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Inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa
do Consumidor – Critério de Julgamento (sob a ótica do
juiz) e critério de procedimento (para o fornecedor)
Paulo Hoffman
Mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.
Especialista em Processo Civil pela Università Degli Studi di Milano e pela
PUC-SP. Sócio do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Professor da
Escola Superior da Advocacia. Advogado em São Paulo.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Juiz, Justiça e
Imparcialidade – 3. A importância do CDC – 3.1.
As armadilhas do CDC – 3.2. Conceito de
hipossuficiência – 4. O momento processual
adequado para o juiz determinar a inversão do
ônus da prova – 4.1. A abrangência – honorários
– 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Alguns temas atraem de imediato a
atenção dos operadores do direito e se transformam em verdadeiros
“modismos”, em assunto obrigatório de todas as rodas e discussões
jurídicas, seja pelas mudanças que acarretam no sistema, pela inovação ou,
ainda, pelo caráter de “vanguarda” que representam. Sobre o mote, então,
2
escreve-se, discute-se e debate-se à exaustão, até que, paulatinamente, caia
em “desgraça” e torne-se totalmente “obsoleto”, superado, criando-se com
relação a ele verdadeira ojeriza, principalmente quando a jurisprudência se
pacifica num determinado sentido.
O papel da doutrina e da jurisprudência
na interpretação e definição do sentido da lei é fundamental, não podendo
preferir-se uma à outra, pois cada qual tem sua função marcante e de
destaque diferenciado.
À doutrina cabe, no mais das vezes,
interpretar a lei, adiantar sua aplicação e aclarar seu significado e intenção,
apontar caminhos, traçar paralelos com outros institutos e outras leis, assim
como com legislações de outros países, de modo a facilitar a vida dos
operadores do direito e manter o sistema integrado e coeso, tudo em tese.1
Já a jurisprudência exerce papel
definitivo de dizer o direito e, aplicando a lei no caso concreto, determinar
seu significado, de modo a criar paradigmas e gerar segurança jurídica,
permitindo que os operadores do direito e, principalmente, os
jurisdicionados possam saber que em determinadas condições, semelhantes
a um caso anteriormente julgado, obterão êxito em suas pretensões.2
1 “JURISPRUDÊNCIA: Derivado do latim jurisprudentia, de jus (Direito, Ciência do Direito) e prudentia
(sabedoria), entende-se literalmente que é a ciência do Direito vista com sabedoria. (...) É claro o sentido
literal: O Direito aplicado com sabedoria. Assim é que se entende a jurisprudência como sábia
interpretação e aplicação das leis a todos os casos concretos que se submetam a julgamento da justiça. Ou
seja, o hábito de interpretar e aplicar as leis aos fatos concretos, para que, assim, se decidam as causas.
Desse modo, a jurisprudência não se forma isoladamente, isto é, pelas decisões isoladas. É necessário que
se firme por sucessivas e uniformes decisões, constituindo-se em fonte criadora do Direito e produzindo
um verdadeiro jus novum. É necessário que, pelo hábito, a interpretação e explicação das leis a venham
formar. (...) Aliás, é firmado hoje que a jurisprudência somente obriga a espécie julgada, não sendo,
propriamente, fonte de Direito. Mas a verdade é que a jurisprudência firmada, em sucessivas decisões,
vale como verdadeira lei. Jurisprudência. Extensivamente assim se diz para designar o conjunto de
decisões acerca de um mesmo assunto ou a coleção de decisões de um tribunal” (Plácido e Silva.
Vocabulário jurídico, v. III, , p. 34). 2 “DOUTRINA. Do latim doctrina, de docere (ensinar, instruir, mostrar), na terminologia jurídica, é tido,
em sentindo lato, como o conjunto de princípios expostos nos livros de Direito, em que se firmam teorias
ou se fazem interpretações sobre a ciência jurídica. Mas, em acepção mais estreita, quer significar a
opinião particular, admitida por um ou vários jurisconsultos, a respeito de um ponto de direito
controvertido” (Idem, v. II, p. 128).
3
Na doutrina, a tendência é de sempre
aparecer alguém disposto a desdizer algo anteriormente afirmado à
exaustão, criando tese nova, gerando o embate entre várias correntes. Em
sentido contrário, a jurisprudência é mais conformista e, assim, depois de
algum tempo, quando a interpretação começa a se pacificar em
determinado sentido, todos tendem a julgar exatamente desse modo e a
abandonar suas teses. Aliás, essa característica atinge também os
doutrinadores, que, apesar de manterem o ânimo para ir contra uma
unanimidade doutrinária, não têm o mesmo interesse em buscar modificar
um assunto pacificado na jurisprudência, quanto mais se for objeto de
súmula.3
Esse desânimo em tentar transformar o
entendimento jurisprudencial é muito perigoso, pois pode perpetuar um
posicionamento equivocado, de modo a atravancar o bom andamento do
sistema judiciário, prejudicando a correta interpretação e utilização de
institutos em determinados casos.4
Isso parece ter ocorrido com a questão
da inversão do ônus da prova trazida pelo Código de Defesa do
Consumidor, pois, mesmo sem existir uma unanimidade e sem que,
absolutamente, tenha se esgotado o tema, quase ninguém mais pretende
discuti-lo, em razão do grau de intransigência que cada corrente atingiu,
3 “Ressaltarei mais um aspecto negativo do efeito vinculante das decisões: a tendência do homem à
acomodação. Não podemos imaginar o julgamento de um conflito de interesses como simples ‘bater de
carimbo’. Há de preservar-se a espontaneidade, a independência do julgador, apenas submetido à própria
consciência, devendo atuar a partir da formação humanística e profissional que possui” (Marco Aurélio
Mendes de Farias Mello, Uma justiça para o terceiro milênio, Revista da EMERJ, v. 3, n. 10, p. 17). 4 Para exemplificar, podemos mencionar a situação da monitória, que surgiu como uma grande
possibilidade de agilização dos conflitos, mas foi “destruída” pela jurisprudência, ao definir o
recebimento do recurso de apelação contra a decisão que julga os embargos monitórios no efeito
suspensivo também. Após ter a doutrina se dedicado com intensidade ao tema, ninguém mais parece se
interessar por ele. Tivemos oportunidade de escrever, quando já pacificado esse “infeliz” entendimento,
defendendo não só o efeito meramente devolutivo, como que a decisão que julga os embargos monitórios
seria interlocutória, por ser proferido dentro do processo monitório, e que seria, portanto, agravável
(Repro nº 117). Vale acrescer que, na época, nosso artigo e posição foram vistos com muito descrédito,
mas que hoje, diante da reforma da Lei nº 11.232/05, parece-nos inegável que aquela decisão realmente
não seja sentença e que, portanto, não caiba apelação para atacá-la, mas agravo de instrumento.
4
cada qual entendendo que a argumentação para convencer a outra é pura
perda de tempo.
Quando da proposta da presente obra,
um caro amigo, ao saber que escreveríamos sobre a inversão do ônus da
prova, indagou-nos, com certo “desdém respeitoso”, se já não se tratava de
assunto esgotado e se ainda haveria algo de interessante a ser dito.
Pensamos que sim! Apesar de já se ter
escrito muito e bem sobre o assunto, apresentaremos nossa posição no
sentido que a inversão do ônus da prova, com relação ao convencimento do
juiz, é, sem dúvida, critério de julgamento, mas com relação à parte, em
respeito ao direito constitucional do contraditório, da ampla defesa e da
isonomia e, por que não dizer, para preservar a própria imparcialidade do
juiz, trata-se de critério de procedimento, devendo, pois, ser determinada
antes da instrução.
