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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ZÍNIA FRAGA INTRA
A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER
MENINA E DE SER MENINO
VITÓRIA
2007
ZÍNIA FRAGA INTRA
A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER MENINA E DE SER MENINO.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, na área de concentração em Processos Psicossociais da Aprendizagem. Orientadora: Profª Drª Ivone Martins de Oliveira.
Vitória 2007
As minhas sobrinhas, Lorena, Amanda, Julia,
Rebeca e ao Davi. Fontes de minha inspiração.
AGRADECIMENTOS
A Deus por ter me dado o dom da vida.
Aos meus pais e irmãos, que me proporcionaram uma infância rica em
possibilidades de aprendizagem e por sempre acreditarem em mim.
À querida professora Drª. Ivone Martins de Oliveira, que há sete anos tenho o prazer
de acompanhar em seus projetos, pesquisas e estudos, pela paciência e carinho
com que me orientou, e pelos ensinamentos, que levo para toda vida.
Às professoras Drªs. Sonia Lopes Victor e Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto,
pelo carinho com que me tratam, pelas valorosas contribuições na qualificação e por
terem aceitado o convite de participar desse momento tão importante.
À professora Drª Vera Lucia Messias Fialho Capellini, por ter recepcionado tão bem
as capixabas que visitaram Bauru e por aceitar participar da banca examinadora.
A professora Drª Vânia Carvalho de Araújo, por me mostrar a riqueza de se estudar
a infância e pelos ensinamentos durante monitoria.
À diretora, pedagoga, professora e demais profissionais da escola pesquisada, por
terem me permitido adentrar nesse espaço e pelo respeito que tiveram com
pesquisa e a pesquisadora.
Aos alunos do Jardim II, pelos beijos, abraços, elogios e pelos convites para brincar.
Aos colegas de trabalho pela compreensão e paciência nos momentos de ausência
e pela torcida para que tudo desse certo.
Aos meus alunos por compreenderem que algumas vezes tive que me ausentar e
pelo carinho com quem cuidam de sua professora.
Às minhas amigas Renata, Lucyenne e Tânia, pelos momentos agradáveis que
passamos juntas durante a nossa formação e pelo apoio e dicas que me deram
durante a realização desse trabalho.
Às minhas amigas de luta, por uma Educação Infantil de qualidade, Joelma e
Fabiola, pelos momentos de intensa aprendizagem que passamos juntas.
À Fernanda minha amiga e confidente, que sempre me escutou.
Ao Fabrício, surpresa boa, pela compreensão nos momentos de ausência e por ter
cuidado de mim e da minha dissertação com tanto carinho.
Aos funcionários e professores do Centro de Educação/ UFES, por terem participado
da minha constituição enquanto professora.
Não há uma saída. Há muitas. Não há uma resposta ún ica. Mesmo
que por ilusão a encontremos, novas perguntas conti nuam a surgir.
Somos calcário, chumbo, argila, água marinha? Sim e não.
Desmanchamo-nos e nos refazemos.
Sonia Kramer .
RESUMO
Neste trabalho buscamos compreender a constituição do eu entre as crianças na educação infantil. Os motivos que nos levaram a pesquisar a infância nesta modalidade de ensino diz respeito à recente inserção desse tema nas produções acadêmicas, acarretando uma pequena produção, e ao fato de acreditarmos ser este um espaço privilegiado para analisarmos a constituição do eu entre as crianças. A história da infância nos auxiliou a delinearmos a abordagem escolhida, atendendo a uma perspectiva que leve em consideração a história e a cultura de nossa sociedade. Dessa forma, os estudos da abordagem histórico-cultural nos auxiliaram na análise da constituição do sujeito na infância: baseamo-nos em Vigotski para entendermos o papel do outro e da linguagem na constituição do sujeito e em Wallon para compreendermos os percursos do desenvolvimento infantil. A pesquisa se constituiu em um estudo de caso de uma turma de crianças de cinco a seis anos de uma unidade de educação infantil do município de Vila Velha. A coleta de dados se deu através de observações do cotidiano da turma, entrevistas com a professora e as crianças e documentos da escola. As análises priorizaram a interação entre as crianças e levaram ao enfoque dos modos de ser menina e ser menino, nas relações com os outros; dos diferentes papéis assumidos pelas crianças e dos conflitos gerados nesta interação. Foram discutidos aspectos referentes aos diferentes modos de ser menina e ser menino, nessa turma, bem como sua relação com valores, concepções e práticas culturais que atravessam o ser mulher e ser homem no contexto histórico e cultural. A pesquisa evidenciou a importância do papel mediador do professor nas interações estabelecidas entre as crianças, proporcionando a elas maior riqueza de possibilidades de vivenciar novos papéis e de questionar e refletir sobre valores e padrões cristalizados e rígidos de modos de ser presentes na sociedade. A problematização e reflexão sobre relações de gênero podem proporcionar aos profissionais da educação infantil repensar práticas que reforçam estereotipias, quebrando preconceitos e possibilitando práticas educativas que levem a um ambiente rico em interações e vivências de modos de ser para as crianças. Palavras-chave: Constituição do eu – interação – gênero – educação infantil – criança.
ABSTRACT
The paper aims at understanding the constitution of the self among children in childhood education. The reason to research on the childhood in that modality of teaching is about the recent insertion of such theme in academic productions, carrying a tiny production, and to the fact of the belief that this privileged space is for the analysis of the self constitution among children. The history of childhood helped to delineate the chosen approach, attending a perspective that takes into consideration the history and culture of our society. This way, the studies of the historical-cultural approach helped with the analysis of the one’s constitution in the childhood: Vigotsky was the base to the understanding of the other’s role and the language in one’s constitution and Wallon was referred for the understanding the paths of the childhood development. The study is constituted in a study case of a group of children from five to six years old of a children education unit in the district of Vila Velha, state of Espírito Santo. Data collection was through a daily observation of the group, interviews with teachers and children and school documents. The analyses priority was the children’s interaction and led to the focus of being a girl or a boy, in relations with others; from the different roles assumed by children and the conflicts generated in that interaction. It was discussed the aspects referent to the different ways of being a girl or a boy, in this group, as well as the relation with values, conceptions and cultural practices which cross the woman being and man being in the historical and cultural contexts. The research emphasized the importance of the teacher’s mediator role in interactions established among the children, providing them with greater possibilities to live new roles, question and reflect on values and crystallized and strict patterns of ways of being present in society. The problem and reflection about relations of gender can make the professionals of the children’s education rethink practices which reinforce the stereotypy, breaking prejudice and making possible educative practices that guide to an environment full of interaction and experiences of ways of being for the children. Keywords: Self constitution. Interaction. Gender. Children education. Children.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Corredor com as salas de aula 1.............................................................56 Figura 2 - Corredor com as salas de aula 2...............................................................56 Figura 3 - Sala de vídeo 1. .........................................................................................56 Figura 4 - Sala de vídeo 2..........................................................................................56 Figura 5 - Sala da pedagoga.................................................................................56 Figura 6 - Banheiro feminino......................................................................................56 Figura 7 – Rampa......................................................................................................56 Figura 8 - Sala do berçário.........................................................................................56 Figura 9 - Sala do berçário II.................................................................................57 Figura 10 – Refeitório.................................................................................................57 Figura 11 – Refeitório.................................................................................................57 Figura 12 – Parquinho de areia..................................................................................57 Figura 13 – Pátio........................................................................................................57 Figura 14 – Casinha...................................................................................................57 Figura 15 - Sala de professores 1..............................................................................57 Figura 16 - Sala de professores 2..............................................................................57 Figura 17 – Mesas e cadeiras que ficam próximas à porta.......................................63 Figura 18 – Quadro de giz.........................................................................................63 Figura 19 – Mesas e cadeiras que ficam próximas à janela.....................................63 Figura 20 – Espelho..................................................................................................63 Figura 21 – Prateleiras...............................................................................................63 Figura 22 – Quadro de pincel....................................................................................63 Figura 23- Dinâmica das relações entre as meninas...............................................77 Figura 24 – Dinâmica das relações entre os meninos...............................................79
Figura 25 Dinâmica das relações entre meninas e meninos....................................80 Figura 26. Dinâmica das relações entre meninas e meninos.....................................81 . Figura 27 Dinâmica das interações na turma do Jardim II.........................................83
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................14
1 DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO DO EU NA CRIANÇA ........................22
1.1 REVISÃO DE LITERATURA................................................................................25
1.2 SUBJETIVIDADE E CONSTITUIÇÃO DO EU: AS CONTRIBUIÇÕES DE VIGOTSKI E WALLON...............................................................................................38 2. METODOLOGIA....................................................................................................48
2.1 A UNIDADE DE EDUCAÇÃO INFANTIL.............................................................54
2.1.1 Funcionários da UMEI ....................................................................................58
2.1.2 A entrada da pesquisadora na sala do Jardim I I..........................................60
2.1.3 A sala do Jardim II ...........................................................................................61
2.1.4 A professora do Jardim II ...............................................................................63
2.1.5 A rotina da sala ...............................................................................................64
2.1.6 As crianças do jardim II ..................................................................................69
2.1.7 As crianças e suas famílias ..........................................................................70
3. SER MENINA E SER MENINO NA TURMA DO JARDIM II: C AMINHOS DE
CONSTITUIÇÃO DO EU .......................................................................................... 73
3.1 A FORMAÇÃO DE GRUPOS E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A CONSTRUÇÃO
SOCIAL DA CRIANÇA...............................................................................................75
3.2 SER MENINO E SER MENINA............................................................................85
3.2.1 Será que ele me acha bonita? - Ser menina na turma do Jardim II ...........87
3.2.2 As meninas e os conflitos ..............................................................................99
3.2.3 Menino pode brincar de casinha? – ser menino na turma do Jardim II ...104
3.2.4 Os meninos e os conflitos ............................................................................112
3.3 SER MENINO E SER MENINA: CONSTITUIÇÃO DO EU NA INFÂNCIA........116
4 UM COMEÇO PARA NOVAS DESCOBERTAS ..................................................119
5 REFERÊNCIAS....................................................................................................123 ANEXO....................................................................................................................128
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Intra, Zínia Fraga, 1980- I61c A constituição do “eu” entre crianças na educação infantil: diferentes
modos de ser menina e de ser menino / Zínia Fraga Intra. – 2007. 132 f. : il. Orientadora: Ivone Martins de Oliveira. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação 1. Desenvolvimento da personalidade. 2. Educação de crianças. 3.
Interação social em crianças. 4. Crianças. 5. Relações de gênero. I. Oliveira, Ivone Martins de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
INTRODUÇÃO
O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Guimarães Rosa
Quem tem o privilegio de acompanhar o cotidiano nas instituições de Educação
Infantil percebe o quanto mudam as crianças no período em que ali permanecem,
principalmente se entram bebês. É bonito vê-las, como disse Guimarães Rosa,
mudando ao longo do tempo, ver que entram engatinhando ou que resistem ao
entrar, com medo daquele ambiente desconhecido tão grande e tão diferente do da
sua casa, mas que aos poucos vão-se tornando independentes, transitando pelo
espaço com total segurança. Já não têm mais medo, pois passam a conhecer o
espaço tão bem ou até mesmo melhor que os adultos que trabalham nessas
instituições.
Acompanho de perto essas mudanças e durante a minha prática como professora
de Educação Infantil, sempre me questionei sobre como essas transformações são
possíveis? Que fatores levam a que elas ocorram? Somente a maturação biológica
daria conta de explicar essas transformações?
Observar as crianças pode levar-nos a entender esse processo.
Uma criança de aproximadamente um ano e meio tenta abrir a torneira da pia do
refeitório para lavar suas mãos, mas não alcança. Outra criança que aparenta ser
um pouco mais velha aponta para um ressalto de mármore que há ao lado da pia e
diz:
- Aqui, ó!
Depois, sobe, abre a torneira e lava as mãos. A criança que estava com dificuldades
faz o mesmo e fecha a torneira.
Qual foi a importância da criança mais experiente? Será que, sem ela ali, a outra
conseguiria sozinha ou solicitaria a ajuda de um adulto? Um episódio que muitas
vezes pode parecer banal aos olhos de quem não tem a sensibilidade de observar o
cotidiano demonstra a constituição de um conhecimento apresentado pelo outro.
Dessa forma, o cotidiano escolar apresenta-me uma gama de oportunidades de
observações, que eu venho acumulando ao longo dos oito anos de profissão.
Iniciei meu trabalho com crianças da primeira série do ensino fundamental da rede
particular. Já há algum tempo vem acontecendo a entrada de crianças no ensino
fundamental, principalmente em escolas particulares, em idade cada vez mais
precoce, uma vez que os pais consideram vantajoso adiantar o percurso de seus
filhos nos anos iniciais de escolarização.
Dessa forma, na primeira série observei crianças com cinco, seis e sete anos. Muitas
delas sentiam-se perdidas, pois tinham que lidar com notas, provas e o tempo
reduzido para brincar. As crianças que não sabiam ler eram tachadas de “mimadas”
e “imaturas”, como se o processo de alfabetização se reduzisse a uma maturação
biológica. Sempre tentei amenizar essa mudança brusca com a qual as crianças
tinham que aprender a lidar, preparando momentos avaliativos diferentes de uma
prova, subvertendo a ordem e levando-as para brincar. Aquela situação, porém,
inquietava-me.
Concomitante com a minha inserção na vida profissional, fui-me constituindo como
professora também na universidade, onde eu cursava Pedagogia. O mundo
acadêmico me seduziu, comecei a perceber que a educação não se reduzia
simplesmente à minha sala de aula e que minhas práticas refletiam concepções e
políticas enraizadas em nosso sistema de ensino. Confesso que inicialmente me
assustei com a perversidade muitas vezes oculta da escola e com a idéia de que eu
poderia estar contribuindo para isso.
Na ânsia pelo novo, busquei mudanças em minha prática. Percebia que aquele
ensino que tentava docilizar os corpos cada vez mais cedo prejudicava as crianças,
a quem muitas vezes vi chorar com saudades do parquinho, e que nos momentos de
prova não entendiam por que não podiam ajudar o colega, subvertiam a ordem e
iam brincar escondidas.
Assim sendo, no ano de 2001 deixei a escola em busca de algo novo, que me
fizesse compreender as crianças por meio de práticas diferenciadas. Ingressei no
Programa de Iniciação Cientifica com o projeto intitulado “Afeto, emoção e
linguagem na brincadeira da criança”, desenvolvido na brinquedoteca do Núcleo de
Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Especial (NEESP) do Centro de
Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (CE/UFES). Esse projeto tinha
por objetivo investigar os modos de manifestação da linguagem na configuração do
afeto e da emoção, em situações de jogo imaginário com crianças. As interações
entre as crianças e os pesquisadores eram intensas. Durante o período em que
estivemos juntos, vários foram as cenas de brincadeiras em que acontecia a
participação de mais de uma criança. As interações proporcionavam o
enriquecimento da brincadeira.
Essa pesquisa fazia parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Jogo, Mediação
pedagógica e criança: estudos na abordagem histórico-cultural”, que visava
aprofundar a discussão sobre o desenvolvimento histórico e cultural da criança,
tendo como referência o jogo infantil.
Também dentro dessa pesquisa se desenvolvia o projeto coordenado pela
professora Doutora Sonia Lopes Victor, que tinha como objetivo contribuir com a
formação pedagógica e refletir a mediação pedagógica entre as crianças com
deficiência mental e as crianças de desenvolvimento típico em interação em
situações de brincadeira. Como as atividades eram desenvolvidas em crianças em
faixa etária correspondente aos alunos da Educação Infantil, a pesquisa contribui
para mostrar que além da escola existem outros espaços que podem propiciar um
saber sistematizado e intencional. O professor nestes espaços tem um papel
fundamental de acompanhar e possibilitar às crianças caminharem além dos níveis
de desenvolvimento já garantidos. A pesquisa também contribui para uma reflexão
da inclusão de crianças com deficiência mental nas salas regulares, valorizando a
mediação do professor, tendo como referência as manifestações da brincadeira de
faz - de- conta entre as crianças.
Nesse período, percebi que pesquisar era muito mais do que procurar livros ou ir a
bibliotecas. Pesquisar era observar, refletir sobre a minha prática na pesquisa, sobre
as respostas das crianças e analisar, embasada na teoria, essas respostas. A partir
desse momento, passei a “ver” diferente. Assim como alguém que não enxergava e
passa a ver, o meu olhar se tornou mais sensível. Como disse Fernando Pessoa, “O
meu olhar é nítido como um girassol [...] olhando para a direita e para a esquerda e
de vez em quando para trás e o que vejo a cada momento é aquilo que antes eu
nunca tinha visto”. Na pesquisa é preciso olhar várias vezes para mesma situação,
permitindo-se desviar o olhar para entender o que está acontecendo e sempre se
descobrirá algo novo. Essa é a riqueza de se fazer pesquisa com crianças, a
possibilidade do novo.
As etapas da pesquisa foram de fundamental importância para a inserção dos
recentes pesquisadores, pois participamos desde a escolha dos brinquedos,
montagem e o planejamento das atividades direcionadas com as crianças.
Acompanhar e mediar a interação das crianças em situações de brincadeira
possibilitou-nos a construção de um conhecimento sobre como interagir nessas
situações e, junto com a criança, avançarmos em seu conhecimento sobre
determinada brincadeira.
Após o término desse estudo, iniciei meu trabalho como monitora da disciplina
“Currículo em Educação Infantil”, interesse que surgiu ainda no período da pesquisa,
pois nesse tempo lidávamos com crianças a partir de quatro anos de idade. Nossas
leituras no grupo de pesquisa levaram-nos a refletir sobre o desenvolvimento das
crianças na faixa etária da Educação Infantil.
As contribuições foram riquíssimas, pois as discussões não se restringiam mais ao
contexto do desenvolvimento infantil na brincadeira, ampliaram-se para o contexto
da criança inserida no ambiente escolar, a história da trajetória das instituições de
Educação Infantil, a forma como muitas instituições entendiam a criança e o seu
desenvolvimento. Acrescenta-se a isso a valorosa troca de idéias com os alunos da
disciplina que, com suas dúvidas, questionamentos e informações, me fizeram ter
vontade de retornar à sala de aula com toda vivência e conhecimento adquirido.
No ano de 2004, comecei a trabalhar como professora de Educação Infantil, no
ensino municipal de Vila Velha. Trabalhar na escola pública era uma vontade política
que adquiri com os professores da Universidade, uma vez que passei quatro anos
usufruindo do ensino público superior, ao qual muitos ainda não têm acesso. Dessa
forma, sentia-me comprometida a partilhar com a sociedade aquilo que tinha
aprendido.
Trabalhando em um espaço reservado somente para a Educação Infantil, pude
observar crianças em faixas etárias diferenciadas e perceber a interação entre elas,
o espaço e os funcionários da Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI). Das
muitas cenas que presenciei lembro-me de ter observado crianças maiores (6 anos)
orientando as crianças menores (2 anos) a irem ao banheiro ou até mesmo
auxiliando no momento de sua alimentação.
No mesmo ano em que passei a lecionar para escola pública, tive o prazer de
acompanhar, como aluna especial, o projeto “O processo de construção de
conhecimentos sobre a prática docente: um estudo com professores que atuam na
Educação Infantil”, que tinha como objetivo analisar o processo de construção de
conhecimento sobre a prática docente por parte dos professores que atuam na
Educação Infantil.
Agora, em outro momento, não mais analisando o desenvolvimento infantil, e sim os
professores da Educação Infantil, suas falas, quando participavam dos momentos de
discussão, que eram norteados por textos, pude avançar um pouco mais em minha
condição como professora e participar de um momento muito importante para os
profissionais da escola pesquisada: era um momento de transição em busca do
novo, do desafio e da retomada da confiança por parte do grupo. Ouvir professores
tão experientes, com uma vivência rica que eu já admirava antes mesmo de
participar da pesquisa, veio a contribuir ainda mais para a minha formação. Lembro-
me do relato de um professor sobre a experiência de uma criança, ex-aluno desse
Centro de Educação Infantil, que foi para o Ensino Fundamental e que lá era tida
como transgressora, pois, antes de ir para o recreio, tirava a blusa do uniforme.
Indagada pela escola sobre o comportamento do filho, a mãe disse que o filho tinha
essa liberdade porque sua antiga escola lhe permitia fazer isso nos dias quentes.
Nesse espaço, as crianças tinham liberdade para se expressar.
Segundo o relato dos professores, as crianças tinham liberdade para interagir com
todos, dar sua opinião sobre a área onde brincavam e o cardápio. Relatos que me
mostravam que outra forma de ensinar era possível. Ouvir e saber detalhes da vida
daquelas crianças era o diferencial daquele grupo de professores.
Isso me mostrou a importância dos relacionamentos tecidos dentro do espaço
escolar. Durante os últimos anos, venho observando com mais cuidado esse
ambiente e a sua importância na constituição do sujeito. O que levamos do convívio
com os outros? É possível viver isolado em um ambiente tão rico em interações?
Vivenciando esse ambiente e toda riqueza que ele proporciona, percebo a
importância que ele tem na formação e constituição do sujeito. É comum ouvir mães
falarem que as crianças só aceitam o que a professora diz, ou que adquiriram
práticas que antes não tinham, como fazer fila, cantar para lanchar, cantar músicas
novas. Isso só é possível através das interações que permeiam as instituições. As
crianças, que até certo momento estavam restritas ao ambiente familiar, agora
convivem com diversas pessoas, novos colegas, funcionários da escola e
professores. Esse convívio pode ser prazeroso ou não, mas com certeza deixa
marcas na constituição do sujeito.
Como professora, gosto de observar as crianças quando chegam à escola, nos
momentos de brincadeiras e atividades direcionadas. É sempre interessante ver
como buscam soluções diferenciadas para resolução de problemas, quando, por
exemplo, um colega que tem dificuldades ao balançar e outro o empurra para ajudar
e o ensina como dobrar as pernas para “voar” mais alto; ou quando, nas atividades
direcionadas, um colega ajuda o outro e, no momento em que aprende a ler, ele diz
que foi o amigo quem lhe ensinou, parecendo que todo o esforço da professora em
ensiná-lo tinha sido em vão, pois atribui ao colega o mérito do ensinamento; quando
passam a conhecer tão bem o cheiro dos alimentos da escola, que já reconhecem
qual vai ser a merenda do dia; quando, em interação com a professora e os outros
colegas, aprende algo novo. Esses momentos tão ricos em humanidade e o que é
própria dela - a interação – possibilitam-me apurar o olhar e me questionar sobre o
processo de desenvolvimento desses sujeitos.
Diante disso, busco compreender, neste estudo, como ocorre a “constituição do eu”
entre as crianças na Educação Infantil. Esse objetivo levou-me a discutir sobre os
aspectos que interferem nessa constituição, a maneira como adultos e crianças
participam desse processo, o papel da cultura e da história da humanidade no
constituir subjetivo dessas crianças.
Mas por que escolher a Educação Infantil? Além de a minha história profissional
estar interligada com a Educação Infantil, o desenvolvimento das crianças me
fascina, busco, nesta pesquisa, contribuir para a ampliação das discussões sobre a
Educação Infantil, por se tratar de uma área recente e por ser o desenvolvimento
infantil um tema pouco pesquisado.
Segundo Rocha (1999), que pesquisou as produções acadêmicas publicadas sobre
Educação Infantil em seminários e congressos como Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e outros, as
pesquisas em Educação Infantil têm mudado ao longo das décadas. Na década de
1970, a preocupação era com as crianças da pré-escola, propondo intervenções
precoces para os “culturalmente marginalizados”. Nessa década, poucas pesquisas
voltavam-se para as crianças de 0 a 6 anos, e as que se propunham a discutir o
tema buscavam influências da educação compensatória para justificar a ampliação
da Educação Infantil.
Na década seguinte, com a crítica às teorias da privação cultural, a discussão
política passou a orientar os estudos teóricos sobre a influência dos movimentos
sociais e feministas. Nesse momento, entraram em foco as pesquisas do tipo
diagnóstico institucional, os levantamentos de dados, os relatos de experiências; a
partir daí tem-se uma idéia de qual era o cenário das instituições de Educação
Infantil no Brasil.
As pesquisas que antecederam os anos noventa estavam preocupadas em
investigar a definição do caráter educativo da creche e da pré-escola, entretanto o
“interior” das instituições era pouco investigado.
Com o passar do tempo, os estudos passaram a aproximar-se dos diversos
aspectos da pré-escola, como a relação família/creche, a formação profissional dos
que trabalham com as crianças. No entanto, um grande número de pesquisas
acabaram limitando-se à denúncia de práticas insatisfatórias.
Atualmente há um grande esforço dos pesquisadores por pesquisas que entendam
as instituições de Educação Infantil como um espaço privilegiado para a socialização
das crianças e o desenvolvimento infantil, a partir do contexto em que ocorre, e das
relações que o permeiam. Rocha destaca os trabalhos do Centro Brasileiro de
Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), da
Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto pela intensa produção na área
da Psicologia Infantil.
Compartilhando as idéias desses pesquisadores, esta pesquisa busca compreender
o desenvolvimento infantil a partir da observação de crianças que freqüentam uma
Unidade de Educação Infantil. Considerando a riqueza de cada dia, vivenciado, este
estudo procura desvelar esse universo, observando o cotidiano e buscando
compreender nele os caminhos da constituição do eu entre as crianças.
Dessa forma, no primeiro capítulo, abordo alguns aspectos da história da infância,
para mostrar em qual concepção de criança e de que perspectiva de
desenvolvimento este estudo se baseia. Para isso, busco algumas pesquisas que
vêm refletindo a constituição do eu na perspectiva sócio-histórica, procurando
mostrar o reflexo desses trabalhos na Educação Infantil. Em seguida, aponto
algumas contribuições da perspectiva histórico-cultural para a análise da
constituição do sujeito na infância. Trago especialmente as contribuições de Vigotiski
sobre o papel do outro e da linguagem no desenvolvimento da criança e as
contribuições de Wallon sobre o percurso da constituição do eu em diferentes
momentos do desenvolvimento.
No segundo capítulo, a escolha metodológica da pesquisa delineia os passos que
sigo para observar aquilo que proponho, reforçando que o foco são as crianças,
seres ativos historicamente, produtores e produto de uma cultura. A pesquisa
constitui-se em um estudo de caso de uma turma de Jardim II1 de uma unidade
pública de Educação Infantil do município de Vila Velha. Nesse momento apresento
a escola, a professora, as crianças do Jardim II e a rotina de trabalho da turma. E
suas famílias.
No terceiro capítulo analiso aspectos do percurso de constituição do eu entre as
crianças do Jardim II. Para isso enfoco as interações estabelecidas na turma e
destaco o ser menina e o ser menino nesse universo. As análises evidenciam inter-
relações entre as atitudes e os comportamentos das crianças e concepções, valores
e práticas presentes no contexto histórico e cultural em que elas vivem.
Finalizando, discuto algumas contribuições que o estudo traz para pensarmos/
refletirmos sobre a prática pedagógica e a constituição do eu entre as crianças nas
relações entre meninas e meninos e o contexto histórico e cultural que permeia esse
processo, a possibilidade de modos de mediar a interação entre as crianças,
proporcionando a elas experimentar diversos papéis/posições nas relações de
gênero.
1 A Rede Municipal de Educação de Vila Velha utiliza-se da nomenclatura clássica de Frobel (1782- 1852) de “jardins de infância” para definir as turmas da Educação Infantil. A turma de Jardim II corresponde à idade de cinco a seis anos de idade.
1 DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO DO EU NA CRIANÇA
Procurando o caminho a seguir...
[...] se existe uma história humana é porque o homem tem uma infância. Kramer
Iniciamos este capítulo com uma citação de Kramer (1999), afirmando a importância
de se estudar a infância para entendermos o ser humano. Entretanto pensar o termo
infância na história é levar em consideração que esse só irá surgir no princípio da
modernidade.
