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A MATÉRIA DOS LIVROS (Mallarmé, Borges, João Cabral) Adalberto Müller (UFF) Resumo Através de uma leitura de alguns textos de Stéphane Mallarmé, Jorge Luís Borges e João Cabral de Melo Neto – que tratam do livro e da biblioteca – procura-se demonstrar que há uma estreita relação entre a materialidade do livro e o conceito de Literatura. Define-se, assim, através da mídia (ou suporte), a relação entre o material e o conceitual, visando esclarecer por que o paradigma hermenêutico, nos estudos literários, parece ter chegado a um certo esgotamento na era das imagens técnicas e das mídias digitais. Uma versão ampliada deste texto foi publicada em Linhas Imaginárias: poesia, mídia, cinema (Ed. Sulina, 2012). Os livros são objetos transcendentes. Caetano Veloso, “Livro” A história da Literatura se confunde com a história do livro impresso. Pode-se justificar essa tese quando se observa a Literatura do ponto de vista de sua autoconsciência, isto é, na medida em que certos autores desenvolvem dentro de suas obras uma reflexão sobre a

A MATÉRIA DOS LIVROS (Mallarmé, Borges, João Cabral)

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A MATÉRIA DOS LIVROS(Mallarmé, Borges, João Cabral)

Adalberto Müller (UFF)

Resumo

Através de uma leitura de alguns textos de StéphaneMallarmé, Jorge Luís Borges e João Cabral de Melo Neto – quetratam do livro e da biblioteca – procura-se demonstrar quehá uma estreita relação entre a materialidade do livro e oconceito de Literatura. Define-se, assim, através da mídia(ou suporte), a relação entre o material e o conceitual,visando esclarecer por que o paradigma hermenêutico, nosestudos literários, parece ter chegado a um certoesgotamento na era das imagens técnicas e das mídiasdigitais. Uma versão ampliada deste texto foi publicada emLinhas Imaginárias: poesia, mídia, cinema (Ed. Sulina, 2012).

Os livros são objetos transcendentes. Caetano Veloso, “Livro”

A história da Literatura se confunde com a história do

livro impresso. Pode-se justificar essa tese quando se

observa a Literatura do ponto de vista de sua

autoconsciência, isto é, na medida em que certos autores

desenvolvem dentro de suas obras uma reflexão sobre a

própria mídia que garante a existência da literatura: o

livro. Antes de seguir esse caminho, convém lembrar que,

antes mesmo da existência de uma tal reflexão, e mesmo da

existência do conceito de Literatura, já existia uma

tradição de topoi, como mostrou E.R. Curtius, sobre a relação

entre o livro e a natureza, segundo a qual a própria

natureza ou o mundo é um livro escrito por Deus (à sua

imagem) para a leitura dos homens (a tópica do Livro da

Natureza, ou o Livro do Mundo)1. Mas não é tanto essa

tradição clássico-medieval, que chega até Descartes, que me

interessa discutir aqui. É, sim uma reflexão em que o livro

– considerado como mídia – é tanto imagem do mundo como

espelho da própria Literatura. Por isso, tomo como modelo a

obra de três autores em que o livro (e as coleções de

livros) exerceu um papel fundamental, e um certo fascínio:

Mallarmé, Borges e João Cabral.

Mesmo antes de Mallarmé, o livro já era entendido como

o principal meio de preservação e conservação da memória,

registrando, mas também modelando o imaginário. O Dom

Quixote, de Cervantes, por exemplo, é um livro cujo tema

central são os próprios livros, ou o que pode advir àqueles

que os lêem em excesso, ou àqueles que só lêem alguns deles,1 Cf. CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média latina. Rio de Janeiro:I.N.L., 1957. Cf. tb. BLUMENBERG, H. Die Lesbarkeit der Welt.Frankfurt/Main:Suhrkamp,1981. A abordagem de Blumenberg vai além daIdade Média e do Renascimento, e procura entender diferentes concepçõesdo livro do mundo e da “legibilidade” desse livro nas obras de, entreoutros, Schlegel, Humboldt, Valéry e Mallarmé. Cf. Também CHARTIER, R. Aaventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo, UNESP, 1998.

como é o caso de Alonso Quijano, que durante anos só leu

romances de cavalaria.No Dom Quixote há passagens em que o

próprio livro do autor (Cervantes) é discutido e criticado

(ou seja, dentro da obra ficcional), e, num dos capítulos

mais instigantes, na viagem a Barcelona, Dom Quixote e

Sancho visitam uma editora, e descobrem como são feitos os

livros. Montaigne, contemporâneo de Cervantes, escreveu

sobre diversos assuntos baseando-se unicamente no saber

contido nos seus livros, que ele citava fartamente, e que

formavam uma das mais completas bibliotecas de seu tempo.

Biblioteca que, aliás, pela sua disposição topológica, muito

influenciou o modo de pensar do filósofo francês. O escritor

argentino Jorge Luís Borges, nosso contemporâneo, numa clave

ainda moderna, afirma que os utensílios criados pelo homem

são extensões de seu corpo: assim como as ferramentas são

extensão de suas mãos, os livros seriam extensões da

imaginação2.

O romance também pode ser observado, dentro de um

pensamento sistêmico, como o gênero que assume a posição de

principal mídia dentro do sistema literário, a partir do

século XVIII. Siegfried J. Schmidt3 demonstra que a formação

desse sistema, na Alemanha, ao lado das relações com outros

sistemas (econômico – liberalismo; filosófico – iluminismo,

2 BORGES, J.L. Cinco visões pessoais. Brasília:Editora da UnB, 1985. A idéia de mídia como extensão do corpo foi usada também por Marshal McLuhan, em 1962.3 SCHMIDT, S. Die Selbstorganization des Sozialsystems Literatur im 18. Jahrhundert. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989.

etc.), implicava num processo de surgimento da autonomia do

sistema literário em relação aos demais sistemas. Tal

autonomia seria garantida por vários fatores: 1) a formação

de um novo tipo de escritor, independente da igreja ou de

mecenato, sobrevivendo da venda de seus livros, cujas

edições se tornavam cada vez mais numerosas (Schiller podia

vender 10.000 exemplares de William Tell num ano4), e

atribuindo a si uma função moral dentro da sociedade; 2) a

diversificação do sistema de produção e distribuição de

livros, com a separação do entre o impressor, o distribuidor

e o livreiro, diversificação acompanhada pelo aumento

expressivo de publicações – na Alemanha, cerca de 5000

títulos e cinco milhões de exemplares à venda5) a

importância crescente da mediação entre público leitor e os

autores, exercida pelos críticos literários, num número

crescente de jornais e revistas especializadas em livros.