2. A IMPORTÂNCIA DO CDC
O Código de Defesa do Consumidor,
Lei nº 8.078/90, e a Constituição Federal de 1988 representam marcos de
evolução e progresso do Direito nacional, além de elementos fundamentais
de estabilização da democracia no país. O CDC é considerado de
vanguarda, uma verdadeira obra jurídica, respeitada em todo o mundo.
Representou salto de qualidade e respeito ao consumidor, modificando por
completo as relações até então existentes.
É inconcebível viver hoje em um país
sem uma legislação que proteja o consumidor,5 sendo que a lei serviu,
5 “Todo consumidor, de acordo com o inciso I do artigo 4° do Código de Defesa do Consumidor, é
vulnerável. Basta a condição de consumidor para que se extraia sua vulnerabilidade e justificar a
existência de todo um sistema protetivo de normas, como é o Código de Defesa do Consumidor. Mas nem
todo consumidor é hipossuficiente. A hipossuficiência é um plus com relação à vulnerabilidade e,
ocorrendo, a despeito das discussões travadas sobre a necessidade ou não de presença de ambos os
requisitos legais, permitirá que o consumidor faça jus à possibilidade de fazer valer-se de um poderoso
mecanismo de facilitação de sua defesa em juízo, qual seja, a inversão do ônus da prova” (Débora de
Oliveira Ribeiro, Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, p. 48).
5
ainda, para criar uma nova mentalidade na população em geral, com
conscientização geral jamais vista antes. Em todas as classes sociais,
atualmente, o cidadão sabe que deve ser respeitado, conhece os
mecanismos de defesa de seus interesses e sabe como e onde pode ir para
exigi-los (Procon, Juizados Especiais e outros).
Não é só! Além da defesa material dos
direitos do consumidor, o CDC trouxe inquestionável avanço nos direitos
coletivos,6 que acarretou também sensível melhora no Processo Civil, pois,
além de permitir, em um único processo, a defesa de interesses de vários
litigantes, ainda nos apresentou mecanismos interessantes,7 como o art.
1038 – que prevê a coisa julgada secundum eventum litis
9 – e o art. 6º,
inciso VIII,10
que estabelece a possibilidade da inversão do ônus da prova.
6 “Podemos afirmar, como de fato já afirmamos, que todas as questões que envolvem o consumidor
(sobretudo quando se visa tutelá-lo de forma coletiva) devem ser balizadas pela jurisdição civil coletiva.
A jurisdição civil coletiva, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, forma, somada à Lei da
Ação Civil Pública, o subsistema ideal para o pronto atendimento das ameaças ou lesões envolvendo
relações de consumo. É um subsistema ao lado da jurisdição civil individual.” (Ivone Cristina de Souza
João, Litisconsórcio e intervenção de terceiros na tutela coletiva, p. 38-39). 7 “Segundo o artigo 83 do CDC, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar a
adequada e efetiva tutela para a defesa dos direitos e interesses dos consumidores. Pelo artigo 81 do CDC,
a defesa dos interesses e direitos do consumidor pode ser exercida em juízo por meio de ações individuais
ou de ações coletivas. Em todas as ações coletivas ou individuais, que envolvam obrigações de fazer e de
não-fazer e as responsabilidades dos fornecedores, aplicam-se as regras da Lei nº 7.347/85, em razão do
artigo 90 do CDC. Em todos os casos, o juiz está autorizado a conceder a tutela específica da obrigação
ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”
(Adriana Carvalho Girardelli, A associação civil, p. 56). 8 Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes,
exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese
do inciso I do parágrafo único do art. 81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou
classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da
hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de
procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do
parágrafo único do art. 81. § 1º Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão
interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. § 2º Na
hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem
intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. § 3º
Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei 7.347, de 24 de julho
de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas
individualmente ou na forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas
e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99. § 4º
Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória. 9 “A coisa julgada somente se opera em relação àqueles que fizeram parte do processo,
independentemente do resultado da demanda; uma vez preenchidos os outros requisitos analisados,
sempre surgirá, tanto para o vencedor como para o vencido. Eis o ponto de diferenciação com o outro
sistema de produção da coisa julgada, diferenciado, denominado coisa julgada secundum eventum litis.
6
2.1. As armadilhas do CDC
Entretanto, apesar dos inumeráveis
avanços que a legislação consumerista trouxe, vale o alerta do equivocado
exagero surgido, tanto na esfera dos direitos materiais como no campo
processual.
Na área do direito material, viu-se com
espanto o exagero de se prenderem pequenos lojistas imprudentes e
desinformados, por não venderem seus produtos de forma especificada e
detalhada, como exige a Lei 8.078/90, dando-lhe elastério impróprio e
leviano, pois não se pode, sob o manto de proteger o consumidor, partir-se
para a barbárie e para uma “caça às bruxas”. Não se deve, outrossim,
entender o consumidor como sempre indefeso, ingênuo e coberto de razão.
Para se citar apenas um exemplo,
lembramos a recente propaganda das Casas Bahia, maior empresa privada
do país, conhecida por sua responsabilidade social, assim como pelo
respeito a seus clientes, fornecedores e trabalhadores. Segundo conta a
“lenda urbana”, as Casas Bahia viram-se obrigadas a, de uma hora para
outra, retirar de veiculação a publicidade na qual o garoto-propaganda
indagava do consumidor quanto queria pagar (“quer pagar quanto?”, dizia o
anunciante). Com base nessa pergunta, um “advogado” (sempre nós...) teria
comparecido a uma das lojas, adquirido uma série de eletrodomésticos
Neste, a coisa julgada surgirá ou não de acordo com o resultado da demanda. A lei, pelas mais variadas
razões, pode entender que tal ou qual resultado (procedência ou improcedência) não autoriza a
imunização. É o que acontece, por exemplo, nas demandas que dizem respeito aos direitos individuais
homogêneos, quando a coisa julgada será erga omnes, apenas nos casos de procedência do pedido.”
(Fredie Souza Didier Júnior, Cognição, construção de procedimentos e coisa julgada: os regimes de
formação da coisa julgada no direito processual civil brasileiro, disponível em
www.jusnavigandi.com.br). 10
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive
com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil
a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.
7
variados e, ao final, no momento do pagamento, dito que pretendia pagar
somente R$ 1,00 por tudo.
O lado positivo da história é que o
proprietário das Casas Bahia, o inigualável Samuel Klein, teria
determinado a venda (melhor seria dizer que “aceitou o golpe”) pelo preço
que o cliente queria pagar, afirmando que o respeito ao consumidor era
quesito inegociável dentro de sua organização e que, se a propaganda dava
margem a essa interpretação, manteria a venda pelo absurdo preço e
retiraria o anúncio do ar de imediato. Sem dúvida, o lado negativo fica por
conta do claro equívoco de alguns operadores do direito, que,
informalmente, afirmaram que a venda de fato teria que ser realizada, do
ponto de vista jurídico, para não se caracterizar propaganda enganosa.
Em outras oportunidades já se
mencionaram casos, ainda, de que o mero equívoco evidente na impressão
do jornal obrigaria a venda de uma televisão de R$ 20.000,00 por R$
2.000,00.
São análises caolhas e deturpadas da lei,
com as quais não se pode em absoluto concordar ou coadunar. Ora, nada
mais equivocado, pois a interpretação da lei não pode conduzir ao absurdo
e, por óbvio, se a pretensão do consumidor fosse submetida à apreciação
dos nossos Tribunais, não só haveria de ser julgada improcedente, como o
litigante deveria ser energicamente considerado como de má-fé e, se
realmente inscrito no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil (uma vez
que não é digno de utilizar a honrosa designação de advogado), receber
exemplar punição.