Sarmento (2005, p.23) retrata a infância na história, apontando a negação dessa
categoria social ao longo dos anos. No início da modernidade, a infância surgiu não
com uma, mas com duas idéias: uma que defende a inocência da criança, e a outra,
que indica a “irracionalidade” da criança perante o adulto. “A criança é considerada
como um não-adulto e este olhar adultocêntrico sobre a infância registra
especialmente a ausência, a incompletude ou a negação das características de um
ser humano ‘completo’”.
A revolução industrial trouxe consigo a prática da utilização das crianças como mão-
de-obra barata e produtiva. Entretanto, no início do século XX houve uma
mobilização contra a exploração do trabalho infantil, retirando as crianças das
fábricas, mas não do trabalho no campo. “Nesta conformidade as crianças foram
consideradas como seres afastados da produção e do consumo e a infância
investida da natureza da idade do não trabalho”. (SARMENTO, 2005, p.24)
Segundo Sarmento (2005, p.24), atualmente percebemos o desenvolvimento ativo
das crianças na indústria do consumo, com a erotização progressiva da infância
pelos meios de comunicação. Essa concepção de infância encerra o “[...] círculo da
negatividade, a idéia de que as crianças actuais vivem, definitivamente, um processo
de adultilização precoce e irreversível, e, por conseqüência, habitam a idade da não
infância”.
Conforme as análises de Sarmento, a infância é uma categoria social à qual sempre
foi negado o direito da expressividade. Apesar de todo o arcabouço teórico
construído ao longo dos anos, a infância atualmente ainda continua a ser negada e a
criança é vista como uma mera receptora das produções do mundo capitalista.
Segundo Oliveira (2002), no Brasil, até metade do século XIX, não se falava do
atendimento a crianças pequenas longe de suas mães; tinha-se a idéia, conforme
colocou Sarmento (2005), de uma criança inocente e desprovida de razão. As
crianças mais pobres eram cuidadas por suas mães e as crianças filhas de
aristocratas ou de grandes latifundiários eram criadas, quando pequenas, pelas
“amas de leite”, ou seja, as escravas e, quando atingiam certa idade, recebiam aulas
de suas tutoras.
As crianças pequenas só eram assistidas em instituições quando eram
abandonadas por suas mães e entregues às “rodas de expostos”. Essas instituições
eram geralmente ligadas à igreja católica. Dessa forma, o atendimento a essas
crianças dava-se mais como ”cuidado”.
No início do século XX, com o crescimento urbano e industrial e a entrada da mulher
no mercado de trabalho, criou-se um problema: Com quem vão ficar as crianças
pequenas? As crianças maiores acompanhavam suas mães, ajudando-as no
trabalho. Nesse período, cresce o índice de mortalidade infantil, porque para saírem
para trabalhar as mães deixavam seus filhos ainda bebês sozinhos e sem a
alimentação devida, o que ocasiona um grande número de crianças mortas.
Neste contexto, surgiram as “criadeiras” ou as “fazedoras de anjos”: mulheres que se
responsabilizavam pelo cuidado de diversas crianças em espaços com higienização
duvidosa.
Grandes lutas foram travadas para o surgimento de instituições que cuidassem das
crianças pequenas, com a participação ativa do movimento de mulheres em busca
de atendimento para seus filhos. Entretanto a infância foi negada mais uma vez, pois
esse atendimento era visto mais como um direito da mãe trabalhadora de ter uma
instituição que cuidasse do seu filho enquanto ela trabalhava, do que um direito da
criança de ser atendida em suas necessidades e de ter condições educativas para
desenvolver suas potencialidades.
A partir da década de 1940, começaram a surgir, em São Paulo, creches que eram
pensadas para o atendimento de higienização e saúde das crianças, para sanar os
altos índices de mortalidade infantil. Essas instituições tinham um caráter filantrópico
e assistencialista. Para elas, o cuidar era o mais importante.
Na década de 1970, começaram a surgir as pré-escolas que, baseadas em uma
teoria da privação cultural e da educação compensatória, definem a infância “[...]
pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que não conhece e,
fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua humanidade”
(KRAMER,1996 p.16). Dessa forma, a pré-escola apareceu como a solução imediata
e mágica para os problemas do fracasso escolar.
Como afirma Kramer (1998), a infância é negada mais uma vez quando não é
reconhecida e as instituições de educação infantil tornam-se um preparatório para o
ensino fundamental. Essa concepção ainda marca a Educação Infantil, quando se
pensa que a função da creche é o cuidar e da pré-escola é o educar.
Nas décadas seguintes, ocorreu um intenso debate político-educacional, que foi
importante para a consolidação de uma base teórica em defesa da infância. Em
1975, criou-se a Coordenadoria de Ensino Pré-Escolar, no Ministério de Educação e
Cultura, o que veio a demonstrar um avanço nas discussões sobre a infância.
Segundo Oliveira (2000) lutas
[...] pela democratização da escola pública, somadas a pressões de movimentos feministas e movimentos sociais de lutas por creches, possibilitaram a conquista, na Constituição de 1988, do reconhecimento da educação em creche e pré-escolas como um direito da criança e um dever do Estado a ser cumprido nos sistemas de ensino. (p.50)
No ano de 1988, concretizou-se então, em forma de lei, a reivindicação dos
movimentos sociais e de teóricos e pesquisadores da época. A década seguinte foi
marcada por grandes fatos, como a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente e a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n°
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que reconhece a Educação Infantil como etapa
inicial da educação básica e define como responsabilidade do município o
atendimento, autorização, credenciamento, supervisão e avaliação institucional.
Ao longo dos anos, segundo Kramer (1996, p. 17), o ser “[...] paparicado ou
moralizado, miniatura do homem, sementinha a desabrochar cresceu como estatuto
teórico”. Contudo, apesar de a LDB assegurar a Educação Infantil na Educação
Básica e determinar a formação do profissional que atende esta faixa etária, o que
vemos no País é que muitos municípios ainda não se adequaram a essa
responsabilidade; neles há creches ligadas à Secretaria de Ação Social e
profissionais sem a escolaridade necessária para essa modalidade de ensino.
É nesse contexto de transformações e mudanças que esta pesquisa se propõe a
contribuir para o estudo do desenvolvimento infantil, fugindo da negação da criança
e de uma psicologia que a retrata “[...] como imatura e dependente, carente e
incompleta, quer como esponja absorvente, semente a desabrochar, quer ainda
como perverso polimorfo ou sujeito epistêmico” (KRAMER, 1996, p. 17). Investigo
nesta pesquisa a criança e sua condição histórica e cultural.
Não negamos a história da infância, pois ela se torna fundamental para entendermos
as crianças como atores sociais, interpretando seu mundo e os signos que as
cercam, respeitando-as em suas singularidades e multiplicidades. Encontramos na
teoria histórico-cultural a “[...] possibilidade de compreender como o sujeito individual
era/é tecido pelas tramas do contexto, sendo ao mesmo tempo ativo e criativo nesse
processo” (KRAMER, 1996, p.23).
1.1 REVISÃO DE LITERATURA
Buscando compreender como se dá a constituição do sujeito no ambiente escolar,
trazemos a contribuição de autores que nos últimos anos têm pesquisado essa
temática. Inicialmente, muitas foram às dúvidas para definir os trabalhos a serem
analisados e sua importância para a presente pesquisa, pois têm sido variados os
termos utilizados ao se falar de constituição do sujeito: subjetividade? consciência?
personalidade? Diante disso, optamos por reunir, neste trabalho, pesquisas que têm
um enfoque histórico-cultural, por acreditarmos que são fortes as marcas deixadas
em nós do nosso convívio com o outro.
Quando abordamos a constituição do sujeito, estamos também delimitando aquilo
que é próprio do sujeito, que será formado ao longo das suas vivências, dos outros
que as significam e de sua forma de interpretar a realidade (que também é
constituída socialmente).
Autores que procuram compreender como se dá a constituição do sujeito a partir da
perspectiva histórico-cultural analisam aspectos variados e momentos distintos do
desenvolvimento infantil.
Pino (2005) busca, em dados de pesquisa empírica, analisar uma das principais
teses de Vigotski: a natureza cultural do desenvolvimento da criança, ou seja, do ser
humano. Dentro dessa perspectiva, o autor divide em dois pontos centrais o seu
trabalho: 1) o homem é constituído de funções naturais e culturais; 2) as funções
culturais pressupõem a “transposição” do plano social para o plano pessoal.
Dessa forma, o desenvolvimento cultural teria um começo, que estaria situado logo
após o nascimento, na ocasião em que o bebê entra em contato com o meio
sóciocultural. Acreditando que existe um marco zero cultural, Pino o coloca como
ponto de investigação, tentando detectar, nos primeiros meses de vida, os indícios
da conversão das funções biológicas em funções culturais. O autor alerta que não é
fácil diferenciar, na pesquisa, o fator cultural do biológico porque, em determinados
pontos, eles se fundem. O trabalho é uma tentativa de verificação empírica de uma
base teórica. Na análise, o autor volta-se para os indícios da constituição cultural do
homem, pois, para ele, não há como afirmar precisamente quando começa o
desenvolvimento cultural da criança. Nesse tipo de reflexão, não se trata meramente
de observar o fato, mas seguir os acontecimentos.
(a) A pesquisa tem como sujeito-alvo uma única criança, do nascimento até um
ano de idade, antes da emergência da fala. O autor justifica a utilização de
apenas uma criança, pois vários casos seriam inúteis para o que queria
observar: os indícios do processo de constituição social.
(b) Para análise dos dados, o autor utilizou o que denomina “indicadores de
desenvolvimento”, os quais são apresentados por ordem de aparição: o
choro, o movimento (de mãos, de pés, de rosto ou ‘caretas’, de braços, de
tronco, de pernas), o olhar e o sorriso. Por meio desses indicadores, Pino
procurou analisar como o organismo integra o que capta do meio externo e
cultural.
(c) Depois de delinear esses indicadores do desenvolvimento, o autor descreve
alguns episódios observados na criança, do nascimento até completar um
ano de idade. Divide essa fase em três níveis de desenvolvimento e analisa
os indícios encontrados, retomando a pergunta inicial: Será possível
encontrar nos primeiros meses de vida indícios que possam confirmar a
conversão das funções biológicas em funções culturais?
(d) De acordo com os níveis, Pino detém-se, inicialmente, no nível 0, encontrado
na análise dos episódios, que consiste nas primeiras 72 horas de vida de
Lucas, o bebê selecionado para o estudo. Nesse período, “[...] não é possível
detectar indícios da ação da cultura sobre o desenvolvimento biológico em
nenhum dos ‘indicadores’ escolhidos”. (PINO, 2005, p.250). Segundo o autor,
a vida acontece na criança mais do que ela acontece na vida. O choro é o
único indicador presente nesse momento, refletindo situações de mal-estar ou
a entrada de novas sensações. Na análise dos níveis seguintes, o autor
discorre sobre o desenvolvimento das funções auditiva e visual, da
motricidade, sobre os primeiros indícios de relações humanas e de interesse
da criança pelos objetos.
(e) Nos níveis 5 e 6, o autor destaca um acontecimento fundamental no
desenvolvimento cultural de Lucas que é, primeiramente, o ato de engatinhar
e, logo depois, o ato de andar. Esta atividade traz a autonomia de
deslocamento no espaço, o que vai mudar sua percepção de espaço e de
mundo.
(f) Ao finalizar o trabalho, o autor retoma as perguntas iniciais e as discute,
reafirmando as contribuições da cultura no tornar-se humano, mesmo tendo
analisado uma criança em tão tenra idade. Afirma Pino (2005, p.268):
(g) Como indícios não são nem verdades nem erros, nem causa, nem efeitos, mas pontos de amarração de uma rede lógica ou que pretende ser tal, tenho a convicção, sem poder dizer que é certeza, de que a ação do meio cultural começa a operar imediatamente após o nascimento da criança, de forma lenta, é verdade, mas constante, conferindo aos gradientes de evolução biológica as “marcas do humano.
(h) Com o trabalho de Pino (2005) percebemos que nos constituímos em contato
com o mundo. Mesmo sendo tão pequenas e frágeis, as crianças menores
mergulham no mundo da cultura desenvolvendo-se tanto biologicamente
como culturalmente.
(i) Vasconcellos (2002), em sua tese de livre docência intitulada “Construção da
subjetividade: processo de inserção de crianças pequenas e suas famílias à
creche”, discute também a constituição do eu em crianças pequenas (1 ano e
9 meses a 1 ano e 11 meses), tentando entender a gênese dos processos de
mudança no desenvolvimento de crianças no momento em que elas são
convidadas a participar de um novo ambiente – a creche. A autora realiza
uma pesquisa empírica em uma creche universitária, durante dois meses,
com um grupo de oito crianças e seus pais ou responsáveis.
(j) Vasconcellos faz uma análise crítica da literatura clássica da Psicologia. Cita
a “Teoria do apego” de Bolwby e a noção de egocentrismo de Piaget, que,
segundo a autora, inibiu por muito tempo a pesquisa com bebês. Ressaltando
a importância das teorias de Vigotski e Wallon, enfatiza a interação social na
construção do conhecimento e nas práticas das crianças.
(k) Da teoria desses autores que embasam o seu trabalho ela destaca o
significado da interação social e do contexto sócio-histórico no processo de
construção das primeiras competências das crianças. Ela também enfatiza a
criança como um ser concreto, que se constrói como pessoa através do
convívio com os outros, tendo a influência histórica e cultural do seu tempo.
(l) Por meio dessa teoria, a autora buscou discutir o processo de significação de
estar no mundo dessas crianças e a maneira como se dá o seu
desenvolvimento, procurando não separar o pensamento e o afeto, mas
analisando a influência das ações no desenvolvimento psíquico dessas
crianças.
(m) O que também apareceu de essencial na pesquisa de Vasconcellos foi o
estabelecimento não apenas de relações harmoniosas, mas também as
relações de conflito que incitavam as crianças a escolhas.
(n) Dessa forma, com a contribuição desses autores, em sua análise
Vasconcellos privilegiou a interação e a emergência da imitação que surgia
desses contatos. A autora observou as crianças juntamente com seus
familiares que, nesse período de inserção, permaneciam na creche por um
tempo determinado até a adaptação dessas crianças ao novo espaço.
(o) Utilizando-se de Vigotski, a autora ressalta a importância do adulto e das
crianças como mediadores no processo de inserção quando diz “[...] o
desenvolvimento de qualquer pessoa passa necessariamente pelo outro, o
interlocutor em situações dialógicas” (VASCONCELLOS, p. 101, 2002).
(p) O modo de ver o mundo depende dos valores, dos princípios e dos diferentes
comportamentos sociais produzidos na interação social com os pais, com os
irmãos, com os amiguinhos e com as educadoras da creche. Cabe à criança
“[...] surpreender seus interlocutores, subverter a ordem e intervir no percurso
pensando sua própria história, garantindo o entrelaçamento de sua história
singular à do coletivo-social” (VASCONCELLOS, 2002, p. 185).
(q) A autora acredita que o trabalho pode contribuir para a construção de uma
psicologia comprometida em buscar e ilustrar espaços interessantes para que
as crianças pequenas possam constituir-se. Auxilia também no planejamento
diário das professoras de Educação Infantil, proporcionando às crianças um
lugar lúdico e alegre e ampliando os espaços de interação, pois estes
favorecem o desenvolvimento, quando visam à produção de amizades, e o
conhecimento não só cognitivo, como também o afetivo e social.
(r) Analisando crianças um pouco maiores e tendo como foco as emoções e os
conflitos nas interações, Galvão (1998) contribui para a ampliação das
reflexões sobre o desenvolvimento infantil. A autora enfoca as interações e
analisa situações de conflito e a emergência da emoção. Seu estudo, que tem
como referência Wenri Wallon, traz importantes contribuições para nossas
reflexões sobre a constituição da pessoa.
Muito presente no cotidiano da Educação Infantil, o conflito nas relações
interpessoais é objeto de análise da autora para discutir a constituição da criança
como pessoa. Utilizando a perspectiva waloniana do desenvolvimento, Galvão
destaca que o processo de formação é marcado por conflitos. Apoiando-se em
Wallon, a autora aponta que por volta dos três anos de idade há uma deflagração de
uma crise do personalismo, e é nessa fase que começa a haver uma diferenciação
efetiva entre o eu e o outro.
Diante disso, a pesquisa foi realizada com uma turma de crianças de três anos e
cinco meses e de quatro anos e oito meses de uma creche pública. Foram utilizados
gravações do cotidiano, entrevistas e caderno de campo. A autora descreve
detalhadamente a instituição escolhida, o projeto político pedagógico da escola, a
rotina da instituição. Aborda também o impacto da sua presença em uma sala de
Educação Infantil, na sua inserção na creche.
Algumas cenas foram destacadas pela pesquisadora como indícios expressivos das
emoções, nos quais os conflitos estavam presentes. Sua análise foi dividida em
categorias. Os conflitos originados pela posse do objeto, pela delimitação do espaço
e pelos incômodos referentes ao contato físico são os que aparecem mais nos
episódios analisados. Os conflitos em torno de nome, idéia, competição,
postura/movimento, tempo, barulho, preferência pelo outro e imagem de si
acontecem com menos freqüência. Tentando analisar as categorias levantadas, a
autora chega a quatro tópicos de análise: preservação do eu, afirmação do eu,
regras, exuberância expressiva e contágio emocional.
No tópico preservação do eu, destacam-se os conflitos em torno da posse dos
objetos. Baseando-se em Wallon, a autora analisa a disputa por objetos como parte
do processo de diferenciação do eu. Seu estudo aponta que a disputa pela posse
não se limita apenas aos objetos, também se estende ao espaço, ao nome e à idéia:
“É como se o objeto, o nome, o lugar ou a idéia fossem prolongamentos do eu que
precisassem ser, a todo custo, preservados; é como se o espaço afetivo em torno da
pessoa fosse um contorno que devesse ser igualmente protegido” (GALVÃO, 1999,
p. 168).
Os episódios de afirmação do eu chamaram a atenção da pesquisadora pela euforia
e entusiasmo das crianças em pronunciar o pronome “eu” em atividades em que a
professora lançava perguntas que solicitavam o posicionamento delas. A análise
aponta que a professora é o principal alvo das condutas de afirmação do eu.
(s) Galvão destaca que a falta de discussões sobre a constituição do sujeito nas
práticas pedagógicas da Educação Infantil ante as decorrentes manifestações
de diferenciação pessoal contribui para o delineamento de interações nem
sempre pacíficas e tranqüilas na sala de aula. Por isso, a autora, propõe
momentos de reflexão da prática do professor no turbilhão de emoções que
constituem o contexto da Educação Infantil.
(t) Preocupada em entender a constituição do sujeito, Pedrosa (1988) busca,
através das interações entre as crianças em situação de brincadeira, indícios
para essa constituição. Com o trabalho intitulado “Interação criança-criança:
um lugar de construção do sujeito”, tem por objetivo estudar a interação social
entre crianças de 1 a 3 anos de idade, concebendo-a como um espaço de
interregulações no qual se constituem processos psicológicos.
A autora baseia-se nas teorias de Vigotski, Wallon e Piaget. Entretanto é em Wallon
que ela se apóia mais. Essas teorias evidenciam uma tendência muito forte da
época em que foi defendida a tese, que é o sóciointeracionismo.
Assim como Wallon, a autora não desconsidera o papel do biológico no
desenvolvimento do ser humano, mas dá maior ênfase aos aspectos sociais nesse
percurso: “Os processos ditos psicológicos são possibilitados pelo cérebro
biologicamente constituído. Esses processos não estão pré-formados ao nascer;
resultam da interação da criança com o meio” (PEDROSA, 1988, p. 5).
Segundo Pedrosa (1998, p.7), muitos trabalhos apontam erroneamente que a
interação social é sinônimo de contato social ou de ação socialmente dirigida. Para a
autora, interação social “[...] pressupõe uma relação de regulação ou de influência
recíproca entre indivíduos - depende do comportamento dos integrantes”. Na
perspectiva sócio-histórica o outro é peça fundamental na constituição.
A autora analisa a imitação em situações de interação. Utiliza-se da teoria de
Wallon, que entende a imitação como “[...] um estado de fusão e diferenciação entre
o sujeito e o modelo. E este modelo é a princípio o outro” (PEDROSA, 1988, p. 24).
Assim, a imitação delineia-se a partir da fusão com o outro, de sua participação
efetiva. A interação social está presente no percurso da imitação, como parte
integrante, mesmo que o outro esteja ausente fisicamente, na hora do ato. Esclarece
que a interação criança-criança é focalizada em seu trabalho como processo e não
como contexto para o estudo de comportamentos individuais.
Para realizar esse estudo, Pedrosa faz uma pesquisa de campo em uma creche da
rede pública do município de São Paulo, enfocando as brincadeiras das crianças no
horário do recreio. Ao analisar os dados, elege as regulações que permearam as
interações e distingue quatro tipos de regulação: o “arranjo” da brincadeira, os
ajustamentos rítmicos e posturais, os códigos comunicativos e as regras.
Pedrosa analisou cuidadosamente as transformações ocorridas durante os
processos de interação e mostrou que estas são caminhos importantes para
entendermos questões ligadas ao processo de constituição do sujeito.
Outra pesquisa que tem como foco o desenvolvimento infantil no contexto das
interações é a tese de livre docência de Oliveira (1995), cujo titulo é “Reinações
infantis”. Preocupada com o crescimento do número de crianças atendidas em
instituições de Educação Infantil e com a qualidade pedagógica desse ensino, a
autora tem procurado discutir essas questões na área da Psicologia do
Desenvolvimento, considerando que o desenvolvimento da criança e sua construção
como sujeito ocorrem em um ambiente físico-social historicamente elaborado.
Oliveira traz como exemplo dois trabalhos sob sua orientação. Um deles fala sobre a
interação das crianças na hora do almoço e o outro discute as atividades
pedagógicas realizadas por uma educadora em uma creche pública.
Nos dois contextos, a autora faz uma análise das interações tecidas na creche e
mostra certa preocupação com a forma como essas interações têm sido mediadas
pelos educadores. Entretanto o que move esse trabalho é a intenção de
[...] contribuir para aperfeiçoar, junto com os educadores, o trabalho realizado em nossas creches e pré-escola, particularmente naquelas atendendo população de baixa renda e desafiadas a superar o histórico assistencialismo que as tem caracterizado. (OLIVEIRA, 1995, p.19)
Oliveira também ressalta que, para contribuirmos de fato, devemos levar em
consideração os múltiplos contextos em que as crianças se desenvolvem, nos quais
são constituídos recursos de desenvolvimento com parceiros de interação, uma vez
que é com eles que as crianças constroem significações.
Dessa forma, ela inicia uma análise mostrando como tem entendido o conceito de
interação humana e a noção de papel.
Para discutir as concepções acerca das origens do desenvolvimento humano,
considerando o sujeito e o meio social, a autora busca nas teorias
sociointeracionistas um caminho para essas discussões. Destacando algumas
similaridades entre os trabalhos de Vigotski e Wallon, ressalta os processos de
constituição do conhecimento e da subjetividade como sócio-históricos. Alerta que
os postulados sociointeracionistas têm sido utilizados sem a devida apropriação da
matriz dialética, o que dificulta a análise das interações.
Oliveira recupera o conceito de papel criado na tradição sociogenética, conceito que
também encontra nos trabalhos de Vigotski e Wallon, para mostrar “[...] como podem
iluminar a compreensão do desenvolvimento da criança” (OLIVEIRA, 1995, p.31).
Nas ciências humanas, o conceito de papel foi utilizado através de duas metáforas.
A primeira aponta as relações humanas, comparando-as com um sistema vivo no
qual o funcionamento dependeria dos diferentes órgãos, cada um dos quais tem a
sua função. E a segunda relaciona o comportamento humano ao drama social, em
que diferentes papéis formam um enredo.
A última metáfora de papel traz uma oportunidade criativa para a discussão da
continuidade ou descontinuidade da relação personagem social-indivíduo, a partir de
uma relação menos harmoniosa das relações humanas. Esse conceito veio a
integrar a psicologia sobre a formação da consciência e da subjetividade a partir da
relação eu-outro.
Oliveira aponta que, contrariamente a outros autores, Vigotski, Wallon e Bakhtin
levam em consideração as condições políticas, sociais e ideológicas nas relações de
papel.
Apesar das riquíssimas produções, o conceito de papel foi cristalizado, limitando-se
ao uso ingênuo, como arreio que a sociedade impõe ao indivíduo. Todavia, a autora
deixa claro o conceito de papel proposto em seu trabalho.
Retomando alguns pontos levantados pelos autores sociogenéticos, consideramos que a relação de recíproca constituição estabelecida desde o nascimento entre o indivíduo e o meio dá origem a situações sempre novas e singulares criadas pelas interações dos parceiros. Nestas, o significado de cada ato é dado no conjunto da situação. Constituem assim os papéis entidades possibilitadas pelo mundo social, mas dinamicamente construídas no esforço de manter uma relação de integração indivíduo-mundo. (OLIVEIRA, 1995, p.38)
Com esse referencial, a autora discute as interações adulto-criança e criança-
cirança para compreender como estas estruturam suas “reinações infantis”, a partir
da idéia de coordenação de papéis, enfocando sessões de almoço com crianças de
1 e 2 anos crianças de 2 e 3 anos em situações de jogo livre e sessões de jogos
temáticos com crianças de 4 e 5 anos. Todos os episódios foram gravados em
vídeo, e foi feita uma transcrição microgenética de todas as sessões.
As análises apontam que as ações das crianças até dois anos parecem estar ligadas
à esfera afetiva, explorando principalmente canais emotivo-posturais.
Gradativamente, a criança passa a usar objetos simbólicos como substitutos para
outros objetos diferenciados de sua forma empírica. As novas experiências ajudam a
enriquecer o enredo das brincadeiras, tornando-o mais complexo.
A aquisição da linguagem pelas crianças ilumina o seu processo de internalização
das relações sociais, pois necessitam explicitar mais aquilo que supõem estar
regulando papéis.
A análise dos papéis assumidos pelas crianças de 4 a 6 anos também é feita através
da brincadeira de faz-de-conta que é mediada por novos fatores: o material
disponível e a organização espacial.
O processo dinâmico da coordenação de papéis entre parceiros cria um confronto
de necessidades, objetivos e sentidos que as crianças vão buscar na interação com
os outros, tomando diferentes pontos de vista para estruturar o agir.
Todos os episódios analisados apontaram que “[...] o desempenho de papéis pela
criança se faz graças a uma dinâmica segmentação e unificação de fragmentos de
experiências passadas em contextos de atividade sendo construídos no presente
pelas ações infantis” (OLIVEIRA, 1995, p.69).
Outro trabalho que não pode ser esquecido é o desenvolvido pelos pesquisadores
do (CINDEDI) /USP, que elaboram a perspectiva da Rede de Significações. Esse
grupo de pesquisadores tem focalizado em especial as interações que se dão dentro
da Educação Infantil, baseado em uma visão sócio-histórica, analisando a complexa
relação entre família, educadoras e creche ao compartilharem o cuidado/educação
da criança.
Desse trabalho resultou a publicação de um livro intitulado “Rede de Significações e
o estudo do desenvolvimento humano”. Durante anos, o grupo vem elaborando e
sistematizando novas maneiras de investigação sobre o desenvolvimento infantil.
Aqui destacamos dois trabalhos que estão no livro em forma de artigo, mas que
ajudam a enriquecer a discussão sobre a interação. O primeiro trabalho, intitulado
“Crianças pequenas brincando em creche: a possibilidade de múltiplos pontos de
vista”, de Vasconcelos e Rosseti-Ferreira (2004), é fruto de uma pesquisa que
enfocou a interação criança-criança nos primeiros dois anos de vida. Participaram
da pesquisa quinze crianças (dez a dezenove meses), além de outros sujeitos
presentes nas cenas avaliadas. Uma característica que chama atenção nessa
pesquisa é a perspectiva de análise sobre três pontos de vista: a do pesquisador,
dos educadores e das crianças.
De acordo com as análises, as interações criança-criança estão em processo de
construção, acontecendo muito no aqui agora, fragmentadas. Para os autores,
quando os adultos se propõem a interagir com as crianças bem pequenas, são
claramente promotores de desenvolvimento.
