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A MATÉRIA DOS LIVROS(Mallarmé, Borges, João Cabral)
Adalberto Müller (UFF)
Resumo
Através de uma leitura de alguns textos de StéphaneMallarmé, Jorge Luís Borges e João Cabral de Melo Neto – quetratam do livro e da biblioteca – procura-se demonstrar quehá uma estreita relação entre a materialidade do livro e oconceito de Literatura. Define-se, assim, através da mídia(ou suporte), a relação entre o material e o conceitual,visando esclarecer por que o paradigma hermenêutico, nosestudos literários, parece ter chegado a um certoesgotamento na era das imagens técnicas e das mídiasdigitais. Uma versão ampliada deste texto foi publicada emLinhas Imaginárias: poesia, mídia, cinema (Ed. Sulina, 2012).
Os livros são objetos transcendentes. Caetano Veloso, “Livro”
A história da Literatura se confunde com a história do
livro impresso. Pode-se justificar essa tese quando se
observa a Literatura do ponto de vista de sua
autoconsciência, isto é, na medida em que certos autores
desenvolvem dentro de suas obras uma reflexão sobre a
própria mídia que garante a existência da literatura: o
livro. Antes de seguir esse caminho, convém lembrar que,
antes mesmo da existência de uma tal reflexão, e mesmo da
existência do conceito de Literatura, já existia uma
tradição de topoi, como mostrou E.R. Curtius, sobre a relação
entre o livro e a natureza, segundo a qual a própria
natureza ou o mundo é um livro escrito por Deus (à sua
imagem) para a leitura dos homens (a tópica do Livro da
Natureza, ou o Livro do Mundo)1. Mas não é tanto essa
tradição clássico-medieval, que chega até Descartes, que me
interessa discutir aqui. É, sim uma reflexão em que o livro
– considerado como mídia – é tanto imagem do mundo como
espelho da própria Literatura. Por isso, tomo como modelo a
obra de três autores em que o livro (e as coleções de
livros) exerceu um papel fundamental, e um certo fascínio:
Mallarmé, Borges e João Cabral.
Mesmo antes de Mallarmé, o livro já era entendido como
o principal meio de preservação e conservação da memória,
registrando, mas também modelando o imaginário. O Dom
Quixote, de Cervantes, por exemplo, é um livro cujo tema
central são os próprios livros, ou o que pode advir àqueles
que os lêem em excesso, ou àqueles que só lêem alguns deles,1 Cf. CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média latina. Rio de Janeiro:I.N.L., 1957. Cf. tb. BLUMENBERG, H. Die Lesbarkeit der Welt.Frankfurt/Main:Suhrkamp,1981. A abordagem de Blumenberg vai além daIdade Média e do Renascimento, e procura entender diferentes concepçõesdo livro do mundo e da “legibilidade” desse livro nas obras de, entreoutros, Schlegel, Humboldt, Valéry e Mallarmé. Cf. Também CHARTIER, R. Aaventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo, UNESP, 1998.
como é o caso de Alonso Quijano, que durante anos só leu
romances de cavalaria.No Dom Quixote há passagens em que o
próprio livro do autor (Cervantes) é discutido e criticado
(ou seja, dentro da obra ficcional), e, num dos capítulos
mais instigantes, na viagem a Barcelona, Dom Quixote e
Sancho visitam uma editora, e descobrem como são feitos os
livros. Montaigne, contemporâneo de Cervantes, escreveu
sobre diversos assuntos baseando-se unicamente no saber
contido nos seus livros, que ele citava fartamente, e que
formavam uma das mais completas bibliotecas de seu tempo.
Biblioteca que, aliás, pela sua disposição topológica, muito
influenciou o modo de pensar do filósofo francês. O escritor
argentino Jorge Luís Borges, nosso contemporâneo, numa clave
ainda moderna, afirma que os utensílios criados pelo homem
são extensões de seu corpo: assim como as ferramentas são
extensão de suas mãos, os livros seriam extensões da
imaginação2.
O romance também pode ser observado, dentro de um
pensamento sistêmico, como o gênero que assume a posição de
principal mídia dentro do sistema literário, a partir do
século XVIII. Siegfried J. Schmidt3 demonstra que a formação
desse sistema, na Alemanha, ao lado das relações com outros
sistemas (econômico – liberalismo; filosófico – iluminismo,
2 BORGES, J.L. Cinco visões pessoais. Brasília:Editora da UnB, 1985. A idéia de mídia como extensão do corpo foi usada também por Marshal McLuhan, em 1962.3 SCHMIDT, S. Die Selbstorganization des Sozialsystems Literatur im 18. Jahrhundert. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989.
etc.), implicava num processo de surgimento da autonomia do
sistema literário em relação aos demais sistemas. Tal
autonomia seria garantida por vários fatores: 1) a formação
de um novo tipo de escritor, independente da igreja ou de
mecenato, sobrevivendo da venda de seus livros, cujas
edições se tornavam cada vez mais numerosas (Schiller podia
vender 10.000 exemplares de William Tell num ano4), e
atribuindo a si uma função moral dentro da sociedade; 2) a
diversificação do sistema de produção e distribuição de
livros, com a separação do entre o impressor, o distribuidor
e o livreiro, diversificação acompanhada pelo aumento
expressivo de publicações – na Alemanha, cerca de 5000
títulos e cinco milhões de exemplares à venda5) a
importância crescente da mediação entre público leitor e os
autores, exercida pelos críticos literários, num número
crescente de jornais e revistas especializadas em livros.
