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Uso da calorimetria isotérmica na investigação de p roblemas
de desempenho de sistemas cimentícios
Denise Antunes da Silva (1); Lawrence Roberts (2); Humberto R. Benini (3)
(1) W.R. Grace & Co., denise.a.silva@grace.com
(2) Roberts Consulting Group Ltd.,
Roberts_Consulting_Group@verizon.net
(3) Grace Brasil Ltda., humberto.r.benini@grace.com
RESUMO
Apesar do conhecimento sobre o comportamento de sistemas cimentícios ter
avançado de forma importante nas últimas décadas, ainda há uma grande lacuna no
entendimento dos mecanismos fundamentais que regem a interação entre fases do
cimento, adições minerais e aditivos químicos. Essa falta de entendimento pode
levar à tomada de decisões inadequadas em campo, resultando em problemas de
desempenho dos produtos cimentícios, especialmente no estado fresco. Este artigo
combina a apresentação de exemplos de problemas típicos de aplicação de
materiais cimentícios em campo com informações disponíveis na literatura,
objetivando demonstrar a utilidade da calorimetria isotérmica como principal
ferramenta de investigação e de prevenção de tais problemas. Demonstra-se que a
sub-sulfatação de argamassas e concretos, que pode ser agravada pela presença
de adições minerais e aditivos químicos, e a ocorrência de pré-hidratação do
cimento, podem ser responsáveis por problemas de pega, comportamento reológico
e desenvolvimento de resistência dos sistemas cimentícios.
Palavras-chave: calorimetria isotérmica, balanço de sulfatos, interação
cimento/aditivos, pré-hidratação do cimento.
Use of isothermal calorimetry to investigate perfor mance
issues of cementitious systems
ABSTRACT
The knowledge on the performance of cementitious systems, such as mortars
and concretes, has importantly progressed over the past several decades. However,
persisting gaps on the understanding of fundamental interactions between key
elements of the systems (cement, mineral additions, and chemical admixtures) and
on the impact of field conditions such as temperature and mixing energy are
responsible for the occurrence of several performance issues in actual systems. This
article combines the presentation of examples on typical performance problems
observed in the field with information available in the literature, aiming to demonstrate
the value of isothermal calorimetry to investigate and prevent such problems. It is
shown that undersulfated systems are the root cause of many problems, and that the
presence of chemical admixtures and mineral additions can trigger or worsen the
problem. In addition, it is shown how setting times, rheologic behavior, and strength
development can be severely affected by cement pre-hydration in the presence of
chemical admixtures.
Keywords: isothermal calorimetry, sulfate balance, cement/chemicals
interaction, cement pre-hydration.
INTRODUÇÃO
A complexidade das misturas à base de cimento, em termos de diversidade das
matérias-primas e dos materiais constituintes, é bem maior nos dias de hoje do que
no passado. A tendência é de que essa complexidade se intensifique ainda mais em
conseqüência das medidas reguladoras de emissões poluentes sendo praticadas em
muitos países, levando a uma maior utilização de adições minerais de diversas
fontes em substituição parcial ao cimento Portland e à utilização de combustíveis
alternativos na produção dos cimentos. A escassez de agregados naturais de boa
qualidade, e o conseqüente maior uso de agregados contaminados ou agregados
artificiais, é outro fator a contribuir para o aumento da complexidade. Finalmente,
com o aumento da complexidade dos sistemas, a presença de aditivos químicos de
diversas funções em argamassas e concretos se torna cada vez mais necessária, e
sua presença pode aumentar a sensibilidade desses sistemas às condições de
aplicação.
Quanto maior a complexidade dos sistemas cimentícios, maior é o número de
variáveis que afeta o desempenho desses sistemas, e mais difícil fica o controle de
qualidade na sua produção. Diferenças de temperatura e energias de mistura, por
exemplo, podem ter um efeito muito mais intenso do que o observado no passado.
