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A nova estética e seu papel na filosofia

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A reconfiguração da Estética apoiada pelo avanço das ciências cognitivas apresenta um novo programa reflexivo, apto

a auxiliar a reflexão filosófica em sua readaptação ao mundo semovente da realidade, após a morte da Metafísica

o longo da História, muitas atividades perderam vali-dade teórica e prática, tornando-se com o tempo um registro de curiosidades,

como é o caso da Alquimia, da Flogísti-ca ou do Mesmerismo. Estaria a Estética também destinada a uma triste e melan-cólica nota de rodapé na História da Arte?

A encruzilhada que hoje se abre diante da Estética tornou-se decisiva. Ou a Esté-tica abandona a tradição que compartilha com os fundamentos idealistas da Filo-so� a, para se transformar em uma re� e-xão sobre as experiências estéticas, ou se mantém como auxiliar teórica da re� e-xão � losó� ca, para justi� car o império da razão sobre os fatos artísticos.

Se, para a Arte contemporânea, o belo e o sublime da velha Estética perdem importância em favor da produção de experiências afetivas, a nova Estéti-ca também encontrou outros interes-ses epistemológicos que vão oferecer ao

pensamento organizado importantes alternativas re� exivas para a compreensão das transformações cognitivas, culturais e sociais por que passamos.

PHYSIS E NOMOS ENTRE OS PRÉ-SOCRÁTICOS

A principal atividade a que se dedica-vam os so� stas e � lósofos do século V a.C. consistia em conhecer as diferenças entre os conceitos de nomos (convenções cultu-rais e juízo humano) e physis (mundo físico e natural). Os limites dessa divisão não os preocupavam apenas por seu cará-ter especulativo, mas porque essa oposi-ção emergia sempre nas discussões mais importantes acerca da administração da cidade (polis): questões tais como a natu-reza da divisão social entre os habitantes da polis ou a arbitrariedade da convenção política, passível de ser alterada; questões sobre o comportamento humano e sua trágica fortuna diante do que seria natu-ral (nascimento, morte, doença, prazer),

A nova ESTÉTICA e seu papel

na FILOSOFIA

AMarcos H. Camargo é mestre em Comunicação e Linguagens pela UTP, doutor em Artes Visuais pela Unicamp. Pós-doutor pela Escola de Comunicação da UFRJ. Professor do Campus de Curitiba II da Unespar, onde leciona Filosofia e Semiótica. Autor do livro Cognição estética: o complexo de Dante

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e o que poderiam almejar trans-formar em suas vidas, diante da convencionalidade dos costumes.

O que pareceu aos so� stas uma traição, foi o desvio cometi-do por certos � lósofos, a começar por Sócrates, ao abolir as diferen-ças características entre physis e nomos, para eleger o nomos como modelo padrão da physis. O socrá-tico-platonismo passou a defender uma origem metafísica e eterna para a natureza e as convenções humanas, impondo a crença em uma ciência e moral transcenden-tais, constituintes de uma república ideal destinada a gerir os indivídu-os e a própria natureza, segundo os critérios da verdade racional.

“[A] physis é propriamente ‘natureza’; aquilo que desabrocha,

de seria acessada pelo intelecto e sua lógica transformaria o mundo material e as convenções humanas à imagem e semelhança das ideias eternas – o nascimento da utopia.

Quando Platão nega a reali-dade da physis, investe toda sua ref lexão em favor do nomos, impondo uma hierarquia arbi-trária, submetendo a experiência ao conceito, opondo o sensível ao inteligível, separando este mundo onde existem corpos e coisas de outro mundo ideal onde se encontram as verdades universais, acessíveis apenas pela racionalidade.

“Uma boa maneira de compre-ender em que consiste a dualidade manifesta da Filoso� a de Platão é o célebre texto da República,

cresce e se expande fora dos limi-tes da determinação exercida pelo nomos (a regra ética ou cultural), pela technè (o modo de fazer) ou pelo logos (a razão, a linguagem) dos homens. (...) A ideia de physis é, assim, a de um ‘além’ das repre-sentações ou das determinações puramente humanas”.1

Desde Sócrates e Platão, a busca pela verdade passa a ser entendida como a construção de um modelo metafísico (nomos) ao qual o mundo concreto (physis) deveria se adequar, reverberando no próprio território da convenção humana. Entendida como re� exo de leis universais provenientes de um mundo mais perfeito, a verda-

