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ÁREA TEMÁTICA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Questão Identitária e as Relações Internacionais: desvendando as fissuras do aspecto global

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ÁREA TEMÁTICA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Questão Identitária e as Relações Internacionais: desvendando as

fissuras do aspecto global

Tamiris Pereira dos Santos1

Michele Mariano de Souza2

Resumo

Com o advento da Globalização, os Estados encontram-se envoltos por fluxos

informacionais, de capitais, trânsito de pessoas e permeabilidades fronteiriças,

denotando como tendência majoritária a sobreposição do global em detrimento

do local. Acompanhando estas tendências, a recontextualização de conceitos-

chave para os estudos de Relações Internacionais, como soberania e Estado,

traduz-se em mudanças paradigmáticas, dada a inclusão de novos debates na

agenda internacional, tais como o regionalismo e a questão identitária - foco da

presente pesquisa. Neste sentido, pretendemos ilustrar sucintamente como é

dada a recontextualização dos conceitos clássicos de soberania e Estado

dentro da dinâmica do aspecto global, tendo por objetivo debater a identidade

forjada pelo Estado e os limites da primazia do global sobre o local no cenário

das Relações Internacionais.

Palavras-chave: Relações Internacionais; Estado; Soberania; Questão

Identitária.

Abstract

Given the advent of the Globalization, States are involved by informational and

capital fluxes, people transit and border’s permeabilities, denoting global

superposition over local orientation as a major trend. Along with these trends,

1 Bolsista CAPES/DS e mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Integração da

América Latina – Prolam/USP. Contato: [email protected] 2 Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Ibero-Americano – Unibero.

Contato: [email protected]

the recontextualization of International Relations key concepts, such as

sovereignty and State, is translated at paradigmatic shifts, given the inclusion of

new debates at International agenda, like regionalism and identity issues – the

main goal of the present research. In this sense, we intend to illustrate briefly

how the recontextualization of the classic concepts like sovereignty and State is

given among the dynamics of global aspect, aiming to debate the identity forged

by the State and the limits of the primacy from the global aspect over the local

aspect inside International Relations background.

Keywords: International Relations; State; sovereignty; Identity issue.

As transições de paradigma das Relações Internacionais – novos atores e

recontextualizações neste ramo das Ciências Sociais

Como um ramo mais novo das Ciências Sociais, as Relações Internacionais

seguem em progressão recontextualizando-se através de seus conceitos e

paradigmas a fim de analisar com maior precisão as dinâmicas em voga no

Sistema Internacional. Isso equivale dizer, no âmbito historicista kuhniano3, que

a readaptação conceitual às novas realidades que se apresentam ao longo do

tempo consiste na condição para que as Relações Internacionais sobrevivam

como ciência.

Ademais de ramo científico, as Relações Internacionais são inexoravelmente

parte do nosso cotidiano, visto que o saber internacional permeia nossas ações

com a prerrogativa de questionar, remodelar o Estado em seus papéis e

atribuições, através do rearranjo lógico do poder entre os vários atores que

compõem o Sistema Internacional, quais sejam: sociedade civil, entes

3 Remete a Thomas Kuhn, importante pesquisador nos ramos de história das ciências que

abriu rumos a uma nova epistemologia. Ver JACOBINA, Ronaldo R. “O paradigma da epistemologia histórica: a contribuição de Thomas Kuhn”, 2000. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-597020000004000067

subnacionais, empresas, organismos multilaterais, entre outros (CASTRO,

2012).

Alguns termos presentes no cotidiano das Relações Internacionais como

ciência permeiam os términos de eras, ordens ou arranjos internacionais,

denotando novos debates compreendendo outros papéis e dinâmicas para os

autores do Sistema Internacional; a exemplo disso temos as terminologias “Fim

da História” de Francis Fukuyama,” Nova Ordem Mundial” ou “fim da

bipolaridade”, entre outros. Além destas terminologias, convém explicitarmos a

existência das “crises” – que moldaram o objeto de estudo deste artigo -

determinando o dinamismo do Sistema Internacional (CASTRO, 2012). Desta

forma, em meio aos “fins” e às crises paradigmáticas, os estudos internacionais

são realizados mediante a transição de debates e, por conseguinte,

resignificação de conceitos-chave conforme havíamos adiantado.

