada, na época, uma evidente desmotivação no que se referia aos trabalhos realizados, o que era constatado pelas observações ao campo pesquisado e pelos relatos como o que mencionava tratavar-se de “muito trabalho para pouco reconhecimento”.

A esse quadro de desmotivação somavam-se a baixa qualificação de seus quadros profissionais, a contratação de pessoal temporário, causadores de um problema antigo de alta rotatividade de parcela significativa desses quadros profissionais, aliado aos constantes atrasos nos repasses de recursos para pagamento de salários e para manter em funcionamento atividades essenciais do programa. Outro motivo do desapontamento com o trabalho foi a inexistência de programas e projetos de retaguarda que atendessem ao grande número de crianças e adolescentes usuários dos serviços da instituição. Foi relatado ainda, que, muitas vezes não era possível realizar encaminhamentos aos projetos de geração de emprego e renda e/ou a cursos de capacitação, pois a maioria dos vitimizados não possui o perfil exigido pelos mesmos. Outro fato relevante observado em campo foi a constatação de sobrecarga na capacidade de atendimento e acompanhamento por parte do Programa Sentinela/Estado, que deveria atender a uma demanda

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mensal de 80 (oitenta) crianças e/ou adolescentes e chegava a ultrapassar mais que o triplo dos atendimentos/acompanhamentos previstos.

Ainda com relação às parcerias, foi ressaltada a falta de articulação mais consistente com os Conselhos Tutelares. Os casos que deveriam ser encaminhados aos Conselhos para que fossem aplicadas medidas de proteção, são enviados apenas através de relatórios contendo as informações referentes às denúncias, devido ao descrédito por parte dos profissionais em relação ao trabalho realizado pelos Conselhos. Dessa forma as medidas de proteção acabavam sendo muitas vezes, realizadas pelos próprios profissionais do Programa Sentinela. Ao ser observado o Livro de Registro de Notificações verificou-se que não havia uma prática sistemática de preenchimento do mesmo, evidenciando falha na dinâmica de notificação, principalmente, quanto aos dados referentes aos encaminhamentos da denúncia, apesar de existirem no Livro espaços destinados a esse tipo de informações.

Quanto ao funcionamento do Projeto Sentinela (municipal), podia se perceber, na época, que este dispunha de uma boa infra-estrutura. As instalações da instituição, semelhantes às de uma casa, tornam o espaço mais acolhedor e apropriado ao atendimento de crianças e adolescentes vitimizados pela violência sexual e de suas respectivas famílias. Entretanto, fazia-se necessário uma ampliação da capacidade de atendimento do Programa e, conseqüentemente, da sua estrutura física. Implantado para acompanhar 80 crianças e adolescentes, o Sentinela tinha o desafio de atender, com as mesmas condições de trabalho do início de sua implantação, 352 casos (dados das estatísticas do Programa referente ao número de atendimentos de maio de 2005). Além disso, naquele momento, o quadro profissional da organização apresentava carência de pessoal (educadores sociais e pessoal de apoio). Mensalmente a instituição elaborava um relatório estatístico informando as notificações recebidas, as notificações arquivadas, o perfil dos vitimizados, a procedência das notificações, o número de acompanhamentos e atendimentos, o número dos abrigados na Casa de Passagem, as atividades realizadas e o número de encaminhamentos realizados. Além deste existia outro relatório que era elaborado semestralmente e que continha dados sobre o perfil dos vitimizadores. A instituição também realizava o registro estatístico do total de casos atendidos, classificando-os por sexo e faixa etária, contudo, algumas informações imprescindíveis como sexo e idade dos vitimizadores, locais das ocorrências, tipo de abuso, situação familiar, entre outras, não constavam nos registros.