1 SODRÉ, 1994, pág. 61

A Estética ainda referenciada pela reflexão filosófica se encontra praticamente sem função, pois não pode mais dizer o que é a Arte

DESDE SÓCRATES E PLATÃO, A BUSCA PELA VERDADE PASSA A SER ENTENDIDA COMO A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO METAFÍSICO AO QUAL O MUNDO CONCRETO DEVERIA SE ADEQUAR

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Platão defendia que o conhecimento seria uma recordação das verdades eternas que a alma contemplara

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conhecido como a ‘passagem da linha’. O que esse texto eviden-cia é que, para Platão, não pode haver verdadeiro conhecimento do sensível. O que corresponde ao domínio do sensível é apenas opinião – conjectura e crença –, e não saber, conhecimento, ciên-cia. Só é possível um verdadeiro conhecimento do inteligível, das essências, das ideias”.2 Por isso, Platão funda a razão ocidental e o nosso modo de pensar, segundo o que seu discípulo Aristóteles irá desenvolver: os princípios lógicos da identidade, não contradição, terceiro excluído e causalidade.

A in� uência platônica no pensa-mento ocidental reforçou a noção de que neste mundo empírico em que vivemos não há saber nem conhe-cimento verdadeiro: todas as coisas, inclusive nossos corpos materiais, não merecem qualquer atenção, nem dispõem de qualquer � deli-dade. “Este mundo aqui, que em si mesmo não tem nenhum sentido, recebe a sua signi� cação e o seu ser de outro mundo que o duplica, ou melhor, do qual este mundo aqui é apenas um sucedâneo enganador. (...) Talvez esta impressão de ter sido ‘duplicado’ constitua não apenas a estrutura da metafísica, mas ainda a ilusão � losó� ca por excelência”.3

Quando Platão hierarquizou a relação entre este mundo e seu duplo, subordinou moralmente o primeiro ao segundo. E a bem-aven-turança platônica de� niu a verdade que, por sua vez, representa a beleza ideal, pois a ninguém é dado o direi-to de desgostar da razão ou do bem. Com isso, dois milênios de pensa-mento ocidental se convencem da 2 MACHADO, 2009, pág. 413 ROSSET, 2008, págs. 57-58

perversão das pulsões emocionais, da feiura das necessidades � siológi-cas e da falsidade da percepção dos sentidos; como também aprendem a amar a universalidade da ideia, a “realidade” suprassensível e a bele-za da intelecção – condenando a Arte (Estética) ao reino sombrio das falsas ilusões.

Se os mundos metafísico e físico são incompatíveis; se a verdade e o bem provêm do mundo inteligível e se deterio-ram como falsidade no mundo transitório, a purificação do pensamento e do sentimento se torna uma condição imprescin-dível, já que qualquer elemento de afetividade ou subjetividade pode manchar uma teoria, uma definição, comprometendo a verdade, o bem e a beleza de uma ideia eterna. Assim, a Filosofia platônica alimentou o ódio à impureza, o preconceito contra a mestiçagem, a miscelânea, o hibridismo, o ecletismo, a hete-rogeneidade e a diversidade, em toda sua manifestação.

EGIPTICISMO4 DAS FORMAS PLATÔNICAS

Para Platão, o conhecimento está na ideia. Arte só é conheci-mento quando se coloca a serviço da verdade � losó� ca. Desse modo, o � lósofo ateniense convenceu o Ocidente a amar a beleza da ordem cósmica, a sublime estrutura das equações matemáticas, o belo argumento de razão e a harmo-nia das formas ideais e abstratas. Segundo Platão, todo interesse humano deve se dirigir para o invisível, já que tudo o que vemos e sentimos aqui são imagens ilusó-rias de um falso mundo, onde o corpo humano se corrompe, não sem antes desviar nosso pensa-mento da verdade, com seu apelo às necessidades vitais.