O período entre Guerras, retratado por Carr em “Vinte anos de crise: 1919-

1939”, a queda do Muro de Berlim e a derrocada da “cortina de ferro” soviética

e a expansão do fenômeno “globalização” são apenas alguns exemplos

emblemáticos – nos limitando à seara política - que suscitaram o câmbio

paradigmático no âmbito das teorias de Relações Internacionais, alterando as

compreensões quanto ao papel do Estado e a aplicação da soberania. Quanto

ao último fenômeno,

Desde os meados dos anos sessenta, temos presenciado uma reorganização de configurações espaciais e formas urbanas como consequência de mais um ciclo significativo na redução de barreiras espaciais. A "aldeia global" sobre a qual Marshal McLuhan especulou nos anos sessenta tornou-se realidade, pelo menos em certo sentido (HARVEY, 1994, p.2)

Estendendo a situação descrita por Harvey para o Sistema Internacional, e

considerando o contexto da “nova desordem mundial” predicado por Bauman

(1999), o fim do sistema bipolar - caracterizado pela defrontação econômica,

política e ideológica entre EUA e a ex- URSS - foi o catalisador da

globalização, disseminando-a para todos os cantos do globo terrestre. Logo, ao

alongamento das relações sociais e eventos locais, antes distantes e agora,

conectados ao longo da superfície da Terra, atribuímos o título de globalização

(GIDDENS, 1991). E com a instauração desta, novos atores adquiriram “voz”

no âmbito do Sistema Internacional, relativizando a preponderância dos

Estados enquanto atores territoriais; são eles: sociedade civil, companhias

multinacionais, organismos multilaterais, entre outros. Consequentemente,

ampliando o escopo de atuação, bem como o número de atores

compreendidos no Sistema Internacional, houve a necessidade de escapar das

dualidades apregoadas tanto no debate entre realismo e liberalismo clássico,

quanto no posterior debate entre neorrealismo e neoliberalismo. À guisa da

complexa agenda internacional pós Guerra Fria, compreendendo questões

como meio ambiente, relações econômicas, transnacionalização de empresas,

e globalização financeira, forças transnacionais anônimas - ocultadas pelas

dinâmicas de fluxos informacionais, humanos e de capitais – impelem o Estado

a um processo de definhamento, legando o Sistema e os atores que o

compreendem à sensação de falta de centralidade, de unidade de controle

(BAUMAN, 1999).

Em meio a um Sistema Internacional com polaridades diversas, múltiplos

atores, capital deslocalizado e forças anônimas em curso, observamos que o

objeto do Tratado de Westphalia encontra-se perante um dilema: como estão

inseridos o Estado e o exercício da soberania face à globalização?

Discutiremos adiante acerca dos conceitos de Estado, soberania sua

respectiva recontextualização do fenômeno global.

Estado e soberania em xeque?

Existem vários conceitos acerca desta abstração constante nos estudos

internacionais intitulada Estado. Vastamente utilizado, o conceito weberiano

equipara o Estado a um lócus de poder, visto que para o sociólogo alemão, o

Estado Moderno consiste em uma associação de dominação institucionalizada,

a qual conseguiu monopolizar territorialmente a coerção legítima, reunindo os

meios materiais nas mãos de seu dirigente (WEBER, 1919). Anteriores a este

conceito, temos a definição de Hobbes (2003), donde o Estado seria organismo

vivo, unitário4, cujos objetivos são o da salvaguarda do povo que habita seus

domínios no sentido de garantir defesa e segurança e em relação ao meio

internacional, a primazia pelo princípio da soberania como chave de sua

sobrevivência; e o próprio conceito maquiaveliano de Estado amalgamado ao

conceito de governo visto que segundo o historiador florentino: “Todos os

Estados, todos os domínios que exerceram e exercem poder sobre os homens,

foram e são ou repúblicas ou principados” (MAQUIAVEL, p.4)5.

