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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Curso de Graduação em Direito Daniel Babo de Resende Carnaval A PRISÃO COMO UMA INSTITUIÇÃO TOTAL NA OBRA DE DOSTOIÉVSKI Belo Horizonte 2012 Daniel Babo de Resende Carnaval

A prisão como uma instituição total na obra de Doistoiévsky

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAISCurso de Graduação em Direito

Daniel Babo de Resende Carnaval

A PRISÃO COMO UMA INSTITUIÇÃO TOTAL NA OBRA DE DOSTOIÉVSKI

Belo Horizonte2012

Daniel Babo de Resende Carnaval

A PRISÃO COMO UMA INSTITUIÇÃO TOTAL NA OBRA DE DOSTOIÉVSKI

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Guilherme José Ferreira da Silva

Belo Horizonte2012

Daniel Babo de Resende Carnaval

RESUMO

A crítica ao discurso reabilitador da pena privativa de liberdade não é nova.

É impossível quedar-se inerte diante de uma situação tão delicada quanto a pena

privativa de liberdade e, ainda mais, observar que nos últimos séculos pouco se fez

em relação a um modelo punitivo que nos dizeres de Dostoiévski esgota a

capacidade humana e apresenta um detento mumificado como modelo de

regeneração. Ademais, a obra de Erving Goffman explicita como uma instituição

total, no caso do presente trabalho, a prisão, produz no indivíduo que nela se

encontra o sentimento de prisionização, que em virtude de tal sentimento acaba por

desenvolver habilidades de pouca ou nenhuma utilidade no trato social. A presente

dissertação analisou a história da pena privativa de liberdade para, após, abordar o

conceito de instituição total e finalmente trabalhar tais elementos em conjunto com

a obra “Recordações da Casa dos Mortos” de Dostoiévski. Referida obra foi

analisada ao longo do trabalho e seus pontos relevantes serviram de embasamento

para referendar os conceitos teóricos acerca de uma instituição total.

Palavras-chave: Prisão – Instituição Total – Dostoiévski.

ABSTRACT

The critique of the discourse of imprisionment. It is impossible to takedown

inert in a situation as delicate as the custodial sentence and, further, in recent

centuries little has been done in relation to a punitive model that in the words of

Dostoevsky depletes human capacity and features a detainee mummified as a

model for regeneration. Moreover, the work of Erving Goffman explicitly as a total

institution, in the case of this study, the prison, the person who produces it is the

feeling of prisonization that because of this feeling eventually develop skills of little

or no use in social graces. This dissertation examined the history of deprivation of

liberty for after, addressing the concept of total institution and finally these elements

work in conjunction with the book "House of the Dead" by Dostoyevsky. Such work

was analyzed and its relevant points served as the basis for a referendum on the

theoretical concepts of a total institution.

Keywords: Impriosonment – Total Institution – Dostoyevsky

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------- 1

2. A RELEVÂNCIA OBRA ------------------------------------------------------------- 22.1. Relato da obra ------------------------------------------------------------------------- 3

3. HISTÓRICO DA PENA DE PRISÃO --------------------------------------------------- 83.1. Idade Antiga ------------------------------------------------------------------------------- 83.2. Idade Média -------------------------------------------------------------------------------- 93.3. Idade Moderna ---------------------------------------------------------------------------- 9

4. SISTEMAS PENITENCIÁRIOS -------------------------------------------------------- 144.1. Sistema Pensilvânico ou Celular -------------------------------------------------- 144.2. Sistema Auburniano ou Silent System ------------------------------------------ 154.3. Sistema Progressivo ------------------------------------------------------------------ 16

5. A INSTITUIÇÃO TOTAL OU O ESTABELECIMENTO SOCIAL TOTAL ---17

6. A PENITENCIÁRIA COMO UMA INSTITUIÇÃO TOTAL ----------------------- 20

7. A OBRA RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS E SUA CRÍTICA À PENA

PRIVATIVA DE LIBERDADE EM UMA INSTITUIÇÃO TOTAL ------------------ 24

8. CONCLUSÃO ------------------------------------------------------------------------------- 31

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. INTRODUÇÃO

O atual panorama do sistema carcerário brasileiro é caótico e disso todos

sabem. Prisões superlotadas sem qualquer estrutura para acomodar os milhares

de indivíduos que nelas se encontram. Violência, vitimização e abandono são

conceitos diuturnamente salientados em nossa sociedade.

A vida dos internos de uma instituição prisional pouco importa à maioria das

pessoas, talvez porque os que ali estão causaram algum mal, às vezes gravíssimo

a alguém, motivo pelo qual são tratados como párias, pessoas que merecem o

desprezo da comunidade, contudo, também são poucas as pessoas que pensam

sobre as consequências de tal ato de abandono, eis que os prisioneiros não

permanecerão para sempre intramuros, ou seja, um dia sairão, e no atual sistema é

inegável que estão saindo muito mais afastados da ideia de ressocialização

prevista na Lei.

O presente trabalho se presta a adentrar nos muros do cárcere, explorar a

vida do ser humano aprisionado e apontar, com base no conceito de instituição

total trabalhado pela psicologia social, como a prisão não consegue regenerar

aquele que ali entra, mas sim incutir no mesmo comportamentos pouco

aproveitáveis na sociedade livre, consequentemente afastando-o ainda mais do

seu grupamento. Permeando a teoria da instituição total, foi abordada a obra

“Recordações da Casa dos Mortos” escrita por Fiódor M. Dostoiévski, que narra a

vida em cárcere e suas consequências sobre os que nela vivem.

2. A RELEVÂNCIA OBRA

1

Conforme os escritos de Joseph Frank em sua biografia de Dostoiévski:

“As memórias da prisão têm sido tão familiar que tendemos a esquecer que foi Dostoiévski quem deu a seu país a primeira obra-prima desse tipo. Mas foi realmente o que aconteceu: Recordações da Casa dos Mortos criou o gênero na Rússia, respondendo a uma imensa e apreensiva curiosidade sobre as condições de vida daqueles “infelizes” que têm problemas com o Estado, particularmente os presos políticos, muito mais do que os condenados por crimes comuns.

A publicação de Recordações da Casa dos Mortos desencadeou, imediatamente, um imenso debate na imprensa sobre a justiça russa e o sistema prisional: em consequência da informação dada pelo livro todos os tipos de reforma foram sugeridos ou defendidos. A cena do hospital, onde o prisioneiro moribundo teve de ficar acorrentado até o último suspiro, despertou uma indignação particular, e a necessidade de regulamentos tão crueis e insensatos como esses foi contestada com raiva.

Ao lado dessas questões legais e administrativas, o que predominou na reação do público foi o reconhecimento do humanismo generoso que pregava o livro. Dostoiévski conseguira “redimir” toda uma classe de criminosos e proscritos (nem todos, é claro, mas a grande maioria), que devolvera por assim dizer ao aprisco humano, quando os pintou com uma compreensão simpática. Mostrou cada um deles como indivíduo, com sua história, seu temperamento e sua psicologia. Dostoiévski soube iluminar o presídio com uma luz humana de grandiosa radiância, aquecê-lo com um sentimento de enorme amizade. Em cada criminoso ele procurava ver o ser humano, e cada um de seus retratos é uma pergunta sincera e bondosa dirigida à sociedade em nome da verdade e do amor à humanidade.” (FRANK, 2002, p. 302-304).

Importante frisar que Recordações da Casa dos Mortos deve sua origem aos

acidentes da vida de Dostoiévski, já que ele realmente foi preso e condenado a

trabalhos forçados na Sibéria em virtude de ter participado do Círculo de

Petrashevsky o qual pretendia depor o Czar Nicolau I.

Também se trata de obra relevante para o presente estudo eis que,

conforme posteriormente será abordado no conceito de “instituição total”, o livro

repete várias passagens da vida do personagem principal na cadeia, sendo que

tais repetições são feitas com o intuito de reforçar a sensação de viver num mundo

fechado de uma rotina imutável, é a “rotina costumeira de textura uniforme”, capaz

de produzir um efeito de “mesmice eterna” tão comum nos presídios da atualidade

e que, sem dúvida alguma, não proporciona no aprisionado qualquer impacto

positivo.

2.1. Relato da obra

2

A obra é apresentada por dois narradores, o primeiro aparece na introdução

da obra e é o suposto editor do livro. Esse primeiro narrador fornece um quadro da

vida na Sibéria:

Nas regiões distantes da Sibéria, é comum encontrarmos rudes cidades feitas de madeira, espalhadas entre estepes, montanhas ou florestas de difícil acesso, com mil ou, no máximo, dois mil habitantes, com duas únicas igrejas (...). Os homens que lá vivem são simples e conservadores, não afetados pelas ideias liberais (...). O clima é muito salutar. A hospitalidade e a convivência social são realidades entre o funcionalismo e a burguesia, que, diga-se de passagem, é próspera. As moças em idade de casar vicejam como rosas magníficas, carregando, em si, virtude inata. A caça é abundante, cruzando o caminho dos caçadores. Tem-se champanha de sobra. O caviar é esplêndido. As colheitas e safras em certos lugares são extremamente fecundas. Por toda parte o solo é produtivo, bastando cultivá-lo. (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 9-10).