Fica mais provável, então, a ocorrência de problemas de desempenho, como perda
inesperada de trabalhabilidade, aumento excessivo dos tempos de pega e
desenvolvimento inadequado de resistências(1).
Dentre as técnicas de controle de qualidade disponíveis ao produtor de
materiais à base de cimento, a calorimetria isotérmica se destaca por ser uma
ferramenta precisa e que permite, via simulação de condições reais de aplicação,
detectar potenciais problemas de desempenho dos sistemas que podem ocorrer em
campo. Isso se tornou possível especialmente nos últimos anos, em função das
melhorias na sensibilidade dos equipamentos e na conveniência de uso. Hoje, a
calorimetria isotérmica permite acompanhar o consumo das fases sulfáticas de uma
forma que não era possível anteriormente sem que fosse necessário o uso de
técnicas complexas de extração da água de poro de análise química. A técnica
permite demonstrar que o consumo de sulfatos pode ser muito mais rápido do que
antes se imaginava, especialmente em sistemas que contenham certos aditivos
químicos(2).
Como demonstrado por Sandberg e Walsh(3), a técnica pode ser utilizada para
a seleção de materiais para novas misturas cimentícias (concreto projetado, no caso
do estudo dos autores), e também para diagnóstico de problemas de desempenho.
Através da descrição de exemplos, este artigo demonstra a importância da
utilização da calorimetria isotérmica como ferramenta de diagnósticos de problemas
de desempenho de sistemas cimentícios, e como ferramenta de controle de
qualidade para os produtores intermediários e finais de argamassas e concretos.
CALORIMETRIA ISOTÉRMICA DO CIMENTO PORTLAND
A Figura 1 mostra uma curva típica de liberação de calor de hidratação de um
cimento Portland comum. Ao entrar em contato com a água, o cimento
imediatamente inicia reações de dissolução das fases mais ativas e formação de
alguns produtos de hidratação. Esta hidratação inicial, indicada pela letra “A” na
Figura 1, ocorre nos primeiros minutos após a mistura com água e é devida,
principalmente, às reações de hidratação das fases aluminato do cimento. Na
presença de quantidade suficiente de íons sulfato na água de amassamento, os
aluminatos reagem para formar principalmente etringita (trissulfoaluminato de cálcio
hidratado). A taxa de hidratação decresce rapidamente levando à fase de indução,
indicada pela letra “B” na Figura 1. A formação da etringita previne a ocorrência de
pega instantânea, que ocorreria na ausência de quantidade suficiente de sulfatos no
sistema devida à formação de aluminatos de cálcio hidratado. Após algum tempo
(normalmente de 1 a 3 horas em cimentos Portland puros), a hidratação da alita
(forma impura do silicato tricálcico ou C3S) se intensifica, e uma liberação de calor
importante ocorre, formando aquilo que será o principal pico de hidratação do
cimento, indicado pela letra “C”na figura. A pega do cimento normalmente ocorre na
parte inicial desse pico. A hidratação da alita e do aluminato continua de forma
simultânea no sistema, com formação de produtos de hidratação como portlandita
(hidróxido de cálcio), C-S-H e sulfoaluminatos de cálcio hidratados, até que o
sistema não tenha mais sulfatos solúveis para alimentar as reações de hidratação.
Neste momento, um novo pico de calor, indicado pela letra “D” na Figura 1, ocorre
devido à formação de aluminatos de cálcio hidratados no sistema. A intensidade
desse pico irá depender da reatividade do aluminato anidro ainda presente no
sistema.