Dentro desse contexto, o romance se desenvolve como
forma burguesa de representação par excellence, uma vez que
expressa as experiências concretas (e até cotidianas) do um
indivíduo agindo no ou em confronto com o meio social
(experiência que irá rumar para um progressivo conflito do
indivíduo com o mundo burguês, nas obras de Goethe e
Schiller) 6. O romance permite ao leitor a descoberta do Eu
como “espaço infinito”, adaptando-se melhor a uma sociedade
4 Id., p. 325.5 Id, ibid.6 Cf. LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Ática, 1998.
que cada vez mais separa a esfera da vida privada
(indivíduo) da esfera pública (sociedade). Sendo assim, o
romance deixa de ser uma forma de diversão aristocrática
(como era no século XVII) para se transformar no instrumento
de criação de uma cultura burguesa7. Por isso, o romance,
mais do que um gênero que simplesmente conquista autonomia
estética, passa a ser a mídia preponderante do século XVIII,
passando a definir todo o funcionamento do sistema
literário,e do meio intelectual. Segundo Schmidt
O romance, permitindo a coexistência da narrativa eda reflexão, desenvolve-se no século XVIII menos comoforma estética autônoma, do que como fórum dadiscussão e da comunicação “burguesa”. Essa é a razãoporque o discurso romanesco interage com outrosdiscursos, que se tornaram correntes no debateteórico-literário desse contexto: o debate damímesis, o debate do gosto, o debate do efeito, odebate sobre a emancipação do indivíduo e suaproblemática posição na sociedade, o debate sobrecasamento, sexualidade e amizade.8
Enquanto o romance se torna paulatinamente o
protagonista da cena literária (do sistema literário), a
poesia vai pouco a pouco se tornar um sistema cada vez mais
fechado (cada vez mais autopoiético), cada vez mais impossível
de comunicação com outros sistemas. O auge desse fechamento
do sistema poético ocorre no final do século XIX, sobretudo
com a obra do poeta francês Stéphane Mallarmé. Num de seus
7 SCHMIDT, S. Die selbstorganisation des Literatursystems…, op. cit, p. 400. 8 Id., p. 401.
textos mais famosos, Mallarmé descreve a “crise” do verso
com uma frase lapidar:
La littérature ici subit une exquise crise,
fondamentale9.
A definição de literatura virá em seguida, associada ao
nome de Victor Hugo, que praticou, pelo que lemos em
Mallarmé, aquela idéia da poesia universal progressiva de F.
Schlegel: “[Hugo] rabattit toute la prose, philosophie,
éloquence, histoire au vers, et, comme il était le vers
personellement, il confisqua chez qui pense, discours ou
narre, presque le droit à s’énoncer » (205). Mas a
associação mais interessante é aquela que Mallarmé
estabelece entre o verso e a literatura, o que deixa claro
que a “crise de vers” é sinônimo de não apenas de uma crise
da poesia, mas uma crise da literatura: “la forme appelée
vers est simplement elle-même la littérature; que vers il y
a sitôt que s’accentue la diction, rythme dès que
style”(id.) A poesia transcende o verso, na medida em que
cada poeta é capaz de encontrar um ritmo e um “instrumento”
(diríamos, uma mídia) adequada. Pois “toute âme est une
mélodie, qu’il s’agit de renouer; et pour cela, sont la
flûte ou viole de chacun.”(208) Esse pensamento “musical” da
poesia, levará Mallarmé a afirmar que a nova poesia está na
9 MALLARME, S. Oeuvres. Ed. Y-A. Favre. Paris: Garnier, 1985, p.205. Doravante cito essa edição com a numeração da páginas entre parênteses.
música de Wagner : “ou la musique rejoint le Vers pour
former, depuis Wagner, la Poésie.”(209) Trata-se aqui de
buscar, na poesia, tal como ela se apresenta – encerrada no
livro – uma outra forma de poesia, “dos tempos incubatórios”
(208), capaz de transcender – “je la dis Transposition –
Structure”(211) – o dado referencial, que a linguagem força
à presença, rumo ao dado musical, através do poder da
sugestão: “libérer, hors d’une poignée de poussière ou
réaltié sans l’enclore, au livre, même comme texte, la
dispersion volatile soit l’esprit, qui n’a que faire de rien
outre la musicalité du tout.”(210). Isso se obtém pela
famosa tese de uma “obra pura” obtida através da
“disparition élocutoire du poëte, qui cède l’initiative aux
mots” através do “ancien soufle lyrique” (211).Não se trata
aqui, como queria Hugo Friedrich10, apenas de uma
Entpersonalisierung, sem outra conseqüência que o afastamento do
poeta do mundo (Entrealisierung) trivial e burguês (coisa que
Mallarmé não aprovaria). Trata-se de trazer a poesia de
volta para a sua materialidade, para o seu caráter performativo,
ou seja, para o seu devido lugar nesse mundo.
Por isso, o Livro será visto como instrumento
espiritual, não no sentido de um esvaziamento de
significação em relação à realidade, mas de uma vivificação
de seu espírito através da letra: “hymne, harmonie et joie,
comme pur ensemble groupé par quelque circonstance
10 FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
fulgurante, de relations entre tout.”(224) Mallarmé se
queixa de que o livro até então não fora considerado em seu
aspecto “exterior” (224), e decide fazê-lo comparando-o com
o jornal, que é a forma de mídia impressa preponderante,
tanto do ponto de vista econômico e político, quanto do
ponto de vista do público leitor. A primeira e importante
constatação: a crise começa na “livraria”, metonimicamente
representando a literatura (produção e mercado literários):
“de discredit où se place la librairie, a trait, moins à un
arrêt de ses opérations, je ne le découvre; qu’à sa notoire
impuissance vers l’oeuvre exceptionelle (293)”. A questão
que se coloca para o poeta é ainda mais cruel: “à quoi bon
trafiquer de ce qui, peut être, ne doit se vendre, surtout
quand cela ne se vend pas.”