Assim como no Projeto Sentinela estadual, as estatísticas não eram elaboradas com base na distribuição etária segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, quais sejam infância (até 12 anos) e adolescência (12-18 anos), mas pelas faixas de idade compreendidas entre 00 – 06 anos, 07 – 14 anos e 15 – 18 anos. Acerca dos encaminhamentos/procedimentos realizados após a notificação, semelhante ao que acontecia também no Programa Sentinela estadual, foi informado que os casos notificados eram encaminhados aos Conselhos Tutelares,

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através de relatórios, e, quando necessário era solicitado acompanhamento. Pode-se dizer que nessa dinâmica a pouca articulação se devia ao descrédito dos técnicos no trabalho dos Conselhos Tutelares.

No caso do Programa SOS Criança, constatou-se, no período da pesquisa, que este prestava um serviço emergencial que se utilizava dos diversos equipamentos sociais para atender às necessidades de crianças e adolescentes em situação de violência física, psicológica ou sexual. Nesta perspectiva, o Programa ainda reproduzia o sistema tradicional do encaminhamento, não intervindo de uma forma mais complexa e estratégica na dinâmica do enfrentamento da violência sexual. É possível que a criação do Núcleo de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes, que passou a congregar as atividades dos Programas SOS Criança e do Sentinela (estaduais) tenha redefinido e modificado essa sistemática de atendimento.

Aspectos relacionados à conceituação utilizada pelos profissionais que faziam parte da rede de atendimento também merecem destaque. Entre os 102 casos catalogados no ano de 2004 até sete de junho de 2005, onze deles haviam sido notificados como casos de “prostituição infantil”, termo que não é mais utilizado desde o Congresso de Estocolmo/Suécia, em 1996, ocasião em que foram discutidos, além dos diferentes conceitos referentes à temática também as ações estratégicas para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. No caso dos Conselhos Tutelares observou-se que esse equívoco é ainda mais comum em relação às tipologias classificatórias das denúncias recebidas. Outro equívoco conceitual foi observado quanto ao entendimento das causas da violência sexual. A afirmação proferida por um dos profissionais: “a característica física das vítimas é uma das causas que levam à prática desse tipo de violência”, e a observação que faz sobre a aparência das adolescentes “as garotas hoje estão mais bonitas e atraentes” reflete uma postura que acaba reforçando a idéia perversa presente no senso comum de que as crianças e adolescentes são também culpados pela situação de violência pela qual são vitimizados sexualmente.

Constatou-se, ainda, que o programa não possuía estatísticas que possibilitassem, de uma forma mais complexa, traçar o perfil sócio-econômico e familiar das crianças vitimizadas pela violência sexual, mesmo que ainda se constituindo como uma “porta de entrada” das denúncias que são encaminhadas ao Programa Sentinela. Ainda, com relação aos encaminhamentos, constatou-se que não existia articulação com os Conselhos Tutelares uma vez que não havia uma rotina de encaminhamento dos casos que chegam ao SOS Criança para aquelas entidades.

Outro trabalho na rede que merece destaque, principalmente pelo compromisso de seus profissionais, apesar da precariedade e das muitas dificuldades que enfrenta, é o trabalho realizado pela Delegacia de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes - DCECA. Na época de realização da pesquisa, apenas o município de Fortaleza dispunha de uma delegacia especializada no combate a violência sexual contra crianças e adolescentes. A

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delegacia não conseguia atender à demanda da capital de maneira adequada, uma vez que não funcionava aos finais de semana, além de não estar preparada para atender todo o Estado.

O ambiente físico-estrutural da delegacia não favorecia o atendimento às crianças e aos adolescentes vitimizados sexualmente uma vez que a recepção tinha poucas acomodações e as salas eram pequenas. A delegacia funcionava numa casa alugada pela Superintendência da Polícia Civil que foi “adaptada” para funcionar como delegacia, portanto, as instalações não eram as mais apropriadas. Outro fator que também comprometia o atendimento e a investigação dos casos notificados era o reduzido número de profissionais.