Com isso se pretende ponderar que,
também no aspecto processual, não podemos transformar o processo em
8
um processo incivil,11
julgando sempre em favor do consumidor,
transformando todos os fornecedores em vilões a serem defenestrados pelo
Poder Judiciário. A inversão do ônus da prova não pode, de modo algum,
ser automática nem podemos considerar que o consumidor seja sempre a
parte mais fraca da relação e que tenha sempre razão.
Avanços devem ser ressaltados e
defendidos, e exatamente nesse sentido devemos coibir, com força,
exageros e equívocos.
2.2. Conceito de hipossuficiência
O art. 6º da Lei 8.078/90 trata dos
direitos básicos do consumidor e para que dúvidas não pairassem abordou a
inversão do ônus da prova no mesmo capítulo,12
em vez de inseri-lo na
parte processual, como meio de demonstrar sua clara intenção de não se
tratar de mero critério técnico, referente ao direito processual, mas de
forma de atuação, de fazer valer a lei em seu sentido mais amplo, tratando-
se de direito do consumidor a ser respeitado tanto na esfera do direito
material como processual, de maneira ampla e efetiva.
11
Expressão cunhada por José Ignácio Botelho de Mesquita, que afirma: “Ao Processo Civil, ao
contrário, a lei é tudo o que importa. Estorvo é tudo o que impeça o conhecimento exato do direito e o
cumprimento exato da lei, único instrumento de defesa no confronto da sociedade civil com a potestade
estatal, de defesa, antes de mais nada, da liberdade política do povo. Dela advém, disse Montesquieu, a
exigência de que os julgamentos ‘nunca sejam mais do que um texto exato da lei’, porque ‘se fossem a
opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela
são assumidos’. No mesmo sentido, advertia Locke, consistir a liberdade ‘em não estar sujeito de modo
algum à vontade inconstante, incerta, desconhecida, arbitrária de um homem’. Aí se traça a linha
divisória entre a liberdade e a tirania. Relembrem-se, as palavras de Antígone, ressoando das profundezas
dos séculos: ‘esta é a vantagem dos tiranos: dizer e fazer tudo o que entendem’. O tirano é sempre a
legibus solutus. Daí haver sublinhado, ainda no século XIX, Francisco de Paula Baptista, ter o Processo
Civil ‘diversos períodos, que constituem a sua ordem natural, lógica e imutável, de tal sorte que não
pode ser destruída ou ofendida, sem que se viole a justiça, e apareça a desordem ou tirania’. Processo
civil é isto. Nisto se condensa a alma do processo. Processo incivil é o seu oposto; é processo do qual
nunca se sabe qual será o resultado, nunca se sabe se se conduziu com justiça, porque predisposto a
ocultar, a camuflar, a impedir que apareça a desordem ou tirania” (José Ignácio Botelho de Mesquita,
Processo Civil e Processo Incivil, p. 251). 12
“O mecanismo da inversão do ônus da prova se insere nessa política tutelar do consumidor e deve ser
aplicado até quando seja necessário para superar a vulnerabilidade do consumidor e estabelecer seu
equilíbrio processual em face do fornecedor. Não pode, evidentemente, ser um meio de impor um novo
desequilíbrio na relação entre as partes, a tal ponto de atribuir ao fornecimento um encargo absurdo e
insuscetível de desempenho” (Humberto Theodoro Júnior, Direitos do Consumidor, p. 144).
9
Desse modo, a doutrina tratou de definir
com precisão e cuidado o conceito de hipossuficiência,13
a fim de
demonstrar que não envolve somente pessoa pobre, desprovida de recursos
financeiros, mas todo aquele que não tenha condições, econômicas,
técnicas, estruturais ou processuais para demonstrar seu direito.
Assim, tem-se que a hipossuficiência
não é somente a econômica,14
mas toda aquela que leve o consumidor a
flagrante desvantagem em favor do fornecedor e que impeça ou dificulte a
defesa de seus direitos em juízo, a qual deverá ser apreciada em cada caso,
não se podendo definir critério único ou generalizado, sob pena de se
criarem injustiças e ônus incompatíveis com nosso sistema.
3. JUIZ, JUSTIÇA E IMPARCIALIDADE
13
“A discussão que se encontra na doutrina sobre o requisito legal da hipossuficiência diz respeito à sua
qualificação sob o aspecto (i) informativo, (ii) técnico ou (iii) econômico. Como a seguir explicitado, é
possível identificar uma tendência de consolidação do requisito da hipossuficiência sob seu aspecto
técnico, embora haja distinções, ainda que sutis, entre tais posicionamentos e aqueles favoráveis à
hipossuficiência sob o aspecto informativo. Isto porque, como a seguir também será explicitado, parece-
nos que a hipossuficiência técnica compreenda a hipossuficiência informativa, não obstante represente um
nível mais elevado de incapacidade probatória por parte do consumidor. Acentuam como traço marcante
da hipossuficiência a dificuldade do consumidor de provar suas alegações, nascida da desigualdade
quanto à detenção de conhecimentos técnicos inerentes à atividade do fornecedor. Ou seja, não se trata de
mero desconhecimento de informações técnicas do produto ou serviço. Trata-se, isto sim, de
desconhecimento que, como tal, impeça que o consumidor se desincumba de seu encargo probatório caso
mantida a regra geral de distribuição do ônus da prova. (...) A hipossuficiência econômica do consumidor
pode existir, mas sempre em conjunto com a hipossuficiência técnica. Portanto, o que caracteriza a
hipossuficiência, a ensejar a inversão do ônus da prova, é a demasiada dificuldade probatória do
consumidor em contrapartida à facilidade probatória do fornecedor, podendo o consumidor ser ou não
hipossuficiente economicamente. Tem-se, assim, o que chamamos de hipossuficiência técnica. (...) A
hipossuficiência do consumidor é aferível caso a caso, porquanto somente por meio do exame da relação
de consumo concreta será possível verificar a configuração de uma situação de desequilíbrio tal que
coloque o consumidor em posição extremamente difícil de desincumbir-se do ônus da prova que lhe
compete segundo a regra geral de distribuição dos encargos probatórios” (Débora de Oliveira Ribeiro,
Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, p. 47-52). 14
“A verossimilhança é juízo de probabilidade extraída de material probatório de feitio indiciário, do qual
se consegue formar a opinião de ser provavelmente verdadeira a versão do consumidor. Diz o CDC que
esse juízo de verossimilhança haverá de ser feito ‘segundo as regras ordinárias da experiência’ (art. 6°,
VIII). Deve o raciocínio, portanto, partir de dados concretos que, como indícios, autorizem ser muito
provável a veracidade da versão do consumidor. Indícios são fatos certos que permitem, por raciocínio
lógico, a extração de juízos sobre fatos incertos. Dos indícios extraem-se presunções. Presunção, todavia,
não se confunde com suposição. Enquanto esta se forma na simples especulação imaginativa, aquela parte
de fatos conhecidos para chegar a conclusões lógicas acerca de fatos não conhecidos” (Humberto
Theodoro Júnior, Direitos do Consumidor, p. 143).
10
Afirmam aqueles que são contra a
inversão do ônus da prova já na decisão de saneamento que, ao assim agir,
o juiz estaria prejulgando a causa, com flagrante perda da imparcialidade.
Com tal argumento não se pode concordar.