A obra excepcional, para Mallarmé, está menos associada
a uma qualidade intrínseca da literatura, do que a uma
correlação entre a literatura e a forma de “obra” que
realmente interessa o público, aquela que se lê nos jornais
e nas revistas (a mídia, como diríamos). Mallarmé tem
consciência de que as mudanças no hábito de leitura que a
imprensa jornalística trouxe foram muito mais importantes do
que todos os movimentos literários. “Un commerce, resumé
d’interêts énormes et élementaires, ceux du nombre, emploie
l’imprimerie, pour la propagande d’opinions, le narré du
fait divers et cela devient plausible dans la Presse, limité
à la publicité, il semble, omettant un art(...) la fiction
proprement dite s’ébat aux travers de ‘cotidiens’
achalandés, triomphant à des lieux principaux, jusqu’au
sommet.” (291)
Mallarmé refere-se aí provavelmente ao espaço que
ocupavam dentro da mídia os romances e folhetins, e ao
espaço que passou a ocupar uma diversidade de textos
jornalísticos que oscilavam entre a prosa criativa e o
ensaio. Mas é sobretudo a forma gráfica que trazia a “arte”,
anunciando uma possibilidade nova para a poesia: “A juger
l’extraordinaire surproduction actuelle, ou la Presse cède
son moyen intelligemment, la notion prévaut, cependant, de
quelquer chose de très décisif, qui s’élabore: comme avant une ère, un
concours pour la fondation du Poème populaire moderne... ”(292,
grifos meus). O Livro, é em parte, o resultado dessa busca,
assim como Un coup de dés é uma “amostra” (ou uma caricatura?)
desse livro, na medida em que buscava incorporar ao poema o
“movimento” da tipografia. Tivesse vivido nos anos 20,
Mallarmé teria chegado à conclusão de o cinema poderia ser
esse poema popular moderno, como Einsenstein. No entanto,
sua preocupação com o verso, o levou a pensar um outro
destino para o livro.
É por isso que “Le livre, instrument spirituel”, começa
com a frase, já conhecida de seus contemporâneos, de que
“tout au monde existe pour aboutir à un livre” (294). Essa
frase, ao contrário do que querem muitos literatos, deveria
ser lida enfatizando-se o artigo (“un”) e não o substantivo
(“livre”). Pois é em um livro que Mallarmé está pensando,
não em um livro qualquer. Por isso ele começa o ensaio
descrevendo a si próprio, sentado num banco de jardim, com
um livro nas mãos e um jornal (descrito pejorativamente como
“lambeau” (294), mas depois como “feuille étalée, pleine”
(296). Passa a comparar então o livro com o jornal, e vê
neste último uma série de conquistas: para começar, a dobra,
ou “pliage” do jornal, que permite a fantasia de se penetrar
sensorialmente no texto (e sem o recurso de uma faca, como
se fazia, para abrir as folhas de um livro); a disposição
inteira (“à même”, p. 295) do texto numa página (não
quebrada, pouco a pouco, como no livro); a seqüência de
vários tipos de texto, inclusive de anúncios, que o leitor
vai selecionando conforme a sua fantasia; e sobretudo as
diversas possibilidades de “composição tipográfica”, que
transformam as “vinte e tantas letras” num “rito” (296).
Por isso, o livro deveria ser “a expansão total da
letra” (296), aproveitando dela uma “mobilité” (id.),
criando um “jeu” (id.) que “confirme la fiction”. Um livro
não deve ser um amontoado de temas ou histórias ou frases ou
versos ou sonetos que depois serão inseridas num livro,
como se este fosse matéria inerte e indiferente ao que foi
escrito. Um livro deve ser planejado como livro, em sua
“materialité” (296) antes mesmo de ir ao prelo: “la
fabrication d’un livre, et de l’ensemble qui s’épanouira,
commence dès une phrase” (296). Não é sem razão que a
literatura está em crise, pois ela se transformou numa seita
de nefelibatas flutuantes no livre jogo da imaginação
(poetas, escritores) e da interpretacão (críticos,
professores de literatura), que não atentam para a
materialidade daquilo que lhes permite a sobrevivência, o
livro. Por isso, a empreitada de Mallarmé parece tão
difícil, para ele mesmo, e para seu discípulo Valéry, que
chegou a imaginar a construcão de uma “máquina tipográfica”
que criasse o Livro automáticamente. Mallarmé tem
consciência de que tal livro ainda não fora escrito, uma vez
que os livros consistem, na sua totalidade, num “va-et-vient
successif incessant du regard, une ligne finie, pour
recomencer: pareille pratique ne répresente le délice”
(296). Pelo contrário, é indice de uma monotonia extrema:
“toujours l’insupportable colonne qu’on s’y contente de
distribuer, en dimensions de page, cent et cent fois”(297).
Mais...(297)
Introduzindo assim, com essa conjuncão adversativa
isolada num parágrafo, em itálico, Mallarmé passa apresentar
seu programa, uma mínima amostra dele. Por que não, por
exemplo, uma página composta de uma única linha (mantendo o
leitor em espera), seguida de grupos secundários de frases
noutra página, dispostas como “un semis de fioritures”(208).
Essa é uma das vias que a poesia pode tomar para encontrar a
Música, não apenas através do ritmo do verso ou de
artifícios retóricos (assonâncias, rimas, paronomásias), mas
de um encontro com a materialidade do livro em outras bases:
uma “Sinfonia literária” não se faz sem se reconhecer que a
literatura passa em primeiro lugar pelo olho do leitor. Por
isso, o “mistério da letras” é menos misterioso do que
parece ser. O que parece “ininteligível” – a acusação que
Mallamé já conhecia de ser obscuro – é na verdade “peu
séparable de la surface concedée à la rétine” (301). O
leitor – inclusive o profissional – quer o sentido do texto,
um sentido que está por trás das palavras impressas, por
isso se tece entre tal leitor e o livro “um véu” (298). A
verdade é que o sentido, se há, está na página mesmo, em sua
superfície, tão visível para o leitor (ou invisível,
dependendo do caso) quanto uma borboleta branca no meio de
uma multidão (298).
Resta saber se ainda há tal leitor.