Em outro trabalho, de Almeida e Rubiano (2004), intitulado “Vínculo e
compartilhamento na brincadeira de crianças”, as autoras justificam a utilização do
modelo da rede de significações, pois este parte de uma concepção
sociointeracionista e sócio-histórica, pressupondo a indissociabilidade entre social e
individual, iluminando assim o papel do vínculo na dinâmica interacional.
O trabalho apresentado pelas autoras focalizou três questões: a existência de
vínculos entre pares no grupo de brinquedos, a natureza desses vínculos e suas
relações com a construção de significações compartilhadas na interação lúdica.
O artigo é uma síntese de diversos estudos de crianças coetâneas (2 - 6 anos) em
situações de atividades livres. O primeiro aspecto destacado nessas observações foi
a ocorrência de subagrupamentos, com algumas variáveis, como sexo e idade. Em
relação à formação de grupos, a autora destaca que a definição de pertencer a um
grupo socialmente permeia idade bastante precoce.
Foi identificada a existência de vínculos na formação desses grupos. As autoras
buscaram investigar a natureza e os significados desse fenômeno perguntando às
crianças (6, 8 e 10 anos), por meio de entrevistas, o que é um amigo, como se
fazem amizades, o que gostam ou não gostam no amigo. Essa é uma prática pouco
usual, principalmente em pesquisa com crianças.
Pelas entrevistas, elas identificaram três características da amizade. A primeira foi a
convivência. Esse componente apareceu em todas as faixas etárias, pois
consideram queamigo é aquele que tem uma regularidade na convivência, amigo é
aquele que brinca, que liga, que está junto. A segunda característica foi a afinidade
de gostos e interesses. Isso muitas vezes se torna justificativa para que os meninos
e as meninas não brinquem juntos. A terceira característica foi a cumplicidade, que
aparece na fala das crianças maiores, pois, para as crianças da primeira infância, o
mais importante é a convivência. Dessa forma, aspectos como apoio, ajuda, consolo
e segurança vão caracterizar esse tipo de vínculo.
A partir da análise das três dimensões, pode-se formular um conceito comum:
compartilhamento “[...] no sentido de ter algo junto com outrem – um momento de
proximidade, o interesse ou a competência numa atividade, um conhecimento,
valores e atitudes, um segredo, códigos de comunicação” (ALMEIDA E RUBIANO,
2004, p.181) Outro tópico analisado é o compartilhamento e a cultura, pois, nesse
aspecto, rotinas compartilhadas criadas e transformadas no campo interacional
constituem a cultura do grupo.
As autoras ressaltam a importância da construção de vínculos para as crianças,
pois, “[...] para a criança, talvez ainda mais do que para o adulto, o vínculo otimiza a
possibilidade de assimilação e de participação na criação do mundo social no qual a
ontogênese humana necessariamente se processa” (ALMEIDA E RUBIANO, 2004,
p.187).
Alguns pontos importantes marcam as pesquisas com crianças analisadas. Apesar
da diferença de idade, algumas destacam que nem sempre a interação é
harmoniosa. No entanto por meio dela são formados grupos entre as crianças, os
quais têm fundamental importância para o desenvolvimento infantil.
Os estudos analisados mostram a relevância de se pesquisar o desenvolvimento
infantil e o seu retorno para a escola, pois o professor pode ser um facilitador nas
interações tecidas nas instituições de Educação Infantil, seja pelo fato de as crianças
estarem pela primeira vez nesse contexto seja por estarem vivendo sensações e
momentos ainda não vivenciados por elas nos quais um adulto experiente pode
auxiliar.
Em todos os trabalhos analisados fica clara a importância das interações na
constituição do sujeito e todos dão pistas para os caminhos a serem seguidos na
construção de uma base teórica sólida.
1.2 SUBJETIVIDADE E CONSTITUIÇÃO DO EU: AS CONTRIBUIÇÕES DE
VIGOTSKI E WALLON
Tendo em vista nosso interesse em investigar a constituição do eu em crianças na
Educação Infantil, neste momento aprofundaremos a discussão sobre a perspectiva
que adotamos para analisar o desenvolvimento infantil. Para isso, iniciamos com
Delari (2000), que faz uma análise teórica sobre a subjetividade, tendo como base a
abordagem histórico-cultural.
O autor justifica que essa teoria auxilia no debate sobre o papel de cada ser humano
na construção coletiva de sua própria história e de sua própria condição. Delari
(2000) acredita que, para discutir a subjetividade, devemos relacioná-la com a
discussão sobre a própria condição humana – condição necessária para que
aconteça o devir humano. Para melhor analisar o tema, o autor divide o aporte
teórico em dois movimentos distintos e relacionados: (1) dialogar com a concepção
de Vigotski sobre o movimento pelo qual a linguagem e a consciência se
interconstituem, na trama das relações sociais, e (2) destacar algumas das possíveis
conseqüências dessa concepção para o debate contemporâneo sobre o tema da
subjetividade.
Para discutir o tema da subjetividade na abordagem histórico-cultural, o autor traz a
discussão sobre consciência, pois, conforme destaca, Vigotski nunca tratou desse
tema. Entretanto, deixa claro que não quer comparar os conceitos, pelo contrário,
mostra dois motivos para não compará-los. O primeiro é o de que nem tudo que
compõe nossa subjetividade, como modo propriamente humano de nos
relacionarmos com o mundo e com nossa própria existência, pode dar-se como
movimento consciente. O segundo é o de que o conceito subjetividade pode ser
tratado com relação ao homem “moderno”.
Além de discutir o conceito de consciência na obra de Vigotski, para auxiliar no
debate sobre a subjetividade o trabalho se propõe tratar do lugar da linguagem na
constituição humana, por considerar que a subjetividade é um fenômeno
propriamente humano e que a linguagem é algo que define o humano.
Delari faz uma análise histórica sobre o conceito moderno de sujeito e subjetividade.
Vários acontecimentos históricos teriam ajudado na constituição desses conceitos,
como a Renascença, a descoberta do Novo Mundo e a Reforma Protestante, que
produziu um processo de racionalização que se contrapunha ao caráter
essencialmente místico das concepções de mundo e de homem hegemônico na
Europa Medieval. Com a modernidade, foram construídas concepções como a de
que cada ser humano pode compreender-se como um ser singular e com o direito
do exercício público da razão. Entretanto, algumas dessas concepções foram
questionadas, principalmente a partir do final do século XIX, com idéias de Marx,
Nietzsche e Freud.
Delari aponta a origem do conceito de subjetividade, quando Charles de Villers, em
sua obra Filosofia de Kant, publicada em 1801, distingue subjetividade e
objetividade. Essa obra aborda a subjetividade como algo muito próprio de cada
indivíduo e inatingível ao outro. Também a vê como um movimento reflexivo no qual
o individuo atinge o universal através de sua própria experiência.
Ao discutir essa temática em uma perspectiva histórico-cultural, Delari acredita que
a subjetividade deve ser compreendida em sua relação com o contexto social e
histórico em que o sujeito está inserido. O autor aborda a subjetividade
[...] não como um lugar interno, íntimo e inatingível, um “palco” interior no qual se encenam “representações” do mundo exterior e/ou no qual estas representações são confrontadas e depuradas pelos procedimentos de uma razão pautada em leis universais. Pelo contrário poderia passar a ser vista antes como uma “usina” de interpretações e, portanto, de produção de sentidos. A subjetividade poderia ser tomada como espaço e/ou movimento de produção e de reprodução, de formação e de transformação, como lugar/movimento de atividade, ou de ‘trabalho” no sentido mais genérico e antropológico da palavra (DELARI, 2000, p. 46).
Buscando uma singularidade para A existência de cada ser humano e para interferir,
de algum modo, Na condição de sua própria existência, estudos têm buscado
palavras ou significados, como subjetividade e sujeito, que, apesar de serem
modernos, no trabalho de Delari são pautados em critérios materiais, históricos e
sociais, e não por princípios de uma liberdade estritamente individual, nem de uma
reflexão abstrata e transcendental.
Dessa forma, segundo o autor, as contribuições de Vigotski no debate sobre a
consciência orientam-se para a construção de uma Psicologia cujo principal
interesse é conhecer o que há de mais elevado na produção humana, como as
artes, a literatura e a compreensão do lugar do humano com relação à construção
coletiva de sua própria história e de sua própria condição. Assim, estar vivo é
condição para consciência, e, ao nos tornamos “conscientes”, tornamos-nos também
humanos.
Assim como no trabalho de Delari, não buscamos pensar uma subjetividade
construída no individualismo, e sim na coletividade, na história e na cultura. Vários
são os conceitos utilizados para definir o que é próprio do ser humano:
subjetividade, consciência e personalidade. Este trabalho se propõe analisar o
desenvolvimento das crianças e enfoca, para isso, a constituição do eu; abordando
uma noção de “eu” construída nas relações estabelecidas entre as crianças e nas
relações entre os adultos e as crianças.
Há várias vertentes que tentam explicar a constituição do subjetivo. Entretanto, a
vertente escolhida para este trabalho busca no social e na história a explicação para
a forma como pensamos, agimos e sentimos. Pode parecer estranho dizer que
aquilo que é “tão Íntimo” de um indivíduo foi construído no social, mas é no social
de nossas vidas particulares que nos tornamos pessoas. É na história de nossas
vidas que nos tornamos únicos e diferentes e é com o outro que passamos a
conhecer e A reconhecer o lugar que ocupamos na sociedade.
Esse encontro com o outro se dá nas relações tecidas desde o nascimento. Mas o
que seria o social? O que seriam as relações sociais? Vigotski aponta caminhos
para a busca de respostas para essas questões, pois toda a sua teoria é marcada
pela pretensão de ser uma teoria psicológica marxista.
Vigotski busca elementos para desenvolver sua teoria sobre a constituição social e
histórica do homem nas idéias de Marx e Engels.
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material (MARX; ENGELS, 1984, p.15).
Dessa forma, para esses autores a produção de idéias está diretamente entrelaçada
com a atividade material e com o intercâmbio entre os homens através da
linguagem. Ao produzirem uma atividade material, os homens também transformam
sua realidade e os modos de pensar, ou seja, “[...] não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 1984,
p.15)
Assim sendo, percebemos fortes influências dos estudos marxistas na obra de
Vigotski, principalmente pela importância do social na constituição do eu, pois nos
transformamos, à medida que transformamos o meio à nossa volta.
Para Vigotski, o que nos distingue dos animais são as funções psicológicas
especificamente humanas, como a memória, a atenção voluntária, a percepção
mediada, que se desenvolvem a partir das relações que as crianças estabelecem
com os outros. “Através dos outros constituímo-nos”, afirma Vigotski (2000, p. 25).
Antes que as funções psicológicas se fizessem presentes no plano intrapsíquico,
elas foram relações entre pessoas.
Por outro lado, Pino (2000) esclarece que as funções mentais estão em permanente
construção, ou seja, os atos, como pensar, falar ou rememorar, são produzidos
constantemente. Dessa forma, não é uma única situação ou momento de nossas
vidas que vai determinar a forma como pensamos e agimos; são as várias vivências
que vão nortear as nossas vidas.
O desenvolvimento das funções mentais superiores é explicitado a partir do conceito
de internalização: “[...] qualquer função no desenvolvimento cultural da criança
aparece em cena duas vezes, em dois planos – primeiro no social, depois no
psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois
dentro da criança” (VIGOTSKI, 2000, p. 26).
Para exemplificar o processo de internalização das funções psicológicas superiores,
Vigotski (1998) remete ao gesto de apontar. Ressalta que muitas vezes o ato mal
sucedido de uma criança ao agarrar um objeto pode ser entendido por sua mãe
como um apontar para o objeto desejado. A mãe relaciona-se com a criança como
se ela tivesse apontando o objeto, e, diante de repetidas situações, o ato mal
sucedido de agarrar pode transformar-se no gesto de apontar: uma indicação do que
a criança deseja. Nesse momento, é o outro que dá sentido à ação da criança,
interferindo, assim, no modo como ela própria percebe a sua ação Uma função “[...]
primeiro constrói-se no coletivo em forma de relação entre as crianças – depois se
constitui como função psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p.29).
Para Vigotski (2000), a personalidade, é um conjunto de relações sociais2, nas
quais, desde o nascimento, a criança está envolvida. E é sendo parte integrante
dessas relações sociais que a criança incorpora significações culturais que a tornam
ser humano, mas não como uma mera reprodução, e sim como uma (re)constituição
no plano intrapsíquico.
A consciência de qualquer função mental só pode surgir num estágio tardio do
desenvolvimento, depois de ter sido exercida de forma consciente e
espontaneamente. Assim é com as crianças que, em seus jogos de representações
de papéis, se tornam conscientes de determinados papéis sociais. E é imersa na
cultura que se vai formando a consciência de si e dos outros. Afirma Vigotski:
Na perspectiva ontogenética, o humano de início, e antes de mais nada, vive, experimenta, emociona-se, age e assim vincula-se intimamente ao mundo social do qual depende, necessariamente, a sua própria sobrevivência – mas tudo vai se dando antes mesmo dele saber que realiza todas essas coisas, ou de poder ter qualquer domínio sobre elas.(VIGOTSKI, 2000, p. 87)
A linguagem também toma um papel central nessa discussão, pois não é possível
“torna-se humano” senão através da linguagem. Ela não é uma mera condição
biológica, mas se atualiza mediante uma relação social. A linguagem encontra-se na
gênese da consciência. Vigotski dá uma grande importância aos sistemas de signos
(fala, escrita...) como mediadores nas interações sociais. Entretanto é a fala que se
constitui como mais importante para a construção da consciência, pois é na fala, no 2 Essa afirmação se torna importante, pois ao refletirmos sobre determinadas práticas tanto de professores, pais e crianças percebemos a grande importância das relações que são tecidas no ambiente escolar.
significado social que tem a palavra que a criança vai perceber que lugar ocupa na
trama social. A linguagem vai mediar a sua relação com o mundo e com o outro.
Baseando-se em Vigotski, Delari esclarece a importância da linguagem na
constituição do eu. Afirma que a linguagem não é apenas uma maneira de o ser
humano se comunicar, mas também a “[...] própria ação social significativa pela qual
vai se tornando possível a existência de um “eu” e de um “outro”, uma relação
histórica e culturalmente situada que implica o desempenho, a alternância e o
choque entre papéis (DELARI, 2000, p.136)
Dessa forma, a linguagem assume um papel fundamental, pois é ela que vai tornar
possível conhecer quem é “outro” e o “eu”, através do significado das palavras.
Assim a linguagem é de fundamental importância para a internalização das funções
superiores, pois ela vai mediar aquilo que primeiro foi social para depois se tornar
intrapsíquico.
Os pontos analisados até aqui mostram a tentativa do autor em romper com uma
Psicologia que ignora o social e para isso analisa a influência do outro e das
interações na constituição do indivíduo,interações que vão, no decorrer da história
pessoal, constituindo esse indivíduo e se tornando também a história da sociedade.
Discorrendo sobre os estudos de Vigotski, Pino destaca:
As funções mentais constituíram a projeção no plano pessoal (da subjetividade? da consciência?) da trama da complexa rede de relações sociais em que cada ser humano está inserido no interior de uma determinada sociedade com um determinado modo de produção e de acesso as seus produtos materiais e imateriais (PINO, 2005, p.110).
Entretanto Pino (2000), baseando-se em Vigotski, alerta que não são os sonhos, as
lembranças que o outro tem que são internalizados, mas, a significação dada pelo
eu a esses sonhos e lembranças. Da mesma forma, as funções sociais exercidas
pelo sujeito não são simplesmente internalizadas em sua íntegra, mas, sim, de
acordo com o lugar que o sujeito ocupa nas relações sociais vivenciadas, pois cada
um carrega em si a marca da sua própria história. “Função primeiro constrói-se no
coletivo em forma de relação entre as crianças – depois se constitui como função
psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). Para Vigotski, a
personalidade é um conjunto de relações sociais.
Esse outro tão essencial para o nosso desenvolvimento, presente nas idéias de
Vigotski, também pode ser encontrado nos estudos de Wallon, quando remete ao
“fantasma do outro” que nos constitui e vem marcar a nossa história. Para ele, o “[...]
socius ou o outro é um parceiro perpétuo do eu na vida psíquica” (WALLON, 1980,
p. 159).
Wallon (1995) rejeita a idéia de um sujeito meramente biológico e acredita que o
desenvolvimento biológico seja acompanhado do social. O autor critica a tendência
que explica a origem da consciência no âmbito individual e afirma que seu percurso
de desenvolvimento é marcado por uma progressiva “socialização” dessa entidade
primária. Não se trata de um “eu” que se abre ao mundo social, mas, sim, de um ser
que aos poucos se individualiza. Para Wallon (1980, p.152),
[...] a consciência não é uma célula individual que deve um dia abrir-se sobre o corpo social, é o resultado da pressão exercida pelas exigências da vida em sociedade sobre as pulsões dum instinto ilimitado [...]. Este “eu” não é então uma entidade primária, é a individualização progressiva duma libido primeiramente anônima à qual as circunstâncias e o desenrolar da vida impõem que se especifique e que entre nos quadros duma existência e duma consciência pessoais.
Assim como Vigotski, Wallon também busca uma nova Psicologia que considere o
social no desenvolvimento humano. Buscando fontes marxistas, baseia-se no
materialismo dialético para construir a base de suas análises e de sua teoria
psicológica, ou seja, “uma psicologia dialética” (GALVÃO, 2001, p. 11).
Buscando compreender o desenvolvimento do psiquismo humano, Wallon volta a
atenção para a criança, pois acredita que através dela, é possível compreender o
psiquismo humano. Faz uma análise de cada momento da infância, evidenciando a
importância do outro em todas as fases de desenvolvimento e a importância dos
aspectos afetivo, cognitivo e motor na constituição da personalidade do sujeito.
Wallon entende que, ao nascer, os primeiros contatos da criança com o mundo são
de ordem afetiva: as emoções. O choro, a cólera, entre outras, são formas de
expressão da criança diante do mundo que ela começa a conhecer. A criança muito
pequena não consegue diferenciar-se do outro e dos objetos que a cercam, mas aos
poucos vai eliminando aquilo que não é dela e apreendendo aquilo que vem de fora.
Assim sendo, Wallon destaca que nessa etapa da vida o sujeito “[...] está todo
cometido na sua emoção; está unido confundido por ela com as situações que lhe
correspondem, quer dizer, com o ambiente humano de que provêm, na maior parte
das vezes, as situações emocionais” (WALLON, 1995, p. 201).
Por volta dos três anos de idade, a criança começa uma busca pela autonomia, o
que vai causar alguns conflitos entre ela e os que a cercam. “É para começar, uma
oposição muitas vezes totalmente negativa que a faz defrontar-se com outras
pessoas sem outro motivo que o de sentir a sua própria independência, a sua
própria existência” (WALLON, 1995, p. 203).
Nesta fase, a negação ao outro é constante, pois a criança precisa afirmar-se como
pessoa. O outro torna-se assim ponto de referência para as suas negações, e a
oposição é elemento chave para essa constituição.
O autor destaca que, por volta dos quatro anos a criança só pode agradar a si
mesma se agradar também ao outro. Não admira a si própria se não for admirada
pelo outro.
Este duelo entre a necessidade e a apreensão de se afirmar, de se mostrar, leva a um segundo tempo mais positivo que o primeiro, a um novo afrontamento entre o eu e o outrem, a uma nova forma de participação e oposição (WALLON, 1995, p. 206).
A afeição ao adulto também se torna presente nesse momento, em que o outro se
torna imprescindível para que ela se perceba, e é através dos olhos do outro que a
criança se vê.
Dos sete aos qutorze anos, a curiosidade da criança e, mais tarde, do adolescente
volta-se para o mundo exterior. Agora, mais segura e estável, ela busca conhecer-se
e diferenciar-se não só no outro, mas nas novidades que o mundo lhe proporciona.
Mas o início dos conflitos anuncia a chegada da puberdade. O autor afirma que,
nesse momento, um
[...] mesmo sentimento de desacordo e de inquietação desponta da acção, da pessoa, do conhecimento; em cada um existem mistérios a desvendar, e surge uma mesma necessidade de posse de certo modo essencial, pois a posse actual não basta para satisfazer e procura para si perspectivas indefinidas (WALLON, 1995, p. 215)
Assim como a criança na crise dos três anos de idade, o adolescente passa por
momentos de negação da idéia do outro, quer tornar-se também um ser autônomo,
livre das ordens ditadas pelos adultos.
Entretanto, no plano intrapsíquico, as contradições são permanentes entre “[...] as
emoções e os automatismos motores, entre os automatismos e a representação
simbólica, entre as emoções e a representação” (GALVÃO, 2004, p. 22). Dessa
forma, os conflitos, pontos chave na teoria de Wallon e para o constituição do eu,
vão permear toda a nossa vida
Em todas as etapas descritas acima, o outro é de fundamental importância para a
constituição da vida psíquica do sujeito, e, em certos momentos, o “eu” confunde-se
com o “outro”. “Entre o eu e o outro, a fronteira pode ter novamente tendência para
desaparecer em certos casos de choque ou de obnubilidade mental”. (WALLON,
1980, p. 157)
O “eu” surge a partir das – e nas – relações estabelecidas com o outro. Primeiro há
uma indiferenciação em relação ao outro e ao meio ambiente; os limites entre o eu e
o outro estão ainda por se estabelecer e o “eu” (con)funde-se com o outro.
O período inicial do psiquismo parece ter sido, contrariamente à concepção tradicional, um estado de indivisão entre o que releva da situação exterior ou do próprio sujeito. Tudo o que chega simultaneamente à sua consciência fica confundido nela ou pelo menos as delimitações que se podem fazer nela não são primeiro as do eu e dos outros, as do acto pessoal e do seu objecto exterior. A união da situação ou do ambiente e do sujeito começa por ser global e indiscernível (WALLON, 1975, p. 170).
Wallon (1980) ressalta a importância do social na vida da criança, afirmando que o
desenvolvimento biológico depende do desenvolvimento social e vice-versa, e traz
inúmeras contribuições para os questionamentos levantados na introdução deste
trabalho, em que são questionados o papel do outro e suas relações com a criança
no transcorrer do desenvolvimento. “Assim, pode estar ligada à evolução normal da
consciência pessoal na criança toda a diversidade das atitudes que fazem do ser
humano um ser íntimo e essencialmente social”. (WALLON, 1980, p. 162)
Considerando as idéias de Vigotski e de Wallon, nesta investigação escolhemos a
Unidade de Educação Infantil como espaço para analisar a constituição do eu na
diversidade de interações que vão permear a entrada da criança na escola.
2. METODOLOGIA Pensar o percurso metodológico de uma pesquisa não é nada fácil. É como preparar
uma viagem. Mas não vamos sozinhos, temos a companhia das crianças, o que
torna pensar o caminho um ato cuidadoso para não tirar delas o direito de
aproveitar.
Quem já viajou com crianças sabe que são múltiplas as possibilidades de interação,
principalmente quando o lugar é novo para o adulto e conhecido para as crianças.
Elas agem como guias sutis, mostrando, através das suas vivências, a forma como
negociam, compartilham e criam culturas. Foi isso o que fizemos nos três meses de
pesquisa de campo: viajamos com as crianças e elas foram mostrando inúmeras
possibilidades de conhecer o lugar e a elas próprias. Porém, não fomos como um
viajante errante e sem rumo. Às vezes nos sentimos perdidos, mas, como sempre,
as crianças mostraram-nos novos caminhos a seguir.
É um desafio pensar as questões teórico-metodológicas em pesquisas com
crianças. Recentemente, a Sociologia tem-se debruçado sobre o tema, a fim de
entender o universo infantil, e tem contribuído com riquíssimas discussões para
pensarmos de que crianças estamos falando e de que forma vem acontecendo a
sua socialização no mundo atual, um mundo onde cada vez mais cedo as crianças
começam a passar grande parte do seu tempo fora do contexto familiar e a interagir
com diferentes sujeitos. Assim sendo,
[...] a sociologia da infância estimula a compreensão das crianças como atores capazes de criar e modificar culturas, embora inseridas no mundo adulto. Se as crianças interagem no mundo adulto porque negociam, compartilham e criam culturas, necessitamos pensar em metodologias que realmente tenham em foco suas vozes, olhares, experiências e pontos de vista. (DELGADO, 2005, p.353)
Não é mais possível pensar a pesquisa sobre crianças. É preciso pensar a pesquisa
com as crianças. Para que possamos compreender melhor esse universo riquíssimo
devemos, segundo Kramer (2005, p.49), olhar, ouvir e escrever, sempre orientados
pela teoria, pois “[...] a teoria sensibiliza o olhar e o ouvir e orienta o escrever”.
Orientados por uma teoria que respeita as crianças, suas formas de agir, é que
vemos a possibilidade de construir pesquisas que tenham como foco as crianças.
Esse enfoque diverge de muitas outras pesquisas, como sugere Sarmento (1997,
p.24): “A focalização adoptada centrava-se menos nas crianças como objecto do
que nas crianças como pretexto, referente ou destinatário de processos, que, esses
sim, constituíam o verdadeiro objecto de estudo”.
Sarmento (1997) mostra-nos o rico caminho apresentado pelas crianças, quando o
foco são as suas interações e as suas formas de interpretação da realidade:
O estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis dos respectivos modos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente (SARMENTO, 1997, p.25).
Dessa forma, buscamos a escolha de uma metodologia que beneficiasse
observação desse contexto, levando em conta a multiplicidade de formas de
interação, a partir da qual o pesquisador tivesse a possibilidade de observar,
presenciar e vivenciar toda essa dinâmica.
Consideramos a pesquisa qualitativa a melhor alternativa para quem se propõe a
observar as interações no contexto escolar, pois esse tipo de pesquisa privilegia o
ambiente natural, e não o ambiente criado em laboratório, e tem como principal
instrumento o pesquisador, imerso nesse ambiente. O cuidado com os dados
coletados se dá na medida em que a grande maioria deles é de caráter descritivo,
permitindo assim uma aproximação maior do real, trazendo a preocupação com o
processo e não com fatos isolados, nos quais o sujeito geralmente se apresenta de
forma fragmentada. Outra característica da pesquisa qualitativa é a atenção dada
pelo pesquisador ao significado que as pessoas atribuem aos acontecimentos e ao
processo. Esse ponto é importante para o tipo de pesquisa proposto neste trabalho,
em que o significado atribuído pelas crianças e pelos adultos que convivem com elas
ao fenômeno analisado é de importância crucial.
A pesquisa qualitativa atende aos nossos propósitos de abordar a investigação
sobre crianças sob uma perspectiva diferenciada. A idéia é fazer com elas e não
falar sobre elas, respeitando suas diferenças, considerando o ambiente onde estão
situadas e tendo o cuidado de não criar estereótipos, e sim meios de compreender
as diferentes formas de interação no contexto da Educação Infantil.
Buscando a melhor forma de fazer uma pesquisa que respeite as crianças,
encontramos no estudo de caso a possibilidade de fazê-la a partir das crianças.
Segundo Sarmento (2003, p.137), este tipo de pesquisa
[...] apresenta a plasticidade suficiente para que sendo utilizado de forma tão diferenciada, possa permanecer como poderosamente presente na base de alguns dos mais importantes contributos para o estudo das escolas e demais organizações sociais.
Sarmento, em seu texto, mostra como o estudo de caso vem sendo utilizado por
diversos autores que pretendem investigar a escola e seus sujeitos. O estudo de
caso apresenta-se como a melhor escolha para o tipo de abordagem deste trabalho,
no qual o desenvolvimento das crianças é o foco. Para compreender melhor a
utilização do estudo de caso nesta pesquisa, destacamos algumas características
postas por Ludke e André (1986, p.18-19):
1. “Os estudos de caso visam à descoberta”. Apesar de já atuar na Educação
Infantil, fomos à busca do novo, pois o contexto, o grupo de crianças, é um
universo novo e cheio de riquíssimas descobertas que, no decorrer do trabalho
vão se revelando.