Protagonista, o Estado possui prerrogativas peculiares que o distinguem dos

demais atores do Sistema Internacional, levantadas pelas referidos conceitos,

que apesar de pertencerem a períodos diferentes, convergem no domínio

calcado na centralidade como elemento justificador no provimento da

segurança aos indivíduos e no exercício da soberania, a qual corresponde ao

direito de decreto à guerra, celebração de paz, representação via corpo

diplomático, personalidade jurídica, representação em instâncias internacionais

através do exercício de observação, voto ou participação na elaboração de

agendas (CASTRO, 2012) e, vale ressaltar, o princípio de respeito às demais

jurisdições territoriais pertencentes aos demais Estados. Ou seja, o respeito ao

princípio da soberania é o pilar da anarquia do Sistema Internacional,

4 Refere-se à atuação do Estado sem intermediários ou outros atores para compartilhar

atuação e poder com este, seja em seara doméstica ou internacional. 5 Referência proveniente de material digital em domínio público, sem especificação de ano ou

edição.

resguardando as interações das unidades políticas6.

Portanto, aglutinando os conceitos previamente discutidos, temos no Estado “a

materialização organizada – fruto de um processo histórico – da vida social e

das aspirações humanas com um grau elevado de institucionalismo e

reconhecimento internacional” (CASTRO, 2012, p.105), compreendido em um

determinado espaço físico e limitado territorialmente ao exercício da soberania

dentro de suas fronteiras. Isto faz do Estado na conformação discutida, um

ente territorial. A este ponto, se retomarmos a questão da minimalização

fronteiriça, da desterritorialização do capital, das cadeias produtivas e da

intensificação das relações sociais propiciadas pela globalização, não

estaremos determinando um xeque-mate ao Estado e o exercício da soberania

em sua conformação de princípio aplicado territorialmente?

Primeiramente convém fazermos algumas elucidações. Conforme John Agnew

(2009), a soberania efetiva não é necessariamente predicada ou fixada

estritamente às fronteiras territoriais dos Estados, visto que a negociação e a

redefinição de poder e autoridade em maneiras abrangidas pelo complexo

geográfico sugerem as mudanças nos termos deste debate. Isto já nos leva a

negar o suposto ‘xeque-mate’ à soberania através da globalização, e nos

defrontarmos, inevitavelmente, com o processo de recontextualização do

conceito de soberania e sua aplicação por parte do Estado.

Entretanto, não se trata de um movimento de recontextualização de conceitos

clássicos, mas de uma exacerbação ao difundir o conceito de globalização,

desmistificada por Agnew (2009) conforme segue.

O primeiro “mito” da globalização apontado pelo autor seria o disseminar da

ideia de que o mundo é plano, difundindo a perspectiva de que este seria uma

crescente superfície indiferenciada donde o comércio e os fluxos de 6 Ver ARON (2002). Conceito utilizado para designar atores do Sistema Internacional que

possuam a prerrogativa da soberania e de aplicar políticas. Este conceito é utilizado pelo autor em vez de Estado visto que ele remete em suas análises a períodos anteriores ao Tratado de Westphalia – o qual instituiu o Estado – analisando por exemplo as pólis gregas.

investimentos encontram-se desimpedidos para partir de um lugar para outro. É

correto dizermos na redução dos custos com transportes, das barreiras

tarifárias e aos investimentos, entretanto o sucesso econômico passa pelo crivo

do Estado, que não pode ser excluído através desta hipótese equivocada de

planificação7. O segundo “mito” refere-se ao pensamento de que a

globalização tal qual vivenciamos é algo completamente novo - algo refutado

por historiadores e geógrafos. Esta sensação é dada ao passo que os regimes

totalitários presentes em período recente do século XX primam Estado em

todas as instâncias. Contudo, o processo de abertura e fechamento dos

Estados ou unidades políticas em é dado conforme as demandas do período

histórico, constituindo um ciclo8.