O juiz, no julgamento do caso concreto,
em última análise, interfere diretamente na vida das pessoas, modifica
destinos, geralmente fazendo JUSTIÇA. Por mais que possa e deva o
advogado – aliás, esse é o seu papel – tentar convencer o magistrado da
tese de seu cliente,15
caberá ao juiz a intrincada e solitária tarefa de decidir
e julgar.
A imparcialidade do juiz16
é
imprescindível para se configurar um justo processo,17
pois nada atinge
mais o senso de Justiça que o julgamento por alguém que não tenha sido o
juiz natural18
previamente estabelecido por lei e que mantenha, durante
todo o processo, eqüidistância das partes e total tranqüilidade para julgar da
maneira mais correta e técnica.
Ao juiz não se concede liberdade plena
para julgar, no sentido de estar ele submetido a critérios técnico-
15
“Na fase probatória, segundo essa nova visão, deve o juiz agir concomitantemente e em condições de
igualdade em relação às partes: ordenar que se faça uma perícia, ouvir as partes, ouvir e reouvir
testemunhas. Na atividade do juiz, tem-se a garantia de que estar-se-á buscando a verdade. O mesmo não
se pode dizer quanto à das partes, que estarão sempre querendo mostrar o lado da realidade que lhes
interessa” (Teresa Arruda Alvim, Reflexões sobre o ônus da prova, p. 143). 16
“O caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O juiz coloca-se entre as partes e
acima delas: esta é a primeira condição para que possa exercer sua função dentro do processo. A
imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente. É nesse
sentido que se diz que o órgão jurisdicional deve ser subjetivamente capaz” (Antonio C. de A. Cintra e
outros, Teoria geral do processo, p. 58). 17
Sobre justo processo, tivemos a oportunidade de escrever mais a fundo no nosso Razoável Duração do
Processo, p. 68-69, do qual destacamos: “Exatamente nessa linha de raciocínio, poderia parecer um
paradoxo aceitar a existência de um justo processo, tendo em vista que, em tese, não se poderia conceber
um processo que não fosse justo. Todavia, processo é um instrumento da jurisdição, termo técnico e meio
para prestação da tutela jurisdicional, o qual pode ter início, desenvolvimento e término sem que várias
regras fundamentais tenham sido observadas, mas que, de igual modo, atingirá a consecução do objetivo
final, ainda que de forma obscura, ou seja, terá havido ‘processo’, mas não um ‘justo processo’.” 18
“Só pode exercer a jurisdição aquele órgão a que a Constituição atribui o poder jurisdicional. Toda
origem, expressa ou implícita, do poder jurisdicional só pode emanar da Constituição, de modo que não é
dado ao legislador ordinário criar juízes ou tribunais de exceção, para julgamento de certas causas, nem
tampouco dar aos organismos judiciários estruturação diversa daquela prevista na Lei Magna” (Humberto
Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, p. 36).
11
processuais,19
pois, afinal, não podemos nos esquecer de que a jurisdição é
exercida por juízes,20
que são pessoas humanas, com seus naturais defeitos,
posições, opiniões, traumas, preferências e, por que não dizer, preconceitos,
daí por que, quanto mais técnico for o julgamento, mais aparecerá a
vocação, o lado bom e correto da personalidade do juiz.
Na realidade, o princípio do juiz
natural21
não deve ser encarado como garantia somente das partes, mas, até
mesmo, do próprio Estado e do juiz, que não poderá “escolher” os casos
que pretende julgar. Quanto mais remotos forem os fatos que são
apresentados ao juiz, quanto mais distantes e indiferentes lhes forem as
partes, mais tranqüilidade e imparcialidade terá para julgar.
Entretanto, não podemos entender ou
justificar posicionamentos doutrinários que confundem a imparcialidade do
juiz com as necessárias e imprescindíveis decisões que ele deve tomar na
condução do processo.
19
“A afirmação de que a adoção da súmula vinculante viria a tolher a liberdade hermenêutica do
magistrado, pela necessidade de seguir entendimento já consolidado, não me parece correta, pois a
persistência da divergência em determinada questão jurídica inegavelmente gera insegurança jurídica,
além de iludir a parte, porque eventual solução divergente da jurisprudência consolidada certamente será
modificada e não produzirá o efeito que a parte pretendia ter obtido. Certo é que deve prevalecer a
segurança jurídica resultante da certeza de que determinado entendimento, uma vez consolidado em razão
de inúmeras decisões no mesmo sentido, deverá predominar, até mesmo porque a liberdade de julgar não
deve ser absoluta, pois, para a mesma situação jurídica, deve ser aplicada idêntica solução, inclusive para
que se dê efetividade às decisões judiciais, evitando a necessidade e o ônus de recorrer, estabilizando-se
com isso a ordem jurídica, dando-se atendimento ao princípio da igualdade, e evitando-se a discriminação
de uns em favor de outros” (Nelson Nery Jr. e outra, Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis, p.
571). 20
“Para assegurar a imparcialidade do juiz, é ele dotado de completa independência, a ponto de não ficar
sujeito, no julgamento, a nenhuma autoridade superior. No exercício da jurisdição, o juiz é soberano. Não
há nada que a ele se sobreponha. Nem a própria lei, embora esta procure fazer limitações ao poder de
julgar, como é o caso da proibição do julgamento por equidade, previsto no art. 127 do Código, preceito
que resulta inócuo, porque, se o juiz ou tribunal quiserem, a orientação do julgamento poderá contrariar a
própria lei e a decisão até se acobertar pela coisa julgada, tornando-se definitiva” (Ernani Fidélis dos
Santos, Manual de Direito Processual Civil, p. 11). 21
“Antes de ser afirmada e confirmada a competência e a imparcialidade do juiz para julgar determinada
causa, não pode o magistrado ingressar no exame de questões processuais ou de mérito, sob pena de
violar-se a garantia constitucional do juiz natural. A garantia implica o direito dos litigantes em ver o
objeto do processo, ou seja, o conjunto das questões que devem ser julgadas pelo juiz (thema
decidendum), ser decidido pelo juiz natural” (Nelson Nery Junior, Princípios do Processo Civil na
Constituição Federal, p. 69).
12
Antonio Carlos Marcato, em suas
inesquecíveis lições, explica o significado de Justiça e a conseqüente
imparcialidade do juiz evocando a deusa grega Themis.
O símbolo da Justiça é uma mulher, de
olhos vendados, com uma balança equilibrada em uma das mãos e uma
espada na outra. É uma mulher – Justiça –, pois representa a sensibilidade e
a sabedoria, tão características nas mulheres. É cega – imparcialidade –
porque não diferencia aqueles que vêm a juízo litigar, tratando ambas as
partes de forma igualitária, sem preferências, preconceitos ou
diferenciações. Tem na mão esquerda uma balança – representando a
isonomia e o contraditório –, a demonstrar que a todos em juízo será
assegurada a igual oportunidade de defesa e armas, a fim de abrir-lhes a
chance de demonstrar que têm razão. Contudo, na mão direita, a espada – o
poder jurisdicional – representa que, na hora de decidir, tirará a venda, para
saber exatamente quem tem razão, colocará a balança no chão, para definir-
se por uma das posições antagônicas, e utilizará a força do Estado de modo
a fazer valer o direito e a Justiça.
A imparcialidade do juiz deve, assim,
ser aferida no início do processo, no recebimento da petição inicial, e
mantida na condução do processo, garantindo às partes, em todas as suas
decisões, a isonomia, o contraditório e a ampla defesa.
