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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
DOUTORADO EM DIREITO PBLICO
LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS
CONVENES PROCESSUAIS E PODER PBLICO
Salvador
2016
B271
Barreiros, Lorena Miranda Santos.
Convenes processuais e poder pblico [manuscrito] /
Lorena Miranda Santos Barreiros. 2016.
428 f. ; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Junior.
Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia,
Faculdade de Direito, 2016.
1. Atos jurdicos. 2. Processo civil. 3. Direito
administrativo. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade
de Direito. II. Didier Jr., Fredie Souza. III. Ttulo.
CDD 347.05
Ficha catalogrfica elaborada por Ivanildes Sousa CRB5/ 1477
LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS
CONVENES PROCESSUAIS E PODER PBLICO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito,
Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Direito.
Linha de pesquisa: Teoria do Processo e Tutela dos Direitos
Orientador: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Junior
Salvador
2016
TERMO DE APROVAO
LORENA MIRANDA SANTOS BARREIROS
CONVENES PROCESSUAIS E PODER PBLICO
Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Direito,
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia UFBA, pela seguinte banca
examinadora:
Nome: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Junior
Titulao e instituio: Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)
Nome: Prof. Dr. Flvio Luiz Yarshell
Titulao e instituio: Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)
Nome: Prof. Dr. Antonio do Passo Cabral
Titulao e instituio: Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)
Nome: Prof. Dr. Eduardo Ferreira Jordo
Titulao e instituio: Doutor em Direito pelas Universidades de Paris (Panthon-
Sorbonne) e de Roma (Sapienza), em co-tutela
Nome: Prof. Dr. Edilton Meireles de Oliveira Santos
Titulao e instituio: Ps-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Nome: Prof. Dr. Dirley da Cunha Junior
Titulao e instituio: Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Salvador, 22/08/2016
A Luiza e Laura, dois presentes que a vida me reservou,
por me fazerem compreender que h medida maior do que
o infinito: o amor de me.
AGRADECIMENTOS
A superao do desafio de elaborar a presente tese no teria sido possvel sem a ajuda
de muitas pessoas, a quem desejo imensamente agradecer. Antes, porm, de nomin-las, o
agradecimento primeiro e maior dirijo a Deus, que se faz presente a cada dia em minha vida,
renovando-me as foras.
A Maria Alexandrina dos Santos, por haver, desde muito cedo, me ensinado a
importncia do estudo, que ela tanto valorizava, mesmo tendo tido a ele pouco acesso.
minha av Lourdes, sua filha, que bem apreendeu as lies de sua me e me apresentou o
encantador mundo da docncia, que exerceu com criatividade e dedicao.
A Silvia e Gerino, por serem meus exemplos e faris. Jamais poderei agradecer a
contento por haver sido agraciada com pais to excepcionais, amorosos e maravilhosos.
Obrigada pela compreenso e pelo apoio, sempre valiosos. Aos meus irmos, Felipe e Cintia,
pelo estmulo e pela torcida. A Jaime, meu eterno companheiro, pelos imensos amor, apoio e
incentivo e por nunca me permitir desacreditar da realizao do meu objetivo. Ao meu av
Silvio e minha Dinda Rosa, pelo dengo reconfortante e revitalizador, necessrio para
recarregar as energias doadas ao trabalho. minha famlia, ncleo que estrutura a minha vida
e que a torna mais leve, por me mostrar, a cada dia, a felicidade que h nas pequenas coisas da
vida. Meu amor de vocs.
Ao Prof. Dr. Fredie Didier Junior, no apenas pela valiosa orientao a este trabalho,
mas, sobretudo, pela disponibilidade, pelo estmulo sua concluso, pelos comentrios e
crticas a ele lanados e por todos os ensinamentos que me transmitiu desde a graduao, sem
os quais, certamente, este trabalho no teria sido concretizado. Dedico-lhe minha amizade e
minha imensa gratido.
Aos Profs. Drs. Antonio do Passo Cabral, Flavio Luiz Yarshell, Eduardo Jordo, Edilton
Meireles e Dirley da Cunha Junior, pelas valorosas crticas e sugestes com que me brindaram
por ocasio da defesa desta tese, as quais, por certo, mostraram-se fundamentais ao seu
aperfeioamento.
A Silvia Laiane Miranda Nunes, pela inestimvel ajuda na coleta do material
bibliogrfico e pelo incentivo constante. A Victor Matheus Nogueira, tambm pelo auxlio
bibliogrfico.
Aos colegas, professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao da UFBA, pelo
aprendizado haurido nas disciplinas cursadas e pelo convvio sempre prazeroso. Agradeo, em
especial, ao colega Guilherme Guimares Ludwig, pela troca de vivncias durante a
elaborao de nossas teses e pelo compartilhamento de fonte bibliogrfica.