Dentro desse contexto, o romance se desenvolve como

forma burguesa de representação par excellence, uma vez que

expressa as experiências concretas (e até cotidianas) do um

indivíduo agindo no ou em confronto com o meio social

(experiência que irá rumar para um progressivo conflito do

indivíduo com o mundo burguês, nas obras de Goethe e

Schiller) 6. O romance permite ao leitor a descoberta do Eu

como “espaço infinito”, adaptando-se melhor a uma sociedade

4 Id., p. 325.5 Id, ibid.6 Cf. LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Ática, 1998.

que cada vez mais separa a esfera da vida privada

(indivíduo) da esfera pública (sociedade). Sendo assim, o

romance deixa de ser uma forma de diversão aristocrática

(como era no século XVII) para se transformar no instrumento

de criação de uma cultura burguesa7. Por isso, o romance,

mais do que um gênero que simplesmente conquista autonomia

estética, passa a ser a mídia preponderante do século XVIII,

passando a definir todo o funcionamento do sistema

literário,e do meio intelectual. Segundo Schmidt

O romance, permitindo a coexistência da narrativa eda reflexão, desenvolve-se no século XVIII menos comoforma estética autônoma, do que como fórum dadiscussão e da comunicação “burguesa”. Essa é a razãoporque o discurso romanesco interage com outrosdiscursos, que se tornaram correntes no debateteórico-literário desse contexto: o debate damímesis, o debate do gosto, o debate do efeito, odebate sobre a emancipação do indivíduo e suaproblemática posição na sociedade, o debate sobrecasamento, sexualidade e amizade.8

Enquanto o romance se torna paulatinamente o

protagonista da cena literária (do sistema literário), a

poesia vai pouco a pouco se tornar um sistema cada vez mais

fechado (cada vez mais autopoiético), cada vez mais impossível

de comunicação com outros sistemas. O auge desse fechamento

do sistema poético ocorre no final do século XIX, sobretudo

com a obra do poeta francês Stéphane Mallarmé. Num de seus

7 SCHMIDT, S. Die selbstorganisation des Literatursystems…, op. cit, p. 400. 8 Id., p. 401.

textos mais famosos, Mallarmé descreve a “crise” do verso

com uma frase lapidar:

La littérature ici subit une exquise crise,

fondamentale9.

A definição de literatura virá em seguida, associada ao

nome de Victor Hugo, que praticou, pelo que lemos em

Mallarmé, aquela idéia da poesia universal progressiva de F.

Schlegel: “[Hugo] rabattit toute la prose, philosophie,

éloquence, histoire au vers, et, comme il était le vers

personellement, il confisqua chez qui pense, discours ou

narre, presque le droit à s’énoncer » (205). Mas a

associação mais interessante é aquela que Mallarmé

estabelece entre o verso e a literatura, o que deixa claro

que a  “crise de vers” é sinônimo de não apenas de uma crise

da poesia, mas uma crise da literatura: “la forme appelée

vers est simplement elle-même la littérature; que vers il y

a sitôt que s’accentue la diction, rythme dès que

style”(id.) A poesia transcende o verso, na medida em que

cada poeta é capaz de encontrar um ritmo e um “instrumento”

(diríamos, uma mídia) adequada. Pois “toute âme est une

mélodie, qu’il s’agit de renouer; et pour cela, sont la

flûte ou viole de chacun.”(208) Esse pensamento “musical” da

poesia, levará Mallarmé a afirmar que a nova poesia está na

9 MALLARME, S. Oeuvres. Ed. Y-A. Favre. Paris: Garnier, 1985, p.205. Doravante cito essa edição com a numeração da páginas entre parênteses.

música de Wagner : “ou la musique rejoint le Vers pour

former, depuis Wagner, la Poésie.”(209) Trata-se aqui de

buscar, na poesia, tal como ela se apresenta – encerrada no

livro – uma outra forma de poesia, “dos tempos incubatórios”

(208), capaz de transcender – “je la dis Transposition –

Structure”(211) – o dado referencial, que a linguagem força

à presença, rumo ao dado musical, através do poder da

sugestão: “libérer, hors d’une poignée de poussière ou

réaltié sans l’enclore, au livre, même comme texte, la

dispersion volatile soit l’esprit, qui n’a que faire de rien

outre la musicalité du tout.”(210). Isso se obtém pela

famosa tese de uma “obra pura” obtida através da

“disparition élocutoire du poëte, qui cède l’initiative aux

mots” através do “ancien soufle lyrique” (211).Não se trata

aqui, como queria Hugo Friedrich10, apenas de uma

Entpersonalisierung, sem outra conseqüência que o afastamento do

poeta do mundo (Entrealisierung) trivial e burguês (coisa que

Mallarmé não aprovaria). Trata-se de trazer a poesia de

volta para a sua materialidade, para o seu caráter performativo,

ou seja, para o seu devido lugar nesse mundo.

Por isso, o Livro será visto como instrumento

espiritual, não no sentido de um esvaziamento de

significação em relação à realidade, mas de uma vivificação

de seu espírito através da letra: “hymne, harmonie et joie,

comme pur ensemble groupé par quelque circonstance

10 FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

fulgurante, de relations entre tout.”(224) Mallarmé se

queixa de que o livro até então não fora considerado em seu

aspecto “exterior” (224), e decide fazê-lo comparando-o com

o jornal, que é a forma de mídia impressa preponderante,

tanto do ponto de vista econômico e político, quanto do

ponto de vista do público leitor. A primeira e importante

constatação: a crise começa na “livraria”, metonimicamente

representando a literatura (produção e mercado literários):

“de discredit où se place la librairie, a trait, moins à un

arrêt de ses opérations, je ne le découvre; qu’à sa notoire

impuissance vers l’oeuvre exceptionelle (293)”. A questão

que se coloca para o poeta é ainda mais cruel: “à quoi bon

trafiquer de ce qui, peut être, ne doit se vendre, surtout

quand cela ne se vend pas.”