Posteriormente, ele passa a tecer comentários acerca do segundo autor da

obra, aquele responsável pela narrativa dos relatos, um antigo proprietário rural

chamado Aleksandr Pietróvitch Goriântchikov, que cumpriu uma sentença de dez

anos por ter assassinado a esposa, num acesso de fúria ciumenta, no primeiro ano

de casamento. Goriântchikov vive em total isolamento, ganha o seu sustento dando

aula às filhas de uma “velho burocrata” chamado Ivan Ivanovitch Gvosdikov e evita

todo contato com o mundo. Eis o relato sobre tal personagem:

Numa dessas cidadezinhas amáveis abastecidas de tudo e cujos habitantes são imensamente corteses (...) vim a conhecer um colono que fora um nobre proprietário rural na Rússia (...) que por ter assassinado a esposa, estivera cumprindo pena de dez anos de trabalhos forçados num presídio de segunda classe (...). Embora obrigado judicialmente a viver nos arredores, morava na própria cidade, pois aí dispunha da possibilidade de se dedicar a ensinar crianças, atividade com a qual ganhava seu sustento. (...). Era um homem pequeno, muito magro e pálido, relativamente jovem, de uns trinta e cinco anos. Vestia-se decentemente, á moda europeia. (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 10).

Quando Goriântchikov morre de repente, o primeiro narrador consegue

evitar que alguns de seus papeis sejam jogados fora. Em uma primeira análise,

observa-se que grande parte dos documentos são anotações indecifráveis ou

ocasionais e folhas de cadernos de lições corrigidas (DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg.

13), entretanto, o editor acaba por encontrar

“(...) um calhamaço cheio da primeira até a página trezentos e tantos com uma letra miúda. Certamente o autor não quisera ou não pudera terminar

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a narrativa que ali se desenvolvia, abordando justamente a vida que havia levado no presídio durante dez anos.Naquele texto incompleto se alinhavam casos bizarros, recordações por vezes cândidas, redigidas em estilo nervoso, altamente pessoal, também repletas de paroxismos.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg. 13).

Tal “calhamaço” contém as memórias de Goriântchikov na “Casa dos

Mortos” e relacionam-se diretamente com o crime por ele cometido. É justamente

essa parte que o editor decide publicar e oferecer ao juízo do leitor.

Tudo se inicia com a entrada da personagem na prisão e uma pequena

descrição do presídio e seus moradores, um local triste, no meio da Sibéria, com

muros de madeira.

“Ao penetrar nesse recinto, deparamo-nos com algumas construções. Ao

longo do grande pátio se estendem duas alas compridas, de madeira,

formando um anda único. São os alojamentos. Ali vivem os condenados,

distribuídos de acordo com suas categorias. No fundo do corredor, há

outro prédio com as mesmas características: trata-se da cozinha, divididas

entre dois blocos; atrás, em outro prédio, a despensa, o paiol e o depósito.

O meio do pátio de chão batido está vazio, sem nada. É aí onde os

detentos, a cada manhã, colocam-se em forma para a chamada e a

contagem, ato que se repete ao meio-dia e ao anoitecer, ou quando as

sentinelas desconfiam de qualquer anormalidade e resolvem conferir a

contagem. Entre tais alas e as paliçadas corre um espaço livre. Ali, atrás

dos prédios, os detentos mais melancólicos e menos sociáveis fazem

caminhadas nas horas de folga e, assim, meio escondidos, entregam-se a

seus pensamentos”. (DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg. 17).

Esse é, basicamente, o local onde toda a narrativa se passa, exceto no que

tange aos trabalhos forçados e também a mais enigmática passagem da obra, qual

seja, a “casa de banho” que será posteriormente abordada.

Depois de tal apresentação sobre o presídio, a personagem apresenta suas

primeiras impressões sobre tal lugar e as pessoas que ali vivem. Um trecho é

bastante comovente:

“(...). Certa vez, vi um presidiário, solto após cumprir vinte anos de

reclusão, não sair sem se despedir dos que ficavam. Mais de um detento

lembrou como ele entrara, jovem e despreocupado, indiferente ao crime e

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ao castigo. E agora saía, já grisalho, o rosto macerado, velho,

circunspecto. Entrou silenciosamente em cada um dos nossos

alojamentos; parou em todos os seis, rezando uma prece diante do ícone;

em seguida voltou-se para cada um dos prisioneiros e fez uma grande

reverência, pedindo que nos lembrássemos dele com apreço.”

(DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg. 18).

O dia-a-dia também é narrado. Uma rotina extenuante e nem um pouco

diversificada, oferecendo pouca ou nenhuma oportunidade para os que se

encontram no cárcere desenvolverem algo útil.

As considerações acerca dos presos são relevantes e colocam o leitor a par

do “verdadeiro inferno” em que a personagem se encontrava. São pessoas brutas,

assassinos por impulso e por profissão, membros e chefes de quadrilhas, ladrões,

cada um com sua história e enevoada como tentarmos enxergar através de

embriaguez (DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg. 20). Alguns casos são escabrosos, como o

do assassino de crianças e do indivíduo que assassinou seu próprio pai para

receber sua herança:

“Era um antigo funcionário público, de origem nobre, que fizera ao pai

como o filho da parábola da Bíblia. Sua conduta era tão desregrada que

acabou conduzindo o pai à falência. Como o pai ainda possuía uma casa e

uma fazenda julgou que o velho lhe estava escondendo dinheiro;

pensando na herança, matou-o e – entregou-se a orgias monumentais. A

polícia acabou descobrindo o corpo preso a uma tora, enterrada num

buraco feito no terreno da fazenda. O cadáver estava totalmente vestido; a

cabeça, decapitada, havia sido colocada num tronco sobre um

travesseiro.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg. 25).

Após narrar tais primeiras impressões, a obra narra como Goriântchikov

passou seus dez anos na “Casa dos Mortos”, suas dificuldades, amigos, o

preconceito que sofria por ser um nobre no meio dos presos de origem comum.

Destaca-se a passagem do hospital. Nela Goriântchikov acabou por adoecer

e se viu obrigado a ir ao hospital do presídio. Lá ficou por alguns meses e assim

pode observar melhor os presos doentes do presídio e também o nível de

desespero de alguns, contudo a mais tocante passagem sobre o hospital é aquela

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que narra a morte de um prisioneiro tuberculoso que em seus últimos momentos

choca a todos:

Muito moço ainda, ele tinha apenas uns vinte e cinco anos, era alto,

esguio, muito bem apessoado. Pertencia à Seção Especial e estava

sempre tristonho, manifestando certa melancolia estranha, parecia estar

‘definhando’ no presídio. Essa era, pelo menos, a expressão usada pelos

detentos, pelos quais ele era lembrado gentilmente. Apenas me lembro de

que tinha uns olhos muito bonitos. Mas sinceramente não sei por que me

lembro dele tão bem. Ele morreu às três horas de um dia claro e frio.

Lembro-me de como o sol entrava pelas vidraças esverdeadas e cheias de

gelo! Um mar de luz espalhou-se sobre o infeliz. Morreu inconsciente, e

sua vida foi se esvaindo de forma longa e dolorida. Já de manhã, não

reconhecia os que o rodeavam. Eles queriam aliviá-lo daquele sofrimento,

mas como? Sua respiração era difícil, ruidosa e irregular. Seu peito se

elevava e baixava profundamente como se não conseguisse ar suficiente.

Atirou para longe as cobertas, livrou-se da roupa de cama, começando

depois a rasgar a camisa; até mesmo isso parecia difícil para ele. Eles o

ajudaram a se livrar da camisa. Era horrível ver aquele corpo comprido,

imenso, com aqueles braços e pernas que eram puro osso; com a barriga

trêmula e o peito saltado, as costelas parecendo as de um esqueleto.

Sobre aquele corpo só restavam uma cruzinha de madeira e um relicário e

aqueles grilhões, tão largos agora que poderiam ser retirados de suas

pernas mirradas. (...). Por fim, com sua mão fraca e errática, pegou o

relicário do pescoço e tentou arrancá-lo, como se fosse um peso ainda

maior. Uns dez minutos mais tarde, morreu. Os detentos bateram na porta

para informar à sentinela. O guarda entrou, lançou um olhar insensível

para o morto e sair para ir buscar o servente. (...). Com passos rápidos,

que acoavam na sala silenciosa, aproximou-se do morto e tomou-lhe o

pulso com ar desinteressado, aparentemente preparado para a ocasião,

deu de ombros e saiu. (...). Enquanto esperavam, o guarda sussurrou que

seria bom que alguém fechasse os olhos do morto. (...). Aquele corpo

acabado, nu, exceto pelos grilhões, o estarrecia.” (DOSTOIÉVSKI, 2006,

Pgs. 193-194).