O terceiro, por sua vez, é de caráter ideológico, implicando que a globalização

possua raízes em uma única inspiração ideológica, ilustrada na substituição do

Estado por mercados. A propagação do modo de vida estadounidense e a

consolidação da vitória do capitalismo após a derrocada da ex-URSS

constituíram um cenário de preponderância do neoliberalismo e consequente

associação da globalização exclusivamente com a referida ideologia.

Entretanto, há que se considerar a existência da variável avanço tecnológico no

aumento da produção contemporâneo, alavancado pela globalização9. Logo as

raízes do fenômeno habitam o sistema bipolar e não o sistema contemporâneo,

o qual acatou o neoliberalismo de bom grado. Associado ao apresentado, o

quarto “mito” incorre na divergência entre estado de bem estar social e os

ditames da globalização, visto que os Estados estarão disciplinados pelos

mercados globais a reduzir custos a fim de angariar investimentos e tornarem-

se competitivos. Entretanto, empiricamente, as economias mais prósperas do

globo são aquelas que possuem infraestrutura adequada e consolidação de

investimentos para estas áreas, tornando o ponto de vista retratado em

7 AGNEW, 2009, p.13

8 Op. cit., p. 16

9 AGNEW, 2009, p.17.

falácia10.

Por fim, o último mito retratado pelo autor refere-se à inexorabilidade da

globalização, desprovendo os atores de alternativas. Este seria um caso de

interpretação dúbia, visto que equipara o fenômeno da globalização ao

determinante de uma era, algo que ainda está em construção11. Portanto, é

possível depreendermos que mais dinâmicas inerentes ao processo de

globalização e as alternativas ainda estão no âmbito do porvir.

Em observação ao apresentado pelo autor geopolítico, consideramos que os

termos para o exercício da soberania foram alterados pelo processo de

globalização de forma latente, sendo necessária a recontextualização da

conformação clássica presente nos estudos de Relações Internacionais, visto

que houve a inclusão de outros agentes a serem considerados nas dinâmicas

do Sistema Internacional. Contudo, assim como estamos sujeitos à gravitação

em torno do sol, os Estados necessariamente seguem presentes no debate,

visto que os fenômenos positivos atribuídos à globalização passaram pelo crivo

estatal – a caráter de exemplos: fluxos de capitais na forma de investimento

estrangeiro direto captado para inovações tecnológicas, fluxos informacionais

captados para elaboração de políticas e ampliação da participação no escopo

multilateral, entre outros. Em adição a esta questão, um aspecto que recaiu ao

senso comum seria a associação do exercício da soberania com a

territorialidade, dada a ampla difusão deste conceito sob esta condicionante.

Entretanto, assim como existem outras formas de espacialidade – espacial-

interacional e baseada nos lugares – existem outras formas pelas quais

transcorre a soberania efetiva (AGNEW, 2009), demonstrando a capilarização

do conceito por outras veredas nos parâmetros da globalização. Logo, não

habitamos um planisfério, mas estamos inseridos em um ciclo que, propiciado

pelo momento anterior, nos brinda com mudanças de contexto e permanências

estruturais, as quais discutiremos adiante.

10

AGNEW, 2009, p.18. 11

Ibid., p. 18-19

O outro lado da globalização: Estado-nação, questão identitária e

regionalismo – diferentes gradações de homogeneização

O primeiro passo para não nos perdermos em meio às contradições inerentes

às veredas da globalização no âmbito de Estado, Estado-nação e a questão

identitária é a delineação conceitual com a qual iremos nos pautar. Portanto,

aqui se fazem necessárias algumas sutis diferenciações antes de

prosseguirmos.