A DCECA teve, na época da pesquisa, seu quadro de policiais reduzido, ou seja, em 2000, a delegacia tinha cinco delegadas, em 2005 contava com duas, de seis escrivãs passou para quatro e para o trabalho de investigação e de rua contava apenas com nove inspetores. A entrega de notificação ficava a cargo de um PM e para trabalhos burocráticos (que podem ser executados por outros profissionais que não sejam policiais) contava com duas policiais militares femininas. Havia uma proposta de transferência da DCECA para o complexo onde funcionavam a Delegacia da Criança e do Adolescente - DCA, o Programa Justiça Já, o Projeto Sentinela e o SOS Criança (Estaduais). Além disso, existia promessa do governo estadual de instalação de um setor avançado do IML no local. Quanto à tipificação dos casos notificados, vale ressaltar que a DCECA fazia e faz uso dos termos utilizados pelo Código Penal Brasileiro e o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. O instrumental de notificação eram os Boletins de Ocorrência e as estatísticas da instituição geradas a partir desses boletins continham informações sobre o perfil dos vitimizados e dos vitimizadores, sobre o local de ocorrência das denúncias, a origem das mesmas, os tipos de violência praticada contra crianças e adolescentes, os tipos de violência sexual e os inquéritos. A pesquisa não teve acesso à quantidade de inquéritos instaurados em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes e quantos foram remetidos à Justiça porque as estatísticas disponibilizadas (do ano de 2004 até março de 2005) não continham essas informações sobre os inquéritos. Outro dado importante era saber o resultado desses inquéritos, quantos levaram efetivamente à punição dos vitimizadores? Enfim, de posse do conjunto desses dados seria possível a elaboração de um diagnóstico mais preciso da dinâmica de enfrentamento do fenômeno na área policial, considerando-se, sobretudo, as denúncias feitas, os inquéritos instaurados e remetidos à Justiça e o resultado desses.

Na DCECA, uma das Agências da Cidadania da Prefeitura Municipal de Fortaleza viabilizava suporte de apoio técnico através da assistência prestada por profissionais de Direito, Psicologia e Serviço Social. Além dos encaminhamentos formais aos Abrigos, Projetos, Conselhos Tutelares e outras instituições existentes na rede de proteção, os assistentes sociais da Agência mantinham contato com as

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famílias, com as instituições que recebiam os encaminhamentos e que encaminham casos à DCECA, e com prefeituras e órgãos do interior do Estado, objetivando aprimorar a qualidade do atendimento às crianças e aos adolescentes.

Contudo, há que se dizer que os procedimentos de encaminhamento das notificações efetuados pela Agência da Cidadania não eram quantificados ou sistematizados, segundo afirmações dos técnicos, devido à demanda e à precariedade de funcionamento da Agência. Na realidade, essa parceria busca suprir deficiências de pessoal de apoio à atividade fim da polícia, uma vez que, a Superintendência da Polícia Civil não tem pessoal de apoio técnico para as atividades de enfrentamento da exploração sexual de criança e adolescentes que desenvolve a DCECA na cidade de Fortaleza.

No caso dos Conselhos Tutelares, a problemática era mais séria ao se constatar que toda a estrutura primária de funcionamento dessas entidades deixa muito a desejar e comprometendo a rede de proteção na sua porta de entrada (havia informações na imprensa da suspensão das atividades de conselhos por problemas de infraestrutura e outros). A estrutura física dos Conselhos Tutelares, com algumas raras exceções, é precária. Geralmente não dispõem de local adequado para um atendimento qualificado, não possuíam recursos materiais e instrumentais de trabalho, como o computador, cuja existência no local era uma raridade, ou carro – essencial para a realização de visitas, encaminhamentos e providências necessárias – e que ali era considerado um luxo. Aliado à escassez de material de expediente, todos estes fatores evidenciaram, de certa maneira, o descaso por parte do poder executivo do município, e, em alguns casos, a “acomodação” dos conselheiros frente às atividades de implementação plenamente dos conselhos.