Existem vários outros relatos, como por exemplo o do prisioneiro que

espancou sua esposa até mata-la por achar que ela o havia traído para, no fim,

descobrir que era mentira. A prisão é narrada como um lugar denso e cheio de

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percalços para os que ali vivem, mas ao mesmo tempo apresenta as mais

diferentes histórias de vida, sofrimentos e lamentações. Ao fim, no último capítulo

intitulado “Saída da prisão”, Goriântchikov faz uma remissão de seus anos no

presídio, do que aprendeu e de que lhe serviu, para então perguntar “de quem é a

culpa” por aquilo tudo, pela prisão e os motivos que levam alguém a ela.

3. HISTÓRICO DA PENA DE PRISÃO

Nos dizeres de Cezar Roberto Bitencourt:

“A origem da pena, todos recordam, é muito remota, perdendo-se na noite dos tempos, sendo tão antiga quanto a humanidade.” (BITENCOUT, 2004, p. 03).

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Temos uma divisão clássica dos períodos que perpassam sua história: Idade

Antiga, Idade Média e Idade Moderna (BITENCOURT, 2004, p. 03).

3.1. Idade Antiga

Citando referido autor, temos que:

“a Antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como sansão penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu desde tempos imemoráveis, não tinha caráter de pena e repousava em outras razões. Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda de réus, para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados ou executados.” (BITENCOURT, 2004, Pg. 04).

Assim, é lícito afirmar que durante tal período a pena privativa de liberdade

começou como uma espécie de prisão cautelar, uma espécie de ante-sala de

suplícios (BITENCOURT, 2004, Pg. 04), onde os presos ficavam até cumprirem

efetivamente a pena que lhes era imposta, sendo na maioria das vezes a pena de

morte. Importante frisar que, não sendo a prisão o local de cumprimento da pena

principal, os lugares destinados ao acautelamento dos condenados até a execução

da pena eram:

“(...) os piores lugares (...): utilizavam-se horrendos calabouços, aposentos frequentemente em ruínas ou insalubres de castelos, torres, conventos abandonados, palácios e outros edifícios”. (BITENCOURT, 2004, p. 07).

Portanto, durante referido período, a prisão não encontrava qualquer relação

com o seu conceito atual, sendo apenas um local para impedir que o culpado

pudesse subtrair-se ao castigo (BITENCOURT, 2004, p. 08) e, assim, estivesse

apto a cumprir sua pena, a qual na maioria das vezes era a capital.

3.2. Idade Média

Durante tal período:

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“A privação da liberdade continua a ter uma finalidade custodial, aplicável àqueles que seriam ‘submetidos aos mais terríveis tormentos exigidos por um povo ávido de distrações bárbaras e sangrentas. A amputação de braços, pernas, olhos, língua, mutilações diversas, queima de carne a fogo, e a morte, em suas mais variadas formas, constituem o espetáculo favorito das multidões desse período histórico’.” (BITENCOURT, 2004, p. 09).

Ante o exposto, temos ainda uma prisão voltada à custódia dos condenados

aos mais diversos suplícios, os quais eram aplicados pelos governantes com o

intuito de provocar o medo coletivo, contudo, é também nessa época que surgiu,

através do Direito Canônico, a prisão eclesiástica, a qual era voltada principalmente

para corrigir religiosos “rebeldes”, dando ao internamento um sentido de penitência

e meditação (BITENCOURT, 2004, p. 10), o que torna tal prisão um “germe” do

atual sistema carcerário. Portanto:

“De toda a Idade Média, caracterizada por um sistema punitivo desumano e ineficaz, só poderia destacar-se a influência penitencial canônica, que deixou como sequela positiva o isolamento celular, o arrependimento e a correção do delinquente.(...)Sobre a influência do direito canônico nos princípios que orientaram a prisão moderna, afirma-se que as ideias de fraternidade, redenção e caridade da Igreja foram transladadas ao direito punitivo, procurando corrigir e reabilitar o delinquente.”(BITENCOURT, 2004, p. 12-13).

A pena ou penitência tende a reconciliar o pecador com a divindade,

pretende despertar o arrependimento no ânimo do culpado, nem por isso deixando

de ser expiação e castigo. (BITENCOURT, 2004, p. 14).

3.3. Idade Moderna

Com o aumento da delinquência ano após ano, ficou evidente para os

governantes que a pena de morte não era a melhor solução. Eram muitos para

serem todos enforcados, e a sua miséria, como todos sabiam, era maior que a sua

má vontade (BITENCOURT, 2004, p. 16). Entretanto, muitos anos se passaram até

que fosse iniciado um movimento voltado para o desenvolvimento da pena privativa

de liberdade como medida imposta para a correção dos culpados:

“A pedido de alguns integrantes do clero inglês, que se encontravam muito preocupados pelas proporções que havia alcançado a mendicidade em

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Londres, o Rei lhes autorizou a utilização do Castelo de Bridwell para que nele se recolhessem os vagabundos, os ociosos, os ladrões e os autores de delitos menores” (BITENCOURT, 2004, p. 16).

Tal movimento como o acima relatado tinha como objetivo reformar os

delinquentes por meio do trabalho de da disciplina. É nessa época que surgiram na

Inglaterra as workhouses e as bridwells.

“O sistema orientava-se pela convicção, como todas as ideias que inspiraram o penitenciarismo clássico, de que o trabalho e férrea disciplina são um meio indiscutível para a reforma do recluso.” (BITENCOURT, 2004, p. 16).“Procurava-se alcançar o fim educativo por meio do trabalho constante e ininterrupto, do castigo corporal e da instrução religiosa. Todos esses instrumentos são coerentes com o conceito que se tinha, nessa época, sobre a reforma do delinquente e os meios para alcança-lo. Tinha-se a convicção de que o castigo e a utilização dos conceitos religiosos permitiriam a correção do delinquente. Considerava-se, por influência calvinista, que o trabalho não devia pretender a obtenção de ganhos nem satisfações, mas tão-somente tormento e fadiga.” (BITENCOURT, 2004, p. 18).

Na França, temos o surgimento das lettres-de-cachet, que não eram uma lei

ou decreto, mas sim uma ordem do rei voltada para uma pessoa que a obrigava a

fazer alguma coisa, até mesmo privando-a de sua liberdade para que se

“corrigisse”. Na verdade, o instituto das lettres-de-cachet acabou por se desvirtuar

vez que elas passaram a ser alvo de “um jogo” que nos dizeres de Álvaro Mayrink

da Costa assim pode ser resumida:

“Ao examinar as lettres-de-cachet mandadas pelo rei em quantidade bastante numerosa notamos que, na maioria das vezes, não era ele quem tomava a decisão de enviá-las. Ele o fazia em alguns casos como nos assuntos de Estado. Mas a maioria dalas, as dezenas de milhares de lettres-de-cachet enviadas pela monarquia, eram, na verdade, solicitadas por indivíduos diversos: maridos ultrajados por suas esposas, pais de família descontentes com seus filhos, famílias que queriam se livrar de um indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém, uma comuna descontente com seu cura, etc. Todos esses indivíduos ou pequenos grupos pediam ao intendente do rei uma lettre-de-cachet, este fazia um inquérito para saber se o pedido era justificado. Quando isto ocorria, ele escrevia ao ministro do rei encarregado do assunto, solicitando enviar uma lettre-de-cachet permitindo a alguém mandar prender sua mulher que o enganava, seu filho que é muito gastador, sua filha que se prostitui ou o cura da cidade que não demonstra boa conduta, etc. (...). Eram instrumentos de controle, de certa forma espontâneos, controle por baixo, que a sociedade, a comunidade, exercia sobre si mesma.” (COSTA, 1979, p. 56).

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A lettre-de-cachet quando usada como meio punitivo redundava na prisão do

indivíduo para o qual era voltada. Como ressaltado, anteriormente, não era a pena

do direito, não era punição, mas sim um momento anterior à punição que poderia

ser o enforcamento, esquartejamento, marcado, banido, queimado, etc.

“Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente. Raramente, a lettre-de-cachet dizia que alguém deveria ficar preso por seis meses ou um ano, por exemplo. Em geral determinava que alguém deveria ficar retido até nova ordem, e a nova ordem só intervinha quando a pessoa que requisitara a lettre-de-cachet afirmasse que o indivíduo aprisionado tinha se corrigido. Esta ideia de aprisionar para corrigir, de conservar a pessoa presa até que se corrija, essa ideia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano tem origem precisamente nesta prática”. (COSTA, 1979, p. 57).