Entretanto, é inegável que, no decorrer
do processo, o juiz terá que tomar decisões para deferir ou não
requerimentos feitos pelas partes,22
deixando, por óbvio, de ser neutro – e
nisso está a confusão que alguns doutos fazem –, decisões essas que
22
“O juiz exerce a jurisdição ao longo de todo o processo e não só quando concede a tutela jurisdicional
ao fim deste, pronunciando sentença de mérito no processo de conhecimento ou mandando entregar o
bem no executivo. Não só ao conceder a tutela, mas também ao prepará-la mediante o que decide e
determina ao longo do processo, ele age com o escopo de, afinal, cumprir os objetivos da jurisdição
(pacificar, eliminar o conflito, fazer a justiça do caso concreto)” (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições
de Direito Processual Civil, p. 486).
13
influirão no julgamento final. Ao assim agir, não estará o juiz perdendo sua
eqüidistância, mas simplesmente exercitando seu poder/dever de dizer o
direito ou encaminhar o processo para seu desiderato final que é a efetiva
prestação da tutela jurisdicional.
Com isso, pretende-se afirmar que a
imparcialidade é inerente à atividade do juiz, mas, ao decidir durante o
processo, principalmente ao proferir a decisão de saneamento, não estará
ele prejulgando o pedido antes da produção da prova, assim como não terá
deixado de ser imparcial ao proferir sentença favorável a uma das partes.
A inversão do ônus da prova é, sem
dúvida, critério de julgamento, pois somente ao final da instrução, no
momento de proferir a sentença, se não existir prova capaz de firmar a
convicção do juiz, é que ele analisará a quem caberia aquela prova faltante,
distribuindo-se, assim, o ônus da prova. Contudo, isso em absoluto
significa que a inversão do ônus da prova não deva ser determinada na
decisão de saneamento do processo.
4. O MOMENTO PROCESSUAL ADEQUADO PARA O JUIZ
DETERMINAR A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
A inversão do ônus da prova é critério
de julgamento por estar relacionada ao entendimento e convencimento do
juiz. Prescinde, a nosso ver, de prévio requerimento da parte e pode ser
determinada de ofício pelo juiz, porém no momento certo.
Três são as posições de destaque na
doutrina acerca do momento adequado para se determinar a inversão do
ônus da prova: i) na inicial, ii) na decisão de saneamento e iii) na sentença.
Completamente equivocada a
determinação do juiz que inverte o ônus da prova já ao receber a petição
14
inicial, em cognição sumária, somente tendo por base a verossimilhança
das alegações do autor ou a sua hipossuficiência, sem ouvir o fornecedor
em contraditório,23
tratando-se de medida injustificável, de verdadeira
distorção do espírito da lei. Acrescemos, todavia, que não se pode
confundir inversão do ônus da prova com pedido de antecipação de tutela.
Se a inversão não deve ser determinada
logo depois de recebida a petição inicial, também não poderá ocorrer
somente no momento em que se for proferir a sentença, pois aí se estaria
diante de um juízo de terceira via,24
surpreendendo-se o fornecedor25
que
tenha se guiado pelos critérios costumeiros da distribuição do ônus da
prova.26
23
“Há quem admita possa o juiz decretar a inversão do ônus da prova já no despacho da petição inicial,
outros que a consideram realizável no momento de proferir a sentença. As duas posições nos parecem
extremadas e injustificáveis. Antes da contestação, nem mesmo se sabe quais fatos serão controvertidos e
terão, por isso, de se submeter à prova. Torna-se, então, prematuro o expediente do art. 6°, n° VIII, do
CDC. No momento da sentença, a inversão seria medida tardia porque já encerrada a atividade
instrutória” (Humberto Theodoro Júnior, Direitos do Consumidor, p. 148). 24
Pode-se dizer que o juízo de terceira via apontado pela doutrina italiana refere-se a um “juízo de
surpresa”, proferido com base em aspectos legais não debatidos ou analisados previamente pelas partes e,
sob tal ótica, sem o pleno respeito ao contraditório no desenvolvimento do processo. Sobre o tema v., por
todos, Luigi Montesano, La garanzia costituzionale del contraddittorio e i giudizi di ‘terza via’, Rivista di
diritto processuale – n. 4 -2000, p. 929-947. 25
“Os autores do anteprojeto, de que resultou o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, além do
jurista CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, são defensores da teoria de que o momento oportuno para a
inversão é o da sentença, tendo como fundamentação o seguinte argumento: os dispositivos sobre ônus da
prova constituem regras de julgamento. Esse posicionamento é, data venia, decorrente de equívoco por
dois motivos: a) ofende, de maneira absoluta, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla
defesa; b) as regras de distribuição do ônus da prova são de procedimento” (Sandra Aparecida Sá dos
Santos, A inversão do ônus da prova, p. 77). 26
“b) a inversão é ato a ser praticado somente na sentença. Trata-se de solução diametralmente oposta à
primeira, entre cujos defensores se encontram os próprios autores do anteprojeto de que resultou o
Código. O argumento fundamental é o de que os dispositivos sobre ônus da prova constituem regras de
julgamento, e, que, portanto, também a inversão deve ser reservada para o instante no qual se vai julgar. É
preciso ponderar, todavia, que as normas sobre a repartição do ônus probatório consubstanciam, também,
regras de comportamento dirigidas aos litigantes: através delas, as partes ficam cientes, de antemão, dos
fatos que a cada uma incumbe provar. Assim vistas as coisas, a inversão, se ordenada na sentença,
representará, quanto ao fornecedor, não só a mudança da regra até ali vigente, naquele processo, como
também algo que comprometerá sua defesa, porquanto, se lhe foi transferido um ônus – que, para ele, não
existia antes da adoção da medida –, obviamente deve o órgão jurisdicional assegurar-lhe a efetiva
oportunidade de dele se desincumbir. A aplicação do dispositivo em exame, se observada a orientação
doutrinária aqui combatida, redundaria em manifesta ofensa aos princípios do contraditório e da ampla
defesa (CF, art. 5°, n. LV): ao mesmo tempo em que estivesse invertendo o ônus da prova, o juiz já
estaria julgando, sem dar ao fornecedor a chance de apresentar novos elementos de convicção, com os
quais pudesse cumprir aquele encargo. Não seria demais recordar, ainda uma vez, que a finalidade da
norma que prevê a inversão é a de facilitar a defesa dos direitos do consumidor, e não a de assegurar-lhe a
vitória, ao preço elevado do sacrifício do direito de defesa, que ao fornecedor se deve proporcionar”
15
Do fato de ser a inversão do ônus da
prova critério de julgamento decorre a confusão que se faz quanto ao
momento em que deve o juiz determiná-la. Ao juiz é vedado eximir-se do
dever de prestar a tutela sob a alegação de falta de provas,27
razão pela
qual, ausentes provas conclusivas e determinantes, somente nesta hipótese
deverá o juiz lidar e aplicar os critérios de distribuição do ônus da prova
para chegar à sentença.
Entretanto, em sentido contrário, se
presentes nos autos as provas necessárias para formar a convicção do juiz
de como os fatos ocorreram, completamente desnecessária a distribuição
dos ônus da prova entre as partes e, conseqüentemente, sua inversão, ainda
que anteriormente, na decisão de saneamento, o magistrado a tivesse
determinado.