O conceito de Estado clássico em conformação eminentemente territorializada,

discutido anteriormente, difere do conceito de Estado-nação. O último implica

na identidade forjada com base na organização social, mediada pelo complexo

de poder exercido pelo Estado, em conjunto com o entrelaçamento afetivo

traduzido no sentimento patriótico, consubstanciado pela memória coletiva e

pelo patrimônio histórico comum12, deixando como legado a nacionalidade, a

proveniência. Delimitar estas questões clareiam as análises para a ocorrência

de nações sem Estado e de Estados abrigando mais de uma nação, como nos

casos da Catalunya e da ex-Iugoslávia respectivamente (CASTELLS, 2001).

Entretanto, ainda há outra delimitação a ser realizada no âmbito do conceito de

identidade, pois, afinal, sob que dinâmica se dá a identidade forjada pelo

Estado? E como conceituar identidade?

Por identidad, en lo referente a los actores sociales, entiendo el pro-ceso de construcción del sentido atendiendo a un atributo cultural, o un conjunto relacionado de atributos culturales, al qué se da prioridad sobre el resto de las fuentes de sentido (CASTELLS, 2001, p.28).

Logo, convém retomarmos que a identidade no âmbito do Estado-nação

perpassa pela questão do patrimônio histórico comum e pela disseminação do

ideal patriótico. Outra elucidação que se faz necessária é a diferença entre a

identidade como prática, que se dá no âmbito relacional e como categoria,

dada no âmbito de diferenciação. Conforme Hogan (2009), a identidade como

12

GODINHO apud JUSTINO, 2011.

prática constitui todo um aparato de estruturas procedimentais e

representativas, cuja importância aumenta na medida em que este aparato

promove sua interação com outros. Seria a identificação parcial, fluida, a qual

rege o âmbito relacional, donde um indivíduo possui diferentes práticas

identitárias com diferentes dos grupos simultaneamente. Enquanto a identidade

como categoria constitui um grupo ou associação que intenta definir o que o

indivíduo vem a ser. Neste sentido, transportando estes conceitos para o

raciocínio de Estado-nação que discutimos anteriormente, depreendemos que

a identidade forjada pelo Estado encontra-se no âmbito da categoria como

forma de diferenciação no Sistema Internacional. Eis uma questão anuviada

pelos “exageros” das consequências da globalização, os quais discutimos

anteriormente na forma de “mitos”. Portanto, a ocorrência desta formação

identitária por parte do Estado já consiste como um vetor de dissonância dos

discursos homogeneizantes face à globalização. Outro vetor, aparentemente

contraditório ao primeiro, seria a questão o retorno dos nacionalismos,

sobretudo em períodos de crises, sejam estas políticas ou econômicas.

O suscitar do nacionalismo, questão delicada para tratarmos face às maculas

deixadas por regimes como o nazismo e o fascismo por exemplo, consiste em

parte de um ciclo de aberturas e fechamentos ao fenômeno da globalização e

suas pressões. Trata-se de uma resposta com base nos indivíduos enquanto

entes pertencentes a uma determinada coletividade, e este aspecto nos

direciona até uma distinção entre Estado enquanto ente político e ator do

Sistema Internacional e Estado-nação.Partindo do escopo internacional para o

escopo local, as fragmentações aparecem em maior escala, pois o próprio

conceito de Estado-nação torna-se invalidado conforme a leitura do próprio

Castells (1999), acerca do poder da identidade de romper com a legitimidade

do referido conceito dada a propagação do individualismo. O persistir do

conceito de nação constitui uma forma de resistência, um mecanismo de

protesto em relação às respostas do Estado a ameaças a sua comunidade

nacional, e este fenômeno pode contribuir futuramente para a separação

definitiva dos conceitos de Estado e nação mesmo em regiões como a Europa

Ocidental (YOUNG; ZUELOW; STURM, 2007). Entretanto, para autores como

Bauman (1999), esta distinção já existe de forma clara.

Bauman (1999) explicita que o Estado enquanto ator soberano no Sistema

Internacional é um ente que condensa o poder social com fins de ordenação,

se afastando da coletividade. Logo, o fenômeno da nação, enquanto

coletividade, é passível de territorialização, desterritorialização e

reterritorialização, aspecto não estendido ao Estado sob este prisma, o qual

estaria em declínio dado o suposto abalo da soberania causado pela

globalização.