Entretanto, a prisão como meio de reforma do delinquente foi aos poucos se

transmutando para uma instituição voltada ao controle das classes inferiores:

“Os modelos punitivos não se diversificam por um propósito idealista ou pelo afã de melhorar as condições da prisão, mas com o fim de evitar que se desperdice a mão-de-obra e ao mesmo tempo para poder controla-la, regulando a sua utilização de acordo com as necessidades de valoração do capital.“ (BITENCOURT, 2004, p. 22).

Para Melossi e Pavarini,

“a prisão surge quando se estabelecem as casas de correção holandesas e inglesas, cuja origem não se explica pela existência de um propósito mais ou menos humanitário e idealista, mas pela necessidade que existia de possuir um instrumento que permitisse não tanto a reforma ou reabilitação do delinquente, mas a sua submissão ao regime dominante (capitalismo).(...)Já não se trata de dizer que a correção sirva para alcançar uma ideia metafísica e difusa de liberdade, mas que procura disciplinar um setor da força de trabalho para introduzi-lo coativamente no mundo da produção manufatureira, tornando o trabalhador mais dócil e menos provido de conhecimentos, impedindo, dessa forma, que possa apresentar alguma resistência.” (BITENCOURT, 2004, p. 23).

“O segredo das workhouses ou das rasphuis está na representação em termos ideais da concepção burguesa da vida e da sociedade, em preparar os homens, principalmente os pobres, os não proprietários, para que aceitem uma ordem e uma disciplina que os faça dóceis instrumentos de exploração.” (BITENCOURT, 2004, p. 25).

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“Aparece também a ideia de uma penalidade que tem por função não ser uma resposta a uma infração, mas corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos, de suas atitudes, de suas disposições, do perigo que apresentam, das virtualidades possíveis. Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos, de penalidade que procura corrigi-los pela reclusão e pelo internamento não pertence, na verdade, ao universo do Direito, não nasce da teoria jurídica do crime, não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria. Essa ideia de uma penalidade que procura corrigir o aprisionado é uma ideia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça em uma prática dos controles sociais ou em uma sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder.” (COSTA, 1979, p. 57).

Temos, portanto, a prisão como instrumento utilizado pelas classes

dominantes para amansar as classes inferiores, fragilizar eventual oposição da

classe operária cada vez mais crescente na Europa. A prisão passou a servir como

instrumento de imposição do controle de uma classe sobre a outra.

Com o advento do Iluminismo destaca-se a obra Dos delitos e das penas,

escrita por Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria. Em sua obra, Beccaria propõe

um fim utilitário e político à lei penal, a qual deve ser limitada pela lei moral. Cesare

Beccaria firmou as bases do Direito Penal moderno, com uma obra que se tornou

um verdadeiro manifesto contrário à situação penal daquele momento. Diz-se que:

Beccaria constrói um sistema criminal que substituirá o desumano, impreciso,

confuso e abusivo sistema criminal anterior. (BITENCOURT, 2004, p. 33).

Os iluministas buscavam um novo Direito que deveria se afastar da ideia de

vingança suprema do soberano e procurar a defesa da Sociedade como um todo.

“Beccaria tinha uma concepção utilitarista da pena. (...). Essa concepção utilitária considerava a pena um simples meio de atuar no jogo de motivos sensíveis que influenciam a orientação da conduta humana. Procuravam um exemplo para o futuro, mas não uma vingança pelo passado.” (BITENCOURT, 2004, p. 36).

Nos dizeres de Beccaria, citado por Bitencourt:

“O fim (da pena), pois, não é outro que impedir o réu de causar novos danos a seus cidadãos e afastar os demais do cometimento de outros iguais. Consequentemente, devem ser escolhidas aquelas penas e aquele método de impô-las, que, respeitada a proporção, causem uma impressão mais eficaz e mais durável sobre o ânimo dos homens e que seja a menos dolorosa para o corpo do réu.” (BITENCOURT, 2004, p. 36).

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Assim, é Beccaria quem discute a humanização das sanções criminais com

o fim de se ressocializar, e não simplesmente punir, o indivíduo que comete um

delito.

Após, temos o inglês John Howard, responsável por iniciar uma corrente

preocupada com a reforma carcerária.

“Foi este quem inspirou uma corrente penitenciarista preocupada em construir estabelecimentos apropriados para o cumprimento da pena privativa de liberdade.” (BITENCOURT, 2004, p.. 40)

Foi ele quem

“Insistiu na necessidade de construir estabelecimentos adequados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, sem ignorar que as prisões deveriam proporcionar ao apenado um regime higiênico, alimentar e de assistência médica que permitisse cobrir as necessidades elementares.”(BITENCOURT, 2004, p. 41).

Por último, foi Jeremy Bentham outro importante crítico do sistema

carcerário e que propôs um novo modelo de sistema prisional, o qual ficou

conhecido como panótico.

A ideia de Bentham era não apenas punir o criminoso, mas também conferir

à Pena um caráter utilitário, voltado para a prevenção do crime. Bentham pregava o

trabalho dos presos, para que estes não ficassem ociosos e para que

desenvolvessem suas habilidades, bem como determinava uma rigorosa vigilância

dos mesmos.

4. SISTEMAS PENITENCIÁRIOS

Diz Cezar Roberto Bitencourt que

“Os primeiros sistemas penitenciários surgiram nos Estados Unidos (...). Esses sistemas tiveram, além dos antecedentes inspirados em concepções mais ou menos religiosas (...), um antecedente

13

importantíssimo nos estabelecimentos de Amsterdam, nos Bridwells ingleses e em outras experiências similares realizadas na Alemanha e na Suíça.” (BITENCOURT, 2004, p. 57).

4.1.Sistema Pensilvânico ou Celular

Surgiu na Filadélfia, em 1790, através das ideias de Guilhermo Pennn, um

sistema de reclusão com influência dos monastérios católicos, o qual dispunha que:

“Com humanidade devem-se prevenir os sofrimentos inúteis... e devem-se descobrir e sugerir formas de castigo que possam – em vez de perpetuar o vício – ser instrumentos para conduzir nossos irmãos do erro à virtude e à felicidade” (BITENCOURT, 2004, p. 60).

O sistema pensilvânico determinava o isolamento total e absoluto, sem

trabalho e sem visita ao preso, o chamado solitary confinement. O preso tinha

como única atividade a leitura da Bíblia. Neste isolamento, sem sofrer qualquer tipo

de castigo físico, acreditava-se que o preso, por sua própria consciência, iria

provocar sua punição.

Tratava-se de um sistema de extremamente rigoroso, o qual impedia

qualquer ressocialização do apenado.

“Os resultados do isolamento foram desastrosos. (...) o isolamento se convertia na pior tortura, com efeitos mais dolorosos que os que o castigo físico podia produzir, sem que seus danos fossem evidentes e sem que aparecessem no corpo do condenado.(...)A prisão celular é desumana porque elimina ou atrofia o instinto social, já fortemente atrofiado nos criminosos e porque torna inevitável entre os presos a loucura ou a extenuação (por onanismo, por insuficiência de movimento, de ar, atc.)... A Psiquiatria tem notado, igualmente, uma forma especial de alienação que chama loucura das prisões. O sistema celular não pode servir à reparação dos condenados corrigíveis (nos casos de prisão temporária), precisamente porque debilita, em vez de fortalecer o sentido moral e social do condenado e, também, porque não se corrige o meio social é inútil prodigalizar cuidados aos presos que, assim que saem de sua prisão, devem encontrar novamente as mesmas condições que determinaram seu delito e que uma previsão social eficaz não eliminou”. (BITENCOURT, 2004, p. 64-65).

4.2. Sistema Auburniano ou Silent System

Contrário ao sistema da Filadélfia, em 1821, surgiu o modelo Auburniano,

em Nova York. Este sistema também determinava o silêncio absoluto, pois mesmo 14

os detentos vivendo em comunidade, só poderiam se comunicar com os guardas,

em voz baixa, e com a autorização destes. O trabalho era comum e o isolamento

era feito no período da noite.

Vigia, assim, o regime de comunidade durante o período diurno e o

isolamento e confinamento durante o período noturno. Este sistema proibia a

prática de exercícios físicos, de visitas e de lazer, de forma que a ressocialização

do preso não era importante.

