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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ELIANA PARDO PULZ DOICHE
A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA
CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS INOCENTES,
HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO
São Paulo
2011
D657L Doiche, Eliana Pardo Pulz.
A lenda de Hannibal Lecter: um estudo da carnavalização nos filmes O silęncio dos inocentes, Hannibal e dragão vermelho / Eliana Pardo Pulz Doiche. -
170 f. : il. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.
Bibliografia: f. 169-170.
1. Dialogismo. 2. Bakhtin, Mikhail. 3. Lecter, Hannibal. I. Título.
CDD 302.2
ELIANA PARDO PULZ DOICHE
A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA
CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS
INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Lílian Lopondo
São Paulo 2011
ELIANA PARDO PULZ DOICHE
A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA
CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS
INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________ Profª. Drª. Lílian Lopondo
Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
__________________________________________________ Profª. Drª. Ângela Sivalli Ignatti Universidade de São Paulo (USP)
__________________________________________________
Profª. Drª. Maria Luíza Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
A meu marido e filhos, eternos
companheiros, pela confiança na
realização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me dar saúde para trilhar esta jornada até o final.
A meu pai, pelo carinho e exemplo de um homem trabalhador desde os primeiros
anos.
À minha mãe, pela criação tão intensa e tão dedicada.
À Profª. Drª. Lílian Lopondo, pelo apoio e pelas longas esperas.
A todos os professores e administradores da EMEF Padre Gregório Westrupp pelo
companheirismo e compreensão.
À minha parceira de dezoito anos, Edileuza, que cuida de mim e dos meus.
[...] por ter muito para ver,
nossos olhos, com frequência,
não conseguem ver
mais coisa alguma.
(Jean-Claude Carrière)
RESUMO
O objetivo desta dissertação é o estudo da personagem Hannibal Lecter nas
narrativas fílmicas O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho. Para
tanto, focalizamos a personagem sob dois aspectos: o primeiro se relaciona com sua
construção. Estudamos os movimentos de câmera e os ângulos de focalização da
câmera. Alguns outros elementos da linguagem fílmica, como os ruídos e a música,
foram citados quando os mesmos eram muito relevantes para a composição da
personagem. O segundo trata do dialogismo, da “ciência das relações”, conforme
formulada por Bakhtin. Buscamos, assim, apreender os momentos em que as
personagens tomam consciência de sua identidade. Os procedimentos narrativos
comuns ao corpus evidenciam que a concepção de mundo dos filmes se sustenta
sobre a carnavalização. Por meio das imagens carnavalizadas, estamos diante de
um mundo às avessas, onde as verdades e as identidades são relativas.
Palavras-chave: câmera, Bakhtin, dialogismo, carnavalização, Hannibal Lecter.
ABSTRACT
The goal of this dissertation is the study of the character Hannibal Lecter in
filmic narratives The Silence of the Lambs, Hannibal and Red Dragon. To this end,
we focus on the character in two ways: the first relates to its construction. We studied
the movements of the camera, the camera angles and focus of the camera. Some
other elements of film language, such as noise and music were cited when they were
very relevant to the composition of the character. The second deals with the
dialogue, “the science of relations”, as formulated by Bakhtin. We seek thus to seize
the moments when the characters become aware of their identity. The narrative
procedures common to the corpus show the conception of the film world stands on
the carnavalization. Through the images carnivalized, we are faced with a topsy-turvy
world where the truths and identities are relative.
Keywords: camera, Bakhtin, dialogism, carnavalization, Hannibal Lecter.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 Vista panorâmica do edifício de treinamento do FBI. Clarice é a
pessoa que está correndo para o lado direito do edifício..............
30
Ilustração 2 A cena evidencia a jovialidade e o entusiasmo da
estudante.......................................................................................
31
Ilustração 3 Sequência em que ocorre o destaque na predominância do sexo
masculino da Instituição................................................................
31
Ilustração 4 Lecter visto por Clarice e Clarice vista por Lecter......................... 40
Ilustração 5 Lecter está colado ao vidro olhando para Clarice ........................ 46
Ilustração 6 Clarice quebra as regras de segurança e se aproxima de Lecter
que lhe promete ajuda...................................................................
48
Ilustração 7 Clarice após seu encontro com Hannibal Lecter........................... 49
Ilustração 8 Clarice volta para a academia em busca de aprimoramento........
50
lustração 9 Clarice durante sua formatura recebe uma ligação de Hannibal
Lecter ...........................................................................................
57
Ilustração 10 Tomada em plano geral final, Lecter está caminhando para
frente com terno claro e chapéu....................................................
58
Ilustração 11 Mason Verger na sequência de abertura do filme........................
63
Ilustração 12 Máscara que foi usada por Hannibal Lecter quando transferido
para o Tennesse...........................................................................
64
Ilustração 13 Clarice Starling, solitária, chegando ao local onde deve instruir
seus homens.................................................................................
67
Ilustração 14 A agente Especial Starling: posição de liderança......................... 68
Ilustração 15
Clarice pouco antes de atirar na mãe que carregava um bebê
preso no peito................................................................................
70
Ilustração 16 Clarice logo após o tiroteio em sua casa.......................................
71
Ilustração 17 Clarice no interior da sede do FBI olhando para o horizonte....... 74
Ilustração 18 Clarice Starling em seu caminho para a casa de Verger.............. 75
Ilustração 19 A onipotência de Mason Verger concretizada em sua visão........ 79
Ilustração 20 Imagem de transição entre as sequências.................................... 82
Ilustração 21 Primeira vez que a câmera focaliza Dr. Fell.................................. 86
Ilustração 22 Hannibal Lecter na última cena do filme....................................... 90
Ilustração 23 Porta vermelha atrás de Graham. Seria ela um símbolo de
Hannibal Lecter? ...........................................................................
96
Ilustração 24 Porta da frente da casa do Dr. Hannibal Lecter............................ 96
Ilustração 25 Hannibal Lecter no momento em que agride o Agente Especial
Will Graham...................................................................................
102
Ilustração 26 Hannibal e Will Graham em seu reencontro.................................. 113
Ilustração 27 Dragão Vermelho.......................................................................... 117
Ilustração 28 O ataque repentino de Hannibal Lecter......................................... 118
Ilustração 29 Hannibal Lecter no momento em que encerra a leitura de sua
carta..............................................................................................
121
Ilustração 30
Reação visual de Lecter às palavras de Clarice ......................... 133
Ilustração 31 Clarice ao final da fala de Lecter................................................ 135
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 – A PERSONAGEM EM O SILÊNCIO DOS INOCENTES ................ 26
1.1 CLARICE STARLING E SEU PONTO DE VISTA.......................................... 26
1.1.1 CLARICE STARLING E O PONTO DE VISTA DO OUTRO.......................... 29
1.2 CLARICE STARLING FORA DA ACADEMIA................................................ 34
1.2.1 CLARICE STARLING E HANNIBAL LECTER – O PRIMEIRO ENCONTRO 38
1.3 CLARICE STARLING RETORNA PARA A ACADEMIA................................ 50
1.4 CLARICE STARLING E HANNIBAL LECTER – O SEGUNDO ENCONTRO .. 52
1.5 BUFFALO BILL OU JAMES GUMB ................................................................. 54
1.6 O FINAL ABERTO DE O SILÊNCIO DOS INOCENTES ................................ 56
CAPÍTULO 2 – A PERSONAGEM EM HANNIBAL .................................................. 59
2.1 MASON VERGER E SEU INFORMANTE......................................................... 59
2.2 CLARICE STARLING – O ENCONTRO COM OS PARCEIROS...................... 66
2.3 CLARICE STARLING – O ENCONTRO EM PRAÇA PÚBLICA........................ 69
2.4 O JULGAMENTO DE CLARICE STARLING..................................................... 71
2.5 CLARICE STARLING – O ENCONTRO COM MASON VERGER.................... 75
2.6 HANNIBAL LECTER OU DR. FELL ................................................................. 82
2.7 HANNIBAL LECTER E CLARICE STARLING – A CARTA PERFUMADA....... 86
2.8 O FINAL DE HANNIBAL ................................................................................... 88
CAPÍTULO 3 – A PERSONAGEM EM DRAGÃO VERMELHO................................. 91
3.1 HANNIBAL EM ENCONTROS SOCIAIS........................................................... 91
3.2 HANNIBAL LECTER E WILL GRAHAM – O PRIMEIRO ENCONTRO............. 95
3.3 WILL GRAHAM LONGE DO FBI EM NOVA FASE.......................................... 104
3.4 HANNIBAL LECTER E WILL GRAHAM – O (RE) ENCONTRO...................... 107
3.5 DRAGÃO VERMELHO OU FRANCIS DOLARHYDE....................................... 114
3.6 HANNIBAL LECTER E WILL GRAHAM - NA JAULA DE EXERCÍCIOS......... 118
3.7 O FINAL CIRCULAR DE DRAGÃO VERMELHO............................................. 120
CAPÍTULO 4 – AS RELAÇÕES DIALÓGICAS EM O SILÊNCIO DOS
INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO ................................................
123
4.1 HANNIBAL LECTER – O EU E O OUTRO EM O SILÊNCIO DOS
INOCENTES .................................................................................................
125
4.2 HANNIBAL LECTER – O EU E O OUTRO EM HANNIBAL 138
4.3 HANNIBAL LECTER – O EU E O OUTRO EM DRAGÃO VERMELHO 143
CAPÍTULO 5 – A CARNAVALIZAÇÃO EM O SILÊNCIO DOS INOCENTES,
HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO........................................................................
145
5.1 AS CATEGORIAS CARNAVALESCAS INSERIDAS NAS NARRATIVAS
FÍLMICAS ......................................................................................................
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 154
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 161
ANEXO I – FICHA E SINOPSE DOS FILMES ESTUDADOS...................................
HANNIBAL 165
O SILÊNCIO DOS INOCENTES 166
DRAGÃO VERMELHO 169
14
Introdução
[...] as artes constituem discursos poderosos sobre a vida, sobre os seres humanos.
Beth Brait
O homem conseguiu produzir uma grande quantidade de artefatos que lhe
possibilitaram dominar e transformar o meio natural em que vive. Essa atitude de
criar instrumentos e aperfeiçoá-los constantemente torna possível a compreensão do
processo civilizatório pelo qual o ser humano vem passando desde que surgiu sobre
a Terra.
Os rastros deixados pelas civilizações (potes, urnas mortuárias e
instrumentos rudimentares para tecer, caçar ou pescar etc.) permitem que os
antropólogos culturais reconstituam a organização social de um grupo humano a
partir dos objetos preservados.
Além dos objetos que lhe são úteis no dia-a-dia, o ser humano também
produz coisas que, apesar de não terem utilidade imediata, sempre estiveram
presentes em sua vida. Por meio dessas criações, as quais se constituem as obras
de arte, o homem expressa seus sentimentos diante da vida e, mais ainda, expressa
sua visão do momento histórico no qual vive. É com o intuito, de revelar-se, que o
artista apropria-se de uma linguagem para produzir algo que lhe agrada e lhe é
representativo.
Dentre as muitas criações de caráter estético, que buscam sensibilizar e
emocionar o apreciador, interessa-nos estudar o cinema. Inicialmente, o cinema
trazia como novidade o movimento das imagens. O Cinematógrafo dos irmãos
Lumière, antes de ser apresentado em sessão pública pela primeira vez em Paris,
em 28 de dezembro de 1895, já havia sido mostrado ao mundo científico, em
reuniões privadas.
[...] Ele aluga o Salão Indiano, uma saleta no subsolo do Grand Café, no nº 14 a arrumação é sumária: uma tela, uma centena de cadeiras, um aparelho de projeção em cima de uma escadinha e, na entrada, uma faixa: “Cinematógrafo Lumière, entrada 1 franco”. (TOULET, 1988, p. 15)
15
As pessoas que pagam para entrar na sala de cinema são mergulhadas na
escuridão. No local, além dos artefatos descritos na passagem acima por TOULET,
há um piano. O equipamento é instalado para encobrir o ruído do aparelho que
reproduz as imagens. O programa de vinte minutos, que comporta uns dez filmes,
vai deixando o público pasmo diante das imagens animadas. Na famosa Entrée d’um
train en gare de Ciotat, (A chegada do trem na estação de Ciotat), em que Louis
Lumière usou uma objetiva de campo profundo, a locomotiva vinda do horizonte,
aumenta de tamanho e projeta-se sobre os espectadores. O caráter mágico da
imagem cinematográfica aparece com clareza: a câmera cria algo mais que a
simples duplicação da realidade.
A novidade dos irmãos logo percorre as capitais da Europa e chega à cidade
de Nova Iorque em 29 de junho de 1896. Porém, até cerca de 1910, a França ocupa
o primeiro lugar na produção e exportação cinematográficas.
Nos primeiros dez anos, um filme ainda era apenas uma sequência de
tomadas estáticas, fruto direto da visão teatral. Porém, os cineastas começaram a
cortar o filme em cenas. A partir da aparente simplicidade da técnica de montar e
editar as imagens criou-se um vocabulário e uma gramática de incrível variedade, ou
seja, um meio de conduzir um relato e de veicular idéias.
No decorrer de um século, a jovem linguagem do cinema passou por uma
incrível diversificação. Desde o seu surgimento e o estabelecimento dos dois
princípios básicos: o cinema como documento (Lumière) e como sonho (Méliès); das
primeiras criações estilísticas: a não estaticidade de Lumière, a trucagem em Méliès
a forma de fazer filmes mudou completamente. Hoje se admite que este cinema
dos primórdios corresponda a outro tipo de espetáculo. Dessa forma, das primeiras
exibições do final do século 19, praticamente, só resta a sala escura.
A partir dessa breve história do cinema, cabe agora um enfoque sobre o
corpus, a fim de podermos prestar melhores esclarecimentos sobre a origem e os
objetivos deste estudo.
Nossa premissa inicial é a de que um filme, fazendo uso dos recursos
específicos da linguagem fílmica, cria uma realidade própria (ficcional) a partir do
real e portanto é habitada por personagens e os mesmos olham para as regras e as
convenções da sociedade. Como seres sociais, ou seja, como sujeitos históricos, as
personagens se comunicam fazendo uso da linguagem, quer dizer, de uma
16
determinada língua concebida a partir de convenções determinadas por um certo
grupo social.
A partir dessa constatação, ou seja, de que em um filme, podemos perceber a
presença de várias linguagem: a fílmica, aquela que trata dos meios
cinematográficos: imagem, diálogos, ruídos, música, materiais escritos, e as outras
que se materializam em forma de enunciados, os quais são pronunciados pelas
personagens e que refletem suas posições ideológicas. Além disso, devemos
considerar que o cinema não é puro entretenimento e que por isso pode ser objeto
de um estudo sério.
Essas primeiras observações levam-nos a esclarecer o objetivo de nossa
dissertação que parte da construção da personagem com o intuito de demonstrar
que o dialogismo e a carnavalização são dois elementos de reflexão que podem ser
observados nas produções cinematográficas1 O Silêncio do Inocentes (The Silence
of the Lambs) (1991), de Jonathan Demme; Hannibal (Hannibal) (2001), de Ridley
Scott e Dragão Vermelho (Red Dragon) (2002), de Brett Ratner.
Nas obras citadas, alguns aspectos da personagem Hannibal Lecter, que
participa das três narrativas fílmicas, nos chamam a atenção. Parece-nos que a
substância fundamental de que é feita a personagem é a maneira como ele é
mostrado pela câmera. A opção pelo primeiro e primeiríssimo plano causam um
estranhamento e amedrontam seu interlocutor, além disso, nota-se seu
posicionamento frente ao seu interlocutor; sua habilidade de discurso ou
convencimento, sua capacidade de antecipar-se aos fatos e seu domínio intelectual.
Em suma, é por sua voz que Hannibal Lecter torna-se uma personagem complexa,
que vai transfigurando-se ao longo da narrativa para alcançar seu objetivo final, qual
seja, a liberdade (liberdade da prisão e retorno ao status quo, libertar-se da antiga
identidade de canibal e libertar-se de seu duplo - Will Graham).
No mundo ficcional retratado, policial e bandido se coadunam e refletem uma
realidade e um modo de vida que se expressam pela ambiguidade e pela
ambivalência. É nesse contexto que Hannibal Lecter transita livremente relaciona-se
1 Um dos filmes escolhidos para esta pesquisa O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs) (EUA, 1991)
é uma adaptação do romance homônimo de Thomas Harris, The Silence of the Lambs lançado em 1988. O outro
Hannibal (Hannibal) (EUA, 2001) também adaptado de um romance homônimo de Thomas Harris, lançado em
1999. Dragão Vermelho (Red Dragon) (EUA, 2002) foi adaptado a partir do romance homônimo de Thomas
Harris, lançado em 1981.
17
com as outras personagens de diferentes esferas sociais, intercambiando seu papel,
herói ou anti-herói, de acordo com a necessidade do momento.
Dessa maneira, ao decidirmo-nos por estudar a personagem estávamos
elegendo seu caráter dialógico, uma vez que intuímos desde a primeira vez que
assistimos aos filmes que o vigor das personagens criadas é fruto das relações, e,
fundamentalmente, de sua voz. Por isso, para tratarmos das relações entre as
personagens, elegemos o dialogismo. Segundo MACHADO (1995, p. 310),
BAKHTIN formulou a “ciência das relações” por meio de “da observação da
interação existente na dinâmica das enunciações, dos organismos, dos fenômenos e
do homem com o mundo”. Sendo assim, o dialogismo “celebra a alteridade, a
necessidade do outro”, elegendo-se, assim, como elemento principal através do qual
Bakhtin pensará as relações culturais. Quando um fenômeno é analisado à luz do
dialogismo ele deve ser considerado “em sua bidirecionalidade, a orientação de um
EU para o OUTRO”.
As películas, anteriormente descritas, foram escolhidas para compor o nosso
corpus, em primeiro lugar, por serem filmes que tratam das personagens, ou seja, o
foco está nas relações entre elas e não na ação.
Dentro da Teoria Literária, KAYSER (1985) propõe, ou melhor, estabelece
uma classificação para os textos ficcionais considerando suas particularidades:
drama de ação, é aquele construído de eventos; drama de personagem, é aquele
em que a personagem domina o a história e drama de espaço, o lugar é o
protagonista do texto. Portanto, por essa classificação, poderíamos situar nosso
corpus na segunda categoria: drama de personagem. Segundo o teórico, a estrutura
do drama de personagem se caracteriza
[...] por um certo relaxamento da ação; estações seguem-se a estações. A
unidade não reside na ação, mas na figura. Tem de se ir buscar princípio,
meio e fim à sua essência (KAYSER, 1985, p. 409, grifo nosso).
18
No mundo cinematográfico, o diretor Scorsese argumenta que quando se opta
por fazer um filme de gênero, há regras a serem respeitadas em relação ao público2.
Em outros termos, diretor e espectador compartilham de um pré-conhecimento que
foi estabelecido pelo sistema de criação. Dessa maneira, para o público torna-se
mais fácil fazer uma boa leitura da película.
Outro fator que nos levou a escolher os filmes se relaciona com as
personagens, as quais apresentaremos no decorrer do trabalho. As mesmas estão
envolvidas em “um enredo suficientemente rico, forte e convincente para manter no
leitor sempre a mesma pergunta aflita: e agora? que vai acontecer? e depois?”
(MOISÉS, 1983, p. 106). Ou seja, O Silêncio dos Inocentes traz para o primeiro
plano a figura de uma mulher, situação rara na história do cinema, tentando se
inserir em um sistema onde o predomínio masculino é claro. Ela se encontra
separada de Lecter por uma parede de vidro. Em Hannibal, Clarice e Hannibal estão
separados geograficamente. A policial está nos Estados Unidos e ele mora em
Florença. As situações provocadas por um antigo paciente e vítima de Lecter vão
possibilitar o reencontro dos dois. Já em Dragão Vermelho, o último filme, podemos
entender em que situações Hannibal Lecter foi preso e como ele se associa ao
criminoso Fada dos Dentes para matar o agente Graham.
Pela técnica de composição das narrativas fílmicas, os diretores dos filmes
convidam o espectador a experimentar diferentes sensações com cenas que
colocam o homem em situações extraordinárias que o revelam e provocam. Além
disso, põem em tensão a sanidade e a loucura; o bonito e o feio; o velho e o novo; o
certo e o errado. Enfim, o ser e o não ser. É na esteira desse ambiente de imagens
ambivalentes que encontramos a carnavalização. Segundo BAKHTIN (2008, p. 122),
a cosmovisão carnavalesca aplicada a um texto “coloca a imagem e a palavra numa
relação especial com a realidade”. Dessa maneira, a vida é desviada de sua ordem
normal, transformando-se em uma “vida às avessas”, um “mundo invertido”. Nessa
nova ordem, todos são participantes ativos, pois o carnaval não é representado, ele
é vivido. O principal palco das ações carnavalescas é a praça pública, as ruas
contíguas ou qualquer outro espaço onde as personagens possam se encontrar.
2 TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
19
Por fim, em nossa escolha consideramos a notoriedade comercial e o apelo
popular das películas. Os três filmes foram sucesso de bilheteria e ainda são
transmitidos tanto nos canais abertos quanto nos canais disponibilizados pelas
empresas de televisão a cabo.
O Silêncio do Inocentes, por exemplo, foi a terceira obra a vencer as cinco
principais categorias do Oscar: Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Diretor (Anthony
Hopkins, Jodie Foster e Jonatham Demme, respectivamente), e também o Oscar de
Melhor Filme, e o Oscar de Melhor Roteiro adaptado para Ted Tally. Os outros dois
filmes que conseguiram esse feito foram Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra
(1934) e Um Estranho no Ninho, de Milos Forman (1975).
Feitas as primeiras justificativas quanto à escolha do nosso corpus,
enfatizamos que neste trabalho procura-se dar palavra ao próprio filme, suas
imagens, diálogos e sons são tomados aqui como núcleo central e busca-se extrair
deles as relações dialógicas entre as personagens, as questões que estas suscitam
e como as mesmas são resolvidas no plano diegético. Partimos à apresentação dos
filmes escolhidos.
As técnicas de filmagem utilizadas na trilogia buscam fazer algo que o cinema
foi se aperfeiçoando desde sua primeira exibição, ou seja, prender inúmeros
espectadores diante de uma grande tela, o que, atualmente, leva mais ou menos
duas horas. Para isto a montagem do filme nas disposições de cenas e a construção
estética das personagens principais serão fundamentais para que exista uma
sintonia, uma espécie de “pacto”, entre o público e a personagem que conduz a
trama para que após a efetivação deste “pacto” o filme se estenda até o resultado
final. E, nesse sentido, a identificação entre público e personagem se realiza, a
trama pode tomar qualquer rumo, a personagem pode mostrar até um caráter
ambíguo que, em geral, o seu público o acompanhará e receberá a mensagem
proposta pelo narrador cinematográfico.
Além da identificação com a personagem, o espectador de cinema é levado a
seguir pistas falsas na narrativa do filme para que tire conclusões precipitadas e
sinta a todo instante um clima tenso e angustiante que o incite a permanecer até o
desfecho final, por mais irrelevante ou fantasioso que este possa parecer.
20
Para isso, entra na feitura do filme a pós-produção que consiste não apenas
na montagem coerente das cenas gravadas que darão um sentido ao filme, mas
também na introdução de feitos sonoros e visuais, como a correção de defeitos nos
cenários, acerto das cores e luzes, tudo planejado para guiar as emoções do
espectador e para marcar a tônica da narrativa.
Vejamos a seguir as fábulas dos filmes escolhidos:
Em O Silêncio dos Inocentes, Hannibal, psiquiatra, que está preso em uma
instituição para prisioneiros com problemas mentais, por praticar o canibalismo,
recebe constantemente a visita da Agente do FBI Clarice (interpretada por Jodie
Foster). Jovem estudante, inexperiente, ambiciosa é facilmente envolvida pelo Dr.
Lecter. Ele que é “um monstro” – segundo o médico responsável pela prisão – Dr.
Chilton (interpretado por Anthony Heald).
Embora tivesse sido orientada por seu superior, a manter-se distante e ter
cuidado com Hannibal, ela relaxa e flexibiliza todas as regras de segurança que lhe
foram transmitidas: não se aproximar do vidro da cela, não aceitar nada do
prisioneiro, não revelar nada pessoal a ele. Ainda, passa a visitá-lo constantemente,
a qualquer hora – está ansiosa para resolver o seu primeiro caso. Deveria identificar,
juntamente com Lecter, Buffalo Bill - James Gumb (interpretado por Ted Levine), o
responsável por uma série de mortes que têm em comum o fato de as vítimas terem
partes de suas peles retiradas de seus corpos. O objetivo do assassino é trocar de
pele. Trocar a pele de um homem pela pele de várias mulheres. Para isso ele
costura os pedaços retirados de suas vítimas e cria para si uma roupa/pele. Gumb
estabele com a pele uma relação externa de recobrimento, ele acredita que sua
nova pele o libertará do masculino.
Nesse primeiro episódio, ao espectador pouco será revelado sobre o passado
de Lecter. O que se sabe é que ele está preso há oito anos, que possui uma grande
capacidade de se aproximar da mente das pessoas, para manipulá-las e até induzi-
las ao suicídio - como faz com um prisioneiro da cela ao lado da sua. Seu discurso é
provocativo, com certo tom de superioridade. Ele demonstra ter tido boa educação,
pois aprecia a boa mesa, os bons vinhos e a música clássica. Seu objetivo é fugir da
prisão. Quanto a Clarice, seu maior desafio é salvar a filha da senadora e conseguir
se formar na academia. Para isso, precisa da ajuda de Lecter; então, se deixa
envolver emocionalmente com o prisioneiro até conseguir atingir o seu objetivo.
21
Porém, não consegue deixar de pensar nele, mesmo depois de tudo resolvido. As
duas personagens se reencontram em Hannibal em circunstâncias bem diferentes.
Dez anos depois, Dr. Hannibal Lecter reaparece, após ter fugido da prisão,
em Hannibal, filme que possui uma atmosfera onírica, um clima de irrealidade. Neste
episódio, ele vive tranquilamente pelas ruas de Florença (Itália), trabalhando na
Biblioteca Capponi, como Dr. Fell que ocupa interinamente na biblioteca o cargo
vago pelo desaparecimento de seu antecessor. Para ser efetivado, Dr. Fell precisa
provar que é grande conhecedor da obra de Dante Alighieri, pois alguns membros
do conselho da biblioteca não o querem por ser estrangeiro. D. Fell (Hannibal - para
o espectador) apresenta-se ao grupo e prova pelo discurso que está apto a assumir
o cargo.
Como no primeiro episódio, ele se posiciona em um patamar superior ao dos
outros. Quanto a Clarice, sem a jovialidade e a crença no sistema que tinha no
primeiro episódio, continua na luta pelo seu espaço, tendo que provar aos seus
superiores que possui competência e que foi julgada e condenada injustamente. Ela
alega ter feito seu trabalho exatamente da maneira como foi treinada. Ironicamente,
se comparada a Lecter, a enclausurada, agora, é ela, que não mede esforços para
capturá-lo.
O passado de Lecter, entendido aqui como o pouco que nos foi revelado em
O Silêncio dos Inocentes, não o deixará viver em paz. Ele será perseguido por
Mason Verger (interpretado por Gary Oldman), uma das poucas vítimas que
sobreviveu ao ataque do canibal. E ainda, um policial italiano, o inspetor Rinaldo
Pazzi (interpretado por Giancarlo Giannnini) com problemas financeiros que, atraído
pela recompensa oferecida por Verger, emprenha-se sozinho na captura do
assassino, sem considerar os perigos que poderiam advir dessa sua decisão.
A terceira narrativa fílmica, lançada em 2002, foi Dragão Vermelho. A história
é envolvente e enigmática, retrata o médico antes de O Silêncio dos Inocentes.
Novamente, Anthony Hopkins interpreta o psiquiatra Hannibal Lecter. No episódio, o
médico se mostra fragilizado, inconformado com o fato de ter sido superado por
outro. O tempo todo busca entender como foi pego: Com ele fez? Como ele
conseguiu? Ao mesmo tempo, não deixa de usar toda a sua inteligência e
perspicácia para induzir alguém a fazer o que ele quer: vingar-se de Will Graham.
22
Will Graham é a personagem que contracena o tempo todo com Lecter.
Interpretado por Edward Norton, é caracterizado como alguém dotado de
habilidades especiais: ele vê coisas; não se considera vidente, mas reconhece que
possui algo a mais. Esse algo a mais o auxilia na resolução de seus casos.
As cenas iniciais, mostram a prisão de Hannibal Lecter efetuada pelo Agente
Especial Will Graham. Os dois traçavam juntos o perfil de um assassino que come
parte de suas vítimas. Enquanto aguarda o retorno do psiquiatra, que saiu da sala,
Graham percorre com os olhos os objetos pessoais de Hannibal. Um livro de
receitas lhe chama a atenção: Hannibal é o homem por quem procura. Sem tempo
para reagir, o inspetor é atacado por Hannibal. O primeiro consegue ferir o outro
com uma flecha. Ao final, Graham dispara sua arma contra Hannibal.
Um diário relata ao espectador o desfecho do duplo ataque: ambos
sobrevivem; Hannibal é condenado à prisão perpétua e o inspetor do FBI aposenta-
se após ter recebido alta do hospital. O afastamento do inspetor é provisório, pois
ele será procurado, pouco tempo depois, por Jack Crawford, para ajudá-lo a traçar o
perfil psicológico do assassino apelidado de Fada dos Dentes ou Dragão Vermelho,
cujo nome é Francis Dolarhyde, papel de Ralph Finnes.
Tal criminoso mata famílias inteiras nas noites de lua cheia. O FBI espera
prendê-lo antes do próximo ataque. O assassino é apresentado ao espectador,
caracterizado como alguém preso ao passado, aos maltratos da avó, com
dificuldades de se encarar no espelho. Além disso, revela-se fã do Dr. Hannibal
Lecter, com o qual se corresponde e com quem compartilha seus feitos e desejos.
Mesmo contra a vontade de sua esposa, o agente retorna à ativa. Ele é
mostrado como alguém com medo, porém, consciente de suas habilidades natas,
sente-se obrigado a ajudar a salvar vidas. Então, aceita se reencontrar com Hannibal
Lecter.
A narrativa toda vai enfatizar o conflito entre os três: Hannibal que quer
vingança e busca sua autoafirmação; Francis Dolarhyde, que busca uma nova
identidade e o agente que precisa superar seu medo. Dragão Vermelho encerra com
uma chamada para o primeiro filme O Silêncio dos Inocentes.
Até aqui apresentamos aquilo que propomos estudar neste trabalho, o
contexto mais geral em que se encontram o filme, sua face de produto da indústria
23
cultural e o poder de seu discurso interno. Veremos em seguida os procedimentos
metodológicos que são utilizados para a realização deste texto.
A proposta deste trabalho, como dissemos inicialmente, é, em primeiro lugar,
estudar a personagem. Para esse fim, é preciso encarar a construção do filme, isto
é, a maneira que o diretor encontrou para dar forma às suas criaturas, e “aí pinçar a
independência, a autonomia e a “vida desses seres de ficção” (BRAIT, 1985). Para
MARTIN (2003), o diretor é o autor do filme. Porém, acreditamos que seja uma
simplificação, pois HOWARD e MABLEY (2002) ao abordarem o tema da autoria de
um filme argumentam que a questão é discutível. Os especialistas em roteiro alegam
que a forte interdependência entre os cineastas que produzem, rodam e montam um
filme não permite que se atribua a autoria a somente uma pessoa. Eles
complementam a reflexão dizendo que
[...] alguns filmes trazem a marca muito nítida de uma personalidade, muitas
vezes vem do diretor, mas, em alguns casos, do escritor, do fotógrafo e,
mais frequentemente do que gostariam de admitir dos teóricos do cinema de
autor, essa marca, estampada pelo filme todo, vem da estrela – não importa
quem tenha escrito ou dirigido. Desde os filmes de Mãe West até a série
Thil Man, passando pelas fitas de James Bond e pelos faroestes de Clint
Eastwood, muita coisa, no cinema, tira suas qualidades mais específicas
dos atores em frete à câmera. Mas, na maioria dos casos, o autor é a
equipe, não um indivíduo em particular. E a variedade, a profundidade e o
brilho de qualquer filme aumentam justamente pelos esforços desse
pequeno grupo, onde cada qual contribui com sua especialidade. (2002, p.
40, grifo nosso)
À ideia de BRAIT, acrescentamos o pensamento do Prof. Wolfgang Kayser
(1985, p. 4). Segundo ele:
todo estudo teórico [...] está inicialmente ao serviço da grande e difícil arte
de saber ler. Só quem sabe ler bem uma obra está em condições de fazer
entender aos outros, isto é, de a interpretar acertadamente (grifo nosso).
24
As considerações de BRAIT e KAYSER são úteis para refletirmos sobre a
primeira etapa do nosso trabalho, qual seja, a leitura e análise das películas. Para
isso, devemos considerar que
um filme é uma história contada pelas imagens em movimento e que se
estrutura em torno de um conjunto de elementos essenciais os quais
ganham maior ou menor ênfase conforme o objetivo que se quer atingir,
Portanto, para compreendê-lo, precisamos proceder a um levantamento das
técnicas de narração e em seguida, analisar quais os efeitos de sentido que
decorrem do uso desses elementos. Com esse propósito, servi-nos de duas obras
que tratam da linguagem fílmica. A primeira é o Dicionário Teórico e Crítico de
Cinema, AUMONT e MARIE (2009) e a segunda é A linguagem cinematográfica,
MARTIN (2003).
Salientamos que as obras acima não tratam a personagem de maneira
especifica, pois ela é considerada apenas um dos elementos dentro da estrutura
fílmica. Por conta disso, buscamos nos apoiar, também, na Teoria Literária,
especialmente em AGUIAR E SILVA (2007), MOISÉS (1983). KAYSER (1985),
BRAIT (1985) e finalmente BAKHTIN (2008), pois este considera que a personagem
existe enquanto linguagem. São as impressões e percepções sobre si e sobre o
universo à sua volta que irão determinar a existência da personagem.
Em seguida, pretendemos analisar os dois elementos norteadores das
narrativas fílmicas as relações dialógicas e a carnavalização. Para a primeira parte
da nossa análise recorremos aos textos de BAKHTIN (2000, 2008, 2010a e 2010b).
A escolha da teoria bakhtiniana justifica-se por apresentar mais que um objeto
de estudo da linguagem. Mikhail Bakhtin percebe na linguagem uma realidade
definidora da própria condição humana, que é o ponto central da temática de nosso
corpus. Em decorrência desse pensamento, o filósofo recupera o sujeito para o
discurso, ou seja, “para a língua enquanto fenômeno integral concreto” (2008, p.
209), através do “eu” e do “outro”, mediante processo da subjetivação. Em sua
concepção teórica, a língua é basicamente a manisfestação de uma visão de mundo
e tem uma realização efetiva no discurso. É no discurso que se evidenciam as vozes
que se enunciam na escrita cinematográfica.
25
Percebemos que o discurso do prisioneiro, o do policial e a falta de discurso
verbal, ou seja, a não expressão pela linguagem, de algumas personagens, tanto em
O Silêncio dos Inocentes quanto em Hannibal e também em Dragão Vermelho têm
grande importância, porque mostram a tensão e o estranhamento delas em relação
à sua própria realidade. Este é um aspecto relevante que se procurará evidenciar
neste trabalho, justamente, pelo mutismo forçado ao qual alguns dos tipos
representados têm sido submetidos.
As narrativas fílmicas estudadas dão voz a indivíduos que, por um questão de
gênero (Clarice), social (Lecter) ou outra questão qualquer, sempre estiveram
excluídos da participação social ou de qualquer tipo de direito. É uma maneira de
carnavalizar, ou seja, de subverter, de transgredir o discurso oficial. Segundo
BAKHTIN (2008 e 2010), violações do discurso, declarações inoportunas,
comportamentos contrários às normas e etiquetas são típicos da carnavalização.
A dissertação está organizada em quatro capítulos. No capítulo 1, buscamos
examinar a narrativa fílmica O Silêncio dos Inocentes. De início, apresentamos a
estrutura do filme. Em seguida, para a análise da ficção focalizamos os aspectos
relacionados com a ação, as personagens, o espaço, o tempo, o ponto de vista
narrativo, os e os recursos técnicos (o diálogo, a descrição, a narração e a
dissertação).
O capítulo 2 propõe-se a analisar a construção das personagens na película
Hannibal. No filme podemos observar que o diretor utilizou técnicas de narrativa bem
mais elaboradas que em seu antecessor. Isso se deve pelo fato de que a fábula de
Hannibal é narrada a partir de duas cidades distintas. Além da montagem alternada,
necessária para que não haja interrupção da diegese, destacamos outros recursos
como a criação do espaço da diegese e algumas cenas descritivas. Todos esses
elementos contribuem para a criação da obra.
O terceiro capítulo é o espaço da análise do filme Dragão Vermelho. Nesse
momento da dissertação, procura-se encerrar a apresentação das personagens.
Dessa maneira, poderemos partir para o próximo capítulo que apresenta as relações
dialógicas. Elege-se, aqui, os encontros como lugar onde se dão as relações entre
os sujeitos.
26
O quinto capítulo será escrito para mostrar, que a partir da análise dos filmes,
chegamos à conclusão que a concepção de mundo de cada um se sustenta sobre a
carnavalização.
Seguem os capítulos, as considerações finais, as referências bibliográficas e
o Anexo 1, onde se incluem as fichas técnicas dos filmes estudados nesta
dissertação.
27
Capítulo 1 - A personagem em O Silêncio do Inocentes
O objetivo deste capítulo é analisar as personagens que povoam a narrativa
fílmica O Silêncio dos Inocentes. Para atingir tal propósito, nos propomos a
descrever e analisar os processos de narração utilizados na construção das
mesmas.
O filme O Silêncio dos Inocentes, que possui vinte e oito seqüências3, conta
uma história que se passa nos Estados Unidos da América, na década de 1980. A
película possui uma narrativa linear, ou seja, os fatos são narrados em ordem
cronológica. À simplicidade do enredo aliá-se a utilização correta do potencial de
cada recurso técnico, mas sem que o resultado pareça excessivamente técnico e
sim convincente dentro do universo policial e das personalidades psicóticas. Para
isso, os desempenhos de Hopkins e de Foster são fundamentais.
1.1 Clarice Starling e seu ponto de vista
As duas primeiras sequências iniciam o “retrato” da protagonista.