2. “Os estudos de caso enfatizam a ‘interpretação em contexto’”. Esse é um dos
pontos de maior relevância da pesquisa, pois, para discutir a construção da
pessoa, devemos levar em conta o contexto no qual está inserida a pesquisa,
bem como a sua participação nessa constituição.
3. “Os estudos de caso buscam retratar a realidade de forma completa e
profunda”. Imersos na pesquisa, buscamos ao máximo relatar a realidade, em
suas várias facetas.
4. “Os estudos de caso usam uma variedade de fontes de informação”. Várias
foram as informações que o cotidiano da Educação Infantil nos apresentou e
variadas foram as formas de apresentação: desenhos, relatórios, escritas, falas
e olhares, todos observados e analisados com muita dedicação.
Assim foi definida a viagem pelo contexto da Educação Infantil, e em particular, da
escola e das crianças pesquisadas.
Nesta pesquisa, os procedimentos de coleta de dados utilizados foram observações
diretas em sala de aula e em outros espaços da UMEI, como parquinho e refeitório;
entrevistas semi-estruturadas com professoras, pedagoga, diretora e pais, e análise
de documentos, relatórios, desenhos e registro das crianças.
O registro dos dados foi feito no diário de campo e através da máquina fotográfica.
Durante a pesquisa de campo, observamos especialmente aspectos referentes às
interações e seus indícios na construção “do eu”, e os conflitos imbricados nesse
processo na sala de aula; aos processos de diferenciação do eu e do outro; às
concepções dos profissionais da escola a respeito do desenvolvimento “do eu” das
crianças e dos impactos de suas atividades educativas sobre esse desenvolvimento.
Na análise do material empírico, procuramos basear-nos em apontamentos da
análise microgenética. Góes, em seu texto: “A abordagem microgenética na matriz
histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade”,
observa que esse tipo de análise pode ser um caminho promissor para quem
pretende fazer estudo de caso com essa abordagem. Para a autora, a análise
microgenética é
[...] uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos (GOÉS, 200, p.9).
A partir do momento em que as interações passam a ser tomadas como foco, a
pesquisa vai exigir do pesquisador um olhar apurado para os detalhes e para sua
análise posterior, que não se limitará à mera descrição dos fatos, mas se estenderá
a uma análise ampla, incluindo vários fatores que venham a interferir no
desenvolvimento infantil.
Vigotski e seus colaboradores inovaram ao propor uma análise de base
microgenética em meados do século XX, pois os procedimentos de pesquisa em
psicologia eram baseados na estrutura estímulo-resposta. Para propor um novo
método, Vigotski fez uma análise detalhada dos outros métodos adotados naquela
época, porque acreditava que o desenvolvimento psicológico do ser humano é parte
do desenvolvimento histórico geral da nossa espécie. Para isso Vigotski baseou-se
na abordagem materialista dialética.
Ao dizer que o desenvolvimento psicológico está ligado ao desenvolvimento histórico
geral da nossa espécie, amplia-se a noção de micro, pois ao falarmos de
microgenética podemos reduzir o método meramente ao recorte dos episódios, por
isso, Góes ressalta a importância da abordagem microgenética e esclarece a sua
utilização dizendo:
Essa análise não é micro porque se refere à curta duração dos eventos, mas sim por ser orientada para minúcias iniciais daí resulta a necessidade de recortes num tempo que tende a ser restrito . É genética no sentido de ser histórica, por focalizar o movimento durante processos e se relacionar condições passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está impregnado de projeção futura. É genética, como sociogenética, por buscar relacionar os eventos singulares com outros planos da cultura, das práticas sociais, dos discursos circulantes, das esferas institucionais (GOÉS, 2000, p.15).
Apesar de lidarmos com dados referentes a um determinado grupo de crianças
situados em uma UMEI, é na história de cada um e na história da humanidade que
vamos buscar as raízes para o desenvolvimento infantil.
Vigotiski (2003, p.86) descreve alguns objetivos que considera essenciais para
análise dos processos psicológicos proposta por ele e seus colaboradores
[...] o objetivo e os fatores essenciais da análise psicológica são os seguintes: (1) uma análise do processo em oposição a uma análise do objeto; (2) uma análise que revela as relações dinâmicas ou causais, reais em oposição à enumeração das características externas de um processo, isto é, uma análise explicativa e não descritiva; e (3) uma análise do desenvolvimento que reconstrói todos os pontos e faz retornar à origem o desenvolvimento de uma determinada estrutura (p.86).
Os objetivos propostos pelo autor tornam-se fundamentais para o tipo de pesquisa
que faz, uma vez que a análise do processo é de vital importância para se entender
o desenvolvimento infantil. É impossível fazer análises pertinentes de aspectos
isolados de um processo. Todo processo é dinâmico e precisa de uma análise
explicativa e aprofundada. Ao analisar esse processo, devemos recorrer à sua
origem, que para nós é histórica e cultural.
Góes salienta o caráter promissor da articulação da análise microgenética com o
paradigma indiciário e entende essas junções como novas construções sobre os
modos de conhecer e investigar.
[...] julgo que há uma convergência quanto à composição de delineamentos com ênfase indiciária e dialógica, composição que é profícua como ponto de vista metodológico e, mais especificamente, como perspectiva de investigação da constituição de sujeitos concebida no âmbito dos processos intersubjetivos e das práticas sociais. (GOÉS,2000p.21)
Entendemos serem valorosas as contribuições dadas pelo paradigma indiciário a
análise dos processos do desenvolvimento, pois, assim como a abordagem
microgenética, esse paradigma preocupa-se com as minúcias, com as situações
singulares e a inter-relação dos indícios e com as condições macrossociais.
Ao falarmos de indícios baseamos-nos no “modelo indicial”, denominado assim por
alguns autores, como Carlos Ginsburg.
Em seu artigo denominado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, Ginsburg
(1989) situa a história desse paradigma entre 1874 e 1876 quando Morelli lançou
uma série de artigos analisando a autoria de pinturas a partir de ângulos que
ninguém se propunha analisar, por exemplo o formato da mão, as unhas, entre
outros detalhes da Monalisa, ao invés do seu sorriso.
Entretanto ele assevera que esse paradigma tem raízes milenares.
Por milênios o homem foi caçador. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas (GINSBURG, 1989, p. 179).
Dessa forma, procurar por pistas, indícios, faz parte da história da sobrevivência
humana, para descobrir e entender o que se está procurando. Como lembra
Ginsburg, a análise desses fatos reveste-se de características diferentes, mas uma
delas perpassa todas as análises, que é a de utilizar situações muitas vezes
consideradas sem importância, ou até triviais.
Procurando por indícios, estaríamos optando, segundo Pino (2005), por pistas, não
evidências, por sinais, não significações, por interferências, não causas desses
processos. O que se procura nesses processos são os indícios de natureza
semiótica, de um fenômeno semiótico.
O paradigma indiciário vem contribuir para a análise dos dados, pois evidencia
aquilo que é muitas vezes negligenciado em pesquisas com crianças, que é o seu
cotidiano, sua imaginação, fantasia e poder de criação, pois, por serem in-fans, ou
seja, aqueles que não possuem a fala, muitas vezes deixamos de perceber o mundo
a partir do ponto de vista da criança.
Para aprofundar a discussão do “eu” entre crianças na Educação Infantil, a pesquisa
de campo foi realizada em uma UMEI do município de Vila Velha, no período de
outubro de 2006 a dezembro do mesmo ano.
2.1 A UNIDADE DE EDUCAÇÃO INFANTIL
A UMEI foi inaugurada em novembro de 2003 e surgiu a partir de reuniões entre as
lideranças comunitárias e a Prefeitura de Vila Velha, pois é uma região de classe
média baixa, onde não havia outra Unidade de Educação Infantil.
Há uma demanda muito grande para a matrícula na UMEI. Na Rede Municipal de
Educação de Vila Velha, as matrículas passam por um sistema de cadastro que o
responsável da criança preenche. Nesse cadastro, o responsável tem que dizer qual
é a sua renda, se é morador do bairro, quantas pessoas moram na casa, se recebe
algum auxílio do Governo e se a criança tem alguma necessidade especial. Esse
cadastro é enviado para a Secretaria de Educação, que analisa e pontua cada item,
classificando a criança para a chamada de acordo com as vagas oferecidas pela
UMEI. No último semestre, a UMEI chegou a receber duzentos cadastros. A grande
maioria era para a modalidade creche.
Atualmente a UMEI atende 354 alunos em dois turnos. As crianças de berçário I e II
permanecem na escola nos dois turnos, em tempo integral. Em média, as turmas de
berçário têm vinte crianças para duas auxiliares; as do maternal e da pré-escola têm
uma média de 25 alunos.
O prédio da escola tem dois andares. No andar superior existem cinco salas de aula,
uma sala de vídeo, a sala da pedagoga e dois banheiros. No banheiro feminino, há
uma divisão com um vaso sanitário para adultos. No andar inferior encontram-se três
salas de aula, que são destinadas à modalidade creche. As salas de berçário têm
banheiro próprio e lactário. No primeiro andar também há um refeitório, uma
cozinha, a lavanderia, o parquinho de areia com brinquedos, a sala dos professores,
direção e secretaria, além de dois banheiros para as crianças e dois para os adultos.
Apesar de a escola ser grande, ela não atende toda a demanda do bairro e dos
bairros vizinhos, por isso sofre constantemente críticas da população pela demora
em se conseguir uma vaga na Unidade.
As fotos abaixo mostram os ambientes da UMEI onde aconteceu a pesquisa.
Figura 1 - Corredor com as salas de aula 1. Figura 2 - Corredor com as salas de aula.2.
Figura 3 - Sala de vídeo 1. Figura 4 Sala de vídeo 2. -
Figura 5 - Sala da pedagoga. Figura 6 - Banheiro feminino.
Figura 7 - Rampa Figura 8 - Sala do berçário I.
Figura 9 - Sala do berçário II. Figura 10 – Refeitório.
Figura 11 – Refeitório. Figura 12 – Parquinho de areia.
Figura 13 – Pátio. Figura 14 – Casinha.
Figura 15 - Sala de professores 1. Figura 16 - Sala de professores 2.
2.1.1 Funcionários da UMEI
A UMEI tem 37 funcionários que trabalham nos dois turnos. Para melhor
organização do trabalho esses turnos serão divididos em dois grupos: dos
funcionários de apoio e o dos professores. Chamaremos de funcionários de apoio as
auxiliares de serviços gerais (ASGs), cozinheiras e as auxiliares de UMEI. No grupo
dos professores também serão incluídas as pedagogas e a diretora.
a) Funcionários de apoio
A escola tem quatro cozinheiras e quatro ASGs. Treze auxiliares da Unidade atuam
na modalidade creche e uma. atua na secretaria da escola. No município de Vila
Velha os profissionais que trabalham nessa modalidade tem que ter como, requisito
mínimo, formação em nível de ensino médio completo. Apesar de a legislação do
Município estabelecer que as auxiliares de UMEI devem ajudar no trabalho do
professor, na creche isso não acontece, pois não há professores nessa modalidade.
As unidades do município de Vila Velha não têm secretária escolar, por isso
geralmente uma auxiliar de UMEI é deslocada para os serviços de secretaria. A
UMEI conta com um vigia, que é contratado por uma empresa de segurança e atua
na escola das 6h às 18h.
A grande maioria dos funcionários de apoio da UMEI possui o ensino médio
completo, como mostra a tabela 1.
TABELA 1 FORMAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DE APOIO.
Ensino Fundamental Ensino Médio Ensino Superior Funcionários de
apoio
Incompleto Completo Incompleto Completo Incompleto Completo
ASG 1 2 1 _ _ _
Cozinheiras _ _ 1 3 _ _
Auxiliares de UMEI _ _ _ 12 _ 1
Vigilante _ _ _ 1 _ _
Total 1 2 2 16 - 1
Fonte: Arquivos da UMEI
Entre as auxiliares de UMEI, seis cursaram o Magistério e uma terminou
recentemente o curso de Pedagogia a distância, oferecido pela UFES.
b) Professoras
Fazem parte do corpo docente da UMEI doze professoras, que atuam na
modalidade pré-escola (Jardim I a Pré-escola). Uma delas exerce atividades de
apoio. Essa categoria surgiu em 2006, na Prefeitura, com a função de auxiliar os
professores e auxiliares nas atividades diárias e de cobrir a falta de algum professor.
Apenas uma professora contratada atua na modalidade creche, com a turma do
maternal. Duas pedagogas trabalham na escola, em turnos diferentes, com todas as
turmas da creche e pré-escola. A diretora atua na escola oito horas diárias.
Apenas uma professora e a diretora estão fazendo o curso de Pedagogia, no
momento, como mostra a tabela 2:
TABELA 2 – Formação dos professores
Ensino Superior Pós-Graduação Lato
Sensu
Incompleto Completo Incompleto Completo
Professoras 1 4 2 5
Pedagogas _ 1 _ 1
Diretora 1 _ _ _
Total 2 5 2 6
Fonte: Arquivos da UMEI.
A maioria das professoras e as duas pedagogas são efetivas; existindo apenas uma
professora contratada. Todas as professoras e pedagogas efetivas participaram do
último concurso realizado em 2004, pois, anteriormente, o Sistema Municipal de
Educação de Vila Velha não tinha professores efetivos na Educação Infantil. Esse foi
o primeiro concurso para professores da Educação Infantil, mas não atendeu a todas
as modalidades, apenas à pré-escola. O ingresso de professores concursados e
qualificados para atender a pré-escola marcou um movimento nacional de
profissionalização dessa modalidade. A falta de profissionais qualificados tem como
conseqüência um baixo salário, pois, no Brasil, os menores salários são destinados
a esses profissionais, ao lado de um ensino de qualidade duvidosa, em que não há
preocupação com a formação e nem apoio financeiro.
Dessa forma a partir de 2004, Vila Velha passou a ter quase que cem por cento dos
professores de Educação Infantil efetivos, e deixou para trás um passado de cem
por cento de professores contratados, sendo escolhidos de acordo com a vontade
de alguns políticos.
O grande desafio agora é o concurso para a modalidade creche, luta que vai exigir
vontade política e engajamento dos professores, pois a não-qualificação e a situação
irregular desses profissionais, respigam nos baixos salários e na qualidade do
ensino para as crianças pequenas.
Apenas uma professora da UMEI atua num único turno. As outras professoras e
pedagogas também trabalham nos municípios vizinhos de Cariacica, Vitória, Serra e
Viana.
A pesquisa foi realizada em um contexto de mudanças na escola, pois, no ano em
que foi realizado o estudo, vários profissionais tinham saído da UMEI, que passou
assim por momentos de adaptação. Os profissionais também passavam por
momentos decisivos, pois estava para se definir a verba destinada à Educação
Infantil através do FUNDEB.
3.1.2 A entrada da pesquisadora na sala do Jardim I I
Posso entrar no seu reino, meu rei?
- Só se ocupar todas as pausas, reinando
sobre as palavras. - Posso entrar no seu
reino, meu rei? - Só se trouxer o livro de adivinhar canto de
passarinho. - Posso entrar no seu
reino, meu rei? - Só se vier pulando
amarelinha e inventando o caminho.
Pé aqui... Pé acolá...
Pode entrar! Eloí Elizabet Bocheco
Antes de entrar na UMEI, pedimos licença a todos os funcionários e principalmente
às crianças. Aos poucos fomos fazendo parte do universo tão particular daquelas
crianças e da UMEI, sempre com muito cuidado, perguntando se podia participar
com elas das brincadeiras, das atividades e das discussões, pois quem convive com
criança sabe que “bisbilhoteiro” não tem vez em suas vidas. Dessa forma, muitas
vezes fomos a aluna, a filhinha na brincadeira ou meramente ouvinte nos momentos
de discussão, só observando como resolviam seus problemas sem que um adulto
lhes dissesse o que era o correto.
Escolhemos essa UMEI pelos constantes elogios que ouvíamos a respeito de sua
boa organização. Ao chegar à escola e propor o trabalho para a pedagoga e a
diretora, tivemos uma boa aceitação por parte das duas. A pedagoga pediu que
ficássemos em uma sala que, de acordo com o trabalho, seria de melhor
aproveitamento. Dessa forma, foi marcado um encontro com uma das professoras
do Jardim II. Entretanto, ao sermos recebidos pela pedagoga, esta disse que não
tinha uma boa notícia: a professora que ela havia sugerido não quis participar da
pesquisa, alegando não estar se sentindo muito bem para receber alguém em sua
sala. Conversando com a pedagoga sobre outras possibilidades, ela colocou-me em
contato com a outra professora do Jardim II, que aceitou colaborar com na pesquisa.
Durante três meses acompanhamos as crianças do Jardim II todos os dias.
Estivemos presente na sala de aula, no parquinho, no refeitório e na sala de vídeo.
Na medida do possível, ajudávamos as crianças em suas atividades e na confecção
de alguns jogos com a professora. Participamos desses momentos por acreditar que
assim ficaria mais fácil nossa inserção na sala. Dessa forma poderiamos
acompanhar mais de perto os momentos de interação entre as crianças e entre a
professora e as crianças. Vale ressaltar o respeito dos profissionais da escola para
com o estudo, pois entendiam que observar as crianças era muito importante para o
desenvolvimento da pesquisa.
2.1.3 A sala do Jardim II
A sala do Jardim II D é bem ampla. Tem duas janelas que dão vista para a rua e
duas janelas, para o corredor. Tem um espelho grande e dois quadros, um de giz e
outro de pincel, este último utilizado pela professora para afixar as atividades das
crianças, quatro jogos de mesas e cadeiras, cada uma com seis mesas e cadeiras
formando um círculo. A sala tem um barril cheio de brinquedos, uma caixa com
peças de encaixar, jogos de alinhavo, letras, memória e quebra-cabeças. Tem ainda,
dois armários, um para cada professora, e tês prateleiras onde são guardados os
materiais de uso diário, como lápis de cor, borracha, canetinha, cola e tesoura.
Figura 17 – Mesas e cadeiras que Figura 18 – Quadro de giz. ficam próximas à porta.
Figura 19 – Mesas e cadeiras que Figura 20 – Espelho. ficam próximas à janela.
Figura 21 – Prateleiras. Figura 22 – Quadro de pincel.
3.1.4 A professora do Jardim II
Em 1993, a professora terminou o curso de Magistério, numa escola cenecista. No
mesmo ano, começou a trabalhar como professora de Educação Infantil. No ano de
1994, começou a fazer o pré-vestibular e, em 1995, ingressou no curso de
Pedagogia na UFES. Ela conta que sempre gostou muito de estudar e que escolheu
a profissão por considerá-la uma função nobre. Quando entrou na universidade,
ficou muito orgulhosa e feliz. Estudou bastante para passar, mas hoje se entristece
com os tantos cursos de Pedagogia de qualidade duvidosa existentes no mercado.
Em 1999, a professora terminou o curso de Pedagogia com habilitações em
Matérias Pedagógicas de 2.º Grau e Séries Iniciais3. No ano seguinte, começou a
trabalhar como contratada na Rede Municipal de Ensino de Vitória, onde foi
convidada para fazer uma extensão de carga horária.
No ano seguinte, ingressou em uma escola particular onde trabalhou na mesma até
o ano de 2004. Foi então aprovada no concurso da Rede Municipal de Vila Velha,
com uma ótima classificação, para o cargo de professora de Educação Infantil. Em
2006, foi chamada para assumir o cargo de coordenadora em um colégio de Vitória.
Em 2003 fez um curso de pós-graduação em Administração Escolar. Recentemente,
foi chamada para efetivar-se em Vitória como professora de Educação Infantil,
entretanto preferiu ficar em Vila Velha, apesar do baixo salário que recebe pelo
3 Ao ser indagada se tinha interesse em dar aulas para o Magistério, ela sorriu e disse que não; afirma que fez essa habilitação por ser a única opção compatível com o seu horário de trabalho.
Município. Disse que era porque mora próximo do local de trabalho e pode almoçar
em casa, além de gostar bastante da UMEI e da liberdade que tem para expor suas
opiniões.
Luiza tem 31 anos e é uma professora muito comprometida com a escola. No
período em que acompanhei a sua turma, percebi que ela se dedicava a todos os
alunos. No refeitório, sempre se preocupava em orientar as crianças para não
deixarem sujeira ou copos na mesa. Sempre conversávamos sobre a situação dos
profissionais da Educação Infantil no município de Vila Velha. A professora acredita
na importância da formação continuada dos professores e valorizava muito esses
momentos. Tinha uma relação muito tranqüila com seus alunos. Sempre estava
disposta a ouvi-los, inclusive aos alunos de outras salas, que, quando estavam em
perigo, a procuravam, buscando ajuda. Luiza leva muito a sério os horários e a
rotina da sala.
2.1.5 A rotina da sala
Uma das características que marcam o desenvolvimento das atividades do Jardim II
é a preocupação da professora com a rotina da sala. Em uma das situações em que
faltou e a substituta não seguiu a rotina deixada em seu planejamento, a professora
manifestou sua insatisfação com o ocorrido.
Barbosa (2000), em sua tese de doutoramento intitulada “Por amor e por força:
rotinas da Educação Infantil”, considera que a rotina se tornou uma categoria
pedagógica muito utilizada nas instituições de Educação Infantil para organizar o
trabalho.
Segundo a autora, utilizamos a rotina para organizar o nosso dia-a-dia. “As rotinas
podem ser vistas como produtos culturais criados, produzidos e reproduzidos no dia-
a-dia, tendo como objetivo a organização da cotidianidade” (BARBOSA, 2000,p.95).
Mas não deve impedir a imaginação. A complexidade deve ser a propulsora do
novo. A rotina não deve ser uma sucessão de atos sem sentido e pequenas ações
que levam as crianças a terem atos repetitivos, fazendo-os de uma forma mecânica.
O professor teve ter claro o porquê dessa organização, pois ela reflete suas
concepções e proposta.
Em uma entrevista com a professora do Jardim II, ela nos contou que assumiu a
turma no mês de maio e percebeu que não havia uma rotina a seguir. Achava que
as crianças ficavam perdidas: Começou por estabelecer essa rotina. Dessa forma, o
primeiro passo foi organizar o tempo, com músicas, momento de rodinha, fazer com
que a ouvissem e pudessem falar também.
Essa rotina proporcionava, segundo Luiza, uma organização melhor da sala, pois as
crianças sabiam quais eram os momentos das atividades dirigidas e os momentos
em que poderiam escolher a atividade que quisessem fazer .
Tem um momento em que a gente faz a atividade junto: é o bingo. Então “ta” todo
mundo junto, mas tem um momento onde ele vai escolher para onde ele vai, aí tem
o cantinho da cozinha.. Então, nessa hora, eles se misturam, eles inventam outra
brincadeira. Cada um vai lá e pega o que se identifica. Tem um grupo que gosta de
desenhar, vai lá e pega a folha, pega a canetinha, pega lápis e vai desenhar. O outro
grupo vai para a cozinha brincar, o outro grupo derrama os brinquedos, o outro
grupo pega os pinos, o outro grupo pega o jogo da memória.
(Entrevista realizada no dia 22/6/2007)
A rotina tem a função também de proporcionar a autonomia das crianças em relação
ao espaço escolar, pois elas têm a liberdade de escolher suas atividades, sabendo
que, no momento determinado, terão que guardar tudo no seu lugar, como nos
relatou a professora.
Eu prezo muito a organização. Então eles já sabem que vai ter um momento de tirar
tudo do lugar e vão ter o momento de botar tudo no lugar e que todo mundo vai
ajudar a guardar onde pegou e colocar tudo do jeitinho que eles encontraram.
(Entrevista realizada no dia 22/6/2007)
Durante o período da pesquisa, presenciei esses momentos em que as crianças
podiam escolher a brincadeira, mas, no momento determinado, guardavam os
brinquedos sem reclamar, pois sabiam que isso fazia parte da organização da sala.
A rotina torna-se importante, pois traz consigo a organização, que ajuda as crianças
a buscarem sua autonomia, auxilia o professor na realização de suas atividades.
Entretanto, não pode aprisionar o cotidiano, ela deve ser constantemente avaliada.
[...] a rotina oferece referência, segurança e organização sem se contrapor ao pulsar, ao movimento e ao prazer. Deve ser coerente com os princípios que fundamentam nossa proposta de trabalho, possibilitar e/ou facilitar a realização de nossos projetos, sendo questionada e avaliada constantemente, para assegurar sua problematização e reestruturação, se necessário. (SERRÃO, 2003, p.28)
Muitas vezes o termo rotina é considerado como sinônimo de chato e repetitivo.
Entretanto sua utilização nas escolas deve ser repensada. O que autores, como
Serrão (2003) e Barbosa (2000), dizem é que a rotina não deve travar o cotidiano na
sua multiplicidade de possibilidades, pelo contrário, deve refletir a novidade.
A rotina é muito comum na Educação Infantil, mas muitas vezes é algo imposto por
secretarias, direção, pedagogo e professores, sem nenhuma participação da criança
na sua organização e definição. A rotina nas escolas deve ser avaliada e
questionada, isso porque muitas vezes é realizada sem finalidades e sem um
objetivo, pois compreende atitudes tão cristalizadas que ninguém questiona.
Barbosa (2000) alerta para os poucos estudos sobre a rotina nas escolas, já que ela
é parte integrante das práticas educativas e didáticas na Educação Infantil.
Descreveremos agora a rotina da UMEI pesquisada, principalmente no que tange à
turma analisada.
Os portões da UMEI abriam às 12h50min, e as crianças sentavam em fila no
refeitório. Esse momento sempre era acompanhado por mais de um funcionário até
a chegada das professoras, que se posicionavam à frente da fila da sua turma. Às
13h uma das professoras ou a pedagoga cantava no microfone com as crianças.
Havia uma escala para isso e cada dia era uma professora diferente que cantava.
Depois era feita uma oração, conduzida cada dia por uma criança e, em seguida,
todos subiam paras suas salas. Esse procedimento durava cerca de 15 minutos. Ao
chegar à sala, as crianças guardavam suas mochilas e iam fazer a rodinha. A
professora sempre a organizava para que ficasse um menino sentado ao lado de
uma menina. Depois de sentados, a professora escolhia um CD de cantigas de roda,
que fazia parte de um livro, e colocava-o para tocar. As crianças sempre cantavam e
participavam ativamente, muitas vezes gostavam de acompanhar a música pelo livro
e se divertiam muito com isso. A professora olhava sua pauta, onde registrava o
nome dos ajudantes do dia. As crianças, com muita ansiedade, esperavam-na dizer
quem seria o ajudante, pois ele também seria o primeiro da fila para ir ao parquinho.
Luiza sempre escolhia um menino e uma menina. Após esse momento, a professora
solicitava que os ajudantes pegassem o cartaz do calendário e o pintassem. Depois
cada criança preenchia o seu próprio calendário. O momento de rodinha também era
um espaço em que a professora explicava qual seria a rotina do dia e em que os
conflitos e as dúvidas eram expostos. Era constante as crianças reclamarem da
atitude do colega na rodinha, esperando uma resposta da professora. Luiza sempre
ouvia e conversava com elas. Em alguns momentos essas conversas duravam mais
de meia hora.
Às 14h10min a professora organizava a fila e as crianças iam para o parquinho,
onde brincavam até as 14h40min. Dirigiam-se então ao refeitório, onde ficavam para
lanchar até as 15h. Depois, elas voltavam para a sala, escovavam os dentes e
desenvolviam alguma atividade no papel, ou alguma brincadeira dirigida. No período
em que estive na escola, a professora desenvolveu o projeto de jogos matemáticos.
Dessa forma, algumas vezes, após o lanche, as crianças brincavam e depois
registravam no papel, individualmente, suas impressões e/ou elaborações sobre a
atividade.
Durante as atividades dirigidas, a professora mandava-os sentar novamente em
rodinha, para que ela explicasse o jogo ou a atividade copiada. Nos jogos, Luiza
explicava uma vez e permitia que todas pelo menos uma vez, jogassem. Ela as
acompanhava enquanto jogavam e intervinha quando era necessário.