Menos conhecido do público e da crítica é o Mallarmé
jornalista. Melhor seria dizer: tipógrafo-editor-jornalista,
de uma revista de moda feita para as mulheres mais elegantes
de Paris, e sobretudo de Versalhes. Entre setembro e
dezembro de 1874 (portanto ainda sob os ventos da Comuna),
Mallarmé dedica-se com afinco na edição de La Dernière Mode:
Gazette du Monde et de la Famille11. Mallarmé não apenas
supervisionava o trabalho editorial (incluíndo a composição,
que lhe valeu uma experiência material com a tipografia, que
seria depois utilizada no Un coup de dés), mas redigia, ou
11 MALLARME, S. La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille. Paris : Ramsay, 1978.
melhor plagiava, textos sobre os mais diversos asssuntos de
moda, como os tecidos da estação, os melhores chapéus, os
vestidos de noiva, e tudo o que poderia tornar mais atraente
uma mulher do monde parisiense. Mesmo que seus textos
fossem pastiches de outras revistas da época, como
demonstrou a pesquisadora japonesa Tomoko Sasahara12, não é
impossível de se ver por trás do texto-pastiche o texto
“autoral”, um pouco como acontece com o Pierre Ménard de
Borges. Veja-se, por exemplo (e com todas as vírgulas), o
texto sobre as “Jóias”, que ele assina sob o pseudônimo de
Margarette de Ponty:
Cherchons le Bijou, isolé, en lui-même. Où ?partout ; c’est-à-dire un peu sur la surface duglobe, et beaucoup à Paris : car Paris fournit lemonde de bijoux. Qui ! Toute contrée, comme, par sanature, une flore, ne présente-t-elle pas, issus demains de l’homme, un écrin complet ? L’instinct debeauté et de relation avec des climats divers, quirègle, sous chaque ciel, la production des roses, detulipes et des oeillets, est-il étranger à celle despendants d’oreilles, de bagues, de bracelets ? Fleurset joyaux : chaque espèce n’a-t-elle pas comme quidirait son sol ? Tel éclat de soleil convient à cettefleur, tel type de femme à ce joyau.13
Além das conseqüências filosóficas para a sua poesia de tais
afirmações, do ponto de vista da repercussão e imbricação
mútua de uma na outra (como ocorre nessa frase lapidar
“Cherchons le Bijou, isolé, en lui-même”, que bem poderia12 Apud MALLARME, S. Oeuvres Complètes II. Ed. Bertrand Marchal. Paris, Gallimard, 2003. p. 1715. 13 MALLARME, S. La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille. Paris : Ramsay, 1978, p. 25.
ser um verso de um de seus poemas), é importante salientar o
rigoroso trabalho de lay-out , com a utilização de diversos
tamanhos e formas de tipos, que possibilitam a
verticalização da leitura, e também com o aproveitamento
orgânico dos espaços em branco e das gravuras, que passam a
compor com os textos uma unidade indissolúvel. Não é difícil
perceber que La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille foi a
oficina de preparação de Un coup de dés, embora ambas as
“obras” pareçam pertener a universos bem distintos: um, ao
universo da coqueteria e da vaidade, outro ao universo de
uma poesia de vanguarda, feita de modo subtilíssimo, para um
círculo restrito de leitores. A verdade, no entanto, é que a
distância pode parecer menor, se observarmos as edições da
revista de moda, e do poema tipográfico, sob o prisma da
estética. Pois, de um ponto de vista não dogmático, o domínio
dos cosméticos e o da cosmologia são um e o mesmo, o da
ordem e beleza do kosmos.
Assim como Mallarmé, o escritor argentino Jorge Luís
Borges escreve uma “literatura de segundo grau”, que fascina
não apenas os literatos, mas todo um rol de pensadores e
escritores pós- (estruturalistas, modernos), como Foucault,
Hayden Whyte, Italo Calvino. Num de seus textos mais
célebres, “La Biblioteca de Babel”14 o escritor argentino
Jorge Luís Borges desenvolve uma de suas diversas
cosmogonias, em seu tão peculiar estilo ensaístico-
14 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1974. Doravante citoessa edição no texto, com a numeração entre parênteses.
ficcional: “El universo (que otros llaman la Biblioteca) se
compone de un numero indefinido, y tal vez infinito, de
galerías hexagonales...”
Sabemos que Borges cultivou desde cedo um fascínio
pelos livros, não apenas pelo seu conteúdo, mas por sua
própria materialidade. Além do fato de ter sido Diretor da
Biblioteca Nacional de Buenos Aires, atesta-o sua paixão por
certos volumes raros, suas constantes referências à
Britannica e a edições específicas de alguns autores (De
Quincey, Dante), seu estilo bibliofílico, de passar de um
livro a outro em seus textos como quem anda entre estantes
de uma biblioteca universal, além dos textos em que o livro
é o tema (como os contos “A muralha e os livros” ou “O
livro de areia”). A idéia contida em alguns conto e ensaios,
de um livro único e irrepetível, coaduna-se com a filosofia
de Borges, segundo a qual toda repetição de um evento ou de
um ser, é não apenas improvável, mas fastidiosa. No entanto,
o mundo é para Borges um pesadelo de repetições, como as
incontáveis salas iguais do Labirinto. Por isso também
Borges odiava os espelhos, pois o espelho é uma diabólica
ferramenta para criar novas formas de repetição. Borges,
mesmo cego, ainda o odiava:
El hecho de no verte y de saberteTe agrega horror, cosa de magia que osasMultiplicar la cifra de las cosasQue somos y que abarca nuestra suerte.(“Al espejo”, p. 1134)
Assim como o espelho, o Eterno retorno seria a sua
forma filosófica de refutar a multiplicação, e afirmar que
não há passado nem futuro, apenas o presente, e que este
contem em si todas as coisas, como já afirmava Agostinho15.
Em outros termos, Borges nega a infinita variedade das
coisas do mundo, dizendo que a combinação das coisas
diferentes (como o alfabeto) só gera coisas análogas
(esteticamente, Borges desautoriza a idéia de “novo”).