O protagonista representa, na estrutura dos actantes ou agentes que
participam na açção narrativa, o núcleo ou o ponto cardeal por onde
passam os vectores que configuram funcionalmente as outras personagens,
pois é em relação a ele, aos valores que ele consubstancia, aos eventos
que ele provoca ou que ele suporta, que se definem o deuteragonista, a
personagem secundária mais relevante, o antagonista, a personagem que
se contrapõe à personagem principal, e que, em muitos textos, coincide com
o deuteragonista-, e os comparsas, as personagens acessórias ou
episódicas (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 699-700).
3 “Em sentido quase intercambiável com o da cena, a sequência é antes de tudo, um momento facilmente isolável
da história contada por um filme: um sequenciamento de acontecimentos, em vários planos, cujo conjunto é
fortemente unitário. [...] é uma sucessão não de planos, mas de acontecimentos [...]” (AUMONT E MARIE,
2009, p. 268). Esclarecemos que usaremos os termos sequência e cena como sinônimos.
28
O retrato inicial da personagem principal vai sendo aos poucos completado,
uma vez que é a protagonista que em geral merece uma apresentação mais extensa
e rica. Da mesma maneira, conforme sugere a citação acima, as outras personagens
vão nascendo à medida que o drama vai sendo construído pela câmera narradora.
Passemos à abertura do filme. Ela é feita com uma tomada em primeiro
plano. O espectador observa uma grande árvore perdida na imensidão do espaço
vazio que se observa atrás dela. Em seguida, a câmera vai se deslocando
lateralmente para baixo até que tudo seja descrito e o foco fixo e em plano geral
distante aguarda a aproximação de alguém.
Sobre a escolha do plano inicial, destacamos a passagem abaixo:
A escolha de cada plano é condicionada pela clareza necessária à
narrativa: deve haver adequação entre o tamanho do plano e seu conteúdo
matéria, por um lado (o plano é tanto maior ou próximo quanto menos
coisas há para ver), e seu conteúdo dramático, por outro (o tamanho do
plano aumenta conforme sua importância dramática ou sua significação
ideológica) (MARTIN, 2003, p.37).
Com base na explicação de MARTIN, pensamos que o diretor optou pelo
primeiro plano da árvore para antecipar uma característica de personalidade da
protagonista, sua tendência ao isolamento.
Juntamente como os créditos iniciais, a legenda permite identificar a floresta
perto de Quântico, Vírginia, EUA; em tal local, fica a sede do FBI – sigla para
Federal Bureau Investigation. O deslocamento da câmera é interrompido e o foco
fixo aguarda a aproximação daquela que será a protagonista. Enquanto ela se
aproxima do foco fixo, seu retrato físico e também psicológico vão sendo delineados.
Com a aproximação da jovem, a câmera passa a acompanhá-la durante o
período em que está fazendo treinamento: faz corrida e superação de altos
obstáculos. O narrador, ou seja, a câmera, com o intuito de revelar um traço
subjetivo da personagem e desde o início captar o espectador, se utiliza
principalmente de dois recursos. O primeiro deles é a alternância entre o primeiro
plano e o plano geral. Tal uso, nessa situação de início de narrativa, tem caráter
29
descritivo. O plano geral dá uma dimensão maior do local enquanto o primeiro plano
mostra detalhes relacionados à personagem: seu cansaço, sua determinação, etc..
O segundo recurso utilizado pela câmera para mostrar a personagem e ao
mesmo tempo captar o espectador é a alternância do ponto de vista. Tal termo
relaciona-se com o modo de narrar e pode ser compreendido de maneira geral como
sendo
Um lugar, real ou imaginário, a partir do qual uma representação é
produzida. [...] Esse ponto de vista é com freqüência identificado com o
olhar, e, em um filme narrativo, a questão será saber se esse olhar pertence
a alguém: a um personagem (plano “subjetivo”), à câmera, ao autor do filme
ou a seu enunciador [...]. A marcação mais ou menos insistente desse ponto
de vista corresponde aos diversos graus de ocularização4 (Jost). (AUMONT
E MARIE, 2009, p. 237, grifo nosso)
Ora o espectador vê o rosto cansado de Clarice, ora o espectador vê o que
está por vir, os próximos obstáculos a serem transpostos. A moça não se detém
diante de nada e o espectador participa de tudo junto com ela. Seu treinamento é
interrompido por um homem, visto de costas, que a chama de Starling e lhe
comunica que Crawford quer vê-la no escritório dele. AGUIAR E SILVA (2007) atribui
ao nome um elemento importante na caracterização da personagem. Para o teórico,
“o nome da personagem funciona freqüentemente como um indício, como se a
relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, ideológico,
etc.) da personagem fosse motivada intrinsecamente” (Ibid., p. 705).
O primeiro nome da protagonista Clarice, segundo o Dicionário Eletrônico de
Nomes Próprios5, foi levado para a Inglaterra na Idade Média. O mesmo nome deve
ter surgido na França e talvez seja uma forma derivada de Claritia ou de Clara. O
nome feminino Clara é de origem latina Clarus e significa claro, brilhante, ilustre.
Já o nome Clarissa6, que também é uma variação de Clara, indica uma
pessoa firme nas suas decisões. Embora vaidosa e bastante voltada para si própria,
4 O termo “ocularização” está relacionado com o que pode ver (ou não) uma personagem.
5 Disponível em http://nomes.netsaber.com.br/list_nomes_l_C.html. Acesso em 02 maio de 2011.
6 Disponível em http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/search.do. Acesso em 02 maio de 2011.
30
desde criança ela exibe um comportamento maternal em relação a quem precisa de
ajuda.
Ambas as etimologias revelam o perfil da protagonista. Quanto ao sobrenome
Starling7 uma significação relaciona-se com uma espécie de pássaro com penas
negras ou talvez esteja relacionado com a palavra inglesa “star” que significa estrela
ou astro. Traduziríamos livremente Clarice Starling como Estrela Brilhante ou Astro
Brilhante.
A moça retorna e o homem, ao se virar para acompanhá-la, identifica-se pela
sigla FBI bordadas em seu boné de cor amarela. O foco da câmera volta para
Starling e, durante seu retorno, o equipamento desvia-se da protagonista para
mostrar ao espectador em primeiro plano três cartazes de madeira cravados nas
árvores.
Tais cartazes exortam a garota a suportar a dor (Hurt), a agonia (Agony), o
sofrimento (Pain). Um quarto acrescenta amar isso (Love it); logo abaixo, com a tinta
apagada: orgulho (Pride). Os enunciados mostrados pela câmera narradora são
simbólicos, isto é, representam os valores ligados à realidade na qual está inserida a
personagem. Ou seja, para se tornar uma agente federal, ela precisa transpor todos
os obstáculos que se colocarem à sua frente (conforme o que já nos foi mostrado
nas primeiras cenas). Portanto, as frases antecipam a diegese: a vida da
protagonista não será fácil.
1.1.1 Clarice Starling e o ponto de vista do outro
A seguir, uma construção de grandes proporções é filmada em plano geral e
ângulo contra-plongée (o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva
abaixo do nível normal do olhar) e toma o espaço da protagonista, que é vista
minúscula pelas paredes de vidro de um longo corredor. Nessa situação, a sugestão
de superioridade da edificação (por metonímia da Instituição) em relação à pessoa
se deve ao tamanho do plano e ao ângulo de filmagem.
7 Disponível em http://www.thefreedictionary.com/starling. Acesso em 02 maio de 2011.
31
Ilustração 1 - Vista panorâmica do edifício de treinamento do FBI. Clarice é a pessoa
correndo pelo lado direito do edifício8
Um corte é necessário para que a câmera entre no edifício e siga a
personagem. A alternância entre o ponto de vista objetivo e subjetivo vai fazer com
que o espectador vá se deslocando pelos corredores, escadas e salas juntamente
com a protagonista. Os detalhes são focalizados quadro a quadro em primeiro plano.
Aos poucos, a câmera vai mostrando onde a história acontece. Trata-se do Centro
de Treinamento do FBI (que de fato existe e fica localizado nesse mesmo local). Há
muitos jovens em grupos ou em duplas manuseando armas os quais contrastam
com a solidão de Starling. Em seu caminho encontra-se com uma colega que a
chama pelo primeiro nome, “Clarice”. Neste trecho, o retrato da personagem está se
completando: Clarice Starling é uma pessoa jovem, descontraída, porém parece
solitária. Consideramos isso, pela observação dos lugares por onde ela passa: as
pessoas caminham ou trabalham em grupos e não isoladas.
8 Destacamos que essa locação, dez anos depois, em Hannibal, será mostrada de um ângulo diferente. Após ter
sido punida injustamente, a protagonista está sentada olhando para fora através das paredes de vidro. À sua
frente, o vazio.
32
Ilustração 2 - A cena evidencia a jovialidade e o entusiasmo da estudante
Até que chegue a seu destino, a sala de Crawford, o ambiente masculino no
qual Clarice está inserida é mostrado. A cena acontece em plano distante, isto é, os
atores são vistos de corpo inteiro. Dessa maneira, a desvantagem tanto física quanto
numérica de Clarice é chocante para o espectador.
Clarice segue por um corredor até chegar em frente à porta de um elevador.
Dentro dele, podemos ver nove homens, os quais entram no elevador e a circulam.
Todos eles estão vestidos com camisetas vermelhas e entram no elevador primeiro,
conversando, não a cumprimentam nem são cumprimentados. A moça, vestida com
um casaco cinza, fica circulada por uma linha vermelha. Este detalhe da cor, realça
a desvantagem numérica da figura feminina, porém tal fato parece não incomodá-la
uma vez que adota uma postura corporal de enfrentamento e não de submissão.
Além disso, ela é descontraída, jovial e mantém-se com a cabeça erguida olhando
fixamente para o painel que marca os números dos andares. A porta se fecha.
Ilustração 3 - Sequência em que ocorre o destaque na predominância do sexo masculino da
Instituição 9
9 Em entrevista que pode ser assistida no DVD, a responsável pela pesquisa de campo para a realização do filme
destaca que o FBI ficou grato pelo filme, pois a instituição estava em campanha para o recrutamento de mais
mulheres.
33
A seguir, a câmera fixa em primeiro plano aguarda a abertura da porta do
elevador. Quando isso acontece, o espectador vê Clarice saindo do elevador e
retomando seu destino que é o Departamento de Estudos Comportamentais. Starling
entra na sala e, enquanto aguarda seu superior, observa tudo à sua volta.
Inesperadamente seus olhos se detêm em um quadro de fotografias que mostram as
mulheres assassinadas por Buffalo Bill. Ao lado das fotos, anexado no mesmo
mural, está uma folha de jornal com a manchete que narra o ocorrido. A câmera
volta a focalizar o rosto da protagonista: ele está contraído; ela se emociona com o
que vê. Neste ponto da narrativa fílmica, o uso do travelling lateral e a alternância
entre o ponto de vista objetivo e o subjetivo aproximam o espectador e a
personagem.
O clima de comoção é quebrado pela chegada de alguém. Trata-se de Jack
Crawford, interpretado por Scott Glenn, personagem secundária, ou seja, uma
deuteragonista. Os atores estão em primeiro plano e o enquadramento é quadro a
quadro (ou seja plano subjetivo do interlocutor). Tal recurso imprime um tom de
intimidade à cena.
Durante o diálogo, de caráter informal e bastante cordial, Clarice é elogiada
por seu desempenho na academia: ela está se formando como uma das melhores
alunas da turma e seu desejo é fazer parte da equipe do Departamento de Estudos
de Comportamento. Crawford reconhece a qualidade da moça, oferece-lhe um
trabalho. Em poucas palavras, explica a ela do que se trata: Clarice deve procurar
um prisioneiro, Dr. Hannibal Lecter, um brilhante e perigoso canibal, e tentar
conseguir dele algumas informações para completar o dossiê do prisioneiro, uma
vez que todas as tentativas de diálogo com o detento foram frustradas.
Enquanto Clarice faz novas indagações, a câmera vai se afastando das
personagens (travelling para trás). Dessa maneira, novos elementos vão ser
adicionados à cena: o dossiê do prisioneiro, um crachá de identificação e os
relatórios que devem ser preenchidos. Atrás de Crawford está o quadro com as
fotografias que impressionaram Clarice – a sugestão é de que o trabalho designado
a Clarice se relaciona com os assassinatos.
Em seguida, um travelling rápido para frente faz com que a tela seja tomada
pelo rosto de Crawford. Ele diz: “Nunca revele nada pessoal. Você não vai querer ter
34
Hannibal Lecter dentro de sua cabeça. Faça o seu trabalho, mas nunca se esqueça
do que ele é!” (Grifo nosso).
Dessa maneira, Clarice e o espectador foram advertidos quanto à
periculosidade de Hannibal Lecter. O perfil traçado do prisioneiro parece, de
antemão, contrapor-se com o significado do seu nome. Como já destacamos
anteriormente, o nome é de grande importância na caracterização das personagens;
é “considerado pelo homem primitivo como parte integrante de sua personalidade”
(RANK, 1939, p. 101).
Segundo o Dicionário Eletrônico de Nomes Próprios10 o nome Hannibal ou
Aníbal em português significa
dádiva do deus Baal e indica uma pessoa passiva e receptiva, que
normalmente se mostra calma, gentil, diplomática e bondosa. Apesar de não
ser ambicioso, consegue tudo o que deseja usando sua enorme capacidade
de convencer e mesmo seduzir. (grifo nosso)
Uma consulta ao mesmo dicionário mostrou-se inútil para tentarmos
conseguir o significado do sobrenome Lecter. Acreditamos que o nome seja uma
criação, isto é, uma corruptela do vocábulo inglês lecture. Para buscarmos o
significado que acreditamos seja relevante para a nossa análise, fizemos uma
consulta ao dicionário Oxford Escolar. A obra oferece as seguintes entradas para a
palavra lecture:
s 1 palestra: to give a lecture dar uma palestra 2 sermão LOC lecture treatre
anfiteatro *1 vi – (on sth) dar uma palestra (sobre algo) 2 vt ~ sb (for/about
sth) passar um sermão em alguém (por causa de algo) lecturer s 1 (GB)
(USA professor) ~ 2 conferencista (1999, p.483).
Portanto, teríamos alguém com características positivas com um bom
domínio da palavra. Veremos pelo andamento da diegese quem é Hannibal Lecter.
10
Disponível em http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/search.do. Acesso em 02 maio de 2011.
35
1.2 Clarice Starling fora da Academia
Ao ser designada para a entrevista, Clarice deixa a academia e viaja para
Baltimore. Uma tomada externa em plano panorâmico mostra o Hospital Estadual e
Prisão Psiquiátrica de Baltimore. Uma voz em off, que é de uma personagem da
ação, faz a transição entre as seqüências.
Com um corte, a câmera entra no hospital. A voz em off ganha um rosto. Em
primeiríssimo plano e ângulo plongée o homem continua os comentários sobre
Lecter, iniciados na sequência anterior. O mesmo tipo de plano e o mesmo ângulo
da câmera simulam uma continuidade: as duas personagens compartilham da
mesma opinião sobre Hannibal Lecter. Além disso, o interlocutor, que é Clarice, está
em pé. Dr. Frederick Chilton diz olhando para Clarice: “Ele é um monstro, um
psicopata. É raro capturar um vivo. Do ponto de vista da pesquisa médica, Lecter é o
nosso item mais estimado.” (grifo nosso)
O Larousse Cultural oferece a seguinte definição de monstro:
s.m. (lat. monstrum). 1. Organismo que, no todo ou em algumas de suas
partes, se afasta da estrutura ou da conformação natural da sua espécie ou
sexo, e cujo estudo pertence à teratologia. 2. Ser fantástico das lendas
mitológicas. 3. Pessoa cruel, feroz, desumana. 4. Pessoa feia, horrorosa. 5.
Fig. Coisa gigantesca e colossal. 6. Fam. Pessoa admirável sob qualquer
aspecto.
adj. 2g.2n. Que revela natureza, qualidade ou proporções extraordinárias.
(1992, p. 762).
Pelo número de entradas que o dicionário traz da palavra “monstro”, é
praticamente impossível traçar um perfil da personagem. O efeito de expectativa
criado com o uso do vocábulo de múltiplos sentidos prende e aguça a curiosidade da
protagonista e do espectador.
O diálogo entre Clarice e o médico não é agradável para a moça. O homem
sempre imprime um tom sarcástico e irônico em sua fala. Trata a estudante com
desprezo, fazendo insinuações sobre as reais intenções de Crawford ao recrutá-la
36
para o trabalho, dizendo que há tempos não via detetive tão atraente. Tenta flertar
com Clarice, mas ela o ignora e retoma o assunto Lecter.
O tom de intimidade é quebrado com a abertura da câmera para o plano
geral. Clarice consegue se livrar da abordagem grosseira e sexista feita pelo médico.
Uma nova sequência se inicia. Porém um detalhe que pode passar despercebido
refere-se a um objeto que será retomado mais à frente. O espectador deve estar
atento a ele, ou se perderá no futuro, isto é, pode achar que houve uma
fragmentação na narrativa ou que aconteceu algo muito fantasioso. Trata-se da
caneta que o médico segura o tempo todo e a qual só vai guardar no início da
próxima cena.
O objeto mostrado várias vezes pela câmera irá representar dentro da
diegese a chave para a liberdade de Hannibal Lecter, até o momento desconhecido.
Finalmente, os dois se encaminham para a cela de Lecter. Nessa sequência,
destacaríamos o cenário, uma vez que contrasta com a sensação de espaço e
liberdade sugeridos pela primeira sequência a qual descrevemos.
Eles andam apressadamente, com a câmera tentando acompanhá-los. Após
terem atravessado uma porta, uma tomada fixa em ângulo ponglée mostra o
percurso a ser percorrido. Trata-se de um profundo labirinto estreito de escadas. Ao
final dele, há um policial.
A opção do diretor em mostrar a longa estrada relaciona-se com o
retardamento da diegese, ou seja, cria-se um clima de suspense. Principalmente
para a personagem Clarice que está adentrando em um mundo novo, desconhecido
até agora.
Um corte da câmera acelera a diegese e já nas escadarias eles continuam
conversando; o médico não perde a chance de provocar Clarice. Além disso, vai
fazendo outras observações sobre o prisioneiro: “Eu acho que Lecter não vê uma
mulher há oito anos e você é o tipo dele.” Acreditamos que tal comentário objetiva a
criação de um clima de “romance” no imaginário do espectador e de Clarice. Aos
poucos, o narrador vai construindo a unidade de tempo ao se referir ao período de
aprisionamento de Hannibal. Quando ele diz “você é o tipo dele” há uma
antecipação da diegese, ou seja, durante a narrativa uma perturbadora empatia vai
se estabecer entre Hannibal Lecter e Clarice Starling, conforme comentamos acima.
37
A montagem alternada (mudança de ângulos e ponto de vista) é utilizada uma
vez que há necessidade de se imprimir movimento aos planos que se sucedem.
Durante o percurso o médico diz: “Nós tentamos estudá-lo é claro! Mas ele é muito
sofisticado para os testes padrões. Ele odeia a gente. Ele acha que eu sou o castigo
dele.” (grifo nosso)
Por meio da primeira fala do médico, que usa um tom jocoso, percebemos
que Hannibal é mantido vivo apenas pelo interesse que se tem em estudá-lo. Ao se
referir ao outro como “nosso item” o médico desconsidera a qualidade humana do
prisioneiro. Enfatiza assim sua utilidade como cobaia, como objeto de pesquisa.
Entretanto, não deixa de reconhecer a superioridade do outro, pois o considera
“sofisticado para os testes padrões”.
O caminho para baixo é longo. Além das escadarias, descritas anteriormente,
eles percorrem longos corredores iluminados e com tonalidades claras. Lecter está
realmente enclausurado em um porão de segurança máxima.
Reafirmamos que a ênfase na distância que separa Hannibal Lecter do
mundo, consequentemente de Clarice, não está relacionada apenas com a
periculosidade deste. Metaforicamente representa a estrada que levará Clarice a
autoconsciência.
À medida que se aproximam de seu destino, o homem muda bruscamente o
tom de sua fala e diz seriamente: “Não toque no vidro, não se aproxime do vidro. Só
entregue a ele papel macio. Nada de lápis, caneta, grampos ou clips no papel dele.
Use a gaveta deslizante. Se ele tentar lhe passar alguma coisa, não aceite.”
A essa altura, Clarice e o espectador estão ansiosos para chegar à cela de
Lecter. A câmera mostra que tal espera está chegando ao fim. O ambiente, antes
claro e iluminado, vai ficando avermelhado e escuro. Grades vermelhas aparecem. É
por trás delas que as personagens são vistas. Para aumentar o clima tenso e
retardar o aparecimento de Hannibal, o diretor inclui uma fotografia e a mostra para
Clarice em tom de advertência acrescentando:
Dr. Chilton: Eu vou mostrar porque insistimos em tantas preocupações. Na
tarde de oito de julho de 1981, ele reclamou de dores no peito e foi levado
para a enfermaria. A focinheira foi removida e quando a enfermeira se
inclinou para fazer o eletro, ele fez isso. (Grifo nosso)
38
Nesta cena em que há uma fotografia envolvida, a câmera trabalha com a
sugestão, com o não “visto”. É pela reação de Clarice que o espectador imagina o
que está representado no papel. Consideramos aqui, que a fotografia é uma
linguagem objetiva, sem truques, que embora se ofereça “apenas como material
para o cotejo”, o que vemos nela é um reflexo “mais puro do que nosso reflexo no
espelho”, conforme sugere BAKHTIN (2000, p. 54). Sendo assim, a imagem que
Clarice vê é a representação do real. Dessa maneira, a personagem Hannibal Lecter
ganha nova face. Sua construção está aos poucos deixando de ser subjetiva, isto é,
pela fala do outro; a fotografia é um elemento concreto. Ninguém duvida que ela
retrate a pessoa que foi atacada por Lecter.
As grades vermelhas são abertas. Um som grave de metal é ouvido. Tal ruído
aumenta o clima de tensão que vem sendo observado desde o momento em que as
personagens iniciaram sua descida até as celas que se localizam no subsolo. Pela
montagem alternada, vemos o rosto avermelhado de Clarice em ângulo contra-
plongée, enquanto ela observa a fotografia que está em suas mãos.
A mudança de foco da câmera acontece quando o médico volta a falar; seu
rosto está em primeiríssimo plano11 e então se utilizando de um tom jocoso diz: “Os
médicos conseguiram salvar um maxilar e mais ou menos... salvar um dos olhos... O
pulso dele nunca foi acima de 8512, mesmo quando comeu a língua dela... E eu o
mantenho aqui.” (grifo nosso). O termo destacado na fala do homem demonstra que
ele estabelece com o outro uma relação de posse, ou seja, o diretor considera o
prisioneiro Hannibal como algo de sua propriedade.
Ao chegarem ao destino, Clarice pede ao médico que a deixe entrar sozinha,
considerando que Lecter “acha que você é o castigo dele”. Ao fazê-lo, imita o tom
jocoso comum na fala do diretor Chilton. Este último se sente contrariado, pois
11
“Primeiro Plano (Close-Up): A câmera, próxima da figura humana, apresenta apenas o rosto ou outro detalhe
qualquer que ocupa a quase totalidade da tela (há uma variante chamada primeiríssimo plano, que se refere a um
maior detalhamento – um olho ou uma boca ocupando toda a tela)” (XAVIER, 1984, p. 19) 12
“O ritmo das batidas de um coração normal descansado é de 60 a 100 por minuto. Os átrios (as duas câmaras
menores do coração) contraem-se simultaneamente e o mesmo acontece, logo em seguida, com os ventrículos (as
duas câmaras maiores). Esse mecanismo ocasiona a “batida dupla” característica do coração: tum-tá, tum-tá…
Exercícios ou estresse emocional podem aumentar o ritmo cardíaco para até 200 ou mais pulsações. Em pessoas
com coração sadio, quando a demanda de esforço volta ao normal, o ritmo cardíaco também se restabelece
rapidamente.” (Disponível em http://www.drauziovarella.com.br/Sintomas/259/arritmias. Acesso em 21 maio
2011)
39
esperava conseguir algo do prisioneiro com a presença da moça lá. Sem ter o que
fazer, responde de maneira grosseira, porém concorda. Dirige-se ao enfermeiro o
qual estava aguardando e lhe pede para que a acompanhe até a saída após a visita.
Uma porta se fecha atrás de Clarice, a câmera circula lentamente pelo local
em plano subjetivo da personagem Clarice. A sala é pequena, os tons de vermelho e
branco predominam. Há muitos monitores de vídeo, um deles mostra o Dr. Chilton
fazendo seu caminho de volta para cima. Há três pessoas do sexo masculino. Um
deles está atrás de um vidro, repleto de armas. O outro está sentado e cumprimenta
a moça com a cabeça. Um terceiro se apresenta como Barney e mostra o lugar onde
Clarice pode guardar seu casaco. Ele abre a grade e diz em tom cortês: “Ele fica no
final. A última cela. Mantenha a sua direita. Lá tem uma cadeira para você. Eu vou
ficar de olho. Está tudo bem!”.
1.2.1 Clarice Starling e Hannibal Lecter – o primeiro encontro
Ao mesmo tempo em que uma grade se fecha outra se abre. O peso delas
pode ser sentido pelo som agudo gerado quando são movimentadas. Em Chevalier
e Gheerbrant (2009, p. 734), registra-se que “porta”, dentre diversas acepções,
simboliza o local de “passagem entre dois estados, dois mundos [...] ela tem
significado dinâmico, psicológico”. Ora, isso pode simbolizar também a procura do
homem pela sua identidade. Na focalização insistente da câmera em mostrá-la
durante seus intensos treinamentos, está manifesto o empenho dela, nesse início de
carreira, em afirmar sua identidade como policial.
A jovem inicia sua caminhada pelo corredor, a câmera a mostra pelo ponto de
vista objetivo, ela respira fundo e olha para frente. Então, a cena passa a ser
mostrada pelo ponto de vista da personagem. Dessa maneira, o espectador vê o
estreito corredor com paredes de pedras que ela terá de percorrer. Muito
lentamente, ela transpõe o percurso. O espectador, ao caminhar com ela, pressente
o seu medo, sua angústia, sua tensão. Ela precisa passar pela cela de outros três
prisioneiros, os quais fazem muito barulho, agarram-se às grades se dirigindo a ela
com xingamentos e grosserias.
40
Com relação à expressividade da cena, o que mantém a atenção e o
interesse do espectador é a montagem rítmica, isto é, a escolha do momento exato
para que ocorra a mudança de plano. MARTIN (2003) explica como é a técnica
Se o plano se prolonga, advém um instante de aborrecimentos, impaciência.
Se cada plano for cortado exatamente no momento em que diminui a
atenção, sendo substituído por outro, o espectador permanecerá
constantemente atento. Dessa maneira, o filme tem ritmo (p.148).
Ao fazer cortes no plano, o diretor modela, ou seja, determina o ritmo do filme
e assim enfatiza um fato ou outro, sendo assim, a escolha feita é de caráter
expressivo e não somente narrativo. Optando por retardar o tempo de deslocamento
da personagem pelo pequeno e estreito corredor, o diretor deseja provocar um
aumento do suspense. Além disso, todos sabem que Hannibal está próximo, em
frente à cadeira, e o retardamento da diegese, garante um “tempo” maior para que o
espectador e a protagonista se prepararem para o encontro.
Um tema musical acompanha o compasso de Clarice. Ele vai se intensificar
quando ela chega ao final do corredor e procura por Hannibal, juntamente com o
espectador, uma vez que a câmera focaliza o lugar em ponto de vista objetivo. Os
movimentos circulares do aparelho simulam os olhos da estudante. Até que a
objetiva se fixa. Ele está em pé, atrás do vidro.
Para filmar a cena do encontro entre Clarice e Hannibal, o diretor utiliza a
técnica da profundidade de campo, que consiste em captar o movimento das
personagens. Ao mesmo, em que ela, câmera, se desloca para fazer as tomadas.
Encontramos em MARTIN (2003) a descrição do recurso
Uma composição em profundidade de campo consiste em distribuir os
personagens (e os objetos) em vários planos e fazê-los representar, tanto
quanto possível, de acordo com uma dominante espacial longitudinal (o eixo
óptico da câmera). A profundidade de campo é tanto maior quanto mais
afastados os planos de fundo estiverem do primeiro plano e quanto mais
próximo da objetiva este se encontrar (p. 165).
41
O uso da composição em profundidade de campo permite que o diretor
combine de maneira audaciosa o primeiro plano e o plano geral, acrescentando “sua
acuidade de análise e sua capacidade de impacto psicológico à presença do mundo
e das coisas ao redor, através de enquadramentos de uma rara intensidade estética
e humana”.
É exatamente a impressão de “raridade” e “intensidade” que a próxima
sequência provoca no espectador. A cena, cujo tempo de duração é de 7m22s, se
inicia com um cumprimento cordial que parte de Hannibal; ele veste o uniforme azul
da prisão e está perfeitamente ereto; olhando atentamente para a garota.
A visão daquele homem quebra a expectativa do público e da moça: ambos
esperavam um monstro. A câmera circula lentamente pela cela. Finalmente, a
objetiva se fixa por trás dos ombros de Lecter e vemos Clarice sob o ponto de vista
dele. Ela se apresenta cordialmente e mostra suas credenciais conforme solicitação
do prisioneiro.
Ilustração 4 - Lecter visto por Clarice e Clarice vista por Lecter
Quando Starling lhe exibe sua carteira, ele solicita que ela chegue mais perto.
De repente, com um corte da câmera, pela primeira vez todos podem vê-lo. Hannibal
é focalizado em primeiríssimo plano, que se refere a um maior detalhamento – um
olho ou uma boca ocupando toda a tela. Acreditamos que tal tomada objetiva
corroborar com o retrato de “monstro” criado anteriormente por Crawford e pelo Dr.
Chilton, pois em breve o espectador e Clarice vão se deparar com um sujeito que
está encarcerado já faz muito tempo.
Hannibal fica muito irritado quando se dá conta de que sua visita é uma
estudante. Pensamos que ele tenha se sentido coisificado, ou seja, um objeto de
42
estudos. Sua reação é baixar os olhos e dirigir-se a Clarice de maneira irônica.
CASTRO (2008) refere-se à ironia como sendo típico do discurso bivocal, isto é,
aquele surgido inevitavelmente sob as condições do discurso dialógico.
Além da entonação irônica, Lecter brinca com os opostos, ou seja, a negação
e a afirmação: “Você não é do FBI? É?”. Dessa maneira, observa-se que ele não se
preocupa em ocultar seu descontentamento. Por sua vez, Clarice responde ao
questionamento sem usar a negativa, pois isso denotaria uma situação permanente:
“Ainda estou em treinamento na academia.”
Ao usar a expressão “ainda”, Clarice procura transmitir uma ideia de algo
transitório, isto é, prestes a se modificar. Sua estratégia, no entanto, não surte efeito,
pois a reação de Lecter assusta a ela e ao espectador: ele abre bem os olhos na
continuação de sua fala.
Hannibal: Jack Crawford mandou uma estagiária para mim?
Clarice: É sou uma estudante. Estou aqui para aprender com o senhor.
Talvez possa decidir por si mesmo, se sou ou não qualificada para isso.
Hannibal: Muito bajulador de sua parte, agente Starling. (grifo nosso)
Nessa altura do diálogo, Clarice procura manter o distanciamento e valorizar o
saber do outro. Então a câmera a mostra do ponto de vista subjetivo da personagem
Hannibal. Tal recurso sugere que ele a esta analisando. Ela, por outro lado, parece
estar à vontade; senta-se conforme sugestão dele.
Durante o diálogo, há a predominância do primeiríssimo plano para o rosto de
Hannibal (ele está em pé). A mulher será enquadrada em contra-plongée, afastada
na câmera em plano frontal – ela está sentada. Hannibal quer saber o que o
companheiro de cela Miggs dissera para ela. Clarice: “Ele disse: Sinto o cheiro do
seu sexo.”; Lecter: “Entendo. Eu mesmo não sinto!”
Ao utilizar um tom gentil e compreensivo em sua fala, Hannibal demonstra
sua solidariedade, além de deixar claro que não a trataria daquela maneira
grosseira. Logo em seguida, a sequência da cena mostra que ele mentiu a respeito
de sua sensibilidade olfativa, talvez para deixá-la mais à vontade. A narração é feita
com a câmera mostrando a maneira como o prisioneiro ergue o pescoço em direção
43
aos orifícios que permitem a entrada de ar na cela. Hannibal inspira longamente e
lentamente nomeia os cremes de corpo e de mãos que ela está usando e o quais
eventualmente usa.
Analisando o ambiente em que se encontra Hannibal e a forma como o
narrador destaca seu olfato faz com que o prisioneiro se assemelhe a um animal, ou
até mesmo, um predador que fareja sua presa antes de atacá-la. Além dessa
informação, nada mais nos é revelado sobre a personagem Hannibal Lecter.
Clarice se atrapalha com tudo aquilo e muda de assunto. Assim, o local é
focalizado em plano geral para que se possa ter uma visão da cela toda. Os dois são
focalizados lateralmente, estão um de frente para o outro, enquanto procuram
examinar o aspecto físico um do outro. Para BAKHTIN (2000, p. 47), o aspecto físico
é “o conjunto dos componentes expressivos que constituem o corpo humano”.
Ambos estão tentando imaginar o impacto que sua imagem externa provoca no
outro. Clarice, sentada à sua frente, procura motivos para continuar a conversa,
observa todos os detalhes da cela, seguindo a recomendação de Crawford. Alguns
desenhos fixados nas paredes da cela vão chamar a atenção da estudante. Assim,
ela se refere a eles:
Clarice: Foi o senhor quem fez os desenhos?
Lecter: Este é o Duomo visto do Belvedere. - a câmera mostra o desenho e
depois Hannibal - Conhece Florença?
Clarice: Todos os detalhes só de memória?
Lecter: Memória, agente Starling é o que eu tenho em vez da vista.
Essa referência à cidade de Florença é retomada em Hannibal, filme que será
objeto de nossa análise no próximo capítulo. Ao mencionar sua falta de “vista”,
refere-se a sua condição de prisioneiro, ou seja, o fato de estar privado de sua
liberdade.
Até este ponto da narrativa fílmica, o monstro ainda não apareceu. Em seu
lugar, mostra-se um homem gentil, compreensivo, culto, sensível. Alguém que
valoriza suas lembranças, isto é, sua vivência. Tal homem não é aquele que Clarice
esperava encontrar, ou seja, o canibal.
44
Aproveitando a palavra “vista” usada por Hannibal, a agente tenta introduzir o
seu assunto. Então, ela pede para que o médico “mostre seu ponto de vista” no
questionário que estava com ela. Hannibal ironiza a maneira como Clarice tenta
dissuadi-lo. Isso provoca certo constrangimento na moça que procura manter-se
controlada. O diálogo prossegue, as posições continuam as mesmas: Clarice: “Só
estou pedindo para dar uma olhada nisso, doutor. Mesmo que preencha ou não.”
(grifo nosso)
Em sua fala, Hannibal critica o sistema que tenta estudá-lo utilizando-se de
pessoas ainda em treinamento. Dessa maneira, coloca em dúvida a competência de
Clarice. Na continuidade, ele inicia a apresentação da personagem Buffalo Bill,
chama-o de “garoto mau”, atribuindo aos crimes um tom de traquinagem, de
brincadeira de criança. Após falar de sua impressão sobre o assassino, Hannibal
pergunta sobre o apelido que foi atribuído aquele, pois os jornais omitem essa
informação. Dessa maneira, o prisioneiro critica a maneira como são veiculadas as
notícias pela imprensa.
Clarice explica que o apelido foi dado pelos policiais que encontraram o corpo
da primeira mulher e que eles levaram em conta o costume do assassino de tirar a
pele de suas vítimas. A estudante acrescenta que os assassinos contumazes ficam
com uma espécie de troféu das vítimas, com exceção de Hannibal que os comia.
Nesse momento, os olhos de Hannibal desviam-se dos olhos dela e focalizam
o chão. A fala de Clarice parece ter relembrado o prisioneiro de que ele também é
um assassino, isto é, ela toca em um aspecto da personalidade dele que até então
não havia sido considerada.
Percebendo-se “inteiramente calculado e mensurado”, Hannibal muda o tom
de sua fala e quebra o clima de cordialidade mantido até o momento. Em tom grave,
o pedido para que ela lhe passe os documentos soa como uma ordem. A cena é de
grande expressividade, pois ambos “lutam obstinadamente contra” as “definições
que os outros fazem de sua personalidade” (BAKHTIN, 2008, p. 67).
Ela se levanta, o tempo todo olha para ele, coloca os documentos na caixa
que se localiza ao lado esquerdo da cela. A moça é acompanhada pela câmera que
está posicionada por trás de Lecter. Após ter depositado os documentos, Clarice
45
retorna para a sua cadeira. Sua fisionomia demonstra que a estudante está satisfeita
com a sua conquista até aqui: “ao menos ele vai olhar o que ela trouxe”.
Há silêncio. Até que, o prisioneiro inicia a leitura dos papéis, ainda em pé,
porém posicionado de lado apoiando o braço direito no vidro. Olha para ela e pisca,
molha os dedos com sua saliva. A câmera mostra rapidamente o formulário em
primeiro plano, o elemento de cena mais importante neste momento, é por causa
dele que Clarice está lá.
Após passar os olhos pelo documento, a câmera retorna para Hannibal que
agora está mais próximo da câmera, pois é focalizado dos ombros para baixo. O
prisioneiro faz um trocadilho irônico deixando a jovem desconcertada. Em seu longo
monólogo, percebe-se a instauração do confronto de interesses sociais: Hannibal, o
prisioneiro, fala para Clarice, a policial, que ali representa o sistema, ou em outros
termos, se dirige a Crawford ou ao Dr. Chilton: “Ah! Agente Starling, você acha que
pode me dissecar com este instrumento pobre?”, (grifo nosso).
Quando responde à provocação, sua voz sai trêmula. Sua posição de
inferioridade é mostrada pela câmera que a focaliza em ângulo contra-plongèe:
“Não. Eu achei que, com o seu conhecimento...” (grifo nosso).
Clarice tenta destacar a única qualidade do outro que interessa ao sistema,
ou seja, o saber. Porém Lecter não a deixa concluir. Durante a cena, a câmera
desloca-se de maneira a mostrar ora o falante e ora o seu interlocutor: Tal opção
imprime o tom dramático da cena, na qual o retrato de Clarice irá se completar com
a apresentação de seu passado e de seu projeto de vida. Hannibal, agora em plano
distante, diz pausadamente e enfaticamente: “Você é muito ambiciosa, não é? Sabe
o que você parece com essa bolsa cara e esses sapatos baratos. Parece uma jeca
[...]”