A obra excepcional, para Mallarmé, está menos associada

a uma qualidade intrínseca da literatura, do que a uma

correlação entre a literatura e a forma de “obra” que

realmente interessa o público, aquela que se lê nos jornais

e nas revistas (a mídia, como diríamos). Mallarmé tem

consciência de que as mudanças no hábito de leitura que a

imprensa jornalística trouxe foram muito mais importantes do

que todos os movimentos literários. “Un commerce, resumé

d’interêts énormes et élementaires, ceux du nombre, emploie

l’imprimerie, pour la propagande d’opinions, le narré du

fait divers et cela devient plausible dans la Presse, limité

à la publicité, il semble, omettant un art(...) la fiction

proprement dite s’ébat aux travers de ‘cotidiens’

achalandés, triomphant à des lieux principaux, jusqu’au

sommet.” (291)

Mallarmé refere-se aí provavelmente ao espaço que

ocupavam dentro da mídia os romances e folhetins, e ao

espaço que passou a ocupar uma diversidade de textos

jornalísticos que oscilavam entre a prosa criativa e o

ensaio. Mas é sobretudo a forma gráfica que trazia a “arte”,

anunciando uma possibilidade nova para a poesia: “A juger

l’extraordinaire surproduction actuelle, ou la Presse cède

son moyen intelligemment, la notion prévaut, cependant, de

quelquer chose de très décisif, qui s’élabore: comme avant une ère, un

concours pour la fondation du Poème populaire moderne... ”(292,

grifos meus). O Livro, é em parte, o resultado dessa busca,

assim como Un coup de dés é uma “amostra” (ou uma caricatura?)

desse livro, na medida em que buscava incorporar ao poema o

“movimento” da tipografia. Tivesse vivido nos anos 20,

Mallarmé teria chegado à conclusão de o cinema poderia ser

esse poema popular moderno, como Einsenstein. No entanto,

sua preocupação com o verso, o levou a pensar um outro

destino para o livro.

É por isso que “Le livre, instrument spirituel”, começa

com a frase, já conhecida de seus contemporâneos, de que

“tout au monde existe pour aboutir à un livre” (294). Essa

frase, ao contrário do que querem muitos literatos, deveria

ser lida enfatizando-se o artigo (“un”) e não o substantivo

(“livre”). Pois é em um livro que Mallarmé está pensando,

não em um livro qualquer. Por isso ele começa o ensaio

descrevendo a si próprio, sentado num banco de jardim, com

um livro nas mãos e um jornal (descrito pejorativamente como

“lambeau” (294), mas depois como “feuille étalée, pleine”

(296). Passa a comparar então o livro com o jornal, e vê

neste último uma série de conquistas: para começar, a dobra,

ou “pliage” do jornal, que permite a fantasia de se penetrar

sensorialmente no texto (e sem o recurso de uma faca, como

se fazia, para abrir as folhas de um livro); a disposição

inteira (“à même”, p. 295) do texto numa página (não

quebrada, pouco a pouco, como no livro); a seqüência de

vários tipos de texto, inclusive de anúncios, que o leitor

vai selecionando conforme a sua fantasia; e sobretudo as

diversas possibilidades de “composição tipográfica”, que

transformam as “vinte e tantas letras” num “rito” (296).

Por isso, o livro deveria ser “a expansão total da

letra” (296), aproveitando dela uma “mobilité” (id.),

criando um “jeu” (id.) que “confirme la fiction”. Um livro

não deve ser um amontoado de temas ou histórias ou frases ou

versos ou sonetos que depois serão inseridas num livro,

como se este fosse matéria inerte e indiferente ao que foi

escrito. Um livro deve ser planejado como livro, em sua

“materialité” (296) antes mesmo de ir ao prelo: “la

fabrication d’un livre, et de l’ensemble qui s’épanouira,

commence dès une phrase” (296). Não é sem razão que a

literatura está em crise, pois ela se transformou numa seita

de nefelibatas flutuantes no livre jogo da imaginação

(poetas, escritores) e da interpretacão (críticos,

professores de literatura), que não atentam para a

materialidade daquilo que lhes permite a sobrevivência, o

livro. Por isso, a empreitada de Mallarmé parece tão

difícil, para ele mesmo, e para seu discípulo Valéry, que

chegou a imaginar a construcão de uma “máquina tipográfica”

que criasse o Livro automáticamente. Mallarmé tem

consciência de que tal livro ainda não fora escrito, uma vez

que os livros consistem, na sua totalidade, num “va-et-vient

successif incessant du regard, une ligne finie, pour

recomencer: pareille pratique ne répresente le délice”

(296). Pelo contrário, é indice de uma monotonia extrema:

“toujours l’insupportable colonne qu’on s’y contente de

distribuer, en dimensions de page, cent et cent fois”(297).

Mais...(297)

Introduzindo assim, com essa conjuncão adversativa

isolada num parágrafo, em itálico, Mallarmé passa apresentar

seu programa, uma mínima amostra dele. Por que não, por

exemplo, uma página composta de uma única linha (mantendo o

leitor em espera), seguida de grupos secundários de frases

noutra página, dispostas como “un semis de fioritures”(208).

Essa é uma das vias que a poesia pode tomar para encontrar a

Música, não apenas através do ritmo do verso ou de

artifícios retóricos (assonâncias, rimas, paronomásias), mas

de um encontro com a materialidade do livro em outras bases:

uma “Sinfonia literária” não se faz sem se reconhecer que a

literatura passa em primeiro lugar pelo olho do leitor. Por

isso, o “mistério da letras” é menos misterioso do que

parece ser. O que parece “ininteligível” – a acusação que

Mallamé já conhecia de ser obscuro – é na verdade “peu

séparable de la surface concedée à la rétine” (301). O

leitor – inclusive o profissional – quer o sentido do texto,

um sentido que está por trás das palavras impressas, por

isso se tece entre tal leitor e o livro “um véu” (298). A

verdade é que o sentido, se há, está na página mesmo, em sua

superfície, tão visível para o leitor (ou invisível,

dependendo do caso) quanto uma borboleta branca no meio de

uma multidão (298).