3. BALANÇO DE SULFATO
O intervalo de tempo decorrido entre o máximo do pico de hidratação da alita
(indicado pela letra “D” na Figura 1) e o momento de extinção do sulfato (indicado
pela letra “E” na Figura 1) é um importante indicador do comportamento do cimento
em condições reais de aplicação, como no preparo de argamassas e concretos em
campo. Quando o pico “F” ocorrer antes ou durante o pico “D” (como mostrado na
curva verde da Figura 2) são esperados problemas relacionados com a pega, tais
como retardo ou aceleração, e perda de trabalhabilidade em concretos e
argamassas, podendo resultar em grandes prejuízos financeiros para a indústria(1). A
temperatura da mistura, a energia das operações de mistura, transporte e
lançamento, e também a presença de aditivos químicos são fatores que,
isoladamente ou em conjunto, podem acelerar o pico “F”.
Figura 1 – Curva típica de evolução de calor de hidratação de cimento Portland
(Fonte: ASTM C1679-09(4)). Legenda: (A) pico de calor inicial associado à dissolução
e hidratação inicial do cimento; (B) período de indução ou dormência, associado com
pouca liberação de calor em fase de hidratação controlada e lenta; (C) pico principal
de hidratação, associado principalmente com as reações de hidratação da alita que
contribuem para pega e desenvolvimento de resistências iniciais, com máximo em
(D); (E) ponto de extinção de sulfatos solúveis, seguido pela reação acelerada do
aluminato de cálcio (pico em F).
A detecção do ponto de extinção do sulfato (indicado pela letra “E” na Figura 1)
pode ser muito difícil em alguns cimentos, e especialmente na presença de adições
minerais e aditivos químicos. Para facilitar a localização desse ponto, deve-se fazer
uma adição de gradual sulfato de cálcio solúvel ao sistema (como gipsita ou hemi-
hidrato, por exemplo) em testes de calorimetria, como mostra a Figura 2. No sistema
exemplificado nesta figura, o teor ótimo de SO3 a ser adicionado para um balanço de
sulfatos ótimo, além daquele oriundo da produção do cimento, é de 1,0% (curva
vermelha).
Apesar do objetivo principal da adição de sulfatos à produção de cimento ser o
de controlar as reações de hidratação dos aluminatos (principalmente o C3A), sabe-
se que a hidratação dos silicatos pode ser significativamente afetada pelo teor de
sulfatos. De fato, Lerch(5) demonstrou, ainda em 1946 e usando calorimetria
Idade de hidratação
Flu
xo d
e ca
lor
(mW
/g
isotérmica, que o pico de liberação de calor atribuído à hidratação do silicato
tricálcico (alita ou C3S) e’ dependente não somente da quantidade e características
dessa fase no cimento, mas também da presença de diferentes teores de sulfatos
solúveis, como mostra a Figura 3. Quando há quantidade de sulfato solúvel
suficiente para as reações com o aluminato, o pico de hidratação do silicato
apresenta sua máxima intensidade, como indicado pelas flechas vermelhas nas
curvas 4 e 5 da Figura 3. Entretanto, em condições de sub-sulfatação (ou seja,
quando há “falta” de sulfatos solúveis no sistema), a intensidade do pico de
hidratação do silicato é inferior à máxima, como mostrado para as curvas 1, 2 e 3 na
mesma figura. Nesses casos, problemas relacionados a longos tempos de pega e
rápida perda de trabalhabilidade de argamassas e concretos são comuns. Além
disso, as resistências podem não se desenvolver de forma adequada após a pega(1).
Tenoutasse(6) confirmou os mesmos resultados de Lerch(5) em sistemas compostos
de C3S, C3A e gipsita (Figura 4).
Figura 2 – Exemplo do efeito da adição de sulfatos solúveis (expressos em %
SO3) em pasta de cimento Portland puro (água/cimento = 0,45) para identificação do
ponto de extinção de sulfatos por calorimetria isotérmica, indicado em cada curva
(Fonte: ASTM C1679-09(4)).