A câmera mostra como Clarice reage às palavras de Hannibal. Rapidamente
retorna para ele, um travelling para frente para aproximando a objetiva do prisioneiro
que continua falando: “Ter se alimentado bem lhe deu ossos fortes, mas [...] Com
esse sotaque que tenta desesperadamente esconder do oeste da Virgínia. O que é
que seu pai faz? Ele é um mineiro de carvão? Faz sermões demorados?”.
Aos poucos, o rosto de Clarice vai sendo aproximado da câmera e o ângulo
ficando cada vez mais inclinado, isto é, simulando o recolhimento da moça, que está
46
sendo atacada pelas palavras do outro: “Eu sei que os rapazes descobriram você
bem cedo, nos ditosos e desastrados agarramentos nos bancos dos carros.”
Durante sua fala, Lecter é mostrado em primeiríssimo plano, com seus olhos
azuis muito abertos, e articula pausadamente cada palavra que profere: “Enquanto
você só pensava em cair fora e ir para algum lugar em ir para o FBI.”
Hannibal ataca os valores de Clarice e sua opção de vida. Nesse momento da
narrativa, o ângulo contra-plongée deixa evidente a inferioridade da estudante em
relação ao outro. Segundo BAKHTIN (2008, p. 67), “na boca do outro, [...] à revelia”
sua verdade transforma-se em “mentira que a humilha e mortifica [...]” (grifos do
autor). Para responder ao discurso do outro, ela precisa erguer a cabeça. Nesse
contexto, esse movimento “de levantar a cabeça” possui um caráter de recuperação
e de refração da personagem. “O senhor vê muito doutor! Mas é forte o bastante
para apontar esta alta percepção pro senhor mesmo? O que me diz do senhor? Por
que não olha o senhor mesmo e escreve o que vê? Talvez esteja com medo13?”
O foco retorna para Hannibal. Com seus olhos fixos em Clarice, ele caminha
em direção à caixa de documentos e a fecha com violência. Pode-se ouvir um som
agudo. Do lado de fora cela, a estudante dá um pulo na cadeira, ou seja, a câmera
mostra ao espectador que a estudante não se sente mais tão à vontade. O discurso
provocativo de Hannibal desnuda-a.
Um corte da câmera possibilita que o foco volte para Hannibal. Seu rosto está
colado ao vidro em primeiríssimo plano, tem seu olhar fixo em Clarice e também no
espectador. Em tom ameaçador diz: “Um recenseador uma vez tentou me testar. Eu
comi o fígado dele com um prato de feijão e um belo vinho.”
13
O tema do medo é retomado com mais ênfase em Dragão Vermelho.
47
Ilustração 5 – Lecter está colada ao vidro olhando para Clarice
Nesse momento, notamos que Clarice toca em um assunto do qual Lecter
não quer falar. Por isso, tenta assustá-la com ruídos e palavras grosseiras.
Momentaneamente, a câmera mostra a reação de Clarice ao comportamento rude
do outro. Em seguida, a câmera focaliza Hannibal, de corpo inteiro, virando-se de
costas e afastando da câmera, enquanto diz a Clarice para voltar à escola.
A câmera sai da cela e se volta para o corredor. Vemos Clarice em silêncio
tentando levantar-se da cadeira, ela ainda sente o peso das palavras de Hannibal.
Retira-se lentamente, cambaleante. Ao passar pela cela de Miggs este lhe atira seu
sêmen sobre ela. Tal ocorrido desencadeia uma desordem, pois além dos gritos dos
outros prisioneiros, a música instrumental, antes imperceptível, agora é grave e
corrobora com a dramaticidade do momento vivido por Clarice.
Destacamos que a introdução do sêmen nessa passagem tem significação
simbólica. Em CHEVALIER E GHEERBRANT (2009, p. 813), encontramos que “o
sêmen simboliza a força da vida, e a vida humana só pode descender daquilo que
caracteriza o homem: o seu cérebro [...]”. Portanto, ao final desse primeiro encontro
com Hannibal, Starling e o espectador são convidados a fazer uso de seu cérebro
com mais eficiência de maneira a serem capazes de descobrir a identidade de
Buffalo Bill.
Hannibal também grita e pede a ela que retorne a cela dele. Ela corre para lá,
os dois estão muito próximos, somente o vidro os separa. Ele, neste momento, se
mostra gentil, discordando do comportamento do outro.
48
Dessa maneira, Clarice e o espectador ficam confusos com a mudança
brusca de comportamento do prisioneiro, que anteriormente usara em sua fala um
tom grosseiro e descortês. Tal tom, que define a posição ideológica de Lecter,
provoca o desconforto da estudante que ainda tenta cumprir sua missão.
Enquanto eles conversam, a câmera vai se aproximando das personagens
com um travelling para frente. O recurso sugere que, além da aproximação física,
que é visível, houve uma aproximação emocional. O tom autoritário usado pelo
homem é apressado. As sensações que são transmitidas pelas imagens são difíceis
de serem transcritas: a cena toda causa uma grande angústia no espectador e na
protagonista criando uma grande expectativa em ambos:
Lecter: Não, mas vou fazê-la feliz. Eu vou lhe dar uma chance no que mais
você gosta! (grifo nosso)
Clarice: E o que é doutor?
Lecter: Avanço, é claro! Ouça com atenção. Procure fundo em você mesma,
Clarice Starling. [...] VÁ LOGO! (grifo nosso)
O uso da negativa por parte de Hannibal antecipa a diegese e enfatiza que
nunca saberemos grandes detalhes da vida dele. Embora o prisioneiro tenha se
negado a preencher os formulários para Clarice, ele fornece a ela algumas
informações que desencadearão outro encontro entre os dois. A partir dele, o
espectador verá que ela se esquece de que os dois estão em lados opostos, sob o
ponto de vista da sociedade. Eles trabalhão em consonância para cumprir o desafio
de encontrar Buffalo Bill. O que veremos sobre Hannibal é que ele julga, condena e
aplica a pena pessoalmente.
49
Ilustração 6 - Clarice quebra as regras de segurança e se aproxima de Lecter que lhe
promete ajuda
Um travelling para trás da câmera abre o lugar em plano geral. Depois, a
imagem se fixa e acompanha a corrida da personagem para o final do corredor em
direção à porta que a separa da sala onde estará segura. Com um estrondo, a
câmera corta a cena e o espectador observa Clarice abrindo a porta que a leva para
o lado de fora do prédio, a elipse do percurso de volta encurtou o tempo de sua
saída. Tal técnica nos permite pensar que ela subiu tudo de maneira muito
apressada, uma vez que precisava sair daquele local o mais rapidamente possível.
Fora do edifício, o dia está muito claro. Clarice nem percebe as pessoas que
estão chegando. Ela é mostrada em ângulo lateral e está chorando. Porém, o
espectador percebe que a estudante está tentando se recompor, pois respira fundo
e se volta para frente.
Com um corte, a câmera mostra Clarice em ponto de vista objetivo, ela se
arrasta até o carro, seus ombros estão caídos14. Nesse momento, a ordem dos
acontecimentos no plano da diegese é interrompida. Uma anacronia revela ao
espectador uma parte do passado de Clarice. Segundo AGUIAR E SILVA (2007),
anacronias são os desencontros entre a ordem dos acontecimentos no plano da
diegese e a ordem em que aparecem narrados no discurso.
14
Na sequência da diegese, a protagonista vive outra situação similar. Assim como aqui, o espectador percebe
pelo corpo da protagonista o que lhe passa pela cabeça, ou seja, ela sente o peso da situação e não consegue
reagir, neste momento, às dificuldades que lhe são impostas.
50
Nesta cena, o flashback ou a analepse, isto é, o recuo no tempo que não
apresenta rupturas nem sobreposições cronológicas que possam perturbar o
entendimento do espectador, é utilizado para esclarecer o público sobre os
antecedentes da personagem Clarice. A cena mostra que a pequena Clarice corria
para os braços de seu pai, quando ele chegava do trabalho cansado e frustrado por
ter deixado escapar os bandidos. Acreditamos que a introdução desta cena tenha
por objetivo mostrar que a personagem gostaria de ter o pai junto dela. Dessa
maneira, poderia compartilhar com ele seu primeiro dia de trabalho em que sente
que o bandido escapou.
Ilustração 7 - Clarice após seu encontro com Hannibal Lecter
O retorno ao presente é feito com o uso da transição em fade-out. A câmera
movimenta-se para trás e a tela fica toda branca.
O fade-out representa uma sensível interrupção da narrativa e é
acompanhada de um corte na trilha sonora: após tal transição, convém
redefinir as coordenadas temporais e espaciais da sequência que se inicia.
É a mais marcante de todas as transições e corresponde a uma mudança
de capítulo (MARTIN, 2003, p. 87, grifo nosso).
Destacamos que o uso de técnica tão marcante intensifica o tom dramático da
cena, ou seja, busca traduzir os sentimentos de desconforto e humilhação que já
51
estavam sendo expressos pela postura corporal da protagonista e também por suas
lágrimas.
Sobre Hannibal o que é mostrado pelo narrador é que sua monstruosidade se
relaciona com sua grande capacidade de falar e, principalmente, de convencer. As
frequentes tomadas de seu rosto em primeiríssimo plano e a escolha do nome da
personagem corroboram com essa nossa hipótese.
Em seguida, o narrador mostra onde Clarice foi buscar forças para se
recompor do impacto sofrido no primeiro encontro com Hannibal Lecter.
1.3 Clarice Starling retorna para a academia
A sequência de número quatro, a qual consideramos de caráter ideológico, e
a sequência cinco, de caráter descritivo, nos mostram que a estudante busca
aprimorar-se, dessa maneira demonstra sua crença na técnica e sua confiança no
sistema que lhe ensina. Após o fade-out, a próxima cena a focaliza durante um
treinamento de tiros. Enfatizamos que seu rosto está em primeiríssimo plano, porém
ela está por trás de óculos e a arma que empunha fica entre ela e o espectador.
Ilustração 8 - Clarice volta para a academia em busca de aprimoramento
A observação da técnica, ou seja, a opção do diretor em colocar a arma entre
o espectador e a protagonista nos conduz a aceitar a ênfase no objeto- símbolo da
superação e da crença no sistema. Além disso, dá-lhe a segurança necessária para
esquecer-se da garotinha chorona e amedrontada do passado.
52
Além do aprimoramento físico, o narrador a mostra enquanto ela busca por
mais informações sobre o prisioneiro a quem recentemente fora apresentada. A
câmera a mostra em ponto de vista objetivo muito concentrada pesquisando em
documentos microfilmados. Com a mudança de ponto de vista para o subjetivo, as
imagens de Lecter sendo julgado e preso são compartilhadas com o espectador.
Afinal todos estão juntos na empreitada iniciada pela personagem de conhecer
melhor Hannibal Lecter.
Enquanto trabalha, Clarice recebe um telefonema de Crawford, chamado de
“guru” pela amiga de Starling, Adélia Mapp15. A cena da conversa pelo telefone é
focalizada em primeiríssimo plano e alternância quadro a quadro. Seu conteúdo está
relacionado com a morte do prisioneiro que ficava ao lado da cela de Hannibal.
Segundo Crawford, Miggs teria se suicidado por influência de Lecter.
A câmera desvia-se de Crawford e mostra um leve sorriso na fisionomia de
Clarice enquanto ela diz que não sabe o que pensar. Crawford lhe responde que ela
não deve pensar nada, pois ele não faz ideia do que houve entre Starling e o
prisioneiro morto. Porém o espectador se lembra de que o mesmo havia sido
indelicado com ela. Sendo assim, Clarice e o espectador sabem que Lecter não
induziu o outro ao suicídio “somente para se divertir”. Ele também queria que Miggs
pagasse por ter tratado Clarice de maneira grosseira e desrespeitosa.
Passado o susto pelo anúncio, Starling revela ao superior as informações que
Lecter lhe passara. As mesmas a levam a um depósito. A cena que mostra Clarice
chegando ao depósito é noturna. O espectador pensa: “Por que ela não deixa para o
outro dia?”. O dono do depósito sugere isso a ela. Entretanto ela insiste, a porta, que
deve subir para abrir, está emperrada, não há quem a ajude. Porém, o narrador
mostra em detalhes a maneira como ela encontra saídas rápidas para suas
dificuldades.
Quase não interessa o que há dentro do lugar. Entretanto, duas coisas
chamam a atenção do espectador. A primeira se relaciona com o corte na perna de
Clarice. O mesmo foi feito quanto ela tenta escorregar pela pequena fresta aberta
com o macaco do carro. A segunda é uma cabeça humana que está dentro de um
15
O nome da personagem está ligado a sua habilidade em ler mapas, conforme o que será visto durante o
andamento da diegese.
53
vidro, guardado dentro de um automóvel estacionado dentro do depósito. O “troféu”
como Clarice a chama pertence a um antigo cliente de Hannibal, conforme
saberemos a seguir. O achado a leva de volta ao Hospital de Baltimore. Dessa
maneira, quase ser querer, Clarice passa a dedicar-se à caçada de Buffalo Bill.
Ao analisarmos a cena acima e a seguinte diríamos que as mesmas são
descritivas, isto é, a câmera busca mostrar o grau de determinação e compromisso
da personagem: ela faz tudo sozinha, não se incomoda com a própria integridade
física, enfim, parece nada temer.
A mudança para a outra cena é feita com um corte da câmera. A mesma
focaliza em plano geral Clarice chegando ao Hospital de Baltimore, Barney a
recepciona. Chove muito. Por inferência, o espectador sabe que após sua saída do
depósito ela se dirige para o hospital.
1.4 Clarice Starling e Hannibal Lecter – o segundo encontro
Nessa sequência, o trajeto, ou seja, a descida para a cela de Lecter, não é
mostrada pela câmera. O uso da elipse encurta o caminho, dessa maneira após
mostrar a chegada de Clarice ao hospital, a câmera corta e mostra em ângulo
contra-plongée o teto da sala onde se encontra Hannibal. Destacamos que o recurso
narrativo acelera a narração e sugere que a descida, neste momento da história, não
possui o caráter dramático que teve inicialmente.
Um travelling lento para baixo em plano geral focaliza Clarice sentada no
chão, ao lado da cela de Lecter. Já percebemos que a estudante está envolvida pelo
prisioneiro, ela não observa o distanciamento conforme orientação anterior do diretor
do local.
Quando a câmera se aproxima com um corte e o fechamento do plano geral
para o primeiro plano, Clarice é focalizada de cima para baixo e o ponto de vista é
objetivo. Dessa maneira, o espectador compartilha da visão de Lecter. Antes do
diálogo se iniciar, um barulho forte e agudo é ouvido. A câmera se vira e mostra a
gaveta-depósito abrir-se. Dentro dela há uma toalha branca e Clarice a usa para
secar sua cabeça.
54
Achamos importante lembrar que na sequência anterior o mesmo ruído, isto
é, da gaveta se abrindo ou se fechando, foi utilizado em outro contexto. Colocado
aqui, em associação com a cor branca da toalha, o narrador parece estar sugerindo
um clima de paz, de trégua. Veremos que é justamente isso que acontece.
A imagem de Clarice com a toalha branca na cabeça em enquadramento
frontal é mostrada muito rapidamente, ou seja, numa fração de segundos. Apesar
disso, o espectador não deixa de notar que ela ficou muito parecida com uma santa,
ou seja, um ícone da igreja. Destacamos, também, que a estudante desrespeita
outra regra de segurança: “não aceitar nada do prisioneiro”.
O subsolo, ou seja, o espaço do encontro deixa de ter conotação negativa.
Isso se comprova pela técnica utilizada na narração da longa sequência seis. Nela
podemos observar dois momentos distintos. No primeiro, que acontece com pouca
luminosidade, as personagens são focalizadas em primeiro plano e sob focos de
luzes. O restante do espaço não é mostrado. Já, o outro transcorre com a iluminação
e visão da cela toda.
Analisemos a primeira parte. Clarice não vê seu interlocutor, mas é vista por
ele. Quanto ao espectador, este pode ver ambos: Clarice e Hannibal. Dessa
maneira, acompanha a emoção de cada um.
Clarice está lá para procurar a ajuda de Lecter. Ela lhe faz muitas perguntas e
percebe-se que está eufórica, que o interesse dela pelo caso aumenta. O clima
gerado pela penumbra, onde Hannibal usando o método da anácrise provoca “as
palavras do interlocutor, levando-o a externar sua opinião e externá-la inteiramente”
(BAKHTIN, 2008, p. 126). O espaço para esse encontro em nada se parece com o
anterior, pois há um clima mais intimista. Hannibal está no fundo da cela escura, há
foco de luz somente em suas mãos, que em alguns momentos são o ponto central
da cena. Enfatizamos que simbolicamente, conforme pode ler em CHEVALIER E
GHEERBRANT (op. cit., p. 589) “a mão exprime as ideias de atividade, ao mesmo
tempo em que as de poder e de dominação”. É exatamente o que podemos
observar, ou seja, o domínio e o poder de Hannibal sobre Starling.
Destacamos, também, um diálogo intencional desta cena com o discurso
religioso, pois além dos dois elementos citados, a aparência de ícone e o
confissionário, Dr. Chilton deixa do lado de fora da cela uma televisão ligada em um
55
programa de caráter religioso. Conforme esclarecimento de Hannibal, o diretor busca
torturá-lo, obrigando-o a assistir ao programa durante um longo período de tempo.
No que toca ao diálogo, enfatizamos as insinuações de Lecter sobre um
possível envolvimento pessoal entre Clarice e Crawford. Além disso, o prisioneiro
sugere que a cabeça pertence à primeira vítima de Buffalo Bill e de que este último
está buscando uma transformação.
A segunda parte da cena se inicia com um barulho surdo das luzes sendo
acesas. Tal ruído parece despertá-los do torpor em que ambos se encontram. A
claridade permite a Starling observar, que com exceção da cama, todos os outros
objetos foram retirados da cela de Hannibal. O prisioneiro esclarece que tudo foi
removido como punição pela morte de Miggs.
No diálogo, Hannibal, que se oferece para ajudar Clarice na procura de
Buffalo Bill, revela que se encontra preso há oito anos e que deseja sair dali e ficar
longe do Dr. Chilton. Pensamos que a estudante, naquele momento, representa a
ligação dele com o exterior. Com esse fim, ele fornece a ela algumas pistas que
podem ajudá-la em seu primeiro caso e a coloca em uma situação de limiar dizendo:
“não há tempo a perder”, pois Buffalo Bill está procurando por uma nova vítima “ele
está procurando uma garota especial”.
1.5 Buffalo Bill ou James Gumb
Conforme previsão de Lecter, a sequência sete mostra o rapto da próxima
vítima. Dela participam três personagens: um homem, uma moça e um gato. A
tomada é noturna e tem início em uma rodovia na cidade de Memphis, Tenesse.
Em plano geral e ponto de vista subjetivo a câmera se movimenta para frente
no que parece ser uma rodovia. Em determinado momento, o ponto de vista passa a
ser objetivo, e em enquadramento frontal contra-plongée, vemos a moça que canta e
dirige o automóvel com muita descontração. A garota se parece com Clarice no
início da película: sorridente, jovial, despreocupada e sempre olhando para o que
está à sua frente.
56
A câmera se distancia dela e corta. Não há mais nenhum som que lembre o
veículo. Então, em primeiríssimo plano, a câmera mostra os olhos de um homem
atrás de uma máscara verde que lhe permite enxergar no escuro. Dessa maneira, a
personagem, com sua capacidade de visão ampliada, está em vantagem em relação
a qualquer outra pessoa.
Acreditamos que a escolha feita pela câmera, ou seja, mostrar primeiro os
olhos da personagem Buffalo Bill se relaciona com a personalidade da personagem,
pois, segundo Lecter, o assassino é motivado por sua cobiça, que decorre daquilo
que ele capta através de sua visão.
A moça chega a seu destino e olha para o gato que a espera junto à janela de
um apartamento no primeiro andar. Antes de entrar, decide ajudar um rapaz que
tenta colocar um sofá dentro de um furgão. A ação é rápida: ela entra no furgão, ele
pergunta-lhe o manequim; ela é agredida e ele a coloca de bruços.
A partir daqui, o narrador mostra tudo em primeiro plano e ponto de vista da
personagem masculina; a blusa dela é cortada com uma tesoura; a pele das costas
fica exposta e a câmera focaliza as mãos do rapaz que a acariciam suavemente. Ele
possui uma tatuagem entre o polegar e o indicador que diz: “Love”, “amor”. A palavra
gravada em sua mão é vazia de sentido, pois ele acaba de praticar um ato contra a
integridade física de outra pessoa.
Na janela, o gato, única testemunha do crime, pode passar despercebido,
entretanto, pelo fato dele voltar à cena, na sequência vinte e cinco, mostrando o
caminho para que Starling possa localizar Buffalo Bill, acreditamos que podemos
atribuir ao animal um valor simbólico, assim como, são simbólicos outros elementos
que aparecem na narrativa.
O animal, segundo CHEVALIER E GHEERBRANT (2009, p. 461 – 463), pode
significar coisas boas ou ruins. Isso se explica “pela atitude a um só tempo terna e
dissimulada do animal”. Dentro do nosso contexto, destacamos o valor que é
atribuído ao gato pelos budistas e pelos índios pawnees, pois as duas culturas
possuem pensamentos similares.
No mundo búdico, censura-se o gato por ter sido um dos dois únicos animais
(além da serpente) que não se comoveram com a morte do Buda. Acredita-se que
57
por isso, “o animal seja dotado de sabedoria superior” (grifo nosso). Já entre os
índios pawnees da América do Norte, “o gato é um símbolo de sagacidade, de
reflexão, de engenhosidade; ele é observador, malicioso e ponderado; alcançando
sempre seus fins”. Além disso, os povos acreditam que o animal tenha o dom da
clarividência (grifo nosso), por isso confeccionam sacolas de remédios com pele de
gatos selvagens. Tais habilidades se confundem com o perfil de Clarice e de Lecter,
é o conjunto delas e a dupla trabalhando em consonância que solucionam o caso.
Buffalo Bill, de quem sabemos ainda muito pouco, foi apresentada pela
câmera de forma muito rápida. Nesse momento, a técnica é justifica pela ação que
foi descrita. Entretanto, esse padrão de narração rápida, como flashs, é mantido em
toda a narrativa.
Buffalo Bill aparece em outras seis seqüências (números doze, quinze, vinte e
quatro, vinte e seis, vinte e sete e vinte e oito) e tem sua personalidade marcada
pela forma como a câmera o mostra. O narrador maneja conscientemente a técnica
de focalizar as partes pelo todo: os olhos, as mãos, a tatuagem que contradiz
totalmente suas ações, o amor que dedica a um animal e que não tem por uma
pessoa. Além disso, é um sujeito do qual se ouve pouco a voz. O que se sabe dele,
além do que a câmera mostra, é dito pelo outro, ou seja, por Hannibal Lecter. Dessa
maneira, o espectador depara-se com um sujeito fragmentado, solitário, sem voz e
que segundo Lecter “não nasceu um monstro”.
São as informações de Hannibal e a ajuda de Adélia Mapp que levam Clarice
ao assassino.
1.6 O final aberto de O Silêncio dos Inocentes
A sequência final do filme O Silêncio do Inocentes sugere que Dr. Hannibal
Lecter, após ter acertado suas contas com seu algoz Dr. Chilton16, recomeça sua
vida nas ruas do Haiti. A nova identidade fica evidenciada pelos cabelos loiros, pelo
terno branco acompanhado de chapéu panamá, bastante apropriados para o clima
16
O acerto de contas foi sugerido pelo enunciado que pronunciado por Hannibal tornar-se ambíguo. A câmera o
mostra enquanto observa Chilton chegando de avião ao mesmo local onde ele está. A frase de Hannibal foi a
seguinte “Estou esperando um amigo para o jantar”.
58
tropical. Marcel Martin (2003, p. 62) enfatiza que “às vezes o vestuário desempenha
um papel diretamente simbólico na ação”. Nesse sentido, do simbólico, destacamos
o desleixo e o gingado no andar do novo Lecter, pois essa nova postura contrapõe-
se a anterior ereta e austera. Lecter está mudado?
Quanto ao destino da protagonista, a princípio a diegese sugere que ela
chega à consecução de seu projeto de trabalhar no Departamento de Ciência do
Comportamento: ela e seus companheiros estão na festa de formatura. Porém, a
última cena em que ela aparece parece querer dizer o contrário: o eco provocado
pela repetição contínua do nome de Lecter substituirá os gritos dos cordeiros nos
sonhos da Agente Especial Clarice Starling. Corrobora com isso o fato dela não
colocar o telefone no gancho encerrando a ligação.
Ilustração 9 - Clarice durante sua formatura recebe uma ligação de Hannibal Lecter.
Conforme se observa na ilustração, a câmera em primeiro plano e ângulo
contra-plongée sugere o desconforto e o achatamento da protagonista, que até a
pouco estava desfrutando de sua conquista: rindo, tirando fotos, conversando.
Do outro lado, o artefato se desvia de Hannibal para mostrar o momento
exato em que ele põe um fim à ligação colocando o telefone no gancho. Em seguida,
sai caminhando para a cena final.
Ela é feita em um longo plano geral, o dia é claro e o local está repleto de
pessoas. O travelling para trás e para o alto cria um efeito de janela que se abre
para o mundo. Dessa maneira, parece que o desejo de Lecter de “ter uma vista e
uma janela por onde eu possa ver uma árvore ou mesmo a água” foi satisfeito.
59
Ilustração 10 - Tomada em plano geral final, Lecter está caminhando para frente com o terno claro
e chapéu
60
Capítulo 2 - A Construção da Personagem em Hannibal
Neste capítulo, buscamos apresentar e analisar as personagens do filme
Hannibal. A película traz de volta Hannibal Lecter, a Agente Especial do FBI Clarice
Starling, interpretada por Julianne Moore; o enfermeiro do hospital de Baltimore,
Barney Matthews. Além deles, o oficial do Departamento de Justiça Paul Krendler,
interpretado por Ray Liotta. Dentre as novas personagens estão Mason Verger,
vivido por Gary Holman, e o Inspetor Chefe da cidade de Florença Rinaldo Pazzi,
interpretado pelo ator Giancarlo Gianini.
Em Hannibal, a história é contada a partir de Florença e dos Estados Unidos.
Dessa maneira, para que não haja interrupção na diegese, os recursos de que
dispõe o diretor são a montagem alternada (baseada na simultaneidade temporal de
duas ações) e os planos panorâmicos para que haja a apresentação dos espaços
onde acontece a trama. Por isso, a leitura das cinqüenta e quatro seqüências que
compõem o filme exige um espectador sempre atento à tela.
Na abertura do filme, o procedimento técnico utilizado é a transição. Em
MARTIN, pode-se encontrar uma justificava para a escolha do diretor:
Na ausência (eventualmente) de continuidade lógica, temporal e espacial,
ou pelo menos para maior clareza, o cinema é obrigado a recorrer a
ligações ou transições plásticas e psicológicas, tanto visuais quanto
sonoras, destinadas a constituir as articulações do enredo (2003, p. 86).
No nosso contexto, a transição funciona como uma analepse ajudando o
espectador a rememorar fatos já narrados em O Silêncio dos Inocentes e, então,
poder juntar as duas histórias que se completam.
2.1 Mason Verger e seu informante
A transição, a qual objetiva assegurar a fluidez da narrativa e evitar a quebra
da diegese, é feita com o auxílio da trilha sonora e de vozes masculinas em off, isto
61
é, o som é ouvido antes do aparecimento da imagem correspondente. Antes das
vozes ganharem rosto, o espectador já se lembrou de Hannibal Lecter. Com o
aumento da íris que surge no canto superior direito, podemos ligar as vozes a seus
respectivos donos.
Enquanto o diálogo continua, a tela escura vai dando lugar às formas e às
cores. Para o correto enquadramento das personagens, a câmera se movimenta
para a esquerda procurando o melhor posicionamento. Ao final desse processo, a
cena de abertura de completa e podemos ver e ouvir os três homens que participam
dela.
A câmera fixa mostra o trio em plano geral, o que faz com que o espectador
se detenha na contemplação do espaço: um grande salão com móveis refinados,
estátuas com muita luz a qual entra por grandes janelas. Mesmo sendo amplo e de
bom gosto, estamos observando um lugar fechado, ou seja, limitado pelas paredes,
voltado para o interior.
Acreditamos que a insistência da câmera em descrever o lugar se relacione
mais com o construto das personagens e menos com a constituição de um espaço
cenográfico.
A descrição origina sem dúvida uma pausa ou uma paragem na progressão
textual da ação diegética, [...] Quer no retrato, quer na figuração do espaço
geográfico-telúrico e do espaço social, a descrição mantém uma interação
contínua com os eventos diegéticos. [...] não só veicula indícios e
informações sobre as personagens, contribuindo para tornar verossímil,
para enraizar no real a diegese, ou, ao contrário, para a inscrever num
universo fantástico, mas também gera significados simbólicos ou alegóricos
que são indispensáveis para compreender as personagens e as suas ações
(AGUIAR E SILVA, 2007, pp. 741-742, grifo nosso).
As considerações acima são úteis para refletirmos sobre o objetivo real da
câmera nesse trecho do filme e passarmos a considerar que a riqueza do lugar e
consequentemente das personagens que vivem nesse espaço terão relevância no
decorrer da narrativa, ou seja, “não só veicula indícios e informações sobre as
personagens, mas também gera significados simbólicos ou alegóricos” necessários
para a compreensão do todo da obra.
62
Sobre a personagem, devemos retomar que na concepção de BAKHTIN
não são os traços da realidade –da própria personagem e de sua ambiência
– que constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da
personagem, mas o valor de tais traços para ela mesma, para a sua
autoconsciência (2008, p. 53, grifo nosso).
Vejamos, portanto, no decorrer da diegese o que representa a riqueza até
aqui apresentada para a personagem. Com esse intuito retomamos a análise do
encontro de Barney com outros dois homens, sendo que um deles se encontra em
uma cadeira de rodas.
Barney era o enfermeiro que trabalhava no hospital onde Lecter estava
internado, era uma das pessoas que acompanhava Clarice em suas visitas ao
hospital. Geralmente, Barney era mostrado pela câmera ao lado de Lecter e
pareciam manter um bom relacionamento. Dez anos depois da fuga de Lecter, que
razões levariam o enfermeiro àquele lugar tão diferente do hospital?
Percebe-se certa nostalgia na voz de Barney, acreditamos que isso tenha a
ver com a boa relação que ele mantinha com o prisioneiro:
Barney: Quando as coisas se acalmavam o Dr. Lecter e eu falávamos dos
meus cursos de ciência.
Verger: Informações sobre curso de psicologia, enfermeiro Barney?
Barney: Não, senhor. Não considero psicologia uma ciência. Nem o Dr.
Lecter.
O interlocutor de Barney ri. Talvez tenha achado irônica a revelação feita por
Barney e continua com seus questionamentos: “Quando você trabalhava no hospital
observava Clarice Starling e Hannibal Lecter interagindo?”. O grifo é da personagem
que quase soletra o último vocábulo. Barney reage devolvendo o questionamento:
“Interagindo?”. Dessa maneira, parece não concordar com a insinuação de Verger,
ou seja, com a forma com que este está conduzindo a conversa.
Nesse momento, Verger percebe que seu interlocutor está atento e se sente
obrigado a reformular seu questionamento, fugindo da ambigüidade: “Conversando
um com o outro?”.
63
Dessa vez, Barney aceita a pergunta e inicia sua resposta: “Sim. Parecia-me
que eles...”, porém, nota-se que as palavras de Barney se misturam com as palavras
de Lecter. Por conta disso, Cordell o repreende em tom áspero: “Sei que quer
merecer o pagamento desta consultoria, mas comecemos pelo que via e não pelo
que achava que via” (grifo nosso). A fala de Cordel, ao mencionar que há dinheiro
envolvido, notifica o espectador que Barney trabalha para Verger, quer dizer, está ali
como informante. Agindo dessa forma, o enfermeiro quebra o código de ética de sua
profissão, ou seja, não revelar nada pessoal de seus pacientes para estranhos.
Nota-se que não há tempo para a reação de Barney, pois Verger interfere em
seguida e tenta se mostrar compreensivo e muito interessado na opinião do
enfermeiro que conviveu com Lecter durante sua estada no hospício de Baltimore:
”Cordell, não fale assim. O Barney pode dar a opinião dele. Barney dê sua opinião
sobre o que via. O que havia entre eles?”. Acreditamos que Verger não deseja inibir
a fala do outro, pois precisa de suas informações.
O espectador ainda não viu o rosto de Verger, porém, pelo som de sua fala,
percebe-se que ele articula as palavras com dificuldade. Também aparenta ter
problemas com a respiração, pois esta é muito ruidosa.
Após ter sido autorizado por Verger, Barney retoma sua fala que dialoga com
o filme O Silêncio dos Inocentes trazendo de volta fatos passados sob sua ótica:
Barney: Na maioria das vezes, o Dr. Lecter não respondia aos visitantes.
Abria os olhos o tempo suficiente para insultar algum aluno que ia vê-lo. Ele
respondia às perguntas de Starling. Ela o interessava. Ela o intrigava. Ele a
achava encantadora e divertida. (grifo nosso)
As revelações de Barney desencadeiam uma reação inesperada de Verger. A
relevância do momento para este último é destacada pela câmera ao mudar o plano
do enquadramento. O plano geral distante, sugerindo o distanciamento entre elas e
a falta de relevância das informações prestadas até aqui, dá lugar repentinamente
para o primeiro plano.
A apresentação do rosto de Verger é um dos momentos mais impactantes do
filme. O que era inquietante vira espanto e horror. O espectador mapeia cada
detalhe do rosto de Verger que continua com seus questionamentos: “Então Clarice
64
Starling e Hannibal Lecter tornaram-se amigos?”. A isso Barney responde com certa
relutância: “Dentro de uma certa estrutura formal ... sim”. Verger insiste, parece que
esse é o segredo que ele quer ver revelado: “E ele gostava dela?”. Barney, responde
com um “sim” hesitante.
Após a confirmação, a câmera sugere o fim do diálogo com um travelling para
trás. Dessa maneira, o plano geral distante mostra que Verger está satisfeito e isso
se confirma em sua fala: “Obrigado pela franqueza. E continue trazendo suas
valiosas descobertas sobre o Lecter. Gostei imensamente”.
Sobre o rosto de Verger, ficam os questionamentos do espectador: O que
teria acontecido com aquela pessoa? Qual é o tamanho de sua dor? Nasceu assim
ou teria se acidentado? Não é possível determinar sua idade, ou seja, sua face é
como uma máscara, vazia de expressão. As respostas a tais questionamentos virão
mais à frente da diegese, quando em um encontro com Clarice, Verger conta o que
acontece a ele.
Ilustração 11 – Mason Verger na sequência de abertura do filme
Verger está eufórico e pede um biscoito para seu médico. Nesse momento, a
câmera coloca-se em ângulo contra-plongée, ou seja, na altura da cadeira de rodas:
“Acho que isso o mataria, senhor!” – responde o médico (grifo nosso). Dessa
maneira, pela fala de Cordell, fica exposta a fragilidade física de Verger e o grau de
dependência dele em relação ao outro.
Ao mesmo tempo, a câmera deixa no quadro as mãos de Barney. Elas
seguram uma caixa de presente a qual está sendo aberta por ele. Verger mostra-se
entusiasmado e sua respiração quase para ao ver o que Barney trouxe para ele. O
65
“tesouro”, que é como Verger chama o conteúdo da caixa, é negociado por
“US$250,000”.
Ilustração 12 - Máscara que foi usada por Hannibal Lecter quando transferido para o Tennesse
O que vem dentro da caixa só é mostrado após a finalização da negociação.
Dessa maneira, as personagens saem de cena e vemos em primeiro plano frontal a
máscara usada por Hannibal quando este foi transferido de Baltimore para Memphis
– Tennesse (trama do primeiro filme). Em CHEVALIER E GHEERBRANT (2009),
encontramos que a máscara é um símbolo de identificação podendo ser utilizada em
cenas dramáticas em contos, peças, filmes. Os estudiosos afirmam que a pessoa
pode se identificar a tal ponto com a sua personagem, ou seja, com a sua máscara,
que não consegue mais se desfazer dela, que não é mais capaz de retirá-la.
Finalmente, ela se transforma na imagem representada. Para os demais, porém, a
máscara é vazia, é apenas uma imagem, isto é, algo desprovido de toda substância.
O fundamental na citação acima é a relação que os autores estabelecem
entre a máscara e a identidade. Relembramos que dentro da narrativa o objeto
adquire valor de signo, ou seja, entrou no domínio da ideologia (BAKHTIN, 2010, p.
46), pois foi criado entre indivíduos, no meio social. Portanto, no nosso contexto o
sujeito por trás dessa máscara é Hannibal Lecter, o canibal.
O mesmo não se pode afirmar sobre a identidade de Verger, o outro
mascarado. Por que motivo ele está atrás daquela máscara? Por que Hannibal
Lecter é tão valoroso para ele? Que tipo de negócios ele tem com Hannibal, que até
o presente nunca demonstrou qualquer interesse em dinheiro?
66
Destacamos, que pelos elementos mostrados até agora, acreditamos que a
diegese será contada pelo ponto de vista de Verger. Assim, as relações sociais, que
são sempre relações de espelhamento, por meio das quais cada homem busca
reconhecer no outro a sua própria individualidade, vão adquirir um caráter negativo.
Isso acontece porque o homem nem sempre se reconhece no outro, o que conduz à
alienação e à perda da identidade, à manipulação e à massificação, cuja
consecução se faz, modernamente, em grande parte pela mídia, e, em especial, pela
televisão.
Sobre o espaço da narrativa, destacamos que há o contraste com a
ambientação do primeiro filme: o subsolo de um hospital psiquiátrico, a academia em
que Clarice praticamente vivia, a casa de velórios, a deteriorada casa do assassino.
Acreditamos que o refinamento do local, o qual deve provocar certo estranhamento
ao público, intensifica a ideologia que permeia a diegese, qual seja, o domínio do
capital e a conseqüente coisificação do homem.
O filme continua e um travelling para frente da câmera traz a imagem da
máscara para o primeiríssimo plano. O símbolo que representa a personagem
Hannibal Lecter vai dando lugar ao título do filme Hannibal escrito com letras
vermelhas. Essa montagem enfatiza o que destacamos anteriormente, isto é, a
máscara nesse contexto adquire valor de signo, pois é imediatamente identificada
com seu dono.
A figura dilui-se; durante a sequência que apresenta os créditos, ouve-se uma
outra melodia cujo andamento se contrapõe às imagens aceleradas, que são vistas
por meio da objetiva de uma filmadora a qual parece estar procurando por alguém.