“Platão reserva um lugar para a beleza em sua � loso� a: trata-se da beleza das formas ideais, das provas matemáticas e das dedu-ções racionais. O conhecimento é a beleza e o bem, porque ele é conhecimento dessas verdades ideais que compreendem a verda-deira realidade das coisas. Sendo nosso mundo uma mera aparência ou aproximação das formas ideais (nossa justiça, uma cópia esmaeci-da da coisa real; nosso estado, uma pobre réplica do ideal), a arte é tudo que há de pior, pois se a poesia é uma droga performativa, então, a pintura e a escultura são meras cópias de cópias, tentativas de simular o mundo de modo indeci-frável a partir de seu modelo”.5

4 Nietzsche de� ne o “egipticismo” como o ódio próprio dos � lósofos à noção de “devir” (evolução, transformação, diversidade). Tendência à � xidez, à atemporalidade, ao rigor. Faz referência a todo pensamento contrário ao movimento do mundo, como são a metafísica e os idealismos.5 HERWITZ, 2010, pág. 19

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Estaria a Estética destinada a uma melancólica nota de rodapé na História da Arte? Hoje, se abre para a Estética uma encruzilhada decisiva: ou ela reafirma seus antigos vínculos com a Filosofia ou se transforma em uma nova reflexão sobre as experiências estéticas (abolindo os li-mites entre o que é ou não é arte). Por dois milênios, a Filosofia impôs uma hierarquia arbitrária sobrepondo o intelectual (nomos) ao sensível (physis), submetendo a ex-periência ao conceito, opondo o corpo à mente, alimen-tando a discórdia entre dois mundos permanentemente

apartados. A Estética moderna nasceu humanista, no sé-culo XVIII, emprestando à sensibilidade humana mais im-portância na construção do conhecimento, abandonando as crenças racionalistas sobre um suposto vínculo do pen-samento com o mundo das ideias universais. Atualmente, a Filosofia vem admitindo o necessário intercâmbio com a Estética para promover as condições objetivas de for-mação dos conceitos, pois se tornou impossível negar o movimento inconstante do mundo em favor do rigor das teses abstratas.

A Estética na Filosofia

Ao subordinar o mundo físico ao metafísico, Platão visa demonstrar que este mundo em que existimos é cópia bastarda do mundo incorruptível das ideias eternas. Sendo assim, a Arte se encontra entre as atividades mais peri-gosas a que o homem poderia se dedi-car, de vez que ela produz obras que imitam as formas materiais transitó-rias, fazendo cópias de cópias bastar-das (simulacros). Para Platão só há um modo de simular o mundo “real” da ideia, por meio da Arte: produzindo uma Arte que nos aproxime do mundo metafísico e nos auxilie a entendê-lo – esta é a arte da Lógica, cujas ferra-mentas fundamentais são as ciências da Gramática e da Matemática.

Entendidas como as únicas media-doras do pensamento humano entre o mundo ideal e o material, a Gramática e a Matemática nos entregam a fração de razão, com a qual podemos superar, até certo ponto, a vergonhosa encarna-ção humana. Matemática e Gramática proporcionam, portanto, exercícios

mentais que alargam nosso modo inte-ligível de pensar o mundo ideal, rela-cionando-o de maneira verossímil aos simulacros transitórios que habitam esta cópia corrompida em que tempora-riamente nos demoramos.

Para Gilles Deleuze (1925-1995), segundo Roberto Machado, é com Platão que surge a imagem do � lósofo como o ser das ascensões, como aquele que sai da caverna, se eleva e se puri� ca na medida em que se eleva. “Segundo essa orientação, a operação � losó� ca é ascensão, conver-são, movimento de volta ao princípio do alto, que é princípio do Bem e da Verdade, princípio metafísico e epistemológico”.6

A aliança entre a Filoso� a platônica (Metafísica) e a Teologia cristã (Patrística, Escolástica) vai sufocar de� nitivamen-te qualquer re� exão que eventualmente tornasse positiva a experiência estética neste mundo.

“[A] História da Filoso� a é escrita por pessoas que são nitidamente juízes

6 MACHADO, 2009, pág. 34

OS PRESSUPOSTOS canônicos da Estética caducaram diante da velocidade com que os eventos emergem e submergem, impedindo a consolidação de uma norma – a Arte se independeu da velha Estética

A ALIANÇA ENTRE A FILOSOFIA PLATÔNICA E A TEOLOGIA CRISTÃ VAI SUFOCAR QUALQUER REFLEXÃO QUE EVENTUALMENTE TORNASSE POSITIVA A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NESTE MUNDO

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e partes interessadas. A tradição platônica, intensamente retrans-mitida pelo cristianismo, domina o Ocidente há séculos. Tudo o que não entra nessa ordem é minimi-zado, negligenciado, caricaturado, esquecido. Demócrito, como � gu-ra tutelar do materialismo anti-go, é relegado pelos idealistas que podem então fazer crer na onipo-tência de Platão e de seu clero”.7

Assim se passaram os mil anos do medievo europeu, longo período histórico em que a preo-cupação da Filoso� a era oferecer um ordenamento racional às � li-granas da fé cristã, reconhecendo a origem da verdade na revelação divina do cristianismo. Somente com a modernidade, o pensamento ocidental começa a enxergar fres-tas luminosas por trás das pesa-das cortinas que a Metafísica fez encerrar o pensamento � losó� co. O humanismo prospera.