Aos colegas e amigos do escritrio Menezes, Miranda e Oliveira, Advogados
Associados, e, em especial, ao Dr. Hlio Menezes Junior e Dra. Nelma Calmon, pela
extraordinria experincia profissional que me concederam e pelos indelveis momentos de
alegria que me proporcionaram durante o valioso perodo em que trabalhamos juntos.
Aos colegas e amigos da Procuradoria Geral do Estado da Bahia, com destaque aos Drs.
Silvio Avelino Pires Britto Junior e Andr Luiz Peixoto Fernandes, pelo apoio e pela amizade.
Agradeo, ainda, ao amigo Jos Carlos Wasconcellos Junior, pelos profcuos debates
profissionais, que inspiraram alguns exemplos construdos nesta tese.
Aos colegas da Faculdade Baiana de Direito, em especial aos Profs. Carolina
Mascarenhas e Fernando Leal, pelo carinho com que sempre fui tratada durante o perodo em
que lecionei naquela Instituio. Agradeo a Carol, ainda, pelas dicas metodolgicas.
Aos funcionrios da Biblioteca da Faculdade Baiana de Direito (Acio, Alexandra,
Edilene, Hugo, Ivanildes, Marcos, Nadjane, Pmela e Victria) e da Biblioteca da
Procuradoria Geral do Estado da Bahia (em especial a Agnbia e Aleine), pelas constantes
ateno, presteza e simpatia com que sempre fui tratada em ambos os lugares, o que, por
certo, tornou muito mais aprazvel a pesquisa realizada.
s funcionrias que, alegremente, deram e do mais vida minha casa e que cuidam
no apenas dela, mas, sobretudo e principalmente, de minhas filhas, permitindo-me ter maior
tranquilidade para me fazer ausente, pelo tempo necessrio, para as pesquisas conducentes
concluso desta tese. Mais do que ningum, foram testemunhas das contradies e angstias
que vivenciei diante deste desafio e das renncias que ele me imps, tendo de abdicar de
precioso tempo ao lado de minhas amadas filhas.
Aos amigos que, durante todo esse perodo em que estive mergulhada na elaborao da
tese, me incentivaram e acreditaram na consecuo deste trabalho.
A todas as pessoas que, por qualquer modo, contriburam para a realizao desse
projeto, ainda que aqui expressamente no citadas, meu verdadeiro muito obrigada.
inegvel que a renovada preocupao com o consenso, como forma
alternativa de ao estatal, representa para a Poltica e para o Direito
uma benfica renovao, pois contribui para aprimorar a
governabilidade (eficincia), propicia mais freios contra os abusos
(legalidade), garante a ateno de todos os interesses (justia),
proporciona deciso mais sbia e prudente (legitimidade), evita os
desvios morais (licitude), desenvolve a responsabilidade das pessoas
(civismo) e torna os comandos estatais mais aceitveis e facilmente
obedecidos (ordem).
Diogo de Figueiredo Moreira Neto1
1 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas tendncias da democracia: consenso e direito pblico na
virada do sculo o caso brasileiro. Revista eletrnica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 13, mar.-
maio/2008, p. 02. Disponvel em: . Acesso em:
09/07/2016.
RESUMO
O objetivo central da presente tese consiste em demonstrar a existncia de um regime
jurdico especfico a que se sujeita o Poder Pblico quando celebra convenes processuais,
distinto daquele a que se submetem os particulares no exerccio da mesma atividade. A
pesquisa desenvolvida para o alcance desse escopo principia com a anlise do fenmeno da
consensualidade administrativa no Direito brasileiro, enquadrando-se a atuao administrativa
consensual como alternativa (e no excludente da) atuao imperativa. A consensualidade
administrativa conceituada e so examinadas a sua classificao e algumas de suas
principais manifestaes encontrveis no apenas no Direito Administrativo, mas, ainda, nos
Direitos Penal, Processual Penal e Processual Civil. Essa anlise propicia o estabelecimento
da premissa a partir da qual se estrutura o trabalho, consistente no reconhecimento da
Administrao Pblica como destinatria da regra estabelecida pelo art. 190 do CPC/2015
(clusula geral de negociao processual). O foco do trabalho desloca-se, ento, da
consensualidade administrativa para a clusula geral de negociao processual. Em um
primeiro momento, so apresentadas as premissas histricas, ideolgicas, lgico-conceituais e
normativas destinadas compreenso da clusula, enfrentando-se, inclusive, a questo
referente sua constitucionalidade. luz dessas premissas e tendo em vista o enquadramento
do art. 190 do CPC/2015 no contexto de um microssistema de negociao processual
estruturado no direito brasileiro, parte-se, ento, para a construo dos sentido e alcance da
clusula geral de negociao processual. No desenvolvimento dessa atividade, so delineados
os pressupostos de existncia, os requisitos de validade e as condies de eficcia dos
negcios jurdicos processuais atpicos e as convenes processuais so analisadas em
variados aspectos, tais como sua revogabilidade, sua interpretao e o prprio mbito de
incidncia da clusula geral de negociao processual. Ultrapassadas as questes referentes
consensualidade administrativa, por um lado, e construo de sentido da clusula geral de
negociao processual, por outro, enfrenta-se, ento, a questo cerne do trabalho. Passa-se
demonstrao da existncia de um regime jurdico diferenciado a que se submete o Poder
Pblico quando celebra convenes processuais. Os contornos desse regime jurdico hbrido
(que pressupe a necessidade de considerao simultnea a normas processuais e
administrativas) so apresentados, com destaque s temticas concernentes competncia
para celebrao de negcios processuais em nome do Poder Pblico, os limites subjetivos,
objetivos, formais e finalsticos a que a Administrao Pblica est sujeita quando se vale do
instituto, os mtodos destinados a garantir o respeito ao princpio da igualdade nessa atuao
pblica consensual e a adequao do tema aos processos administrativos.