Após esse momento, as crianças registravam o jogo, por meio de desenhos ou de
alguma atividade matemática a ele relacionada, como somar os pinos que
derrubavam no boliche. A professora ficava andando pela sala, ajudando as que
precisavam de seu auxílio. As crianças transitavam tranqüilamente pelas mesas
para pegar algum material emprestado, ou para pedir ajuda ao colega. A professora
permitia esse livre trânsito pela sala e até mesmo incentivava aquelas que haviam
terminado a atividade a ajudar o colega.
Com o término das atividades, as crianças podiam brincar com os brinquedos da
sala até as 16h45min, quando desciam e se sentavam no refeitório para esperar a
chegada dos pais. Estes ficavam na porta do refeitório esperando que a pedagoga
anunciasse o nome da criança pelo microfone. Quando isso ocorria, ela dirigia-se
até a porta. Só era permitida a entrada dos pais das crianças do berçário e do
maternal.
Além da rotina das atividades, havia também o dia do vídeo, às quintas-feiras, de
quinze em quinze dias. Nesse dia, a professora de apoio ficava com as crianças
para as professoras planejarem as atividades com a pedagoga ou individualmente.
Entretanto, durante os três meses em que estivemos na escola, só presenciamos
duas reuniões com a pedagoga. O dia do brinquedo era a sexta-feira, para o qual
cada criança podia trazer um brinquedo de casa. Os materiais da sala eram
organizados de forma que as crianças fossem independentes para pegar os objetos
nas prateleiras. As crianças tinham liberdade para usar o material e os brinquedos
disponíveis na sala, entretanto o brinquedo só era permitido para aquela que tivesse
acabado a atividade proposta pela professora.
Quadro 1 – Rotina do dia
12h50min às 13h Entrada das crianças na UMEI
13h às 13h15min Momento para músicas e oração no refeitório
13h15min ás 14h10min Rodinha, cantigas e calendário
14h10min às 14h40min Brincadeira livre no parquinho
14h40min às 15h Lanche
15h às 15h20min Escovação
15h20min às 16h20min Atividade dirigida
16h20min às 16h45min Momento livre para brincarem com os brinquedos da sala de aula.
16h45min às 17h Momento da saída das crianças.
Fonte: Documentos da UMEI.
Quadro 2- Rotina da semana
Fonte: Documentos da UMEI.
Durante todo o período da pesquisa, observamos que poucas vezes Houve
mudanças na rotina, o que ocorria somente quando chovia, pois as crianças não
podiam ir ao parquinho, ou quando estava programada alguma comemoração na
escola. Contudo a riqueza de vivências pôde ser observada, pois a organização da
turma não impedia que elas brincassem, sentissem, entre outras coisas.
2.1.6 As crianças do jardim II
A sala tinha 22 crianças, onze meninos e onze meninas entre 6 anos e 4 meses e 5
anos e 7 meses. Essa idade foi conferida no final da pesquisa, em dezembro de
2006. Foi escolhida porque a linguagem, as brincadeiras e interações nessa faixa
etária estão mais elaboradas, o que nos permite ter um acesso maior às
elaborações das crianças sobre si mesmas e sobre os outros.
As crianças do Jardim II gostavam muito de cantar. A professora sempre lhes
ensinava canções novas. No início da aula, sempre em rodinhas, as crianças
cantavam músicas que algumas vezes eram acompanhadas de coreografia.
Segunda -feira Terça-feira Quarta -feira Quinta -feira Sexta-feira
Dia livre Dia livre Dia livre Dia do vídeo (15h20min às 16h20min)
Dia do brinquedo
Os alunos da turma pesquisada estavam juntos desde o ano anterior e algumas
crianças estudavam na UMEI desde o maternal. Durante as atividades dirigidas pela
professora, as crianças se mostravam solícitas a fazê-las. Às vezes, surgia o
comentário de que a atividade era chata, ou algumas crianças demoravam a fazê-
las, pois se distraíam com os brinquedos da sala ou com a conversa dos colegas.
Durante essas atividades, a turma dividia-se em grupos, usando o limite do jogo de
seis cadeiras e seis mesas para definir quem fazia ou não parte de cada grupo. Só
era permitido emprestar material a quem pertencesse ao grupo naquele dia. Em
alguns momentos, surgia a rivalidade sobre quem pintava mais bonito ou quem
terminava primeiro.
2.1.7 As crianças e suas famílias
Segundo Wallon, a família é o primeiro grupo ao qual a criança vai pertencer ao
nascer: “[...] a família é um grupo natural no sentido em que para a criança a razão
de ser ou não ser se encontra colocada pelo nascimento num grupo distinto que lhe
assegura a alimentação, a segurança necessária, a primeira educação” (Wallon,
1980,p.168)”.
Devido à sua dependência biológica, a criança necessita de um ambiente que lhe
assegure os meios necessários para o seu desenvolvimento biológico e social.
Dessa forma, ressaltamos a importância de considerar as famílias das crianças
pesquisadas, pois nos trazem indícios importantes para a constituição do eu.
As crianças moravam em bairros próximos à escola. Seis moravam no mesmo bairro
e o restante dividia-se entre outros sete bairros. A maioria delas (12) tinha irmãos. A
maioria dos pais havia completado o ensino médio e as mulheres tinham maior grau
de escolarização. Nenhum dos pais tinha formação superior e somente um era
analfabeto. Quatro famílias recebiam auxílio do Governo Federal, através do bolsa-
família.
0
2
4
6
8
10
12
Mãe Pai
Mãe Pai
Mãe Pai
Mãe Pai
Mãe Pai
Ens.Fund.Incompl
Ens.Fund.Compl
Ens. MédioIncompleto
Ens. MedioCompleto
Analfabeto
Ens. Fund.Incompl Mãe Ens. Fund.Incompl Pai Ens. Fund.Compl Mãe
Ens. Fund.Compl Pai Ens. Médio Incompleto Mãe Ens. Médio Incompleto Pai
Ens. Medio Completo Mãe Ens. Medio Completo Pai Analfabeto Mãe
Analfabeto Pai
Gráfico 1 – Formação escolar dos pais .
As crianças chegavam à escola acompanhadas por um familiar, pai, mãe, tios, avós
ou irmão mais velho com pouca diferença de idade e até mesmo por vizinhos.
Apenas duas crianças usavam transporte escolar.
Em uma reunião de pais, em que foram questionados sobre se trabalhavam,
observamos que a maioria das mães não trabalhava fora de casa. (12 das 22 mães).
Mães que trabalham
Mães que não trabalham
Gráfico 2 – Mães que trabalham ou não.
Das 22 crianças, apenas oito moravam com o pai e a mãe; o restante morava
apenas com a mãe, ou com a mãe e os avós. Uma delas morava apenas com os
avós. Um fato interessante é que nove crianças moravam com seus avós, o que
mostrava a mudança na dinâmica das estruturas familiares.
Pais Pais e avós Mãe e avós Avós
Gráfico 3 –Pessoas com quem moram as crianças. Ouvindo os pais ou conversando com eles, percebemos que muitos se sentiam
privilegiados em ter seu filho naquela UMEI. Devido à dificuldade em conseguir uma
vaga e ao fato de a UMEI ser nova e bonita, muitos pais resistiam em tirar seus
filhos para cursarem o ensino fundamental, pois a escola que ia receber as crianças
é antiga.
Há uma participação ativa da comunidade na escola. As reuniões ocorrem à noite e
é muito profícua a participação do movimento comunitário no Conselho de Escola. O
bairro onde está localizada é considerado de classe média baixa. A diretora da
escola expôs que a população sempre reivindica por melhorias na escola e está
sempre presente nas reuniões com a Secretaria Municipal de Educação.
Dessa forma, conhecendo um pouco mais o universo dessa UMEI, nossas
observções e análises nos levaram para um aspecto da constituição do eu, entendo
que vários outros atravessam a constituição da criança.
3. SER MENINA E SER MENINO NA TURMA DO JARDIM II:
CAMINHOS DE CONSTITUIÇÃO DO EU.
Correr, cantar, conversar, brincar, sorrir e chorar. Tudo faz parte do cotidiano da
Educação Infantil. Essas situações fazem parte da teia tecida pelas interações entre
as crianças. Mesmo brincando sozinha, a criança traz consigo elementos de
interações estabelecidas com outras pessoas.
Vigotski auxilia na compreensão desse fenômeno quando afirma que os processos
humanos têm sua origem nas relações sociais. O homem significa o mundo e a si
próprio através da experiência de relação com outros homens. O desenvolvimento
psíquico envolve a apropriação das experiências vividas no plano intersubjetivo.
Essas apropriações permitem ao homem interiorizar “[...] estratégias para
memorizar, narrar, solucionar problemas, etc., criadas pelos grupos humanos com
os quais ele partilha experiências” (OLIVEIRA, 2002, p. 136).
Assim, o desenvolvimento constitui-se em um “[...] processo dialético complexo, que
implica revolução, evolução, crises, mudanças desiguais de diferentes funções,
incrementos e transformações qualitativas de capacidades” (GÓES, 2002, p. 99).
Nesse contexto, a criança é concebida, desde o início, como um ser social, e o
processo de tornar-se um ser singular é desencadeado a partir da interação com o
outro e com a cultura e das apropriações decorrentes dessas relações.
As interações na teoria histórico-cultural são constituidoras do eu. Tanto Wallon
quanto Vigotiski ressaltam a importância do outro no processo de se tornar humano.
Para Vigotski (1996, p. 113), a criança “[...] começa a utilizar consigo mesma os
meios e formas de comportamento que, no princípio, eram coletivos”. Ou seja, aquilo
que era dos outros passa a ser do eu também, mas de uma forma particular e
singular.
Nessa perspectiva que concebe a criança como um ser histórico e cultural, são os
outros, através das interações, que vão possibilitar a internalização das práticas
culturais e históricas da humanidade. O outro é “[...] parceiro perpétuo do eu na vida
psíquica” (WALLON, 1980, p. 159).
Dessa forma, torna-se de grande importância analisar as crianças que chegam até a
Educação Infantil a partir das interações, pois cada personagem presente nas
instituições de Educação Infantil deixa de alguma forma marcas na constituição do
eu dessas crianças. Conforme afirma Oliveira (1992, p.31):
Nessa interação contínua e estável com outros seres humanos, a criança desenvolve todo um repertório de habilidades ditas humanas. Passa a participar do mundo simbólico do adulto, comunica-se com ele através da linguagem, compartilha a história, os costumes e hábitos de seu grupo social, o que garante ao ser humano uma intensa capacidade adaptativa aos mais variados meios físicos e sociais.
No contexto cultural, particularmente no educacional, uma gama de possibilidades,
de aprendizagens e experimentações abre-se para a criança. Assim, o outro,
especialmente o adulto, tem a responsabilidade de apresentar o mundo a essa
criança. Todavia não é só a criança que se desenvolve, mas também os adultos que
interagem com elas, pois aprendem a ser mães, professoras, avós. É impossível
falar de desenvolvimento envolvendo uma única pessoa, já que esse compreende
inúmeros protagonistas.
Como afirma Vigotski (2000), a personalidade constitui-se num “agregado de
relações sociais transferidas internamente” e é por meio dos outros que construímos
nossas significações sobre os modos de ser, de agir, de nos relacionarmos com
outras pessoas e de sentir. Assim sendo, consideramos pertinente o estudo das
interações para compreender o desenvolvimento e especialmente a constituição do
eu das crianças. Por isso, iniciamos a pesquisa de campo focalizando as interações
que se estabelecem entre elas.
Devido ao fato de as crianças estarem há algum tempo juntas (algumas se
conheceram no maternal), era constante em momentos de rodinha ou de
brincadeiras elas fazerem referência a acontecimentos do passado como: “Você
lembra quando você chorou na escola?” ou “No ano passado, você foi a gatinha do
teatro.” Elas já conheciam gostos, vontades e manias dos colegas, tinham vínculos
estabelecidos, conheciam o espaço e todos os funcionários, já não interagiam
propriamente para se conhecer, mas para estreitar amizades, conhecer,
experimentar, solucionar problemas.
Discutindo sobre vínculos e sua relação com o desenvolvimento humano, Almeida e
Rubiano (2004) chegaram à idéia de “compartilhamento”, no sentido de ter algo junto
com o outro, que pode ser um momento, um interesse, uma atividade, um segredo,
ou até mesmo códigos de comunicação que só na relação eu-outro podem ser
entendidos.
Para criarmos vínculos, temos que ter algo em comum, uma história e uma vivência.
Isso cria códigos de comunicação. No Jardim II, as crianças compartilhavam uma
história de convivência que já durava três anos. Isso era importante para o
desenvolvimento delas, pois facilitava a apropriação do mundo social através do
outro.
3.1 A FORMAÇÃO DE GRUPOS E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A
CONSTITUIÇÃO SOCIAL DA CRIANÇA
A formação de grupos e suas interações mostraram-se importantes para
entendermos o desenvolvimento infantil. Era notória a formação de grupos entre as
crianças, principalmente nos momentos de brincadeiras, em que ficavam mais livres
para escolher com quem queriam brincar. No momento das atividades dirigidas, a
professora muitas vezes determinava quem ia sentar perto de quem na rodinha ou
na mesa.
Wallon (1980, p. 167) ressalta a importância dos grupos na constituição do sujeito e
na aprendizagem social, e define a existência de um grupo como uma
[...]reunião de indivíduos tendo entre si relações que notificam a cada um o seu papel ou o seu lugar dentro do conjunto. A escola não é um grupo propriamente dito, mas um meio onde podem constituir-se grupos com tendência variável e que podem estar em discordância ou em concordância com os seus objectivos.
Observamos que muitos grupos formados não eram duradouros, duravam o tempo
de uma brincadeira ou do manuseio de um brinquedo. A esse respeito Wallon
comenta:
Quer sejam temporários ou duradouros, todos os grupos têm objectivos determinados e a sua composição depende desses mesmos objectivos; do
mesmo modo, a repartição dos cargos rege entre eles as relações dos membros e, se necessário, a sua hierarquia. Pode haver postos de iniciativa, de comando, de sustento, de submissão [...] (WALLON, 1980, p. 173).
Mesmo durando pouco tempo, os grupos tinham a sua organização e papéis
hierárquicos que os definiam como um grupo.
Era no momento das brincadeiras que a divisão de grupos se ressaltava. As
crianças brincavam muito com os brinquedos da sala, principalmente com bonecas,
bonecos e carrinhos que estavam lá. Entretanto também gostavam muito de jogos
matemáticos confeccionados pela professora, como bingo, ludo, jogo da velha, trilha
e boliche de números. Além disso, brincavam em frente ao espelho, principalmente
as meninas, cantando e dançando.
Um aspecto que se destacou nas primeiras observações e análises da turma do
Jardim II foi a divisão entre meninas e meninos, estabelecida pelas próprias
crianças. Essa característica foi ressaltada pela professora no primeiro encontro
que tivemos. Nessa ocasião ela relatou que a divisão entre meninos e meninas era
algo constante no grupo.
Almeida e Rubian (2004) asseveram que, na formação de grupos, segundo a
pesquisa empírica, o que vai mediar a escolha de parceiros é a idade e o sexo. Para
as autoras, a escolha por sexo se dá por afinidade como, por exemplo, gostar do
mesmo tipo de brincadeira. Afirmam:
Segundo a percepção das crianças, essa é a razão principal da menor probabilidade de amizades entre meninos e meninas [...]. As brincadeiras intersexuais restringem a alguns tipos (pega-pega) e ou/a certas crianças que se dispõem a participar de jogos mais típicos do sexo oposto (ALMEIDA; RUBIAN, 2004, p.180).
Percebemos, pelas brincadeiras e atividades realizadas pelas crianças, que a
separação em grupos de meninos e meninas seguia interesses, padrões de
comportamento e modos de ser, o que não significa que meninos e meninas não
interagissem e/ou brincassem juntos em alguns momentos. Às vezes os meninos
participavam de brincadeiras ditas de meninas e vice-versa. Segundo as autoras,
esse é um dos motivos da escolha de parceiros para o grupo. A convivência e a
cumplicidade também auxiliam nessa escolha, e não somente o sexo.
Encontramos grupos que eram mais constantes, o que não quer dizer que eram
fixos, pois as crianças transitavam entre um e outro, dependendo da brincadeira e
do brinquedo escolhido. De acordo com as observações feitas durante a pesquisa,
pudemos destacar, dentro do grupo das meninas e dos meninos, agrupamentos que
se uniam a outros, de acordo com afinidades e brincadeiras.
Mostramos abaixo essa dinâmica de interações entre as meninas.
Figura 23 – Dinâmica das interações entre as meninas.
O grupo normalmente composto apenas por meninas era integrado pelas alunas
Aline, Janaína, Karla, Lúcia, Letícia, Larissa, Mariana, Paula e Raquel. Eram
meninas que estavam constantemente juntas nas brincadeiras ou sentadas
próximas. Mariana, Lúcia, Janaína e Aline lideravam muitas vezes as ações e
posicionamentos do grupo.
Letícia, Larissa e Raquel faziam parte desse grupo, mas não tinham a liderança
apenas acatavam a decisão das que se destacavam. Elas brincavam bastante em
frente ao espelho, com produtos de maquiagem que algumas traziam escondido de
suas mães. Penteavam-se, dançavam e cantavam imitando personagens de
programa de televisão.
Paula e Karla ora participavam das brincadeiras com as outras meninas, ora eram
excluídas das atividades lúdicas. Costumavam ficar sempre próximas das meninas
para terem a oportunidade de brincar com elas.
Ana Carolina e Bianca eram “amigas” e era assim que se definiam. Sempre estavam
juntas e não chegavam a formar um grupo; transitavam em todos os grupos, mas
sempre unidas. Brincavam muito de “casinha” e de fazer “comidinha”. Bianca sempre
trazia brinquedos, como panelinhas, pratinhos, fogãozinho e bonecas.
Os meninos, por outro lado, tinham uma dinâmica de interações um pouco diferente.
Figura 24 – Dinâmica das interações entre os meninos.
O grupo normalmente composto apenas por meninos era integrado pelos os alunos
André, Cláudio, Douglas, Elvis e Rodrigo, que estavam constantemente juntos,
brincando ou sentados próximos. Eles se aproximavam nas brincadeiras de futebol,
nas simulações de luta ou em brincadeiras com armas de brinquedo montadas com
peças de jogo da própria sala. Cláudio, Elvis e Douglas eram constantemente
citados pelas meninas como os mais bonitos da sala. Cláudio, em especial, ganhava
presentes das meninas da sala.
Alex, Luiz Paulo, Mateus, Paulo Ricardo, Pedro e Yan gostavam de brincar com os
fantoches da sala, organizando peças de teatro e brincando com os jogos de
matemática.
Entretanto, observamos ainda uma outra rede complexa de interações: alguns
grupos eram formados por meninas e meninos, embora fossem menos constantes e
mais solúveis, já que se desfaziam com mais facilidade do que os outros grupos,
seja por convite de outro colega seja por um brinquedo que chamasse mais atenção.
A figura 25 exemplifica essa situação.
Figura 25 – Dinâmica das interações entre meninas e meninos.
Alex, Luiz Paulo, Mateus, Pedro, Yan, Paula, Bianca, Ana Carolina e Karla
integravam um desses grupos, que se reunia nas brincadeiras de casinha, nos jogos
matemáticos e nas brincadeiras com fantoches. Quando a professora não
determinava os locais onde eles iam sentar-se para fazer as atividades dirigidas, era
comum vê-los se reunir na mesma mesa para cumprir a tarefa proposta.
Como já foi dito, as crianças transitavam entre os grupos. Os meninos e as meninas
só se uniam se tivessem um interesse comum. Alguns meninos aceitavam brincar de
casinha e assumiam papéis do gênero masculino, como garçom, pai, filho ou irmão.
Existia também uma outra dinâmica de interações entre as meninas e os meninos.
Estes não chegavam a formar um grupo, mas interagiam, e esse tipo de interação
apresentava algumas características. Normalmente, os meninos tomavam a
iniciativa de se aproximar das meninas que estavam envolvidas em algumas
atividades lúdicas, atrapalhavam de alguma forma a brincadeira e eram censurados
por elas, que, em alguns momentos, corriam atrás deles, o que gerava a brincadeira
de pique-pega.
Figura 26 – Dinâmica das interações entre meninas e meninos.
Esse grupo era formado por Aline, Janaína, Lúcia, Mariana, Letícia, Larissa, Raquel,
André, Cláudio, Elvis, Rodrigo e Douglas. Às vezes sentavam juntos no mesmo
conjunto de mesinhas para fazer suas atividades, entretanto essa interação nem
sempre era harmoniosa.
A relação entre esses grupos às vezes não se dava de forma harmoniosa,
principalmente por conta do espaço que muitas vezes era invadido por outro grupo.
Entretanto as crianças tinham liberdade para trocar de grupo. Por exemplo: se uma
menina quisesse deixar a brincadeira do espelho e brincar de casinha, era aceita.
Por outro lado, entre os meninos, a mistura e a flexibilidade na formação dos grupos
não era percebida. Os que participavam das brincadeiras de luta ou dos jogos de
encaixe não costumavam transitar entre os grupos que brincavam de fantoche, de
casinha ou com os jogos matemáticos e com o outro grupo acontecia a mesma
coisa. Os grupos só se uniam quando a brincadeira era o futebol.
A figura 27 sintetiza a dinâmica das interações estabelecidas entre todas as crianças
da turma.
Figura 27 – Dinâmica das interações entre as crianças do Jardim II.
Os grupos ajudaram-nos a pensar a constituição do eu das crianças inseridas nesta
UMEI.
Wallon (1980) mostra-nos a importância dos grupos na constituição do ser social
que somos e no desenvolvimento de nossa personalidade e diferenciação do outro.
O indivíduo só existe como um ser social se for membro de algum grupo. Existir
como um ser social significa pertencer a um grupo, que deixa marcas em nossa
constituição e orienta nosso desenvolvimento.
Quais as marcas deixadas pelos grupos que se formavam no Jardim II na
constituição de cada um de seus membros? Que orientações os grupos imprimiam
na constituição do eu de cada uma dessas crianças?
Um primeiro aspecto que se destaca é a divisão entre meninas e meninos. Estudos
apontam que agrupamentos de crianças na Educação Infantil, tendo como critério a
divisão entre meninas e meninos, é freqüente (ALMEIDA;RUBIANO, 2004).
Entretanto, alguns desses estudos destacam que essa divisão não é natural, mas
histórica. As crianças não são naturalmente meninos e meninas, elas se constroem
através de suas relações com os grupos sociais estabelecidos. Logo que nascemos,
temos nossos corpos lidos, como meninos ou meninas e, através deles, significados
nos são passados durante toda a vida: “[...] o corpo seria a primeira forma de
distinção social, derivando e marcando todas as outras construções” (SAYÃO, 2003,
p. 71). Assim, nascer com características biológicas que nos definam como menino
ou menina leva à configuração uma gama de relações que vão permear toda a
história de nossas vidas.
Como já foi dito anteriormente, desde o primeiro encontro com a professora da
turma, as questões de gênero mostravam-se como uma possibilidade importante de
análise da turma do Jardim II. Ao longo da pesquisa, o que era possibilidade tornou-
se característica importante para análise. Dessa forma, organizamos os episódios no
sentido de que nos mostrassem indícios da constituição do ser menino e do ser
menina, na turma pesquisada.
3.2 SER MENINO E SER MENINA
Uma observação mais cuidadosa do cotidiano da Educação Infantil evidenciou a
presença de algumas práticas escolares cristalizadas que diferenciavam o ser
menina do ser menino no Jardim II; filas para meninos e para meninas, lugar próprio
para sentar na rodinha, local diferenciado para colocar as mochilas. Práticas que iam
moldando os modos de ser menina e de ser menino não de uma forma rígida, mas
que ajudavam na diferenciação entre as crianças.
Existem vários trabalhos que discutem a relação menino e menina nas instituições
de Educação Infantil (GOBBI, 1997; COSTA, 2004; FINCO, 2004; SOUZA, 2006)
Todavia, muitos deles discutem somente o gênero feminino e sua história de
discriminação interligada à figura feminina da professora. Nesses estudos, os
meninos são vistos, nos dados empíricos, como os mais fortes, e essa imagem é
reforçada nas práticas educativas.
Discorrendo o cotidiano institucional da Educação Infantil, Costa (2004) analisa
cenas do cotidiano de meninas e meninos, buscando compreender como as
crianças expressam, interpretam, reproduzem ou ressignificam os comportamentos e
regras sociais na construção dos gêneros e as expressões de sexualidade e poder.
Para a autora, discutir as relações de gênero na Educação Infantil é de fundamental
importância
[...] para conhecer melhor as meninas e os meninos que freqüentam as instituições, pois trata-se de construções sociais que foram histórica e culturalmente construídas e que em muitos momentos influenciam ou mesmo determinam comportamentos estereotipados (COSTA, 2004, p.12)
A autora define gênero segundo Joan Scott, como uma relação entre homens e
mulheres e não apenas entre mulheres, e aponta a necessidade de estudar a
história dos meninos e não apenas a das meninas. Quando discutimos gênero,
estamos também analisando a relação entre homens e mulheres de uma
determinada sociedade e suas expectativas, que variam conforme o lugar e a época.
A pesquisa de Costa (2004) tem o compromisso de procurar diminuir os equívocos
pedagógicos e construir uma educação emancipatória na relação entre meninos e
meninas.
O gênero é discutido, nessa pesquisa, através das relações tecidas dentro das
instituições de Educação Infantil, de acordo com as relações que também são
estabelecidas na sociedade. Em suas considerações finais, Costa apresenta
crianças diferentes daquelas divulgadas em outras pesquisas, em que as meninas
são passivas e os meninos são fortes e “durões”; pelo contrário, em sua pesquisa
ela encontra meninas que também ocupavam a liderança e meninos que deixavam
transparecer seus sentimentos e o direito de chorar.
Analisando o encontro de meninos e meninas na escola, Souza (2006) investiga as
relações de gênero por meio das interações estabelecidas entre as crianças e a
professora. O seu objetivo é verificar se os estereótipos sexuais são reproduzidos
e/ou reforçados pelas professoras da Educação Infantil. Em sua pesquisa, a autora
constata que a professora reforçava a estereotipia sobre os papéis socialmente
aceitos.
Santos (2004) acredita que seja difícil para as professoras terem uma atitude
diferenciada, já que também receberam uma educação que segregava a mulher de
uma vida social ativa. Todavia, é possível pensar em uma educação igualitária para
meninos e meninas.
Em nossa pesquisa, buscamos caminhos diferentes dos da maioria das
investigações sobre o gênero. Buscamos a diferença, mas não o confronto e a
oposição. Entendemos a importância dessas investigações que revelam práticas
discriminatórias e segregacionistas na educação das crianças e evidenciam a
necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre os padrões rigidamente
estabelecidos pela sociedade do que é masculino ou feminino. Entretanto,
buscamos compreender como se dá a constituição do subjetivo do ser menina e do
ser menino, entrelaçados nas relações sociais e nas construções culturais e
simbólicas dessa relação.
3.2.1 Será que ele me acha bonita? - Ser menina na turma do Jardim II
Ó mãe, me explica, Me ensina
Me diz o que é feminina? Não é no cabelo,
Ou no dengo, ou no olhar É ser menina por todo
lugar. Joyce
De modo geral, ser criança no mundo ocidental atual é estar ligada a uma lógica
perversa, a lógica da produção e do consumo. Jobim e Souza (2005) nos mostram-
nos que cada época cria expectativas sobre suas crianças, o que trará
conseqüências constitutivas sobre o sujeito em formação.
A escassez de diálogo entre os adultos e as crianças, concorre para que elas fiquem
sozinhas nesse contexto conturbado, expostas à violência e à erotização da mídia,
que acaba criando uma produção cultural específica para elas, aligeirando o
crescimento. Com isso elas se inserem cada vez mais cedo no ambiente dos
adultos.
Essa lógica torna-se mais perversa quando nos referimos às meninas, que são cada
vez mais alvo da mídia e da sociedade de consumo. Segundo Felipe e Guizzo
(2004), a mídia (televisão, propagandas, livros, revistas, entre outros meios.) veicula
discursos e modos de felicidade que se tornam verdades para as crianças. Só é feliz
quem é magra, loira e de cabelos compridos.