BAUMGARTEN E KANT

Em meados do século XVIII, Alexander Baumgarten (1714-1762) realiza um movimento típi-co da era moderna, com o objetivo de retirar a sensibilidade do domí-nio exclusivo da beleza divina, até então reconhecida como a imagem sensível da razão e da verdade eterna.

“Esse termo (Estética) é adota-do a partir da palavra grega ‘aísthe-sis’, como um termo cunhado por Alexander Gottlieb Baumgarten em seu livro Estética (Aesthetica) (1750). ‘Aísthesis’ traz o signi� -cado de ‘faculdade de percepção pelos sentidos’. Para Baumgarten, a estética era um estudo da sensi-

7 ONFRAY, 2008, pág. 51

bilidade como um tipo específi-co de cognição, a cognição das coisas particulares, em vez de conceitos abstratos”.8

Esse pesquisador alemão pensa a primeira Estética moderna como uma disciplina técnica capaz de produzir conhecimentos “análo-gos aos da razão”, constituídos de percepções, analogias e metáfo-ras, em vez de conceitos. Com o impacto dessa Estética moderna, as aparências artísticas “abando-nam o status de meras ilusões ou signos ‘fracos’ em relação a repre-sentações do intelecto – conside-radas mais nítidas e, portanto, mais con� áveis – para almejar o caráter de manifestações de verda-des e valores essenciais”.9

O “outro” da razão – o analo-gon rationis, de Baumgarten – não pode ser proferido pela lógica linguística ou matemática, porque produz e comunica um pensamento que, semanticamen-te, não apresenta sentido. O erro de René Descartes (1596-1650) – sua excessiva crença na razão 8 HERWITZ, 2010, pág. 299 SUAREZ, 2010, pág. 132

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Além de bifurcar o caminho do sensível e do inteligível, do bem e do mal, da verdade e da falsidade, o dualismo platônico também foi responsável por alimentar o mito da pureza

humana – já vinha sendo exposto por sensualistas modernos, como John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776). A Estética que surge naquele século participa da rejeição dos empiristas britâni-cos ao racionalismo cartesiano, tanto quanto apoia sua ênfase na experiência dos sentidos como a origem de todo conhecimento e o princípio da ciência, a partir da percepção humana. “A sensibili-dade é libertada da negatividade e avaliada como uma fonte básica de con� rmação empírica e, desse modo, de ganho cientí� co”.10

Como um conjunto organi-zado (e a organizar-se) de conhe-cimentos perceptivos, a Estética nasce humanista, na medida em que empresta ao corpo do homem considerável importância na cons-tituição do conhecimento, afas-tando-se das crenças racionalistas acerca de um suposto vínculo do pensamento com o plano trans-cendente das ideias universais. “É precisamente contra tal mode-lo que se constitui a primeira

10 HERWITZ, 2010, pág. 26

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estética, a Aesthetica de Baumgarten. Porque o advento desta disciplina nova, resolutamente moderna, supõe uma retração do ponto de vista divino em proveito do homem...”.11

Porém, até o século XVIII, o predo-mínio do platonismo cristão nas � loso-� as da Arte compelia a um julgamento do gosto pelos critérios idealistas da bele-za, atada à verdade e à razão. À Filoso-� a da Arte cumpria erigir proposições universais que visavam a colocar a Arte a serviço da evocação do sublime. Era sua função insistir em padrões univer-sais de critério do gosto e beleza, espe-cialmente para distinguir e classi� car a arte modelar (erudita), em oposição às artes populares e não ocidentais. Daí a insistência milenar em favor da mimesis como metacódigo da Arte ocidental.