Palavras-chave: Negcios jurdicos processuais Consensualidade administrativa Direito
Administrativo Direito Processual Civil Clusula geral de negociao processual.
ABSTRACT
The main objective of this thesis is to demonstrate the existence of a specific legal
regime that subordinates public entities when they celebrate contracts of procedure, diverse of
that one which individuals are submitted to when they exercise the same activity. In order to
achieve this scope, the research begins with the analysis of the administrative consensuality's
phenomenon in Brazilian law, framing the consensual administrative action as an alternative
to (and not exclusive of) imperatival action. The administrative consensuality is
conceptualized and its classification and some of its main demonstrations are examined,
findable not only in Administrative Law, but also in Criminal Law, in Criminal Procedural
Law and in Civil Procedure Law. This analysis enables the establishment of the premise on
what this research is structured, namely, the recognition that the rule established by article
190 of the CPC/2015 (general clause of procedural negotiation) is also intended to Public
Administration. Then the focus of the work shifts from the administrative consensuality to the
general clause of procedural negotiation. At a first moment, the historical, ideological,
logical-conceptual and normative premises aimed at understanding the clause are introduced
and the issue of its constitutionality is examined. In light of these assumptions and
considering the framework of article 190 of the CPC/2015 in the context of a microsystem of
procedural negociation structured in Brazilian law, the construction of the meaning and scope
of the general clause of procedural negotiation is performed. In the development of this
activity, this work delineates the planes of existence, validity and efficiency of atypical
contracts of procedure and analyses these contracts under various aspects, such as their
revocability, their interpretation and the incidence area of the general clause of procedural
negotiation. After these considerations, the nuclear issue of the work is then examined, in
order to demonstrate the existence of a specific legal regime that subordinates public entities
when they celebrate contracts of procedure. The contours of this hybrid legal system (which
implies the need for simultaneous consideration of procedural and administrative rules) are
presented, with emphasis on issues concerning the competence to conclude contracts of
procedure on behalf of the Public Administration, the subjectives, objectives, formals and
finalistics limits that the Public Administration is subject to when using that institute, the
methods to ensure respect for the principle of equality in the consensual public activity and
the appropriateness of the theme to administrative proceedings.
Keywords: Contracts of procedure Administrative consensuality Administrative Law
Civil Procedure Law General clause of procedural negotiation
RIASSUNTO
L'obiettivo principale di questa tesi quello di dimostrare l'esistenza di un regime giuridico
specifico che subordina gli enti pubblici al momento di firmare accordi processuali, diverso
daquello a che gli individui sono sottoposti quando esercitano la stessa attivit. Per
raggiungere questo scopo, la ricerca inizia con l'analisi del fenomeno della consensualit
amministrativa in diritto brasiliano, presentando l'azione amministrativa consensuale come
alternativa alla (e non esclusiva di) azione imperativa. La consensualit amministrativa
concettualizzata e la sua classificazione e alcune delle sue principali manifestazioni vengono
esaminate, trovabile non solo in diritto amministrativo, ma anche nel diritto penale, nel diritto
processuale penale e nel diritto processuale civile. Questa analisi permette lidentificazione
della premessa su ci che questa ricerca strutturata, vale a dire, il riconoscimento che la
regola stabilita dall'articolo 190 del CPC/2015 (clausola generale di negoziazione
processuale) destinato anche alla Pubblica Amministrazione. Poi, il focus della tesi si sposta
dalla consensualit amministrativa alla clausola generale di negoziazione processuale. In un
primo momento, le premesse storiche, ideologiche, logico-concettuali e normative volte a
comprendere la clausola vengono introdotte e la questione della sua costituzionalit viene
esaminata. Alla luce di questi presupposti e considerando il quadro dell'articolo 190 en dalle
CPC/2015 nel contesto di un microsistema di negoziazione processuale strutturato nella legge
brasiliana, viene eseguita la costruzione del significato e dellambito della clausola generale di
negoziazione processuale. Nello sviluppo di questa attivit, questo lavoro delinea i piani di
esistenza, validit e efficacia degli accordi processuale atipici e analizza questi accordi sotto
vari aspetti, come la loro revocabilit, la loro interpretazione e la zona dellincidenza della
clausola generale di negoziazione processuale. Dopo queste considerazioni, la questione
nucleare della tesi poi esaminata, al fine di dimostrare l'esistenza di un regime giuridico
specifico che subordina gli enti pubblici quando celebrano accordi processuali. I contorni di
questo sistema legale ibrido (il che implica la necessit di un esame simultaneo delle norme
processuali e amministrative) sono presentati, con l'accento su questioni che riguardano la
competenza a concludere laccordo processuale per conto della Pubblica Amministrazione, i
limiti subbietivi, obiettivi, formali e finalistici a che la Pubblica Amministrazione soggetta a
quando si utilizza di tale istituto, i metodi per garantire il rispetto del principio di uguaglianza
nellattivit pubblica consensuale e l'adeguatezza del tema a procedimenti amministrativi.