Resta saber se ainda há tal leitor.

Menos conhecido do público e da crítica é o Mallarmé

jornalista. Melhor seria dizer: tipógrafo-editor-jornalista,

de uma revista de moda feita para as mulheres mais elegantes

de Paris, e sobretudo de Versalhes. Entre setembro e

dezembro de 1874 (portanto ainda sob os ventos da Comuna),

Mallarmé dedica-se com afinco na edição de La Dernière Mode:

Gazette du Monde et de la Famille11. Mallarmé não apenas

supervisionava o trabalho editorial (incluíndo a composição,

que lhe valeu uma experiência material com a tipografia, que

seria depois utilizada no Un coup de dés), mas redigia, ou

11 MALLARME, S. La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille. Paris : Ramsay, 1978.

melhor plagiava, textos sobre os mais diversos asssuntos de

moda, como os tecidos da estação, os melhores chapéus, os

vestidos de noiva, e tudo o que poderia tornar mais atraente

uma mulher do monde parisiense. Mesmo que seus textos

fossem pastiches de outras revistas da época, como

demonstrou a pesquisadora japonesa Tomoko Sasahara12, não é

impossível de se ver por trás do texto-pastiche o texto

“autoral”, um pouco como acontece com o Pierre Ménard de

Borges. Veja-se, por exemplo (e com todas as vírgulas), o

texto sobre as “Jóias”, que ele assina sob o pseudônimo de

Margarette de Ponty:

Cherchons le Bijou, isolé, en lui-même. Où ?partout ; c’est-à-dire un peu sur la surface duglobe, et beaucoup à Paris : car Paris fournit lemonde de bijoux. Qui ! Toute contrée, comme, par sanature, une flore, ne présente-t-elle pas, issus demains de l’homme, un écrin complet ? L’instinct debeauté et de relation avec des climats divers, quirègle, sous chaque ciel, la production des roses, detulipes et des oeillets, est-il étranger à celle despendants d’oreilles, de bagues, de bracelets ? Fleurset joyaux : chaque espèce n’a-t-elle pas comme quidirait son sol ? Tel éclat de soleil convient à cettefleur, tel type de femme à ce joyau.13

Além das conseqüências filosóficas para a sua poesia de tais

afirmações, do ponto de vista da repercussão e imbricação

mútua de uma na outra (como ocorre nessa frase lapidar

“Cherchons le Bijou, isolé, en lui-même”, que bem poderia12 Apud MALLARME, S. Oeuvres Complètes II. Ed. Bertrand Marchal. Paris, Gallimard, 2003. p. 1715. 13 MALLARME, S. La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille. Paris : Ramsay, 1978, p. 25.

ser um verso de um de seus poemas), é importante salientar o

rigoroso trabalho de lay-out , com a utilização de diversos

tamanhos e formas de tipos, que possibilitam a

verticalização da leitura, e também com o aproveitamento

orgânico dos espaços em branco e das gravuras, que passam a

compor com os textos uma unidade indissolúvel. Não é difícil

perceber que La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille foi a

oficina de preparação de Un coup de dés, embora ambas as

“obras” pareçam pertener a universos bem distintos: um, ao

universo da coqueteria e da vaidade, outro ao universo de

uma poesia de vanguarda, feita de modo subtilíssimo, para um

círculo restrito de leitores. A verdade, no entanto, é que a

distância pode parecer menor, se observarmos as edições da

revista de moda, e do poema tipográfico, sob o prisma da

estética. Pois, de um ponto de vista não dogmático, o domínio

dos cosméticos e o da cosmologia são um e o mesmo, o da

ordem e beleza do kosmos.

Assim como Mallarmé, o escritor argentino Jorge Luís

Borges escreve uma “literatura de segundo grau”, que fascina

não apenas os literatos, mas todo um rol de pensadores e

escritores pós- (estruturalistas, modernos), como Foucault,

Hayden Whyte, Italo Calvino. Num de seus textos mais

célebres, “La Biblioteca de Babel”14 o escritor argentino

Jorge Luís Borges desenvolve uma de suas diversas

cosmogonias, em seu tão peculiar estilo ensaístico-

14 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1974. Doravante citoessa edição no texto, com a numeração entre parênteses.

ficcional: “El universo (que otros llaman la Biblioteca) se

compone de un numero indefinido, y tal vez infinito, de

galerías hexagonales...”

Sabemos que Borges cultivou desde cedo um fascínio

pelos livros, não apenas pelo seu conteúdo, mas por sua

própria materialidade. Além do fato de ter sido Diretor da

Biblioteca Nacional de Buenos Aires, atesta-o sua paixão por

certos volumes raros, suas constantes referências à

Britannica e a edições específicas de alguns autores (De

Quincey, Dante), seu estilo bibliofílico, de passar de um

livro a outro em seus textos como quem anda entre estantes

de uma biblioteca universal, além dos textos em que o livro

é o tema (como os contos “A muralha e os livros” ou “O

livro de areia”). A idéia contida em alguns conto e ensaios,

de um livro único e irrepetível, coaduna-se com a filosofia

de Borges, segundo a qual toda repetição de um evento ou de

um ser, é não apenas improvável, mas fastidiosa. No entanto,

o mundo é para Borges um pesadelo de repetições, como as

incontáveis salas iguais do Labirinto. Por isso também

Borges odiava os espelhos, pois o espelho é uma diabólica

ferramenta para criar novas formas de repetição. Borges,

mesmo cego, ainda o odiava:

El hecho de no verte y de saberteTe agrega horror, cosa de magia que osasMultiplicar la cifra de las cosasQue somos y que abarca nuestra suerte.(“Al espejo”, p. 1134)

Assim como o espelho, o Eterno retorno seria a sua

forma filosófica de refutar a multiplicação, e afirmar que

não há passado nem futuro, apenas o presente, e que este

contem em si todas as coisas, como já afirmava Agostinho15.