A Figura 5 ilustra, de forma esquemática, os fatores que definem o balanço de
sulfato de um dado sistema cimentício. Os parâmetros básicos do balanço são a
atividade dos aluminatos presentes e a disponibilidade de sulfatos solúveis. Esses
parâmetros, por sua vez, são influenciados por uma série de fatores relacionados às
características do cimento, à presença de outros materiais no sistema (adições
minerais e aditivos químicos) e às condições de preparo e aplicação da mistura. As
Idade de hidratação
Flu
xo
de
calo
r (m
W/g
reações entre sulfatos e aluminatos são associadas aos problemas mais comuns de
aplicação de sistemas cimentícios em campo.
Figura 3 – Curvas de calorimetria isotérmica mostrando a supressão da
hidratação do silicato em cimento Portland em condições de sub-saturação de SO3
(curvas na parte esquerda da figura). Os picos de hidratação do silicato são
indicados em cada uma das cinco curvas (figura adaptada a partir de Lerch(5) e
publicada por Cheung et al(7)).
Figura 4 – Curvas de calorimetria isotérmica mostrando a supressão da
hidratação do silicato em misturas de C3S, C3A e gipsita (G) em condições de sub-
saturação de SO3 (G ≤ 4%) (figura adaptada a partir de Tenoutasse(6) e publicada
por Cheung et al(7)).
Idade de hidratação (h)
Flu
xo d
e ca
lor
(Cal
/(g.
h))
Idade de hidratação
Flu
xo
de
calo
r (m
W/g
cim
ento
)
Figura 5 – Fatores que afetam o balanço de sulfato dos cimentos.
Uma alta atividade dos aluminatos não compensada pela presença de
quantidade suficiente de sulfatos solúveis pode causar pega instantânea devida à
formação de aluminatos de cálcio hidratados. Por outro lado, um excesso de sulfatos
solúveis no sistema que não sejam consumidos pelas reações de hidratação dos
aluminatos pode levar à pega falsa, causada pela formação de gipsita ou sulfato de
cálcio di-hidratado no sistema. A Figura 6 ilustra essas diferentes situações em
função da forma de sulfato presente no sistema. Nas situações de equilíbrio, em que
há presença suficiente de sulfatos para reagir com os aluminatos, a hidratação é
mais controlada, e produz etringita. Como seria de se esperar, em qualquer situação
diferente do equilíbrio, as propriedades de argamassas e concreto serão
negativamente afetadas, especialmente no estado fresco.
A disponibilidade de íons sulfatos para consumo pelas reações de hidratação
dos aluminatos depende da quantidade e da forma de sulfatos adicionados ao
cimento. Por exemplo, cimentos produzidos em moinhos de bolas normalmente
apresentam alguma desidratação da gipsita em função das altas temperaturas de
moagem, podendo resultar em quantidades importantes de sulfato de cálcio hemi-
hidratado, que e’ uma fase de dissolução mais rápida que a gipsita. Na ausência de
quantidade suficiente de aluminatos reativos para consumo desses íons sulfato,
haverá a formação de gipsita, gerando pega falsa. Por outro lado, em sistemas com
alto teor de aluminatos ativos (alto teor de C3A ou presença de adições minerais que
contenham aluminatos ativos, como metacaulinita, escória de alto forno, pozolanas
naturais e cinzas volantes), haverá a formação de aluminatos de cálcio hidratados se
não houver quantidade suficiente de íons sulfatos disponível, levando à pega
instantânea (perda de consistência imediata e permanente). Da mesma forma, o
balanço pode ser alterado na presença de aditivos químicos que modifiquem a taxa
de dissolução dos sulfatos e aluminatos, ou que causem dispersão das partículas de
cimento aumentando, assim, a área superficial exposta à água. É importante
ressaltar que a solubilidade e reatividade de todas as fases presentes no sistema
são influenciadas, de forma importante, pela temperatura: em temperaturas mais
altas, normalmente há aumento da solubilidade das fases (com exceção do sulfato
de cálcio) com aceleração das taxas de reação. Essas alterações podem alterar o
balanço do sistema e, por conseqüência, as taxas de enrijecimento e os tempos de
pega.