Acreditamos que tanto a câmera quanto Verger buscam por uma pessoa: Hannibal
Lecter.
O espectador acompanha uma filmagem, pois há uma numeração que
aparece no canto superior esquerdo do vídeo e a palavra play no canto inferior
esquerdo do mesmo. Vozes se misturam às imagens. A câmera se fixa em plano
geral em ângulo plongée mostrando uma praça onde se vê muitas pombas. De
repente, elas se espalham e levantam voo. O corpo das aves transforma a paisagem
e o rosto de Hannibal Lecter aparece em praça pública. O sino, marcando um novo
tempo, toca várias vezes assustando os animais que se espalham.
67
A sequência de retomada da personagem título se encerra com um fade-out
branco compondo a transição para a cena seguinte que é acompanhada pela
mesma melodia. Os dois efeitos criam a atmosfera onírica, a qual é rapidamente
quebrada por uma cena de ação.
2.2 Clarice Starling – o encontro com os parceiros
Dando seguimento à apresentação da personagem, verificamos que a câmera
em primeiro plano com o ponto de vista objetivo mostra uma moça enquanto ela
dorme. Há uma névoa no ambiente, com um corte a câmera mostra que a fumaça é
proveniente de uma peça de gelo que está servindo para refrigerar o furgão onde
estão muitos rapazes e somente uma mulher. Um dos policiais se manifesta: “Como
ela pode dormir numa hora dessas?”. A resposta esclarecedora do outro vem a
seguir: “Saiu em batida a noite toda. Está se recuperando.”
Ao voltar o foco para Clarice, enquanto ela abre os olhos, a câmera sugere
que ela estava ouvindo tudo sem se manifestar a respeito. Além disso, o espectador
vai se dando conta de que a agente não está trabalhando onde queria, isto é, no
Departamento de Ciência do Comportamento junto com Crawford. Ela trabalha nas
ruas no combate ao tráfico de drogas desde a formatura.
Com um corte, a câmera sai do interior do furgão e em plano geral de longa
distância em ângulo contra-plongée vemos o veículo externamente, enquanto
alguém o coloca de ré em um barracão. A moça é mostrada em plano panorâmico
enquanto ela sai do veículo e é seguida pelas outras pessoas. Há muitos policiais e
Clarice e eles parecem estar se preparando para algo muito importante.
68
Ilustração 13 - Clarice Starling, solitária, chegando ao local onde deve instruir seus homens
Todos os presentes se reúnem ao redor da agente para ouvi-la. Dessa
maneira, a câmera circula entre eles, porém procurando se posicionar de maneira a
deixar em destaque a agente. Starling é a autoridade máxima ali naquele momento,
porém, o Policial Bolton tenta derrubá-la, conforme fragmento abaixo:
Starling: Muito bem, pessoal. O plano é esse.
Bolton: Desculpe. Sou o Policial Bolton, Washington, D.C.
Starling: É o que diz o seu distintivo.
Bolton: Sou o responsável aqui.
Starling: Policial Bolton, sou a Agente Especial Starling. Antes de
começarmos, deixe-me explicar porque estamos aqui. Estou aqui porque
conheço Evelda Drumgo. Prendi-a duas vezes. O DEA e o ATF estão me
dando apoio. Vieram pelas drogas e pelas armas. (grifo nosso)
Esse trecho demonstra que a Agente Especial Starling, única figura feminina
no local, não deixou de lado uma característica de sua personalidade que foi bem
marcada na película O Silêncio dos Inocentes: o aprimoramento constante de suas
qualidades e o desenvolvimento de suas habilidades. Ao fazer uso da palavra
autoritária baseia-se em argumentos concretos, sua experiência e conhecimento, e
não políticos, conforme sugere sua fala dirigida ao Policial Bolton: “Você está aqui,
porque o prefeito é rígido com as drogas, depois de ter sido pego com cocaína”.
Sobre a palavra autoritária, BAKHTIN (2010a, p. 143-144) escreve que esse
tipo de palavra “exige de nós o reconhecimento e a assimilação”, ela se impõe a nós,
pois “nós já a encontramos unida à autoridade”. Além disso, é muito mais difícil de
69
ser utilizada em caráter ambíguo “seu sentido se refere ao pé da letra, se torna
rígido”. Por fim, Bakhtin complementa que “ela procura definir as próprias bases de
nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento”.
Percebe-se pelo embate entre o policial e a agente que há um conflito entre
os departamentos que cada um deles representa, ou seja, onde deveria haver
harmonia, pois são sujeitos que pertencem ao mesmo grupo social, isso não
acontece. E nesse momento, o Policial Bolton se cala, quer dizer, submete-se às
ordens da Agente.
Para tentar entender a atitude do policial, retomamos a BAKHTIN (2000, p.
290), no texto O enunciado, unidade da comunição verbal onde ele afirma que “a
compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de
uma atitude responsiva ativa”, quer dizer, de uma resposta. No nosso contexto,
observamos o que BAKHTIN (Ibid. 291) chama de “compreensão responsiva muda”.
Esse tipo de resposta se caracteriza por uma “ação retardada: cedo ou tarde, o que
foi ouvido e compreendido do modo ativo encontrará um eco no discurso ou no
comportamento subseqüente do ouvinte”. O conceito da “compreensão responsiva
muda” nos auxilia a compreender a sequência seguinte, onde veremos “o eco no
discurso” que se materializa sob forma de desacato.
Ilustração 14 - A Agente Especial Starling posição de liderança
70
2.3 Clarice Starling - o encontro em praça pública
A “hora” de que falava o primeiro policial refere-se ao momento em que
devem entrar em ação. As instruções e procedimentos finais ainda estão sendo
dados, porém o espectador já está vendo o local onde tudo vai acontecer. A voz em
off é um recurso utilizado para que não haja uma transição brusca de uma cena para
a outra.
Após a apresentação dos planos e dos procedimentos a que todos deverão
obedecer, eles se dirigem para o Public Market17. O local foi escolhido para a prisão
de Evelda. Uma longa cena de ação é necessária para que Clarice seja mostrada no
ambiente em que está vivendo. Devemos recordar que em O Silêncio do Inocentes,
a protagonista Clarice passou por uma situação similar, porém ela se encontrava
sozinha em um local escuro e apertado contra o bandido. Seu sucesso foi
compartilhado, a princípio, somente com o espectador.
Nesse momento, o espectador acompanha juntamente com a câmera todos
os procedimentos de preparação da ação. Dessa maneira, o espectador sabe que
Clarice cercou-se de todos os cuidados para que tudo corresse bem, considerando a
grande quantidade de civis circulando por ali.
O espectador percebe o aumento da tensão, pois a câmera muda o
enquadramento dos policiais, passando a mostrá-los em primeiro plano frontal, um a
um. Tudo é muito bem calculado e mostrado lentamente. Clarice está no comando.
A ação tem início com a chegada de um carro cujo ocupante percebe que há
algo estranho e fica mais atento. Nesse momento, Clarice chama a atenção para
uma mulher que está saindo de um dos edifícios. Ela está sendo escoltada por
alguns rapazes e carrega um bebê no colo.
Destacamos que o confronto é entre duas mulheres e que há um bebê
envolvido em uma cena de violência. Ao ver a criança, Clarice ordena que a ação
seja suspensa, porém o Oficial Bolton desacata sua ordem e inicia o tiroteio. Essa
atitude não ética do policial colocando em risco toda a operação demonstra que
17
Tradução nossa: Mercado Municipal.
71
Clarice tinha razão no seu pré-julgamento e nas suas insinuações a respeito do
interesse político do Policial Bolton.
A câmera mantém o enquadramento frontal e algumas vezes a câmera lenta
dilata o tempo da ação e a tomada por trás da personagem é utilizada. Tal recurso
faz com que o espectador veja a cena pelo ponto de vista de Clarice. Dessa
maneira, a cena ganha em expressividade e cria-se um vínculo entre o público e a
personagem.
Ilustração 15 - Clarice pouco antes de atirar na mãe que carregava um bebê preso no peito
Após o primeiro disparo, Clarice perde o controle da situação e só lhe resta
lutar. De frente para Evelda, a qual está armada, Clarice se obriga a escolher entre a
vida e a morte e atira na criminosa em uma posição muito difícil, pois o bebê está
preso ao ventre da mãe.
Clarice está enquadrada em plano geral à meia distância, o espectador ouve
outros disparos que são de uma máquina fotográfica a qual não se vê. Ela corre com
o bebê nos braços – a câmera lenta simula o congelamento da fotografia. Com uma
mangueira, retira o sangue que cobre o corpo da criança. O bebê chora o tempo
todo enquanto a água que escoa fica toda manchada de sangue. CHEVALIER E
GHEERBRANT (2009, p. 800) afirmam que “o sangue é universalmente considerado
o veículo da vida. Sangue é vida, se diz biblicamente” (grifo nosso). Porém, deve-se
considerar “a ambivalência do sangue profundo: escondido, ele é a condição da
vida. Espalhado, significa a morte” (Ibid., p. 945). Por isso o desespero de Clarice
para lavar a criança e certificar-se de que ela estava bem.
72
2.4 O julgamento de Clarice Starling
O fracasso da operação em praça pública expõe a vida da agente por meio de
reportagens veiculadas pela televisão e pelos jornais. Os programas televisivos
recordam a população do salvamento de Catherine, filha da senadora, há 10 anos. A
imprensa enfatiza a ajuda que a então estudante, Clarice Starling, recebera de
Hannibal Lecter. O passado deslocado para o presente torna-se algo negativo e
contribui para denegrir a imagem da Agente Clarice Starling.
Com movimentos lentos, a câmera mostra em primeiro plano o colete salva-
vidas e a arma que simbolizam o sistema, ou seja, os instrumentos do trabalho da
agente estão ao lado da personagem. Deslocando-se de baixo para cima, a câmera
compartilha com o espectador do choro compulsivo de Clarice, ainda vestida com as
roupas que usava nas ruas.
Tal imagem nos revela que Starling deixa cair a máscara de agente e, dessa
forma, expõe sua sensibilidade à câmera e ao espectador. Porém, devemos nos ater
não somente a manifestação visível, ou seja, as lágrimas, mas também a forma
como a câmera mostra a arma, o distintivo e o colete à prova de balas de Clarice. Os
objetos estão colocados ao lado da personagem e não à sua frente. Isso nos parece
relevante, pois em uma situação similar, quer dizer, de crise, a personagem reage de
uma outra maneira, ou seja, ela coloca o revólver à frente dela, capítulo 1.3, página
49-51. Pelo descrito, concluímos que esse pequeno detalhe pode ser o primeiro
indício de que a personagem esteja se desiludindo com o sistema.
Ilustração 16 - Clarice logo após o tiroteio em sua casa
73
Pouco depois, a câmera mostra as imagens que vêm de um programa de
televisão. Clarice e “sua desastrada batida policial” são o tema da reportagem. A
montagem alternada estabelece uma relação dialógica entre os fatos e as duas
personagens e faz a transição da sala de estar de Clarice para o quarto de Verger.
Este último está assistindo ao mesmo programa que Clarice. Porém os dois têm
reações diferentes frente ao que está sendo.
Para Clarice, que acaba de perder um amigo, aquilo tudo representa um
momento de tristeza e ela está consciente de que no mínimo terá que prestar algum
tipo de esclarecimento a seus superiores. Isso se deve ao fato de que suas ações
aconteceram em praça pública e tudo foi registrado pela imprensa.
Temos aqui, um exemplo concreto de que as imagens podem assumir
diferentes sentidos dependendo do interlocutor que as lê. A imprensa faz uso das
imagens considerando somente um ponto de vista e isso a leva a fazer um pré-
julgamento de Clarice “o Departamento de Justiça e o FBI usam o poder das armas
em vez do julgamento, Clarice não será enaltecida desta vez” (grifo nosso). Somente
a câmera, Clarice e alguns de seus companheiros sabem como as coisas
aconteceram, porém eles não serão ouvidos.
Verger, por outro lado, interessou-se de alguma maneira pela tragédia. Isso é
destacado pelo movimento da câmera deixando em evidência seu rosto e pelo fato
de que ele, logo após desligar a televisão, com um toque de dedos, pede a Cordell
que faça uma ligação para o Departamento de Justiça. Nesse momento, as
intenções de Verger não são reveladas, porém devemos destacar o cuidado que a
câmera teve em mostrar suas mãos em primeiro plano. Esse detalhe pode estar
relacionado com a identidade da personagem, porém até este ponto da narrativa
isso ainda não pode ser afirmado.
Ao mencionar o Departamento Federal, a fala de Verger se liga à abertura da
sequência seguinte. A transição entre as sequências é feita com o uso da voz da
personagem em off. Dessa maneira, a técnica sugere que tudo acontecerá de
maneira muito rápida e, também, que os dois eventos estão conectados.
A câmera focaliza ao fundo do plano a torre do Capitólio, edifício que abriga o
Congresso dos Estados Unidos e depois entra em uma sala fechada. O lugar, palco
do julgamento de Clarice, parece menor pela tomada em ângulo fechado. Dessa
74
maneira, auxilia a intensificar a situação de repressão a qual Clarice está sendo
submetida no momento.
Entre os presentes, destacamos Paul Krendler, do Departamento de Justiça,
que segundo um dos colegas “está aqui, mas não está”. Essa fala, sugerindo que
Paul está fazendo algo que não deve ser divulgado, antecipa a diegese, pois em
breve saberemos que ele se associa a Verger na caçada de Hannibal Lecter.
Inicialmente, o espectador observa o grupo que está em plano geral. Após
situar o espaço onde acontecerá a reunião, a câmera em travelling lateral mostra os
homens encarregados de decidir o destino de Clarice lentamente em primeiro plano
e ângulo contra-plongée. Nas falas deles vemos espelhadas as notícias veiculadas
pelos telejornais, dessa forma entende-se que o grupo assumiu o ponto de vista da
mídia e é por esse ângulo unilateral que resolvem por suspender a agente. Clarice
nem começou a explicar-se e seus interlocutores já estão dando mais atenção aos
seus celulares que tocam e pagers que bipam provocando a retirada gradual dos
presentes e consequentemente o adiamento da reunião.
Enquanto as autoridades estão preocupadas com seus outros afazeres,
Clarice tenta se justificar apoiando-se em seus valores e aprendizados institucionais.
A câmera a focaliza em primeiríssimo plano e ângulo contra-plongée enquanto ela
se explica. Para o espectador, que acompanhou tudo, o momento é de grande
comoção: “Essa batida foi caótica. Tive que escolher entre morrer ou atirar numa
mulher com um bebê. Eu escolhi. Eu atirei. Matei uma mãe segurando seu filho.
Sinto muito. Lamento o que houve.” Por sua fala, Clarice deixa claro que agiu em
legítima defesa, porém: “Atirou e matou cinco pessoas”.
Com a falta de interesse da maioria, a audiência é adiada. A câmera passa a
focalizar a personagem em outro espaço, que se opõe ao anterior pela sua
amplidão. Em plano objetivo, Clarice está com o olhar fixo no horizonte à sua frente.
Tal posicionamento da personagem deixa transparecer seu momento de reflexão, ou
seja, ela deve estar sentindo medo das incertezas do futuro; medo de si mesma; no
medo das sensações que essa nova experiência lhe desperta. A grande
luminosidade natural que entra pelas grandes janelas envidraçadas que circulam o
salão contribui para o aumento da dramaticidade do momento vivido por Starling.
Por esse motivo, acreditamos que a personagem tem consciência de que dentro
75
dela existe outra prestes a libertar-se da injustiça e da opressão que estão aflorando
em seu ambiente de trabalho.
Ilustração 17 Clarice no interior da sede do FBI olhando para o horizonte
É nesse local de reflexão que Clarice é suspensa das ruas e designada para
voltar ao caso Hannibal Lecter a pedido de Mason Verger. Nesse momento, a
câmera esclarece quais eram as intenções deste ao ligar para o Departamento de
Justiça.
Nessa cena, outros detalhes da vida de Mason são sutilmente revelados por
Starling e por Crawford. Como por exemplo, pelo diálogo tomamos conhecimento de
que Mason Verger foi uma das vítimas de Lecter, que ele é “rico”, que possui
“amigos influentes”. E ainda que “não pode comprar um senador, mas pode alugá-
lo”.
Pelas informações trazidas pelas personagens, o espectador entende a razão
pela qual a câmera focalizou o Capitólio no início da sequência. Assim, vai se
formando uma rede em torno de Mason Verger, que se liga à Hannibal, à Clarice e à
Paul Krendler.
Durante o diálogo, a câmera focaliza Clarice, Krendler e Crawford em primeiro
plano e ângulos laterais, ou seja, do ponto de vista do interlocutor. Dessa maneira, o
espectador pode observar a reação do eu frente à palavra do outro. Outras vezes, a
personagem é focaliza em ângulo frontal, tal recurso é utilizado quando a ênfase da
76
câmera recai sobre o falante, ou seja, a importância está na entonação e não mais
na reação que a fala provoca.
Além desses detalhes de focalização da câmera que vão criando um clima de
desconforto entre Clarice e Krendler, destacamos a indiscrição de Paul Krendler, que
insinua a falta de sensibilidade da agente e ainda deixa-se pegar pela câmera
olhando para as pernas dela. Percebe-se que o funcionário do Departamento de
Justiça e Clarice estão em posições opostas e que ela procura mantê-lo à distância.
A esta altura da narrativa, o espectador ainda não entende qual é o papel do homem
que, segundo Crawford, “está ali, mas não está”, “está fazendo um favor”.
Como dissemos anteriormente, Clarice usa um tom ríspido e assim demonstra
que está muito descontente com o pré-julgamento que sofreu. Ela diz que “não
esperava levar um tiro nas costas dentro do escritório de seu chefe“, complementa
que fez tudo da maneira como foi ensinada. Porém, ao mesmo tempo em que nega
o sistema continua presa a ele, pois se dirigi para a casa de Verger.
A câmera sugere que, entre a proposta e a aceitação da mesma, não
decorreu muito tempo, uma vez que a agente já é mostrada na estrada antes mesmo
do final do diálogo. Tal efeito é provocado pelo uso da montagem alternada,
transição de uma sequência para outra: a imagem muda, porém a voz da cena
anterior permanece em off. Além disso, as imagens sugerem que a personagem se
agarra prontamente à oportunidade que lhe foi dada ou imposta.
2.5 Clarice Starling - o encontro com Mason Verger
Ilustração 18 - Clarice Starling em seu caminho para a casa de Verger
77
A tomada panorâmica distante da estrada, que metaforicamente representa o
caminho da vida (BAKHTIN, 2010a, p. 350), sugere que há o início de um novo
tempo para Clarice. Ela própria se disse mudada em decorrência dos
acontecimentos, ou seja, embora não seja aparente, a situação a que foi exposta
causou-lhe um ferimento, uma cicatriz. Sua missão a partir de agora é encontrar
Hannibal Lecter e para isso precisa falar com Mason Verger, pois este último afirma
ter novas informações sobre o foragido.
Clarice segue a estrada em direção à propriedade de Verger e surpreende-se
com uma sinalização pública indicando o caminho para o lugar. Como já havia feito
anteriormente, a câmera chama a atenção do espectador para a riqueza de Mason
Verger focalizando a placa que diz Estate Verger18.
O lugar recém-nomeado é mostrado pela câmera em plano panorâmico e
ângulo plongée. É essa tomada do alto que possibilita ao espectador ter a visão
global da propriedade de grandes proporções. Há uma casa, que mais se assemelha
a um castelo, rodeada por muito verde. O tamanho do imóvel condiz com o que já foi
dito sobre o patrimônio de Verger.
Com um corte da câmera, o espectador passa a acompanhar a progressão do
carro de Starling em plano geral médio dentro da propriedade. A tomada da cena é
diurna e a predominância da névoa sugere que seja ainda muito pela manhã, isto é,
antes de o sol aquecer a atmosfera. As imagens são acompanhadas por uma
melodia que parece traduzir a tristeza da personagem que silenciosamente percorre
seu caminho. Além da música e do barulho do atrito do pneu do carro com os
pedregulhos da estrada não se ouve nada. A névoa, a melodia, a memória recente
dos acontecimentos, o local tão surpreendente, tudo isso cria uma atmosfera onírica.
E esse clima permanece quase que pelo filme todo.
Ao chegar à porta da propriedade, Cordell vem cumprimentá-la e orientá-la
sobre o local correto onde deve estacionar o carro. Em seguida, a câmera corta a
cena e passa a fazer as tomadas de dentro da casa com o objetivo de mostrar o
ambiente em que vive Mason.
Clarice segue Cordell e os dois são acompanhados de longe pela câmera e
pelo espectador. Dessa maneira, pode-se apreciar o lugar onde será ambientada
18
Tradução nossa: Propriedade Verger.
78
boa parte da estória. Eles não se falam, porém Cordell chama a atenção para a
escuridão do local dizendo que: “A vista se ajusta à escuridão” e os dois andam
apressadamente.
Verger está esperando por Clarice em seus aposentos. Assim que chegam ao
local, Cordell afasta as cortinas brancas e transparentes que circulam o leito. Em
seguida, apresenta a visitante que permanece como pano de fundo, no escuro,
aguardando sua vez de falar com Verger.
Nesse início de cena, observamos que Verger não deseja que seu médico
participe do encontro com Clarice: “Cordell, pode nos deixar agora”. A câmera
mostra que o médico não gostou muito da ordem e argumenta: “Achei que devia
ficar (pausadamente) Talvez pudesse ser útil” (grifo nosso).
Relembramos que anteriormente, capítulo 2.1, pp. 59-66, a câmera mostrou
Cordell participando ativamente da vida de Verger. Porém nesse momento, ele é
impedido de permanecer no recinto. A imagem cria um clima de distanciamento, pois
mostra Verger em plano geral frontal distante: “Pode ser útil (ênfase) cuidando do
meu almoço”.
Por outro lado, Cordell é visto olhando fixamente para o outro enquanto se
retira da sala. Relembramos que para BAKHTIN (2000, pp. 290-291) “a
compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de
uma atitude responsiva ativa”, quer dizer, de uma resposta. Observamos que o
médico responde de maneira não-verbal e isso pode provocar “o eco no discurso” ou
“no comportamento subsequente do ouvinte”. Veremos que a resposta tardia de
Cordell virá em um momento de crise, quando ele acata uma sugestão de Lecter e
empurra Verger para a morte.
Verger inicia a conversa com um comentário sobre o carro de Clarice, que ele
identificou pelo ronco do motor, referindo-se ao consumo do veículo e também a
velocidade que o mesmo pode atingir. O enunciado aparentemente despretensioso
nos leva a refletir sobre a personagem desfigurada e aparentemente tão dependente
do outro.
Considerando o que já nos foi mostrado dele, sabemos que o mesmo não
pode ir sozinho a lugar nenhum fora de sua casa. Portanto dirigir um carro em alta
velocidade, isto é, ter o veículo sob controle, usufruir a sensação de liberdade que
79
isso proporciona é algo que lhe será negado para sempre. Embora, tenha o mundo
no “toque de um dedo”, conforme já foi sugerido pela câmera, a vida nega a ele
“pequenos sabores”: um biscoito, a independência e a liberdade. Dessa maneira, a
vida de Mason Verger, preso a cadeira de rodas ou a cama, vai sendo carregada de
pequenas frustrações e de pequenos ressentimentos.
Ainda na escuridão, a diegese progride com o depoimento de Verger para
Clarice. Antes do início, ela se aproxima dele para prender o microfone e fazer a
gravação19 das vozes. Nesse momento, a câmera e Verger tentam chocar Clarice,
pois aquela se aproxima do rosto de Verger deixando-o em primeiro plano. E o
segundo, com o controle remoto em mãos, aumenta consideravelmente a
luminosidade da sala. As ações conjuntas trazem para o centro da tela o rosto
iluminado de Verger. No entanto, Clarice não demonstra qualquer reação ao vê-lo e
inicia seus questionamentos sobre Hannibal Lecter.
Diante da reação insensível da agente, Verger desiste de provocá-la e, com a
ajuda da câmera, expõe sua vida íntima, ou seja, sua história com Lecter. As
imagens da automutilação são mostradas pela câmera e ilustram a fala de Mason.
Além disso, acreditamos que a câmera, como anteriormente destacamos, está
tentando chocar o espectador e, dessa maneira, colocá-lo ao lado de Verger.
Ao final desse jogo da câmera em revelar e ocultar Hannibal Lecter, é com um
tom de pesar que Verger afirma: “Parecia uma boa ideia!”. Esse lamento, no entanto,
é passageiro, pois a seguir em tom profético e até certo ponto ameaçador ele diz
que “Agradece a Deus pelo que aconteceu com ele, pois foi sua salvação” e se diz
imune: no plano político, “Pelo procurador federal”; no plano espiritual, “pelo Jesus
ressuscitado” e, por fim, diz que não há ninguém acima dele. Dessa maneira ele se
coloca como representante da justiça divina.
Essa afirmação de Verger por diversas vezes é recuperada pela câmera,
como observamos na ilustração abaixo. A personagem é mostrada pela câmera em
ângulo plongée, a tomada concretiza visualmente o que a personagem disse
anteriormente “ninguém está acima dele”. Assim, não há conflito entre a máscara
19
Outros gêneros do discurso semelhantes às gravações, como por exemplo, fotografias, telejornais, jornais são
utilizados na película. Pensamos que além de ser um recurso narrativo que podem ser utilizados para contar fatos
passados sem que seja necessário recorrer freqüentemente ao flashback, ainda introduzem outras vozes, ou seja,
outros pontos de vista no filme (grifo nosso).
80
interior (“o ser de desejo”) e a máscara exterior (“o eu social”) (BRAVO, 2005, p.
276), pois Verger age seguindo seus instintos, sem preocupação com o que a
sociedade exige dele.
Ilustração 19 – A onipotência de Mason Verger concretizada em sua visão
Por outro lado, Clarice deseja manter seu status de Agente do FBI e sofre
com o que a sociedade está fazendo com ela, pois está consciente de que fez tudo
da maneira como foi ensinada.
A sequência seguinte tem início com a imagem de Hannibal e as mãos que
seguram os documentos que se referem a ele. É dessa forma que a câmera sugere
que Lecter está nas mãos de Clarice, ou seja, ela está de volta ao caso. Em seguida,
o artefato volta-se para a entrada da sala e introduz uma nova personagem na cena.
Trata-se de um rapaz que carrega algumas caixas.
O funcionário se aproxima de Clarice e isso possibilita a câmera mostrá-los no
mesmo quadro. Durante o diálogo, o qual gira em torno do material que Clarice está
recebendo, observamos que a câmera não está interessada nas falas. O que
importa é mostrar o espaço onde a Agente irá passar a maior parte de seu tempo.
As tomadas em ângulo aberto mostram claramente que Clarice foi rebaixada,
conforme já foi sugerido anteriormente no capítulo 2.4, pp. 71-75. Seu novo local de
trabalho se parece com um depósito e ajudam o espectador a entender o momento
em que ela se encontra, ou seja, a personagem está enclausurada em uma sala sem
janelas e sem contato com outros funcionários. A única pessoa que entra e sai é o
rapaz que lhe traz a correspondência e as caixas que contêm o material disponível
sobre o caso Hannibal Lecter.
81
Em pouco tempo, veremos que Clarice se cerca de imagens do passado.
Entretanto, elas lhe trazem lembranças negativas, ou seja, a câmera sugere que a
agente quer ter perto de si tudo o que diz respeito ao Lecter, o canibal. Para
entendermos melhor esse processo, recorremos a uma citação de BAKHTIN (2000,
p. 253), “o passado está ativo no presente de forma negativa. É ele que determina o
presente, dá dimensão ao futuro que ele predetermina.”. Portanto, o texto do autor
nos leva a concluir que a personagem sente que sua trajetória de vida está
amarrada a Hannibal Lecter. É importante relembrarmos que essa ideia estabelece
uma relação dialógica com a última cena do filme O Silêncio dos Inocentes, capítulo
1.6, página 57, pois a câmera sugere, por meio da ligação telefônica interrompida,
que algo ficou pendente entre as duas personagens.
Com o intuito de encontrar Lecter, Clarice procura Barney, sobre ele já
falamos no capítulo 2.1, páginas 59-66. Nesse momento a câmera mostra outro lado
da personalidade do enfermeiro. Ele é flagrado na rua pela câmera e por Clarice
ruas em plano geral e ponto de vista subjetivo num ato de extrema sensibilidade.
Barney para o trânsito para recolher uma pomba caída no asfalto e livrá-la de ser
esmagada pelos veículos. Ao final, ele carrega a ave consigo até sua casa.
Destacamos que há um esforço da câmera em mostrar a bondade do
enfermeiro para o espectador e para Starling que acompanha tudo e aguarda que
Barney chegue ao portão da residência dele antes de abordá-lo. Dentro da casa, a
câmera os focaliza primeiramente em plano geral e percebe-se que o ângulo diminui
conforme o clima do diálogo fica mais íntimo. Barney defende Lecter, pois ele lhe
dizia que “preferia comer os indelicados. Chamava-os de indelicados que pastam
soltos”. O enfermeiro afirma que sempre foi civilizado com o prisioneiro e por isso
não tem medo de ser perseguido.
Para intensificar a idéia de que entre ela e Lecter havia um romance, Clarice
declara pensar em Hannibal com frequência. Ao final da conversa, demonstrando
sua preocupação com que o outro pensa sobre ele, o enfermeiro afirma “eu não sou
uma má pessoa”, mas ele considerava Dr. Chilton era uma pessoa ruim. Nesse
momento, Barney revela que o médico gravava as conversas que aconteciam na
cela de Lecter. Ao final, o enfermeiro entrega as fitas que estão com ele.
82
O conteúdo das fitas, quer dizer, as vozes, são usadas para a transição de
uma sequência para a outra. Primeiramente é Barney quem fala o que ele ouvia do
prisioneiro, depois é o próprio Lecter quem fala por ele mesmo:
Hannibal: Jack Crawford mandou você para me tentar e eu acabo lhe dando
uma boa ajuda. Acha que é porque gosto de olhar para você e imaginar
como deve ser saborosa, Clarice? (grifo nosso)
Clarice: Não sei, é?
Nesse momento a câmera focaliza o gravador, dessa maneira desvia a
atenção do espectador e o faz voltar para o presente, ou seja, para a realidade sem
Hannibal. A fala seguinte pertence ao primeiro filme, mais precisamente ao terceiro
encontro que aconteceu entre as personagens. Aqui ela faz a ponte entre a primeira
parte do filme e a segunda parte que acontece em Florença.
Ao final da seqüência, a câmera faz uma tomada em primeiríssimo plano
lateral de Clarice – seu rosto está dividido em duas partes – o efeito é causado pela
luz que ilumina somente uma parte dele e intensifica a ideia de que a personagem
está em conflito: gosta ou não gosta de Lecter; quer prendê-lo ou revê-lo. Sua face
se mistura com a paisagem que aparecerá na próxima sequência.
O som de um piano, que é introduzido em cena, imprime um tom lírico a
sequência. Hannibal faz um jogo com as palavras “Eu gosto de olhar para você e
imaginar como deve ser saborosa.”. A voz dele vai ser usada para a transição da
sequência: ‘‘O que eu desejo é uma vista. Eu desejo uma janela de onde eu possa
ver uma árvore ou mesmo a água. Quero ficar numa instituição federal distante...”.
A partir daqui, a trama vai acontecer em dois lugares: Washington e Florença.
A ideia de um possível romance entre Hannibal e Clarice, provocada por Mason, faz
com que a convivência com as imagens se mostre ambivalente, pois pode sugerir
que Clarice sente saudade de Lecter. Porém, ela pode estar apenas se dedicando a
sua missão, como é sua característica, além de se conscientizar de que Hannibal
Lecter é realmente um assassino e que não deveria estar solto no mundo.
83
2.6 Hannibal Lecter ou Dr. Fell
Conforme já dissemos, a transição entre a seqüência onze e doze possui um
efeito plástico muito bonito. Uma paisagem é enquadrada a longa distância. Trata-se
da Basílica di Santa Maria del Fiore é a catedral, ou Duomo, da Arquidiocese da
Igreja Católica Romana de Florença. Famosa pela sua monumental domo (ou
cúpula) - obra do celebre arquiteto renascentista Brunelleschi - e pelo campanário,
de Giotto, é uma das obras da arte gótica e da primeira renascença italiana,
considerada de fundamental importância para a História da Arquitetura, registro da
riqueza e do poder da capital. Não há qualquer referência na tela, mas o espectador
sabe do que se trata – a voz de Hannibal ainda é ouvida. A câmera vai girando
lentamente e confirma-se que a paisagem é a mesma dos desenhos de ficavam na
cela de Lecter no Hospital de Baltimore.
Dessa maneira, Hannibal Lecter e Clarice Starling se encontram por trás das
imagens que remetem ao passado. No presente, a câmera transporta o espectador
para Florença. Em breve, a atenção da própria Clarice vai voltar-se para esse lugar
tão longe de seu país.
Ilustração 20 - Imagem de transição entre as sequências
Após essa breve apresentação do espaço geral da diegese, a câmera se
desloca para outro lugar, um pouco mais específico. A tomada em plano geral e
ângulo plongée procuram mostrar uma praça. No chão, pode-se ver uma figura e
sua insignificância perante as construções à sua volta. Enquanto o sino badala, a
84
câmera se aproxima do homem que é mostrado em enquadramento lateral de corpo
inteiro. Ele está terminando de fumar seu cigarro e por isso joga o que sobrou no
chão. Nesse momento, o sino toca novamente e algumas pombas levantam voo
assustadas.
A câmera abre para o plano geral e acompanha a caminhada do sujeito que
se adentra nas construções. Novamente, ele fica insignificante frente à grandeza dos
edifícios à sua volta, ou seja, a tomada sugere a superioridade das edificações (por
metonímia das Instituições) em relação à pequenez da figura humana20. Com um
corte, a câmera o enquadra nos jardins do prédio e por todo o percurso até chegar
ao seu destino: um salão onde está acontecendo uma reunião.
Como se percebe, a câmera deseja mostrar o percurso total, ou seja, o
deslocamento desde a entrada até o salão. Nesse momento, acreditamos que se
relacione com a insignificância da personagem. Em outras situações, outras
personagens não precisam percorrer todo o trajeto.
Aos poucos, a câmera identifica o homem que acabou de entrar no edifício.
Trata-se do inspetor Rinaldo Pazzi que aguarda o término de uma reunião. Os
demais presentes estão no lado oposto, em volta de uma grande mesa. A câmera
em travelling lateral vai mostrando a todos em primeiro plano; somente o Sr.
Sogliato, um diretor da Biblioteca Capponi, fala. Os outros dirigentes o ouvem
atentamente.
Sr. Sogliato é contra a permanência de Dr. Fell como curador da biblioteca,
como vemos expresso em sua fala. Seu argumento se apóia no fato do Dr. Fell ser
um estrangeiro:
Sr. Sogliato: Os documentos da Biblioteca Capponi remontam ao século
XIII. Dr. Fell pode ter em suas mãos um documento pessoal de Dante
Aliguieri. Mas, ele seria capaz de reconhecê-lo? Eu acho que não!
Cavalheiros, não vou negar que o italiano medieval dele é admirável por
tratar-se de um estrangeiro. Mas ele conhecer as personalidades da pré-
renascença de Florença? Eu acho que não. [...] (grifo nosso).
20
No capítulo 1.1.1, páginas 29-30, destacamos que a câmera narrou algo semelhante, ou seja, o efeito de sentido
provocado pela tomada panorâmica da paisagem foi o mesmo.
85
O grupo determina que Dr. Fell, que ainda não foi mostrado pela câmera, se
apresente para a diretoria e demonstre ter conhecimentos sobre a obra de Dante
Alighieri (1265–1321). Por isso, eles agendam uma palestra do curador interino para
o grupo sobre o autor. A aprovação daquele para o cargo efetivo dependerá de seu
desempenho nessa palestra.
Destacamos que o discurso do Sr. Sogliato estabelece uma relação dialógica
com a tradição uma vez que a cidade de Florença é um lugar de raízes profundas,
com ligações culturais e históricas que remetem à Idade Média. Veremos o quanto
influenciam o andamento da diegese o aspecto cultural e histórico da cidade.
A câmera focaliza em plano distante aberto o grupo se desfazendo. Isso faz
com que o inspetor Pazzi levante de onde se encontra e se dirija até a única pessoa
que permanece ao lado da mesa de reuniões. A câmera acompanha, pelas costas, o
deslocamento do inspetor em direção ao referido local.
Quando está próximo do homem, ele o chama: “Dr. Fell”. O outro se vira
sendo focalizado em primeiríssimo plano frontal e a visão que temos é de Hannibal
Lecter. Porém ele atende ao chamado do inspetor. Portanto, a câmera mostra ao
espectador que Lecter assumiu a identidade de Dr. Fell21.
O diálogo entre os dois é mostrado em primeiro plano. Há a alternância entre
o ponto de vista objetivo e o subjetivo. Entretanto o que chama a atenção é o
ângulo: Pazzi vê Hannibal contra-plongée e é visto pelo outro em plongée22. Ou seja,
pelo ponto de vista de cada um, o inspetor parece estar em posição inferior em
relação ao outro.
Pazzi: [...] Estou investigando o desaparecimento de seu antecessor,
signore de Bonaventura.
Dr. Fell: “Antecessor” implica que o cargo é meu. Infelizmente, não é. Ainda,
mas tenho esperança. Estão me deixando cuidar da biblioteca. Tenho uma
remuneração.
Pazzi: Os policiais que verificaram anteriormente não acharam nenhum
bilhete de despedida nem de suicídio. Será que...
Dr. Fell: Se eu encontrar algo na biblioteca numa gaveta ou num livro, ligarei
imediatamente.
21
Destacamos que não há modificações físicas na personagem. Pode-se observar somente uma mudança na
vestimenta. Esta inclui um chapéu branco que deixa o rosto da personagem sob uma sombra. 22
Diríamos que é típico de Lecter: sentir-se superior ao outro.
86
Pazzi: Obrigado. (grifo nosso)
O inspetor se vira e caminha em direção a saída da sala. Porém, no meio do
caminho, o outro faz um comentário de caráter pessoal e por isso ele para onde está
e fica.
Dr. Fell: Você foi reconvocado.
Pazzi: O que foi?
Dr. Fell: Trabalhou no caso Il Monstro lembro de ter lido.
Pazzi: Isso mesmo.
Dr. Fell: Agora está nesse. Um caso bem menos importante, eu diria.
Pazzi: Se julgasse meu trabalho nesses termos, sim. Concordo.
Dr. Fell continua provocando o outro a se mostrar, porém ele se desvia do
assunto.