Parole chiave: Accordi processuali Consensualit amministrativa Diritto amministrativo
Diritto Processuale Civile Clausola generale di negoziazione processuale
SUMRIO
INTRODUO 16
1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO
BRASILEIRO
23
1.1 CONSIDERAES INICIAIS 23
1.2 DA ATUAO ADMINISTRATIVA IMPERATIVA ATUAO
CONSENSUAL: A CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 COMO
MARCO DE ABERTURA DO DIREITO ADMINISTRATIVO
BRASILEIRO CONSENSUALIDADE
25
1.2.1 A viso tradicional do Direito Administrativo brasileiro: a atuao
administrativa pautada na prerrogativa imperativa
25
1.2.2 A Constituio Federal de 1988, a reforma da gesto pblica de 1995 e
a reformulao de paradigmas do direito administrativo brasileiro
28
1.3 A ATUAO ADMINISTRATIVA CONSENSUAL 39
1.4 MANIFESTAES DA CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA
NO DIREITO BRASILEIRO
43
1.4.1 Desapropriao amigvel 45
1.4.2 Colaborao premiada 49
1.4.3 Transao penal e suspenso condicional do processo 54
1.4.4 Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pblica 57
1.4.5 Acordo de lenincia 60
1.4.5.1 Acordo de lenincia e defesa da concorrncia 61
1.4.5.2 Acordo de lenincia e combate corrupo 64
1.4.5.3 Acordo de lenincia no mbito licitatrio 66
1.4.6 Parcerias Pblico-Privadas 67
1.4.7 Arbitragem 70
1.4.8 Mediao (e conciliao) 76
1.4.9 O (revogado) art. 17, 1, da Lei de Improbidade Administrativa e seu
histrico descompasso com a progressiva abertura do Direito
Administrativo consensualizao
81
1.5 A ADMINISTRAO PBLICA COMO DESTINATRIA DA 88
REGRA ESTABELECIDA PELO ART. 190 DO CPC/2015
2 PREMISSAS PARA A COMPREENSO DA CLUSULA GERAL
DE NEGOCIAO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO
91
2.1 PREMISSAS HISTRICAS E IDEOLGICAS 91
2.1.1 O privatismo processual 92
2.1.2 Publicismo processual e o dogma da irrelevncia da vontade no
processo
94
2.1.3 A redescoberta da vontade privada: um retorno ao privatismo
processual?
99
2.1.4 O histrico legislativo ptrio 104
2.2 PREMISSAS LGICO-CONCEITUAIS 111
2.2.1 Conceitos extraveis da teoria do fato jurdico: plano da existncia 112
2.2.1.1 Fato jurdico em sentido estrito 113
2.2.1.2 Ato-fato jurdico 113
2.2.1.3 Atos jurdicos lato sensu: ato jurdico stricto sensu e negcio jurdico 115
2.2.1.4 Ato ilcito 116
2.2.2 A teoria dos fatos jurdicos processuais: plano da existncia 118
2.2.2.1 Fato jurdico processual 118
2.2.2.2 Ato-fato processual 119
2.2.2.3 Ato jurdico processual lato sensu e ato jurdico processual stricto sensu 122
2.2.2.4 Ato ilcito processual 124
2.2.3 Os negcios jurdicos processuais 125
2.2.3.1 Generalidades 125
2.2.3.2 Conceito e classificao dos negcios jurdicos processuais 137
2.2.3.3 Convenes ou acordos processuais 140
2.2.3.4 Protocolos ou acordos institucionais 146
2.2.4 A teoria do fato jurdico: plano da validade 147
2.2.5 Os atos jurdicos processuais lato sensu e o plano da validade 156
2.2.6 A teoria do fato jurdico: plano da eficcia 160
2.2.7 A teoria dos fatos jurdicos processuais: plano da eficcia 162
2.2.8 Conceito de clusula geral 169
2.2.9 Conceito de procedimento 172
2.3 PREMISSAS NORMATIVAS: CONSTITUCIONALIDADE E
FUNDAMENTOS DO ART. 190 DO CPC/2015
176
2.3.1 A constitucionalidade da clusula geral de atipicidade da negociao
processual prevista no art. 190 do CPC/2015
178
2.3.2 Fundamentos da clusula de atipicidade da negociao processual 183
2.3.2.1 Princpio do respeito ao autorregramento da vontade no processo 185
2.3.2.2 Princpio da cooperao 187
3 A CONSTRUO DA CLUSULA GERAL DE NEGOCIAO