Outro motivo que também emperrava o funcionamento dos Conselhos eram e são as disputas políticas nas eleições dos conselheiros e a utilização política dos cargos como moeda de troca de favores entre políticos e candidatos (dificilmente um candidato a conselheiro se elege sem o apoio de políticos e de grupos de interesse, Fortaleza teve até conselheiro cassado por compra de votos). O problema é tão sério que quando um grupo perde as eleições para um grupo opositor, os trabalhos realizados pela gestão anterior, não são sequer repassados para a nova diretoria do Conselho eleito, e, em muitos casos, as documentações dos conselhos desaparecem literalmente. Diante desse quadro, o funcionamento dos Conselhos Tutelares reflete uma face frágil e dependente dos humores dos grupos políticos de plantão, marcada por ações pouco articuladas a uma política vigorosa de enfrentamento da violência praticada contra crianças e adolescentes. Sabe-se que essa situação está presente em muitos municípios brasileiros e se agrava, em alguns casos, pelo fato da administração municipal não viabilizar apoio concreto às medidas de proteção aos vitimizados e seus familiares.

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Outro grande complicador era a inexistência de uma padronização no processo de notificação e armazenamento dos casos denunciados (livros, prontuários, arquivos), cada Conselho e conselheiro segue um modelo próprio. O mais grave foi se constatar que todos os Conselhos não estavam alimentando o SIPIA em tempo real, não existia nem mesmo uma documentação que possibilitasse uma sistematização estatística confiável dos casos de violência sexual notificados, além de terem sido constatadas sub-notificações. Os dados coletados nos Conselhos pela pesquisa não estavam sistematizados e organizados numa série estatística cronológica em nenhum Conselho, os que informaram ter essa sistematização no SIPIA não souberam como gerar as estatísticas, ou, alegando sigilo, negaram acesso aos dados. Na verdade, constou-se que a maioria dos conselheiros não sabia usar os recursos da informática, tinham dificuldades primárias de operar e alimentar o SIPIA e, o mais grave, há Conselhos sem telefone e/ou computador e, quando tinham computador não estavam conectados em rede ou estavam sem manutenção.

Os cursos de capacitação ministrados aos conselheiros para operar o SIPIA pouco contribuíram para solucionar essa problemática, devendo ser repensados o mais rápido possível. Muitos Conselhos Tutelares não funcionavam os dois expedientes e existia uma prática de regime de plantão nos Conselhos, segundo a qual cada conselheiro se responsabilizava somente por um determinado número de casos denunciados no seu plantão, acompanhando-os e arquivando-os de acordo com seu entendimento, não sendo os mesmos apresentados, discutidos e sistematizados de forma coletiva. Fato que, possivelmente, pode estar contribuindo diretamente para a não organização e falta de sistematização dos casos denunciados, além de demonstrar a fragilização do atendimento à população.

De modo geral foram evidenciados muitos problemas em relação aos cuidados no armazenamento e sistematização dos dados, como, por exemplo, incoerência na dinâmica de registro de notificação, tanto com relação à terminologia usada como com relação à organização na tabulação dos dados sobre o fenômeno. Ficou evidente a imprecisão conceitual acerca do fenômeno pesquisado, exemplo disso são os Conselhos que tanto usam a denominação prostituição infantil como exploração sexual.

Além disso, os instrumentais utilizados para registrar os casos denunciados muitas vezes não eram preenchidos e, quando eram, omitiam dados que impediam ou inviabilizavam traçar o perfil tanto dos (as) vitimizados (as) como dos vitimizadores. No caso específico dos vitimizadores não existiam dados e essa não era uma realidade apenas dos Conselhos Tutelares como se pôde constatar. Os procedimentos e encaminhamentos realizados pelas instituições geralmente são desconhecidos por falta de anotações que os descrevessem. Desta maneira, não se têm estatísticas confiáveis que possam medir comparativamente o crescimento ou a diminuição do fenômeno num determinado período de tempo, porque não há séries históricas que possam medir as ações das políticas públicas operadas no enfrentamento da problemática.