Percebe-se um certo pessimismo em suas afirmações, que se
coadunam com o tão propalado conservadorismo político. Mas
não se trata de pessimismo, mas sim de uma atitude de quem
quer entender a Rerum natura a partir de um princípio antigo,
eléatico, de que, se tudo é movimento, não há movimento. E
portanto, o mal e o sofrimento são ilusórios, assim como a
necessidade de deuses, ou de um Deus (ou de um Livro). Ele
próprio afirma que a doutrina da invariabilidade das coisas
pode ser um consolo em tempos sombrios (entenda-se, em
tempos como os de Perón): “En tiempos de auge la conjetura
de que la existencia del hombre es una cantidad constante,
invariable, puede entristecer o irritar: en tiempos que
declinam (como éstos), es la promessa de que ningún oprobio,
ninguna calamidad, ningun dictador podrá empobrecernos” (“El
tiempo circular”, 396).
15 Como afirma Monegal, “L’idéalisme de Borges est un solipsisme(…)pour soutenir que, hors du présent, le temps n’existe pas, que ce même présent que contemple notre moi est déjà de nature ilusoire”. MONEGAL, E.R. Borges par lui-même. Paris: Seuil, 1970, p. 47.
É necesário recordar, como fez a sua amiga María Esther
Vázquez, que “A biblioteca de Babel” é um reflexão que
Borges faz a partir de sua vida pessoal. Entre 1937 e 1946,
Borges trabalhou numa pequena biblioteca de Buenos Aires, a
Biblioteca Municipal Miguel Carné, onde ficou até ser
trasladado, pelo regime peronista, ao humilhante cargo de
inspetor de aves, ovos e coelhos16. Na Biblioteca Miguel
Carné, Borges teve que se adequar a um trabalho medíocre de
catalogação burocrática de livros desinteressantes. A visão
dos bibliotecários e dos espaços em seu conto resulta dessa
atmosfera “kafkiana” de seu trabalho na Miguel Carné. Mas o
significado do conto ultrapassa os limites das referência
biográficas. Senão, vejamos.
Seu argumento transforma a Biblioteca numa metáfora do
Universo – mais do que isso, um nome17 para o Universo. As
salas hexagonais, compostas cada uma “invariablemente” de
vinte estantes, interligam-se por corredores iguais. Nos
saguões da Biblioteca, encontra-se um espelho que “duplica
as aparências”, e que leva alguns homens a acreditar que o
espelho é uma prova de que a Biblioteca (leia-se, o
Universo) não é infinita, ao que o narrador retruca,
reticente: “yo prefiero soñar que las superficies bruñidas
figuran y prometen el infinito...” (465) O narrador
borgesiano usa aqui uma de suas táticas, a de contrapor duas16 VÁZQUEZ, M. E. Reflexiones acerca de “La Biblioteca de Babel”. Barcelona: Anthropos, n. 142-143, marzo-abril 1993, p. 97-104.17 Cf. “El Golem”: (“El nombre es arquetipo de la cosa / En las letras de rosa está la rosa”)
visões de mundo opostas, criando um paradoxo hermenêutico –
sua forma estilística de traduzir o labirinto e as
“fastidiosas repetições” dos espelhos. Por um lado,
afirmando sua predileção, apresenta uma das “escolas”
filosóficas dos habitantes da Biblioteca, que argumentam que
todas as salas são idênticas, e, logo, infinitas. Ao
contrário destes, os “místicos” acreditam na existência de
uma grande sala circular, com um livro “circular de lomo
continuo”. Trata-se, aqui, de uma visão teológica, que se
define pela célebre sentença medieval sobre Deus, traduzida
por Borges para esse contexto: “La Biblioteca es una esfera cuyo
centro cabal es qualquier hexágono, cuya circunferencia es inaccesible”
(406).
Ao continuar a descrição (ou interpretação?) da
Biblioteca, o narrador elabora dois axiomas para descrevê-
la. 1) a biblioteca é eterna (“existe ab aeterno”), sendo o
homem apenas um momento na eternidade da Biblioteca; 2) “El
número de simbolos ortográficos es veinticinco” (406). Numa “nota do
editor”, afirma-se que estão excluídos os algarismos de as
maiúsculas”, e incluídos o ponto e a vírgula, além do
espaço. Essa afirmação, por mais tautológica que possa
parecer, constitui o vórtice do texto de Borges. Pois é a
possibilidade de combinação infinita desses vinte e cinco
símbolos que cria a infinita variedade e diversidade de
livros, e também a infinita diversidade e variação de
interpretações. Por isso a Biblioteca é “de Babel”. Ela pode
conter em si todas as combinações possíveis, o que resulta,
para alguns, num universo caótico e sem sentido. O narrador
afirma que com essas combinações, tudo pode estar contido na
Biblioteca:
La historia minuciosa del porvenir las autobiografíasde los arcángeles, el catálogo fiel de la Biblioteca,miles y miles de catálogos falsos, la demostración dela falacia de eses catálogos, la demostración de lafalacia del catalogo verdadero, el evangelio gnósticode Basílides, el comentário de ese evangelio, larelacción verídica de tu muerte, la versión de cadalibro a todas las lenguas, las interpolaciones decada libro en todos los libros, el tratado que Bédapudo escribir (y no escribió) sobre la mitología delos sajones, los libros perdidos de Tácito. (468)
Essa consciência teria dado, segundo o narrador, uma
esperança aos homens, uma vez que, se tudo poderia estar
contido na Biblioteca, não haveria problema que não pudesse
ser resolvido graças à descoberta de algum livro que
trouxesse uma solução. No entanto, séculos depois, os homens
perderam a esperança, e começaram a surgir seitas que
acreditavam em livros perdidos para sempre, outros que
achavam melhor queimar todos os livros (uma sutil alusão aos
nazistas). Outra crença, também composta de fanáticos,
passou a acreditar nas palavras do Homem do Livro, segundo o
qual deveria haver um livro único que contivesse tudo o que
foi dito em todos os demais.