Portanto a inversão do ônus da prova,
como já adiantamos, deve ser determinada na decisão de saneamento, pois
não é correto exigir somente do fornecedor uma atuação precavida, com a
realização da prova em sua plenitude, pois isso feriria o princípio da
isonomia. Importante acrescer que a decisão que determina a inversão não
pode ser genérica e sem a devida fundamentação (art. 93, IX, da CF),28
ou
(Carlos Roberto Barbosa Moreira, Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor,
p. 305). 27
“Inicialmente, é bem de ver que o ônus da prova encontra fundamento sob dois prismas diversos e
complementares. De um lado, mesmo na hipótese de não restarem suficientemente provados os fatos
relevantes da lide, é imperioso que o juiz profira uma decisão: ele não pode se abster de julgar, proferindo
non liquet. De outro – já que a decisão é inafastável e constitui precioso elemento para a eliminação da
insegurança jurídica, contribuindo dessa forma para a paz social –, cumpre verificar qual o conteúdo que
a decisão deve assumir em tal hipótese. Em outras palavras: diante da inevitabilidade do julgamento,
quem deve sofrer as conseqüências do fato não provado? Ao permitir a prolação de uma decisão mesmo
diante da incerteza sobre os fatos, Echandía realça a extraordinária importância da noção do ônus da
prova para o direito e, em especial, para o processo: ‘A segurança jurídica, a harmonia social, o interesse
geral em que se realizem os fins próprios do processo e a jurisdição exigem sua existência’. Sob este
aspecto, o ônus da prova está intimamente ligado ao exercício da jurisdição, sendo encarado como regra
de julgamento. Mesmo nas hipóteses em que a fase probatória não tenha permitido ao juiz alcançar
suficiente convicção sobre os fatos relevantes e controvertidos, como o juiz não pode deixar de julgar, a
regra viabiliza a prolação de sua indeclinável sentença em cada caso concreto” (Luiz Eduardo Boaventura
Pacífico, O ônus da prova no Direito Processual Civil, p. 80-81). 28
“Se se trata de medida de exceção, subordinada a pressupostos expressamente elencados na lei, sua
adoção in concreto somente pode ocorrer mediante decisão interlocutória em que o magistrado assente
16
seja, o juiz deverá alertar o fornecedor de que, ao julgar, considerará o fato
“x” ou a situação “y” em favor do consumidor, independentemente dos
critérios habituais do ônus da prova, detalhando e motivando suas razões
para assim agir.29
Exercido o contraditório e já realizada
pelas partes a prova documental, o juiz começa a definir a demanda e a ter
opiniões sobre ela, razão pela qual impedir que o aviso de provável
inversão seja feito na decisão saneadora, mantendo a dúvida até quando
não mais for possível a realização da prova, é, aí sim, “trair” o fornecedor e
colocar o advogado numa situação delicada, preferindo-se o consumidor
em detrimento do fornecedor, como critério de “falsa justiça”.
Alegar que o juiz estaria prejulgando a
causa ao alertar o fornecedor30
sobre como julgará na ausência de prova de
determinado fato, data venia, é confusão que se faz sobre a imparcialidade
do juiz.31
Não se trata de prejulgar a causa nem de
perder a imparcialidade, mas de evidente juízo de valor diante do material
já existente nos autos: de um lado a petição inicial e os documentos
sua deliberação. Como toda decisão judicial tem de ser fundamentada, por exigência constitucional (CF,
art. 93, IX), há o juiz, ao deliberar pela inversão do ônus da prova, de demonstrar a presença, no caso sub
examine, de alegações verossímeis ou de hipossuficiência do consumidor” (Humberto Theodoro Júnior,
Direitos do Consumidor, p. 142). 29
“Enfim, os efeitos da inversão do ônus podem liberar o consumidor da prova pertinente ao nexo causal
(no caso de responsabilidade objetiva) e da culpa (na hipótese de responsabilidade subjetiva). Em caso
algum, porém, aliviará o fornecedor do dever de provar o dano ou prejuízo a cuja reparação se endereça a
demanda” (Idem , p. 149). 30
“Podemos também induzir as partes à prática de atos processuais, estabelecendo que quem não o fizer
será prejudicado. Por exemplo: em processo de acidente do trabalho, se o INSS não fornece
esclarecimentos, não atende às requisições de informação da situação previdenciária dos acidentados,
bastará deixar claro em despacho que essa falta será interpretada em detrimento dele, pois detentor da
prova, sentenciado-se fazendo de conta a parte contrária provou tudo o que o INSS não trouxe aos autos.
O mesmo ocorrerá em execuções que lidem com importâncias apuradas em conta corrente, como as
bancárias nos contratos de financiamento, diante das quais o financiador conserva o controle documental
do ocorrido na continuidade do negócio” (Sidnei Agostinho Beneti, Da conduta do juiz, p. 21). 31
“A não ser assim, ter-se-ia uma surpresa intolerável e irremediável, em franca oposição aos princípios
de segurança e lealdade imprescindíveis à cooperação de todos os sujeitos do processo na busca e
construção da justa solução do litígio. Somente assegurando a cada litigante o conhecimento prévio de
qual será o objeto da prova e a que incumbirá o ônus de produzi-la é que se preservará ‘a garantia
constitucional da ampla defesa’” (Humberto Theodoro Júnior, Direitos do Consumidor, p. 148).
17
trazidos e de outro a contestação e a prova produzida pelo réu, pela qual o
juiz deve proferir decisão de saneamento, em que fixará os pontos
controvertidos e dirá a quem compete a produção daquela prova, inclusive
alertando sobre a inversão no caso de sua ausência.
Não é demais lembrar que, se da prova
dos autos resultar, para o juiz, a certeza de que os fatos se deram de forma
contrária aos interesses do consumidor, sem prejuízo do aviso de inversão
do ônus da prova anteriormente feito, evidentemente o juiz julgará
improcedente a demanda, por estar diante de prova conclusiva que não
admite a hipótese de inversão (somente prevista para a ausência de
certeza).
Por tudo isso é que não se pode falar em
quebra da imparcialidade, pois isso só aconteceria se, ao inverter o ônus da
prova na decisão de saneamento, o juiz ficasse completamente vinculado à
procedência do pedido a favor do consumidor,32
mas não, a inversão
permite que o fornecedor debata, discuta essa decisão e tome suas
precauções visando ao resultado que lhe seja favorável.
Sem dúvida, ao fornecedor é sempre
melhor e mais justo saber de antemão como deve atuar no processo do que,
sob uma pseudo-defesa da imparcialidade, ser surpreendido com a inversão
somente na sentença. Portanto, não temos dúvidas em afirmar que a
inversão deve ser determinada e definida por ocasião da decisão de
saneamento do processo.
Discordamos, outrossim, do argumento
que defende que o juiz, ao encerrar a instrução, se estiver diante da
32
“Na verdade, o despacho que determina a inversão apenas declara existir alguma das hipóteses
autorizadoras do art. 6º., inc. VIII, do CDC. Esse não aponta para o fato de que a decisão de mérito será
favorável ao consumidor. Aliás, há vários julgados em que houve a mencionada inversão e o consumidor
sucumbiu. Destarte. O momento oportuno para a incidência do artigo supra é, sem sombra de dúvida, o
despacho saneador, preservando-se, desse modo, a garantia constitucional da ampla defesa” (Sandra
Aparecida Sá dos Santos, A inversão do ônus da prova, p. 81).
18
ausência de prova suficiente para seu convencimento, determine a
reabertura da instrução para que o fornecedor tenha a oportunidade de fazer
a prova, pois isso quebraria a isonomia entre as partes, ou seja, se não for
inverter o ônus, julga-se contra o consumidor, mas se for para determinar a
inversão e evitar surpreender o réu com essa decisão, defendem alguns que
deveria se permitir que o fornecedor, aí sim, tenha a chance de produzir a
prova faltante.