“No sistema auburniano não se admitem o misticismo e o otimismo que inspiraram o filadélfico. O sistema auburniano não tinha uma orientação definida para a reforma do delinquente, predominando a preocupação de conseguir a obediência do recluso, a manutenção da segurança no centro penal e a finalidade utilitária consistente na exploração da mão-de-obra carcerária.(...) No regime auburniano, por influência do militarismo, chega-se a regulamentar aspectos intranscendentes da vida carcerária. Essa regulamentação detalhada da vida do recluso propicia uma atmosfera monótona e deprimente. Os reclusos não podiam caminhar, a não ser em ordem-unida ou fila indiana, olhando sempre as costas de quem ia à frente, com a cabeça ligeiramente inclinada para a direita e com os pés acorrentados, movimentando-se de forma uníssona. Em relação à vida diária, o quadro é desalentador (...). Todas as atividades dos reclusos realizavam-se numa atmosfera regulamentar sufocante e monótona.” (BITENCOURT, 2004, p. 71).

Assim, desnecessário dizer que o sistema auburniano não promovia

qualquer melhora na ressocialização do preso, eis que visava somente a

manutenção da disciplina do encarcerado e aproveitar sua mão-de-obra.

4.3.Sistema Progressivo

Em 1846, surgiu na Inglaterra o sistema progressivo inglês. Tal sistema foi

criado pelo capitão Alexander Maconochie. De acordo com ele, a duração da pena

dependia não apenas da sentença condenatória, mas também da boa conduta do

apenado, de seu trabalho e da gravidade do delito. Baseava-se na distribuição de

vales aos condenados. O condenado recebia marcas (por isso mark system) ou

vales quando seu comportamento era positivo e os perdia quando não se

comportava bem.15

“A essência desse regime consiste em distribuir o tempo de duração da condenação em períodos, ampliando-se em cada um os privilégios que o recluso pode desfrutar de acordo com sua boa conduta e o aproveitamento demonstrado do tratamento reformador. Outro aspecto importante é o fato de possibilitar ao recluso reincorporar-se à sociedade antes do término da condenação.“ (BITENCOURT, 2004, p. 83).

Tal sistema compunha-se de três fases: na primeira o recluso ficava em

isolamento celular dia e noite. Era o chamado período de provas, tinha a finalidade

de fazer o apenado refletir sobre seu delito (BITENCOURT, 2004, p. 85). Na

segunda fase o apenado era enviado às chamadas public workhouses e lá ficava

sob o regime do trabalho comum, não podendo se comunicar durante o dia e ficava

isolado durante a noite. Na terceira e última etapa o preso obtinha a liberdade

limitada, uma vez que a recebia com restrições, às quais devia obedecer; tinha

vigência determinada. Passado esse período sem nada que determinasse sua

revogação, o condenado obtinha sua liberdade de forma definitiva (BITENCOURT,

2004, p. 85).

O sistema progressivo inglês também foi adotado na Irlanda, em 1853,

sendo-lhe acrescentado mais uma etapa: a preparação à vida livre. Nesta etapa, o

preso passava para prisões intermediárias, nas quais o regime de segurança era

mais brando, sem a utilização de uniforme, permissão para conversar, saídas

limitadas e trabalho externo. Desta forma, preparava-se o apenado para o seu

retorno à sociedade. Foi este o sistema, com a exclusão dos vales, que foi adotado

pelo Código Penal Brasileiro.

5. A INSTITUIÇÃO TOTAL OU O ESTABELECIMENTO SOCIAL TOTAL

A maioria dos indivíduos de qualquer sociedade passa, todos os dias, pelos

mais diversos lugares (escolas, escritórios, academias, clubes, restaurantes,

museus, etc), sendo que cada local conquista parte do tempo e do interesse dos

seus participantes. Assim, todo lugar no qual indivíduos adentram e ali dispendem

seu tempo e energia interagindo uns com os outros pode ser classificado como

uma instituição social ou estabelecimento social. Seguindo tal raciocínio, é inegável

que alguns estabelecimentos sociais sejam mais “fechados” do que outros (o local 16

de trabalho é muito mais fechado do que um museu, por exemplo), entretanto,

existem estabelecimentos que possuem um “fechamento” total.

“Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída de que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos.(...)As instituições totais de nossa sociedade podem ser, grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos. Em primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; (...) Em segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional; (...) Um terceiro tipo de instituição total é organizado para proteger a comunidades contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quarteis, navios, escolas internas (...) Finalmente, há os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos (...)” (GOFFMAN, 1961, p. 16-17).

Dessa forma, uma característica básica de uma instituição total é que ela

promove uma ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da

vida (GOFFMAN, 1961, p. 17). Tais esferas são: dormir, brincar e trabalhar, sendo

que os indivíduos tendem a realiza-las em locais diferentes. O que acontece numa

instituição total é que todos os aspectos da vida são realizados em um mesmo

local, em conjunto com um grupo normalmente grande de outras pessoas que são

obrigadas a fazer as mesmas coisas da mesma forma num mesmo horário de

forma sequencial num plano racional único, supostamente planejado para atender

aos objetivos oficiais da instituição (GOFFMAN, 1961, p. 18). Tal ruptura se dá

através do processo denominado institucionalização, onde o indivíduo que adentra

na instituição total é despido de sua individualidade (“mortificação do eu”) e passa a

ser regido por normas regulamentares aplicadas a todos os que ali se encontram.

Importante salientar que outras instituições que não totais podem ter tais

características, v.g., uma família de camponeses pode comer e trabalhar em um

mesmo local, mas não o fazem obrigadas e nem com um imenso grupo de

desconhecidos.

17

Outra característica de uma instituição total é que ela controla muitas

necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de

pessoas (GOFFMAN, 1961, p. 18). Tal característica faz com que a vigilância seja

uma constante para que as pessoas ali submetidas façam o que foi claramente

indicado como exigido, sob condições em que a infração de uma pessoa tende a

salientar-se diante da obediência visível e constante examinada dos outros

(GOFFMAN, 1961, p. 18). Tal controle é exercido por uma equipe dirigente sobre o

grupo dos internados.

Também se caracteriza uma instituição total é sua incompatibilidade com a

família. Diz Goffman que:

“A vida familial é às vezes contrastada com a vida solitária, mas, na realidade, um contraste mais adequado poderia ser feito com a vida em grupo, pois aqueles que comem e dormem no trabalho, com um grupo de companheiros de serviço, dificilmente podem manter uma existência doméstica significativa.”(GOFFMAN, 1961, p. 22).

Diante do exposto, temos que uma instituição total pode ser classificada

como:

“(...) um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal (...). Em nossa sociedade, são as estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu.” (GOFFMAN, 1961, p. 22).

São características da instituição total:

“1 – Todos os aspectos da vida desenvolvem-se no mesmo local e sob o comando de uma única autoridade.2 – Todas as atividades diárias são realizadas na companhia imediata de outras pessoas, a quem se dispensa o mesmo tratamento e de quem se exige que façam juntas as mesmas coisas.3 – Todas as atividades diárias encontram-se estritamente programadas, de maneira que a realização de uma conduz diretamente à realização de outra, impondo uma sequência rotineira de atividades baseadas em normas formais explícitas e em um corpo de funcionários.4 – As diversas atividades obrigatórias encontram-se integradas em um só plano racional, cujos propósitos são conseguir os objetivos próprios da instituição” (BITENCOURT, 2004, p. 165).

18

6. A PENITENCIÁRIA COMO UMA INSTITUIÇÃO TOTAL

Feitas as considerações históricas sobre a pena de prisão, bem como dos

sistemas penitenciários e o conceito de instituição total, resta agora identificar suas

características que a credenciam como tal.

A penitenciária é o local para onde são remetidos aqueles indivíduos que já

processados e julgados receberam uma sentença condenatória que irá os privar de

sua liberdade, seja integralmente (regime fechado), seja parcialmente (regime

semiaberto). Já de plano vale observar que o conceito de instituição total só se

aplica à prisão que acolhe indivíduos cuja sentença lhe fixou o regime fechado para

19

cumprimento da pena privativa de liberdade. Pode-se dizer, portanto, que a

instituição total é um conceito e não algo físico. É a ideia de instituição total que se

apodera de determinada construção e lhe credencia a ser assim classificada.

Assim, qualquer construção pode ser considerada uma instituição total plenamente

ou parcialmente. O exemplo aqui é de grande utilidade: um determinado quartel

constitui-se de diversas construções tais como alojamentos, depósitos, guaritas,

etc. São as mais diversas pessoas que ali vivem (soldados, oficiais, médicos,

psicólogos, professores), contudo, algumas delas permanecem ali vinte e quatro

horas por dia sete dias por semana, sendo-lhes vedada a saída, contato com o

mundo externo (família, amigos, etc), estando as mesmas sobre uma rígida

disciplina, convivendo e realizando atividades sempre em grupo estando ausente

qualquer parcela de individualidade. Tais pessoas vivem em uma instituição total,

sendo certo que para outras pessoas aquele mesmo local não lhes veda a saída e

nem as obriga a conviverem em grupos o tempo todo. Um bom exemplo disso é a

Legião Francesa, que obriga os legionários recém-ingressados a permanecerem

intramuros por quatro anos.