Ao final do conto, o narrador volta ao “antíguo
problema” do infinito18, para dizer que a Biblioteca não é
infinita: melhor acreditar que ela seja ilimitada e
periódica. Ou seja: “se un eterno viajero la atravessara en
cualquier dirección, comprobaría al cabo de los siglos que
los mismos volúmenes se repiten en el mismo desorden (que,
repetido, seria un orden: el Orden). Mi soledad se alegra
con esa elegante esperanza” (471). Estamos aqui diante do
mesmo postulado de “El jardín de los senderos que se
bifurcan”, segundo o qual não há um tempo uniforme e
absoluto (como na física newtoniana), mas uma série de
tempos que se bifurcam e correm paralelos. O personagem do
conto, Stephen Albert, alude à teoria do avô de Yu-Tsun
(espião e assassino), Ts’ui Pen (que dedicou sua vida a
criar um romance e construir um labirinto), o qual
creía en infinitas series de tiempos, en una redcresciente y vertiginosa de tiempos divergentes,convergentes y paralelos. Esa trama de tiempos que seaproximan, se bifurcan, se cortan o que secularmentese ignoran, abarcan todas las possibilidades. Noexistimos en la mayoría de esos tiempos; en algunosexiste usted y no yo; en otros, yo, no usted; enotros, los dos. (479)
18 Com o problema do infinito também se depararam os atomistas. Leibniz,que critica alegoria das letras dos atomistas (o alfabeto seria um modelo para entender as combinações do átomos), imagina uma representação do mundo como uma Biblioteca Universal. Borges não menciona Lebniz. Sobre o tema leibniziano da Biblioteca, Cf. BUMEMBERG, Hans. Die Lesbarkeit der Welt. Frankfurt/Main: Surkhamp, 1981, cap. X.
A necessidade de que as variações não sejam infinitas é
também tema do conto “Funes, el memorioso”. Irineo Funes era
um personagem dotado de uma espécie de distúrbio da memória,
que lhe tornou possível de recordar-se de absolutamente
todas as coisas que viveu, viu, sentiu. A memória de Funes é
como aquele nominalismo absoluto de Locke, citado por
Borges, segundo o qual todas as coisas poderiam ter um nome
próprio. Ele não conseguiria pensar num cão genérico, apenas
nos infindáveis cães que cruzou pelo seu caminho. Ou seja,
Funes não era capaz de pensar, pois “pensar es olvidar
diferencias, es generalizar, abstraer” (490).
O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu
uma poesia em que o aparente conflito entre a abstração e a
concretude se resolve na materialidade do poema. João Cabral
descobriu muito cedo, com Valéry, que o interesse da poesia
está nesse jogo de um pensamento puro, capaz de abstrair as
coisas, e a sua contrapartida, que é o rigor de fazê-las
materializar-se na escrita. Assim, ele elabora uma
Psicologia da Composição, título de um de seus livros, em
que descreve essa tensão entre o concreto e o abstrato na
linguagem:
Flor é a palavraflor, verso inscritono verso, como asmanhãs no tempo.
Benedito Nunes demonstrou que João Cabral cria em seus
poemas um nexo metafórico, de caráter mágico-mítico, para
depois desfazer a trama de imagens, através de um processo
de desagregação da metáfora, que desnuda a linguagem: “uma
vez que o mecanismo desnudado foi o da própria linguagem, em
seu mecanismo real, a imagem da flor será, finalmente,
convertida à matéria lingüística de seu suporte verbal, a
palavra mesma, como signo escrito”19. A poesia de Cabral
realiza assim um processo de materialização da escrita,
tornando palpável ao leitor não apenas a ferramenta com que
trabalha (a linguagem, as palavras), mas o próprio suporte,
a própria mídia. Não é por acaso que João Cabral resolveu
ele mesmo dedicar-se à impressão de livros, numa velha
tipografia manual Minerva. Sua poesia está profundamente
impregnada de uma reflexão sobre os livros, e sobre como a
escrita e o livro dão forma ao fluxo e à dispersão da fala,
criando uma obra de engenharia20 poética.
As tópicas da escrita e do livro aparecem ao longo de
toda a obra de Cabral, e vão assumindo diferentes valores. A
princípio, a escrita surge descrita como luta para despir-se
de uma poesia cheia de “flores”. Graças a uma atenção ao ao
aspecto “mineral” do papel, o poeta obtém o controle da
expressão:19 NUNES, B. João Cabral: a máquina do poema. Org. Adalberto Müller. Brasília:Editora UnB, 2007.20 Lembre-se que seu livro decisivo se chama O engenheiro, e que, entre seus mentores mais importantes, está o poeta e engenheiro Joaquim Cardozo, que foi responsável por muitas das obras da construção de Brasília, na parte de cálculo.
Neste papellogo fenecemas roxas, mornas flores morais;todas as fluidasflores da pressa;todas as úmidasflores do sonho21.
A luta do poeta contra o fluido, o apressado e o úmido
corresponde a uma vontade de petrificar-se, o que o situa
dentro de uma tradição que remonta, pelo menos, a Horácio,
com seu desejo de criar um monumentum aere perennius – desejo
que, em Cabral, converter-se-á num exercício ascético, numa
“educação pela pedra”, como diz o título de um livro seu.
Mas as linhas mestras desse projeto estético já estão
claramente definidas na Psicologia da composição:
É mineral, por fim,qualquer livro:que é mineral a palavraescrita, a fria natureza
da palavra escrita (96).
Vê-se que, para Cabral, o caráter “mineralizante” não
se limita à poesia, mas à natureza mesma do livro e da
escrita. Por isso, a busca da poesia será a de “cultivar o
deserto/ como um pomar às avessas” (id.) Uma das
consequências dessa atitude será uma mineralização da
própria subjetividade, que já se separa do corpo no ato21 MELO NETO, J. C. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994, p. 94.
mesmo de escrever, assumindo uma posição distanciada com
relação aos sentimentos, o que se reconhece com facilidade
na poesia de Cabral, e sobre o que já muito se escreveu22.
Outra, menos comentada, é uma espécie de tranferência de
características da escrita e do livro para as coisas mesmas.