Como teoria hegemônica da Arte ocidental, desde a Antiguidade clássi-ca até a Idade Média e a Era Moderna, a mimesis vigorou praticamente sem oposições � losó� cas, até o século XVIII,

11 FERRY, 2003, pág. 47

quando Immanuel Kant (1724-1804) publica sua terceira crítica (do Juízo de Gosto), alterando o que se entendia por Estética (Arte) até aquele período. Para o � lósofo de Köningsberg, “existe sempre a razão, mas ela é ou pura, ou prática. Dois modos que dão acesso a dois mundos. Mas nem um nem outro são válidos para um terceiro mundo: o da arte, onde as leis da natureza, assim como os preceitos da Razão (ou moral) não podem ser aplicados”.12

NIETZSCHE E DIONISOSeria preciso ultrapassar o século

kantiano, superar a Estética neopla-tônica de G. W. Friedrich Hegel (1770-1831), para ver avançar o pensa-mento estético. Friedrich Nietzsche (1844-1900) “introduz desde logo na estética dois princípios a que dá o nome de dois deuses gregos. Apolo e Dioniso encarnam, com efeito, duas ‘pulsões artísticas da natureza’”.13 Essas pulsões se manifestam na humanidade por meio de estados psicofísicos. A pulsão apolínea conduz à medida, à consciên-cia e à contemplação serena da razão, enquanto que a pulsão dionisíaca conduz a pessoa à embriaguez das sensações e celebra selvaticamente sua reconciliação com a natureza. Enten-de Nietzsche que o progresso da Arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, de modo parecido com a dualidade dos sexos, em lutas contí-nuas e com reconciliações somente periódicas. “A natureza [nietzschiana], 12 CAUQUELIN, 2005, pág. 7113 LACOSTE, 1986, pág. 67

O platonismo, que vai embasar a Teologia cristã logo em seus primórdios,

contribuiu muito para exacerbar o ascetismo e a

aversão ao corpo

O PREDOMÍNIO DO PLATONISMO CRISTÃO NAS FILOSOFIAS DA ARTE COMPELIA A UM JULGAMENTO DO GOSTO PELOS CRITÉRIOS IDEALISTAS DA BELEZA, ATADA À VERDADE E À RAZÃO

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Immanuel Kant percebe que a Estética (Arte) compreende um gênero de conhecimento autônomo

em sua essência, é contradição e dor, porque é poder de criação e de metamorfose”.14

Quando incorpora o selváti-co e o natural nas manifestações de seus eventos, a Estética oito-centista vai progressivamente se afastando da tradição filosófica, gerando uma importante ques-tão: despejada de sua humilde estrebaria que ocupava sob o castelo portentoso da Filoso-fia geral, destituída do poder normalizador da Arte, a Estética ainda teria alguma importância no desenvolvimento do conheci-mento humano?

Com o advento dos meios de comunicação audiovisuais, o século XX apresenta o desa-fio cognitivo da produção, do registro e da comunicação das linguagens imagética, sono-ra e cinética, nos obrigando a pensar sobre o tipo de conhe-cimento produzido por seus textos não verbais, híbridos e polissêmicos. Imagens, sons e movimentos, simultânea ou isoladamente, criam e represen-tam ideias e conceitos, mas eles comunicam muito mais do que isso. Suas formas sensíveis não acionam em nós apenas signifi-cados abstratos, mas produzem também sensações, emoções, estranhamentos e afetos incon-cebíveis. Se a Lógica desenvolve representações do conhecimen-to por meio de signos verbais e matemáticos, poderia a Estética produzir outros conhecimentos, a partir de mensagens audiovi-suais, híbridas, constituídas de afecções e signos não verbais?

14 Idem, 1986, pág. 69

FORMA CONTEMPORÂNEA DA FILOSOFIA

Uma das funções da nova Estética é oferecer à Filoso� a o imprescindível elo com o mundo real, rompido há dois milênios pelo idealismo metafísico da tradição platônico-cartesiana. A Estética contemporânea propor-ciona ao pensamento � losó� co o conhecimento sensorial gerado pelos “sinais estéticos”15 perce-bidos pela afetividade de nosso corpo. O mapa (as representa-ções lógico-semióticas) deve ser constantemente criticado com o auxílio da percepção dos sinto-mas provenientes do território (mundo real), para garantir uma boa interpretação. O ataque dos “sinais estéticos” na direção de nossos sentidos físicos nos permi-te comparar a fração de real que podemos apreender, com o mapa de nossas representações semió-ticas (linguísticas, matemáticas, miméticas, etc.).