Em outros termos, Borges nega a infinita variedade das

coisas do mundo, dizendo que a combinação das coisas

diferentes (como o alfabeto) só gera coisas análogas

(esteticamente, Borges desautoriza a idéia de “novo”).

Percebe-se um certo pessimismo em suas afirmações, que se

coadunam com o tão propalado conservadorismo político. Mas

não se trata de pessimismo, mas sim de uma atitude de quem

quer entender a Rerum natura a partir de um princípio antigo,

eléatico, de que, se tudo é movimento, não há movimento. E

portanto, o mal e o sofrimento são ilusórios, assim como a

necessidade de deuses, ou de um Deus (ou de um Livro). Ele

próprio afirma que a doutrina da invariabilidade das coisas

pode ser um consolo em tempos sombrios (entenda-se, em

tempos como os de Perón): “En tiempos de auge la conjetura

de que la existencia del hombre es una cantidad constante,

invariable, puede entristecer o irritar: en tiempos que

declinam (como éstos), es la promessa de que ningún oprobio,

ninguna calamidad, ningun dictador podrá empobrecernos” (“El

tiempo circular”, 396).

15 Como afirma Monegal, “L’idéalisme de Borges est un solipsisme(…)pour soutenir que, hors du présent, le temps n’existe pas, que ce même présent que contemple notre moi est déjà de nature ilusoire”. MONEGAL, E.R. Borges par lui-même. Paris: Seuil, 1970, p. 47.

É necesário recordar, como fez a sua amiga María Esther

Vázquez, que “A biblioteca de Babel” é um reflexão que

Borges faz a partir de sua vida pessoal. Entre 1937 e 1946,

Borges trabalhou numa pequena biblioteca de Buenos Aires, a

Biblioteca Municipal Miguel Carné, onde ficou até ser

trasladado, pelo regime peronista, ao humilhante cargo de

inspetor de aves, ovos e coelhos16. Na Biblioteca Miguel

Carné, Borges teve que se adequar a um trabalho medíocre de

catalogação burocrática de livros desinteressantes. A visão

dos bibliotecários e dos espaços em seu conto resulta dessa

atmosfera “kafkiana” de seu trabalho na Miguel Carné. Mas o

significado do conto ultrapassa os limites das referência

biográficas. Senão, vejamos.

Seu argumento transforma a Biblioteca numa metáfora do

Universo – mais do que isso, um nome17 para o Universo. As

salas hexagonais, compostas cada uma “invariablemente” de

vinte estantes, interligam-se por corredores iguais. Nos

saguões da Biblioteca, encontra-se um espelho que “duplica

as aparências”, e que leva alguns homens a acreditar que o

espelho é uma prova de que a Biblioteca (leia-se, o

Universo) não é infinita, ao que o narrador retruca,

reticente: “yo prefiero soñar que las superficies bruñidas

figuran y prometen el infinito...” (465) O narrador

borgesiano usa aqui uma de suas táticas, a de contrapor duas16 VÁZQUEZ, M. E. Reflexiones acerca de “La Biblioteca de Babel”. Barcelona: Anthropos, n. 142-143, marzo-abril 1993, p. 97-104.17 Cf. “El Golem”: (“El nombre es arquetipo de la cosa / En las letras de rosa está la rosa”)

visões de mundo opostas, criando um paradoxo hermenêutico –

sua forma estilística de traduzir o labirinto e as

“fastidiosas repetições” dos espelhos. Por um lado,

afirmando sua predileção, apresenta uma das “escolas”

filosóficas dos habitantes da Biblioteca, que argumentam que

todas as salas são idênticas, e, logo, infinitas. Ao

contrário destes, os “místicos” acreditam na existência de

uma grande sala circular, com um livro “circular de lomo

continuo”. Trata-se, aqui, de uma visão teológica, que se

define pela célebre sentença medieval sobre Deus, traduzida

por Borges para esse contexto: “La Biblioteca es una esfera cuyo

centro cabal es qualquier hexágono, cuya circunferencia es inaccesible”

(406).

Ao continuar a descrição (ou interpretação?) da

Biblioteca, o narrador elabora dois axiomas para descrevê-

la. 1) a biblioteca é eterna (“existe ab aeterno”), sendo o

homem apenas um momento na eternidade da Biblioteca; 2) “El

número de simbolos ortográficos es veinticinco” (406). Numa “nota do

editor”, afirma-se que estão excluídos os algarismos de as

maiúsculas”, e incluídos o ponto e a vírgula, além do

espaço. Essa afirmação, por mais tautológica que possa

parecer, constitui o vórtice do texto de Borges. Pois é a

possibilidade de combinação infinita desses vinte e cinco

símbolos que cria a infinita variedade e diversidade de

livros, e também a infinita diversidade e variação de

interpretações. Por isso a Biblioteca é “de Babel”. Ela pode

conter em si todas as combinações possíveis, o que resulta,

para alguns, num universo caótico e sem sentido. O narrador

afirma que com essas combinações, tudo pode estar contido na

Biblioteca:

La historia minuciosa del porvenir las autobiografíasde los arcángeles, el catálogo fiel de la Biblioteca,miles y miles de catálogos falsos, la demostración dela falacia de eses catálogos, la demostración de lafalacia del catalogo verdadero, el evangelio gnósticode Basílides, el comentário de ese evangelio, larelacción verídica de tu muerte, la versión de cadalibro a todas las lenguas, las interpolaciones decada libro en todos los libros, el tratado que Bédapudo escribir (y no escribió) sobre la mitología delos sajones, los libros perdidos de Tácito. (468)

Essa consciência teria dado, segundo o narrador, uma

esperança aos homens, uma vez que, se tudo poderia estar

contido na Biblioteca, não haveria problema que não pudesse

ser resolvido graças à descoberta de algum livro que

trouxesse uma solução. No entanto, séculos depois, os homens

perderam a esperança, e começaram a surgir seitas que

acreditavam em livros perdidos para sempre, outros que

achavam melhor queimar todos os livros (uma sutil alusão aos

nazistas). Outra crença, também composta de fanáticos,

passou a acreditar nas palavras do Homem do Livro, segundo o

qual deveria haver um livro único que contivesse tudo o que

foi dito em todos os demais.