Esses discursos marcam o ser menina na sociedade atual. A publicidade “[...]
remete a determinados padrões de beleza amplamente valorizados nos nossos dias:
o corpo jovem, magro, branco e sensual. As meninas-bonecas são visivelmente
muito magras, quase todas brancas, de olhos claros” (FELIPE; GUIZZO, 2004,
p.128).
Para as meninas do Jardim II, ser menina era ter cabelos compridos, que pudessem
ser manuseados e admirados pelas colegas, e ser magra. Em um dos episódios
envolvendo Lúcia e Mariana, um conflito se instaurou porque uma chamou a outra
de “gorda”.
As crianças estão em rodinha ouvindo música, e a professora está conversando com
outra professora na porta da sala. Quando ela volta para a rodinha, Mariana reclama
que Lúcia a chamou de gorda.
Mariana: Tia, a Lúcia me chamou de gorda e disse que não quer brincar comigo.
Professora: E qual é o problema de ser gorda?
Lúcia: Mas ela me chamou de gorda também. (Lúcia é uma criança magra)
Professora: Mas qual o problema de ser gorda? Se Mariana é gorda é porque ela
come bem. E você, Mariana, deve falar: Eu sou gorda sim, mas sou muito feliz.
Mariana: Ninguém na minha casa me chama de gorda. Meu pai, quando eu me
arrumo, sempre diz: “Como você está bonita”.
Lúcia neste momento abaixa a cabeça.
Professora: Pois é, aqui na sala ninguém é igual, todos somos diferentes; tem uns
que têm cabelos enrolados, outros lisos, tem gordo e magro e não tem problema.
A professora pede que eles se olhem e vejam se tem alguém igual na sala.
Professora: Não tem problema ser gordo.
Mariana: Tia, meu pai e minha mãe não gostam que me chamem de gorda.
Professora: Mas temos que nos aceitar do jeito que somos. Você tem que dizer: “Eu
sou gorda sim, mas sou feliz”.
Mariana: Meu pai, irmão, mãe e tia não me chamam de gorda.
Professora: Pois é, a Lúcia não vai fazer mais isso e vai brincar com todo mundo.
(Diário de campo, 20 de outubro)
Por que Mariana não aceitava ser gorda? Além de negar “ser gorda”, afirmava que
sua família também não gostava que a chamassem dessa forma.
Ser gorda é uma ofensa muito grave, assim como ser chamada de feia. Não existem
apresentadoras de programas infantis gordas. Até mesmo as propagandas
destinadas às consumidoras infantis exibem meninas magras e às vezes erotizadas,
como afirmam Felipe e Guizzo (2005), analisando propagandas de sandálias de
plástico destinadas às meninas. Nessa análise, os autores revelam um fato
preocupante que é a erotização dos corpos infantis pela da mídia. Cada vez mais
vemos propagandas mostrando meninas que cultivam a beleza como se isso fosse
inerente ao ser feminino - ao ter tal sandália a menina conseguirá ter a atenção
daquele menino da escola - e ressaltando uma imagem do feminino ligada ao
supérfluo e ao consumo desenfreado.
Esses sentidos para o ser menina chegam cada vez mais cedo até nossas crianças.
As meninas da turma do Jardim II, por exemplo, tinham apenas cinco e seis anos.
Conforme ressaltam Felipe e Guizzo (2005, p.124)
O corpo infantil vem sendo alvo de constantes e acelerados investimentos. Com o surgimento dos veículos de comunicação de massa, em especial a TV, as crianças passaram a ser vistas como pequenos consumidores e a cada dia são alvos constantes de propagandas. Ao mesmo tempo em que elas têm sido vistas como veículo de consumo, é cada vez mais presente a idéia da infância como objeto a ser apreciado, desejado, exaltado. [...] chama atenção para o fato de haver uma ‘‘erótica infantil’’, isto é, uma erotização da imagem da criança, amplamente veiculada pela mídia.
Com acelaração da passagem da infância para o mundo adulto do consumo, até
mesmo as músicas destinadas ao público adulto têm chegado até a infância com
muita facilidade, porque seus ritmos são alegres e seduzem as crianças. Em uma
das cenas observadas no Jardim II, as crianças pediam à professora que colocasse
um CD de uma cantora famosa, que era magra, tinha cabelos compridos e uma voz
parecida com a de uma criança. Suas músicas faziam menção a namoros,
indicavam que ela era bonita e não precisava mais do ex-namorado e anunciavam
novos amores.
As meninas se arrumam na frente do espelho, passam batom, mexem no cabelo e
fazem caras bem expressivas. Conversam se olhando-se no espelho, colocam
óculos escuros e arquinhos nos cabelos.
Lúcia se aproxima da professora e pede que ela coloque o CD da cantora Kelly Key.
A professora diz que esse CD é de Alex e ele não tinha vindo á aula nesse dia.
Então ela coloca uma música do cantor Latino, ”Festa no apê”.
Lúcia e Mariana são as meninas que mais dançam, colocando a mão na cintura,
balançando os cabelos e abaixando até o chão.
As crianças cantam e dançam a música.
Lúcia se aproxima de Elvis e pede que ele as olhe dançando.
Elvis, que está brincando com os pinos, continua a brincar e nem olha para as
meninas.
Karla reclama, pois queria ouvir “A linda rosa juvenil”. A professora troca o CD e
Lúcia reclama, pois gostaria de continuar a dançar. (Diário de campo, 21 de
novembro)
Em que a mídia tem contribuído para a formação das meninas? Quando vemos
apresentações do cantor de “Festa no apê” na televisão, ele sempre vem
acompanhado de moças bonitas, com roupas curtas e cabelos compridos. Elas
dançam e são admiradas pelos homens.
As meninas, nesse episódio, arrumaram-se em frente ao espelho para dançar;
repetiram os gestos das dançarinas, colocando a mão na cintura; mexeram nos
cabelos e rebolaram, enquanto abaixavam-se até o chão. Queriam o olhar e a
atenção de Elvis, que estava mais interessado em brincar com os pinos do que em
ver as meninas dançando. Elas pareciam dançar também para serem olhadas e
admiradas pelo outro - nesse caso os meninos – da mesma forma que os homens
admiram as mulheres bonitas, magras e de cabelos compridos que dançam nas
apresentações de cantores como o Latino.
Jobim e Souza (2005, p.109) alertam para essa fusão “[...] entre a imagem e a
realidade, proporcionada pela mídia que também atua fomentando um ideal de
felicidade atrelado ao consumo de valores e signos”.
Cada sociedade produz um conceito de infância. E qual seria o nosso? Ao reparar
na letra da música “Festa no apê”, vemos alguns dos ideais e valores que envolvem
o ser menina/mulher em nossa sociedade.
Festa No Apê
Hoje é festa lá no meu apê Pode aparecer Vai rolar bunda lelê Hoje é festa lá no meu apê Tem birita Até amanhecer Chega aí
Pode entrar Quem está aqui está em casa Olá, Prazer! A noite (hum) é nossa. Garçom, por favor, venha aqui e sirva bem a visita. Tá bom Tá é bom Aqui ninguém fica só Entra aí e toma um drink Porque a noite é uma criança. Tesão, sedução, libido no ar No meu quarto tem gente até fazendo orgia Tá bom Tá é bom Tudo é festa Pegação Vou zoar o mulherio e a chapa vai esquentar.
O ideal de felicidade nessa música está atrelado a bebidas e namoro com várias
pessoas. Pode até parecer engraçado ver crianças dançando como adultos, ou
cantando certos tipos de músicas. Entretanto, se entendemos o sujeito como um ser
histórico, inscrito em uma cultura e através dela se constituindo, fica-nos a pergunta:
Que meninas estamos ajudando a formar dentro das escolas e fora delas também?
Jobim e Souza (2006, p.115) afirma: “cada sujeito, ao interagir com o seu meio,
estará interagindo com signos, com uma história, com uma ideologia, e vai, assim,
nessa troca com o outro, construindo seu próprio conhecimento que é
marcadamente cultural”.
Se em nossa constituição somos influenciados por uma cultura, as crianças atuais
são constituídas por uma cultura que erotiza precocemente. Mais uma vez negamos
a infância para uma adultilização precoce, pois quanto mais rápido crescem, mais
cedo se tornam consumidores em potencial.
Em seu artigo sobre infância e contemporaneidade, Souza (1998) fala com uma
certa preocupação sobre esse momento da história, pois o outro mais experiente,
ou seja, o adulto, que estaria a mediar a relação da criança com o mundo, não tem
tido muito tempo para isso, e a criança tem ficado à mercê da televisão, que dita
normas e formas de comportamento. Muitas vezes os pais reforçam essas idéias ao
comprarem roupas de adulto para as crianças e ao permitirem que tenham acesso à
produção massificadora da mídia, sem nenhum tipo de filtro por parte deles.
Construir-se menina nesse contexto revela o quanto a mídia, na sociedade atual,
dita as ordens de seu subjetivo. Aquilo que é mostrado como padrão de felicidade se
torna verdade para essas meninas.
É assim que elas se vão se construindo. Não somos naturalmente
meninas/mulheres, mas, sim, histórica e culturalmente meninas/mulheres. Dessa
forma, analisando as filigranas, ou seja, os detalhes das histórias das meninas,
tecidos na turma do Jardim II, percebemos que fazem parte de um universo muito
maior, que é produzido em nossa sociedade.
As meninas dessa turma eram muito vaidosas. Dos dezoito episódios registrados
que as envolviam, em oito elas brincavam com produtos de maquiagem e com
danças e em quatro brincavam de casinha. Elas demonstravam muita preocupação
com a beleza. Na cena descrita abaixo, muito freqüente nessa turma, elas mostram
preocupação com os cabelos.
Lúcia está na frente do espelho junto com Aline. Aline tenta convencê-la a colocar o
cabelo de lado. Aline diz:
- A minha mãe sempre arruma o meu cabelo assim.
Ela fala e mexe no seu cabelo, com um pente na mão. Lúcia a deixa dividir o seu
cabelo. Elas estão na frente do espelho da sala.
(Diário de campo, 7 de novembro)
A maioria das meninas da sala, sete das onze, tinha cabelos compridos. Com os
quais constantemente se preocupavam . Nos episódios em que brincavam com
materiais para maquiagem, elas iam para a frente do espelho, mexiam neles,
jogando-os de lado. Às vezes iam ao banheiro escondido da professora para molhá-
los. Ter os cabelos compridos parecia ser algo muito importante para elas.
Em certa ocasião, Lúcia ficou muito chateada por sua mãe ter cortado seus cabelos.
No refeitório, algumas meninas estão em um grupinho conversando sobre os
cabelos de Lúcia, que foram cortados acima do ombro. Dizem que ficou bonito.A
professora também diz que ficou bonito, mas Lúcia nada responde. Ela fica séria e
cruza os braços. Está visivelmente aborrecida. Outra professora se aproxima, coloca
a mão em seus cabelos e diz:
- Será que é igual a Sansão? Perdeu a força?
Diz isso e olha para Luiza que é a professora de Lúcia. (Diário de campo, 8 de
dezembro).
A outra professora sabia o quanto era importante para Lúcia ter cabelos compridos,
pois ela era uma aluna muito vaidosa. Observamos várias cenas dessa aluna em
frente ao espelho, jogando os cabelos para a frente só para ver o efeito que
produziam batendo no espelho. Quando conversava com os colegas, sempre mexia
neles. Cortá-los foi como ter tirado a sua “força”, a sua identidade: para ser menina
bonita e admirada pelos outros tinha que ter os cabelos compridos como mostravam
a televisão e as revistas.
Ser menina também está imbricado na relação com o menino. Não basta apenas
considerar que há meninos e meninas no espaço da Educação Infantil, mas, sim,
que há relações que produzem/reproduzem “[...] modos de ser homem e mulher, ou
menino e menina, que trazem conseqüências para sua convivência com o grupo,
assim como para suas vidas” (SAYÃO, 2003, p. 78).
Através dessas relações, eles conhecem/reconhecem sua condição social de ser
homem ou mulher. Atravessadas nessas relações estão as expectativas de uma
sociedade que atribui valores, cujos reflexos sentimos nas relações tecidas no grupo
do Jardim II.
No episódio descrito abaixo, algumas meninas estavam na frente do espelho
arrumando-se e também fazendo uma das coisas de que mais gostavam: dançar. Ao
dançar, elas carregavam nas expressões faciais; falavam e se expressavam olhando
para o espelho.
Lúcia, Mariana, Karla e Letícia estão dançando na frente do espelho. Douglas está
em outra mesa brincando com os pinos.
Lúcia chama Douglas e diz:
- Olha a gente dançando e diz quem dança mais bonito?
Douglas olha, dá uma risada e diz:
- Todas vocês são feias!
Lúcia faz uma expressão de quem não gostou, vira-se para o espelho e continua
dançando (Diário de campo 26 de outubro).
As meninas pareciam esperar que os meninos as admirassem por estarem
dançando como em muitos programas televisivos em que mulheres dançam com
roupas curtas e têm a admiração do público. Será que Douglas não percebido a
expectativa das meninas? Por que disse que todas eram feias? Douglas parecia não
havia dar importância a um tipo de comportamento muito valorizado por elas. Disse
que todas eram feias e achava engraçado vê-las brincar de dançar e ficar irritadas
por terem sido chamadas de feias.
Com base no episódio analisado, podemos perguntar-nos: O que as meninas
esperavam dos meninos? Ouvir que eram feias fez com que se sentissem ofendidas.
Qual seria a resposta certa?
No decorrer de nossas vidas, internalizamos funções sociais, como as de filha, de
mãe, de professora Essas funções, que se configuram no plano intrapsíquico, como
diz Vigotski, primeiro foram relações sociais. “O desenvolvimento segue não para a
socialização, mas para a individualização de funções sociais (transformações das
relações sociais em funções psicológicas)” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). Dessa forma,
as funções sociais que assumimos têm grande influência na forma como falamos,
pensamos e sentimos. De acordo com Pino (2000, p.72), “[...] as funções
psicológicas constituem a projeção na esfera privada (plano da pessoa ou da
subjetividade) do drama das relações sociais em que cada um está inserido” (p.72).
As funções sociais que o sujeito assume não são simplesmente internalizadas em
sua íntegra, mas, sim, de acordo com o lugar que o sujeito ocupa nas relações
sociais vivenciadas, pois cada um carrega em si a marca da sua própria história.
No decorrer de nossas vidas, assumimos funções que nos vão constituindo. Essas
funções são construídas nas nossas relações com o outro. Logo que nascemos,
somos definidos pelos outros, por nossas características biológicas, como meninos
ou meninas. Ser menina, para algumas dessa turma, era ser bonita, ter cabelos
compridos e ser atraente, funções de uma menina/mulher que vão sendo
internalizadas, mesmo que, inicialmente, o outro da relação, o menino, não lhe
responda da forma esperada. Afirma Góes (2000, p. 22):
“[...] longe de ser uma cópia do plano externo, o funcionamento interno resulta de uma apropriação das formas de ação, que é dependente tanto de estratégias e conhecimentos dominados pelo sujeito quanto de ocorrências no contexto interativo”.
Na relação com os meninos, constatamos que elas também se apropriavam de um
determinado modo de ser menina/mulher. Nem sempre o desfecho de um episódio
envolvendo meninas e meninos era semelhante ao que ocorreu nessa situação
descrita. Às vezes as meninas demonstravam ficar irritadas com os meninos e
corriam atrás deles.
O tipo de relação entre as meninas do grupo 1 (Aline, Lúcia, Amanda e Janaína) e
os meninos do grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis e Rodrigo) apresentava
indícios de um processo inicial de apropriação dos jogos de sedução presentes entre
homens e mulheres em nossa sociedade.
Além dos meninos, outros participam na constituição do ser menina. Como somos
um emaranhado de relações, é-se menina também na relação com outras meninas.
A imagem e a beleza eram importantes para algumas meninas do Jardim II. Era
comum vê-las pegarem lápis de cor, giz de cera e pincel e transformá-los, por
exemplo, em batons, rímel, lápis para contorno do olho. Em suas falas, algumas
mostravam qual era o padrão aceitável de beleza, pois ser gorda e não ter os
cabelos compridos e de fácil manuseio era motivo de ofensa em momentos de
brigas.4
Como já foi mencionado, percebia-se a formação de diferentes subgrupos, entre as
meninas. O grupo formado por Aline Marina, Lúcia, Janaína, Letícia e Larissa
destacava-se por coeso. Era mais constante o encontro dessas meninas e, quando
uma decidia não querer participar mais de determinada brincadeira, todas também
4 Mariana era constantemente chamada de gorda pelos seus colegas em momentos de brigas. Em um dos episódios, ela e Lúcia estavam em frente ao espelho brigando, apertando os olhos, mexendo nos cabelos. Lúcia chama Mariana de gorda e esta respondeu que ela era uma idiota. Durante a pesquisa, foram seis episódios, do total de trinta e dois, em que outro colega chamou Mariana de gorda. Como mostramos em outro episódio, Mariana não gostava de que a chamassem assim, pois ser chamada de gorda para ela era uma ofensa.
mudavam para outra atividade lúdica. A característica marcante desse grupo é a
preocupação com a beleza; o ponto de encontro delas era em frente ao espelho,
onde se olhavam, mexiam nos cabelos, conversavam como se quisessem ver as
suas expressões refletidas. Mostrar para as colegas que tinham a sandália da
propaganda, o batom e a roupa mais bonita era importante para essas meninas.
Em outro grupo, também existia uma disputa pelo poder entre Aline, Mariana, Lúcia
e Janaína. Elas disputavam a atenção das colegas e a liderança do grupo. Diante
disso, eram constantes as intrigas e as brigas entre elas. Ofendiam-se uma às
outras; chamando-se de gorda, idiota e feia. Costumavam brincar com bonecas que
traziam de casa. Certa vez, quando Janaína trouxe uma boneca mais velha, com
roupas feitas pela sua mãe, Lúcia quis vê-la e disse que era linda. Quando Janaína
saiu de perto, ela debochou da colega dizendo às outras que a boneca era feia.
As relações de poder que envolvem a relação entre as meninas apresentam-se
como um reflexo de relações instauradas na própria sociedade em que elas vivem. É
algo desencadeado em rede, que começa quando se impõem às crianças padrões a
serem assumidos. Esse modo de se relacionar com o poder atinge a todas as
crianças, mesmo aquelas que em um dado momento estão em posição de
submissão ao outro. Muitas vezes vi Mariana, que freqüentemente era chamada de
gorda e era submetida ao poder das outras colegas, exercer certo poder e submetê-
las aos seus caprichos, escolhendo inclusive ela com quem iria brincar, quando
possuía um objeto desejado por essas colegas.
Dessa forma, o poder exercido pelas meninas não é um poder localizado, pois traz
as marcas da sociedade de consumo, tornando-se um poder em rede, atravessado
pelas relações sociais mais amplas.
O que dizer da família nesse emaranhado de relações? O que é ser menina em
relação à família? Wallon (1980, p.167) ressalta a importância da família como
primeiro grupo a que a criança vai pertencer. Esse meio “[...] onde a criança vive e
os que ambiciona são o molde que dá cunho à sua pessoa”.
Durante o período em que estivemos na escola, acompanhamos a chegada e a
saída das crianças com suas famílias. Os pais não podiam ir até as salas levar seus
filhos, então deixavam-nos no refeitório, onde iam buscá-los na hora da saída. As
observações desses momentos indicam-nos o que é ser menina na relação com
suas famílias.
Tanto Lúcia quanto Aline eram alunas muito preocupadas com a beleza e a forma
como estão vestidas. Aline tinha posturas muito parecidas com as de uma mulher
adulta, na sua forma de falar e andar. Tentando entender a apropriação desse modo
de ser por parte de Aline, voltamos o nosso olhar para sua família. Descobrimos que
a menina não morava com o pai, só com a mãe, os tios adolescentes e os avôs. A
mãe de Aline ia buscá-la sempre usando short e top. Tinha os cabelos compridos e
aparentava ser nova.
A mãe de Lúcia também parecia ser muito vaidosa. Tinha cabelos compridos e bem
cuidados. Ia buscar a filha de carro, sempre bem arrumada, de saia e sandálias de
salto, diferente das outras mães, que vinham de chinelo, como se estivessem
trabalhando em casa e tirassem um tempo para levar ou buscar seus filhos.
Tanto a mídia como as famílias contribuem para a constituição de um determinado
modo de ser menina. As meninas aprendem que ser mulher é preocupar-se com a
beleza e ter namorado. A mídia auxilia nessa constituição quando impõe padrões de
beleza e certos hábitos de consumo.
Outro aspecto da relação tecida entre meninos e meninas da turma do Jardim II e
que atravessava o ser menina era o papel de servir ao menino. Uma das alunas em
especial, Aline, dizia constantemente que era namorada de Cláudio e tinha atitudes
de cuidado para com ele. Quando ele não conseguia fazer a tarefa, ela ia ajudá-lo,
elogiava-o, sempre chamava-o de bonito e levava a mochila dele na hora da saída.
Cláudio algumas vezes correspondia, agradecendo ou sorrindo para Aline,
entretanto, quando os colegas falavam que eles eram namorados, Cláudio não
gostava e negava ser namorado de Aline, que, por sua vez, ficava triste e até
chorava.
Em uma dessas situações, quando todas as crianças estavam envolvidas na
brincadeira da “galinha do vizinho”, a professora anunciou que estava na hora de ir
embora. Rapidamente, Aline correu para sala e pegou a sua mochila e a de Cláudio.
A professora brigou com ela, pois não deveria ter-se adiantado. Quando Aline
entregou a mochila para Cláudio, este falou em um tom bravo que não tinha pedido
nada a ela. Aline começou a chorar e a professora disse que ele não precisava ter
falado assim.
O que podemos observar nessas relações tecidas entre meninos e meninas? Ser
menina/mulher também é agradar o menino/homem. Nós nos construímos através
dos outros e das relações estabelecidas pela nossa cultura. Ser mulher em nossa
sociedade também se configura a partir do cuidado com o outro, namorado ou
marido. Historicamente, as atribuições da mulher envolvem cuidar da casa, dos
filhos e do marido. Aline via Cláudio como um namorado e se colocava diante dele
como aquela que cuida, que serve, mesmo sendo censurada de vez em quando por
isso.
Voltando o nosso olhar para a família de Aline, percebemos serem constantes os
comentários sobre o fato de sua mãe namorar, já que estava separada do marido.
Ela nos contava dos passeios que faziam juntos, como ir à pizzaria e a lanchonete,
por exemplo.
Para Cipollone (2003, p.33) a menina em especial recebe uma educação mais “[...]
para fazer-se desejar do que para desejar, para usar a sedução como instrumento
para ser, para suprir o que falta com disponibilidade e paciência”.
Aline estava aprendendo que ser menina/mulher é cuidar do menino/homem,
agradando-o, sendo sempre gentil. Certa vez, percebemos que ela estava triste em
um canto da sala. Ao ser indagada sobre o motivo da tristeza, ela respondeu que era
porque seu namorado não tinha ido à aula.
Entretanto, não era só Aline que se mostrava interessada por Cláudio. Ele era
considerado o aluno mais bonito pelas meninas. Em um dos episódios, a professora
veio até a rodinha com um saco de plástico cheio de brinquedos mandados pela
mãe de Cláudio. Todos aqueles brinquedos que estavam com ele foram dados por
colegas da sala e a mãe não queria que ele ficasse com nenhum deles. A professora
mostrava os brinquedos perguntando quem havia dado. Quase todas as meninas se
levantaram e foram buscar o que haviam dado ao aluno. Todos os presentes eram
usados: bolinhas de gude, carrinhos e bonequinhos.
Mas por que Cláudio era o escolhido? Ele era um menino muito ativo, considerado
“levado” pela professora. Gostava de correr, jogar futebol e era “popular” entre os
meninos e as meninas.
Cipollone (2003, p.33) mostra que essas situações de amores, amizades e troca de
presentes fazem parte do contexto da Educação Infantil e participam da constituição
do eu, incluindo entre elas:
Ciúmes e rivalidades, sorrisos, olhares, silêncios, emoções que se transformam em sentimentos; não mais, portanto, reações instantâneas e diretas, mas uma progressiva interiorização que progredirá com o progredir das capacidades de representação mental.
Embora a preocupação com os atributos físicos, com a beleza, com a admiração dos
outros (geralmente dos meninos) e com “namoros, bem como com a liderança do
grupo atravessasse de forma recorrente o ser menina nessa turma, outros aspectos
se ressaltaram quando voltamos nosso olhar para outros agrupamentos de meninas.
O outro grupo de meninas era formado por Karla, Paula, Raquel, Ana Carolina e
Bianca. Esse agrupamento era mais flexível nas relações. Elas não se preocupavam
tanto com os atributos físicos. Também traziam batons para se maquiar, mas
envolviam-se mais com as brincadeiras de casinha. Essas brincadeiras, além do
fantoche e dos jogos matemáticos em sala também incluíam os meninos.
A relação era diferente da do outro grupo de meninas que interagiam com os
meninos mais com a preocupação de ser admiradas e consideradas bonitas por
eles.
Eram constantemente chamadas pela professora de “boas meninas”. Só entravam
em conflito com os colegas quando alguém as machucava ou atrapalhava suas
brincadeiras. Eram meninas que dividiam o seu material com colegas, e quando
solicitadas pela professora ou pelos colegas, ajudavam-nos. Bianca, Ana Carolina,
Paula e Karla gostavam de brincar com as crianças do berçário. No momento do
lanche, cuidavam para que não caíssem e os auxiliavam na alimentação.
3.2.3 As meninas e os conflitos
Uma característica marcante da interação entre os grupos ou mesmo das relações
entre os membros de um mesmo grupo eram os conflitos. Havia situações de conflito
entre meninos e meninas, entre as meninas e entre os meninos. Segundo Oliveira
(2002, p.136),
[...] formas concretas de organização das atividades humanas em um meio sociocultural específico geram normas, regras e valores sempre potencialmente conflituosos e confrontantes, podendo ser confirmados, desaparecer ou diversificar-se.
Como afirma a autora, a apropriação de regras e valores determinada por um meio
sociocultural é potencialmente conflituosa. Nem toda interação é harmoniosa,
contudo é importante deixar claro qual o conceito de conflito apresentado nesta
pesquisa. Acreditamos ser o conflito
[...] necessário à vida, inerente e constitutivo, tanto da vida psíquica, como da dinâmica social. Sua ausência indica apatia, total submissão e, no limite, remete à morte. Sua não explicitação pode levar a violência. [...] O conflito é a sociedade em movimento (GALVÃO, 2004, p.15).
Dessa forma, o conflito passa a ser parte integrante da interação e do processo de
constituição do eu, pois, em um local onde se encontram indivíduos diversos, com
valores e referências culturais distintas, ele se torna inevitável.
O conflito no desenvolvimento do eu é ressaltado nos estudos de Wallon. Na
diferenciação eu-outro, o conflito evidencia-se na afirmação do próprio eu. Wallon
ressalta, que por volta dos três anos, “[...] a pessoa entra num período em que a sua
necessidade de afirmar, de conquistar a sua autonomia, lhe vai causar, de início
uma série de conflitos”. (WALLON,1995, p.203)
Esses conflitos podem ser acompanhados de perto pelos educadores da Educação
Infantil, pois a criança se opõe a tudo o que é do outro. Para Galvão (1995, p.55),
os conflitos são “[...] a expulsão e a incorporação do outro, são movimentos
complementares e alternantes do processo de formação do eu”.
Durante toda a vida, passamos por momento de conflito com o outro, pois “o
fantasma do outro” nos acompanha, mesmo que não estejamos em interação face a
face. Os conflitos também aparecem no plano intrapsíquico, constituindo-nos,
agregando valores, crenças, formas de pensar ou rejeição. No plano psicológico,
não deve ser visto como destruidor, mas como renovador, porque a cada dia nos
(re)constituímos.