Quanto mais nos aproximamos do âmbito local, mais paradoxos surgem, pois a

conceituação de Bauman (1999) vai diretamente de encontro com as

delimitações que discutimos conforme Agnew (2009) justamente devido a suas

diferenças em conduzir as discussões acerca de globalização. Este fenômeno

já consiste um paradoxo analítico em si mesmo justamente por se tratar de

algo em desdobramento, em franco desenvolvimento, nos limitando à condição

de tecer análises acerca do que ocorre na contemporaneidade por não

estarmos com suficiente afastamento temporal. Independentemente desta

limitação, o fato de nos defrontarmos com reflexões opostas, entretanto

convergentes no âmbito da “não homogeneização” do globo, nos coloca um

dilema de posicionamento: em que termos aplica-se o conceito de Estado-

nação?

Trata-se de uma questão de aproximação e distanciamento de objetos. O

aparente véu global se dá devido ao distanciamento do âmbito local e a

consideração de aspectos de alcance planetário como elementos comuns no

processo de identificação, eliminando as assimetrias do campo analítico e,

além disso, de anuviando alguns esforços empreendidos acerca da

diferenciação da identidade como prática e como categoria, conforme

discutimos anteriormente. Lembremos que o conceito se enquadra no eixo de

identidade como categoria e é sustentado na medida em que o Estado como

sujeito ordenador e com a prerrogativa da soberania forja para si mesmo uma

identidade coercitivamente, numa tentativa de dirimir as assimetrias localizadas

em âmbito doméstico com vistas ao estabelecimento de uma categoria única

frente aos demais Estados-nação do Sistema Internacional. Quando bem

sucedida, esta manobra do Estado tende a ser uma permanência mesmo em

meio às dinâmicas da globalização e a chave para este feito se encontra, de

forma talvez paradoxal, na interação com o território através do retorno às

origens, às raízes. A forma de promoção bem sucedida varia com a capacidade

do Estado de aplicar políticas culturais em âmbito doméstico de forma efetiva.

O consumo e a produção de bens culturais são reflexos característicos de

sociedades específicas e, tendo por base as relações entre desenvolvimento

econômico e produção cultural, o fortalecimento institucional buscando coesão

no espectro de prática e produção cultural, mediante políticas promovidas pelo

Estado, consiste em uma das garantias de coesão social e exercício da

soberania em âmbito doméstico (ACHUCARRO; ESCOBAR; PÉREZ, 2008).

Logo, uma das formas de exercício da soberania, ordenando o poder social

seria através da macroprojeção dos indivíduos, coletividades e suas

instituições (CASTRO, 2012), tramitando do plano das coletividades localizadas

para o plano nacional mediante homogeneização. Esta seria, pois, uma

ferramenta para nivelarmos a análise à luz da compreensão, contudo, ignorar a

existência de coletividades e suas dinâmicas de territorialidade seria repetir a

falácia da planificação, tal qual apresentamos de início.

Mas sob as fímbrias do Estado-nação, a ocorrência das multiterritorialidades,

característica da mobilização das coletividades e de seu processo de

reterritorialização consiste em uma realidade ocultada, apesar de não se tratar

de uma “marca” da atualidade - sociedades tradicionais já promoviam o

cruzamento identitário sob uma dinâmica mais fluida de território

(HAESBAERT, 2011) - nos remetendo à questão de que a globalização

intensificou processos já existentes, não instituindo um arcabouço inusitado.

Este movimento de gradações de homogeneizações, aproximações e

distanciamentos nos aclara e anuvia as diferenças respectivamente, não

obstante devemos nos atentar aos exageros e aos reducionismos ao

realizarmos tais operações, sob a pena de perda da inteligibilidade de

movimentos que ocorrem simultaneamente, coetaneamente.