No caso da penitenciária, para que o indivíduo nela ingresse primeiro deve

haver a prolação de uma sentença que o condene pelo cometimento de um crime

cuja pena privativa de liberdade se inicie no regime fechado (art. 33, §2º, “a”,

Código Penal). Diz Goffman que:

“É característico dos internados que cheguem à instituição com uma “cultura aparente” derivada de um “mundo da família” – uma forma de vida e um conjunto de atividades aceitas sem discussão até o momento de admissão na instituição. (...). Qualquer que seja a estabilidade da organização pessoal do novato era parte de um esquema mais amplo, encaixando em seu ambiente civil – um conjunto de experiência que confirmava uma concepção tolerável do eu e permitia um conjunto de formas de defesa, exercidas de acordo com sua vontade, para enfrentar conflitos, dúvidas e fracassos.” (GOFFMAN, 1961, p. 23).

Sendo assim, no momento em que o condenado adentra na penitenciária o

seu vínculo com o passado é desfeito, é feita uma ruptura com as barreiras das

esferas da vida (Cap. V).

“O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por

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tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. (...).A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu. Na vida civil, a sequência de horários dos papeis do indivíduo, tanto no ciclo vital quanto nas repetidas rotinas diárias, assegura que um papel que desempenhe não impeça sua realização e suas ligações em outro. Nas instituições totais, ao contrário, a participação automaticamente perturba a sequência de papeis, pois a separação entre o internado e o mundo mais amplo dura o tempo todo e pode continuar por vários anos.” (GOFFMAN, 1961, p. 24).

Tal fato é inquestionável no caso da penitenciária. Uma vez ali dentro, o

condenado é despido de sua individualidade e passa a ser mais um membro do

grupo dos internos, passa por um “processo de admissão” (tirar fotografia, pesar,

tirar impressões digitais, atribuir números, despir, dar banho, cortar os cabelos e

fazer a barba, distribuir roupas da instituição, dar instruções e designar um local

para ser alojado).

Sobre tal processo, diz Goffman:

“(...) ao ser ‘enquadrado’, o novato admite ser conformado e codificado num objeto que pode ser colocado na máquina administrativa do estabelecimento, modelado suavemente pelas operações de rotina.(...) ao ser admitido numa instituição total, é muito provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais mantêm, o que provoca desfiguração pessoal. Roupas, pentes, agulha e linha, cosméticos, toalhas, sabão, aparelho de barba, recursos de banho – tudo isso pode ser tirado dele ou a ele negado, embora alguns possam ser guardados em armários inacessíveis, para serem devolvidos se e quando sair.” (GOFFMAN, 1961, p. 26).

Além do rompimento com o seu passado através do processo de

institucionalização, o indivíduo fica sujeito à chamada “contaminação interpessoal”,

que consiste em expô-lo a todos os demais indivíduos que ali se encontram. Assim,

o condenado passa a conviver com as mais diferentes pessoas durante vinte e

quatro horas do seu dia, acorda e dorme ao lado de indivíduos que não lhe são

comuns sendo-lhe impossibilitado qualquer momento pessoal.

Por fim, a penitenciária como instituição total obriga ao interno a renunciar à

sua vontade. Tal fato é extremamente relevante, pois tal renúncia leva à

ineficiência pessoal do indivíduo o qual agora está submetido às regras

burocráticas que se aplicam a todos os que ali se encontram de forma indistinta

(Goffman denomina tal processo de “mortificação do eu”).

21

Feitas tais considerações, não é necessário um grande esforço mental para

se afirmar que a pena privativa de liberdade em regime fechado atinge muito mais

do que a liberdade do condenado.

“A segregação de uma pessoa do seu meio social ocasiona uma desadaptação tão profunda que resulta difícil conseguir a reinserção social do delinquente, especialmente no caso de pena superior a dois anos. O isolamento sofrido, bem como a chantagem que poderiam fazer os antigos companheiros de cela, podem ser fatores decisivos na definitiva incorporação ao mundo criminal.(...)O isolamento da pessoa, excluindo-a da vida social normal – mesmo que seja internada em uma ‘jaula de ouro’ -, é um dos efeitos mais graves da pena privativa de liberdade, sendo em muitos casos irreversível. É impossível pretender que a pena privativa de liberdade ressocialize por meio da exclusão e do isolamento.” (BITENCOURT, 2004, p. 159-160).

Em síntese, o recluso, no momento em que adentra na penitenciária, sofre

um processo de desculturalização que consiste em perder hábitos que se exigem

na sociedade em geral e adquirir outros que não se usam na mesma – é o que

Cezar Roberto Bitencourt chama de “prisionalização”.

“As condições peculiares de vida a que os reclusos são submetidos estimulam o surgimento de um sentimento que se poderia chamar de consciência coletiva, cujo conteúdo se define, basicamente, por valores que contradizem os que a maioria considera legítimos.(...)Não há como fugir do sistema. O recluso encontra-se não só fisicamente encerrado, impedido de sair, como também se encontra preso a um contexto de comportamentos e usos sociais dos quais também não pode fugir.(...)Quanto mais o apenado for privado das vantagens da vida em liberdade, tanto maior será o efeito do sistema social carcerário. É impossível admitir a possibilidade de ressocialização do recluso, com a existência de um subsistema social que contradiz totalmente os propósitos ressocializadores.” (BITENCOURT, 2004, p. 169-171).

Assim, o preso adapta-se às formas de vida impostas no estabelecidas na

penitenciária porque não tem alternativa. “Adota” uma nova vida composta por

valores sociais pouco aproveitáveis na sociedade livre.

“(...) com a aplicação da pena há o isolamento, a estigmatização e a submissão ao inútil, profundo e desumano sofrimento da prisão daqueles que, selecionados, preferencial e necessariamente, entre os membros das classes subalternizadas, vão cumprir o papel de criminosos. Como consequência tais pessoas se tornam mais distantes e, portanto, mais desadaptadas ao convívio social, criando então uma verdadeira aptidão para cometimento de novos delitos, pois passam elas próprias a se verem

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como criminosos. Logo a pena de prisão, sob esse enfoque, é um poderoso realimentador da criminalidade.” (GUIMARÃES, 2008)

7. A OBRA RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS E SUA

CRÍTICA À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM UMA INSTITUIÇÃO TOTAL

Dostoiévski inicia sua obra descrevendo o presídio no qual se encontra a

personagem principal, bem como descreve um pouco da sua rotina:

“O nosso presídio estava situado numa escarpa, encravado em meio a uma fortaleza. Mesmo forçando o olhar por entre as brechas da paliçada, pouco se oferecia à nossa visão: um trecho mínimo de céu, um barranco íngreme cheio de mato, dia e noite uma sentinela indo e vindo, sem parar. E eu pensava, desalentado, que anos e anos se passariam e, tal como agora, ficaria espiando pela fresta, não vendo nada mais que a mesma muralha, o mesmo barranco, a mesma sentinela e apenas um trechinho do céu; não o céu que cobre o presídio, mas sim aquele ao fundo distante, livre. Imagine um vasto espaço de duzentos passos de comprimento e cento e cinquenta de largura, quase com a forma de um hexágono. Contorne-o com uma paliçada de troncos altos enterrados profundamente na terra, fortemente interligados, encimados com lanças pontiagudas, e terá uma ideia da área do presídio. Num dos lados da paliçada, guardado por uma sentinela, há um portão permanentemente trancado, que se abre

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apenas para dar passagem aos detentos que seguem ao trabalho. Por detrás dessa saída, o claro mundo da liberdade. Do lado de cá o nosso mundo, em nada parecido com aquele, que por isso nos parecia uma ilustração de contos de fadas. O nosso era um mundo bem outro, regido por estatutos, disciplinas, horários específicos; uma casa para mortos vivos; uma vida à margem e homens de vivência muito diferente.Ao penetrar nesse recinto, deparamo-nos com algumas construções. Ao longo do grande pátio se estendem duas alas compridas, de madeira, formando um anda único. São os alojamentos. Ali vivem os condenados, distribuídos de acordo com suas categorias. No fundo do corredor, há outro prédio com as mesmas características: trata-se da cozinha, dividida entre dois blocos; atrás, em outro prédio, a despensa, o paiol e o depósito. O meio do pátio de chão batido está vazio, sem nada. É aí onde os detentos, a cada manhã, colocam-se em forma para a chamada e a contagem, ato que se repete ao meio-dia e ao anoitecer, ou quando as sentinelas desconfiam de qualquer anormalidade e resolvem conferir a contagem. Entre tais alas corre um espaço livre.(...)Ao escurecer éramos trancafiados em nossos alojamentos. Tratava-se de um momento penoso, esse, de sair do ar livre e entrar numa sala ampla e baixa, parcamente iluminada com candeias de sebo que tornavam o ar denso, irrespirável. (...). Minha cama era uma espécie de catre, restrito a três tábuas. Apenas nessa sala, cerca de trinta detentos estavam acomodados naqueles catres.(...)Havia em nosso presídio aproximadamente duzentos e cinquenta homens; esse número era quase constante. (...). Eram divididos de acordo com seus crimes e, consequentemente, conforme as penas a que haviam sido condenados.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 17-19).