Até o momento, Dr. Fell não consegue uma refração do outro. Então ele
continua com sua anácrise. Faz uma reformulação em sua pergunta e para
aumentar o clima de intimidação a câmera o mostra em primeiro plano: “Uma pessoa
desaparecida?”
O questionamento feito dessa maneira, ou seja, sugerindo que o trabalho
atual do inspetor é insignificante parece que surte efeito. O inspetor muda sua
postura se aproximando da câmera e refrata: “O quê?”. Porém sua reação não
passa disso. [...] “Com relação a este, Dr. Fell. Os pertences do signore ainda estão
no Palazzo?”.
O espaço da diegese é todo iluminado por pela luz natural que entra pelas
grandes janelas. Entretanto, o ambiente está poluído pela fumaça dos cigarros dos
presentes. Outro elemento a destacar, é o fundo musical que provoca um efeito de
indefinição, ou seja, de algo a ser descoberto.
87
Ilustração 21 - Primeira vez que a câmera focaliza Dr. Fell
2.7 Hannibal Lecter e Clarice Starling – a carta perfumada
Nos Estados Unidos, a câmera mostra que Clarice está mergulhada na vida
de Lecter. Ela procura por pistas que possam levá-la a ele. Temporariamente, a
câmera desvia-se dela e mostra em primeiro plano frontal seu funcionário que está
entrando na sala. Deve ser algo importante, pois Clarice também se distrai com ele.
Destacamos que mais uma vez, a câmera em travelling lateral descreve o
local: todo fechado e sem luz natural. As paredes estão cobertas por painéis muito
iluminados que trazem as imagens de Lecter. Também, pode-se observar que há
grades nas janelas. Portanto, todos os elementos, que são destacados pelo foco da
câmera, traduzem em imagens os sentimentos de Clarice: aprisionada e isolada do
exterior. Acreditamos que por isso, ela mergulha no passado em busca de algo que
lhe devolva a vida.
As duas personagens da ação são mostradas no quadro a quadro, ou seja, a
câmera intercala o enquadramento entre os dois. A atenção maior da câmera volta-
se para Clarice que é focalizada de costas ângulo contra-plongée. Dessa maneira, é
possível ver os documentos que estão sendo manuseados por ela.
Ela abre um envelope e reconhece a letra de Lecter. A câmera congela a
imagem e um som agudo traduz o choque que a carta provocou na agente. Clarice
pede ao seu mensageiro que se retire. Depois, cuidadosamente abre a carta, não
pode causar nenhum tipo de dano ao material que pode lhe servir como prova.
88
A cena da leitura da carta é feita em dois planos alternados, ou seja, ora
vemos Clarice, ora Lecter. Em primeiro plano subjetivo vemos as mãos enluvadas de
Starling enquanto ela abre o envelope. Em seguida, desdobra a carta e a leitura da
carta é feita pelo locutor, ou seja, Lecter. Esse recurso auxilia a câmera a fazer a
ligação entre os dois espaços da narrativa, Florença e Estados Unidos, contribuindo
para diminuir a distância física que há entre eles.
Enquanto o espectador e Clarice ouvem as palavras de Lecter, a câmera
mostra para o espectador o cotidiano do locutor, ou seja, ele está vivendo livremente
e de maneira confortável em Florença. A câmera mostra que ele está
acompanhando a vida de Clarice, pois há jornais sobre o piano que falam da
desastrada operação pela qual ela foi suspensa.
Lecter, em sua carta, se diz triste pelo que acontecera com Clarice. A forma
como encerra a carta, sugere que ele “adivinha” onde ela está: “Imagino-a num
porão escuro, curvada sobre papéis e computadores. (...) Está claro que essa nova
tarefa não foi escolha sua. (...) Seu trabalho é tramar a minha desgraça. Não sei o
que lhe desejar, mas sei que nos divertiremos muito”.Por sua fala, percebe-se que
Hannibal conhece muito bem Clarice, pode inclusive prever suas ações.
Por outro lado, nos Estados Unidos, a câmera e Clarice mantêm a sua frente
e por todos os lados painéis e fotografias que mostram o canibal. A câmera sugere
que ela não quer se esquecer, dessa vez, quem é Hannibal Lecter. Dessa maneira,
somos induzidos a ficar do lado da policial, que está trabalhando em um depósito e
foi punida injustamente por seus superiores.
Veremos nas sequências seguintes que Clarice percebe que a carta está
perfumada. Esse detalhe do aroma estabelece uma relação dialógica com o primeiro
filme, pois a personagem e o espectador se recordam da primeira vez que a agente
e Lecter se encontraram que ele demonstra grande sensibilidade para os aromas23.
Além disso, a análise dos odores feita com a ajuda de especialistas a leva ao
fornecedor do produto usado por Hannibal e consequentemente ao fugitivo.
Portanto, concluímos que ele queria ser descoberto, uma vez que deixou pistas para
que Clarice chegasse até ele.
23
A análise da sequência mencionada se encontra no capítulo 1.2.1, páginas 38-50.
89
Em Florença, a câmera mostra o Inspetor Pazzi entrando na delegacia, onde
trabalha. Ele parece estar preocupado, porém seu problema é de natureza
particular: os ingressos para a ópera estão esgotados. Nesse minuto, a câmera
focaliza alguns colegas fazendo piada com o fato e referem-se à esposa do colega
de maneira grosseira: “É a bela e jovem esposa exigente que precisa das entradas.”
Esse despretensioso acontecimento mostrado pela câmera, em realidade,
desencadeia a degradação da personagem. Conforme veremos no desenvolvimento
da diegese, para satisfazer os desejos de sua esposa ele precisa de muito dinheiro.
Nesta sequência, a câmera chama a atenção do inspetor para a figura do Dr.
Fell. Isso é feito por intermédio de um vídeo que um colega está gravando na
delegacia. Enquanto, o inspetor Pazzi olha o que há no filme, o outro lhe conta que
se trata do conteúdo da câmera de segurança de uma loja de perfumes. A gravação
foi solicitada pelo FBI, porém ele não sabe de mais detalhes, pois o departamento
não forneceu mais informações.
Em um minuto, a câmera deixa de olhar para o vídeo e vira-se para o inspetor
Pazzi. Seu rosto está em primeiro plano, seus olhos estão fixos na televisão. Ele
congela a imagem do filme e certifica-se de que o homem que está lá é Dr. Fell.
A partir daqui, ele inicia sozinho suas investigações. A câmera o focaliza em
sua residência pesquisando nos arquivos do FBI. Usando sua senha de
investigador, ele localiza o banco de dados com os dez maiores inimigos dos
Estados Unidos, Hannibal Lecter é um deles. O inspetor Pazzi decide trabalhar
sozinho para receber a recompensa que Verger oferece por informações sobre
Hannibal Lecter. As necessidades financeiras do inspetor o levam a perseguir o
prêmio e consequentemente Hannibal Lecter ou Dr. Fell.
2.8 O final de Hannibal
Como dissemos anteriormente, Verger contrata Krendler para ajudá-lo a usar
Clarice como isca para atrair Hannibal. Porém todos os inimigos, ou melhor, os
perseguidores do ex-prisioneiro acabam mortos. Clarice na última sequência é salva
por Lecter e sai com ela nos braços como um genuíno herói.
90
A câmera os mostra em uma casa, as imagens indefinidas sugerem que as
mesmas são provenientes do ponto de vista de Clarice que está sob o efeito de
anestésicos. Quando ela acorda está vestida com uma roupa de festas, porém está
cambaleante, ainda sob o efeito dos remédios que Hannibal lhe havia aplicado
durante a operação.
Além de salvar Clarice, Hannibal oferece a ela um último jantar que parece de
despedida ou de celebração, pois estão no dia 04 de julho. Ele já tinha tudo
planejado, a câmera mostrou enquanto fazia compras, emprestou alguns
instrumentos de um hospital, transportou inclusive uma cadeira de rodas. Depois
descarregou tudo em uma casa a beira de um lago. Essas informações ficaram
pendentes. Somente nesse final de filme e que elas se ligaram ao resto da história.
Durante o jantar, Hannibal olha frequentemente para o relógio. Tal fato sugere
que ele espera por alguma coisa. A refeição é bastante inusitada: o cérebro de
Krendler, o maior inimigo de Clarice.
Hannibal: Se pudesse, me privaria da minha vida, não é?
Clarice: Não da sua vida.
Hannibal: A minha liberdade. Tiraria isso de mim. E se o fizesse, acha que a
receberiam de volta? O FBI? As pessoas que despreza tanto quanto elas a
você? Eles lhe dariam uma medalha, Clarice? Colocaria num quadro e
penduraria na parede para olhar e lembrar da sua coragem e
incorruptibilidade? Para isso, só precisa de um espelho?
O diálogo mostra que Hannibal reconhece que Clarice foi a única pessoa que
não se deixou corromper pelo dinheiro. Com o fim da refeição, Hannibal empurra
Krendler, que está em uma cadeira de rodas, para fora da sala de jantar.
O espectador já foi avisado pela câmera que os policiais estão chegando, eles
se aproximam em silêncio, parece que não querem perturbar o encontro entre Lecter
e Clarice.
Enquanto eles não chegam, Hannibal prende Clarice à geladeira e a beija.
Uma lágrima corre pelo rosto dela enquanto o prende a ela com as algemas. Para
fugir, ele precisa cortar um dos pulsos. Em primeiro plano frontal Clarice grita.
91
Os policiais chegam, pode-se ouvir o som das sirenes. Em ângulo contra-
plongée, vemos Clarice do lado de fora da casa ao lado do lago, procurando
Hannibal. Em plano geral, do outro lado do lado: fogos de artifícios iluminam os
céus.
Na tomada final, em plano geral, um avião corta os céus. Do lado interno, a
câmera mostra Hananibal em plano aberto, pela tomada da câmera pode-se
observar que ele está com o braço esquerdo enfaixado.
A câmera muda para o ângulo subjetivo e vemos suas mãos abrindo uma
caixa de alimentos. Um garoto oriental que está ao seu lado quer provar da sua
comida. A princípio Lecter diz que ele não vai gostar, depois diz: “Sempre devemos
provar novas coisas.” A iluminação sobre Hannibal vai escurecendo ao final a tela
fica preenchida com o olho esquerdo de Hannibal.
Ilustração 22 - Hannibal Lecter na última cena do filme
92
Capítulo 3 - A Personagem em Dragão Vermelho
O objetivo deste capítulo é apresentar e analisar as personagens que povoam
a narrativa fílmica Dragão Vermelho. Para atingir tal objetivo, promo-nos a descrever
os processos de narração, ou seja, os recursos expressivos da linguagem fílmica,
utilizados na construção delas.
É oportuno relembrar que cronologicamente, Dragão Vermelho antecede O
Silêncio do Inocentes e Hannibal, por isso apresenta uma narrativa onde presente e
passado vão sendo intercalados. Dessa maneira, durante a projeção das sequências
veremos o uso constante de recursos narrativos que buscam entrelaçar as três
películas. Por exemplo, em alguns trechos, a câmera faz uso de um processo
narrativo chamado de anisocronia. Segundo AGUIAR E SILVA (2007, p.757), as
anisocronias resultam “do fato do narrador excluir do discurso determinados
acontecimentos diegéticos, dando assim origem a mais ou menos vazios narrativos”.
Em decorrência disso, cabe ao espectador preencher esses vazios recorrendo à
própria memória, ou seja, ao que já foi mostrado nos dois primeiros filmes.
Outra particularidade dessa película é que o espectador sempre sabe mais do
que as personagens, isso contribui para o aumento do suspenso. Além disso, o pré-
conhecimento proporciona ao espectador a dupla emoção, quer dizer, antes da
personagem por antecipação e junto com ela, quando os fatos se concretizam.
3.1 Hannibal Lecter em encontros sociais
Em plano geral distante, é assim que a câmera escolhe mostrar o espaço
cenográfico onde acontece a sequência de abertura do filme de Brett Ratner. Trata-
se de um auditório, na cidade de Baltimore, Maryland, 1980, onde está acontecendo
um concerto musical. A orquestra está sendo conduzida por Lalo Schifrin e executa
o Scherzo – A dança dos Clowns, terceira parte da obra de Felix Mendelsshon,
Sonho de uma Noite de Verão, escrita em 1843. O vocábulo scherzo, que em
italiano significa brincadeira, é um gênero musical de caráter alegre ou lírico em
geral com movimento acelerado.
93
Ao refletirmos sobre o tema do trecho da peça apresentado, a festa e a
dança, verifica-se que o mesmo mote se estende da primeira seqüência para a
segunda. A melodia faz a transição entre as duas e chega a confundir o espectador
que a princípio acredita que os dois eventos acontecem no mesmo dia, porém
pequenos detalhes nos fazem refutar essa hipótese. Vejamos como isso é mostrado
pela câmera.
A opção pela tomada em plano geral demonstra que a intenção da câmera
não é descrever o local, mas situar o espectador e as personagens no espaço. Isso
se comprova pela movimentação para frente do equipamento fechando o ângulo de
visão e mudando o foco para os músicos que são enquadrados individualmente.
Além deles, o espectador pode observar também as movimentações do regente da
orquestra.
Passado algum tempo, ainda com o concerto em andamento, a câmera vira-
se para a plateia. A observação da técnica, ou seja, a mudança de ponto de vista, o
travelling para frente e o congelamento da imagem, conduz o espectador a desligar-
se momentaneamente da música e voltar-se para o público, ou mais
especificamente, para Hannibal Lecter.
Logo após a câmera ter localizado Hannibal da plateia, ela passa a mostrá-lo
em alternância com a figura de um dos músicos. Hannibal olha fixamente para o
outro e balança negativamente a cabeça demonstrando sua insatisfação com a
performance do flautista. O quadro a quadro enfatiza a importância dessas duas
personagens nesse trecho, pois todo o resto fica em segundo plano. Além de
Hannibal e do espectador que o acompanha, o regente e outros músicos também
demonstram certo desconforto em relação à falta de competência de tal sujeito.
Não há diálogos. O único som é aquele produzido pelos músicos. O
encerramento da cena acontece com o enquadramento do rosto de Hannibal em
primeiro plano. A transição para a sequência seguinte, como já dissemos, é feita
com o auxílio da melodia que acompanha o corte e o início da próxima sequência.
Ela se inicia com uma tomada externa em plano geral noturno. Em ponto de
vista objetivo, o espectador observa do outro lado da rua uma casa que se destaca
por ser a única que está iluminada. Com um corte, a câmera entra na sala e
descobrimos que se trata da residência de Hannibal Lecter. Ele é acompanhado pela
94
câmera e pelo espectador enquanto circula entre seus convidados servindo-lhes
vinho e plagiando Horácio segundo um de seus convidados: “Pense que cada dia
será o último, a hora que não deve esperar virá como uma boa surpresa [...]”.
Ao recitar os versos de Horácio referindo-se a brevidade da vida, Hannibal
está antecipando a diegese e mostra-se consciente de sua condição de
contraventor. Em breve, sua outra identidade de canibal será tornada pública e em
conseqüência disso ele será privado de sua liberdade. Dessa maneira, o jantar pode
ser lido como uma despedida da personagem de sua vida social. Destacamos que
na película Hannibal, ocorre uma situação similar. Hannibal, ou melhor, Dr. Fell se
despede de Florença logo após a apresentação de uma ópera. Ele estava no limiar
de ser descoberto pelo Inspetor Pazzi.
BAKHTIN (2010, p. 124) afirma que a introdução de outros gêneros do
discurso24, a ópera e o poema, pertencentes respectivamente à esfera musical e à
esfera literária, no romance, ou no nosso caso, na narrativa fílmica é uma forma
importante e substancial de introdução e de organização do plurilinguismo na obra.
Além de trazerem outros discursos para o filme, auxiliam na caracterização da
personagem Hannibal Lecter, que vem sendo mostrado a pinceladas. Nesse início
de película vemos a personagem em dois momentos do cotidiano. O primeiro de
caráter mais abrangente socialmente, a ópera; e o segundo de caráter mais íntimo e
festivo, o jantar.
A câmera focaliza as dez pessoas em um ambiente fechado pelos
enquadramentos em plano geral médio. Os mesmos, algumas vezes, são
intercalados com o primeiro plano. Acreditamos que a câmera busca a concentração
do espectador nas personagens e não no espaço onde elas se encontram. Vê-se
que o uso dessa técnica cria uma sensação de intimidade, de aproximação e de
familiaridade entre as personagens envolvidas, é a mais adequada considerando a
pequena quantidade de pessoas presentes no evento.
Segundo BAKHTIN (Ibid., p. 258), nos encontros para refeições ocorre a
liberação da palavra, dessa forma no ambiente familiar criado pela câmera, o
espectador observa a informalidade dos diálogos, haja vista a piada feita por um dos
24
Segundo Bakhtin (2000, p. 279), os gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados”
elaborados em determinada esfera de utilização da língua,
95
presentes: “Devo dizer, Hannibal, falando pelo resto da horda25[...]”. Ocorre a
interrupção e o homem refaz sua frase “em nome da diretoria da orquestra que seus
saraus são a melhor coisa do ano”. Em seguida, uma das mulheres se diz culpada
por estar se divertindo, enquanto há um músico da orquestra desaparecido. O
cômico do grupo se manifesta novamente: “Posso confessar algo cruel?”. Nesse
momento a câmera onisciente e o espectador fixam-se em Hannibal: os três sabem
o que houve com o músico. ”Não posso deixar de me sentir um pouquinho aliviado”.
A atenção volta-se para o grupo, a câmera quer mostram como eles recebem as
palavras que virão: “Parece horrível, eu sei. Mas era assim26 que o homem tocava”.
A brincadeira sarcástica a respeito do músico de certa maneira “justifica” o
crime praticado por Hannibal se considerarmos que segundo Barney, em Hannibal,
Hannibal Lecter comete seus crimes por dois motivos, quais sejam, prestar um favor
para a humanidade ou livrar-se de pessoas que são rudes.
Os presentes silenciam e isso é quebrado por uma das mulheres que
entusiasmada muda de assunto e questiona Hannibal sobre a refeição que está
sendo servida. A câmera está sob o ponto de vista objetivo: “Hannibal, confesse. O
que é esse amuse-bouche de aparência divina?”. Em tom vitorioso, Hannibal
responde: “Se eu lhe disser, temo que não irá nem provar”, ele abaixa a cabeça e os
outros riem. Hannibal completa: “Bon appétit”. Todos: “Bon appétit”.
Nesse trecho do filme, destacamos que em associação a imagem do
banquete, fato que “libera a palavra”, observamos o riso. Sendo que este último
permeia todo o encontro e incrementa o caráter informal do evento. Segundo
BAKHTIN:
O verdadeiro riso, ambivalente e universal não recusa o sério, ele purifica-o
e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose,
do fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou
intimidação, do didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta
fixação sobre um plano único, do esgotamento estúpido. O riso impede que
o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana.
Ele restabelece essa integridade ambivalente (2010, p.105, grifos nosso).
25
O chiste que brinca com a sonoridade das palavras só funciona na língua inglesa, pois o vocábulo usado para
designar diretoria, board, possui o som muito parecido com horde. 26
A personagem faz outra piada que funciona bem oralmente, uma vez que ele brinca com o som da palavra.
96
Da citação de BAKHTIN destacamos a ambivalência do riso, ou seja, o sério e
o cômico que se refletem mutuamente, assim como as identidades das personagens
dessa narrativa que vão se mostrar transitórias, ou seja, em transformação. As
personagens riem, fazem piadas, ironizam tudo e todos. Dessa maneira, “o riso, o
alimento e a bebida vencem a morte” (Ibid., 2010, p. 261)
É com esse clima festivo que a câmera encerra a sequência. Na continuidade
da história, o clima de intimidade é quebrado com a tomada em plano geral da sala
onde aconteceu o jantar, Hannibal está sozinho fazendo a limpeza da mesa. Um
travelling para frente mostra a toalha vermelha sobre a mesa em oposição a uma
xícara branca marcada pela boca de uma das convidadas, um pequeno detalhe que
antecipa a diegese. A personagem trabalha com muita calma e em silêncio.
3.2 Hannibal Lecter e Will Graham – o primeiro encontro
No evento descrito anteriormente as personagens se encontravam em um
ambiente estável e controlado por Hannibal, portanto não havia clima para conflitos.
Nos diálogos não observamos refrações, pois todos compartilhavam das mesmas
idéias. Entretanto, para que Hannibal se mostre verdadeiramente para a câmera, ou
seja, sua concepção de mundo e de si mesmo, é preciso que ele seja colocado no
limiar ou num momento de crise. Por isso, o espectador e a câmera aguardam por
algo que tire a personagem dessa “quietude”.
A mudança acontece com o som da campainha que quebra o silêncio. A
câmera mostra a personagem se deslocando de um lugar para o outro e depois
corta para que aconteça a mudança de espaço. A abertura da porta permite a
câmera apresentar uma nova personagem e mudar bruscamente o tom da narrativa.
97
Ilustração 23 - Porta vermelha atrás de Graham. Seria ela um símbolo de Hannibal Lecter?
Em sua fala preocupada o Agente Especial Graham se desculpa por sua
visita inesperada e tarde da noite. Relembramos que a Agente Starling também
costumava visitar Hannibal a qualquer hora do dia ou da noite. Como anteriormente,
isso parece não incomodar Dr. Lecter: “Nós dois somos pessoas noturnas. Entre. O
que você tem em mente?”.
Ilustração 24- Porta da frente da casa do Dr. Hannibal Lecter
A porta quadriculada ou multifacetada, pela qual atravessam feixes de luz, se
fecha atrás deles. O manejo da câmera chama a atenção do espectador para as
98
portas. CHEVALIER E GHEERBRANT (2009, p. 734) afirmam que a “porta simboliza
o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o
desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema”. Lembram, ainda,
que “a porta se abre sobre um mistério” que em breve será revelado pela câmera.
Após o cumprimento dos dois, a porta se fecha atrás deles. Quando as
personagens retornam à tela, eles estão em outro espaço. O lugar parece um
escritório e ambos estão sentados frente a frente. Em conseqüência desse
posicionamento a câmera os focaliza quadro a quadro, ou seja, de maneira
intercalada.
O diálogo é iniciado pelo agente27, o qual deixa transparecer em seu tom de
voz e postura corporal seu cansaço e desânimo. Além disso, percebe-se que o
policial está inseguro em relação às suas descobertas e anseia por compartilhá-las
com Hannibal. Por esse motivo, Hannibal ganha uma nova identidade: “parceiro”,
“companheiro”, “guru”, “um porto seguro”, “professor”.
Em suma, por conta da influência e dependência que Will Graham demonstra
ter em relação ao outro, fica claro que os dois estão trabalhando há algum tempo
juntos e a câmera transmite um clima de amizade e confiança. Portanto, a relação
entre os dois se mostra harmoniosa.
Nesse fragmento, o foco da câmera é mantido atrás de Hannibal na altura de
seu ombro, assim o espectador vê o outro pelos olhos daquele. Hannibal ouve tudo
atentamente, dessa maneira, demonstra seu interesse no assunto.
Graham: Estivemos na pista errada o tempo todo. Você e eu. Procurávamos
por alguém com algum rancor doentio e algum conhecimento de anatomia:
médico que perderam a licença, alunos que largaram a faculdade, demitidos
do necrotério. (grifo nosso)
Hannibal: A julgar pela precisão do corte e a escolha dos suvenires, sim.
Destacamos que até o momento, a câmera não interferiu na relação entre as
personagens. Ela deixa que tudo se resolva na diegese. Porém, o espectador,
27
Nesse tipo de cena, onde há diálogo, a câmera costuma mudar muito o seu posicionamento conforme sua
intenção em mostrar a reação do falante ou do interlocutor. Por isso, só mencionaremos o movimento de câmera
quando isso for relevante para a expressividade e compreensão do todo.
99
conhecedor do passado de Lecter, fica atento a tudo o que está acontecendo,
procurando sinais de mudança no comportamento de Hannibal Lecter.
Graham: É onde estamos errando. Ele não está colecionando partes de
corpos. (grifo nosso)
Hannibal: Então para que ficar com elas?
Graham: Ele não fica com elas... Ele as come. (grifo nosso)
Momentaneamente, após a fala de Graham, a câmera abre para o plano
geral, o rosto de Hannibal está sombreado pela pouca luminosidade que incide
sobre ele. Esse efeito colabora para o aumento da tensão no espectador e na
personagem Hannibal Lecter, pois ambos sentem que Will está se aproximando da
verdade, qual seja, a outra identidade daquele.
É Graham quem continua falando, discorrendo sobre como chegou às suas
conclusões. Percebemos em sua fala que Hannibal conhecia, pelo menos pelo
nome, a esposa do agente “Fomos ver os pais de Molly no Ano Novo e o pai dela
mostrou ao meu filho, Josh, como trinchar um frango assado”.A câmera vira-se para
Hannibal, enquanto o outro continua contando:
Graham: Ele disse: “A parte mais tenra do frango são as ostras em ambos
os lados das costas.”. Nunca havia ouvido essa expressão antes: “ostras”.
Então, de repente, eu me lembrei da terceira vítima, Darcy Taylor. Estava
faltando carne nas costas. Então eu percebi fígado, rim, língua, timo. Todas
as vítimas perderam alguma parte do corpo usada em culinária. (grifo
nosso)
Hannibal: Você já disse isso à Agência?
Notamos que Lecter se conscientiza de que foi descoberto pela sua última
fala. Para o espectador ela tem duplo sentido, pois ele já usou o mesmo tipo de
discurso em outro contexto. Conforme BAKHTIN (2000, p. 404), “toda palavra (todo
signo) de um texto conduz para fora dos limites desse texto. A compreensão é o
cotejo de um texto com os outros textos”, portanto o espectador que viu a segunda
película, Hannibal, entende que por trás de um simples questionamento está a
sentença de morte de Graham.
100
Graham não tem consciência disso tudo que observamos, mas notamos que
a partir daqui há uma mudança na entonação de sua fala. Isso se traduz no uso da
primeira pessoa do singular, ou seja, a unidade antes observada parece ter se
rompido: Não, precisava vê-lo primeiro. Mas estou certo sei que estou. Estou
conseguindo pensar como este elemento. (Graham) (grifo nosso)
O trecho grifado confirma com nossa hipótese de que Graham necessita do
aval do outro para seguir com suas investigações. Os motivos que o levam a sentir-
se tão inseguro não ficam claros no momento. Acreditamos que seja o tipo de
relação que há entre os dois de dependência, levando o Agente a buscar a
aprovação do “professor” ou do “tutor” antes de tomar suas próprias decisões.
Como já destacamos, Hannibal reconhece que o outro está prestes a
descobri-lo e por isso muda o tom da conversa. Além disso, suas informações são
relevantes, pois garantem a verossimilhança interna da narrativa fílmica.
Hannibal: É fascinante. Você sabe, como eu sempre suspeitei. Você é
sensitivo.(grifo nosso)
Graham: Eu não sou médium, doutor.
Hannibal: Não, isso é diferente. Tem mais a ver com imaginação artística.
Pode assumir o ponto de vista emocional dos outros mesmo aqueles que o
assustam ou enojam. É um dom perturbador, acho. Eu adoraria tê-lo no
meu divã. (grifo nosso)
As palavras de Hannibal elogiando o outro soam como um lamento, ou um
pedido de desculpas, pois ele não pode confessar que Graham está certo em suas
interpretações dos fatos: ”Algo ainda não faz sentido para mim. Você é o melhor
psiquiatra forense que eu conheço. E de algum modo, em todo esse tempo essa
possibilidade nunca lhe ocorreu”.
Como vimos, o agente se mostra intrigado com o erro cometido pelo
companheiro. Desviando o olhar do outro, Hannibal tenta se justificar.
Hannibal: Eu sou apenas humano. Talvez eu tenha me enganado.
Graham: Você não me parece ser um homem que comete muitos erros.
Hannibal: Sinto pensar que talvez não vá mais gozar da sua confiança.
(olhando para baixo, grifos nossos).
101
Nesse excerto, pode-se notar que Graham parece não acreditar que Hannibal
tenha simplesmente errado, entretanto não quer se indispor com o colaborar e
procura desfazer qualquer mal entendido que suas palavras possam ter provocado.
Graham: Não, eu não disse isso. Não sei o que estou dizendo. Estou muito,
muito cansado... Eu quase cheguei lá. (grifo nosso)
Hannibal: Chegará até você. Por que você não volta de manhã? Vou liberar
algum tempo na minha agenda e podemos revisar o nosso perfil. Tudo
bem? (grifo nosso)
Graham: Sim.
Hannibal: Descanse aqui, eu pegarei o seu casaco. Não vou demorar. (com
as mãos no ombro do Agente) (grifo nosso)
Hannibal sente que chegou a hora da verdade e ausenta-se
momentaneamente da sala. Enquanto isso, Graham, seguindo o conselho do outro,
levanta-se da cadeira para relaxar e circular pela sala. Sua movimentação obriga a
câmera a mostrá-lo de costas. É nessa posição que o espectador o observa se
dirigindo em direção a uma grande estante repleta de pequenos objetos e livros. A
câmera focaliza demoradamente cada detalhe que também está sendo visto pela
personagem e pelo espectador. As figuras que estão sendo destacadas parecem ter
um valor apenas decorativo, porém, a insistência da câmera em focalizar cada um
deles deixa o espectador em estado de alerta.
Paulatinamente, a câmera vai mostrando a mão do policial em primeiro plano
acariciando as penas de algumas flechas; segue com seus olhos em travelling lateral
apreciando a pequena coleção mostrada sob o ponto vista subjetivo, ou seja, da
personagem. Nada chama a atenção de Graham, a não ser um livro azul que está
deitado. É um exemplar da Larousse Gastronomique e o inspetor o abre na página
marcada. Em outro contexto a publicação não causaria estranheza e seria apenas
um livro de receitas. Porém dentro da diegese, ele assume um valor de signo e,
portanto adquire um novo sentido, qual seja, a chave para Graham desvendar o
mistério que cerca Hannibal Lecter.
Nesse momento, um travelling rápido para frente coloca a página do livro em
primeiro plano, em seguida é o rosto do inspetor que está em evidência, o que leva o
102
espectador a perceber que nesse momento Graham toma consciência de que está
na casa e em companhia do assassino a quem procura. O movimento brusco da
câmera assusta o espectador e inicia a sequência quatro. As imagens em câmera
lenta e focalização em primeiro plano são de caráter dramático.
Graham é atacado por Hannibal Lecter que o atinge no abdômen com um
estilete. O inspetor consegue sacar o revólver, mas não tem tempo de reagir e atirar.
O agressor sussurra ao ouvido do outro algumas palavras que em seu sentido literal,
“não quero que sinta dor” e “lamento” sugerem que Hannibal se importa com o bem
estar do outro.
Não se mexa. Você está em estado de choque. Não quero que sinta dor.
Logo você sentirá a cabeça leve. Depois, sonolento. Não resista. É suave
(ouve-se o barulho da carne sendo cortada) como entrar em um banho
quente. (afunda o objeto cortante contra o outro que se estica e grita de
dor). Lamento que tenha sido assim, Will. Mas todo jogo precisa terminar.
(grifo nosso)
Isso se comprova pela maneira gentil com que o agente é colocado no chão
lentamente por seu agressor enquanto esse último continua falando: “Você é um
garoto extraordinário. Eu admiro a sua coragem... Acho que comerei o seu coração.”
E continua sobre o outro para completar o serviço. Porém, não contava com a
reação do “morto”.
Graham atinge Hannibal com uma flecha. Com isso, este se distancia daquele
para observar o que o atingiu. A câmera acompanha os olhos de Hannibal enquanto
ele olha para o local onde foi agredido. Imediatamente retorna na direção do agente.
Este último mesmo muito ferido dispara contra aquele.
Após vários disparos, Hannibal Lecter cai de costas sobre uma mesa. A
câmera o mostra em primeiro plano de cabeça para baixo com os olhos abertos. Ao
fundo, vemos Graham caído no chão. Destacamos que a expressividade das
imagens é intensificada pela música que acompanha tudo.
103
Ilustração 25 - Hannibal Lecter no momento em que agride o Agente Especial Will Graham
A tela fica toda escura, o fade-out é utilizado para a transição entre as
seqüências e o encerramento da primeira parte do filme. Quando a imagem
reaparece, não se sabe quanto tempo passou, pois não há nenhuma referência
temporal. Juntamente com o acompanhamento da apresentação dos créditos iniciais
a câmera e o espectador tomam conhecimento através de um diário daquilo que
aconteceu às personagens após o fade-out.
Relembramos que o diário é um gênero do discurso de caráter subjetivo que é
utilizado para o registro de vivências muito pessoais e que não pressupõe um
receptor. Inserido nesse ponto da narrativa fílmica, o livro, em primeiro lugar, cumpre
o papel de narrador da história, uma vez que ele mostra os acontecimentos
passados. Além disso, é uma forma de apresentação da personagem, conforme
afirmação de BRAIT (1985, p. 62):
Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa pode assumir
diversas formas: diário íntimo, [...]. Cada um desses discursos procura
presentificar a personagem, expondo sua interioridade de forma a diminuir a
distância entre o escrito e o “vivido”. [...] cada página procura expor a “vida”
à medida que se desenvolve, flagrando a existência da personagem nos
momentos decisivos de sua existência, ou pelo menos nos momentos
registrados como decisivos (grifo nosso).
104
Os trechos grifados na citação acima dizem respeito a essa nova personagem
que nesse momento da narrativa prefere apresentar-se de maneira indireta, ou seja,
pelo seu diário. Dessa forma, ela tem a nos dizer que os fatos mais importantes de
sua vida estão contidos naquele livro. Portanto, a personagem está de alguma
maneira ligada a Hannibal Lecter e a Will Graham.
As páginas do diário são viradas por seu locutor e ele não quer ser visto. A
câmera focaliza somente as páginas em primeiro plano e assim o espectador pode
identificar as manchetes e as fotografias que acompanham as notícias todas elas
relacionadas com o que acabamos de descrever, ou seja, o encontro.
Além desses fatos narrados, a câmera expõe outros textos e imagens que
não produzem nenhum sentido, ou seja, elas não entram em relação dialógica com o
que está acontecendo no momento: a gravura de uma mulher batendo em uma
criança; uma fotografia com a legenda “avó”, gravuras de animais, a foto de um
garoto com a boca e olhos riscados, um trecho do Apocalipse 12.3, além de uma
figura, a qual chama a atenção pelo ponto de intersecção entre o homem e o
dragão.
Nas páginas seguintes, o diário volta novamente a sua atenção para as
manchetes dos jornais que expuseram a vida dupla de Hannibal Lecter: “Maníaco
servia órgãos humanos aos convidados”, “Diretoria da orquestra de demais no
tribunal”, “Hannibal culpado“, ”Canibal enjaulado para sempre. 09 prisões
perpétuas”. Sobre Will os jornais disseram o seguinte: “Policial herói vai para o
hospício. Motivo: estresse” e com a apresentação dessas duas últimas o livro vai se
fechando “Agente especial se aposenta do FBI”, “Agente deixa a Agência”.
As notícias dos jornais ajudam a câmera a dar um desfecho para o duplo
ataque entre Hannibal Lecter e Will Graham. Além disso, o fechamento do diário ao
final da sequência sugere que os fatos fazem parte do passado e lá devem ser
deixados.
No que diz respeito às personagens, a primeira parte do filme mostra que
Hannibal Lecter mora em Baltimore e leva uma vida dupla, ou seja, ele tem duas
personalidades. Em certos momentos, ele é o colaborador do FBI e homem comum
que freqüenta teatros, concertos e recebe amigos em casa. Em outros momentos,
ele é um assassino que come partes de suas vítimas ou as serve para seus amigos
105
em jantares íntimos. Seu verdadeiro eu só vem à tona quando ele é colocado frente
a frente com Will Graham. Ou seja, é na relação do eu com o outro que a
personagem se revela como ponto de vista de mundo e do seu próprio eu.
Hannibal qualifica Will Graham como “sensitivo”. O Dicionário Houaiss28 traz
várias acepções do termo. Destacamos àquelas que se relacionam com o perfil da
personagem:
■ adjetivo
1 relativo aos sentidos e às sensações
2 receptivo a impressões sensoriais
■ adjetivo e substantivo masculino
5 que ou aquele que é muito suscetível
6 que ou aquele que, com facilidade, é emocionalmente atingível
7 que ou aquele que é dotado de poderes parapsicológicos
Portanto, suas reações vão estar sempre aparentes, elas se refletem na sua
maneira de olhar. Por conta de sua sensibilidade, Graham mantém uma forte relação
com sua família e isso se estende para suas relações sociais. A respeito dessa
característica da personagem, destacamos que mais a frente da diegese a câmera
mostra como ele se emociona ao ver uma família almoçando em um restaurante. É
essa imagem que o impulsiona para frente, ou seja, é ela que lhe dá forças para
enfrentar Hannibal Lecter. E por fim, o responsável pela coletânea que narrou os
últimos acontecimentos ainda é desconhecido.
3.3 Will Graham longe do FBI e em nova fase
A história dá um salto para anos depois. A câmera mostra uma bonita
paisagem em tomada panorâmica em ângulo contra-plongée. Uma legenda identifica
o espaço: Marathon, Flórida. Alguns elementos como a luminosidade, o canto dos
pássaros e o barulho do mar sugerem que o equilíbrio foi restabelecido. Porém, a
harmonia é quebrada pelo ruído dos pneus de um carro que desliza sobre o
cascalho que recobre a estrada.
28
Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=sensitivo+&stype=k. Acesso em 13 dez 2011.
106
O veículo é mostrado em primeiro plano e isso o isola do resto do lugar. Ele
só se enquadra na paisagem, ou seja, é mostrado em plano geral distante, quando
estaciona na porta de uma casa. A câmera corta e focaliza um barco, onde estão
uma criança e um adulto. O menino chama a atenção do pai para a pessoa que
chega. O espectador já identifica Will Graham que observa o visitante se aproximar.
A câmera deixa em elipse os cumprimentos iniciais, pois ambos dispensam
apresentação para o público. Quando focalizados novamente, já estão sentados
lado a lado e vão direto ao assunto. Nesse momento, eles são mostrados de costas
e à sua frente está a família de Graham (a esposa e o filho) e a bela paisagem.
Pensamos que tal tomada busca enfatizar a ligação que há entre Graham e sua
família. Esse novo elemento é introduzido nessa narrativa fílmica e veremos no
decorrer da diegese que ele se associa ao perfil do assassino que destrói famílias
inteiras.
Com outro corte a câmera vira-se de frente para eles e fecha o plano,
portanto os dois são vistos mais próximos. Isso muda o tom da conversa, ou seja,
deixa-a com um caráter de mais intimidade. Limitando o campo de visão a câmera
sugere, também, que a conversa não deve ser ouvida pelos outros.