Desse modo, vale frisar a importância
da decisão de saneamento, que não pode mais ser aquela meramente
padrão.33
Compete ao juiz afirmar expressamente, de forma clara, objetiva
e lógica, aquilo sobre o que já está convencido e sobre o que não está, que
pontos devem ser provados e de quem é o ônus de fazê-lo. Não se pode,
sob a falsa premissa de perda da imparcialidade, aceitar uma decisão
lacônica, que deixe os advogados sempre na dúvida de como agir, ainda
mais considerando que, inevitavelmente, o juiz já começou a formar seu
convencimento ou já está, até mesmo, quase convencido,
independentemente das demais provas.34
33
“Partes legítimas e bem representadas. Não há nulidades a sanar. Defiro as provas requeridas. Dou o
feito por saneado.” 34
“Prestigiosíssima doutrina sustenta que a distribuição do ônus probatório é questão que surge para o
juiz somente no momento de sentenciar: antes disso incumbiria somente a cada um dos litigantes avaliar a
medida em que o ônus é seu, para desincumbir-se dele como entendesse adequado. Ainda que tal posição
fosse correta, com a decisão da Lei 8.952, de 31.12.1994, ele terá deixado de sê-lo. Legem habemus. Ao
exigir que o juiz antecipe os pontos que pretende ver provados, a lei está impondo a ele um momento de
diálogo, no sentido em que este vem sendo incluído na órbita da garantia do contraditório. É dever do
juiz, nesse momento, exteriorizar seu pensamento e deixar muito claro qual prova espera, referente a
quais pontos. (...) Sabido que a cada um dos litigantes compete a prova dos fatos de seu interesse (...), não
precisará o juiz declinar expressamente a qual dos litigantes cabe demonstrar cada um dos pontos. Mas
sabem todos que, no momento de julgar, para o juiz fato não provado é fato inexistente – tal é a regra de
julgamento integrante da disciplina do ônus da prova. Assim, cada um entenderá facilmente desde logo
quais dos fatos lhe convém provar e quais lhe convém que não fiquem provados [grifos no original]. Não
se deve interpretar (acredito) a observação de que ‘não precisará o juiz declinar expressamente a qual dos
litigantes cabe demonstrar cada um dos pontos’ como sinal de entendimento oposto ao manifestado no
texto: isto porque, em nenhuma passagem, cogitou o ilustre processualista da possibilidade da inversão do
ônus da prova. Se ela não acontecer, a mera indicação dos pontos controvertidos bastará para que autor e
réu saibam quais são os fatos que a cada um toca provar: continuará a incidir o art. 333 do CPC, de ambos
previamente conhecido. Se, entretanto, houver a inversão, o ‘diálogo’, imposto pelo contraditório,
obrigará o juiz não só a ‘deixar muito claro qual prova espera, referente a quais pontos’, mas igualmente
de quem ele a espera” (Carlos Roberto Barbosa Moreira, Notas sobre a inversão do ônus da prova em
benefício do consumidor, p. 307, nota 39).
19
Defendemos que, se assim não agir o
juiz, deverá o advogado interpor embargos de declaração, a fim de que seja
sanada a obscuridade, bem como para que haja expresso pronunciamento e
motivação da decisão.
Ademais, com freqüência, ocorre de o
juiz que profere a sentença não ser o mesmo que funcionou na instrução ou
que proferiu a decisão de saneamento, motivo a mais para a decisão ser
completa e motivada, a fim de criar-se uma linha lógica decisória.
Na prática, se o consumidor não tiver
feito prova dos fatos constitutivos de seu direito, o advogado do
fornecedor, por questão de estratégia processual e tomando por base o art.
333, inciso I, do CPC, pode, corretamente, entender que não deva produzir
prova, porquanto nunca se sabe ao certo o que resultará de uma prova
pericial, muito menos como se comportarão as testemunhas a serem
ouvidas.35
O advogado é a voz do jurisdicionado
em juízo, é por meio dele que as partes trazem suas pretensões. Para o
cidadão, o advogado é o verdadeiro representante da justiça, pois somente a
ele pode demonstrar seus anseios e aflições. Em razão disso, o mister do
advogado já é por demais tormentoso, difícil e de intensa responsabilidade,
para lhe imputar mais esse encargo.
A decisão sobre a inversão do ônus da
prova proferida na decisão de saneamento em nada modifica sua essência
de se tratar de critério de julgamento, isto é, neste momento o juiz não está
35
“É certo que a boa doutrina entende que as regras sobre ônus da prova se impõem para solucionar
questões examináveis no momento de sentenciar. Mas, pela garantia do contraditório e ampla defesa, as
partes, desde o início da fase instrutória, têm de conhecer quais são as regras que irão prevalecer na
apuração da verdade real sobre a qual se assentará, no fim do processo, a solução da lide. Assim, o art.
333 do CPC em nada interfere sobre a iniciativa de uma ou de outra parte, e do próprio juiz, enquanto se
pleiteiam e se produzem os elementos de convicção. Todos os sujeitos do processo, no entanto, sabem,
com segurança, qual será a conseqüência, no julgamento, da falta ou imperfeição da prova acerca dos
diversos fatos invocados por uma e outra parte. O sistema é claro e fixo no próprio texto da lei que rege o
procedimento” (Humberto Theodoro Júnior, Direitos do Consumidor, p. 148).
20
aplicando a inversão, mas somente alertando o fornecedor, sendo que para
ele, a inversão somente será utilizada no momento do julgamento e, ainda
assim, caso ausente a prova do fato. Essa decisão deve ser encarada sob
óticas totalmente distintas e independentes, uma vez que sua utilização,
pelo juiz ou pelas partes, ocorrerá em etapas processuais diferentes.
Com relação ao juiz, considera-se
quando a inversão será utilizada ou não (momento do julgamento – critério
de julgamento).
Contudo, sob o ponto de vista do
fornecedor, bastante diferente é, pois o “alerta” que o juiz faz
expressamente a este permite a orientação de seu comportamento (decisão
de saneamento – critério de procedimento).
Na verdade, o juiz avisa o fornecedor
que, ao chegar o momento de proferir sentença, se as partes não tiverem
produzido provas suficientes ao seu convencimento, ao contrário do que sói
acontecer, inverterá os ônus da prova, considerando provados os fatos
constitutivos do direito do autor (caso o consumidor seja autor da demanda)
ou aqueles impeditivos, modificativos e extintivos (hipótese mais
incomum, mas possível, se o consumidor for o réu).
Assim temos:
Inversão do ônus da prova – utilização na sentença – critério de
julgamento – ótica da atuação do juiz no processo.
Inversão do ônus da prova – advertência de possível aplicação feita
pelo juiz ao fornecedor na decisão de saneamento –– critério de
procedimento – ótica da atuação do fornecedor no processo.
Repita-se: são duas situações
envolvendo a definição da inversão do ônus da prova, uma relacionada ao
momento em que o juiz sabe, com certeza, que precisará lidar com a
inversão (sentença); outra, em respeito ao contraditório, isonomia, ampla
21
defesa e imparcialidade, na qual o juiz adverte o fornecedor de que poderá
presumir provados determinados fatos em favor do consumidor se ausente
a certeza sobre eles.