Logo após traça algumas de suas impressões:

“Eu jamais poderia, por exemplo, imaginar tormento maior do que não poder ficar sozinho um momento, ao menos, nos dez anos da minha sentença. No trabalho, vigiado; no presídio, com a companhia dos outros duzentos condenados; e nunca, nem uma só vez, solidão!(...)(...) todos se sujeitavam à disciplina, às regras e mesmo aos hábitos já forjados na prisão. Todos se submetiam. (...). Uma vez lá dentro, o recém-chegado logo se dava conta de que não encontraria eco ali e logo tratava de abaixar o tom. (...)Os presídios, mesmo os com trabalhos forçados, não conseguem reabilitar o sentenciado; são locais voltados exclusivamente para o castigo, garantindo, em termos teóricos, que o criminoso, encarcerado, não cometa outros atentados à paz social. A prisão e todas as formas de trabalho pesado desenvolvem apenas o desejo pelos prazeres proibidos, bem como uma terrível irresponsabilidade. Estou convencido de que o tão propalado regime de penitenciária oferece resultados falsos, decepcionantes, ilusórios. Esgota a capacidade humana, definha o espírito e, depois, apresenta aquele detento mumificado como um modelo de regeneração.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 20-24).

Tais considerações feitas pelo renomado autor russo ainda durante o século

XIX apontam a prisão como uma instituição total, motivo pelo qual a leitura de

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“Recordações da Casa dos Mortos” é extremamente relevante para se

compreender a aplicação de seu conceito. Mostra como é impossível conscientizar

o condenado a aceitar os valores da sociedade (reinserção social) através da

segregação, vez que, teoricamente, após o cumprimento da pena o mesmo deveria

estar em condições de viver em liberdade sem praticar crimes.

Conforme já exposto, a penitenciária pode ser uma instituição total quando a

pena privativa de liberdade é cumprida em regime fechado. As características de

uma instituição total já foram trabalhadas no Capítulo 6, sendo assim, tais

características serão agora apresentadas em conjunto com trechos da obra.

1 – Todos os aspectos da vida desenvolvem-se no mesmo local e sob o

comando de uma única autoridade.

Tudo se faz nas estruturas da prisão, dormir, comer, trabalhar, tomar banho,

até mesmo a “diversão” se faz ali dentro, sem contato com o mundo exterior. Além

disso, todas as atividades são vigiadas pelo pessoal da segurança, a responsável

pela ordem e estrito cumprimento das regras.

Tal característica é retratada por Dostoiévski da seguinte forma:

“Lembro-me de minha primeira manhã na prisão. Vindo da guarita, o som do tambor nos despertou e, dez minutos depois, o oficial de ronda começou a abrir as portas dos alojamentos, Através da luz mortiça dos candeeiros, viam-se os presos despertarem, tremendo de frio, bocejando, esticando os braços, coçando as faces marcadas a ferro, uns se benzendo, outros já começando a brigar. O ambiente estava extremamente abafado. Tão logo a porta foi aberta, o frio entrou junto com a neblina. Os prisioneiros começaram a se aglomerar em torno dos reservatórios de água, de caneca na mão e, um após outro, molhavam o rosto, bochechavam, gargarejavam.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 32).

“No caminho do presídio para o lugar dos trabalhos forçados, os prisioneiros formavam uma fila dupla, os guardas seguiam na frente e na retaguarda da formação com os fuzis engatilhados. (...). Éramos divididos em grupos e distribuídos pelas diversas áreas previamente designadas.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 38).

“Estava começando a última chamada. Em seguida os alojamentos seriam fechados, cada um com seu próprio cadeado, e os condenados ficariam trancafiados até o próximo amanhecer.A chamada era feita por um oficial de baixa patente e dois soldados. Os detentos formavam em linha no pátio e o oficial passava em revista.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 62).

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Temos com as passagens transcritas acima todo o dia de um prisioneiro,

desde a parte da manhã em que acorda com os demais presos numa cela coletiva,

o trabalho desenvolvido com as mesmas pessoas e sob as mesmas regras todos

os dias até a hora do recolhimento no cárcere. Importante observar que em várias

passagens do livro a personagem principal comenta acerca da falta que lhe faz a

solidão, de que como lhe incomodava estar o tempo todo envolvido por pessoas

desconhecidas que pouco ou nada lhe acrescentavam, a não ser a contínua

desconfiança, o temor e demais habilidades pouco aproveitáveis numa “sociedade

livre”, é a “contaminação interpessoal” descrita por Goffman ou “prisionalização”

referida por Bitencourt (Cap. V).

2 – Todas as atividades diárias são realizadas na companhia imediata

de outras pessoas, a quem se dispensa o mesmo tratamento e de quem se

exige que façam juntas as mesmas coisas.

O condenado que se encontra em uma penitenciária não possui um

momento sequer de intimidade consigo mesmo, tudo o que ele faz, faz em conjunto

com diversos outros detentos. Em uma passagem da obra, Dostoiévski relata como

os presos tomavam banho, atividade extremamente íntima e que normalmente não

é compartilhada com outras pessoas.

“O Natal estava chegando. Entusiasmados, os detentos só pensavam nas solenidades. De certo modo, também fiquei contagiado, aguardando aquela data. Uns quatro dias antes do Natal fomos levados à casa de banhos. No meu tempo, sobretudo nos primeiros anos, era raríssimo os detentos tomarem banho. Imagine-se, então, a alegria com que se prepararam.(...)No balneário, fomos divididos em dois turnos. Enquanto o primeiro tomava banho, o outro esperava no saguão gelado. O lugar do banho era tão pequeno que quase não cabíamos lá, não obstante termos sido divididos em dois grupos.(...)A administração fornece sabão aos presos, uma barra para cada um, mas a barras são minúsculas como uma moeda de dois copeques e finas como a fatia de queijo que servem de sobremesa no jantar das ‘tascas’. (...). Conforme o acordo com o proprietário do balneário, cada detento tinha direito a um balde de madeira com água fervendo, porém, quem quisesse se lavar melhor conseguiria, por meio copeque, mais um balde de água quente, que era passado do saguão para o recinto através de um portão particular.(...)Ao entrarmos através da porta que conduzia ao balneário, pensei que estávamos entrando nas caldeiras do inferno. Imagine-se uma sala com

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doze metros de largura e outros tantos de comprimento onde se encontravam ao menos oitenta pessoas compridas, uma vez que ali estava quase metade do presídio, que em seu total tinha duzentos detentos. Um vapor espesso e sufocante, lama e um aperto tal que praticamente não se conseguia lugar para pôr o pé.(...)Havia gente até mesmo debaixo dos bancos, no menor espaço daquele lugar, todo lotado pelos banhistas e seus respectivos baldes. Os que eram obrigados a ficar de pé seguravam o balde de um lado e se esfregavam com a outra mão livre, água e sujeira escorrendo deles para cima dos que estavam abaixados. Os degraus que davam para as estufas, junto das quais estavam os bancos, estavam igualmente intransponíveis, com detentos esticados. (...). Uns cinquenta banhistas se derretiam nos bancos, juntos à fornalha, de onde saíam jatos que poderiam ser definidos como jatos do inferno. Eles gritavam e grunhiam em meio ao ruído de tantos grilhões batendo no chão. (...). Era uma imundície só. Parecia que todos estavam numa espécie de embriaguez, emitindo gritos e berros. (...). De tempos em tempos um soldado barbudo observava pelo postigo ou pela porta, que ele entreabria com a coronha da arma, para ver se tudo estava mais ou menos sob controle. (...). Com o banho, as costas lanhadas pelas chicotadas se pronunciavam, as cicatrizes parecendo recentíssimas. (...). Em meio à bruma imunda surgiam as cabeças raspadas, costas repletas de lanhos, braços esquálidos, pernas retorcidas. (...). Foi quando pensei: o inferno deve ser parecidíssimo com isto aqui.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 127-135).