O visitante é Jack Crawford, que foi o guru de Clarice Starling. Eles
conversam sobre os recentes assassinatos nas cidades de Atlanta e Birminghan. O
criminoso matou as duas famílias em noites de lua cheia, ele não deixa impressões
digitais, abusa sexualmente das vítimas. Crawford o chama de “anormal”.
O real motivo da visita de Crawford é que ele precisa da ajuda de Graham,
pois o considera mais experiente e menciona a maneira “diferente” do outro pensar.
Para persuadi-lo, lhe mostra a foto das famílias mortas. Nesse momento, Graham
troca olhares com sua esposa e a câmera focaliza o rosto de Crawford em primeiro
plano sugerindo que é deste último a palavra final, ou seja, Graham vai ajudá-lo.
Embora já tenha tomado sua decisão, à noite, Graham conversa com a
esposa, Molly, sobre voltar a trabalhar. Os dois são mostrados em um momento de
intimidade, uma vez que, a cena acontece no quarto do casal. Enquanto tenta
convencer a esposa de que ele tem experiência e por isso pode ajudar a salvar
famílias, a câmera mostra os dois em posições opostas, ou seja, em quadros
107
diferentes. Tal posicionamento da câmera sugere a relutância da esposa em aceitar
a ideia do marido.
A câmera auxilia na argumentação contrária de Molly, pois focaliza a enorme
cicatriz no abdômen de Will, descoberta no momento em que ele despe a camisa.
Dessa forma, a expressividade da cena se relaciona com essa marca, que tanto a
família quanto o espectador sabem que resultou do embate daquele com Hannibal.
Portanto, nesse contexto, a cicatriz adquire caráter de signo, simbolizando o medo,
ou seja, o principal argumento da esposa. Por outro lado, ela, assim, como o FBI,
confiam que a experiência do marido pode ajudar. As palavras de Graham não
permitem réplicas: ”Pode ser que eu os ajude a salvar algumas vidas... Como
poderia dizer não?”.
Nesse momento, Graham usa o discurso do outro, ou seja, repete as palavras
que de Crawford sem refração. Assim, está consciente que ao assumir a ideologia
do sistema, está abdicando de seu eu, de sua família, de seu bem estar; em favor de
seu trabalho, de outras famílias as quais ele pode ajudar a salvar. Por outro lado,
significa a volta dos riscos, de mais cicatrizes e do deixar matar-se novamente.
A câmera corta para a esposa, que se levanta e se dirige para junto do marido
demonstrando sua concordância. Esse movimento sugere a tomada de decisão e o
profundo entendimento. Dessa maneira, a partir daqui, os dois estão sentados na
cama e assim a câmara os mostra no mesmo quadro. Graham continua dizendo
que: “Esse jamais me verá ou saberá o meu nome”.
Considerando o que se conhece do ex-inspetor, essa fala soa mais como um
diálogo interior, ou seja, ele próprio tenta se convencer de que conseguirá manter-se
a uma distância segura daquele a quem procura. Porém, assim como ele, a esposa
demonstra sua dúvida em relação a essa promessa. Isso se comprova pela maneira
como ela o encara sem dizer nada. “Só vou ajudar a encontrá-lo. Os policiais vão
prendê-lo, não eu”. A mulher balança a cabeça negativamente. “‘Estarei na
retaguarda, Molly, eu prometo”. A esposa responde ironicamente: “Nunca fará isso.
Eu te conheço”.
Nesse momento, ele a chama para si dizendo: “Deixa disso. Venha cá”. Os
dois se abraçam indicando a harmonia entre o eu e o outro. A diegese é acelerada.
Já é de manhã e Graham se despede da família. Ele promete voltar em alguns dias,
108
porém os suspiros de Molly demonstram que ela sabe que isso não vai acontecer.
Ele entra no carro e a câmera mostra o veículo se afastando deles.
3.4 Hannibal Lecter e Will Graham – o (re) encontro
Graham inicia seu trabalho e rapidamente descobre evidências que auxiliam o
FBI a montar o perfil do assassino, que é apelidado de Fada dos Dentes. O
criminoso foi chamado assim porque ele morde suas vítimas. A marca que ele
deixou em uma delas levou os policiais a descobrirem que sua mordida é única e
conseguiram algo para incriminá-lo caso seja apanhado. Isso tudo, porém não
satisfaz Graham que se acha incapaz de achá-lo e prendê-lo.
Como sabemos, Graham se mostrou muito inseguro para solucionar seus
casos sem o aval de Hannibal. Por isso, veremos no decorrer da diegese a maneira
como Crawford sugere a Graham que procure a ajuda de Lecter.
Isso acontece após uma entrevista coletiva para a imprensa onde eles
prestaram contas das investigações. Graham e Crawford tomam café em um bar. A
câmera os mostra em primeiro plano, os dois conversam sobe o caso. No diálogo
que transcrevemos percebemos que Graham está muito contrariado, que ele
gostaria de ter ajudado mais, porém prefere ir para casa.
Graham: Não tenho a menor ideia de quem seja o cara. Eu só dei as linhas
gerais. Ele não tem rosto para mim.
Crawford: É o que disse sobre Garrett Hobbs, lembra? E você o descobriu.
Graham: Não, eu não.
Na interação face a face, percebemos que há um embate entre o sistema,
que é representado por Graham, e o pai de família, pelo ex-agente Graham. A
câmera mostra que Crawford está ocultando alguma coisa do outro. Isso é
evidenciado pela maneira que olha para seu interlocutor. Por isso, a câmera e o
espectador ficam atentos, esperando por alguma movimentação diferente de
Graham.
109
Crawford: Não?
Graham: Não, estava travado com Hobbs... (silêncio) Eu tive ajuda...
Crawford: De Lecter?
Graham: Pois é...
Nesse momento, Graham toma consciência daquilo que deseja Crawford e
por isso, refrata: “Jack, não jogue comigo. Não faça isso. Só me diga o que tem em
mente”. Crawford tenta contornar a ira do outro, porém sua expressão corporal o
denuncia: “Acho que talvez tenhamos um recurso a utilizar”.
A reação de Graham é explosiva: “Era isso? Você queria me pedir isso o
tempo todo?”. Crawford tenta amenizar e diz em fala tranqüila:
Não fique bravo comigo. Só faço o meu trabalho. Se conhecer algum atalho
melhor me avise. Se achar que há alguma chance dele falar comigo, eu irei
sozinho. Se não puder, Deus sabe que entenderei (grifo nosso).
Pelo primeiro termo grifado, notamos que Crawford incorpora o discurso da
Instituição, ou seja, ele se coloca no lugar do outro. Dessa maneira, demonstra que
na categoria do eu ele faria de modo diferente. Quer dizer, em sua fala está implícito
que agiria de outra forma em uma situação que não se relacionasse ao seu trabalho.
Sobre o segundo termo grifado, destacamos que Crawford confere ao outro
toda a responsabilidade sobre o caso, em outros termos, “se você mandar eu vou”, o
que nos parece incoerente, pois trabalham em conjunto. E por último, Crawford
clama por uma Instituição espiritual, dessa forma insinua a sua incapacidade de
resolver o problema racionalmente.
A câmara vira-se para Will. Ele olha para baixo e depois para frente. Dessa
forma, é sob o ponto de vista de Will que vemos em uma mesa um pai e uma mãe
alimentando os três filhos pequenos. Com a apresentação dessa imagem, isto é, da
família reunida, fica claro ao espectador que Will aceita conversar com Hannibal
Lecter. Dessa forma, novamente é a câmera que responde por Will, ou seja, ele não
verbaliza sua decisão.
Uma tomada externa em plano panorâmico mostra o Hospital Estadual e
Prisão Psiquiátrica de Baltimore. Uma voz em off, que é de uma personagem da
110
ação, faz a transição entre as seqüências. Destacamos que muitos trechos dessa
sequência vão estar em relação dialógica com o filme O Silêncio dos Inocentes, pois
o espaço da diegese é o mesmo. Além disso, Hannibal Lecter é a mesma
personagem e Graham está em posição similar a de Starling.
Com um corte, a câmera entra no hospital. A voz em off é do Dr. Chilton, a
quem o espectador já conhece das películas anteriores. Ele está olhando para Will
e, fazendo uso de seu peculiar tom irônico, pede a Will que interceda junto a Lecter
no sentido de que este responda a alguns questionários. Em sua argumentação, Dr.
Chilton expõe a fragilidade de seus métodos psicológicos, pois afirma que Hannibal
os transforma em origami.
Graham está consciente de que está ali por outro motivo, ou seja, precisa
impedir que outras famílias sejam mortas por Fada dos Dentes. Para ele não
interessa analisar Hannibal Lecter e assim responde que precisa sair dali
rapidamente para voltar para Atlanta. Dr. Chilton, que esperava a colaboração do
outro, mostra-se contrariado e procura rapidamente levar o visitante para a cela de
Hannibal. Entretanto, pouco antes de Graham passar pelas últimas portas que o
levam até Hannibal, Dr. Chilton tenta novamente. Dessa vez, usa a linguagem da
praça pública: “Dane-se cara. Você deve ter algum conselho. Você o pegou. Qual foi
o seu truque?” (grifo nosso).
Graham é mostrado pela câmera sob o ponto de vista do outro: “Eu o deixei
me matar”. A resposta do agente denota que ele atingiu o nível máximo de risco, ou
seja, chegou próximo da morte. A câmera volta-se rapidamente e mostra o rosto do
Dr. Chilton marcado por uma expressão de espanto. A reação do diretor às palavras
daquele indicam que há uma mudança na forma como o Dr. Chilton enxerga o outro.
Percebe-se que ambos estão em um momento de crise: Graham está ali para
reencontrar Lecter e o diretor precisa entrar na mente do prisioneiro. Portanto, diante
da revelação de Graham, Dr. Chilton conscientiza-se de que o outro a sua frente é
alguém que sente, se emociona e morre. A câmera encerra o diálogo entre os dois
de maneira brusca, pois vemos e ouvimos as pesadas portas se fecharem atrás de
Graham.
Com a continuação da história, a câmera mostra que Will inicia sua
caminhada pelo corredor que leva até Lecter. A dramaticidade do momento é
111
sugerida pelo uso do ponto de vista da personagem. Dessa maneira, o espectador
vê o estreito corredor com paredes de pedras que ele terá de percorrer. Muito
lentamente, Graham transpõe a distância que o separa de Lecter. O espectador, ao
caminhar com ele, observa tudo ao redor. Ele precisa passar pela cela de outros
três prisioneiros, somente um deles é mostrado, porém nada acontece. O silêncio do
lugar é quebrado pelo caminhar de Graham. Isso tudo ajuda a criar um clima tenso,
o tempo da diegese parece estar congelado.
Quando, afinal, Graham chega a seu destino, fica frente a frente com
Hannibal Lecter. Devemos considerar que a vida os colocou em posições opostas e
por isso a câmera deixa claro que há uma tensão, que ambos estão inseguros e
temerosos. Além disso, observamos que a personagem Hannibal Lecter é mostrada
em primeiro plano, mas não em primeiríssimo plano, como na película O Silêncio
dos Inocentes, o que causava uma impressão de gigantismo, monstruosidade.
Dessa forma, a imagem da câmera enfatiza o enfraquecimento da personagem
Hannibal Lecter que se reflete em sua fala, como veremos em seguida.
Hannibal se mostra inconformado com o fato de ter sido pego, ou seja, ele
parece não acreditar que o outro é melhor que ele. Isso se comprova pelo uso do
termo leigo que, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss29, significa “que ou aquele
que é estranho a ou que revela ignorância ou pouca familiaridade com determinado
assunto, profissão etc.; desconhecedor, inexperiente”.
Lecter: Você diz ser leigo. Mas foi você que me pegou. Não foi, Will. Sabe
como você conseguiu? .
Will: Tive sorte.
Lecter: Não acho que você acredita nisso (grifo nosso).
Nesse contexto é Graham quem precisa provocar a palavra do outro, para
conseguir completar sua missão, qual seja, obter informações sobre Fada dos
Dentes. Para tanto, ele tenta dissuadir Lecter oferecendo-lhe algumas regalias:
livros, computador, ou seja, coisas de que este último gosta. Além disso, Graham
sabe como suscitar a ira do outro: “Achei que gostaria do desafio. Saber se é mais
29
Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=leigo&stype=k&x=11&y=7. Acesso em: 13 dez
2011.
112
esperto que a pessoa que estou procurando” (grifo nosso). A isso Lecter responde
indignado: “Então, está insinuando que é mais esperto que eu, pois foi você quem
me pegou” (grifo nosso).
Graham: “Sei que não sou mais esperto que você.”
No primeiro contato entre os dois, percebemos que há uma mudança do tom
do diálogo. Entre eles há uma barreira física e outra que não é visível: o medo. A
câmera mostra Hannibal enquanto ele pergunta de maneira áspera, procurando
respostas para sua derrota:
Hannibal: Então como você me pegou?
Graham: Você estava em desvantagem.
Hannibal: Que desvantagem?
Graham: Você é louco. (grifo nosso)
Segundo o Dicionário Eletrônico Aulete30, o adjetivo louco remete a pessoa
que “1. Que sofre de perturbações psíquicas, que não está em seu juízo perfeito. 2.
Que não é razoável, que contraria a razão, sendo, por isso, surpreendente, ou
absurdo, ou arriscado; insensato.” Portanto, pelas definições apresentadas Graham
desqualifica o outro ao chamá-lo de louco, colocando-o em uma posição inferior, de
irracionalidade e de acabamento.
Um longo silêncio segue a fala de Graham, ou seja, Hannibal não responde
prontamente. Parece estar sob choque. Passado algum tempo, ele pede os arquivos
que estão com Graham e um recesso de uma hora para poder examiná-los e emitir
sua opinião.
Desse re-encontro entre os dois, concluímos que as personagens buscam
atacar o ponto frágil um do outro, ou seja, a loucura e a pouca experiência. Medo e
loucura (o louco é um outro eu) se misturam expondo a fragilidade das duas
personagens. Do cotejo deste encontro com o primeiro analisado no capítulo 3.2,
páginas 95-104, destacamos a quebra da consonância que havia entre eles. Os dois
entram em desacordo, depois que Will descobre a verdadeira identidade de Lecter,
em conseqüência “da perda da inocência da inconsciência que permitia ao homem
30
Disponível em http://aulete.uol.com.br. Acesso em: 05 nov 2011.
113
formar um todo” (BRAVO, 2005, p. 271) eles se mostram cindidos, enfraquecidos e
esfacelados.
Durante o intervalo, a câmera mostra imagens de Graham em ângulo contra-
plongée. Esse ângulo sugere a degradação da personagem; ele transpira muito,
solta o nó da gravata e retira um café em uma máquina. Pelos elementos mostrados
pela câmera, Graham fez um tremendo esforço para conseguir encarar Lecter.
Após o tempo de uma hora, ele já é mostrado sentado à frente de Hannibal
ouvindo o que este pensa sobre o assassino. Nesse momento, Lecter fica próximo
ao vidro e o tom hostil expressa sua avaliação apreciativa em relação a Graham:
Você fede a medo com essa loção barata. Você fede a medo, Will, mas
você não é covarde. Tem medo de mim, e mesmo assim, veio. Você teme
esse garoto tímido, mas ainda assim o procura. Você não entende, Will.
Você me pegou porque somos parecidos.
Sem nossa imaginação, seríamos como qualquer idiota. O medo é o preço
do nosso instrumento. Mas vou ajudar a suportá-lo.
Segundo BRAVO (Brunel et al., 2005, p. 271), “a consciência humana, com
sua capacidade de desdobramento, seu poder de imaginar, torna-se fonte de terror”.
Em decorrência disso, no medo encontra-se também o embate do ser e do não-ser,
pois nem Lecter nem Will querem ser um a cópia do outro. Segundo BAKHTIN
(2000, p. 46), “uma identificação com o outro que acarrete a perda do lugar que
somos os únicos a ocupar fora do outro é quase impossível e, em todo caso,
totalmente desprovida de utilidade e de sentido”. Em outros termos, Graham está
consciente de que é parecido com Hannibal, porém, também tem plena certeza de
que não é como ele e que não deve se confundir com ele.
114
Ilustração 26– Hannibal e Will Graham em seu reencontro
Portanto, o Agente precisa buscar sua independência em relação ao outro,
ou seja, ele deve extrair as imagens, que dão o acabamento ao outro, do seu
excedente de visão31, de sua vontade e de seus sentimentos e, assim, pensar por si
mesmo e reencontrar o seu eu.
Nas próximas seqüências, a câmera mostra ao espectador como é o trabalho
investigativo de Graham. Em uma de suas diligências, na residência da família
Jacobi, em Birmingham, Alabama, ele encontra um galho quebrado que o leva até
um desenho gravado em uma árvore. Will assume que tenha sido feito pelo
assassino: “Você é orgulhoso. Tinha de assinar a sua obra”.Nessa fala, o inspetor
presume que o criminoso sente satisfação pelo que faz, ou seja, ele gosta de matar.
Porém, o agente não consegue se desvincular do outro, pois a cada pequeno
avanço em sua investigação, a câmera mostra, que ele necessita da ajuda de
Hannibal Lecter. Por isso, ele retorna a prisão para falar com Lecter sobre o
desenho.
As imagens de Lecter mostram que ele já está se recuperando de sua crise
de insegurança e demonstra sua superioridade intelectual e cultural ao recitar um
trecho do poema de William Blake, Auguries of Innocence (Augúrios de Inocência),
que diz “Sabiá de peito vermelho enjaulado/ Enfurece os céus”. O poema será
retomado pela personagem na sequência seguinte. Nesse momento, a pista leva o
31
Conforme BAKHTIN (2000, p. 43), “o excedente da visão estética, que consta de minha visão de meu
conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar,
neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os outros se situam fora de mim.”
115
inspetor até uma biblioteca. As descobertas que ele faz o aproximam do Fada dos
Dentes – o assassino.
3.5 Dragão Vermelho ou Francis Dolarhyde
Na seqüência seis, a câmera não mostra a personagem, mas sugere, por
meio das reações de Graham ao olhar para as fotos das famílias mortas, que aquele
é um assassino cruel. Ele é “um anormal”, segundo Crawford, não têm digitais, pois
usa luvas e calça sapatos número 45. Entretanto, têm-se amostras de sangue,
sêmen e saliva do assassino, pois ele abusa de suas vítimas.
Outros elementos sobre a personagem vão surgir na seqüência dez. Os
mesmos se relacionam com o fato do criminoso morder as vítimas, por isso os
peritos conseguiram um molde de sua arcada dentária. Além disso, sabe-se que ele
não deve interromper sua jornada criminosa, pois isso faz dele “um Deus”, segundo
palavras de Graham.
Mais à frente, na seqüência dezenove, Graham encontra no local do crime
uma marca deixada pelo assassino. Tal sinal, que é uma letra chinesa, provoca um
novo encontro entre Will e Hannibal. Como conseqüência da reunião, Graham chega
até a imagem de William Blake. E assim, a câmera mostra que o policial está bem
próximo da identidade do criminoso, pois na sequência seguinte, ela o focalizará em
sua casa.
O assassino começa a ser mostrado ao espectador na sequência vinte, mais
ou menos no meio da narrativa fílmica. A câmera deixa de dar ênfase à investigação
de Graham e a partir de um plano geral e ângulo plongée focaliza a entrada da
Clínica de Repouso Dolarhyde, conforme dizeres de uma placa presa no muro. Não
há portão e por isso a câmera entra e focaliza de longe uma longa alameda cercada
por árvores, que estão todas sem folhas. Tal imagem transmite uma sensação de
abandono e solidão. Em seguida, a câmera passa a focalizar o chão e caminha
rapidamente por uma espécie de passeio. O foco da câmera só muda quando um
espelho d’água mostra uma casa. Tudo é visto muito rapidamente, porém o
abandono pode ser notado: o chafariz está sujo, o jardim malcuidado e a casa
116
precisa de uma manutenção. Entretanto, alguém mora lá, pois há um veículo
estacionado na porta da residência.
De maneira apressada, o artefato chega até a porta da frente e entra. Os
movimentos rápidos da câmera sugerem que a vida do morador passa muito
rapidamente, não há detalhes significativos a serem destacados. Além disso, todos
os elementos remetem ao passado, inclusive o diálogo que acontece entre uma
criança e sua avó. Aos poucos o espectador percebe que a discussão tem caráter
de flashback, uma vez que não há personagens, e as vozes não correspondem às
imagens mostradas.
Segundo BAKHTIN (2000, p. 378), o sujeito se forma a partir da interação
com o outro. Dessa maneira,
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em
minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe,
etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles.
Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo
a palavra, a forma e o tom que servirão para a formação original da
representação que terei de mim mesmo.
Pela citação do teórico, deduzimos que ao trazer para o presente as vozes do
passado, a câmera busca mostrar ao espectador como Francis Dolarhyde se vê
como adulto. As palavras negativas da avó, quer dizer, do outro, ainda lhe causam o
mesmo impacto. Dessa maneira, conclui-se que a decadência do espaço físico
reflete a decadência moral da personagem que se mostra presa ao passado, isto é,
ao outro que era submetido às grosserias e ameaças verbais da avó.
Vovó! Vovó!
Francis! Nunca vi uma criança tão suja e repugnante como você. Olha para
você? Está encharcado. Saia da minha cama [...]
Vovó, está me machucando!
Cale a boca, seu animalzinho imundo!
Neto ou não, deveria ter te colocado num orfanato.
117
A câmera prossegue com sua apresentação da personagem, por isso sobe as
escadas e entra em um dos dormitórios. Nesse momento, a voz da criança some e
em seu lugar ouvimos uma voz masculina adulta que está abafada e que responde a
avô. A última fala reflete o desejo de se fazer o que o outro quer. Dessa maneira,
aquele que está sendo dominado busca fugir dos castigos:
Vovô, não me machuque.
Tire seu pijama e limpe-se. Rápido! Agora pegue a tesoura na caixa de
remédios.
Por favor, não. (Ouve-se gemidos no presente).
Peque aquela coisa imunda na sua mão e estique.
Não, vovó (no presente).
[...].
Serei um bom garoto. Eu prometo.
Finalmente, a câmera mostra a pessoa que fala, porém seu rosto está oculto
por uma máscara, sua respiração está ofegante por causa do esforço físico. O
homem sem face, o espelho quebrado e as marcas dos dentes deixadas nas vítimas
indicam que a personagem está em conflito, que busca firmar sua identidade.
Nessa primeira tomada do assassino, a câmera antecipa a diegese ao
acompanhar outro momento em que o artefato focaliza as mãos daquele. Ele abre
um cofre e retira de lá um grande livro, cuja primeira página diz “Vejam um grande
Dragão Vermelho”. As letras estão escritas sobre a figura de Willian Blake intitulada
O grande Dragão Vermelho e a mulher banhada de sol. Um recorte de jornal que
mostra a fotografia de Will Graham é colado no livro.
Ao final da sequência, as páginas do livro são folheadas e a câmera focaliza
várias fotografias de Hannibal Lecter, cujos olhos são acariciados suavemente pelo
homem desconhecido. Esse ato simboliza que o desconhecido se espelha em
Hannibal e na continuidade da história veremos que ambos se juntam para matar
Will Graham.
Algumas sequências à frente, a verdadeira identidade do assassino é
revelada. Portanto, os filmes trabalham o tempo todo com a questão da identidade,
fulcral para o estudo do duplo.
118
Figura 27 - Dragão Vermelho
Como Dragão Vermelho percebe-se que a personagem sente-se mais segura,
ele se esqueça de sua dificuldade e isso se reflete em seu discurso. Segundo
BAKHTIN:
O tom não é determinado pelo material do conteúdo do enunciado ou pela
vivência do locutor, mas pela atitude do locutor para com a pessoa do
interlocutor (a atitude para com sua posição social, para com sua
importância, etc), (2000, p. 396, grifo nosso).
Dragão Vermelho tem uma atitude forte frente ao seu interlocutor, no entanto
Francis Dolarhyde é justamente o contrário. Trabalhava no Laboratório Chromalux e
quase não tem amigos. A câmera o focaliza pela primeira vez de costas e depois no
escuro, dessa maneira enfatiza o não reconhecimento do eu da personagem e seu
medo de se apresentar frente ao outro.
Francis, que possui uma cicatriz no lábio, sente-se bem ao lado de Reba,
personagem deficiente visual, dessa maneira, a diegese enfatiza o medo que aquele
tem de sua aparência e o desejo de não ser visto. Reba percebe isso e diz: “Posso
ouvir que você teve algum tipo de reparo de palato. Mas [...] você fala muito bem.”.
Porém, a vida dupla de Francis não tem mais volta, e o relacionamento deles é
rapidamente interrompido pela morte daquele.
119
3.6 Hannibal Lecter e Will Graham – na jaula de exercícios
Will Graham visita novamente Hannibal. Desta vez, os dois se encontram na
“jaula de exercícios” do prisioneiro. O local é bastante sugestivo e revela que o
prisioneiro se encontra em uma nova fase.
Nesse momento, já se observa a coisificação de Lecter, ou seja, ele já não vê
Graham como outra consciência, pois observamos que ele deixa de provocá-lo com
o intuito de levá-lo a autoconsciência. Os dois caminham lado a lado e a câmera os
mostra em plano geral. Graham consulta Hannibal sobre o desenho que viu na
árvore. Trata-se de uma peça do jogo majongue que marca a figura do Dragão
Vermelho. Essa informação faz com que Lecter retome os versos de Blake: “Sabiá
de peito vermelho enjaulado/ Enfurece os céus”.
Como comentamos anteriormente, nessa sequência a personagem Hannibal
Lecter está diferente. As tomadas da câmera, quer dizer, as focalizações em
primeiro plano, sugerem que ele já restabeleceu sua autoconfiança, ou seja, ele está
ficando mais forte. Podemos constatar que esse fortalecimento é também físico, haja
vista a ilustração abaixo.
Além do aspecto físico, destacamos uma mudança na sua maneira de falar.
Relembramos que no capítulo 3.4, páginas 107-114, havíamos destacado que o
enfraquecimento da personagem era perceptível em sua voz. No entanto, aqui
observamos o oposto, o uso da ironia demonstra que ele está se sentindo
revigorado: “Já ficou de peito vermelho, Will? Claro que sim! Nunca sentiu uma onda
de pânico repentina?”.
Ilustração 28 - O ataque repentino de Hannibal Lecter
120
Nesse momento, Hannibal, que está acorrentado, se projeta para cima do
outro. Não o alcança, mas o ruído e o movimento do prisioneiro assustam Will e
assim o faz com o espectador. O agente sente medo e olha para o guarda que os
observa de longe. Em seguida, acontece um longo diálogo entre eles. Do mesmo,
decorre a decisão de Lecter de matar o outro:
Hannibal: Sim, é o medo do qual falávamos. É preciso experiência para
dominá-lo. Você pressentiu quem eu era quando estava cometendo o que
chama de meus “crimes”.
Graham: Sim.
Hannibal: Você se feriu não por uma falha de percepção ou do instinto, ma
porque falhou em não agir até ser tarde demais.
Graham: Pode dizer isso.
Hannibal: Mas agora você está mais sábio.
Graham: Sim.
Hannibal: Imagine o que faria, Will. Se pudesse voltar no tempo?
Graham: Colocaria duas balas na sua cabeça antes que pegasse o estilete.
Hannibal: Muito bem, Will. Sabe de uma coisa, acho que estamos
progredindo...
Os dois são despertados pela campainha avisando que o tempo da visita
chegou ao fim. Hannibal continua suas provocações “Minhas lembranças para Molly
e Josh.”. Após essa conversa os dois não se encontram mais.
A próxima sequência mostra em montagem alternada que Hannibal retorna a
sua cela e lhe foi concedido o direito de falar ao telefone com seu advogado. Porém
ele o usa para outro fim, isto é, fazendo uma ligação não convencional, em outras
palavras, ele usa não o discador e sim o botão de desconectar. Por meio dessa
ligação inusitada ele contata o Departamento de Psicologia da Universidade de
Chicago com o objetivo de conseguir o endereço particular do inspetor Graham.
Facilmente ele convence a recepcionista e consegue o número desejado. A
informação é repassada para Fada dos Dentes, por meio de anúncio pessoal
publicado em um jornal, que atenta contra a vida da família de Graham.
Graham, sem desconfiar de nada, segue as pistas de Lecter. Dessa forma,
ele é mostrado em uma biblioteca procurando referências dos versos citados por
Lecter. Ao final de suas pesquisas, ele chega ao Dragão Vermelho de William Blake,
121
que para o espectador não é novidade. Essa e outras descobertas vão levá-lo ao
assassino, cujo nome muda para Dragão Vermelho, conforme descrevemos no
capítulo 3.5, páginas 114-117.
3.7 O final circular de Dragão Vermelho
A sequência final do filme Dragão Vermelho sugere que Hannibal Lecter, após
ter falhado na sua tentativa de matar Will Graham, conscientiza-se de sua condição
de prisioneiro e compartilha isso com esse último por meio de uma carta. Apoiando-
se nas lembranças, utilizando o fluxo de consciência e o monólogo interior –
apresentação direta e imediata, na literatura narrativa, dos pensamentos não falados
de uma personagem, sem a intervenção do narrador – ele faz um relato comovente
de suas experiências. Seu olhar voltado para o passado cria um discurso de reflexão
sobre sua condição de prisioneiro. Sua voz ecoa na sequência final num grito de
contestação e liberdade provocando o despertar de consciência sobre si e sobre o
mundo.
O texto é lido pelo remetente e a câmera inicia sua focalização em plano
distante e ângulo plongée mostrando o corpo de Will após ter sido agredido por
Francis Dolarhyde: “Meu caro, Will:
Você já deve estar curado. Pelo menos, do lado de fora.
Espero que não esteja muito feio “.
Nesse trecho inicial, destacamos a relação das personagens com a marca na
pele. Hannibal está em sua cela e a câmera o mostra em plano distante e ângulo
plongée: “Que coleção de cicatrizes você tem. Nunca esqueça quem lhe deu as
melhores e seja grato. Nossas cicatrizes têm o poder de nos lembrar que o passado
foi real”.
Conforme a leitura vai progredindo a câmera movimenta-se para baixo e
assim modificando o ângulo de focalização para o contra-plongée.
Vivemos em uma época primitiva. Não, Will. Nem selvagens, nem sábios. O
meio termo é sua maldição.
122
Uma sociedade racional me mataria ou me utilizaria alguma forma.
Você sonha muito, Will? Penso sempre em você.
Antes que a carta seja finalizada, é essa a imagem que o espectador vê.
Ilustração 29- Hannibal Lecter no momento em que encerra a leitura de sua carta
Enquanto o espectador ouve o fechamento da carta, a câmera mostra, em
ângulo plongée distante, Will em um barco com sua família.
Seu velho amigo.
Hannibal Lecter.
Ao final da carta, Will amassa o documento e o joga ao mar. O travelling para
trás da câmera é utilizado, segundo MARTIN (2001, p. 48), para afastar a imagem
“do casal cujo drama familiar acabamos de viver e reintegra os dois protagonistas na
multidão dos espectadores de uma sala de cinema”. Entretanto, o filme não termina
aqui. Uma voz em off chama por Lecter:
Dr.Chilton: Hannibal? Alguém aqui quer te ver. Quer fazer algumas
perguntas. Disse que iria recusar. Uma jovem mulher. Diz que é do FBI.
Mas se quer saber, ela é muito bonita. Direi a ela que você disse não.
Hannibal: Qual é o nome dela?
123
Conforme explica Martin, “os primeiros planos terminais buscam manter o
espectador na plenitude do envolvimento dramático, mesmo depois de terminada a
história” (Ibid., p. 141), por isso a ilustração anterior em associação à personagem,
Dr. Chilton, remetem ao filme O Silêncio dos Inocentes, sugerindo o ciclo da vida, ou
seja, a forma circular dos episódios.
124
Capítulo 4 – As relações dialógicas em O Silêncio dos
Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho
Nos capítulos precedentes, tratamos do primeiro objetivo da nossa
dissertação, que era analisar o construto da personagem nas narrativas fílmicas O
Silêncio dos Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho. Para cumprirmos nosso
objetivo, foi necessário observar as imagens produzidas pelos movimentos da
câmera, sob a supervisão do diretor, que dão forma ao objeto estético direcionando
o olhar do espectador.
Além das imagens produzidas pela câmera, o meio cinematográfico emprega
outros recursos narrativos, tais como os diálogos, os ruídos, a música e outros
materiais escritos com o intuito de aumentar a expressividade da sequência e assim
conseguir captar a atenção e a emoção do espectador. Entretanto, não foi possível,
pelo teor de nosso trabalho, apresentarmos o detalhamento de cada um dos
elementos que fazem parte do todo da narrativa fílmica. Detivemo-nos, apenas, nos
movimentos de câmera e nas falas das personagens. Algumas vezes, porém,
fizemos menção às músicas e aos ruídos sem pretensão de analisá-los.
Além dos recursos da linguagem fílmica, notamos no decorrer da nossa
análise que os diretores trabalham com uma variedade de gêneros e estilos que se
misturam nos filmes: literários (poemas, peças líricas, etc.) extraliterários (religiosos,
jornalístico, científico, epistolar, etc.).
Essa dinâmica da intercalação de gêneros cria o plurilinguismo nos filmes. Os
gêneros que foram introduzidos nas narrativas fílmicas, geralmente, conservam a
sua forma estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística.
Dessa maneira, incorporam-se aos filmes novas linguagens que auxiliam na
estratificação da unidade linguística daqueles.
Segundo BAKHTIN, a intercalação de gêneros pode ser apenas mostrada,
isto é, sem outras intenções do autor;
na maioria das vezes, porém, eles refrangem em diferentes graus as
intenções do autor, e alguns dos seus elementos podem afastar-se, de
diferentes maneiras, da última instância semântica da obra (2010a, p. 125)
125
No nosso contexto, esses gêneros intercalados auxiliam no construto da
personagem, em outros termos, à focalização da câmera são agregados outros
recursos narrativos que ampliam a visão do espectador.
A partir dessa constatação, regressamos aos fragmentos submetidos à leitura
analítica para tratarmos do segundo objetivo de nosso texto que é refletir sobre as
relações dialógicas. Sob a perspectiva de BAKHTIN (2008, p. 47), as relações
dialógicas são fenômenos bem mais amplos do que “as réplicas do diálogo
expresso”, pois penetram toda a linguagem humana e todas as relações e
manifestações humanas, ou seja, “tudo o que tem sentido e importância”.
Em suma, as relações dialógicas são permeadas pelo funcionamento real da
linguagem e assim se materializam em discurso, ou seja, num enunciado que é
produzido por um autor, criador de dado enunciado cuja posição ele expressa. (Ibid.
2008, p. 209). Por isso, o dialogismo não deve ser confundido
com a interação face a face [...] o dialogismo é sempre entre discursos. O
interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois
discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo
se dá sempre entre discursos (FIORIN et al. 2010a, p. 166).
O discurso, que representa o ponto de vista do sujeito, resulta da organização
contextualizada dentro de determinados parâmetros sociais e históricos nos quais o
sujeito32 falante está inserido e serve de arcabouço para a recriação da realidade
propondo um universo circundante no qual se empresta ao fictício o contorno do
real, resultando na verossimilhança. Complementa MACHADO (1995, p. 142) que a
verossimilhança da personagem é a verossimilhança de seu discurso interior sobre
si mesma. Portanto, processo de autoconsciência bakhtiniano.
Reiteramos que as relações são de caráter verbal e que, para que a interação
entre os sujeitos aconteça é necessário que haja um consenso entre os indivíduos
socialmente organizados num dado momento da história no sentido de chegarem
aos valores dos signos. É por isso que “as formas do signo são condicionadas tanto
pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação
32
O sujeito se define como pessoa por “suas relações entre os sujeitos: seu caráter concreto (nome), sua
totalidade, sua responsabilidade, etc., seu caráter inesgotável, inconcluso, aberto” (Bakhtin, 2000, p. 378).
126
acontece” (BAKHTIN, 2010b, p. 45), ou seja, essa coletividade deve ser regida pelas
mesmas normas morais, jurídicas, estéticas, etc.
Portanto, a palavra deve ser pensada como signo social, que por isso
“penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de
colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas
relações de caráter político, etc.” (Ibid., p. 42). Além disso,
Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da
palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em
relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim
e os outros. Se ela se apóia em mim numa extremidade, na outra apóia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor (p. 117, grifos do autor).
Em suma, nas relações dialógicas “o herói principal é o discurso bivocal, que
surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas
condições da vida autêntica das palavras”. (Ibid., 2008, p. 211)
4.1 Hannibal Lecter – o EU e o OUTRO em O Silêncio do Inocentes
A primeira narrativa fílmica analisada foi O Silêncio dos Inocentes,
protagonizada por Clarice Starling e Hannibal Lecter. Como já foi dito, o filme possui
um processo narrativo linear, o que se comprovou pelo pouco uso da montagem
alternada. Dessa forma, conclui-se que a trama é simples, ou seja, de fácil
compreensão pelo espectador.
Nas cenas iniciais, o espectador só conhece a personagem mediante os
elementos extraverbais, ou seja, pelas imagens mostradas pela câmera as quais
trazem detalhes de sua dura rotina de treinamentos e dedicação à academia. Dessa
maneira, o que é visto deixa claro ao espectador as idéias que permeiam o ambiente
em que ela está inserida. Porém, tais elementos nada revelam sobre a personagem
“enquanto ponto de vista, enquanto concepção de mundo e de si mesma” (Idem,
2008, p. 53).
127
É importante destacar que os aspectos exteriores e sociais da personagem
não interessam de modo proeminente: o ponto principal configura-se em seus
caracteres interiores e a maneira pela qual se expressa, ou seja, o valor de tais
traços para ela mesma, para sua autoconsciência, isto é, “a última palavra da
personagem sobre si mesma e sobre seu mundo” (Ibid. 2008, p.53).
A estabilidade das primeiras imagens é quebrada quando Clarice é tirada de
seu treino para se encontrar com Crawford, seu superior. Como apontamos no item
1.1.1, página 30, ilustração 1, o plano geral distante mostra que a personagem é
minúscula quando comparada à edificação, porém ela caminha para dentro do
edifício percorrendo um longo corredor. O destaque dado pela câmera para o
elemento extraverbal, na perspectiva de BAKHTIN, sugere o diálogo da personagem
com o sistema. Nesse momento da narrativa, existe uma simbiose entre os dois que
se confirma pela forma como a personagem flui por entre os corredores e espaços
focalizados em detalhes pela câmera.