Ao final do conto, o narrador volta ao “antíguo

problema” do infinito18, para dizer que a Biblioteca não é

infinita: melhor acreditar que ela seja ilimitada e

periódica. Ou seja: “se un eterno viajero la atravessara en

cualquier dirección, comprobaría al cabo de los siglos que

los mismos volúmenes se repiten en el mismo desorden (que,

repetido, seria un orden: el Orden). Mi soledad se alegra

con esa elegante esperanza” (471). Estamos aqui diante do

mesmo postulado de “El jardín de los senderos que se

bifurcan”, segundo o qual não há um tempo uniforme e

absoluto (como na física newtoniana), mas uma série de

tempos que se bifurcam e correm paralelos. O personagem do

conto, Stephen Albert, alude à teoria do avô de Yu-Tsun

(espião e assassino), Ts’ui Pen (que dedicou sua vida a

criar um romance e construir um labirinto), o qual

creía en infinitas series de tiempos, en una redcresciente y vertiginosa de tiempos divergentes,convergentes y paralelos. Esa trama de tiempos que seaproximan, se bifurcan, se cortan o que secularmentese ignoran, abarcan todas las possibilidades. Noexistimos en la mayoría de esos tiempos; en algunosexiste usted y no yo; en otros, yo, no usted; enotros, los dos. (479)

18 Com o problema do infinito também se depararam os atomistas. Leibniz,que critica alegoria das letras dos atomistas (o alfabeto seria um modelo para entender as combinações do átomos), imagina uma representação do mundo como uma Biblioteca Universal. Borges não menciona Lebniz. Sobre o tema leibniziano da Biblioteca, Cf. BUMEMBERG, Hans. Die Lesbarkeit der Welt. Frankfurt/Main: Surkhamp, 1981, cap. X.

A necessidade de que as variações não sejam infinitas é

também tema do conto “Funes, el memorioso”. Irineo Funes era

um personagem dotado de uma espécie de distúrbio da memória,

que lhe tornou possível de recordar-se de absolutamente

todas as coisas que viveu, viu, sentiu. A memória de Funes é

como aquele nominalismo absoluto de Locke, citado por

Borges, segundo o qual todas as coisas poderiam ter um nome

próprio. Ele não conseguiria pensar num cão genérico, apenas

nos infindáveis cães que cruzou pelo seu caminho. Ou seja,

Funes não era capaz de pensar, pois “pensar es olvidar

diferencias, es generalizar, abstraer” (490).

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu

uma poesia em que o aparente conflito entre a abstração e a

concretude se resolve na materialidade do poema. João Cabral

descobriu muito cedo, com Valéry, que o interesse da poesia

está nesse jogo de um pensamento puro, capaz de abstrair as

coisas, e a sua contrapartida, que é o rigor de fazê-las

materializar-se na escrita. Assim, ele elabora uma

Psicologia da Composição, título de um de seus livros, em

que descreve essa tensão entre o concreto e o abstrato na

linguagem:

Flor é a palavraflor, verso inscritono verso, como asmanhãs no tempo.

Benedito Nunes demonstrou que João Cabral cria em seus

poemas um nexo metafórico, de caráter mágico-mítico, para

depois desfazer a trama de imagens, através de um processo

de desagregação da metáfora, que desnuda a linguagem: “uma

vez que o mecanismo desnudado foi o da própria linguagem, em

seu mecanismo real, a imagem da flor será, finalmente,

convertida à matéria lingüística de seu suporte verbal, a

palavra mesma, como signo escrito”19. A poesia de Cabral

realiza assim um processo de materialização da escrita,

tornando palpável ao leitor não apenas a ferramenta com que

trabalha (a linguagem, as palavras), mas o próprio suporte,

a própria mídia. Não é por acaso que João Cabral resolveu

ele mesmo dedicar-se à impressão de livros, numa velha

tipografia manual Minerva. Sua poesia está profundamente

impregnada de uma reflexão sobre os livros, e sobre como a

escrita e o livro dão forma ao fluxo e à dispersão da fala,

criando uma obra de engenharia20 poética.

As tópicas da escrita e do livro aparecem ao longo de

toda a obra de Cabral, e vão assumindo diferentes valores. A

princípio, a escrita surge descrita como luta para despir-se

de uma poesia cheia de “flores”. Graças a uma atenção ao ao

aspecto “mineral” do papel, o poeta obtém o controle da

expressão:19 NUNES, B. João Cabral: a máquina do poema. Org. Adalberto Müller. Brasília:Editora UnB, 2007.20 Lembre-se que seu livro decisivo se chama O engenheiro, e que, entre seus mentores mais importantes, está o poeta e engenheiro Joaquim Cardozo, que foi responsável por muitas das obras da construção de Brasília, na parte de cálculo.

Neste papellogo fenecemas roxas, mornas flores morais;todas as fluidasflores da pressa;todas as úmidasflores do sonho21.

A luta do poeta contra o fluido, o apressado e o úmido

corresponde a uma vontade de petrificar-se, o que o situa

dentro de uma tradição que remonta, pelo menos, a Horácio,

com seu desejo de criar um monumentum aere perennius – desejo

que, em Cabral, converter-se-á num exercício ascético, numa

“educação pela pedra”, como diz o título de um livro seu.

Mas as linhas mestras desse projeto estético já estão

claramente definidas na Psicologia da composição:

É mineral, por fim,qualquer livro:que é mineral a palavraescrita, a fria natureza

da palavra escrita (96).

Vê-se que, para Cabral, o caráter “mineralizante” não

se limita à poesia, mas à natureza mesma do livro e da

escrita. Por isso, a busca da poesia será a de “cultivar o

deserto/ como um pomar às avessas” (id.) Uma das

consequências dessa atitude será uma mineralização da

própria subjetividade, que já se separa do corpo no ato21 MELO NETO, J. C. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994, p. 94.

mesmo de escrever, assumindo uma posição distanciada com

relação aos sentimentos, o que se reconhece com facilidade

na poesia de Cabral, e sobre o que já muito se escreveu22.