PROCESSUAL NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
191
3.1 DA IRRELEVNCIA DA VONTADE NO PROCESSO FORMAO
DE UM MICROSSISTEMA DE NEGOCIAO PROCESSUAL
191
3.2 PRESSUPOSTOS DE EXISTNCIA DOS NEGCIOS JURDICOS
PROCESSUAIS ATPICOS
197
3.2.1 Sujeitos 198
3.2.1.1 Significado do termo parte utilizado no art. 190 do CPC/2015 198
3.2.1.2 Ainda sobre o significado do termo parte na dico do art. 190 do
CPC/2015: o rgo jurisdicional como sujeito de convenes processuais
202
3.2.1.2.1 O posicionamento de Antonio do Passo Cabral 203
3.2.1.2.2 A posio de Murilo Teixeira Avelino 210
3.2.1.3 Vontade consciente e autorregrada 212
3.2.2 Objeto: referibilidade a um processo 214
3.2.2.1 Alterao do procedimento 215
3.2.2.2 Disposio sobre situaes jurdicas processuais 217
3.2.3 Forma (em sentido amplo) 219
3.3 REQUISITOS DE VALIDADE DOS NEGCIOS JURDICOS
PROCESSUAIS ATPICOS
220
3.3.1 Partes plenamente capazes 221
3.3.1.1 Sobre a(s) acepo(es) de capacidade no art. 190 do CPC/2015 221
3.3.1.2 Partes plenamente capazes: a interpretao da expresso lanada no art.
190 do CPC/2015
228
3.3.1.3 A vulnerabilidade como incapacidade processual negocial 233
3.3.2 Ainda quanto ao aspecto subjetivo de validade das convenes
processuais: a manifestao de vontade desprovida de vcios 241
3.3.2.1 Manifestao e vcios de vontade 241
3.3.2.2 Manifestao de vontade viciada pela insero abusiva de acordo
processual em contrato de adeso
245
3.3.3 Objeto lcito, possvel, preciso e determinado ou determinvel 247
3.3.3.1 A licitude do objeto 248
3.3.3.1.1 Versar o processo sobre direitos que admitam autocomposio 248
3.3.3.1.2 Negcios processuais atpicos e seus limites implcitos: o tratamento
doutrinrio conferido ao tema
253
3.3.3.1.2.1 O estabelecimento de limites objetivos por meio de indicadores genricos
(uso de conceitos jurdicos indeterminados)
254
3.3.3.1.2.2 O estabelecimento de diretrizes gerais para a anlise dos limites objetivos
de validade dos negcios processuais
256
3.3.3.1.2.3 O posicionamento adotado neste trabalho 260
3.3.3.1.3 Negcios jurdicos processuais simulados e fraudulentos 264
3.3.3.2 As possibilidades fsica e jurdica do objeto 266
3.3.3.3 Previsibilidade do acordo celebrado: a preciso e a determinabilidade do
objeto
267
3.3.4 Forma prescrita ou no defesa em lei 268
3.4 CONTROLE DE VALIDADE DOS NEGCIOS JURDICOS
PROCESSUAIS
270
3.4.1 Iniciativa para deflagrao do controle de validade 271
3.4.2 Forma de deflagrao do controle de validade pela parte 272
3.4.3 Requisitos procedimentais do controle de validade 274
3.4.4 Regime jurdico do controle de validade pela parte 275
3.5 EFICCIA JURDICA DOS NEGCIOS JURDICOS PROCESSUAIS
ATPICOS
276
3.5.1 Eficcia jurdica dos negcios antecedentes e dos negcios incidentais 276
3.5.2 Condies de eficcia do negcio processual atpico 277
3.5.2.1 Homologao como condio legal de eficcia dos negcios atpicos? 277
3.5.2.2 Condies e termos convencionados (determinaes inexas) 279
3.5.3 Esfera subjetiva de eficcia dos negcios processuais 280
3.5.4 (In)adimplemento dos negcios jurdicos processuais 284
3.6 REVOGAO DAS CONVENES PROCESSUAIS 287
3.7 INTERPRETAO DOS NEGCIOS PROCESSUAIS 287
3.8 MBITO DE INCIDNCIA DO ART. 190 DO CPC/2015 290
3.9 NEGCIOS PROCESSUAIS ATPICOS CELEBRADOS ANTES DA
VIGNCIA DO CPC/2015: O DIREITO INTERTEMPORAL
295
3.10 VANTAGENS E DESVANTAGENS DA ADOO DE UMA
CLUSULA GERAL DE NEGOCIAO PROCESSUAL
296
4 O REGIME JURDICO DE NEGOCIAO PROCESSUAL
ENVOLVENDO O PODER PBLICO
302
4.1 CONSIDERAES INICIAIS 302
4.2 A (IN)VALIDADE DA DECISO ADMINISTRATIVA DE