Além disso, pensamos que metaforicamente essa cena simboliza a trajetória
profissional seguida pela personagem para chegar a esse encontro, com Crawford,
que se revelará como uma oportunidade de trabalho em reconhecimento ao esforço
e desempenho acadêmico daquela.
Antes da concretização do encontro, um último obstáculo se coloca à frente
da personagem, qual seja a predominância masculina no ambiente em que ela está.
Isso é mostrado pela câmera na cena do elevador, a qual descrevemos no item
1.1.1, página 31 e ilustramos com a figura 3, na mesma página. Nesse espaço
fechado e restrito, em que Clarice é colocada frente a frente com o outro, não há
falas. A relação dialógica se estabelece pelos elementos visuais: a camisa de cor
diferente, a posição corporal de Clarice e o primeiro plano.
Por tudo isso que é mostrado pela câmera, o espectador sabe que a jovem
tem plena consciência de sua posição dentro do sistema social. Porém, ela está
eufórica demais, isto é, ansiosa para saber o que Crawford quer com ela. Em
resposta aos olhares dos outros, a jovem responde de forma não-verbal, ou seja,
mantendo-se ereta com o olhar voltado para o alto, atenta ao mostrador do elevador
que a leva até sala do diretor.
128
Após ter saído do elevador, Clarice ainda transita por estreitos corredores até
chegar a seu destino. Na sala de Crawford, descrita no item 1.1.1, página 31, a
câmera expõe a sensibilidade da jovem, ou seja, seu sofrimento em relação ao
outro. Aqui ela é mostrada em primeiro plano frontal após ter visto um quadro com
imagens de mulheres que foram assassinadas por Buffalo Bill.
O quadro mencionado está atrás da mesa de Crawford e é colocado, pelo
enquadramento da câmera, em relação dialógica com as personagens: Hannibal
Lecter, Clarice Starling e Buffalo Bill. Dessa forma, ao ser designada para entrevistar
Hannibal Lecter, preso por matar e praticar canibalismo, Clarice inicia um novo
tempo de sua vida dentro da narrativa. Nos encontros com Lecter, ela será colocada
em situações que a levarão a revelar-se.
dialogalmente, a elucidar, captar aspectos de si mesma nas consciências
alheias e construir escapatórias protelando e, com isto, expondo sua última
palavra no processo da mais tensa interação com outras consciências
(BAKHTIN, 2008, p. 61).
Uma digressão nesse momento é pertinente para acrescentarmos que além
do episódio do elevador, Clarice é colocada em outra situação similar, isto é, em
relação dialógica com um grupo de policiais. O fato acontece fora da academia em
uma casa de velório, Grieg Funeral Home33, espaço propício para reflexões, por ser
um lugar onde vida e morte se encontram. Crawford e Starling estão lá para ver uma
das vítimas de Buffalo Bill encontrada recentemente. Ao chegarem ao local, eles
entram em uma sala que está repleta de policiais locais. A câmera mostra que
Clarice chama a atenção deles, insinuando que se trata de uma reação ao fato dela
ser mulher. Isso se comprova com a maneira como a câmera focaliza a estudante:
em primeiro plano e seus olhos transmitem a sensação de desconforto que os
olhares dos outros lhe causam.
A situação fica ainda mais desconfortável para Starling quando Crawford,
adotando uma postura similar a dos colegas, sai da sala com o xerife alegando que
o assunto é delicado e não deve ser tratado em frente a uma mulher.
33
Tradução nossa: Casa Funerária rieg.
129
Nessa situação de limiar, ou seja, de crise, Clarice é obrigada a refletir sobre
sua posição nesse espaço. Com o intuito de desviar-se dos olhares, a câmera a
mostra entrando em outra sala. Nesse momento, presente e passado se misturam,
pois ela se lembra do velório de seu pai. A imagem do pai morto a leva a olhar-se
para si mesma, ou seja, conscientizar-se de que está sozinha e deve enfrentar a
situação na categoria do outro. Dessa maneira, ela pode vivenciar o próprio aspecto
físico “como valor” que a “engloba e a acaba” e assim ver-se a si mesma (BAKHTIN,
2000, p. 54). É na categoria do outro que Clarice, mais tarde, falando firme com o
grupo consegue a cooperação deles no sentido de esvaziarem a sala do corpo para
que o médico pudesse prosseguir com seu trabalho.
Pelo exposto destacamos o esforço feito por Clarice para colocar a máscara
social da agente em frente ao grupo de policiais. Em decorrência disso, na
sequência da diegese, pouco antes do início da autopsia, a câmera mostra a face de
Clarice refletida no espelho. É no reflexo que estão todas as emoções, que pela
circunstância, precisam ser ocultadas.
Após essa digressão, retornamos para o Hospital onde Clarice deve se
encontrar com Hannibal Lecter. Porém, antes de chegar a ele, Clarice conversa com
o diretor da instituição Dr. Chilton. As primeiras imagens mostradas pela câmera são
em primeiro plano, pois o diretor tenta imprimir um tom intimista e irônico ao
encontro. O ângulo plongée e contra-plongée se intercalam apenas por
circunstância, isto é, ele está sentado e ela em pé à sua frente, não há intenções
expressivas no ângulo adotado pela câmera.
Em sua fala, Dr. Chilton encarna uma voz social que se estrutura em torno de
alguns enunciados básicos que são pronunciados com um maroto sorriso nos lábios.
Ele carrega sempre consigo uma caneta. O objeto representa no decorrer da
diegese a chave para a liberdade de Hannibal Lecter:
Recebemos muitos detetives, mas não me lembro de nenhum tão atraente;
Vai passar a noite em Baltimore? Essa cidade pode ser muito divertida, se
tiver o guia certo!; Crawford é muito esperto, não é? Por utilizar você?;
Moças bonitas o estimulam. Duvido que Lecter tenha visto uma mulher em
oito anos. Você é o tipo dele (grifo nosso).
130
Ao final da fala do médico, a câmera se afasta das personagens, dessa
maneira, o plano geral sinaliza a quebra do caráter intimista que estava sendo
estabelecido pelo discurso do daquele. Clarice responde que não tem intenções em
ficar mais tempo na cidade e os dois se dirigem para a cela de Lecter.
Nessa passagem, a situação de produção do enunciado é decisiva tanto para
a produção do sentido pretendido pelo médico quanto para o sentido final construído
na interação. O tom de brincadeira, que expressa uma avaliação apreciativa da parte
do médico em relação à estudante, é suficiente para inverter os sentidos esperados
na fala de uma pessoa na posição do Dr. Chilton.
Clarice, por sua vez, se desestabiliza momentaneamente, a câmera a mostra
baixando a cabeça, procurando disfarçar seu desconforto frente àquela abordagem
sexista. A reação-resposta de Clarice acontece quando os dois chegam ao local da
cela de Lecter. Clarice deseja entrar sozinha e introduz “o enunciado alheio no
contexto” (BAKHTIN, 2000, p. 316) de seu próprio enunciado. A câmera os mostra
em primeiro plano com a intercalação do ponto de vista da personagem ou da
câmera.
Clarice: Se Lecter acha que o senhor é inimigo dele... talvez tenhamos mais
sorte se eu entrar sozinha. O que acha?
Dr. Chilton: Poderia ter dito isso na minha sala para não perdermos tempo!
Clarice: Verdade, mas não teria tido o prazer de sua companhia (grifo
nosso).
Agindo dessa maneira, a estudante posiciona-se e assim em relação dialógica
refuta o discurso do outro imbuindo-o de um tom provocante ao enunciá-lo com um
sorriso nos lábios. Com isso, ao final do diálogo, é a vez do Dr. Chilton
desconcertar-se e ficar sem resposta. Sem ter o que fazer, dirigi-se ao enfermeiro
Barney: “Quando terminar, acompanhe-a até a saída”.
Sozinha, Clarice precisa atravessar um corredor estreito para chegar ao seu
destino, ou seja, entrar em um contexto desconhecido, que se mostra diverso do
ambiente regrado e seguro que costuma freqüentar. No item 1.2.1, páginas 38-39,
descrevemos todos os recursos expressivos utilizados pelo diretor para criar a cena
da travessia do corredor.
131
O longo encontro entre as personagens, que acontece no subsolo, pode ser
dividido em três partes. A primeira, chamada por nós de fase de reconhecimento,
tem início com um cumprimento cordial, ou seja, eles seguem as normas sociais
mesmo nesse lugar inóspito.
Porém, quando Clarice exibe sua carteira de estudante, Hannibal se mostra
desapontado. Ele não esconde sua irritação ao ser notificado de que está
conversando com alguém em treinamento, em desenvolvimento. Em suma, alguém
que ainda não atingiu a maturidade.
Observamos nessa passagem que a identidade de Clarice está ligada ao
aspecto profissional e estudantil da personagem. Por isso, seu interesse em frisar
isso na sua fala: ”Estou aqui para aprender com o senhor. Talvez possa decidir se
tenho qualificação para tanto”.
Ao usar o tom “bajulador”, como é descrito por Lecter, Clarice procura
estabelecer uma relação de confiança com o outro. Ela procura tratá-lo como sujeito
e não como um objeto de estudo, que é a forma como o diretor Chilton vê o
prisioneiro. Além disso, percebemos que Lecter também se comporta, até o
momento, de maneira normal, quer dizer, sua monstruosidade não aflorou, parece
estar sendo contida por ele.
As gentilezas de ambas as partes continuam. Na interação face a face, Lecter
deixa transparecer seu sentimento de desprezo pela atitude grosseira do prisioneiro
da cela anexa a sua, descrita na página 41, por meio de suas reações físicas que
são mostradas pela câmera. Além disso, faz uso de um tom compreensivo, dessa
maneira procura convencer Clarice de que está sendo sincero. E assim ambos
continuam a observar o aspecto físico um do outro, ou seja, cada um busca um
melhor posicionamento, ”adotando esta ou aquela expressão” que lhes “parece
essencial e desejável” (BAKHTIN, 2000, p. 53).
É nesse clima em que ambos estão tateando, que Clarice tenta provocar a
palavra do outro para conseguir completar sua missão, qual seja, obter as respostas
de Lecter nos relatórios pedidos por Crawford. Para atingir seu objetivo ela tenta
dissuadir o prisioneiro fazendo referências aos objetos que estão na cela.
Nesse momento, Hannibal se mostra um pouco dialogando com o segundo
filme Hannibal ao se referir à cidade de Florença, palco de parte da narrativa fílmica
132
mencionada. Starling procura demonstrar seu interesse pelas coisas do outro e
Lecter não está vendo problemas em responder as perguntas dela. Devemos
destacar que os dois estão se tratando de maneira formal “senhor” e “agente
Starling”.
Clarice: Foi o senhor quem fez os desenhos?
Lecter: Este é o Duomo visto do Belvedere. Conhece Florença?
Clarice: Todos os detalhes só de memória?
Lecter: Memória, agente Starling é o que eu tenho em vez de uma
vista.(grifo nosso)
Clarice não responde se conhece Florença. Acreditamos que ela não tenha
essa vivência e, nesse momento, não quis revelar isso ao outro. Já Lecter, se refere
à memória no sentido de recordação, lembrança. Dessa forma, segundo BAKHTIN,
as recordações correspondem ao eu, ou seja:
a vivência reconstituída, puramente interior de minhas alegrias, de meus
sofrimentos, de meus arrependimentos, de meus desejos, de meus
arroubos que impregnam esse mundo visível dos outros, em outras
palavras, terei evocado minha ótica interna em determinadas circunstâncias
de minha vida, e não minha imagem externa (2000, p. 77, grifo nosso) .
Pela citação de BAKHTIN, deduzimos que Lecter está sozinho consigo
mesmo, uma vez que seu exterior só pode ser dado pela alteridade do outro e
dentro da prisão não há outros, ou seja, não há relações dialógicas. Dessa forma, o
vocábulo “vista” na fala de Lecter remete ao outro, em outros termos, ao lado
exterior do qual ele foi privado por ter praticado crimes contra a sociedade.
Para que Lecter saia de suas “memórias”, isto é, do eu-para-mim, é
necessário que ele seja colocado em situações de conflito, que alguém lhe provoque
a palavra, uma vez que
Não é na categoria do eu mas na categoria do outro que posso vivenciar
meu aspecto físico como valor que me engloba e me acaba, e devo
insinuar-me nessa categoria para ver a mim mesmo como elemento de um
133
mundo exterior que constitui um todo plástico-pictural (BAKHTIN, 2.000,
p.54, grifo nosso).
Veremos na seqüência da diegese como se estabelecem as relações entre o
eu e o outro. Destacamos que a imagem do cárcere como privação da visão da
personagem é bastante significativa, pois ele a retoma mais à frente e o tom utilizado
em sua fala soa como um diálogo interior, a palavra que se dirige a si mesmo. A
imagem do externo enfatiza a vontade que Lecter tem de sair dali. Veremos que
esse desejo é compartilhado com Starling.
Clarice não desiste de sua tarefa, ou seja, sair dali com seu questionário
preenchido por Lecter e, então, usa a palavra “vista” em um trocadilho pedindo ao
outro que “Mostre seu ponto de vista no questionário” que ela portava. Lecter não
reage bem, acreditamos que ele tenha se sentido reificado, quer dizer, ela está ali
somente para cumprir as ordens de Crawford.
O rosto de Hannibal está em primeiro plano, ele inicia sua fala com um tom
irônico, com um leve sorriso nos lábios: “Não, não, não! Você estava indo bem. Foi
educada, gentil. Estabeleceu confiança com a constrangedora verdade sobre
Miggs”. Depois, percebemos uma alteração para um tom rude que soa como uma
advertência: “E agora essa canastrice de tentar passar seu questionário, não foi
boa!”.
Sentindo-se descoberta Starling tenta simplificar: “Só estou pedindo que olhe.
É simples: sim ou não”. Lecter deixa claro que não quer falar sobre si, ou seja, não
deseja olhar-se no espelho, por isso evita os questionamentos do outro. Enquanto, o
diálogo seguia de maneira despretensiosa ele aceitou. Entretanto, Clarice não quer
apenas conversar, ela quer completar sua missão. Isso parece provocar a revolta de
Lecter, que muda de assunto.
A câmera insiste nas tomadas em primeiríssimo plano, por isso pode-se
perceber bem a fisionomia de Lecter quando critica o sistema que lhe envia uma
estudante. Por outro lado, a câmera acompanha em plano mais aberto e ângulo
contra-plongée Clarice afundando-se cada vez mais na cadeia, mostrando-se
surpresa com o comportamento grosseiro do prisioneiro.
134
Além de criticar o sistema, Lecter traz para o diálogo um novo tema. Ele quer
saber sobre o apelido do assassino Buffalo Bill. Nesse excerto, a câmera retoma
para o plano normal.
Clarice: Começou com uma brincadeira na D.P. de Homicídios em Kansas
City. Diziam: “Esse aí gosta de esfolar as reses.”
Hannibal: Por que você acha que ele remove as peles, agente Starling?
Choque-me com sua perspicácia.
Clarice: Isso o excita. A maioria dos assassinos seriais guarda troféus das
vítimas.
A câmera muda o plano e o rosto de Hannibal é focalizado novamente em
primeiro plano: “Eu não.”. Olhando fixamente para o outro, Starling conclui: “Não.
Não, o senhor comia os seus.” (grifo nosso). Com suas palavras, em relação
dialógica, a estudante coloca seu campo de visão, ao lado do campo de visão do
outro; sua concepção de mundo, ao lado da concepção de mundo do outro
(BAKHTIN, 2008, p. 55, 56) e provoca a palavra do outro.
A resposta de Lecter não é verbalizada. A câmera o mostra em primeiro
plano, dessa maneira podemos ver seu olhar desviar-se de seu interlocutor e
focalizar o chão. Nesse momento, a câmera registra a tomada de consciência de
Hannibal, após ter sido colocado em frente ao espelho por Starling. Entretanto, ele
reage prontamente e pede a Clarice que lhe passe os documentos para que ele
possa vê-los.
Ilustração 30 - Reação visual de Lecter às palavras de Clarice.
A rápida recomposição de Lecter é sugerida pelo afastamento da câmera. Na
sequência, Clarice parece estar acreditando no seu sucesso, pois enquanto ele
135
deposita os documentos na caixa, a câmera a mostra com um discreto sorriso nos
lábios. O prisioneiro olha fixamente para sua interlocutora e se rebela, porque
[...] procura a qualquer custo manter para si essa última palavra, sobre si
mesmo, essa palavra da sua autoconsciência, para nela não ser mais aquilo
do que ele é. A sua autoconsciência vive de sua inconclusibilidade, de seu
caráter não-fechado e de sua insolubilidade (BAKHTIN, 2008, p. 59-60).
O momento descrito anteriormente encerra a primeira parte do encontro. Ao
final dele, percebe-se que as duas personagens assumem cada um seu ponto de
vista, ou seja, Clarice é policial e Hannibal, um marginal. Tudo leva a crer que os
dois devem caminhar em direções opostas.
No capítulo 1.2.1, páginas 43-46, fizemos a análise dos movimentos de
câmera que compõem a segunda parte do encontro, que chamamos de a
descoberta. O nome está relacionado com o que a câmera nos revela sobre a
personagem Hannibal Lecter. Como dissemos anteriormente, o prisioneiro parece
estar contendo seu lado mal, reluta em ser este ou aquele. Porém, nessa parte da
história ele se despe de sua máscara social, isto é, de bonzinho e colado ao vidro
começa a provocar verbalmente Clarice.
Em relação dialógica com Clarice, Hannibal se coloca como outro e assim,
por meio de seu discurso procura revelar o interior de Clarice, ou seja, levá-la à
autoconsciência.
Hannibal: Ah! Agente Starling, você acha que pode me dissecar com este
instrumento pobre?
Clarice: Não. Eu achei que, com o seu conhecimento...
Hannibal: Você é muito ambiciosa, não é? Sabe o que você parece com
essa bolsa cara e esses sapatos34
baratos. Parece uma jeca [...].
Ter se alimentado bem lhe deu ossos fortes, mas [...] Com esse sotaque
que tenta desesperadamente esconde do oeste da Virgínia. O que é que
seu pai faz? Ele é mineiro de carvão? Faz sermões demorados? Eu sei que
34
Em Hannibal, Clarice recebe de presente, de Lecter, um par de sapatos da grife Gucci.
136
os rapazes descobriram você bem cedo, nos tediosos e desastrados
agarramentos nos bancos dos carros. Enquanto você só pensava em cair
fora e ir para algum lugar, para o FBI. (grifo nosso)
Percebemos que Hannibal ataca os valores pessoais de Clarice: seu trabalho,
seu passado e sua família. Ela, por sua vez, ouve calada a todos os xingamentos e
insinuações do outro. Nesse momento, a câmera a mostra em um ângulo contra-
plongée demonstrando seu recolhimento frente ao outro. E assim ela permanece até
o final da fala de Lecter35.
Ilustração 31 - Clarice ao final da fala de Lecter
Quando Lecter silencia, abre uma brecha para que a jovem responda. Para
que isso seja possível, ela precisa levantar a cabeça. O movimento que é mostrado
pela câmera possui um caráter ambíguo, ou seja, de recuperação e de refração.
Clarice assume o seu eu e diz:
O senhor vê muito doutor! Mas é forte o bastante para apontar esta alta
percepção pro senhor mesmo? O que me diz do senhor? Por que não olha
o senhor mesmo e escreve o que vê? Talvez esteja com medo?
O desafio de Clarice não provoca o outro o suficiente. Hannibal não parece
disposto a revelar-se mais, por isso devolve os documentos na caixa. Ele imprime
35
Sobre essa atuação de Jodie Foster ver comentários do ator Anthony Hopkins disponível na Edição Especial
do DVD.
137
muita força para fechá-la e isso provoca um som agudo. A câmera mostra a reação
de Clarice ao barulho. Ela dá um pulo na cadeira, sua reação é perfeitamente
condizente com o ataque que acaba de sofrer. Hannibal mostrou-se uma pessoa
cruel e conseguiu com seu discurso desnudá-la.
O foco da câmera volta-se novamente para Hannibal, ele não parece
satisfeito com o efeito provocado por suas palavras em tom ameaçador: “Um
recenseador uma vez tentou me testar. Eu comi o fígado dele com um prato de feijão
e um belo vinho.”. Ainda colado no vidro e olhando fixamente para sua interlocutora,
ele encerra sua fala com a emissão de horríveis ruídos. Momentaneamente a
câmera mostra Clarice, porém Hannibal encerra a conversa e a manda embora,
virando-se de costas e dirigindo-se para o fundo da cela.
Clarice estava saindo da cela, totalmente derrotada, porém algo inusitado,
trecho analisado na página 46, acontece e isso a obriga a voltar para junto de
Lecter. O retorno, que marca a terceira parte do encontro, aproxima a policial e o
marginal. A partir daqui as duas concepções de mundo vão permanecer um no
campo de visão do outro, levando-os a autoconsciência.
A câmera mostra que a distância entre os dois diminuiu, ou seja, não existe
mais medo. Ambos concordam em aproximar os dois mundos, isto é, o mundo
marginal e o mundo policial, dessa maneira quebram as barreiras sociais. Para
Clarice isso significa aceitar as regras impostas por Lecter, ou seja, fazer o que ele
lhe “pedir’’. Em suma:
Além da realidade da própria personagem, o mundo exterior que a rodeia e
os costumes se inserem no processo de autoconsciência, transferem-se do
campo de visão do autor para o campo de visão da personagem (BAKHTIN,
2008, p. 55).
É por esse motivo que as personagens não podem ser concluídas e fechadas.
Já não podemos afirmar quem são elas e para onde elas vão. “Nós não vemos quem
a personagem é, mas de que modo ela toma consciência de si mesma.” (BAKHTIN,
2008, p. 54).
138
Por fim, concluímos que as relações de Clarice e Hannibal se sustentam na
dualidade das identidades. Hannibal Lecter transita entre o mundo marginal e o
mundo social; Clarice, por vezes, se mostra a curiosa e empenhada estudante e em
outras ocasiões, a garota problemática com muitos assuntos pendentes.
Vários são os momentos que permitem que se chegue a essa conclusão de
que as identidades são ambivalentes. Em primeiro lugar, destaca-se a preocupação
de Lecter por mostra-se disposto a ajudá-la. Nesse sentido, ele faz com que ela
chegue a autoconsciência e ajudá-a a desenvolver-se profissionalmente. Por outro
lado, o presente que ele dá a ela, a morte de Miggs, é proveniente do lado negro
daquele.
Quanto a Clarice, a câmera a mostra em momentos de busca pelo
aprimoramento, ou seja, é desejo dela se desenvolver profissionalmente. Porém, em
sua relação com Lecter, ela se deixa provocar pelo outro, em outros termos, a
agente aceita as regras do jogo que são impostas pelo prisioneiro. Também é
preocupação dela a busca pelo seu eu interior, o qual se mostra repleto de assuntos
pendentes.
Lecter, nesse episódio, é mostrado pela câmera predominantemente em
primeiro e primeiríssimo plano. Segundo MARTIN (2003, p. 40), as tomadas
correspondem em primeiro lugar “a uma invasão do campo da consciência”. Essa
primeira característica da imagem na diegese permitiu que Lecter “enxergasse” o
interior de seus interlocutores.
Em segundo lugar, as tomadas mencionadas correspondem “a uma tensão
mental considerável” e isso é facilmente observado nos momentos em que Lecter
interroga seus interlocutores e procura levá-los a autoconsciência.
Em terceiro e último lugar, MARTIN se refere ao “modo de pensamento
obsessivo” que se mostrou a principal fonte de conflito entre o marginal e o
gentleman.
139
4.2 Hannibal Lecter – o EU e o OUTRO em Hannibal
A segunda narrativa fílmica analisada foi Hannibal, protagonizada por
Hannibal Lecter, Clarice Starling e Mason Verger. Como já destacamos, a película
exige a atenção do espectador, pois a câmera transita entre a cidade de Florença e
os Estados Unidos. Dessa maneira, para que não haja interrupção da diegese,
observamos o uso freqüente da montagem alternada, ou seja, a narração de duas
ações que acontecem ao mesmo tempo, e das tomadas panorâmicas que auxiliam
na apresentação dos espaços da trama para o espectador.
Nas cenas iniciais, o diálogo apresentado pela câmera acontece em um local
refinado. Porém, as personagens que conversam pertences a círculos sociais
diversos. Com o desenrolar da diegese, a câmera mostra que o que está
acontecendo na realidade é uma transação comercial. É por isso que um deles é
advertido ao emitir seu ponto de vista.
O tom estabelecido na primeira sequência se estende por toda a narrativa
fílmica, ou seja, Hannibal é uma história circundada pela ideologia do poder
financeiro. Portanto, supõe-se que com a entrada do interesse monetário, as
relações sociais vão ficar mais objetificadas e podem se tornar mais conflituosas.
Começando por Mason Verger sua visão de mundo se relaciona com sua
grande fortuna, pois nada mais é mostrado dele. A câmera destaca por várias vezes
a forma como manipula tudo: a um toque de dedo. O valor que ele atribui à máscara
de Hannibal mostra sua apreciação em relação ao objeto e por extensão, ao canibal.
Por esse motivo, veremos que seu objetivo dentro da diegese é vingar-se de
Hannibal, o causador da mutilação daquele. Vejamos no diálogo abaixo como a
personagem se comporta em uma relação face a face:
Verger: Quando você trabalhava no hospital observava Clarice Starling e
Hannibal Lecter interagindo?
Barney: Interagindo?
Verger: Conversando um com o outro?
Barney: Sim. Parecia-me que eles..., porém...
Barney: Na maioria das vezes, o Dr. Lecter não respondia aos visitantes.
Abria os olhos o tempo suficiente para insultar algum aluno que ia vê-lo. Ele
140
respondia às perguntas de Starling. Ela o interessava. Ela o intrigava. Ele a
achava encantadora e divertida. (grifo nosso)
Verger: Então Clarice Starling e Hannibal Lecter tornaram-se amigos?
Barney: Dentro de uma certa estrutura formal ... sim”.
Verger: E ele gostava dela?
Barney: Sim.
Percebe-se que Verger procura direcionar a fala do outro, isto é, ele quer que
Barney diga o que ele precisa: Clarice e Lecter gostavam um do outro. Essa idéia da
relação entre os dois no contexto anterior do outro filme ficou suspensa, ou melhor,
sem resposta. Aqui ela é retomada pela palavra refratada de Barney e Verger lhe
atribui um novo significado. Para ele, o suposto relacionamento representa uma
saída para sua tão desejada vingança.
O protagonista se mostra um sujeito acabado, encerrado na máscara que
recebeu de Hannibal. No campo das relações, a diegese não coloca a personagem
em conflito, em virtude do mesmo se considerar acima de todos. Conforme já
destacamos no capítulo 2.5, páginas 76-81. Sobre as relações sociais dessa
personagem, percebemos que elas se pautam no poder de barganha. Pela palavra
do outro, Verger é “rico”, que possui “amigos influentes”. E ainda que “não pode
comprar um senador, mas pode alugá-lo”.
Nesse mundo da barganha que se estabelece ao redor de Mason, Clarice é a
voz de contraponto, ou seja, ela se rebela desde o início contra essa coisificação.
Sua atitude comprova que ela não se curva frente ao capital ou a corrupção.
Destacamos, que a câmera desde o início do filme a mostra dessa maneira,
ou seja, como oposição à voz do capital. Por isso, retomamos o excerto analisado no
capítulo 2.2, páginas 66-68, com o intuito de demonstrarmos que a personagem
vale pelo seu discurso, ou seja, ela é diferente em virtude das suas atitudes e não
por ser mulher.
No trecho citado, a câmera destaca a agente. Starling entre muitos outros
policiais. Ela é a autoridade máxima ali naquele momento, porém, o Policial Bolton
tenta derrubá-la, conforme fragmento abaixo:
141
Starling: Muito bem, pessoal. O plano é esse.
Bolton: Desculpe. Sou o Policial Bolton, Washington, D.C.
Starling: É o que diz o seu distintivo.
Bolton: Sou o responsável aqui.
Starling: Policial Bolton, sou a Agente Especial Starling. Antes de
começarmos, deixe-me explicar porque estamos aqui. Estou aqui porque
conheço Evelda Drumgo. Prendi-a duas vezes. O DEA e o ATF estão me
dando apoio. Vieram pelas drogas e pela armas. (grifo nosso)
O discurso de Clarice é fortemente marcado pelo uso da primeira pessoa,
dessa forma fica evidenciado que ela trabalha sozinha. E assim pela permanece o
tempo todo da diegese. Porém, isso não diminui sua capacidade profissional que se
pauta no aprimoramento constante de suas qualidades e no desenvolvimento de
suas habilidades.
Em destaque, ao fazer uso da palavra autoritária baseia-se em argumentos
concretos, sua experiência e conhecimento, e não políticos, conforme sugere sua
fala dirigida ao Policial Bolton: “Você está aqui, porque o prefeito é rígido com as
drogas, depois de ter sido pego com cocaína”.
Sobre a palavra autoritária, BAKHTIN (2010a, p. 143-144) escreve que esse
tipo de palavra “exige de nós o reconhecimento e a assimilação”, ela se impõe a nós,
pois “nós já a encontramos unida à autoridade”. Além disso, é muito mais difícil de
ser utilizada em caráter ambíguo “seu sentido se refere ao pé da letra, se torna
rígido”. Por fim, Bakhtin complementa que “ela procura definir as próprias bases de
nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento”.
Clarice, como personagem dialógica, procura se posicionar diante da
realidade, buscando o significado do mundo para si. É subversiva e transgressora,
porque traz à tona o que se procura esconder e é dominado ideologicamente. O
mundo apreendido passa a ser conhecido pelas impressões e sentimentos dessa
personagem, que se manifesta em forma de voz e expressa o inconsciente coletivo
que vêm à tona, num coro polifônico, portador da crítica social.
Entre Clarice e Verger, encontramos Hannibal Lecter. No filme, a personagem
surge na história na sequência onze, sua voz é utilizada para fazer a transição entre
sequências. Além disso, ela estabelece uma relação de sentido com a película
142
anterior O Silêncio dos Inocentes, pois retoma assuntos que ficaram pendentes e
agora se aproximam de seu desfecho. Dr. Lecter é apresentado com uma nova
identidade. Suas características são, no entanto, similares a ele mesmo, Lecter, no
início do filme Dragão Vermelho, antes de ser reconhecido como o canibal.
No trecho que destacamos, a personagem elabora um discurso dentro do
discurso, ou seja, por trás da fala enobrecida da personagem Dr. Fell esconde-se o
discurso vulgar da personagem Hannibal Lecter. A cena mostra o momento em que
o candidato ao cargo de curador da Biblioteca Capponi pronuncia um discurso numa
cerimônia formal para um público seleto. A linguagem ajuda a recuperar alguns
valores como o espírito de nacionalidade, de identidade, de moralidade e de língua
que a sociedade italiana procura preservar e divulgar.
As tomadas iniciais da câmera mostram a cidade de Florença em vista
noturna, as imagens externas mostram que Hannibal está sendo vigiado pelo
inspetor Pazzi e pelos primos italianos de Verger. Eles o aguardam no lado externo
do prédio da Biblioteca Capponi.
Do lado interno do prédio, a câmera mostra em primeiro plano as rodas de um
carrinho. Um travelling para trás possibilita ao espectador ver outras partes do
objeto. Assim como, parte da pessoa que o manuseia: é um homem de papel
insignificante na diegese.
Há um corte e vemos em ângulo subjetivo um circuito de TV. Por ele, vemos
que o carrinho continua a ser transportado lentamente para cima. Outro corte da
cena e novamente a câmera em ângulo contra-plongée enquadra o teto de uma
sala: há a projeção de uma sombra. A princípio, ela tem grandes proporções; depois,
vai diminuindo. Então, um travelling para baixo e vemos em ângulo subjetivo que o
dono da sombra é o Dr. Fell. Ele cumprimenta um guarda e entra em uma sala.
A palestra do Dr. Fell já começou. Entretanto, para o espectador é mostrado o
que aconteceu antes dos convidados chegarem. Ou seja, a preparação do evento. O
carrinho é entregue para ele, o telão é baixado; as cadeiras estão posicionadas.
Tudo está pronto para que aconteça a consolidação do Dr. Fell como novo curador
da Biblioteca Capponi.
A câmera focaliza o auditório em que está acontecendo a apresentação de
Lecter – o enquadramento é a meia distância frontal. Enquanto isso, o inspetor Pazzi
143
é visto no mesmo lugar em que há pouco estava Lecter - a câmera o focaliza a meia
distância. O espectador continua ouvindo a palestra de Lecter.
Um travelling lateral da câmera mostra a reação dos presentes, os estudiosos
que estão lá para avaliar o desempenho do Dr. Fell. O inspetor entra no salão, e
chama a atenção para si, quando seu celular toca: é a Agente Starling.
Pazzi, no entanto, está alienado, precisa do dinheiro da recompensa e não
ouve Clarice, pois prontamente desliga o celular. O travelling lateral rápido desvia a
atenção de Lecter para aquele, que se desculpa. O palestrante convida o inspetor a
juntar-se ao grupo.
A melodia que acompanha a palestra imprime um tom lírico para a sequência.
Esta apresentação foi combinada no começo do filme na sequência onze. Na
ocasião Lecter já tinha provocado o inspetor, pois o último estava cuidando de uma
caso de pouca importância: o desaparecimento do curador anterior da biblioteca. Dr.
Fell escolhe falar sobre a personagem da Divina Comédia - Pier della Vigna. Ele é o
protagonista do 13th Canto do Inferno, onde Dante descreve os círculos em que são
punidos aqueles que cometeram suicídio ou que usufruiram de todo seu dinheiro.
Dr. Fell: O peregrino de Dante encontra Pier della Vigna no 7º nível do
Inferno e como Judas Escariotes, morreu enforcado. Judas e Della Vigna
estão ligados pela avareza que Dante via neles. A avareza e o
enforcamento estão ligados no pensamento medieval.
O palestrante projeta no telão imagens onde há detalhes do enforcamento de
Judas. Em um deles, Judas é representado com as entranhas para fora. Ao final de
sua apresentação, se vira e a câmera o mostra caminhando em sua direção:
“Avareza, Enforcamento, Autodestruição. Faço da minha própria casa a minha
forca.”
Um rápido travelling para frente coloca os versos em relação dialógica com a
imagem do inspetor Pazzi que a câmera traz para o primeiro plano. Esse momento,
o inspetor toma consciência de que está sendo julgado e sentenciado por Lecter.
144
Ao final da apresentação, a câmera mostra que Dr. Fell é aplaudido de pé, o
que representa sua aceitação. Por último é cumprimentado pelo inspetor, que lhe
convida para sair.
A câmera mostra que a distância entre o mundo catedrático e o mundo do
marginal diminuiu, ou seja, ambos compartilham a mesma visão de mundo: baseada
no discurso tradicional. Para Hannibal isso significa aceitar as regras impostas pelo
grupo social em que está inserido, ou seja, repetir o discurso tradicional sem
refração. Pelo exposto, é como se a personagem retornasse para o status quo que
tinha antes de ter sido descoberto por Will Graham.
4.3 Hannibal Lecter – o EU e O Outro em Dragão Vermelho
O terceiro filme analisado foi Dragão Vermelho, protagonizado por Hannibal
Lecter e Will Graham. Relembramos que cronologicamente, esta película antecede
O Silêncio dos Inocentes e Hannibal, por isso observamos um processo de retomada
do passado, ou seja, de fatos já narrados anteriormente. Essa forma de narrar
contribui para o aumento do suspense, uma vez que o espectador pode antecipar-se
a diegese e assim viver as emoções em dobro, quer dizer, antes da personagem por
antecipação e junto com ela, quando da concretização dos fatos.
Nas seqüências iniciais, a câmera mostra Hannibal Lecter enquanto ouvinte
de um concerto musical. Isso não causa estranhamento, pois esse gosto da
personagem pelas artes já foi destacado em Hannibal. Porém, a câmera chama a
atenção do espectador ao colocar a imagem da personagem em oposição à imagem
de um dos músicos. As expressões faciais de Hannibal sugerem seu
descontentamento em relação ao desempenho daquele, porém esse tipo de reação
é aceitável considerando o gosto refinado da personagem.
Nesse excerto, observamos uma aparente normalidade de Lecter, quer dizer,
ele convive com os outros socialmente como ele mesmo, parece não haver conflito
entre a máscara social e a máscara interior. Porém, essa condição da personagem
sofre uma alteração a partir de sua relação com Will Graham. Conforme nossa
145
análise, no capítulo 3.2, páginas 95-104, a diegese mostra que a relação que havia
entre os dois se baseava na confiança e no respeito. Porém, Will descobre que
Hannibal não é quem diz ser, ou seja, ele tem uma personalidade dupla.
Ao final da sequência que narra o episódio acima, a câmera mostra que os
dois se separaram: Lecter foi preso e Will mudou de cidade e de emprego.
Entretanto, novos acontecimentos vão exigir que as duas personagens se enfrentem
novamente, porém em lados opostos: Hannibal é um marginal e Will é um policial.
O excerto do reencontro é o que nos interessa retomar no momento, pois é
onde observamos as personagens em momento de crise. Da análise da construção
da personagem, capítulo 3.4, páginas 107-114, depreendemos que as personagens
se depararem com o seu duplo, ou seja, elas se percebem cindidas. Para esse
pensador, o indivíduo
na frente de um espelho, quase sempre posamos, adotando está ou aquela
expressão que nos parece essencial e desejável. Tais são as diversas
expressões que, no nosso rosto refletido no espelho, entram em luta e em
simbiose fortuita. Nunca é nossa alma, singular e única, que se encontra
expressa no acontecimento-contemplação: sempre se introduz um segundo
participante – o outro fictício, o autor não fundamentado e não autorizado;
não estou sozinho quando me olho no espelho, estou sob o domínio de
outra alma (2000, p. 53, grifo nosso).
Nessa analogia entre o sujeito diante do espelho e o sujeito diante do outro,
Bakhtin expressa que o indivíduo, face ao outro, assume a “máscara” das
convenções, ou seja, ele passa a agir, a falar conforme o outro. Em outros termos: o
indivíduo deixa de ser ele mesmo para ser o reflexo do outro, para assumir o
discurso do outro. Hannibal Lecter diante de seu outro, Will Graham também diante
de seu outro, ambos aguardam por descobrir as pistas da “máscara” que cada um
usará nessa interação.
O silêncio das duas personagens, manifesto no início e no final do excerto,
denuncia a incapacidade daqueles dois homens de resolverem a equação que se
constrói diante deles, pois falta-lhes a incógnita necessária para a solução. Talvez
essa incógnita seja o grande problema do espelhamento: não se sabe ali quem é o
original e quem é a cópia.