15 Para mais informações sobre a origem dos “sinais estéticos” consultar CAMARGO, Marcos H. Cognição estética: o complexo de Dante, Editora Annablume, São Paulo, 2013.

Quem se dedica a melhorar os mapas, como é o caso dos pensa-dores e cientistas, não pode con� ar neles. “Os mapas foram constru-ídos como imagens e guias da realidade, e isso, presumivelmen-te, também ocorreu com a razão. Mas os mapas, como a razão, contêm idealizações. (...) O viajan-te usa o mapa para descobrir seu caminho, mas também o corrige à medida que procede, eliminando velhas idealizações e acrescentan-do novas. Utilizar [apenas] o mapa, não importa o que aconteça, logo o colocará em di� culdades”.16

As sensações produzidas pela percepção humana não são excres-cências � siológicas desprezíveis ou ilusões sensoriais, como ainda pensa o senso comum platônico e cartesiano. “O longo domínio da tradição platônica, fortalecida pelos séculos recentes de cartesia-nismo e de idealismo, cegou-nos para um fato crucial e óbvio para grande parte do pensamento anti-go e não ocidental: como vivemos, pensamos e agimos por meio de nossos corpos, o estudo, o cuidado e o aprimoramento deles deveria estar no fulcro da Filoso� a, sobre-tudo quando se concebe a Filoso� a (como antigamente) como modo distinto de vida, um cuidado críti-co e disciplinado do eu, que envolve autoconhecimento e autocultivo”.17

Hoje padecemos de uma “satu-ração” cognitiva, em função dos excessos cometidos pelo pensa-mento abstrato e transcendental, de modo que uma revolução sensu-alista caracterizada por uma nova Estética abre espaço para a elabo-ração de um pensamento mais 16 FEYERABEND, 2007, pág. 30117 SHUSTERMAN, 2008, pág. 44

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concreto. Com outros conhecimentos (e outros pensamentos) gerados a partir da atuação de linguagens e sistemas simbólicos não verbais, tornou-se dispo-nível toda cognição estética derivada de percepções e experiências sensoriais que constituem vasta soma de conhecimentos e� cientes acerca do mundo.

Quando a Filoso� a se vê como uma re� exão sobre o conhecimento huma-no, precisa deixar de se traduzir apenas por palavras e números. O conhecimen-to humano tem outras faces que não se con� guram por meio da Gramática ou da Matemática. Linguagens como a imagé-tica, musical, cinética, dentre outras, geram informações capazes de trans-mitir e registrar conhecimentos vitais para a sociedade humana. A afetividade do indivíduo em contato com o mundo também é outro recurso cognitivo indis-pensável à busca pelo conhecimento.

A Filoso� a deve se impor o desa� o de também pensar sem palavras, por meio de outros signos e pela experiência de saborear o real. Fazendo isso, a Filoso� a nos brindaria com novos conhecimen-

tos, desenvolvendo pensamentos mais originais e criativos, do que os surrados conceitos abstratos sobre tudo. Segundo Roberto Machado, quando Gilles Deleu-ze diz que o � lósofo deve ser um criador e não apenas um re� exivo, se insurge contra essa tendência e “reivindica para a Filoso-� a a produção de conhecimento ou, mais propriamente, a criação de pensamento, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas cientí� cas ou não”.18

A Filoso� a contemporânea já entendeu que a função do � lósofo não é mais justi� car o real, submeter o mundo ao pensamento, nem criar um novo homem. Agora é preciso inventar conceitos, tal como um artista inven-ta sua obra, de modo a dar ao homem variadas opções de imagem do real, algo novo com que possamos vislumbrar outras facetas das coisas.

Para tanto, é preciso que a Filosofia não se esqueça do papel determinan-te desempenhado pelo verbo. Filoso-far ingenuamente é imaginar que a linguagem não tem papel da formu-lação do pensamento. Ao considerar a inf luência decisiva da linguagem sobre a formação dos conceitos deve-mos reconhecer a prevalência da forma sobre a função, a inf luência do meio de comunicação sobre a mensagem e a dependência da forma simbólica para a leitura da representação.

“A Arte não é mais para ele (Duchamp)19 uma questão de conteúdo (formas, cores,

18 MACHADO, 2009, págs. 12-1319 Marcel Duchamp (1887-1968) pintor, escultor e poeta francês, um dos precursores da arte conceitual, foi o inventor dos ready made.