Dessa forma, tentando entender a constituição do eu da criança, elegemos como
categoria de análise também o conflito por constatar que ele esteve presente em
diversos momentos, marcando as interações. Classificamos alguns conflitos
existentes na turma analisada: os que aconteciam entre meninos, entre meninos e
meninas e entre meninas.
Os conflitos entre as meninas, em sua maioria, estavam relacionados ao controle
das brincadeiras. Lúcia era a criança que mais se destacava em querer ocupar o
espaço de líder. Numa cena em que outra colega tinha a posse do jogo e a
autorização da professora para brincar, Lúcia irritou-se e rasgou o jogo.
A professora entrega o jogo de bingo para Paula. É ela quem vai cantar o bingo. Ela
se senta no cantinho da sala e Raquel, Leticia e André pedem para brincar. Ela
entrega uma fichinha para cada um. Como vai cantar o bingo, senta-se numa
cadeira enquanto os colegas se sentam no chão. Lúcia se aproxima e diz:
- Quero jogar! (Pegando as fichas da mão de Paula).
Paula diz:
- Pára Lúcia! Eu vou te dar.
Paula começa a puxar as fichas. Lúcia pega uma delas, rasga e joga em cima de
Paula. Paula começa a chorar e as crianças chamam a professora para ver o que
aconteceu. A professora olha para Lúcia e diz:
- Eu dei o joguinho para Paula! Ela é que deveria ficar responsável pelo jogo; você
não tinha nada que rasgar.
Lúcia encosta-se na parede e não fala nada. A professora diz:
- Agora você vai ter de consertar. E coloca a ficha na mão de Lúcia, que fica
tentando juntar. Depois de alguns segundos, a professora pega e diz:
- Não quero ver você fazer isso novamente. (Diário de campo, 16 de novembro).
Paula era constantemente solicitada pelas colegas para brincar e parecia não se
importar com a disputa pela liderança nas brincadeiras de beleza. Entretanto
gostava muito dos jogos matemáticos e sempre que podia pedia à professora o
bingo. Nessa cena, ela ficou nervosa ao ver Lúcia rasgar a ficha e se preocupou
com o que a professora iria falar, pois havia confiado a ela o brinquedo. Lúcia
pareceu irritar-se por não liderar a brincadeira, não aceitou receber de Paula a ficha
e acabou rasgando-a.
Os conflitos entre as meninas eram mais constantes na disputa pela liderança e na
diferenciação entre elas. Além de evidenciarem um movimento em direção a uma
afirmação do eu, apontavam, também, uma busca pelo poder, por meio da liderança
no grupo. Algumas meninas sempre procuravam definir as ações, as formas de agir
do grupo: queriam que todos os colegas as admirassem, tentavam determinar o tipo
de relação que umas tinham com as outras, queriam definir quem deveria ser amiga
de quem, tentavam escolher as brincadeiras, entre outras.
As questões de liderança e de poder nas relações entre meninas não têm sido
enfocadas em pesquisas sobre crianças na Educação Infantil. A presente
investigação evidencia a necessidade de realização de novos estudos sobre o tema.
Constatamos também, entre as meninas, conflitos pela posse de objetos. Mais uma
vez a preocupação com aspectos referentes ao corpo e à imagem de menina
valorizada nessa turma se destacou: as meninas disputavam objetos utilizados para
maquiagem. Em um dos episódios,o conflito instaurou-se é em torno da posse do
batom.
Lúcia, Mariana, Janaína, Letícia, Karla e Raquel estão na frente do espelho
passando batom. Elas passam batom, mexem no cabelo. O batom é de Karla.
Janaína chama Karla e Raquel. Elas combinam algo e voltam com os dedos
indicadores levantados, pedindo a Lúcia, Mariana e Larissa para os cortarem. Lúcia
vira o rosto e mesmo assim Janaína passa os dedos no braço de Lúcia. E diz:
- Vocês não vão mais passar o batom. Não somos mais sua amiga.
Lúcia fala:
- Não quero passar esse batom horroroso.
Lúcia empurra Raquel, e as meninas vão falar com a professora. (Diário de campo,
27 de novembro).
Nesse episódio, quem tinha o batom nas mãos era quem mandava. Apesar de o
batom ser de Karla, era Janaína que dizia quem podia ou não usar o batom e
excluía Lúcia, Mariana e Letícia da brincadeira. Lúcia e Mariana, sempre que tinham
a posse de algum brinquedo, também escolhiam o colega com quem iam brincar, e
Karla muitas vezes ficava de fora. Karla parecia concordar com a idéia de Janaína
de não deixar as colegas brincarem com o seu batom e apoiava a sua atitude ao unir
os dedos indicadores e pedir às meninas que o cortassem. Entretanto Lúcia não
aceitava ser excluída e justificava o fato dizendo que não ia brincar mais, pois o
batom era horrível.
Em outra cena muito parecida, foi Mariana quem pediu para “cortar” e ficou rindo das
colegas que passavam o batom de Karla. Mais uma vez, as meninas pareciam
disputar a liderança da brincadeira e tentavam inferiorizar quem estava com o
batom.
Galvão (1998) analisa os conflitos gerados pela posse de um objeto entre crianças
de três a quatro anos. Nessa análise, ela observa que a disputa é gerada pela
limitação dos objetos na sala de aula e pela busca da criança na diferenciação do
eu. O objeto que está com o outro é desejado pelo “eu”. Dessa forma, ter o batom
seria ser mais menina/mulher, pois para acompanhar práticas de outras mulheres e
até mesmo a mídia, passar batom é muito importante: “[...] o objeto e a pessoa que o
detém seriam vistos como entidades fundidas” (GALVÃO, 1998, p. 164). A posse do
objeto poderia fazer com que a menina/mulher se diferenciasse do outrocomo mais
bonita.
No início da pesquisa, a professora falou à pesquisadora sobre a presença de
conflitos entre as meninas. Algumas vezes ela tentava ameniza-los com conversas,
mas havia momentos em que ela desistia de ter essa conversa com as meninas.
Ao analisarmos o ser menina na turma do Jardim II, percebemos que não há uma
uniformização nos modos de ser. Embora ressaltemos um grupo de meninas que se
preocupava em ter os cabelos compridos, em ser magra, em ter namorado e ser
admiradas pelos meninos, esses não eram os únicos modos de ser menina
presentes nessa sala. Encontramos também meninas que evidenciavam a
apropriação de outros modos de ser e de se relacionar com os colegas. Apesar de
acreditarmos em uma constituição embasada na cultura e na história, cada um
construirá a si mesmo de maneira particular e singular. Segundo Charlot (1996, p.
9), “[...] nossa história escolar, aliás, nossa história como um todo, é cem por cento
social, pois, se não fôssemos socializados, não seríamos humanos. Mas ela é ao
mesmo tempo cem por cento singular, pois minha história é diferente.”
Dessa forma, considerar todas as meninas como iguais seria negar a singularidade
e a história de cada criança. No entanto, entre as meninas percebia-se a formação
de dois grupos, definidos pelas afinidades entre elas. Isso não quer dizer que eram
fechados e que não houvesse um livre acesso entre os grupos, como, por exemplo,
quando uma menina se cansava de brincar na frente do espelho maquiando-se e ia
juntar-se às outras que estavam a brincar de casinha.
Atualmente, os estudos sobre o gênero têm apontado para a perspectiva de
analisarmos o ser menina na relação com o ser menino. Após analisarmos os modos
de ser menina na turma do Jardim II, vem-nos a pergunta sobre o que é ser menino
nesse espaço? Que papel os meninos do Jardim II assumem na relação com as
meninas e com outros colegas? Qual o seu lugar no jogo de sedução? De que
maneira a família participa na constituição do ser menino entre essas crianças?
3.2.3 MENINO PODE BRINCAR DE CASINHA? – SER MENINO NA TURMA DO
JARDIM II
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no
meu coração
Toda vez que o
adulto balança
Ele vem pra me dar
a mão.
Milton Nascimento
Nos estudos sobre gênero, é comum encontramos análises só sobre as meninas/
mulheres. Nessa trama de relações, a história nos mostra que, durante muito tempo
e em alguns casos, até hoje a mulher teve sua história e participação negada na
vida social. Dessa forma, alguns estudos sobre gênero priorizam o estudo da
menina/mulher e as marcas deixadas por anos de submissão. Entendendo que a
sociedade é dominada pelo universo masculino, não em termos de quantidade, mas
em relação à marca cultural e social, esses estudos percebem ainda fortemente
sinais dessa submissão.
Os poucos trabalhos identificados por nós, que estudam o universo masculino na
escola (CARVALHO, 2004; SAYÃO, 2002; E SANTOS, 2004) indicam duas
vertentes: a primeira, que acentua a passividade feminina e a agressividade
masculina, e a mais recente, que vê os meninos como prejudicados pelo predomínio
do feminino nesse espaço. Entretanto esses estudos procuram distanciar-se de uma
perspectiva que cristaliza formas de ser menino e buscam no contexto de cada
escola a resposta para essas diferentes formas.
Santos (2004) pesquisou o porquê do fracasso dos meninos em contraposição ao
das meninas nas escolas de ensino fundamental. Tentando fugir das estereotipias e
buscando analisar esse desempenho através das múltiplas relações tecidas no
contexto escolar, a autora observa que nesse contexto há varias formas de ser
menino e que elas vão sendo constituídas nos diversos espaços em que as crianças
circulam. A autora percebe que a escola valoriza o bom aluno, ou seja, aquele que
segue os padrões, e que alguns meninos assumem posturas antiescola, como a
agressividade, a valorização dos esportes em detrimento de outras disciplinas
escolares. Para Santos, os alunos que têm um bom rendimento apresentam
posturas mais compatíveis com as normas da escola, e suas famílias têm uma boa
relação com a instituição.
Ao finalizar, a autora sugere a possibilidade de múltiplas formas de ser menino e de
ser menina, que não precisam necessariamente corresponder aos modelos de
menina quieta e passiva e de menino pertubador.
Com base nesses estudos, pretendemos analisar as histórias singulares dos
meninos do Jardim II, observando as relações tecidas no ambiente escolar.
Entedemos que os meninos também precisam ter sua história contada até mesmo
para compreendermos as marcas deixadas por essa história nessa constituição.
O que era ser menino na turma do Jardim II? Quais eram as características desse
ser menino? Que atitudes um menino podia ou deveria ter?
Entre os meninos, observava-se uma preocupação em não participar de atividades
ou brincadeiras consideradas “de meninas”. No episódio descrito a seguir,
constatamos que Pedro parecia estar gostando de brincar de casinha com algumas
meninas, entretanto, ao perceber que estava sendo observado pela professora e
pela pesquisadora, sentiu necessidade de se justificar:
As crianças estão brincando na sala, a pesquisadora e a professora estão em uma
mesinha próximas a algumas crianças que estão brincando de casinha. Neste grupo
estão Paula, Raquel, Ana Carolina, Bianca e Pedro. Na brincadeira, Paula, Raquel e
Ana Carolina estão visitando a casa de Bianca e Pedro. A pesquisadora e a
professora estavam observando essa cena e quando Pedro percebe, olha para a
pesquisadora e a professora e diz:
- Eu tô brincando aqui, mas eu sou o pai! (Diário de campo, 10 de outubro).
Pedro foi o único a dizer qual era o seu papel na brincadeira, as meninas não
precisaram justificar-se. A brincadeira de casinha era aceitável para a menina. São
poucos os meninos que brincam de casinha; dos onze meninos da turma do Jardim
II, apenas três: Pedro, Mateus e Luiz Paulo. Observamos que esses meninos se
dispunham a brincar de casinha. Outros papéis também eram assumidos por eles,
como o de garçom na festinha para as bonecas. Apenas uma vez é que um menino,
o Mateus, se propôs ser o filho na brincadeira.
Diferente da análise do ser menina nessa turma, em que observamos as
características que mais se destacavam, investigar aspectos referentes ao ser
menino pareceu-nos pertinente enfocar o que menos sobressaía. Esse caminho
revelou-nos algo interessante: o motivo pelo qual os meninos não podiam, ou não
queriam participar das brincadeiras ditas de “meninas”.
A análise dos sentidos que atravessavam o enunciado de Pedro quando dizia: “Eu tô
brincando aqui, mas eu sou o pai” mostra-nos que ele queria dizer: “Eu estou aqui,
mas sou um menino”. Apesar de assumir um papel considerado masculino na
brincadeira, Pedro sentia necessidade de justificar para os adultos a sua
participação nessa atividade lúdica.
Para as meninas, brincar de casinha é considerado um ato “natural”, pois assumem
papéis, como o de mãe, daquela que cuida da casa e zela por ela. Entretanto, se
considerarmos que os meninos, provavelmente, também podem ser pais e
assumirão responsabilidades assim como as meninas, deveria também ser “natural”
que meninos experimentassem esse papel nas brincadeiras de casinha.
Durante toda a nossa vida, vamos assumindo vários papéis e posições5 no nosso
drama particular e assim vamos nos constituindo. Ao vivermos certas situações em
uma relação, temos a possibilidade de experimentar outros modos de ser, que são
papéis ou posições e não essências (OLIVEIRA, 2004).
Talvez venha daí o preconceito de meninos quando entram em brincadeiras ditas
“femininas”. Acredita-se em uma essência feminina e outra masculina. Entretanto,
nos esquecemos de que a variedade de situações vivenciadas pelas crianças
proporcionará um enriquecimento na constituição do sujeito.
5 Oliveira (2004) faz aproximações entre o termo jogo de papéis e a teoria do posicionamento. A noção de papel surge na obra de Vigotski. Outros autores, como Wallon e Bakthin também auxiliam na compreensão desse conceito. A teoria do posicionamento surge da produção de Harreé, Davies, Langenhove e Gillet. Para a autora, há aproximações teóricas importantes, e a teoria do posicionamento vem ampliar o conceito de jogos de papéis.
Além de não poderem/deverem brincar de casinha, meninos também não
podem/devem dançar. Assim, a recusa de meninos em participar de uma atividade
que envolve dança revela as marcas culturais presentes no universo masculino.
Para algumas pessoas, meninos não podem dançar, pois essa atividade é
considerada feminina.
Na rodinha, as crianças cantam e dançam alegremente. A professora faz gestos e
eles prestam atenção para fazer igual. Em uma determinada música, pede para as
crianças rebolarem. Alguns meninos dançam: Luiz Paulo, Mateus, e Pedro. Elvis
observa com certo ar de desprezo, como se não se importasse com a dança, mas
em alguns momentos balança os braços e canta também. Douglas nem olha para os
colegas dançando. Percebendo que alguns meninos não querem participar, a
professora diz:
- Homem também rebola, olha só o Pedro e o Luiz Paulo (Diário de Campo, 21 de
novembro).
Apesar da tentativa da professora para que os outros meninos também dançassem,
mostrando que há outros que também dançam, é difícil combater padrões traçados
pela idéia de gênero, como, por exemplo, aquilo é de menina e isso é de menino.
Apesar de Elvis demonstrar certo interesse e até ensaiar algum tipo de movimento,
os olhares dos outros colegas não permitiam que ele “rebolasse”.
Pesquisas como a de Finco (2004), que tratam de comportamentos e comentários
das crianças a respeito de os meninos não poderem dançar ou se envolver em
brincadeiras de casinha, mostram os valores embutidos pelos adultos. Para essa
autora, quando os meninos se negam a brincar de casinha ou a dançar, estão
demonstrando que se apropriam de valores que lhes foram repassados. Para Finco,
crenças, como “homem não rebola”, vão moldando comportamentos que, ao longo
do tempo, se tornam cristalizados. Segundo a autora, em nossa sociedade a
masculinidade está marcada
[...] basicamente na coragem física, no trabalho, na perseverança, na competitividade e no sucesso, elementos que expressam como os mais importantes para a constituição da masculinidade considerada hegemônica: a coragem, diretamente relacionada à força física, à energia, à ousadia, à virilidade (FINCO, 2004, p. 103).
Como já foi dito, poucos eram os meninos que conseguiam quebrar esses padrões e
brincaram com as meninas. Eles não chegavam a assumir papéis femininos, mas
lidavam muito bem com brincadeiras que os outros meninos não gostavam de
partilhar com as meninas. Os meninos que se permitiam participar das brincadeiras
ditas “femininas” eram Alex, Luiz Paulo, Yan, Mateus e Pedro. Buscando elementos
para entender a flexibilidade desses meninos, que brincavam tanto com meninas
quanto com meninos, encontramo-los nas características de suas famílias, o
primeiro grupo em que essas crianças foram inseridas.
Pedro era uma criança que gostava muito de atividades relacionadas ao teatro, à
brincadeira de fantoches. Em uma conversa com a mãe dele, a professora comentou
sobre essas características de Pedro. A mãe disse que incentiva essas atividades e
que, quando podia, sempre comprava fantoches, microfones de brinquedo. Pedro é
filho único de um casal que aparenta ter mais de quarenta anos. Ele gostava muito
de conversar com os colegas e dos jogos de faz-de-conta.
Outra criança que também se destacava pela flexibilidade nas brincadeiras era Luiz
Paulo. Ele vivia com sua mãe e os avós. Demonstrava muito carinho pela mãe
quando ela ia buscá-lo. Em uma reunião de pais, a professora destacou essa
característica de Luiz Paulo. A mãe disse que ele a ajudava bastante em casa, nos
afazeres domésticos, e que costumava comentar com ele que os dois tinham que
zelar pela casa.
Assim como no caso das meninas, existiam dois agrupamentos diferentes no grupo
dos meninos. O grupo dos citados acima tinha livre acesso às brincadeiras de
casinha e fantoche e costumava brincar com jogos matemáticos junto com as
meninas. A presença deles não era impedida por elas. Era constante dizerem que
eles podiam participar. Entretanto, esses meninos não tomavam parte nas
brincadeiras de “maquiagem”.
O outro grupo de meninos, formado por André, Cláudio, Rodrigo, Douglas e Elvis,
não participava dessas atividades. Gostava mais de correr, jogar futebol e brincar
com os pinos da sala, transformando-os em armas de brinquedo. Os dois grupos
pouco se reuniam, somente quando a professora propunha jogos coletivos, como os
jogos matemáticos.
Os meninos do segundo grupo não participavam das brincadeiras com as meninas.
Pareciam gostar de implicar com aquelas que mais se preocupavam com a beleza,
chamando-as de feias e denunciavam à professora as brigas entre elas ou algo que
estivessem fazendo escondido.
Ao pensarmos essas relações, tendemos a imaginar, à primeira vista, que elas não
são significativas para a constituição de meninas e meninos. Parece não haver
diálogo ou partilha entre eles e elas. Entretanto, o referencial adotado neste estudo
leva-nos a considerar que há interação e que esse modo de relação também
participa da constituição do eu dessas crianças. Embora não brinquem com as
meninas, esses meninos interagem com elas quando as provocam e se divertem ao
vê-las irritadas. Seria esse um tipo de relação possível em um contexto que parece
distinguir tão fortemente papéis e ações para meninos/homens e meninas/mulheres?
Três desses meninos eram admirados pelas meninas, que constantemente os
chamavam de “bonitos”. Um deles, o Cláudio, era considerado o namorado de uma
delas. Mas por que estes meninos eram admirados pelas meninas? Em um dos
episódios, Lúcia, Janaína, Mariana e Aline estavam brincando de fazer bolo, que
seria para os meninos mais bonitos da sala.
Lúcia, Janaína, Mariana e Aline brincam de fazer bolo com a areia do parquinho. A
pesquisadora pergunta:
- Para quem será a festa?
Mariana responde:
- Vai ser para o Elvis.
Pesquisadora:
Mas por que para o Elvis?
Mariana:
- É porque ele é bonito!
Aline também diz:
- Mas não é só ele não, o Cláudio também é bonito e gostosão!
(Diário de campo, 8 de novembro)
Nesse episódio, as meninas indicavam quais os meninos que consideravam bonitos.
Em outros episódios, elas também fizeram isso. Quais eram as características
desses meninos? Eram considerados “levados” pela professora, pois sempre
estavam correndo e algumas vezes desobedeciam às suas ordens. Como eles
reagiam a esse comportamento das meninas? Não percebemos entre os meninos
interesse em agradar às meninas. Pareciam estar mais interessados em implicar
com elas, chamando-as de gordas ou feias. Riam das respostas que elas davam
com cara feia.
Analisando o contexto familiar dos meninos considerados “bonitos”, percebemos que
tanto o Cláudio quanto o Elvis têm uma educação severa em casa por parte de suas
mães. A mãe de Elvis comentou que hoje estava bem mais calma com ele, não batia
mais, tentava conversar. Ela disse que Elvis era o mais levado dos seus quatro
filhos. A mãe de Cláudio também era muito rígida com ele. Na reunião de pais,
queria sempre saber se tinha feito algo de errado, para que pudesse corrigi-lo em
casa. A professora comentou que ele era muito admirado pelas meninas e a mãe
disse que não gostava disso, pois podia atrapalhar seus estudos.
Os meninos mais admirados da turma tinham uma educação familiar rígida, pois
“eram meninos”!
Em nossa sociedade, os meninos/homens têm que ser fortes e até mesmo
autoritários. Apesar de essa postura estar mudando, percebemos que em alguns
casos tal educação permanece. Diferente dos outros meninos que eram flexíveis
nas brincadeiras, esses meninos não se envolviam em brincadeiras com meninas, a
não ser nos jogos de “pique-pega”.
Entretanto, nenhum dos meninos ficava tanto tempo na frente do espelho como as
meninas, que iam se arrumar, passar batom e cantar. Já as meninas, umas mais e
outras menos, sempre passavam por lá e de alguma forma se arrumavam para ficar
“bonitas”.
A via de análise pelo gênero mostra-nos uma riqueza de momentos em que
podemos perceber a constituição do sujeito menina e menino, suas concepções e
valores, a primeira característica que lhes foi dada ao nascer. Tudo gira em torno do
gênero: as roupas do enxoval, os primeiros brinquedos, a forma como devem
comportar-se e as atividades que podem fazer. Isso vai constituindo a subjetividade
de cada um de uma forma marcante e única, em uma cultura massificadora em que
se diz que meninos têm que ser de um jeito e meninas de outro.
Segundo Sayão (2002, p. 6) encontramos no Brasil
[...] uma rica diversidade cultural, e os papéis de homens e mulheres evidenciam isso, ou seja, há diferentes formas de ser mulher e ser homem em nossa sociedade, que expressam, por exemplo, na dança, na música, no trabalho doméstico e extradoméstico, nos gestos, no meio rural ou do meio urbano, e, no caso das crianças, nas brincadeiras, principalmente.
Dessa forma, devemos ter claro que não somos naturalmente meninos/homens e
meninas mulheres, que nos construímos a partir de características adquiridas
culturalmente e que cada sociedade vai ter uma forma diferente de significar seus
sujeitos. Não podemos dizer que as características analisadas aqui são as mesmas
para todas as crianças. Há diferentes formas de expressar culturalmente e
historicamente o ser menina e o ser menino.
3.2.4 OS MENINOS E OS CONFLITOS
Ao discutirmos os conflitos na constituição das meninas turma do Jardim II,
constatamos que esses conflitos emergiam principalmente em situações de busca
da liderança do grupo. Entre os meninos, não percebemos uma preocupação tão
acentuada com a liderança do grupo e o poder.
Os conflitos geralmente aconteciam nas situações de brincadeira e envolviam os
meninos do grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis, Rodrigo) e do grupo 6 (Alex,
Luiz Paulo, Mateus, Paulo Ricardo, Pedro, Yan). Os meninos do primeiro grupo
gostavam de brincar mais de futebol e de simular lutas com armas, enquanto os do
segundo grupo preferiam brincar com jogos de montar, bingo, casinha, dominó e
teatro. Algumas vezes presenciamos situações de conflito envolvendo esses dois
grupos por conta da disputa pelo espaço.
Luiz Paulo, Pedro e Mateus estão em um canto da sala brincando com o quebra-
cabeça. Elvis passa correndo em cima das peças e logo depois Douglas também
passa. Luiz Paulo levanta e fala:
- O’ tia, olha só. Eles pisaram na pecinha.
Elvis também fala:
- Ah! Eles ficam no caminho.
A professora olha para Elvis e diz:
- A sala não é lugar de correr! Eu já falei isso para vocês!
A professora continua a preparar o cartaz e Elvis volta para o cantinho onde estava
brincando com Douglas, enquanto os outros meninos continuam a montar o quebra-
cabeça. (Diário de campo, 5 de novembro).
O tipo de brincadeira escolhido pelos meninos gerou o conflito, pois uma brincadeira
atrapalhava a outra. Douglas e Elvis estavam brincando com armas montadas com
as peças da sala e se escondiam entre as mesas. Elvis começou a correr, simulando
uma perseguição e pisou no jogo dos meninos. Logo em seguida, Douglas fez o
mesmo. O conflito foi gerado pela falta de espaço para duas brincadeiras ao mesmo
tempo. Entretanto a intervenção da professora foi no sentido de mostrar apenas que
não havia espaço para brincadeira de correr.
Galvão (1998) mostra que esse tipo de conflito pode ser motivado pela ameaça à
integridade física e pela quebra de um “espaço afetivo” que é construído pelo outro.
Analisando a cena, percebemos que as duas possibilidades de conflito coexistiram,
pois Douglas e Elvis podiam machucar os colegas, ao invés de estragar o brinquedo.
Quando montamos um quebra-cabeça sabemos do cuidado e do tempo que
perdemos para que fique pronto. Por esse motivo, Luiz Paulo, Pedro e Mateus não
gostaram da atitude de Douglas e Elvis, apesar de não terem sido atingidos pela
correria dos colegas.
Outro motivo de conflito é a posse de brinquedos. No parquinho, era permitido
brincar de futebol, entretanto, quem chegasse primeiro tinha a posse da bola e o
direito de organizar o time. Algumas vezes presenciamos conflitos entre os meninos
das duas turmas do Jardim II. Em uma das cenas eles pediram a intervenção da
professora.
Cláudio chega com a bola na mão e os meninos que estavam com ele também se
aproximam da professora. Ele reclama que os alunos da outra turma querem tomar
a bola dele, não os deixando brincar. Cláudio já tinha montado o time em que todos
os meninos eram da sua turma. A professora olha para os meninos da outra turma e
diz:
- Eles chegaram primeiro hoje; depois que eles brincarem um pouco mais, Cláudio
vai passar a bola para vocês.
Os meninos voltam a brincar e ficam constantemente perguntando se o tempo deles
acabou. (Diário de campo, 13 de novembro).
Nesse episódio, outras atitudes poderiam ter sido tomadas, como a mescla de
meninos no time. Entretanto, fazer isso geraria mais conflito, pois os meninos não
iam querer sair da brincadeira para dar a vez para o outro colega. Outra solução
talvez fosse mais bolas, para que pudessem formar mais times. Contudo,
percebíamos certa rivalidade entre os alunos das duas turmas: dificilmente eram
vistos brincando juntos e constantemente havia queixas dos meninos da sala
pesquisada de que os da outra turma estavam implicando com eles ou até mesmo
batendo neles.
No primeiro episódio, o conflito é marcado pelo espaço e pela diferença entre os
gostos na brincadeira. Generalizar que todos os meninos são iguais e que gostam
de brincar da mesma coisa é reduzir o universo infantil. Como já mencionamos, nas
relações de gênero identificamos dois agrupamentos entre os meninos e as
diferenças entre eles em suas brincadeiras geravam dispustas pelo espaço da sala.
No outro tipo de conflito, há uma afinidade na brincadeira: todos os meninos queriam
jogar futebol, porém, como as crianças eram de turmas diferentes e a escolha dos
membros do grupo, conforme ressaltam Carvalho e Rubiano (2004), se dá também
pela convivência, uma vez que quase não conviviam com as crianças da outra
turma, o que ocorria somente nos trinta minutos em que ficavam no parquinho, era
difícil aceitarem que outras crianças brincassem com eles.
Por sua vez, na relação entre meninos e meninas, a maioria dos conflitos ocorria
entre o grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis, Rodrigo), que eram admirados pelas
meninas, e o grupo 1 (Aline, Lúcia, Amanda e Janaína), que gostavam de ser
admiradas.