Em cimentos com baixo teor de C3A e, conseqüentemente, alto teor de C4AF, a
pega instantânea normalmente não ocorre, mas uma rápida hidratação do C4AF e’
possível, levando a uma hidratação lenta dos silicatos.
Dados ainda não publicados gerados em nossos laboratórios indicam que
interações indesejáveis entre cimento e aditivos químicos podem estar relacionadas
a um balanço de sulfatos inadequado, o que resulta em uma falta de controle das
reações dos aluminatos, e que tais reações são prováveis de ocorrerem em campo
se o pico de consumo do sulfato ocorrer antes que o ponto máximo do pico de
hidratação do silicato em um sistema sem aditivos químicos. O presente artigo
apresenta alguns desses dados na forma de estudos de caso, com objetivo de
fornecer informações básicas a projetistas e produtores de sistemas cimentícios para
que exerçam adequado controle de qualidade.
Figura 6 – Esquema ilustrativo do balanço de sulfato e impacto na consistência
da mistura cimentícia (Fonte: Roberts(2)).
4. EXEMPLO 1: Cimento sub-sulfatado
Como já mencionado, uma quantidade insuficiente de sulfatos resulta em um
cimento de comportamento pouco robusto frente às diferentes condições de
aplicação, sendo esperados problemas relacionados à pega, trabalhabilidade e
desenvolvimento de resistências de argamassas e concretos em campo. A Figura 7
exemplifica esse problema em amostras de um cimento Portland comum disponível
no mercado norte-americano que estava em total conformidade com as normas
técnicas vigentes, mas que apresentava comportamento variado quando utilizado
em campo, especialmente na presença de aditivos químicos.
A Figura 7(a) mostra as curvas de calorimetria isotérmica do cimento produzido
em cinco datas diferentes pela fábrica de cimento, hidratando em água pura (relação
água/cimento = 0,5) a 23oC. Como se pode observar, há pouca diferença entre as
curvas Figura 7(a), sugerindo que a variabilidade na produção desse cimento é
pequena. Já a Figura 7(b) mostra as curvas de emissão de calor dos mesmos
cimentos, desta vez hidratando em água que contém um dispersante químico base
policarboxilato. Como se pode observar, o efeito de retardo do aditivo é
extremamente variado. Isso se deve ao fato do cimento apresentar teor de sulfato
inferior ao necessário para um comportamento robusto.
(a)
(b)
Figura 7 – Curvas de calorimetria isotérmica de pastas de um mesmo cimento
coletado em cinco dias diferentes de produção, hidratando (a) sem aditivos químicos
e (b) na presença de 0.35% de um redutor de água à base de policarboxilato (% em
relação à massa de cimento). O ponto de extinção de sulfatos solúveis no sistema e’
indicado em (a). Temperatura de hidratação = 23oC. Relação água/cimento = 0,5.
De fato, a extinção dos sulfatos solúveis, como indicado na Figura 7(a), ocorre
antes do pico de hidratação da alita. Na presença de aditivos dispersantes e em
Idade de
Flu
xo
de
calo
r (m
W/g
Idade de
Flu
xo d
e ca
lor
(mW
/g
função da desaglomeração dos grãos de cimento, há aumento da área especifica do
cimento exposta à hidratação nos primeiros momentos de contato com a água. Com
isso, espera-se que uma quantidade maior de aluminatos esteja disponível para a
reação com água nos primeiros instantes de hidratação do cimento, antes mesmo
dos íons sulfato entrarem em solução em quantidade suficiente para participar
dessas reações, o que afeta a hidratação das fases aluminato e silicato. Além disso,
sabe-se que muitos aditivos químicos, incluindo dispersantes base policarboxilato,
apresentam grande afinidade pelos aluminatos, sendo adsorvidos pelas superfícies
reativas dessas fases na ausência de sulfatos prontamente disponíveis, e
participando da estrutura hidratada por meio de intercalação, como comentado por
Cheung et al(7).