CELEBRAO DE NEGCIO PROCESSUAL E SEUS REFLEXOS
302
4.3 O PREENCHIMENTO DO REQUISITO SUBJETIVO DA
CAPACIDADE PROCESSUAL NEGOCIAL PELO PODER PBLICO
306
4.3.1 Competncia 307
4.3.1.1 Competncia implcita para celebrao de negcios jurdicos processuais 308
4.3.1.2 A celebrao de negcios jurdicos processuais pela Advocacia Pblica 311
4.3.2 Exerccio de poder-dever discricionrio 315
4.3.3 Impessoalidade 317
4.3.4 Poder Pblico e vulnerabilidade 319
4.4 RESPEITO ISONOMIA, PRECEDENTE ADMINISTRATIVO E
AUTOLIMITAO NEGOCIAL DA ADMINISTRAO PBLICA
321
4.4.1 O contributo de Humberto vila ao estudo do contedo jurdico da
igualdade
321
4.4.2 A teoria do precedente administrativo e sua adequao ao direito
brasileiro
323
4.4.3 Respeito isonomia: a deciso de celebrar negcio jurdico processual
como precedente para a Administrao Pblica
333
4.4.4 Autolimitao negocial da Administrao, eficcia do precedente
administrativo e formas de controle de sua aplicao
335
4.5 ASPECTOS ESPECFICOS RELACIONADOS AOS REQUISITOS
OBJETIVOS DE VALIDADE DA CONVENO PROCESSUAL
ENVOLVENDO O PODER PBLICO 340
4.5.1 Licitude do objeto: as prerrogativas processuais da Fazenda Pblica so
negociveis?
340
4.5.1.1 Prerrogativas relacionadas ao regime jurdico de direito material a que se
sujeitam as pessoas jurdicas de direito pblico ou prpria natureza
dessas
343
4.5.1.2 Prerrogativas relacionadas ao funcionamento da estrutura administrativa 347
4.5.2 Motivo da deciso administrativa de celebrao de negcio jurdico
processual
351
4.6 A MOTIVAO COMO REQUISITO DE VALIDADE DO ATO
ADMINISTRATIVO NEGOCIAL
353
4.7 REQUISITO FORMAL DE VALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO
NEGOCIAL
359
4.7.1 Negcios jurdicos comissivos celebrados pelo Poder Pblico 359
4.7.2 A Fazenda Pblica e as omisses processuais negociais 360
4.8 REQUISITO FINALSTICO DE VALIDADE DA CONVENO
PROCESSUAL ENVOLVENDO O PODER PBLICO
362
4.9 EFICCIA DOS NEGCIOS PROCESSUAIS ENVOLVENDO O
PODER PBLICO E PRINCPIO DA PUBLICIDADE
365
4.10 NEGCIOS PROCESSUAIS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO 368
4.10.1 A nomenclatura utilizada: processo ou procedimento administrativo? 368
4.10.2 Os princpios da eficincia e do formalismo moderado como
fundamentos da atuao processual administrativa negocial
370
4.10.3 O art. 15 do CPC/2015 e a sua importncia para a celebrao de
negcios jurdicos processuais em processos administrativos
376
4.10.4 Alguns exemplos de negcios jurdicos processuais passveis de
celebrao em processos administrativos
380
4.11 PROTOCOLOS INSTITUCIONAIS ENVOLVENDO O PODER
PBLICO: ALGUMAS CONSIDERAES
384
CONCLUSO 388
REFERNCIAS 393
16
INTRODUO
Aps cinco anos de tramitao, foi sancionada, em 16 de maro de 2015, a Lei n
13.105, atual Cdigo de Processo Civil brasileiro. Com vacatio legis de um ano estabelecida
por seu art. 1.045, o diploma normativo em questo entrou em vigor em 18 de maro de 2016,
(muito embora poucas no tenham sido as polmicas havidas quanto efetiva data inicial de
vigncia do referido Cdigo).
Dentre os pilares nos quais se sustenta o Cdigo de Processo Civil de 2015, esto os de
estmulo utilizao de mtodos autocompositivos para soluo de conflitos e de valorizao
da consensualidade. No por outra razo, alis, os 2 e 3 do art. 3 do CPC/2015, ambos
inseridos no Captulo que trata das normas fundamentais do processo civil, consagram a
necessidade de efetivo desenvolvimento de polticas pblicas de promoo soluo
consensual de conflitos e de estmulo adoo de mtodos que objetivem o alcance dessa
soluo negociada.