Conforme já comentamos, os conflitos geralmente emergiam quando os meninos
apresentavam algum tipo de comportamento que desagradava ou irritava as
meninas, como chamá-las de “feias”, contar para a professora algo de errado que
elas estivessem fazendo, por exemplo, molhar o cabelo, no banheiro. Presenciamos
mais situações de conflito entre meninos e meninas do que entre meninos.
Identificamos ainda conflitos entre a professora e os meninos que parecem
relevantes para aprofundarmos a reflexão sobre o ser menino nessa turma. Esses
conflitos ocorriam quase sempre por causa do barulho ou da bagunça que eles
causavam nos espaços. Após o lanche, as crianças sabiam que deveriam sentar-se
em fila e esperar a professora chamá-los para voltar à sala. As meninas sempre
faziam isso e ficavam brincando de “adoleta”; entretanto os meninos corriam pelo
espaço do refeitório, que era enorme, o que causava irritação na professora.
No refeitório, as crianças estão lanchando. A professora vê Elvis subindo no banco,
deixa o café que está tomando e vai em direção a ele, chamando-o. Entretanto, Elvis
parece não escutar, ou fingir não escutar, pois a professora está muito perto dele e
ele continua correndo.
A professora diz:
- Elvis! Eu estou falando com você!
Ele pára, olha para professora que pede que ele vá para a fila esperar a hora de
subir. Elvis obedece à professora. (Diário de campo, 13 de novembro).
Santos (2004), em sua pesquisa, constatou que a principal queixa dos professores
em relação aos meninos é a forma como estes se comportam diante das normas da
escola. A autora mostra que isso também acontece com as meninas, mas há maior
incidência com os meninos.
Geralmente os meninos que tentam subverter a ordem, não são bem vistos pela
escola e não têm um desempenho escolar aceitável. Elvis era um menino que não
conseguia concentrar-se por muito tempo nas atividades. Sempre que podia, estava
correndo ou convidando os colegas a correr. A professora contou-nos que ele era o
“terror” da escola, tanto que todos os funcionários o conheciam. Sua mãe já chegava
na escola perguntando o que Elvis tinha feito de errado naquele dia. A professora
tentava não reforçar essa imagem do aluno: mostrava à mãe que ele tinha
qualidades. Luíza contou-nos que isso deu resultado e que Elvis estava bem melhor,
mas, como ela mesma disse, ainda havia um longo caminho a percorrer.
Santos (2004), também mostra em sua pesquisa que a escola muitas vezes rotula
os meninos como levados e agressivos e as meninas como boazinhas e pacientes.
Dessa forma, a escola nega a multiplicidade do ser menino, como se a
agressividade lhe fosse inerente.
Os conflitos gerados nas relações mostram-nos que há diferentes motivos para que
eles ocorram: a falta de espaço, a posse do brinquedo, a disputa pela liderança e a
organização da sala. As salas de Educação Infantil são permeadas de conflitos. Não
que isso seja necessariamente sinônimo de bagunça; pode também ser sinônimo de
construção, diferenciação e afirmação do eu entre as crianças.
Esses conflitos também vão permear as relações menino e menina, pois, no
processo de diferenciação do eu, há momentos de explosão, de surpresa, de choro e
de alegria, de presença e de ausência do outro. Aos poucos, o sujeito vai
posicionando-se em relação ao outro, que nunca vai abandoná-lo. Enfim, na
perspectiva walloniana, os conflitos fazem parte do processo de constituição do eu.
O que era importante para os meninos? Para alguns, era correr, brincar com armas
de brinquedo, jogar bola e manter uma relação de conflito com as meninas. Para
outros, era brincar de fantoche, de casinha, de jogos matemáticos e ter um bom
relacionamento com as meninas.
Assim como o modo de ser menina/mulher não é algo cristalizado, o mesmo
acontece com o menino/homem, que é constituído na sua relação com os meninos,
com as meninas, com a professora e a família.
Na turma do Jardim II, havia diferentes formas de ser menino. Alguns interagiam
mais com outros meninos, outros ampliavam suas possibilidades de constituição
interagindo e brincando também com as meninas. Alguns demonstravam não
conseguir uma mobilidade muito grande nos papéis que assumiam, de seu lugar de
meninos, outros haviam tido, até o momento, uma formação que lhes possibilitava
experimentar um universo talvez mais amplo e enriquecedor, que interferia na
constituição de seus modos de ser. Do mesmo modo, encontramos em outras turmas
diferentes modos de ser menino. Ao rotulá-los como iguais, estamos negando a
história social e particular de cada um.
3.3 SER MENINO E SER MENINA: CONSTITUIÇÃO DO EU NA INFÂNCIA
As análises da constituição do eu das crianças do Jardim II apontam a relevância de
enfocar as relações de gênero nesse processo. Retomemos então a idéia de infância
e a perspectiva do desenvolvimento infantil que permeavam o nosso trabalho, para
assim termos a idéia do todo, pois, ao longo do trabalho, mostramos indícios daquilo
que seria a constituição do eu. De forma semelhante à de Morelli (1876), que, ao
analisar as obras de arte, observava detalhes que os outros especialistas ignoravam
para compreender a magnitude da pintura, ao longo das análises, procuramos
mostrar detalhes não de uma obra pronta e acabada, mas de um processo que está
a constituir-se e no qual a multiplicidade dos modos de ser delineia percursos e seres
singulares.
A infância e a sua pluralidade mostroram-nos uma rica fonte de observação. Assim,
em vez de falamos criança, falaremos de crianças, pois é dessa forma que
englobamos todos os modos de ser menino e de sermenina em diferentes grupos
culturais, etnias ou classe social.
Nesta pesquisa, apresentamos modos de ser menina e de ser menino na turma do
Jardim II, que podem ser diferentes de outros modos de ser em outros lugares. O fato
de termos encontrado meninas que lideravam e que eram muito preocupadas com a
beleza, ou meninos que se propunham participar de brincadeiras ditas “femininas”
não quer dizer que esse seja um padrão para todas as salas de Jardim II.
O desenvolvimento infantil não se dá de uma forma estável e única. Góes (2000, p.
121) fala-nos que devemos pensar em sujeitos móveis, em construção: “[...] trata-se
de algo em processo (individuação), que não pode ser concebido ou investigado
como uma cena estacionária; por outro lado, é um processo que depende das
relações sociais, que é marcado pelo papel fundamental do socius”.
É imprescindível conhecer os diferentes modos de ser criança, significando suas
reações a partir das relações que estabelecem com os seus pares e com os adultos.
Assim superaremos uma “[...] visão adultocêntrica que está impregnada em cada um
de nós. Percebendo o conhecimento das culturas da infância, como elemento
primordial para se respeitar a pluralidade de modos de ser criança[...]” (MARTINS
FILHO, 2005, p. 17).
Esses diferentes modos de ser estão imbricados em uma cultura e uma história.
Como percebemos isso na constituição do eu dessas crianças? Enfocamos os
modos de ser menina e de ser menino na turma do Jardim II e constatamos que
essa constituição se entrecruza com os outros diferentes modos de ser. Esses
outros, que são a família, a mídia, a professora, os colegas da turma, vão
configurando diferentes modos de ser menina e de ser menino em nossa sociedade
ocidental.
Os vários contextos sociais em que a criança se insere em seu desenvolvimento – o da família, o da vizinhança, o da escola, o do trabalho, o das atividades esportivas ou artísticas, o do casamento, etc. – lhe dão oportunidade para experimentar e responder a diferentes papéis. Dos conflitos que estabelece com o meio a cada momento no embate com as ações de outros indivíduos, estando todos eles, ao mesmo tempo, em um processo dialético constante de identificar-se com o parceiro diferenciar-se dele, o indivíduo forma sua conduta e personalidade (OLIVEIRA, 2004, P.70)
Nesse caminho pelo qual nos tornamos homens e mulheres, vários papéis/posições
vão nos sendo atribuídos ao longo de nossas vidas. Muitas vezes esse caminho é
cercado de conflitos oriundos de uma busca por nos diferenciarmos dos outros e de
afirmarmos o próprio eu. As práticas sociais são recursos privilegiados para o
desenvolvimento do sujeito. As interações medeiam a construção da linguagem, da
emoção, da cognição e do conhecimento. Formas de ser, de agir e de sentir vão
sendo construídas ao longo de nossa história particular.
[...] a construção social do individuo é uma história de relações com outros, através da linguagem, e de transformações do funcionamento psicológico constituídas pelas interações face-a-face e por relações sociais mais amplas (que configuram lugares sociais, formas de inserção em esferas da cultura, papéis a serem assumidos etc.) (GÓES, 2000, p. 121).
Destacamos aqui formas de ser menina e de ser menino através das interações que
constituem a trama social o que possibilita ver em cada criança um ser singular e
plural, pois, como diz Jonas Ribeiro em seu livro para crianças, intitulado “Gente que
mora dentro da gente”, somos um baleiro: “[...] descobri que todo mundo é um
baleiro. Que ao invés de balas guardamos gente dentro da gente. Gente de vários
sabores, não deixe de experimentar as pessoas de framboesa e as de hortelã. Elas
são deliciosas” (RIBEIRO, 2000, p.19)
Cada baleiro terá um colorido diferente e cada um sentirá o gosto da bala de uma
forma diferente. Assim, gente mora dentro da gente e ajuda a constituir diferentes
modos de ser menina e de ser menino, ou seja, de ser criança.
4 UM COMEÇO PARA NOVAS DESCOBERTAS
A Educação Infantil é realmente um campo de pesquisa que incita a procura do novo
e as descobertas. Nossa trajetória acadêmica e profissional, de certa forma, sempre
esteve ligada a essa modalidade de ensino, que nos vez apurar o olhar sobre as
crianças que freqüentavam e freqüentam as instituições que oferecem esse tipo de
Educação.
Ao observar o desenvolvimento infantil, pudemos perceber que, além da maturação
biológica, outros fatores contribuíam para esse desenvolvimento, e que as
interações tecidas dentro desse universo eram de grande influência nas formas de
agir e pensar das crianças.
Foi a partir daí que começou a se desenhar o objetivo desta pesquisa. Como se dá a
constituição do eu entre as crianças da Educação Infantil. Retomando esse objetivo
no momento final deste trabalho, percebemos que as crianças nos mostraram qual o
melhor recorte a ser feito para que pudéssemos compreender em parte essa
constituição.
Analisar como se davam esses processos fez com que buscássemos uma vertente
que não deixasse de lado a história da infância, pois, para entendermos a criança,
hoje, precisamos compreender como a nossa sociedade a percebia e a percebe e
como cria mecanismos para acelerar ou respeitar o seu desenvolvimento.
Nesta pesquisa, o desenvolvimento infantil foi visto como algo fortemente
influenciado pela história e pela cultura. A constituição do eu foi analisada a partir da
relação com o outro, parceiro perpétuo do eu, significando seus modos de ser e de
sentir. Várias pesquisas serviram de base para compreendermos quais os caminhos
a seguir para estudar a constituição do eu. A subjetividade foi discutida a partir de
uma base teórica que respeitasse o social e o histórico das crianças, mostrando-nos
a importância das relações tecidas no universo infantil.
Adentrar no universo infantil a partir da escola significa respeitar o ambiente de
trabalho dos profissionais que ali estão e, o mais importante, respeitar o espaço das
crianças, sabendo observar e retirar-se nos momentos em que a presença do
pesquisador se torna incômoda para a criança. Observar o cotidiano de uma sala de
aula sem alterar o ritmo e sem inibir as formas de expressão das crianças não foi
tarefa fácil. Mas, aos poucos, as próprias crianças inseriram-nos no contexto e nos
mostraram o caminho a seguir para compreender a constituição do eu entre elas.
Dessa forma, passamos a observar a interação entre e com as crianças. Nessa
interação, grupos eram formados e diferentes dinâmicas de convivência eram
traçadas por elas. A análise a partir dos grupos não significou a categorização prévia
de crianças, mas, sim, de características que as faziam reunir-se em torno de uma
brincadeira ou atividade. Como dissemos anteriormente, foram as crianças que nos
mostraram qual o melhor caminho para pensar a constituição do eu.
Ao analisarmos a composição dos grupos e o que os unia, percebemos
características marcantes da constituição do ser menina e do ser menino. Foram as
crianças que sutilmente nos mostraram, através de suas brincadeiras e da forma
como se organizavam, que as relações de gênero permeavam de forma marcante
suas atitudes e formas de pensar.
Entender o gênero como a relação entre meninas e meninos e os relacionamentos
como constituidores de identidades torna-se de fundamental importância para
compreendermos como as crianças se movimentam em diferentes papéis, vivenciam
contradições, desconstroem modelos e recriam seus significados.
Nesse vaivém do desenvolvimento, na constituição do ser menina e do ser menino,
os conflitos eram parte integrante do processo, revelando que esses momentos
eram espaços de renovação. Constatamos que, nessas interações, as crianças
vivenciavam diferentes papéis e se constituíam como seres singulares. Cada um
interagia e vivenciava o mesmo momento de uma forma diferente, trazendo consigo
marcas culturais e experiências de outros momentos vivenciados.
A partir da análise dos resultados, percebemos que a escola é parte importante
nesse processo, pois contribui para essa constituição, reforçando práticas culturais
ou problematizando determinadas e diversas formas de ser menina e menino.
Acreditamos que a escola pode contribuir para (re)significar práticas culturais que
negam a infância e aceleram o crescimento das crianças para o mundo adulto do
consumo. A escola pode criar momentos em que as crianças possam conhecer
diversas expressões culturais que valorizem o ser criança, e não expressões
culturais que revelem as relações de gênero de uma forma pejorativa,
principalmente para as meninas, que sofrem muito mais com a imposição da mídia
em favor de um determinado padrão de beleza.
O professor de Educação Infantil deve estar atento às diferentes formas de
expressão do ser menina e do ser menino, mediando essas situações sem reforçar
estereotipias, e sim propiciando às crianças um espaço no qual elas possam
vivenciar a infância de uma forma que lhes seja possível expressar seus desejos e
suas escolhas.
Mediar não é só estar perto ou acompanhar. É interagir e propiciar às crianças o
avanço em seus conhecimentos sobre as formas de ser menina e de ser menino,
longe de preconceitos que caracterizem as meninas como “boazinhas” e os meninos
como “levados”, como se esses conceitos fossem naturais. A presente pesquisa
questiona essa “naturalização” da infância e acredita que valores e atributos
culturais participam da constituição das crianças, como seres singulares.
Assim, os profissionais da Educação Infantil devem despir-se de concepções que
percebem as crianças como “pequenas mulheres” ou “pequenos homens” e passar a
ver a criança em suas diferentes formas de ser menino e de ser menina,
desconstruindo concepções e valores que vêem a identidade de gênero de forma
hierarquizada, ampliando seus conceitos sobre gênero e infância.
As instituições de Educação Infantil são espaços ricos em interação e podem
proporcionar às crianças, meninas e meninos, e adultos, a ampliação de seus
conhecimentos e valores, a partir das várias vivências que coexistem dentro desse
espaço, como descreve Ruth Rocha em seu livro “Faca sem ponta, galinha sem pé”
(ROCHA, 1999)
Nesse livro, dois irmãos, Pedro e Joana, sofrem com os estereótipos, tais como os
de que as meninas não podem brincar com meninos e de que os meninos não
podem chorar, e acabam reproduzindo em suas brincadeiras e atividades esses
preconceitos.
Um dia, como em um passe de mágica, eles passam embaixo de um arco-íris e
trocam de lugar: Joana passa a ser chamada de Joano e Pedro, de Pêdra. Muitas
confusões acontecem, pois os dois já não sabem mais o que podem e o que não
podem fazer, já que meninos e meninas não compartilham as mesmas atividades.
Após muita confusão, no final da história eles percebem que podem fazer as coisas
juntos, sem precisar categorizar o que é de menina e o que é de menino.
Assim como na história, meninas e meninos muitas vezes não vivenciam outras
práticas porque não lhes é permitido, por ser menina ou menino. As crianças devem
ter o direito de expressar-se e assumir diferentes papéis. Talvez não devamos
pensar em ações ou papéis apropriados para meninas ou meninos, e sim em ações
ou papéis apropriados para as crianças.
Entendemos que para nós, profissionais da Educação Infantil, fica deste estudo a
necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre como concebemos as
relações de gênero na sociedade como um todo e na escola em particular, e sobre
qual imagem de menina, de menino e de criança atravessa nossas práticas
educativas.
Sabemos que ações como se fantasiar com as roupas dos pais, desempenhar
durante as brincadeiras de faz-de-conta, papéis que fazem parte do mundo adulto
sempre permearam o imaginário infantil, pois é através da experimentação que a
criança vivência desejos, vontades e sonhos. Entretanto nos preocupa pensar que
padrões impostos pelo mundo adulto estejam privando as crianças de conhecer
novas possibilidades do belo, do brincar, do fazer amigos. Nesse contexto, para as
crianças, cria-se a idéia de que para “ser feliz” tem se que ter os cabelos da atriz de
novela, a sandália do herói do programa de televisão, ouvir a música da
apresentadora de um determinado programa infantil. Mais uma vez estamos
negando a infância e negando às crianças o acesso à cultura, não a padronizada
pelos meios de comunicação, mas aquela que está na sua cidade, na sua rua, no
encontro com os mais velhos, enfim, nas múltiplas possibilidades de interações entre
crianças e adultos e entre as próprias crianças.
Dessa forma, deixamos em aberto as novas possibilidades de descobertas que o
contexto da Educação Infantil propicia como se fosse um caleidoscópio que, ao ser
mudado de posição, muda a forma do seu desenho. Assim é a Educação Infantil,
que acompanha e produz mudanças importantes no desenvolvimento infantil,
instigando-nos a pesquisar esse universo sempre.
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WALLON. H. Psicologia e educação da infância . Lisboa: Editorial Estampa, 1980.
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ANEXO
ANEXO A
Faca Sem Ponta Galinha Sem Pé - Ruth rocha Esta a história de dois irmãos. Com eles aconteceu uma coisa muito esquisita, muito rara e difícil de acreditar. Pois eram dois irmãos: um menino, o Pedro. E uma menina a Joana. Eles viviam com os pais, seu Setúbal e dona Brites. E os problemas que eles tinham não eram diferentes dos problemas de todos os irmãos. Por exemplo... Pedro pegava a bola para ir jogar futebol, lá vinha Joana: - Eu também quero jogar! Pedro danava: - Onde é que já se viu mulher jogar futebol? - Em todo lugar. - Eu é que não vou levar você! O que é que meus amigos vão dizer? - E eu estou ligando pro que os seus amigos vão dizer? - Pois eu estou. Não levo e pronto! Joana ficava furiosa, batia as portas, chutava o que encontrasse no chão, fazia cara feia. Dona Brites ficava zangada: - Que é isso, menina? Que comportamento! Menina tem que ser delicada, boazinha... - Boazinha? Pois sim! - respondia Joana de maus modos. Ás vezes Pedro chegava da rua todo esfolado, chorando. - Que é isso? - Espantava-se seu Setúbal. - O que foi que aconteceu? - Foi o Carlão! foi o besta do Carlão! Me pegou na esquina - choramingava Pedro. Seu Setúbal ficava furioso: - E você? O que foi que você fez? Por acaso fugiu? Filho meu não foge! Volte pra lá já e bata nele também. E vamos parar com essa choradeira! Homem não chora! Pedrinho desapontava: - Eu estou chorando é de raiva! É de ódio! Joana se metia : - Homem é assim mesmo! Quando a gente chora é porque é mole, é boba, é covarde. Agora, homem quando chora é de ódio... Pedro ficava furioso, queria bater na irmã. Dona Brites entrava no meio: - Que é isso, menino? Numa menina não se bate nem com uma flor... Pedro ia embora, pisando duro: - Só com um pedaço de pau... E as brigas se repetiam sempre. Quando Joana subia na árvore para apanhar goiaba, Pedro implicava: - Mãe, olha a Joana encarapitada na árvore. Parece um moleque! - Moleque é o seu nariz! - gritava Joana. - Você toda hora está em cima de árvore, por que é que eu não posso? - Não pode porque é mulher! Por isso é que não pode. E não adianta vir com conversa mole, não! Mulher é mulher, homem é homem! Quando Pedro botava camisa nova e se olhava no espelho, Joana já implicava: - Olha a mulherzinha! Como está vaidoso... Ou então quando Pedro ficava comovido com alguma coisa, como filme triste, que tem menininha sozinha, sem ninguém para cuidar dela, Joana já começava a caçoar: - Vai chorar, é? E agora é de ódio, è? Mas nas outras coisas eles eram bem amigos:
Jogavam cartas, viam televisão juntos, iam ao cinema... Um dia...Tinha chovido muito e os dois vinham voltando da escola. De repente, Pedro gritou: - Olha só o arco-íris! - É mesmo! - disse Joana. - que grandão! Que bonito! - Puxa! - espantou-se Pedro. - Parece que está pertinho! Vamos passar por baixo? Vamos! Joana se riu: - Tia Edith disse que se a gente passar por baixo do arco-íris, antes do meio-dia, homem vira mulher e mulher vira homem... - Que besteira! - disse Pedro. - Quem é que acredita numa coisa dessas? E os dois se deram as mãos e correram, correram, na direção do arco-íris. E de repente pararam espantados.Eles estavam se sentindo esquisitíssimos! - O que aconteceu? - perguntou Joana. E a voz dela saiu diferente, parece que mais grossa... - Sei lá! - disse Pedro. Mas parou de pressa, porque ele estava falando direitinho como uma menina. - Aconteceu comigo uma coisa muito estranha... - resmungou Joana. - Comigo também... - reclamou Pedro. E os dois se olharam muito espantados... E correram para casa. Vocês podem imaginar o reboliço que foi na casa deles quando contaram o que tinha acontecido. No começo ninguém estava acreditando. - Que brincadeira mais idiota! - falou seu Setúbal. - Vamos parar com isso? - disse dona Brites. Mas depois tiveram que se convencer... E naquele dia, no jantar, ninguém brigou para saber se menina podia ou não podia fazer isso ou aquilo. Afinal ninguém sabia direito quem era quem... O pai e mãe de Joana e Pedro ficaram conversando até de madrugada. - Acho melhor nem contarmos pra ninguém - dizia seu Setúbal. - Mas como é que vai ser? - argumentava dona Brites. - Todo mundo vai notar! E podem até pensar coisa pior... - E o nome deles? - perguntou seu Setúbal. - Como é que fica? - É mesmo! - choramingou dona Brites. - A Joaninha, meu Deus, que tinha o nome da minha mãe. Que Deus a tenha em sua glória, agora vai ter que se chamar Joano! Joano, Setúbal! Isso é lá nome de gente? E o Pedro, que horror! Vai ter que se chamar Pêdra. Pode uma coisa dessas? - E tem um outro problema em que estou pensando - disse seu Setúbal. - Está bem que a gente vista o Joano de homem... afinal as mulheres hoje em dia só querem se vestir de homem... mas vestir a Pêdra de mulher... não sei, não! E se ele, quer dizer, ela, virar homem outra vez? - Ah, sei lá! - disse dona Brites. - Jà nem sei o que pensar. Acho melhor a gente ir dormir... No dia seguinte o problema da roupa foi resolvido com facilidade. Foi só vestir calça de brim nos dois, mais camiseta e tênis. Joano e Pêdra estavam brincando e rindo, como se nada estivesse acontecido, disfarçando para que os pais não se preocupassem ainda mais do que já estavam preocupados. Mas assim que saíram de casa ficaram sérios. Eles não sabiam como é que iam fazer na escola. Logo na esquina, Pedro, quer dizer Pêdra, que agora era menina, deu o maior chute numa tampinha de cerveja que estava no chão. - Vamos parar co isso? - disse Joano. - Menina não faz essas coisas. - E eu sou menina? - reclamou Pêdra. - É, não é?
- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar papagaio, de pular sela... - Ué, eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que menina não podia - reclamou Joano. - Mas é que todo mundo diz isso - disse Pêdra. - que menina não joga futebol, que mulher é dentro de casa... - Pois é, agora agüenta! Não pode, não pode, não pode... - Ah, mas agora eu posse chorar a vontade, posse dizer fita, posso ter medo de escuro... Quando tiver que ir buscar água de noite você é que tem que ir... e quando eu quiser ver novela ninguém vai me chatear... E eles ficaram ali, uma porção de tempo, discutindo a situação. De repente Pêdra lembrou-se de que precisava ir para o colégio. - Sabe de uma coisa? - disse Joano. - Eu é que não vou para escola desse jeito ridículo. - Não sei por que ridículo. Ridículo estou eu, aqui, virado em mulher. - E você quer ir para escola? - perguntou Joano. - Eu não - respondeu Pêdra. E sentou num murinho, muito desanimada. Joano sentou também. - Sabe de uma coisa? - disse Pêdra. - Nós temos é que encontrar o arco-íris pra passar por baixo outra vez. - Mas não está nem chovendo - choramingou Joano, que agora era menino mas bem que estava com vontade de chorar... - É, mas se a gente não procurar não vai encontrar. E se não encontrar vai ficar desse jeito o resto da vida! Então Joano tomou uma decisão: - Olha aqui. Eu vou mas não vou levar você, não! Vou é sozinho! Menina só serve pra atrapalhar. Pêdra ficou danada da vida: - Ah, é? Então vire-se! Eu também vou procurar sozinha e não quero conversa com você. Vamos ver quem encontra primeiro. E cada um foi para o seu lado, sem nem olhar para trás. Os dois rodaram o dia inteirinho, mas não tinha caído nem uma chovinha, de maneira que não havia jeito de encontrar o arco-íris. E no outro dia foi a mesmo coisa, e no outro, e no outro. E em casa as coisas estavam piorando cada vez mais. Um implicava com o outro, caçoava, proibia: - Menino não pode! - Menina não faz! - Onde é que já se viu? - Coisa mais feia! - Vou contar pra mamãe! Se o arco-íris não aparecesse logo... Até que um dia eles acordaram e estava chovendo a maior chuva que já tinha visto. Trovão, relâmpagos, água que não acabava mais. Os dois ficaram torcendo para a chuva passar. E quando passou, saíram, como sempre um para cada lado, procurando o arco-íris. Joano chegou para lá da escola, num lugar onde ele nunca tinha ido. E já vinha voltando, desanimado, quando viu, bem na sua frente, o arco-íris. Joano correu e passou por baixo. Mas não aconteceu nada. Joano continuava Joano... Com Pêdra aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Andou, andou, até fora da cidade. E só quando vinha voltando é que encontrou o arco-íris,
passou por baixo e nada! Na porta de casa os dois se encontraram: - Nada, hein? - perguntou Pêdra. - Nadinha! - respondeu Joano. - Que será que aconteceu? - disse um. - Que será que não aconteceu? - disse o outro. E os dois se sentaram - tão amigos! - e contaram, um ao outro, como é que eles tinham passado por baixo e nada tinha acontecido... De repente Pêdra se levantou animada: - Espere um pouco! A tia Edith disse que tinha que passar embaixo do arco-íris antes do meio-dia, não foi? Então, pra desvirar tem que ser Depois do meio-dia, é ou não é? - É mesmo! - disse Joano. - E tem mais uma coisa. Pra mudar de sexo nós passamos de lá pra cá, não foi? A gente vinha voltando da escola, não vinha? Pois agora a gente tem que passar daqui pra lá, pra desvirar. Pêdra ficou olhando para Joano: - Sabe que você é bem esperta para uma menina? Joano respondeu: - Você também é bem esperta... pra uma menina. Os dois se riram como há muito tempo não faziam. E juntos saíram á procura do arco-íris. E de repente lá estava ele. Grande, brilhante, colorido, como um desafio. Joano e Pêdra deram-se as mãos. E correram, juntos, em direção do arco-íris. E finalmente perceberam que alguma coisa, novamente, tinha acontecido. Então riram, se abraçaram e abraçados começaram a voltar para casa. Então Joana viu uma tampinha de cerveja na calçada. Correu e chutou a tampinha para Pedro. Pedro devolveu e os dois foram jogando tampinha até em casa...
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