A construção do conceito de Estado-nação implica em “violenta”

homogeneização, mas à observância do prisma internacional e da anarquia

sistêmica, a questão das raízes confere forma ao conteúdo nacional, visto que

remete ao indivíduo enquanto parte de uma categoria que o define enquanto

ser. “O enraizamento é talvez a necessidade mais importante a mais

desconhecida da alma Humana e uma das mais difíceis de definir”13. Neste

parâmetro, o retorno às origens constitui uma necessidade, uma forma de

administrar o caos cotidiano e a sensação da falta de ordenamento em âmbito

individual e, ao mesmo tempo, uma forma de instituir vínculos fixos, arraigados

no pertencimento e legitimar isso no Sistema Internacional através do conceito

Estado-nação. Logo, a mesma sensação de falta de centralidade refletida para

a sociedade em seu âmbito doméstico, reflete-se para os Estados via

globalização e uma forma de administrar esta sensação seria este movimento

de “voltar-se para dentro”, propagando uma coesão nacional construída. Não

se trata de um fechamento completo das influências externas, mas de se

resguardar da perda de identidade, se organizando internamente a partir do

isolamento das “ameaças” (BOSI, 2003).

A questão que resta ser discutida, no parâmetro da nova agenda trazida

através das intensificações de fluxos inerentes à globalização, seria: como se

dá a referida dinâmica no âmbito do regionalismo? Conforme estudos de

Ribeiro (2011), a integração em âmbito regional é vista como inevitável a fim de

evitar atrasos econômicos e sociais, trata-se de um vínculo pragmático sem

13

WEIL apud BOSI (2003)

necessariamente implicar em vínculo identitário. A falta de capacidade de

refletir questões europeias sob um ponto de vista europeu reforça tanto a ideia

de retorno as origens sob a égide do conceito de Estado-nação que

discutíamos, quanto outra questão tratada pela autora, indicando que a ideia de

Europa continua a ser filtrada pelos interesses nacionais (RIBEIRO, 2011).

Citamos aqui o caso europeu por se tratar do mais emblemático caso de

integração na contemporaneidade, entretanto nosso olhar exterior às dinâmicas

internas ao bloco, o qual costumamos enxergar através do espectro

homogeneizador, nos impede de captar este desvinculo existente entre o

constructo do regionalismo e a identidade que os Estados europeus forjaram

para si mesmos, diferenciando-os. Logo, o regionalismo consiste em um

constructo realizado, nos termos da globalização econômica, com vistas a

administrar a inserção ou manutenção dos Estados no cenário internacional de

forma estável, não implicando em homogeneização identitária sob os conceitos

difundidos de sociedade global ou comunidade internacional.

Considerações Finais

A intensificação das relações sociais, dos fluxos informacionais, de pessoas e

de capitais consiste no principal legado da globalização e administrar estes

desafios via revisões conceituais ante os novos conceitos apresentados é uma

tarefa árdua para os estudos de Relações Internacionais, visto que conceitos

envolvem abstrações e gradações de homogeneização de diferenças para se

atingir um padrão passível de análises. Neste sentido, os conceitos de Estado

e soberania seguem de forma pendular, ora remetendo às conformações

clássicas, ora se readequando às novas realidades, seguindo um ciclo

desenhado pela história. Em outras palavras e estendendo a questão para o

conceito de território,

[...] a história dos conceitos é também a história de sua aplicabilidade e de sua "adequação" em termos teóricos e também políticos, seu

poder ao mesmo tempo de desvendar e de transformar a "realidade". Com o território, portanto, não é diferente, e hoje, diante da realidade múltipla e, para tantos, pelo menos em parte, híbrida, em que estamos imersos, ele não pode fugir da necessidade de dar conta de uma visão mais integradora ou não- dicotomizada de mundo, especialmente aquela que separa cultura e natureza, mundo material e imaterial, ou, mais estritamente, em termos de poder, poder político em sentido mais tradicional (como "dominação" estatal e/ou de classe) e poder simbólico (ou, em termos gramscianos, ligados à "hegemonia" enquanto criação de uma coesão simbólica). (HAESBAERT, 2008, p.400)

Com a prerrogativa da transformação e da recontextualização conceitual do

que interpretamos por território, o desenvolvimento de análises que permeiam

este conceito necessita possuir esta maleabilidade a fim de acompanhar o

alvorecer de novos tempos com novas formas de produção de conhecimento,

livre de dogmatismos e estagnações.