Este exemplo mostra a importância da execução de testes de controle de
qualidade para produtores intermediários de materiais à base de cimento. Por
exemplo, produtores de argamassas industrializadas utilizam cimentos provenientes
de diferentes lotes, incluem adições minerais e aditivos químicos aos seus produtos
finais e, muitas vezes, não têm controle sobre as condições de aplicação final dos
seus produtos. Entretanto, esses produtores ainda precisam fornecer garantia de
qualidade dos seus produtos e robustez em campo. A calorimetria isotérmica pode
ser utilizada, então, para monitorar o impacto das variações dos materiais
constituintes das argamassas e para o desenvolvimento de formulações robustas às
extremas condições de uso, já que simulações dessas condições (temperatura,
energia de mistura, quantidade de água de mistura, teores de aditivos) podem ser
feitas em laboratório.
5. EXEMPLO 2: Cimento Pré-Hidratado
Desde o inicio da sua produção, o cimento pode ser exposto a condições de
pré-hidratação. O processo normalmente já inicia dentro do moinho, devido a fatores
como a desidratação da gipsita em sulfato de cálcio hemi-hidratado, a adição
intencional de água para resfriamento do moinho, ou a utilização de matérias-primas
que contenham umidade natural, tais como calcário, gipsita e escória de alto forno. A
adição de até 2-3% de água aos moinhos de bola não é incomum.
A pré-hidratação pode também ocorrer durante o armazenamento do cimento
em silos após a sua produção, se a temperatura de armazenamento for alta o
suficiente para promover a desidratação da gipsita em sulfato de cálcio hemi-
hidratado (ou hemi-hidrato). Essa conversão é acompanhada pela liberação de
vapor d’água dentro do silo, resultando em pré-hidratação do cimento. A pré-
hidratação pode ocorrer também durante o transporte do cimento e seu
armazenamento em distribuidores e usuários finais.
A exposição do cimento ao vapor d’água resulta na formação de produtos de
hidratação na superfície dos seus grãos em conseqüência de reações de hidratação
com suas fases anidras. Essas fases hidratadas atuam como barreira física à
hidratação adicional do cimento, afetando propriedades importantes de argamassas
e concretos, tais como tempos de pega, desenvolvimento de resistências e
comportamento reológico. A extensão da pré-hidratação e, portanto, dos seus
efeitos nas propriedades de engenharia do cimento, dependem, fundamentalmente,
das condições de exposição (umidade relativa do ar, temperatura e tempo de
exposição) e das características do cimento (composição de fases e granulometria).
A calorimetria isotérmica é uma ferramenta de grande utilidade na avaliação do
impacto da pré-hidratação do cimento na cinética da sua posterior hidratação com a
água. A Figura 8, publicada por Dubina et al(8), mostra as curvas de emissão de calor
de dois cimentos industriais expostos a uma umidade relativa de 85% e a uma
temperatura de 24oC durante o período de tempo indicado nas curvas. O cimento
mostrado em (a) tem alto teor de C3A (8,2%) e baixo teor de C4AF (7,8%), enquanto
que o cimento mostrado em (b) tem baixo teor de C3A (1,0%) e alto teor de C4AF
(17,0%), teores esses medidos por difração de raios X quantitativa (refinamento
Rietveld). A solubilidade dos sulfatos presentes também difere para os dois
cimentos: aquele com alto teor de C3A possui sulfatos de alta solubilidade (hemi-
hidrato, anidrita e arcanita), enquanto que, no cimento com baixo teor de C3A, a
forma de sulfato presente é principalmente a gipsita. Quando exposto à pré-
hidratação, o cimento com alto teor de C3A apresenta uma perda ao fogo maior.