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Há ainda que se destacar a falta de conhecimento e à insegurança da maioria dos conselheiros acerca do fenômeno da violência sexual. No entanto, não se ignora o compromisso de muitos conselheiros diante da defesa dos direitos da criança e do adolescente e a indignação frente às dificuldades encontradas no cotidiano de suas atividades de trabalho. Não se pode deixar de reconhecer o compromisso e a boa vontade de muitos conselheiros, mas também não é possível acreditar que só isso possa fazer a diferença no enfrentamento de uma questão tão séria e urgente como o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes presente no Brasil do século XXI.

Não, por acaso, o Governo Federal iniciou no final de 2004 o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes- PAIR no Território Brasileiro cujos objetivos são: integrar políticas para a construção de uma agenda comum de trabalho, entre Governos, Sociedade Civil e Organismos Internacionais, visando o desenvolvimento de ações de proteção a crianças e adolescentes vulneráveis ou vítimas de violência sexual e tráfico para fins sexuais; e, e desenvolver metodologias exitosas de enfrentamento a violências sexuais contra crianças e adolescentes, que possam ser estendidas para outras regiões brasileiras, a partir de ações referenciais de organização, fortalecimento e integração dos serviços locais, possibilitando a construção de uma Política Municipal de Proteção Integral a Criança e ao Adolescente, assegurada a participação social na construção dos processos. (Parâmetros Metodológicos do PAIR, 2006).

Contudo, não se pode negar a transitoriedade e a fragmentação de planos, programas e projetos executados pelas políticas governamentais locais, caracterizados pela falta de sustentabilidade e fragilidade de suas ações. Como mudar essa realidade? No caso específico dos municípios, os prefeitos têm um papel fundamental que é usar seriamente o poder político do seu cargo, da cadeira que ocupa, para articular forças, parcerias, criar e incentivar redes de políticas públicas de enfrentamento da comercialização e exploração sexual de crianças e adolescentes em seus municípios, assim como implementar políticas de acesso à educação de qualidade, aos serviços primários de saúde, promover a geração de renda e trabalho, enfim, desenvolver ações que envolvam as universidades, as empresas, as associações, os sindicatos, os clubes de serviços e as mais diversas esferas do poder pública. É, sobretudo, ser capaz de articular a implementação de políticas públicas ouvindo os mais diversos setores da sociedade civil. Porque sozinho o poder público local não vai conseguir fazer nada. Sem esquecer que esse trabalho de articular interesses públicos dá trabalho e toma tempo. Há que ter, acima de tudo, compromisso com a condição social, respeito com a condição de humanidade da população vitimizada e, sobretudo, vontade política de enfrentar a má vontade de um modelo de fazer política que tem na suas estranhas a prática do clientelismo e todas as suas mazelas.

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BARBOSA, H. Subsídios para uma matriz conceitual e metodológica no enfrentamento e intervenção da exploração sexual: reflexão do ontem, do hoje e do amanhã. In: Construindo uma história: tecnologia social de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. Bahia: CEDECA – BA, 2003.

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LEAL, M. L. P. Violência intrafamiliar: um estudo preliminar. In: Indicadores de Violência Intrafamiliar e Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. Relatório Final da Oficina. Brasília: CESE, MJ/SNDH/DCA, CECRIA, 1998.

____________. Fundamentação Teórico-Metodológica. In: Rede de Informações sobre ViolênciaSexual contra Crianças e Adolescentes - RECRIA. Manual de operacionalização. Brasília: MJ/SEDH/DCA/CECRIA, 2001.

MADEIRA, M. Z. de A.(Org.). Relatório Final da I Conferência Municipal de Política de Promoção da Igualdade Racial. Coleção Educação e Cidadania- Da História Real à Educação Legal. Fortaleza: Marcograf, 2008.