Outra, menos comentada, é uma espécie de tranferência de

características da escrita e do livro para as coisas mesmas.

É o que ocorre com um poema de Paisagens com figuras, intitulado

“Paisagem tipográfica”, sobre o trabalho do artista e

especialista em tipografia catalão Enric Tormo:

(...)A paisagem tipográfica de Enric Tormo, artesão,é ainda bem mais simplesque a horizontal do Ampurdán:

é ainda mais despojada que a vila de Cervera,compacta, delimitadacomo bloco na galera.

A paisagem tipográficade Enric Tormo impressor, é melhor localizadaem vistas de arte menor:na pobre paginaçãoda Tarassa e Sabadell,nas interlinhas estreitasdas cidades do Vallès,

nos bairros industriaiscom poucas margens em brancoda Catalunha fabrilcomposta em negro normando(...)(159)

22 Cf. NUNES, B., op. cit.; LIMA, L. C. Lira e antilira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995; MERQUIOR, José G. Razão do Poema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965; VILLAça, A.

Tal como, durante séculos, usou-se o “livro” como uma

metáfora para representar imageticamente o mundo, tornando-o

assim “legível”23, Cabral descreve a Catalunha através de

uma curiosa e divertida confusão entre topografia e

tipografia, tornando sensível ao leitor não apenas o

“significado” do texto, mas a implicação material do texto

no livro. Assim, a paisagem se torna concreta, não se

dispersa numa série de impressões vagas, transformando-se

num exemplo contra toda forma de dispersão. Trata-se, como

se vê, numa atitude estóica, mas do estoicismo materialista

de Lucrécio. Só que ao invés de investir contra os males da

religião, como fez Lucrécio, Cabral procura criar uma

educação pelos sentidos, para ver e compreender o mundo de

olhos abertos, acreditando que o fazer e o criar são sempre

melhores do que a indiferença. É o exemplo da pintura de

Mondrian:

(...) quando a alma borracha tem os músculos lassose é incapaz de molaspara atirar-se ao faço (...)

(...)só essa pintura pode,com sua explosão fria, incitar a alma murcha,de indiferença ou acídia(...)(378)

A culminância dessa visão didática e construtiva é

atingida em A educação pela pedra, livro construído segundo

23 BLUMENBERG,H., op. cit., passim.

critérios geométricos e algébricos24, em que Cabral atinge o

ideal da filosofia arquitetônica de Le Corbusier e da

poética filosófica de Paul Valéry: a de transformar o livro

numa machine à emouvoir. Deixando de lado as amplas

implicações semânticas e históricas desse livro-chave, vale

acreditar que ele contém em si mesmo o seu próprio “manual”,

que desvela ao leitor o funcionamento de seu mecanismo, ou

de sua mola. Encontra-se esse manual em diversos poemas já

bastante comentados, como o clássico “Catar feijão”, ou

“Tecendo a manhã”, tomados como exemplo de poesia

metalingüística e moderna. Contudo, é na questão menos

observada da materialidade da escrita e do próprio livro que

se pode atar melhor os “fios” dessa poesia, e revelar, no

fundo, qual é o comprometimento de Cabral com a Literatura.

Tal questão surge de maneira muito clara em dois poemas:

“Retrato do escritor” e “Para a feira do livro”, que, aliás,

é o último poema de A educação pela pedra:

RETRATO DO ESCRITOR

Insolúvel: na água quente e na fria;nas de furar a pedra ou nas langues ;nas águas lavadeiras; até nos álcooisque dissolvem o desdém mais diamante.Insolúvel: por muito o dissolvente ;igual, nas gotas de um banho ao lado,e nas águas do banho que o submerge, em beatitude, e de que emerge ingasto.

*

24 Uma leitura precisa desses aspectos em NUNES, B. A máquina do poema, op. cit.

Solúvel: em toda tinta de escrever,o mais simples de seus dissolventes ; primeiramente, na da caneta-tinteirocom que ele se escreve dele, sempre(manuscrito, até em carta se abranda,em pedra-sabão, seu diamante-primo) ;solúvel, mais: na da fita da máquinaonde mais tarde ele se passa a limpoo que ele se escreveu da dor indonésialida no Rio, num telegrama do Egito(datiloscrito, já se acaramela muitoseu diamante em pessoa, pré-escrito).Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,da rotativa, manando seu auto-escrito(impresso, e tanto em livro-cisternaou jornal-rio, seu diamante é líquido).25

João Cabral desenvolve aqui, à sua maneira, aquela

idéia expressa em muitos teóricos da oralidade e da mídia,

de que o surgimento da escrita e o desenvolvimento do livro

produzem várias espécies de separação: do corpo em relação à

mídia, do sujeito em relação ao sentido, do autor em relação

ao leitor (Ong26, Gumbrecht27,Kittler28). Para Cabral, as

diversas formas de escrita constituem diferentes graus de

dissolução ou solvência do sujeito em relação ao seu texto. A

princípio, o sujeito, sem a escrita, ou ainda sem escrever,

é tomado como uma unidade inteira e “insolúvel”, palavra que

25 MELO NETO, J. C. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor,1966, p. 94-95. Cito os poemas a partir dessa edição, por ser a que preserva intacto o projeto matemático-geométrico do livro, sobretudo no que diz respeito à paginação.26 ONG, W. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998. [Orality and literacy, London, 1968]27 GUMBRECHT, H. U. Modernização dos sentidos. São Paulo: 34, 1998.28 KITTLER, F. Gramophone, film, typewriter. Stanford: Stanford University Press, 1999.

pode ter tanto um sentido físico (o de solvência) quanto um

sentido moral ou gnômico. Para Cabral, o sujeito em questão

(o escritor) não se dissolve nas coisas, ou com as coisas,

ele mantém-se inteiro, mantém aquela “resistência” que o

poeta admira na pedra, ou nas lâminas de aço. Ao contrário

do sabão do poeta Francis Ponge29, alegoria de um ser/poeta

que se confunde com o seu meio (a água), formando “bolhas

retóricas”, o escritor de Cabral se afasta de toda forma de

solvência, como a água doméstica (a vida íntima), a água da

desrazão (os “álcoois”) ou a água da religião (“o banho que

o submerge, em beatitude”30).