Em outras passagens, Dostoiévski descreve como pode ser extremamente

cruel a ausência de privacidade:

“(...). Logo compreendi que o trabalho forçado, a privação da liberdade são coisas horríveis, mas o pior de tudo é ser obrigado a ficar o tempo inteiro com os outros, sem direito a um momento consigo próprio. A vida em comunidade é um ato de escolha, voluntário, ao passo que na prisão é imposta, não estabelece laços, e eu creio que cada prisioneiro sente isso; ainda que inconscientemente, sente isso. E todos nós temos de viver juntos, comer na mesma gamela e dormir no mesmo catre.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 31-32 e 39).

É impossível reincluir alguém, fazer com que a pessoa reflita sobre seus

atos e passe a agregar valores socialmente cultuados quando a mesma se

encontra em um ambiente extremamente insalubre onde nem suas necessidades

mais básicas são resguardadas. O encarcerado debate-se diuturnamente para se

manter vivo, não sendo possível exigir dele comportamentos socialmente

desejáveis em um local onde tais comportamentos sequer existem.

No caso das penitenciárias brasileiras, é inquestionável que suas condições

contribuem para o aumento do estresse, medo e desconfiança dos reclusos, tipos

de comportamento adaptativos do indivíduo ao meio em que se encontra, que

acabam por condicioná-lo de tal forma que mesmo após sua saída da prisão

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dificilmente serão esquecidos. De fato, o modo em que se encontra o sistema

penitenciário brasileiro impossibilita a viabilização da dignidade humana e a

recuperação de quem quer que seja.

3 – Todas as atividades diárias encontram-se estritamente

programadas, de maneira que a realização de uma conduz diretamente à

realização de outra, impondo uma sequência rotineira de atividades baseadas

em normas formais explícitas e em um corpo de funcionários.

“Os trabalhos forçados eram compulsórios, não havia apelação (...). Durante o longo verão, as tarefas preenchiam o dia inteiro; as noites pareciam curtas para o corpo se recompor (...)” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 26).

“Minha primeira impressão foi insuportável; contudo, e isso não deixa de ser bastante curioso, a rotina da vida me pareceu muito mais definida do que aquela que eu havia imaginado quando estava a caminho.(...).” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 30).

Lamentável é a passagem em que Dostoiévski descreve como um

condenado abusa da bebia como forma de se “livrar” de uma rotina tão sufocante:

“(...) O pobre diabo dedicado vem há muito sonhando com aquela hora. Sonhando, dormindo, mas também em meio ao trabalho, é por meio de desse encantamento que consegue suportar as agruras. O dia nasce no leste, se dinheiro está a salvo; não o furtaram, nem o confiscaram: vai agora intacto para as mãos do taberneiro. Este lhe dá a vodca mais pura possível, diluída (em água) apenas duas vezes. Mas tão logo o conteúdo da garrafa baixa seu nível, basta enchê-la com mais água. Um copo de vodca acaba custando cinco vezes mais caro do que na taberna. Como está misturada com água, pode-se imaginar o quanto ele terá de tomar para conseguir ficar bêbado. Mas, devido à sua perda de hábito e prolongada abstinência, o prisioneiro se embriaga muito rapidamente e continua a beber até esgotar o último centavo. É então que o taberneiro veste as roupas do agiota. Para continuar bebendo, o festeiro empenha todas as suas coisas, transformando tudo em vodca. Já quase nu, acaba por desfalecer e é então levado para o seu catre. No dia seguinte, sentindo um gosto estranho na boca, pede em vão mais um golo para se erguer. Como não consegue, segue assim mesmo, meio torto para o trabalho. Ficará absorto por alguns meses, pensando no dia feliz passado... e futuro. Reanima-se com a esperança desse dia futuro. Tardará, mas um dia chegará.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 53-54).

A “prisionalização” faz com que o indivíduo dispa-se de suas características

pessoais para que então ele possa fazer parte da “massa” carcerária. O regime

penitenciário possui diversas regras e uma rotina de vida que tornam a vida

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intramuros uma existência neutra. A pessoa não tem um tempo para si o que

compromete seriamente o processo de reinserção. Não que a rotina seja algo

prejudicial, contudo, ela deve reforçar valores aceitáveis e permitir o

desenvolvimento pessoal e interpessoal, o que não acontece na rotina da prisão,

que existe somente para controlar os que nela se encontram.

4 – As diversas atividades obrigatórias encontram-se integradas em um

só plano racional, cujos propósitos são conseguir os objetivos próprios da

instituição.

“Ocorreu-me certa vez que, para se aniquilar um ser humano livre, castiga-lo com a mais assustadora das penas – mesmo que ele fosse um rematado facínora - , bastaria que se desse a ele um trabalho o mais absurdo e inútil possível. Por mais duros que sejam os trabalhos forçados, agora, pelo menos beneficiam alguém, têm um fim utilitário. O prisioneiro faz tijolos, plantas, alicerces, levanta paredes; nisso ele se aplica, há um plano e tarefas a cumprir. (...). Mas, em vez disso, se lhe ordenassem levar água de um depósito para outro até enchê-lo, depois esvaziá-lo, sendo obrigado a encher o que tinha acabado de vazar; ou fosse buscar e levar terra de um canto para outro, creio que tal humilhação, depois de alguns dias, o levaria a enforcar-se ou então o conduziria a cometer crimes, ou tentar fugir, mesmo com o risco de morrer. Esse tipo de castigo simplesmente se transformaria numa espécie de tortura e vingança, não servindo a nenhum propósito racional.” (DOSTOIÉVSKI, 2006, p. 30-31).

A passagem descrita acima reforça a ideia de como a prisão aniquila o indivíduo

que nela se encontra. É, novamente, a vida neutra da prisão, a “rotina costumeira

de textura uniforme” imposta pelo regime carcerário onde a instituição não busca

reinserir o indivíduo na sociedade, mas apenas segrega-lo da sociedade livre e

exauri-lo de tal forma que não venha a causar problemas como rebeliões e motins.

No Brasil, a Lei de Execuções Penais (LEP), diz que o preso deverá se sujeitar ao

trabalho ou ao estudo durante o dia e descansar durante a noite. Na verdade,

sabe-se que o que há nas instituições penais, em sua maior parte, é tempo ocioso,

não há atividade saudável, o que dificulta o trabalho de reintegração dos reclusos.

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8. CONCLUSÃO

Ante todo exposto, conclui-se que o atual sistema carcerário consegue

cumprir muito bem apenas uma de suas funções, qual seja, afastar o indivíduo do

convívio com a sociedade livre, já que a ressocialização encontra-se, e muito,

afastada de seu ideal.

Dostoiévski consegue muito bem resumir a penitenciária:

Os presídios, mesmo os com trabalhos forçados, não conseguem reabilitar

o sentenciado; são locais voltados exclusivamente para o castigo,

garantindo, em termos teóricos, que o criminoso, encarcerados, não

cometa outros atentados à paz social. A prisão e todas as formas de

trabalho pesado desenvolvem apenas o desejo pelos prazeres proibidos,

bem como uma terrível irresponsabilidade. Estou convencido de que o tão

propalado regime de penitenciária oferece resultados falsos,

decepcionantes, ilusórios. Esgota a capacidade humana, definha o espírito

e, depois, apresenta aquele detento mumificado como um modelo de

regeneração”. (DOSTOIÉVSKI, 2006, Pg. 24).

No presídio o indivíduo absorve a cultura carcerária, sendo que a ele é

reservado dois tipos de identidade: a institucional e a de delinquente, certo que as

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duas o excluem do meio social. A prisão não ressocializa porque isso é

simplesmente inviável através do atual modelo, ainda mais quando se observa uma

maior preocupação com a segurança e controle dos encarcerados.

A ordem informal da prisão, somada às ordens formais da administração,

desabilitam/descreditam o indivíduo a adentrar na sociedade livre e o prendem a

uma identidade carcerária que muitas vezes nunca o abandonará, motivo pelo qual

mudar a forma como se pensa a punição de um crime ajudará certamente a

construir uma sociedade mais justa e equilibrada. Deve-se buscar permitir ao preso

fazer suas escolhas e assumir responsabilidades, mas ele deve dispor de meios

para tanto, pois assim desenvolverá uma relação consigo mesmo, estabelecer uma

identidade e, por fim, estabelecer laços com a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. 3ª. Ed. São Paulo. Saraiva. 2004.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Recordações da Casa dos Mortos. 1ª ed. São Paulo/SP. Nova Alexandria. 2006.

FRANK, Joseph. Dostoiévski: Os efeitos da Libertação - 1860 a 1865. 1ª ed. São Paulo/SP. EdUSP. 2002.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 3ª ed. São Paulo/SP. Perspectiva. 1974.

GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Das (dis)funções da pena privativa de liberdade no atual sistema repressivo penal brasileiro. Disponível em http://www.lfg.com.br. 03 de novembro de 2008 – acesso em 07/09/12 às19:47.

THOMPSON, Augusto F. G. A questão penitenciária. 1ª Ed. Petrópolis/RJ. Vozes.

1976.

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