Neste ambiente de transitoriedades, a questão identitária e o regionalismo

emergem como novidade dadas as “novas vestes” que o fenômeno da

globalização lhes conferiu. Entretanto, ambos consistem em fenômenos pré-

existentes que transitavam às escondidas do debate internacional. Como o

debate sobre território também seguiu conforme esta dinâmica, a sensação de

inusitado também perpassou por fenômenos como o hibridismo e

multiterritorialidade, ampliando a extensão das falácias propagadas acerca da

globalização.

Em primeiro lugar, o hibridismo, tal como a multiterritorialidade, embora hoje intensificado, não é uma prerrogativa do mundo moderno ou, mais ainda, do "pós-moderno", como se sociedades tradicionais não fossem marcadas por cruzamentos identitários e só produzissem territórios "etnicizados", mono-identitários, territorialmente exclusivos e mutuamente excludentes" (HAESBAERT, 2008, p.409)

A intensificação das discussões em torno destas construções nos insere em

um esforço de desmistificação do aparente véu único que os discursos sobre

globalização intentaram difundir, transformando o referido conceito em

sinônimo de universalização e, conforme apresentamos, destino único ao qual

todos estamos sujeitos

No entanto, ademais de consistir em algo em construção, o cenário da

globalização não ocultou as assimetrias, os esforços de diferenciação como

modo de administrar a “nova desordem mundial” (BAUMAN. 1999), sejam

estes empreendidos por parte dos indivíduos ou mesmo por parte dos Estados

sob o amálgama conceitual “Estado-nação”.

A homogeneização, presente em diversos âmbitos do cotidiano analítico,

consiste em uma ferramenta para delinearmos, compreendermos de alguma

maneira o objeto, abstraindo questões que conduziriam a desvios nos debates

aos quais nos propusemos, seja por interesses próprios ou não. Contudo,

apropriada pelo conceito de globalização descriteriosamente, desrespeitando

os limiares entre local e global, entronizando a proposta de universalização

constitui algo falacioso, não refletindo a complexidade da realidade e,

novamente, legando fenômenos existentes às sombras do debate

internacional. Insistindo, a globalização consiste em parte de um ciclo que está

para ser escrito ainda (AGNEW, 2009), contudo coexiste com resistências e

barreiras no âmbito das localidades, não transformando o mundo em um todo

indiferenciável, um véu sem matizes. E estendendo este debate para a questão

do regionalismo, o mesmo raciocínio de entronização da universalização de

valores se faz válido, não apenas para o caso europeu presente nos estudos

de Ribeiro (2011), mas para o constructo fictício que realizamos ao

homogeneizar “o outro”. O conceito de Estado-nação já consiste em um

constructo com base na homogeneização, mas possui a prerrogativa de retorno

às raízes mais nítida do que sob o escopo do regionalismo, o qual na prática,

possui um grau mais elevado de distanciamento da questão identitária.

Portanto, longe de concluir um debate repleto de complexidades e com

diversos meandros possíveis para discussão, depreendemos que os estudos

de Relações Internacionais necessitam levar em consideração todos estes

movimentos para ampliar a compreensão acerca da atuação do elenco do

Sistema Internacional sem anular os diversos níveis interacionais que,

permeados pela globalização, administram e assimilam estas dinâmicas de

forma diferenciada. No parâmetro das recontextualizações e das dinâmicas

fluidas, o legado da globalização, por meio da nova agenda de debates de

Relações Internacionais, seria o da reconstrução conceitual, donde floresce a

questão identitária em diversos níveis, conferindo ao tecido planetário várias

cores.

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