Apesar de o século XIX ter dado início a uma “materialização” do pensamento filosófico, com nomes como Friedrich Nietzsche, Char-les Darwin, Karl Marx e Sigmund Freud, o idealismo neoplatônico e cartesiano resistiu até meados do século XX, quando, após a Segunda Grande Guerra, cedeu espaço epistemológico para o relativismo e o perspectivismo que agora caracterizam a Filosofia contemporânea.

Bagagem histórica da Filosofia Contemporânea

LINGUAGENS COMO A IMAGÉTICA, MUSICAL, CINÉTICA, DENTRE OUTRAS, GERAM INFORMAÇÕES CAPAZES DE TRANSMITIR E REGISTRAR CONHECIMENTOS VITAIS PARA A SOCIEDADE

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S CAUQUELIN, A. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005._____ . Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005-BFERRY, L. Homo aestheticus: a invenção do gosto na era democrática. Coimbra: Almedina, 2003.FEYERABEND, P. Contra o método. São Paulo: Editora UNESP, 2007.HERWITZ, D. Estética: conceitos-chave em Filosofia. Porto Alegre: Armed, 2010.LACOSTE, J. A Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.MACHADO, R. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.NIETZSCHE, F. A gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1976.ONFRAY, M. Contra-história da Filosofia 1: as sabedorias antigas. São Paulo: Martins Fontes, 2008.ROSSET, C. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008.SODRE, M. Jogos extremos do espírito. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.SHUSTERMAN, R. Consciência corporal. São Paulo: Realizações Editora, 2008.SUAREZ. R. Nietzsche: a arte em o nascimento da tragédia. In: HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a Arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

dos conceitos, visto que se tornou impossível negar o movimento inconstante do mundo para se ater apenas ao rigor das teses abstratas.

A imagem movediça do real embaralha as velhas retinas dos sóbrios pensadores, que rea� rmam sua rejeição ao mundo, meditando sobre essências universais como anteparos marmóreos, brancos e frios, a proteger suas múmias inte-ligíveis do turbilhão da vida. Hoje, a velha especulação já perdeu sua dignidade ritual, “tornou-se ridí-culo o cerimonial e a atitude solene daquele que re� ete; não se poderia mais suportar um sábio da velha escola. Pensamos muito rápido, e a caminho, em plena marcha, em meio a negócios de toda sorte, mesmo quando se trata das coisas mais graves...”.22

22 NIETZSCHE, 1976, pág. 43

visões, interpretações da realidade, maneira ou estilo), mas de continen-te. É assim que Marshall McLuhan20 dirá, cinquenta anos mais tarde: ‘o meio é a mensagem’, apagando a distinção clássica entre mensagem (conteúdo intencional) e canal de comunicação (neutro e objetivo) para estabelecer a unicidade da comunicação através do meio”.21

Quando entendemos que a forma e o conteúdo partilham da mesma importância epistemoló-gica, descemos ao mundo empí-rico das coisas que sensibilizam a percepção, antes de trazer à mente qualquer conceito. Aceitar a in� u-ência da forma sobre o conteúdo é admitir a proeminência do corpo das letras e das coisas, sobre a abstração do pensamento. A Filo-so� a que emerge daí não pode ter a pretensão da universalidade do cogito cartesiano, o espírito absolu-to hegeliano ou o sentido da unida-de platônica, pois a realidade da forma nega ao conteúdo abstrato qualquer vínculo com a eternida-de – as formas simbólicas passam a valer mais por afetar os sentidos do que por abstrair a mente – mais poesia e menos silogismo.

Quando abandonamos as ideias extáticas que � utuam na abóboda metafísica do pensamento � losó� -co, abdicamos do modelo idealis-ta de mundo em favor de um real empírico, transitório, insu� ciente. O pensamento � losó� co vem admitin-do o necessário ingresso dos elemen-tos da Estética contemporânea nas condições objetivas de formação

20 Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) destacado educador, intelectual, � lósofo e teórico da comunicação canadense. Conhecido por vislumbrar a internet quase 30 anos antes de ser inventada.21 CAUQUELIN, 2005-B, pág. 93

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A formulação e elaboração do pensamento não é privilégio apenas da Filosofia: cientistas, artistas, empreendedores, aventureiros são, antes de qualquer coisa, pensadores

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