146
Capítulo 5 A Carnavalização em O Silêncio dos Inocentes,
Hannibal e Dragão Vermelho
Neste capítulo, faremos a leitura dos filmes sob a perspectiva bakhtiniana da
carnavalização na literatura. A teoria da literatura construída por Bakhtin, a partir de
suas reflexões sobre as festas medievais, pode ser utilizada como uma ferramenta
capaz de explicar muitos aspectos dos filmes O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e
Dragão Vermelho enquanto narrativas fílmicas que se pautam na ambivalência do
sujeito, na transitoriedade de pólos, nos gestos exacerbados e nas vozes das
personagens36, as quais são mostradas em seus momentos de crise.
Em adição a isso, devemos considerar “o principal palco das ações
carnavalescas”, ou seja, “a praça pública e as ruas contíguas” (BAKHTIN, 2008, 146-
147), que é o lugar onde as personagens atuam por isso ela também se torna
“biplanar e ambivalente”. No nosso corpus, a prisão, o teatro, a sala de estar ou
“outros lugares de ação motivados em termos de enredo e realidade” transformam-
se, por analogia, na praça pública. Os encontros e o contato de pessoas de
diferentes esferas sociais acontecem nesses espaços citados anteriormente.
Segundo BAKHTIN (Ibid.), o carnaval não deve ser visto como algo simples,
ou seja, um espetáculo vazio. O teórico considera que o carnaval é muito mais do
que uma banal festa de mascarados, quer dizer, ela:
é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios
passados. Essa cosmovisão, que liberta o medo, aproxima o máximo o
mundo do homem e o homem do homem (tudo é trazido para a zona do
contato familiar livre), com o seu contentamento com as mudanças e sua
alegre relatividade, opõe-se [...] à seriedade oficial unilateral e sombria,
gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à
mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do
sistema social p.184, grifo nosso).
36
Segundo Bakhtin, a polifonia de uma obra diz respeito à multiplicidade de vozes que, orientada para fins
diversos, se apresentam libertas do centro único incorporado pela intencionalidade ao autor. A importância do
conceito se relaciona com o fato da polifonia realizar-se “entre diferentes consciências, ou seja, de ser interação e
a interdependência entre estas” (Ibid. p.. 41).
147
Consideramos o medo, ou melhor, a libertação do medo, o principal elemento
da carnavalização, pois o sentimento se manifesta em todas as esferas sociais.
Pode mostrar-se nas formas religiosas, sociais, estatais e ideológicas. Ao libertar-se
do medo, o homem sente-se livre para procurar novas formas de exprimir seus
sentimentos, de relacionar-se com o outro, ou seja, a liberdade possibilita um maior
contato familiar entre os homens.
Além disso, com a libertação do medo, o homem sente-se apto a opor-se à
seriedade oficial. Dessa maneira, passa a viver a sua própria verdade e sente-se
livre para mudanças. A partir dessas observações, podemos dar início às nossas
reflexões sobre a cosmovisão carnavalesca no nosso corpus.
A cosmovisão carnavalesca aplicada à literatura faz surgir a carnavalização
da literatura. Em conseqüência dessa transposição de uma linguagem para a outra,
BAKHTIN (2008, p. 140-141) observa o surgimento de quatro categorias
carnavalescas. Essas categorias não são apenas
ideias abstratas acerca da igualdade e da liberdade, da inter-relação de
todas as coisas ou da unidade das contradições, etc.. São, isto sim, idéias
concreto-sensoriais, espetacular-rituais vivenciáveis e representáveis na
forma da própria vida [...]
A primeira categoria carnavalesca é “o livre contato familiar entre os homens”,
que proporciona a eliminação de toda e qualquer distância entre os homens. Através
dessa categoria todas as barreiras hierárquicas são destronadas, ou seja, “os
homens, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em
livre contato familiar na praça pública carnavalesca.” (Ibid., 2008, p. 140).
A outra categoria da cosmovisão carnavalesca: as mésalliances
carnavalescas são derivadas da primeira. Nessa categoria, “a livre relação familiar
estende-se a tudo: a todos os valores, idéias, fenômenos e coisas.” (p. 141). Em
decorrência da aproximação dos elementos distintos, o sagrado com o profano, o
elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc.
Dessa ideia da mistura de tudo; de que tudo é nivelado por baixo relaciona-se
outra categoria carnavalesca: a profanação. Esta é formada pelos sacrilégios
carnavalescos, por todo um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas,
148
pelas indecências carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do
corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas,
etc..
BAKHTIN (2008, p. 140) aponta, ainda, para a excentricidade, que
organicamente relaciona-se com a categoria do contato familiar. O comportamento,
o gesto e a palavra do homem libertam-se do poder de qualquer posição hierárquica
(de classe, título, idade, fortuna) que os determinava totalmente na vida
extracarnavalesca, razão pela qual se tornam excêntricos e inoportunos do ponto de
vista da lógica do cotidiano não-carnavalesco.
A seguir nos propomos a tarefa de demonstrar a presença da carnavalização
nos filmes que fazem parte do nosso corpus e revelar as suas funções básicas nas
obras.
5.1 As categorias carnavalescas inseridas nas narrativas fílmicas
A primeira obra que analisamos sob a perspectiva da câmera e do dialogismo
foi O Silêncio dos Inocentes. Por meio da análise da construção da personagem e
das relações entre o eu e o outro, observamos a presença de algumas categorias
carnavalescas. Portanto, retomamos o trecho analisado no capítulo 1.4, página 51-
54 para tratarmos do seu aspecto relacionado com a carnavalização.
Como já dissemos, o carnaval liberta o homem do medo e o aproxima do
mundo e dos outros homens. É esse movimento de libertação que possibilita o livre
contato entre os homens, em que acontece a participação ativa de todos; a vida é
desviada do cotidiano, não havendo divisão entre atores e espectadores. Nesse
mundo “às avessas”, os policiais e bandidos, personagens dos filmes em questão,
conversam abertamente sobre o seu dia a dia.
No episódio citado acima, observamos em primeiro lugar que o espaço em
que se encontra Lecter, ou seja, a prisão não recebe mais tanta atenção da câmera.
Clarice chega até a cela de Hannibal rapidamente, em outros termos, a distância
entre os dois encurtou. Isso já sugere uma aproximação entre eles. Em segundo
149
lugar, destacamos que a visita está sendo feita durante a noite, está chovendo e não
há fatos relevantes que precisem ser resolvidos nesse momento.
Pela observação desses dois elementos, deduzimos que Clarice está na
prisão para conversar, para compartilhar suas hipóteses com o outro. Talvez queira
se mostrar inteligente. Isso se confirma, pois a câmera mostra que a jovem está
sentada no chão, próxima ao vidro. Devemos relembrar que pelas normas do diretor
Chilton, ela não deve se aproximar do vidro e nem aceitar nada dele. No entanto,
aceita a toalha que Lecter lhe oferece para que possa se secar. A fala dela está
rápida e agitada, ela precisa muito das respostas às suas perguntas.
O prisioneiro está oculto pela escuridão do lugar, porém se dispõe a
conversar com ela. A pouca luminosidade do local contribui para a criação de um
espaço mais afetivo e acolhedor, por isso passa a ser a praça pública, lugar do livre
contato familiar. Ele direciona a conversa para um campo um pouco mais íntimo e
Clarice não se opõe. Vejamos no plano do discurso como essa aproximação
acontece.
As falas iniciais tratam das investigações feitas por Clarice a partir das pistas
que ela recebeu de Hannibal. Eles discutem sobre o corpo que Clarice encontrou em
um depósito. Durante o diálogo, a câmera está posiciona acima deles, por isso as
personagens são mostradas de cima para o espectador. Considerando o ponto de
vista das personagens, a câmera oculta o prisioneiro no escuro, por isso Clarice não
pode vê-lo. Quanto a Lecter, sob o ponto de vista dele Clarice está posiciona sob
um feixe de luz.
Hannibal: O que sentiu ao vê-lo, Clarice?
Clarice: Assustada, a princípio. Depois, entusiasmada.
Hannibal: Jack Crawford está ajudando na sua carreira, não está? Parece
que ele gosta de você e você também gosta dele.
Clarice: Nunca pensei nisso.
Hannibal: Acha que Jack Crawford a deseja sexualmente? É muito mais
velho, mas acha que ele fantasia situações de troca? Comer você?
Clarice: Isso não me interessa. É bem coisa que Miggs diria.
Hannibal: Não mais.
150
No fragmento acima, percebe-se que Lecter faz uso da linguagem popular da
praça pública. Segundo BAKHTIN
A ausência de palavras e expressões neutras caracteriza essa linguagem.
Como linguagem falada, esta dirige-se sempre a alguém mostra, orienta-se
para um interlocutor, fala-lhe, fala por ele ou acerca dele (2010, p. 368, grifo
nosso).
Esse tipo de linguagem se diferencia daquela que é oficial, pois esta última
reflete essa concepção de mundo, ou seja, a “hierarquia social instaurada, a
hierarquia oficial das apreciações (em relação às coisas e noções) e as fronteiras
estáticas entre as coisas e os fenômenos”. Portanto, no discurso de Lecter não há
palavras neutras, tudo que ele diz revela-se ambivalente. O termo injurioso que ele
usa “comer você” possui dupla face, pois devemos considera que ele próprio
costuma consumir partes de suas vítimas. No entanto, sua interlocutora o interpreta
no sentido figurado, isto é, como sinônimo de relação sexual. Ela faz inclusive uma
referência ao outro prisioneiro que anteriormente se manifestara usando a
linguagem da praça pública.
Ao final do diálogo, notamos que as duas últimas falas provocam o riso dos
dois. Porém, a manifestação é breve e em seu lugar vemos o rosto contraído e
preocupado de Clarice. Ao pronunciar o nome de Miggs, prisioneiro cuja morte foi
provocada por Lecter, a estudante toma consciência de que está na prisão falando
com Hannibal Lecter, o canibal. Além da expressão corporal e facial da personagem,
Barney acende as luzes e isso provoca um forte estampido. Todos esse elementos
contribuem para dar mais expressividade ao momento em que Starling desperta de
sua hipnose temporária.
A claridade quebra o clima de intimidade e os dois voltam a tratar-se como
visões de mundos diferentes, ou seja, eles retomam o discurso oficial. É Lecter que
a câmera mostra em plano geral distante, quando ele se levanta e caminha em
direção a Clarice. Nesse momento ele se revela, seu rosto está em primeiro plano,
porém ele está olhando para o teto e não para a câmera.
151
Já estou nesse quarto há oito anos, Clarice. Sei que nunca me libertarão
enquanto eu viver. O que quero é uma vista. Quero uma janela onde possa
ver uma árvore ou mesmo a água. Quero ir para uma instituição federal,
bem longe do Dr. Chilton.
Portanto, se considerarmos o tom de voz empregado pela personagem e o
enquadramento da câmera descrito anteriormente, esse trecho adquire um caráter
de monólogo interior e não de ameaça. O que veremos com o decorrer da diegese é
que na verdade Hannibal está compartilhando com Clarice seus planos de fuga: “Eu
esperei, Clarice [...]
Em seguida, ele se vira para Clarice e se mostra disposto a ajudá-la: “Estou
lhe oferecendo um perfil psicológico de Buffalo Bill baseado nas pistas do caso. Vou
ajudá-la a pegá-lo, Clarice [...]”. E por fim ele a coloca no limiar: “Nosso Billy já deve
estar procurando a próxima vítima.”
Num segundo episódio carnavalizado do filme, Lecter já estava fora do
Hospital de Baltimore, conforme era seu desejo. Ele estava sendo transferido para
Memphis, Tennesee. Isso foi possível com ajuda do dr.Chilton, que, em troca de
favores, fez um acordo com a senadora Ruth Martin. Destacamos que a cena é
escandalosa e excêntrica, pois as imagens iniciais ludibriam o espectador, que
induzido pela câmera, acredita que está prestes a presenciar um encontro
diplomático.
Os encontros diplomáticos, segundo BAKHTIN, são “sempre regulamentados
com rigor, onde o tempo, o lugar e a composição dos que se encontram são
estabelecidos segundo o grau da pessoa que é encontrada” (2010a, p. 223). Na
sequência mencionada anteriormente, destacamos um encontro diplomático
carnavalizado, pois as regras listadas a priori não são observadas. Vejamos como
isso se mostra na narrativa fílmica.
A sequência é iniciada com a construção do espaço cenográfico. Dessa
maneira, a primeira tomada da câmera é panorâmica em plano geral noturno. A
legenda avisa o espectador que a ação irá acontecer no Aeroporto Internacional de
Memphis.
152
Um travelling para frente da câmera aproxima a imagem. Nesse momento, é
possível ver que há um grande esquema de proteção. Isso se reflete na enorme
quantidade de viaturas policiais, que se entrecruzam na pista do aeroporto e se
dirigem para um hangar. O barulho das sirenes é ensurdecedor, as imagens não
estão nítidas, pois está chovendo e as luzes se refletem nas poças de água.
Já dentro do hangar, a câmera mostra em primeiro plano, Hannibal Lecter que
está com usando uma máscara que lhe cobre o nariz e a boca (ver ilustração 12,
página 63). Ele está sendo retirado do avião, uma vez que está preso a um carrinho
com uma camisa de forças.
Ainda em primeiro plano, vemos alguns policiais locais que se identificam e
aguardam pela assinatura do Dr. Chilton no documento que transfere definitivamente
o prisioneiro para outro Estado.
Efetivada a transferência, a câmera faz uma tomada panorâmica do lado
interno do hangar e mostra as reais dimensões do evento. Como já dissemos, são
essas imagens em plano panorâmico que confundem o espectador, pois
percebemos que há muito contingente mobilizado para receber Lecter. Podemos
entender que ele é um prisioneiro perigoso, porém reforçamos a idéia de que ele
está chegando com todas as honrarias e cercado por um amplo aparato policial e
diplomático.
Feita a análise do espaço cenográfico, vejamos como o encontro se mostra
no plano do discurso.
Senadora Ruth: Dr. Lecter trouxe uma declaração que garante seus novos
direitos.
Hannibal: Não perderei o tempo de Catherine [...] Clarice Starling e Jack
Crawford já desperdiçaram tempo demais. Rezo para que eles não tenham
condenado a pobre moça. Deixe-me ajudá-la. Confiarei em você quando
tudo acabar.
Senadora Ruth: Tem minha palavra. Paul! (grifo nosso)
Até esse momento, tudo se encaminhava dentro do campo diplomático.
Porém, Hannibal muda o tom de seu discurso e passa a usar a linguagem da praça
pública.
153
Hannibal: O verdadeiro nome de Buffalo Bill é Loues Tefferredo. Diga-me,
senadora. Você amamentou Catherine?
Senadora Ruth: Como?
Hannibal: Deu o seio a ela?
Paul: Espera aí?
Senadora Ruth: Eu dei, sim.
Hannibal: Endureceu seus mamilos, não?
Paul: Seu filho da puta?
Hannibal: Ampute a perna de um homem e ele ainda consegue senti-la
coçar. Diga, mamãe, quando sua garotinha estiver no necrotério, onde
sentirá coçar?
Senadora Ruth: Leve essa coisa de volta a Baltimore.
Hannibal: E, senadora! Só mais uma coisa: adorei seu tailleur. (grifo nosso)
A linguagem da praça pública como já dissemos é ambivalente e transpõe as
barreiras das posições sociais no encontro carnavalizado. Quando anuncia a morte
próxima da filha da senadora, Lecter traz para a praça pública o tema do limiar
BAKHTIN (2008, p. 202). E por fim, o contraste carnavalesco é ressaltado nas
vestes: o mascarado vestindo uma camisa de forças e a senadora vestindo tailleur.
Depois do escândalo, Lecter é aprisionado no prédio do Tribunal do Condado
de Shelby e de lá ele consegue fugir matando os dois policiais que eram
responsáveis por sua guarda.
Hannibal foi o segundo filme analisado e nele distinguimos a presença de
algumas categorias carnavalescas. Como já comentamos, o filme Hannibal é
narrado a partir de duas cidades diferentes, por isso a câmera mostra algumas
cenas de forma paralela.
O centro do filme é ocupado pela imagem carnavalescamente ambivalente do
falso curador Dr. Fell. Ele vive livremente e confortavelmente em Florença e as
ações se concentram em torno dele. Relembramos que Dr.Fell é na verdade
Hannibal Lecter, o canibal, que fugiu da polícia dos Estados Unidos há dez anos.
Dessa maneira, essa vida em Florença é desviada de seu curso normal, é quase um
“mundo às avessas.” (Ibid., 2008, p. 188).
154
Nessa película, destacamos um aspecto do carnaval que é o ritual de
coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval. Segundo BAKHTIN
(2008, p. 143)
a coroação-destronamento é um ritual ambivalente biunívuco, que expressa
a inevitabilidade e, simultaneamente, a criatividade da mudança-renovação,
a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder
e qualquer posição (hierárquica).
O ritual de coroamento é observado no fragmento em que o antiherói
Hannibal está prestes a consolidar sua nova identidade (Dr. Fell), ele recebe os
diretores da biblioteca Capponi e faz a sua apresentação conforme o grupo havia
combinado. O pronunciamento do Dr. Fell, pleno de argumentos convincentes e
imagens, é enunciado em tom solene com um final bem convincente em italiano.
O evento foi acordado nas primeiras sequências que se desenvolvem na
cidade de Florença. Em sua apresentação, analisada no capítulo 4.2, páginas 138-
143, Dr. Fell escolhe falar sobre Píer della Vignna, personagem que protagoniza o
13th Canto do Inferno, da Divina Comédia, onde Dante descreve os círculos em que
são punidos aqueles que cometeram suicídio ou que usufruíram todo seu dinheiro.
Abaixo destacamos parte da apresentação do Dr. Fell.
O peregrino de Dante encontra Píer della Vigna no 7º nível do Inferno e
como Judas Escariotes, morreu enforcado. Judas e Della Vigna estão
ligados pela avareza que Dante via neles. A avareza e o enforcamento
estão ligados no pensamento medieval.
Dr. Fell escolhe falar do Inferno, como se ele não vivesse nele e ironicamente
escolhe o tema da avareza, já destacado como elemento que permeia a narrativa.
Por fim, a apresentação do Dr. Fell cumpre plenamente a função de lhe assegurar o
cargo de curador efetivo. Porém, ele fica impedido de assumir o cargo, pois precisa
fugir dos primos de Verger. Portanto, o rei é logo destronado, dessa maneira se
consolida o “rito do destronamento”, que é inseparável da coroação (BAKHTIN,
2008, p. 142).
155
Considerações finais
Nossa proposta neste trabalho era fazer um estudo da personagem nas
narrativas fílmicas O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho partindo
da premissa de que um filme cria uma realidade própria, “a partir da reprodução
fotográfica da realidade”; portanto, habitada por personagens, “que aparecem e
falam, dirigem-se aos sentidos e à imaginação” (MARTIN, 2003, p. 18).
Nas produções analisadas observamos todo um processo de identificação
entre o público e a personagem que visa a manter o espectador preso aos filmes ao
possibilitar que ele receba um conteúdo específico que é aparentemente real, pois é,
segundo MARTIN (2003, p. 28) “dinamizado pela visão artística do diretor”. Além
disso, a imagem trabalhada busca emocionar o espectador, isto é “afetar seus
sentimentos” e por fim transmitir um significado ideológico e moral. Nesse sentido, o
espectador entra em contato com modos de vida que orientam e dão sentido à
vivência das personagens.
Assim, a câmera foi nosso guia pelo mundo ficcional em que transitam nossas
personagens e foi por meio desse tipo especial de narrador que elaboramos os
capítulos que tratam da construção da personagem. Vejamos as conclusões a que
chegamos a partir da análise dos elementos expressivos da linguagem fílmica, mais
especificamente, dos movimentos de câmera.
Começando pelo filme O Silêncio dos Inocentes, já destacamos que a
narração dos fatos é feita de forma linear, a personagem Clarice vai sendo mostrada
pela câmera durante seu processo de crescimento pessoal, profissional e de
reconhecimento de si mesma. Percebe-se que há uma preocupação com a
verossimilhança interna da obra, pois a câmera mostra, frequentemente, a agente
enquanto ela busca seu aprimoramento técnico de maneira que ela possa estar apta
a passar por seus desafios, além disso, enfatiza que a busca do conhecimento e a
descoberta faz parte de sua visão de mundo.
Desde a sequência inicial, a câmera conduz o espectador a identificar-se com
a Clarice Starling. Não é por acaso que o enredo coloca a personagem à prova
constantemente, é preciso mostrar para o espectador que ela está apta a superar os
obstáculos e assim ocupar o papel principal da narrativa, qual seja, o de
156
protagonista ou “starling”, estrela brilhante como sugere seu nome. Além disso,
percebe-se que embora tenha tido uma infância dificíl, a câmera mostra, por várias
vezes, seu apego ao pai, de quem se lembra sempre que está em dificuldades, isso
não afetou o seu caráter.
Entretanto, os pontos fundamentais da ação não estão na academia, por ser
um ambiente onde tudo pode ser controlado, não há diálogos, não há interação
entre a personagem e os outros que transitam pelo mesmo espaço. Na academia
Clarice recebe treinamentos que lhe auxiliam no desenvolvimento de habilidades,
mas não lhe ajudam a constituir-se como sujeito. Lembramos que na concepção de
BAKHTIN (2000, 2008, 2010a e 2010b) é impossível pensar o sujeito fora das
relações com o outro, isto é, na intersubjetividade, pois é ela que permite contemplar
a subjetividade o auto-reconhecimento do sujeito pelo reconhecimento do outro.
Dessa forma, é no limiar que Clarice se vê frente a frente com o outro.
O limiar, a sala do Dr. Chilton, o corredor que leva à cela de Hannibal, o
depósito, o avião, o carro, a ante-sala do necrotério, a sala de autópsia, o topo da
escada, a descida da escada, os corredores da casa de Buffalo Bill, eis os espaços
do filme. É nesses espaços que Clarice vai se conhecendo e se reconhecendo.
Nesse processo a câmera mostra-a em seus diálogos com Hannibal Lecter. Ele
provoca Clarice por meio da anácrise, que é a técnica da provocação da palavra
pela própria palavra, dessa maneira, leva-a a livrar-se dos preconceitos que
carregava e, depois, para conquistar o seu espaço, o seu lugar na sociedade.
Dessa maneira, concluimos que a liberdade, ao mesmo tempo em que é
desejada, é, também, temida por ela. Por isso, a necessidade de rever o passado,
resolver os conflitos e, finalmente, tomar posse de sua existência.
Ao analisarmos Hannibal Lecter, nos deparamos com suas várias facetas. A
princípio a câmera cria um grande suspense em torno de sua imagem por intermédio
das personagens que o caracterizam como “um monstro psicopata”. Em
consequência disso, quando ele é visualizado pela primeira vez, a figura do homem
comum que a câmera mostra decepciona sua visitante. Isso se comprova pela
fisionomia da jovem Clarice focalizada pela câmera. Acreditamos que a mesma
reação de Clarice se reflete no espectador.
157
Por outro lado, com o andamento da diegese, a câmera vai revelando a
monstruosidade de Hannibal Lecter pelo uso do primeiro plano e, também, do
primeiríssimo plano. As tomadas nesses planos, as quais colocam os olhos de
Hannibal Lecter em evidência, amedrontam seu interlocutor e, também, o
espectador. Com esse culto da imagem de Hannibal, a câmera demarca a
característica mais forte de Lecter que é sua capacidade de enxergar as coisas,
inclusive o interior das pessoas, e isso lhe proporciona o dom de antecipar-se aos
fatos.
Concluímos que o uso do recurso descrito é pertinente por dois motivos. O
primeiro, se relaciona com o apontamento para a verossimilhança interna da obra.
Pois, alguns fatos mostrados pela câmera no decorrer da diegese poderiam soar
fantásticos demais e levar o espectador a desinterar-se pelo filme. Já o segundo, diz
respeito ao conceito bakhtiniano de personagem voz que adotamos no nosso
trabalho. Se considerarmos que Hannibal está restrito ao espaço mínimo de sua cela
ele não poderia falar por si mesmo, mas tão somente, ser mostrado pela câmera ou
pelos outros como acontece no início do filme.
Por sua característica de sujeito multifacetado, Hannibal Lecter é uma
personagem indefinível e, conforme o que nos é mostrado pela câmera, possui
plena consciência de sua condição de psicopata. As motivações que o levam a
cometer seus crimes não são reveladas e sobre seu passado temos uma única
referência que é a cidade de Florença.
Buffalo Bill é mostrado ao espectador por partes: os olhos, as mãos, as
costas, etc. Até que seu corpo seja visto pelo espectador, decorre um tempo e isso
acontece pelos olhos da câmera, pois a personagem não se olha no espelho. Por
essa forma de apresentação a câmera faz sugestões ao espectador que aos poucos
se concretizam. O assassino é movido pela cobiça, por isso os olhos são mostrados
inicialmente. Depois, seu objetivo de costurar uma roupa de mulher é revelado, daí a
atenção da câmera às mãos. Em suma, cada uma das partes da personagem vai
sendo anexada a um corpo de que ele não gosta e que deseja mudar. Pelo que foi
exposto na narrativa, concluímos que se trata de um indivíduo que não se reconhece
no outro, ou seja, na alteridade, dessa forma ele é conduzido à alienação, à perda
da identidade e à morte.
158
Destacamos, por fim, que o filme expressa, de maneira geral, uma opinião
positiva em relação à intituição federal, FBI. No decorrer da diegese não observamos
nenhuma cena em que pudéssemos questionar a integridade moral das
personagens ligadas à instituição. Por outro lado, chamou-nos a atenção a cena em
que mobilizou-se um gigantesco aparato para salvar a filha da senadora Ruth Martin.
O que questionamos é caso fosse um cidadão comum, ou seja, sem influências
políticas, o tratamento dado ao caso seria o mesmo?
Na segunda película, Hannibal, dez anos após Lecter ter fugido da prisão,
observamos uma mudança relacionada aos espaços onde as ações acontecem.
Notamos que tais mudanças foram determinantes para a introdução de novos
elementos na história de Hannibal Lecter.
Em primeiro lugar, destacamos a introdução da influência do capital, ou seja,
do dinheiro. Dentro desse novo contexto, as personagens não são mais movidas
pelos valores institucionais, pelo ideal profissional, pela moral ou por um ideal
religioso. Em Hannibal é o capital que conta, é a ganância que motiva as
personagens; é uma necessidade, por menor que seja, um bilhete de ópera, que
leva um profissional a colocar sua vida em risco. Em suma, é como se as
personagens vivessem num mundo sem leis que não as do próprio instinto.
Por tudo isso, Hannibal trouxe uma reflexão sobre os ideais de conduta, de
aparência; a desintegração dos poderes policiais, das instituições públicas. Enfim, as
promessas de felicidade acessíveis para aqueles que podem pagar seu preço, pois,
como vimos, o inspetor Pazzi perde a vida enquanto levanta dinheiro para satisfazer
um desejo de sua esposa.
Em segundo lugar, em oposição ao dinheiro, encontramos o discurso
tradicional, o saber, que é incorporado pelo Dr. Fell, ou melhor, Hannibal Lecter, de
chapéu. Em Florença, a personagem candita-se ao cargo de curador da Biblioteca
Caponi e para ser aceito precisa provar que é conhecedor da obra de Dante
Aliguieri. Esse é o primeiro desafio que Dr. Fell precisa superar e ele o faz
brilhantemente. Quanto ao segundo desafio, que é esconder a identidade de canibal,
esse ele não consegue cumprir, pois a máscara de Hannibal sempre o persegue.
Como ele mesmo diz em uma carta que escreve à Clarice: “Preciso sair do
isolamento e voltar à vida pública.”
159
Entre esses dois mundos está Clarice Starling, que procura manter sua
integridade moral que luta contra a própria coisificação. Não se deixa influenciar nem
por Hannibal Lecter e nem por Mason Verger. O primeiro por seu discurso eloquente
e o segundo por seu dinheiro com o qual acredita poder comprar tudo. Da sua
relação com Clarice, pensamos que Lecter busca algo mais, porém ela não aceita os
galanteios deste.
Por último destacamos que o filme se constrói em clima onírico e isso suscita
a dúvida no espectador, que se pergunta se as coisas realmente aconteceram
daquela forma, ou se ao final seremos notificados de que alguém estava sonhando.
Na terceira narrativa, Dragão Vermelho, chegamos ao início de tudo. Dessa
maneira, a câmera mostra que Hannibal, antes de ser preso, vivia confortavelmente
como um membro da sociedade de Baltimore. Sua segunda personalidade, de
canibal, foi descoberta por Will Graham e exposta ao público pelos jornais. Tais fatos
desencadeiam uma crise de identidade em Hannibal Lecter. Dessa maneira, a
história se desenvolve em torno da superação dessa crise de identidade de Hannibal
que procura uma maneira de se vingar de seu opositor Will Graham. Para atingir seu
objetivo, Hannibal seduz o problemático Francis Dolarhyde e seu duplo Dragão
Vermelho.
Paralela a crise de identidade de Hannibal, observamos o mesmo acontecer
com o inspetor Will Graham, que não tenta matar o seu opositor, mas, sim, procura
encarar aquele para conseguir a superação de seus temores. A relação entre os
dois, que inicialmente era de cooperação, passa a ser de disputa, de desafio e de
desprezo.
Como pano de fundo para as crises identitárias está a família. A moral familiar
dá a forma circular ao filme, pois aponta para a ambivalência. Ela motiva os crimes
de Dolarhyde que sofreu maltratos dos familiares e sem orientação torna-se um
assassino. Por outro lado, Graham enfrenta seus medos para defender a sua família
e as outras que poderiam se tornar futuras vítimas. A câmera deixa isso bem claro
quando mostra uma família em primeiro plano pouco antes de Will decidir-se por
pedir ajuda a Hannibal.
Após termos concluído a análise da construção da personagem, nosso
trabalho tratou das relações dialógicas. À luz de BAKHTIN (2000, 2008, 2010a e
160
2010b), consideramos que essas relações personificaram-se na linguagem em forma
de enunciado e, assim, converteram-se em posições de diferentes sujeitos
expressas na linguagem. Dessa forma, o sujeito bakhtiniano não é um ser abstrato,
mas alguém que se expressa e se posiciona ativamente, construindo-se frente ao
outro em interação.
Procuramos apontar, por meio da retomada das seqüências analisadas no
capítulo das personagens, as transformações por que passam as personagens em
decorrência da relação eu – outro. Da análise dos filmes depreendemos que
Hannibal Lecter suscita o bem e o mal.
Na primeira narrativa, diríamos que Clarice não teria a oportunidade de
aprender tanto, ou seja, não teria passado por tantas experiências, se não tivesse
sido colocada frente a frente com Hannibal Lecter. Se confrontarmos a figura de
Clarice antes (ilustração 2, p. 30) e depois de Hannibal Lecter (ilustração 9, p. 57)
notamos uma grande mudança, que acreditamos não esteja relacionada apenas
com o tempo, uma vez que este não pôde ser mensurado, mas também com todo o
processo de crescimento pessoal pelo qual ela passou.
Quanto a Lecter, não podemos afirmar que ele tenha mudado, pois a câmera
o flagra cometendo assassinatos bárbaros. Além disso, ao final, observamos que
Hannibal persegue seu algoz com intenções de “comê-lo”. Porém, na segunda
película, Hannibal, após ter saboreado o cérebro de Paul Krendler, o perseguidor de
Clarice, Hannibal mostra-se disposto a fazer algo pelo outro. Para fugir de ser preso,
ele opta por cortar o próprio braço e não o de Clarice. Será que foi uma
demonstração de amor?
Em Dragão Vermelho, vimos que as crises de identidade, ou seja, o não
reconhecimento do eu no outro, foram marcadas por conflitos que se instalaram e se
resolveram no seu tempo. Francisco Dolarhyde, após ter comido seu duplo, é morto
pela esposa de Will Graham. Este retorna para sua vida em Marathon, considerando
que a câmera o mostra em um barco. E Hannibal Lecter conscientizá-se de sua
condição de prisioneiro e vai atormentar a jovem Clarice Starling.
Finalmente, da análise do corpus apreende-se que a carnavalização
representada pelas violações do discurso, declarações inopoturnas,
comportamentos contrários às normas e etiquetas foi a fórmula que o diretor
161
encontrou para subverter e transgredir o discurso oficial, já que há justificativas para
a conduta de Lecter, ou seja, mostrar sua própria cosmovisão.
Ao chegarmos ao final deste trabalho, gostaríamos de destacar que notamos
outros temas passíveis de serem analisados futuramente. Primeiramente,
apontamos a questão do olhar, pois é um elemento que se destaca na maior parte
das tomadas da câmera. Uma segunda possibilidade se relaciona com os espaços
onde as ações se desenvolvem. E, por fim, a questão do tempo, considerando que
os filmes foram narrados em tempo não cronológico, poderíamos desenvolver algo
que se relacionasse com a questão do tempo histórico, do tempo cronológico e do
tempo da narrativa.
162
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166
ANEXO I. FICHA E SINOPSE DOS FILMES ESTUDADOS
Hannibal (EUA, 2001) Sinopse: Sete anos se passaram desde que o Dr. Hannibal Lecter (Anthony
Hopkins) escapou da prisão. O múltiplo homicida agora trabalha na biblioteca de
uma família nobre de Florença e transita livremente pela Europa. A agente do FBI
Clarice Starling (Julianne Moore), que entrevistou o Dr. Lecter antes que ele fugisse
do hospital de segurança máxima para criminosos insanos, nunca esqueceu o
assassino, cuja voz ainda atormenta seus sonhos. Mas também Mason Verger (Gary
Oldman) não se esqueceu de Hannibal. Vítima que conseguiu sobreviver ao ataque
do psicopata e ficou terrivelmente desfigurado, Verger se torna um obcecado pela
vingança e percebe que, para fazer com que o Dr. Lecter seja descoberto, terá que
usar como isca a própria Clarice Sterling.
Ficha técnica:
Título original: Hannibal
Tempo de duração: 131 minutos
Gênero: suspense policial
Estúdio: MGM/ Universal Pictures
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Mamet e Steven Zailian
Baseado na obra: de Thomas Harris, Hannibal de 1999.
Produzido por: Dino de Laurentiis, Martha Laurentiis e Ridley Scott.
Produtores Executivos: Branko Lustig.
Música: Hans Zimmer.
Figurinos: Janty Yates
167
Edição: Pietro Scalia
Diretor de Arte: David Crank.
Diretor de Fotografia: John Mathieson.
Elenco original:
Dr. Hannibal Lecter: Anthony Hopkins.
Clarice Starling: Julianne Moore
Mason Verger: Gary Oldman
Paul Krendler: Ray Liotta
Rinaldo Pazzi: Giancarlo Giannini
Allegra Pazzi: Francesca Neri
O Silêncio dos Inocentes (EUA, 1991)
Sinopse: Um psicopata conhecido como Buffalo Bill está raptando e assassinando
jovens mulheres. Acreditando que um bandido reconhece o outro, o FBI envia
agente Clarice Starling (Foster) para entrevistar um prisioneiro demente que pode
fornecer uma percepção do perfil psicológico e pistas para os atos do assassino. O
prisioneiro é um psiquiatra, Dr. Hannibal Lecter (Hopkins), um brilhante e perigoso
canibal, que decide ajudar Starling apenas se ela alimentar sua curiosidade mórbida
com detalhes sobre sua própria complicada vida. Esse horrendo assassino, uma
encarnação tão poderosa do mal, que ela pode não ter coragem – ou forças – para
detê-lo.
Ficha Técnica
Título original:The Silence of the Lambs
Gênero: Suspense
168
Duração: 118 minutos
Ano de lançamento: 1991
Estúdio: Orion Pictures
Distribuidora: Orion Pictures Corporation
Direção: Jonathan Demme
Roteiro: Ted Tally, baseado em livro de Thomas Harris
Produção: Kristi Zea
Música: Howard Shore
Fotografia: Tak Fujimoto
Direção de arte: Tim Galvin
Figurino: Colleen Atwood
Edição: Craig McKay
Premiações:
OSCAR
Ganhou:
Melhor Filme
Melhor Diretor - Jonathan Demme
Melhor Ator - Anthony Hopkins
Melhor Atriz - Jodie Foster
Melhor Roteiro Adaptado
Indicações:
Melhor Som
Melhor Edição
GLOBO DE OURO
Ganhou
Melhor Atriz - Drama - Jodie Foster
Indicações
Melhor Filme - Drama
Melhor Diretor - Jonathan Demme
Melhor Ator - Drama - Anthony Hopkins
169
Melhor Roteiro
FESTIVAL DE BERLIM
Ganhou
Urso de Prata
Elenco original:
Dr. Hannibal Lecter: Anthony Hopkins
Clarice Starling: Jodie Foster
Ardelia Mapp: Kasi Lemmons
Jack Crawfor: Scott Glenn
Frederick Chilton: Anthony Heald
Barney: Frankie Faison
Miggs: Stuart Rudin
Jaime Gumb: Ted Levine
170
Dragão Vermelho (EUA, 2002)
Sinopse: Will Graham (Edward Norton) é um agente do FBI que por pouco não foi
morto por Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) quando tentava capturá-lo. Com
Lecter já preso, Graham é obrigado a usar o psicopata como consultor para obter
maiores informações sobre Francis Dolarhyde (Ralph Fiennes), um serial killer que
tem deixado a cidade em pânico. Mas o que Graham não sabe é que ao mesmo
tempo em que Lecter o auxilia em sua investigação também repassa ao próprio
Dolarhyde informações sobre a família do policial que o persegue.
Ficha técnica: Título original: (Red Dragon)
Direção: Brett Ratner
Duração: 126 min
Gênero: Suspense
Site oficial: http://www.reddragonmovie.com/
Estúdio: Universal Pictures / Dino De Laurentiis Productions / Scott Free
Productions
Distribuidora: Universal Pictures / Metro-Goldwyn-Mayer / UIP
Direção: Brett Ratner
Roteiro: Ted Tally, baseado em livro de Thomas Harris
Produção: Dino De Laurentiis e Martha Schumacher
Música: Danny Elfman
Fotografia: Dante Spinotti
Direção de arte: Steve Saklad
Figurino: Betsy Heiman
171
Edição: Mark Helfrich
Elenco original:
Dr. Hannibal Lecter: Anthony Hopkins
Francis Dolarhyde: Ralph Fiennes
Moly Graham: Emily Watson
Reba McClane: Mary-Louise Parker
Jack Crawford: Harvey Keitel
Freddy Lounds: Philip Seymour Hoffman
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