A preocupao do novo diploma legal com a abertura do espao de consensualidade no
processo no se restringiu, porm, composio do seu objeto litigioso. Reforando o poder
de autorregramento das partes e ampliando o espectro de abertura e de flexibilidade dos
procedimentos jurisdicionais, o CPC/2015, por intermdio de seu art. 190, conferiu s partes o
poder de, democraticamente e valendo-se, inclusive, de negcios atpicos, conformar o
procedimento, ajustando-o s peculiaridades da causa, e de dispor sobre suas situaes
jurdicas processuais.
O art. 190 do CPC/2015 consagra clusula geral de negociao processual, pondo termo
s divergncias doutrinrias, existentes ao tempo do CPC/1973, quanto possibilidade de
celebrao de negcios jurdicos processuais atpicos.
Ao lado de negcios processuais tpicos j existentes na legislao processual revogada
e que foram reproduzidos no novo diploma processual (a exemplo das convenes de eleio
17
de foro, de suspenso do processo e de distribuio do nus da prova) e de outros acrescidos
ao sistema processual ptrio com o advento do CPC/2015 (a exemplo do calendrio
processual, da organizao consensual do processo e da escolha consensual de perito), o art.
190 do CPC/2015 parte integrante de um verdadeiro microssistema de negociao
processual, de cujo ncleo faz parte, ainda, o art. 200 do CPC/2015.
A previso de uma clusula geral de negociao processual no CPC/2015 reavivou na
doutrina processual, ainda durante a fase da tramitao do Projeto que deu origem ao Cdigo,
o interesse pelo estudo da teoria dos fatos jurdicos, com especial enfoque para a figura do
negcio jurdico e sua adequao ao processo. O ponto primordial de debate e de perquirio
centra-se na definio dos limites objetivos para o exerccio desse poder de autorregramento
pelas partes: trata-se, sem dvida, de um dos maiores (se no o maior) desafio imposto pela
temtica examinada.
A ideia de consensualidade, que permeia no apenas a clusula geral de negociao
processual do art. 190 do CPC/2015, mas todo o novo diploma processual, se bem
contextualizada, insere-se em uma realidade que se espraia, tambm, por toda a atuao
estatal. Consentnea com a valorizao da participao popular no exerccio de funes
pblicas e com a democracia, a consensualidade exsurge, nesse cenrio, como forma de
atuao administrativa, ao lado da tradicional atuao imperativa.
Nas mais diversas reas do Direito (Penal, Administrativo, Processual), institutos so
normatizados ou aprimorados com vistas a ampliar o mbito de atuao consensual do Poder
Pblico. Sob o marco reformista que consagrou como diretriz da Administrao Pblica
brasileira o princpio da eficincia, paradigmas tradicionais do Direito Administrativo so
revisitados e reformulados e solues concertadas passam a ser a cada dia mais valorizadas,
sobretudo porque mais democrticas, eficientes e legitimadas por maior participao cidad.
Especificamente no mbito processual, o Poder Pblico sofreu, em 2015, o influxo no
apenas do advento do prprio Cdigo de Processo Civil, como, ainda, de outros textos
normativos sancionados no mesmo ano, conformando a atuao consensual do Estado.
Merecem destaque a Lei n 13.129, de 26 de maio de 2015, que ampliou o mbito de
aplicao da arbitragem, consignando expresso dispositivo que autoriza a Administrao
Pblica, em carter genrico, a fazer uso desse meio de soluo de conflitos, e a Lei n
13.140, de 26 de junho de 2015, que regrou a autocomposio de conflitos no mbito da
Administrao Pblica. De se recordar que, antes mesmo do advento dessas Leis, o prprio
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Cdigo de Processo Civil j previu a criao, pelos entes pblicos, de cmaras de mediao e
conciliao voltadas resoluo de conflitos no mbito administrativo (art. 174 do
CPC/2015). Nota-se, portanto, que a consensualidade envolvendo o Poder Pblico tambm
tema dotado de grande atualidade e que tem merecido muita ateno da doutrina ptria.
Partindo-se da temtica geral da consensualidade, o tema tratado nesta tese situa-se no
ponto de interseo entre a atuao consensual do Poder Pblico e o instituto dos negcios
processuais. A pesquisa desenvolvida pauta-se na busca de resposta a uma questo cerne: ao
atuar consensualmente, celebrando convenes processuais, o Poder Pblico submete-se a
regime jurdico diferenciado em relao quele a que se sujeitam os particulares no exerccio
da mesma atividade?