Essas características dos cimentos não permitirem conclusões sobre o impacto da
exposição dos mesmos a condições de alta umidade. Entretanto, a calorimetria
isotérmica permite, de forma precisa, avaliar os efeitos da pré-hidratação na
reatividade dos cimentos.
(a) (b)
Figura 8 – Curvas de calorimetria isotérmica de pastas de cimento expostos a
85% de umidade relativa pelo período de tempo indicado nas curvas. (a) cimento
com alto teor de C3A; (b) cimento com baixo teor de C3A. Temperatura de hidratação
= 23oC. Relação água/cimento = 0,5. A perda ao fogo (900oC por termogravimetria) é
indicada para cada cimento (Fonte: Dubina et al(8)).
A pré-hidratação do cimento pode resultar em efeitos inesperados de aditivos
químicos em campo, pois, como já comentado, esses produtos interagem com as
fases reativas do cimento, especialmente os aluminatos. De fato, a Figura 9 mostra o
efeito da pré-hidratação na posterior reatividade de um cimento Portland comum
(Tipo I,II conforme a ASTM C150(9)) em água e na presença de um redutor de
água/retardador químico, medida por calorimetria isotérmica de argamassas
moldadas de acordo com a norma européia EN-196(10). Neste exemplo, a pré-
hidratação foi causada pela exposição do cimento ao ambiente de laboratório (23oC
e 50% de umidade relativa) durante 16 horas, espalhado em uma camada com
espessura de 25mm. A mesma dose de um aditivo redutor de água/retardador está
presente em todas as amostras. A pré-hidratação resultou em um acentuado retardo
de pega do cimento na presença do aditivo (13 horas de retardo em comparação à
amostra de cimento fresco, não exposto à pré-hidratação). A adição de sulfato de
cálcio hemi-hidratado (0,5% SO3 em relação à massa de cimento) recupera um
pouco o retardo, mas em apenas 3 horas, demonstrando que o problema está
relacionado apenas em parte à falta de sulfatos solúveis no sistema.
Tempo de pré-hidratação
Perda ao Fogo
0 0,59% 24h 1,38% 7d 2,78% 14d 3,83%
Tempo de pré-hidratação
Perda ao Fogo
0 1,16% 24h 1,25% 7d 1,46% 14d 1,47%
Figura 9 – Curvas de calorimetria isotérmica de argamassas EN-196
preparadas com (1) cimento fresco (curva verde); (2) cimento pré-hidratado por 16
horas a 50% de umidade relativa e 23oC (curva amarela); e (3) cimento pré-hidratado
por 16 horas a 50% de umidade relativa e 23oC, com 0,5% de SO3 adicional (na
forma de sulfato de cálcio hemi-hidratado) misturado a seco ao cimento antes do
preparo das argamassas. Todas as argamassas contêm a mesma dose de aditivo
redutor de água/retardador. Temperatura de hidratação = 23oC. Relação
água/cimento = 0,5.
Conforme o exposto acima, a pré-hidratação do cimento pode alterar seu perfil
de hidratação quando utilizado em campo, na presença de aditivos químicos. Em
aplicações industriais, o cimento pode ficar armazenado por vários meses antes do
uso. Por exemplo, o prazo de validade da maioria das argamassas industrializadas
disponíveis no mercado é de seis meses contados a partir da data da fabricação. A
pré-hidratação do cimento pode resultar em alterações nos tempos de pega,
desenvolvimento de resistências e alteração da reologia das misturas. Dessa forma,
a calorimetria isotérmica é uma ferramenta de grande valor para prevenção de
problemas dessa natureza.
6. EXEMPLO 3: Impacto de adições minerais
Adições minerais que contenham aluminatos ativos, tais como escória de alto
forno, argila calcinada (incluindo metacaulinita), pozolanas naturais e cinzas
volantes, irão afetar a demanda por sulfatos solúveis do sistema cimentício. Se a
adição de desses materiais for feita posteriormente à produção do cimento, a
Cimento fresco com aditivo
Cimento pré -hidratado com aditivo
Cimento pré-hidratado com aditivo e SO 3 adicional
Idade de hidratação
Flu
xo
de
calo
r (m
W/g
verificação do balanço de sulfatos passa a ser uma medida de prevenção de
problemas de desempenho em campo.