É o que ocorre com um poema de Paisagens com figuras, intitulado
“Paisagem tipográfica”, sobre o trabalho do artista e
especialista em tipografia catalão Enric Tormo:
(...)A paisagem tipográfica de Enric Tormo, artesão,é ainda bem mais simplesque a horizontal do Ampurdán:
é ainda mais despojada que a vila de Cervera,compacta, delimitadacomo bloco na galera.
A paisagem tipográficade Enric Tormo impressor, é melhor localizadaem vistas de arte menor:na pobre paginaçãoda Tarassa e Sabadell,nas interlinhas estreitasdas cidades do Vallès,
nos bairros industriaiscom poucas margens em brancoda Catalunha fabrilcomposta em negro normando(...)(159)
22 Cf. NUNES, B., op. cit.; LIMA, L. C. Lira e antilira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995; MERQUIOR, José G. Razão do Poema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965; VILLAça, A.
Tal como, durante séculos, usou-se o “livro” como uma
metáfora para representar imageticamente o mundo, tornando-o
assim “legível”23, Cabral descreve a Catalunha através de
uma curiosa e divertida confusão entre topografia e
tipografia, tornando sensível ao leitor não apenas o
“significado” do texto, mas a implicação material do texto
no livro. Assim, a paisagem se torna concreta, não se
dispersa numa série de impressões vagas, transformando-se
num exemplo contra toda forma de dispersão. Trata-se, como
se vê, numa atitude estóica, mas do estoicismo materialista
de Lucrécio. Só que ao invés de investir contra os males da
religião, como fez Lucrécio, Cabral procura criar uma
educação pelos sentidos, para ver e compreender o mundo de
olhos abertos, acreditando que o fazer e o criar são sempre
melhores do que a indiferença. É o exemplo da pintura de
Mondrian:
(...) quando a alma borracha tem os músculos lassose é incapaz de molaspara atirar-se ao faço (...)
(...)só essa pintura pode,com sua explosão fria, incitar a alma murcha,de indiferença ou acídia(...)(378)
A culminância dessa visão didática e construtiva é
atingida em A educação pela pedra, livro construído segundo
23 BLUMENBERG,H., op. cit., passim.
critérios geométricos e algébricos24, em que Cabral atinge o
ideal da filosofia arquitetônica de Le Corbusier e da
poética filosófica de Paul Valéry: a de transformar o livro
numa machine à emouvoir. Deixando de lado as amplas
implicações semânticas e históricas desse livro-chave, vale
acreditar que ele contém em si mesmo o seu próprio “manual”,
que desvela ao leitor o funcionamento de seu mecanismo, ou
de sua mola. Encontra-se esse manual em diversos poemas já
bastante comentados, como o clássico “Catar feijão”, ou
“Tecendo a manhã”, tomados como exemplo de poesia
metalingüística e moderna. Contudo, é na questão menos
observada da materialidade da escrita e do próprio livro que
se pode atar melhor os “fios” dessa poesia, e revelar, no
fundo, qual é o comprometimento de Cabral com a Literatura.
Tal questão surge de maneira muito clara em dois poemas:
“Retrato do escritor” e “Para a feira do livro”, que, aliás,
é o último poema de A educação pela pedra:
RETRATO DO ESCRITOR
Insolúvel: na água quente e na fria;nas de furar a pedra ou nas langues ;nas águas lavadeiras; até nos álcooisque dissolvem o desdém mais diamante.Insolúvel: por muito o dissolvente ;igual, nas gotas de um banho ao lado,e nas águas do banho que o submerge, em beatitude, e de que emerge ingasto.
*
24 Uma leitura precisa desses aspectos em NUNES, B. A máquina do poema, op. cit.
Solúvel: em toda tinta de escrever,o mais simples de seus dissolventes ; primeiramente, na da caneta-tinteirocom que ele se escreve dele, sempre(manuscrito, até em carta se abranda,em pedra-sabão, seu diamante-primo) ;solúvel, mais: na da fita da máquinaonde mais tarde ele se passa a limpoo que ele se escreveu da dor indonésialida no Rio, num telegrama do Egito(datiloscrito, já se acaramela muitoseu diamante em pessoa, pré-escrito).Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,da rotativa, manando seu auto-escrito(impresso, e tanto em livro-cisternaou jornal-rio, seu diamante é líquido).25
João Cabral desenvolve aqui, à sua maneira, aquela
idéia expressa em muitos teóricos da oralidade e da mídia,
de que o surgimento da escrita e o desenvolvimento do livro
produzem várias espécies de separação: do corpo em relação à
mídia, do sujeito em relação ao sentido, do autor em relação
ao leitor (Ong26, Gumbrecht27,Kittler28). Para Cabral, as
diversas formas de escrita constituem diferentes graus de
dissolução ou solvência do sujeito em relação ao seu texto. A
princípio, o sujeito, sem a escrita, ou ainda sem escrever,
é tomado como uma unidade inteira e “insolúvel”, palavra que
25 MELO NETO, J. C. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor,1966, p. 94-95. Cito os poemas a partir dessa edição, por ser a que preserva intacto o projeto matemático-geométrico do livro, sobretudo no que diz respeito à paginação.26 ONG, W. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998. [Orality and literacy, London, 1968]27 GUMBRECHT, H. U. Modernização dos sentidos. São Paulo: 34, 1998.28 KITTLER, F. Gramophone, film, typewriter. Stanford: Stanford University Press, 1999.
pode ter tanto um sentido físico (o de solvência) quanto um
sentido moral ou gnômico. Para Cabral, o sujeito em questão
(o escritor) não se dissolve nas coisas, ou com as coisas,
ele mantém-se inteiro, mantém aquela “resistência” que o
poeta admira na pedra, ou nas lâminas de aço. Ao contrário
do sabão do poeta Francis Ponge29, alegoria de um ser/poeta
que se confunde com o seu meio (a água), formando “bolhas
retóricas”, o escritor de Cabral se afasta de toda forma de
solvência, como a água doméstica (a vida íntima), a água da
desrazão (os “álcoois”) ou a água da religião (“o banho que
o submerge, em beatitude”30).