Contudo, deve-se deixar extreme de
dúvidas que, se ao final da instrução tiver nos autos prova conclusiva dos
fatos, independentemente de quem tiver realizado a prova,36
o juiz julgará
calcado na certeza processual de como estes ocorreram e não com base em
distribuição de ônus probatório.37
5.1. A abrangência – honorários
Assim como a aferição da
hipossuficiência e da verossimilhança38
e da própria inversão do ônus da
prova, que devem ser analisadas caso a caso, diante das situações
apresentadas em juízo,39
a abrangência da inversão para determinar se os
honorários periciais deverão ser suportados pelo fornecedor não pode ter
resposta automática e comum a todas as situações.
Não podemos concordar com alguns
julgados do STJ que afirmam que a inversão não obriga automaticamente o
fornecedor ao pagamento dos honorários da prova pericial requerida pelo
36
“Encerrada a instrução, e cabendo ao juiz proferir sentença, diminui de importância a questão de saber
se as provas coligadas foram, ou não, produzidas pela parte à qual competia. O que importa, agora, é que
o julgador forme sua convicção com base no contingente probatório” (João Batista Lopes, O ônus da
prova no processo penal, p. 149). 37
“Em síntese, a prova dos fatos controversos é indispensável não só para a apuração da verdade (e da
certeza) mas também para conferir segurança às decisões judiciais e credibilidade à atividade
jurisdicional” (João Batista Lopes, A prova no direito processual civil, p. 27). 38
“A norma estabelecida no inc. VIII do art. 6º é clara, ou seja, é necessária a presença de apenas um dos
requisitos, porque, se assim não fosse, o legislador, à evidência, teria utilizado a conjunção aditiva ‘e’. É
princípio basilar do direito que onde o legislador restringe não é permitido ao intérprete ampliar” (Sandra
Aparecida Sá dos Santos, A inversão do ônus da prova, p. 65). 39
“Como, então, interpretar a regra especial do Código de Defesa do Consumidor autorizadora da
inversão do ônus da prova, permitindo sua transferência para o fornecedor, mesmo quando este seja réu?
Primeiramente, entendendo-a extraordinária e não como norma geral automaticamente observável em
todo e qualquer processo pertinente a relação de consumo. Depois, compatibilizando-a com os princípios
informativos do próprio Código de Defesa do Consumidor. E, finalmente, submetendo-a aos princípios
maiores do devido processo legal e ampla defesa, consagrados por garantia constitucional em favor de
todos os que agem em juízo” (Humberto Theodoro Júnior, Direitos do Consumidor, p. 142).
22
consumidor, mas que declaram que, se esta não for realizada, a ausência
será levada em desfavor do fornecedor. Data venia e com o perdão do
exemplo simplório, parece ser o mesmo que o pai dizer ao filho que ele
pode ir ao baile e voltar na hora que quiser, mas que se for, depois, ficará
de castigo por um mês e sem mesada.
Ou o fornecedor está obrigado a pagar
os honorários para a realização da prova e a falta desta será considerada em
seu desfavor ou não está obrigado a arcar com os honorários e a não
realização da prova será considerada contra o consumidor. Não se pode
fingir que não houve inversão obrigando no pagamento dos honorários,
para depois imputar ao fornecedor esse ônus.
Entendemos que a abrangência e a
profundidade da inversão devem ser analisadas e decididas caso a caso,
considerando-se as peculiaridades específicas do processo.40
Afinal de
contas, ainda que a prova seja feita em favor de uma das partes, que tem o
ônus de provar aquele determinado fato, não se pode olvidar que é
indispensável para o convencimento do juiz, o que evitará a utilização do
critério de inversão ou não do ônus.
Assim, ao definir quais os fatos que
deverão ser provados pelas partes, já deve o juiz determinar quem arcará
naquele caso concreto com as despesas e com os honorários, evitando-se
generalizações que tornem por demais onerosa a situação do fornecedor em
juízo, que, se muitas forem as demandas contra ele e dependendo do valor,
acabará sendo coagido a fazer acordos contra sua vontade.
40
“É evidente, entretanto, que não será em qualquer caso que tal se dará, advertindo o mencionado
dispositivo, como se verifica de seu teor, que isso dependerá, a critério do juiz, da verossimilhança da
alegação da vítima e segundo as regras ordinárias de experiência” (Ada Pellegrini Grinover e outros,
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 129).
23
A definição sobre o adiantamento dos
honorários passa também pelo critério da hipossuficiência e da
verossimilhança.
5. CONCLUSÃO
Nossa conclusão é simples, mas
peremptória:
1. Não se pode inverter o ônus da prova já no recebimento da petição
inicial, pois isso feriria a garantia constitucional do contraditório,
partindo-se de uma premissa equivocada de que o consumidor tem
sempre razão ou que é sempre hipossuficiente, vinculando-se o juiz
antes mesmo de ouvir o fornecedor e assegurar-lhe a ampla defesa, a
qual já será exercida de forma mitigada diante de um prévio juízo.
2. Inverter o ônus da prova somente na sentença, sob a falsa alegação
de não perder o juiz a imparcialidade antes de terminada a fase
instrutória, significará surpreender o fornecedor e limitar sua atuação
processual.
3. O momento próprio e adequado para se determinar a inversão do
ônus da prova em favor do consumidor é na decisão de saneamento
do processo, quando ambas as partes já tiveram oportunidade de
apresentar suas alegações, defesas e provas.
4. A decisão que inverte o ônus da prova em favor do consumidor,
proferida na decisão de saneamento, não significa nem vincula o juiz
a julgar a favor do consumidor, uma vez que a prova efetivamente
realizada pelas partes durante a instrução processual poderá levar ao
juiz a concluir e convencer-se pela procedência ou improcedência do
pedido, não havendo, assim, que se falar em ônus da prova, muito
menos em inversão.
24
5. A inversão será decidida caso a caso, com base nos fatos concretos
apresentados e, ainda assim, não poderá ser genérica a
fundamentação da decisão nem lhe faltar motivação; a inversão deve
ser de fato específico e não geral.
6. Apesar do alerta feito pelo juiz na decisão de saneamento
(determinação de inversão do ônus da prova), caso, ao final, exista
prova concreta e firme, independentemente de quem a produziu,
convencido o juiz, aquela inversão determinada anteriormente
perderá sua razão de ser e não influirá no julgamento, perdendo sua
razão de ser.
7. Repita-se: a afirmação do juiz, na decisão de saneamento, alertando
o fornecedor de que, no caso da ausência de determinada prova,
julgará invertendo o ônus da prova, em razão de hipossuficiência da
parte ou de verossimilhança, é mais justa e atende mais aos
princípios basilares do processo (contraditório – visto como
informação, reação e diálogo entre as partes e o juiz –, ampla defesa,
isonomia e até imparcialidade do juiz), principalmente porque não
implica que o pedido seja ao final julgado em favor do consumidor.
8. A inversão, se utilizada no momento do julgamento, já terá sido
anteriormente avisada ao fornecedor em uma decisão interlocutória,
proferida quando do saneamento do processo.
9. A questão da inversão do ônus da prova deve ser encarada de duplo
ponto de vista: de um lado, na visão e atuação da parte, tem que ser
proferida pelo juiz na decisão de saneamento, de modo que lhe
permita produzir a prova, em respeito ao contraditório, isonomia e
ampla defesa, enquanto pela ótica da atuação e posicionamento do
juiz, deve ser vista como realmente o é, critério de julgamento, que
somente será utilizado na hipótese de nenhuma das partes ter
produzido a prova necessária para completo aclaramento do fato.
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10. Portanto, não se trata nem é uma “contradição em termos”
desmembrar a questão da inversão do ônus da prova em dois pontos
de vista diferentes, pois diversos são os objetivos e atuação das
partes e do juiz no processo.
B I B L I O G R A F I A
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