No exemplo mostrado na Figura 10, o ponto de extinção do sulfato do cimento
Portland comum, como indicado pela marca tracejada na curva verde, ocorre antes
do final do pico de hidratação da alita, indicando que o cimento já se apresentava
sub-sulfatado. A introdução de 40% de escória de alto forno (curva amarela)
antecipou ainda mais o ponto de extinção de sulfato, como esperado. Na presença
de um aditivo químico retardador de pega, o ponto de extinção de sulfato não pode
ser mais identificado (curva vermelha). A adição de sulfatos solúveis, além dos
níveis presentes nos materiais originais (cimento e escoria), ajuda a identificar o
ponto de extinção de sulfato (curva azul) e a identificar a quantidade necessária para
um teor ótimo. É importante observar que a área sob a curva de hidratação obtida
quando a quantidade de sulfato ótima é adiciona ao sistema (área sob a curva azul
da figura) indica uma maior intensidade de hidratação, como esperado.
Figura 10 – Curvas de calorimetria isotérmica mostrando o efeito da adição de
escoria de alto forno e sulfato adicional no ponto de extinção de sulfatos (Fonte:
ASTM C1679-09(4)).
7. CONCLUSÕES
Este artigo demonstrou a importância da calorimetria isotérmica para
prevenção de problemas de desempenho de sistemas cimentícios frente a fatores
comuns em campo, tais como variabilidade da produção de cimento, sub-sulfatação
de cimentos, inclusão de adições minerais (escoria de alto forno, cinzas volantes,
metacaulinita, pozolanas naturais), exposição do cimento a ambientes de elevada
umidade relativa do ar, e presença de aditivos químicos.
Idade de hidratação (h)
Flu
xo d
e ca
lor
(mW
/g
cim
ento
)
É importante salientar que, hoje em dia, as vantagens da calorimetria
isotérmica podem também ser aplicadas no campo: um estudo recente (Cost(11);
Cost e Gardiner(12)) demonstrou o grande benefício da utilização de métodos mais
simplificados de medida de temperatura para a análise de problemas de
desempenho de sistemas cimentícios. Há, atualmente, um grupo de trabalho da
ASTM trabalhando no desenvolvimento de uma normalização desses métodos. No
futuro, espera-se que eles sejam utilizados não apenas para o diagnóstico de
problemas de desempenho, mas principalmente para a prevenção desses
problemas.
Não se deve esperar que os cimentos sejam totalmente robustos às condições
de aplicação em campo, e, da mesma forma, não se pode assumir que aditivos
químicos e adições minerais sejam imunes a problemas de desempenho, pois, na
grande maioria das vezes, é a combinação de dois ou mais fatores a responsável
pelo aparecimento de problemas, como foi demonstrado neste artigo. Problemas de
desempenho podem ocorrer mesmo quando materiais conformes e considerados de
alta qualidade são utilizados. Dessa forma, a identificação das condições críticas e,
portanto, a prevenção dos problemas, é de responsabilidade de todos os produtores
da cadeia. Como demonstrado, essa prevenção pode ser feita pela simulação de
situações de campo utilizando-se a calorimetria isotérmica.
8. AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a contribuição de Paul J. Sandberg (Calmetrix Inc.) pelo
fornecimento de exemplos de campo mencionados neste artigo, assim como pelas
diversas discussões relativas às análises das curvas de calorimetria.
9. REFERÊNCIAS
ROBERTS, L. R.; TAYLOR, P. C. Understanding Cement-SCM-Admixture
Interaction Issues. Concrete international, p.33-41, January 2007.
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