Mas, no exercer de seu ofício, eis que o poeta,

empedernido ou empedrado31 no ato do fazer, se torna

solúvel, em diferentes graus. Observe-se que quanto mais o

porcesso de escrita se afasta do corpo, tanto mais “solúvel”

se torna o escritor. A meta a atingir, assim, é a de uma

assepsia, a “luta corporal” se converte no

“diamante...líquido” da folha impressa, seja em livro

(“cisterna”), em que a comunicação é restrita, ou jornal

(“rio”), em que a comunicação se abre para um público mais

amplo, perfazendo o ideal da comunicação escrita (cf. “Rios

sem discurso”). Como já se observou, a poesia de Cabral

oscila entre “duas águas”, uma mais fechada e auto-29 Cf. PONGE, F. O sabão. Tradução e notas de Adalberto Müller. In: MÜLLER, A. Música e mímesis na obra de Francis Ponge. Tese de Doutorado.Universidade de São Paulo: 2002.30 Essa imagem é de Ponge, em O sabão, op. cit.31 Cf. F. Ponge, “Le galet”/ “O seixo”, em O partido das coisas. São Paulo: Iluminuras, 2000.

referencial, outra de maior “volume na área de

comunicação”32. Por isso, não estranha que a definição de

livro do poema a seguir o apresente como um objeto “mudo”:

PARA A FEIRA DO LIVRO A Ángel Crespo

Folheada, a folha do livro retomao lânguido e o vegetal da folha folha,e um livro se folheia ou se desfolhacomo sob o vento a árvore que o doa ;folheada, a folha de um livro repetefricativas e labiais de ventos antigos,e nada finge vento em folha de árvoremelhor do que vento em folha de livro.Todavia a folha, na árvore do livro,mais do que imita o vento, profere-o :a palavra nela urge a voz, que é vento,ou ventania, varrendo o podre a zero.

*

Silencioso: quer fechado ou aberto,incluso o que grita dentro ; anônimo:só expõe o lombo, posto na estante,que apaga em pardo todos os lombos ;modesto : só se abre se alguém o abre,e tanto o oposto do quadro na parede,aberto a vida toda, quanto da música,viva apenas enquanto voam suas redes.Mas apesar disso e apesar de paciente(deixa-se ler onde o queiram), severo:exige que lhe extraiam, o interroguem;e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

Dedicada ao seu tradutor e amigo espanhol Ángel Crespo,

o poema que fecha A educação pela pedra constitui uma especie de

32 Cf. NUNES, B., op. cit, Prefácio.

porta de saída ou postigo, para quem entrou na maquinaria da

poesia. Desenvolve-se, na sua primeira parte, através de um

símile complexo, composto de três elementos: folha (da

árvore)-folha (do livro) ; árvore-livro ; vento-voz, para

mostrar que o livro acaba desmentindo ou superando a sua

origem (folha, árvore, voz), ou dela se separando. Na

segunda parte, uma nova série de símiles, agora em forma de

comparação, entre o “fechado” e “anônimo” do livro e o

“aberto” da pintura e da música. Não é por acaso que o ponto

de culminância da definição do livro seja o termo “severo”,

seguido apostos. Ele lembra tanto a severidade de Severino

(Morte e vida severina), capaz de enfrentar as adversidades da

miséria, quanto o comportamento rigoroso e ascético do

próprio poeta no seu fazer.

A ascese tão buscada de Cabral, que culmina na “máquina

do poema”, é fruto de uma série de parti pris estéticos, éticos

e políticos. Estéticos, porque toma de antemão o partido de

uma poesia antilírica, contra uma tradição, segundo Cabral,

demasiado sentimental, típica da lírica de língua

portuguesa33; ao mesmo tempo, investe contra a indefinição,

o vago, o impreciso, de uma tradição simbolista, presente

ainda em certos autores do surrealismo, ou adjacentes a

ele34. Éticos, quando assume o comprometimento da poesia

menos com questões pessoais e mais com a realidade social,

não se furtando a valer-se de seu caráter didático, para

33 Cf. Da função moderna da poesia, em Obras completas, op. cit., passim.34 Cf. “Anti-Char”, em Museu de tudo, Obras completas, op. cit.

escrever sobre problemas brasileiros, como a miséria ou a

mortalidade infantil. Políticos, enfim, porque se converte

num projeto coerente e um exemplo de obstinação do correto e

do duradouro (“lição de pedra”), num um país onde as obras

públicas são feitas para durar um ou dois mandatos, onde

“tudo parece que é construção e já é ruína”35, como canta

Caetano Veloso, onde a política virou sinônimo de corrupção

e da utilização da coisa pública como patrimônio familiar.

Mas a contrapartida disso, é óbvio, é uma perda de

naturalidade, de encantamento, e de en-canto, que os poetas

brasileiros da geração dos anos 70 e 80 irão criticar em

Cabral. Pois, como vimos, em A educação pela pedra Cabral

converte-se enfim num homem-livro (como o Poe, eternizado na

sua obra-lápide, segundo Mallarmé)36, e a Literatura chega,

acaso, ao seu fim, ou à sua finalidade. Resta saber se, além

da Literatura, aina há poesia. A resposta pode ser

afirmativa, se a pensarmos também em outras mídias, ou a

partir de outras mídias. Se a pensarmos na voz, solúvel e

soluçante do performer, porque não-morta no “mineral” do

livro. Se pensarmos na música, dispersa e “viva enquanto

voam suas redes”, e por isso mesmo mais instigante, feita da

matéria mesma da vida, de seu fluxo. Se a pensarmos nesse

“papel de vidro”, que se movimenta sem que o leitor perceba,

que é o texto digital na tela do computador. O próprio

35 VELOSO, C. “Fora da ordem”. Circuladô.36

? “Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change”.

Cabral, ou melhor, o outro Cabral, que admirava tanto a

música de Antonio Mairena, deveria saber, pois sentiu de

perto o corpo das bailaoras andaluzas. E terá sabido o que era

a poesia viva do corpo.