Mas, no exercer de seu ofício, eis que o poeta,
empedernido ou empedrado31 no ato do fazer, se torna
solúvel, em diferentes graus. Observe-se que quanto mais o
porcesso de escrita se afasta do corpo, tanto mais “solúvel”
se torna o escritor. A meta a atingir, assim, é a de uma
assepsia, a “luta corporal” se converte no
“diamante...líquido” da folha impressa, seja em livro
(“cisterna”), em que a comunicação é restrita, ou jornal
(“rio”), em que a comunicação se abre para um público mais
amplo, perfazendo o ideal da comunicação escrita (cf. “Rios
sem discurso”). Como já se observou, a poesia de Cabral
oscila entre “duas águas”, uma mais fechada e auto-29 Cf. PONGE, F. O sabão. Tradução e notas de Adalberto Müller. In: MÜLLER, A. Música e mímesis na obra de Francis Ponge. Tese de Doutorado.Universidade de São Paulo: 2002.30 Essa imagem é de Ponge, em O sabão, op. cit.31 Cf. F. Ponge, “Le galet”/ “O seixo”, em O partido das coisas. São Paulo: Iluminuras, 2000.
referencial, outra de maior “volume na área de
comunicação”32. Por isso, não estranha que a definição de
livro do poema a seguir o apresente como um objeto “mudo”:
PARA A FEIRA DO LIVRO A Ángel Crespo
Folheada, a folha do livro retomao lânguido e o vegetal da folha folha,e um livro se folheia ou se desfolhacomo sob o vento a árvore que o doa ;folheada, a folha de um livro repetefricativas e labiais de ventos antigos,e nada finge vento em folha de árvoremelhor do que vento em folha de livro.Todavia a folha, na árvore do livro,mais do que imita o vento, profere-o :a palavra nela urge a voz, que é vento,ou ventania, varrendo o podre a zero.
*
Silencioso: quer fechado ou aberto,incluso o que grita dentro ; anônimo:só expõe o lombo, posto na estante,que apaga em pardo todos os lombos ;modesto : só se abre se alguém o abre,e tanto o oposto do quadro na parede,aberto a vida toda, quanto da música,viva apenas enquanto voam suas redes.Mas apesar disso e apesar de paciente(deixa-se ler onde o queiram), severo:exige que lhe extraiam, o interroguem;e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
Dedicada ao seu tradutor e amigo espanhol Ángel Crespo,
o poema que fecha A educação pela pedra constitui uma especie de
32 Cf. NUNES, B., op. cit, Prefácio.
porta de saída ou postigo, para quem entrou na maquinaria da
poesia. Desenvolve-se, na sua primeira parte, através de um
símile complexo, composto de três elementos: folha (da
árvore)-folha (do livro) ; árvore-livro ; vento-voz, para
mostrar que o livro acaba desmentindo ou superando a sua
origem (folha, árvore, voz), ou dela se separando. Na
segunda parte, uma nova série de símiles, agora em forma de
comparação, entre o “fechado” e “anônimo” do livro e o
“aberto” da pintura e da música. Não é por acaso que o ponto
de culminância da definição do livro seja o termo “severo”,
seguido apostos. Ele lembra tanto a severidade de Severino
(Morte e vida severina), capaz de enfrentar as adversidades da
miséria, quanto o comportamento rigoroso e ascético do
próprio poeta no seu fazer.
A ascese tão buscada de Cabral, que culmina na “máquina
do poema”, é fruto de uma série de parti pris estéticos, éticos
e políticos. Estéticos, porque toma de antemão o partido de
uma poesia antilírica, contra uma tradição, segundo Cabral,
demasiado sentimental, típica da lírica de língua
portuguesa33; ao mesmo tempo, investe contra a indefinição,
o vago, o impreciso, de uma tradição simbolista, presente
ainda em certos autores do surrealismo, ou adjacentes a
ele34. Éticos, quando assume o comprometimento da poesia
menos com questões pessoais e mais com a realidade social,
não se furtando a valer-se de seu caráter didático, para
33 Cf. Da função moderna da poesia, em Obras completas, op. cit., passim.34 Cf. “Anti-Char”, em Museu de tudo, Obras completas, op. cit.
escrever sobre problemas brasileiros, como a miséria ou a
mortalidade infantil. Políticos, enfim, porque se converte
num projeto coerente e um exemplo de obstinação do correto e
do duradouro (“lição de pedra”), num um país onde as obras
públicas são feitas para durar um ou dois mandatos, onde
“tudo parece que é construção e já é ruína”35, como canta
Caetano Veloso, onde a política virou sinônimo de corrupção
e da utilização da coisa pública como patrimônio familiar.
Mas a contrapartida disso, é óbvio, é uma perda de
naturalidade, de encantamento, e de en-canto, que os poetas
brasileiros da geração dos anos 70 e 80 irão criticar em
Cabral. Pois, como vimos, em A educação pela pedra Cabral
converte-se enfim num homem-livro (como o Poe, eternizado na
sua obra-lápide, segundo Mallarmé)36, e a Literatura chega,
acaso, ao seu fim, ou à sua finalidade. Resta saber se, além
da Literatura, aina há poesia. A resposta pode ser
afirmativa, se a pensarmos também em outras mídias, ou a
partir de outras mídias. Se a pensarmos na voz, solúvel e
soluçante do performer, porque não-morta no “mineral” do
livro. Se pensarmos na música, dispersa e “viva enquanto
voam suas redes”, e por isso mesmo mais instigante, feita da
matéria mesma da vida, de seu fluxo. Se a pensarmos nesse
“papel de vidro”, que se movimenta sem que o leitor perceba,
que é o texto digital na tela do computador. O próprio
35 VELOSO, C. “Fora da ordem”. Circuladô.36
? “Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change”.