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Instruções aos Autores |293

INSTRUÇÕES AOS AUTORES

I. COLABORAÇÃO ACEITA POR SEGURANÇA, JUSTIÇA E CIDADANIAOs textos destinados à publicação em Segurança, Justiça e Cidadania deverão

ser inéditos, não submetidos a outro veículo e concernentes aos seguintes temas:

. Segurança pública e cidadania

. Análise de homicídios na sociedade brasileira

. Sistemas de informação, estatísticas criminais e cartografias sociais

. Estudos sobre crime e violência no século XXI

. Organizações policiais e modelos de policiamento

. Reflexões sobre educação policial

. Meios de comunicação, violência e cidadania

. Mediação de conflitos

. Violência de gênero e cidadania

. Sociologia da violência

. Socialização, juventude e segurança

. Políticas públicas de segurança pública

. Conflitos sociais e processos de pacificação

. Direitos individuais, direitos coletivos e segurança pública

. Perspectivas para o sistema prisional brasileiro

. Segurança pública e criminologia

. Direito penal comparado e segurança pública

. Sistemas de Segurança Pública e Justiça Criminal

II. DA OCASIÃO DA PUBLICAÇÃOOs números de Segurança, Justiça e Cidadania são temáticos. Por

isso, as chamadas para artigos serão destinadas a captar textos relacionados especificamente ao tema do número do periódico em ocasião.

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III. APRECIAÇÃO PELO COMITÊ E CONSELHO EDITORIAIS1. Os trabalhos serão apreciados pelo Conselho Editorial, que poderá

recorrer a consultores ad hoc caso não disponha de especialista na área abordada no artigo. Os autores serão notificados da aceitação ou da recusa de seus textos.

2. Eventuais sugestões de modificações de estrutura e/ou conteúdo serão notificadas ao autor, que se encarregará de fazê-las no prazo máximo de 30 dias corridos.

3. Não serão permitidas modificações depois que os textos receberem o aceite.

IV. FORMA DE APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS4. Os artigos deverão ser escritos em português, gravados em formato

do Microsoft Word ou de editores de texto compatíveis com softwares de código aberto, obedecendo o seguinte:

Papel: A4

Margens: 2,5cm;

Espaço entre linhas: 1,5;

Fonte: Times New Roman, tamanho 12

Número de páginas: entre 20 (mínimo) e 35 (máximo, incluindo bibliografia e notas)

5. Os artigos deverão ser acompanhados de resumo em português, com tradução para o inglês e o espanhol, que sintetize os propósitos, métodos e principais conclusões. A identificação do(s) autor(es) deve apresentar o título acadêmico recebido e a instituição à qual está(ão) vinculado(s).

6. Referências a obras e autores deverão ser apresentadas no corpo do texto, na forma (Sobrenome: ano, página).

7. As notas de rodapé deverão ser de natureza substantiva, nunca referência.

8. Figuras e desenhos deverão ser produzidos em formato eletrônico, vetorizados e enviados no mesmo arquivo do texto.

9. Tabelas, quadros e gráficos deverão ser numerados e produzidos em extensão .xls ou .doc, ou qualquer outro formato de editores de texto compatíveis com softwares de código aberto.

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10. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas ao fim do texto, ordenadas alfabeticamente pelo último sobrenome do autor, de acordo com o seguinte:

- Em caso de livro:

GOLDSTEIN, Herman. Policiando uma Sociedade Livre. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

- Em caso de artigo: PROENÇA JUNIOR, Domício; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; PONCIONI, Paula Ferreira. “Da

governança de polícia à governança policial: controlar para saber, saber para governar, in Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 3, pp. 14-37, 2009.

- Em caso de coletânea:

GREENE, Jack R. (org.) Administração do Trabalho Policial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

- Em caso de dissertação de mestrado ou de tese de doutorado:

RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. Administração da Justiça Criminal na cidade do Rio de Janeiro: uma análise dos casos de homicídio doloso. Tese de Doutorado. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009.

V. OUTROS11. Não serão devidos nem direitos autorais, nem qualquer outra

remuneração, de nenhuma natureza, pela publicação de artigos em Segurança, Justiça e Cidadania.

12. O envio do artigo para candidatura à publicação implica autorização tácita para ser publicado no periódico, caso obtenha parecer favorável.

13. Os autores receberão gratuitamente três exemplares do número da revista no qual seu artigo está publicado.

14. O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor.

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