H de se ressaltar que o foco do trabalho est direcionado a uma determinada espcie de
negcio jurdico bilateral (ou plurilateral) celebrada pelo Poder Pblico (conveno
processual), excluindo-se, portanto, os negcios jurdicos processuais unilaterais e os
contratos processuais, que sero referidos apenas quando se fizer necessrio exposio ou
para complement-la.
pergunta formulada associam-se outras que igualmente ho de ser objeto de
investigao: a celebrao de convenes processuais pelo Poder Pblico pressupe a
existncia de norma expressa conferindo ao agente essa competncia negocial? A negociao
processual atribuio que compete, com exclusividade, ao rgo de representao judicial
da pessoa jurdica de direito pblico? O Poder Pblico pode ser considerado como parte
vulnervel em uma conveno processual? H limites objetivos especficos impostos
negociao processual com o Poder Pblico? A fundamentao prvia ou concomitante ao ato
requisito de validade das convenes processuais celebradas pelo Poder Pblico? Que
mecanismos se revelam idneos a garantir o respeito isonomia na celebrao de convenes
processuais com o Poder Pblico? As convenes processuais celebradas pelo Poder Pblico
submetem-se a alguma condio especfica de eficcia? O art. 190 do CPC/2015 aplica-se aos
processos administrativos?
A importncia da temtica debatida tambm pode ser constatada. A flexibilizao
procedimental levada a efeito pela vontade das partes ferramenta cujo adequado uso poder
potencializar o alcance da eficincia processual, com reduo de custos e de tempo de
tramitao do processo, em consonncia com o escopo de concretizao do princpio da
razovel durao do processo. Quando envolva o Poder Pblico, a negociao processual
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apresenta-se, ainda, como fator de legitimao do agir estatal e de democratizao do
exerccio de funo pblica, ambas resultado da abertura da atuao estatal ao consenso e
participao popular.
Para o desenvolvimento deste trabalho, fez-se uso de mtodo exploratrio de pesquisa,
calcado na anlise crtica dos pensamentos de autores nacionais e estrangeiros que guardem
pertinncia temtica com o problema proposto e com os objetivos a serem alcanados. A
investigao abrange, ainda, o exame de textos legislativos relacionados ao tema. A meno a
decises judiciais feita esporadicamente, no tendo sido realizado exame minucioso da
jurisprudncia ptria, ante o reduzido lapso temporal de vigncia do Cdigo de Processo
Civil/2015. Outras fontes de pesquisa utilizadas foram os Enunciados aprovados pelo Frum
Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e pela Escola Nacional de Formao e
Aperfeioamento de Magistrados (ENFAM).
Objetiva-se, em suma, examinar sob que perspectiva o influxo da consensualidade na
atuao pblica legitima a celebrao de convenes processuais pelos entes pblicos e quais
os limites que lhe so impostos nessa seara.
Para o atingimento do escopo propugnado e com vistas a tentar comprovar a hiptese
que lastreia a tese (no sentido de que o Poder Pblico, ao celebrar convenes processuais,
submete-se a regime jurdico diferenciado em relao quele a que esto sujeitos os
particulares no exerccio da mesma atividade), o trabalho foi dividido em quatro Captulos.
No primeiro Captulo, o enfoque volve-se ao exame do fenmeno da consensualidade
administrativa no direito positivo brasileiro. Partindo-se da perspectiva da atuao
administrativa fundada na prerrogativa imperativa, que constitui a viso tradicional haurida do
Direito Administrativo ptrio, examina-se a mudana paradigmtica impingida ao exerccio
da funo administrativa com o advento da Constituio Federal de 1988 e com a reforma
gerencial havida em 1995, inclusive com as repercusses que tais alteraes ocasionaram na
compreenso de algumas ideias estruturantes do Direito Administrativo.
Em seguida, analisada a atuao administrativa consensual, enquadrando-a como
categoria jurdica genrica. Apresentados a sua conceituao e os critrios de classificao das
espcies de atuao consensual e delineados os pressupostos imprescindveis sua
configurao, o Captulo I dedica-se, ento, identificao de algumas das principais
manifestaes da consensualidade administrativa no direito brasileiro, englobando exemplos
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extrados dos Direitos Penal e Processual Penal, de diversos mbitos do Direito
Administrativo e do Processo Civil.
Ao cabo da exposio, as questes enfrentadas no Captulo I servem de base ao
estabelecimento da premissa que nortear todo o desenvolvimento do trabalho: o
enquadramento da Administrao Pblica como destinatria da regra estabelecida pelo art.
190 do CPC/2015.
O segundo Captulo dedicado ao estabelecimento das premissas necessrias
compreenso da clusula geral de negociao processual encartada no art. 190 do CPC/2015.
Inicialmente, so apresentadas as premissas ideolgicas e histricas que lastrearam a insero
dessa clusula no ordenamento jurdico brasileiro, com destaque para o enfrentamento da
temtica concernente ao privatismo e ao publicismo processuais. O respectivo histrico
legislativo tambm abordado. Em seguida, examinam-se as premissas lgico-conceituais
necessrias ao desenvolvimento do tema, analisando-se a teoria dos fatos jurdicos em seus
trs planos (existncia, validade e eficcia), com seus devidos ajustes ao campo processual.
Os conceitos de clusula geral e de procedimento tambm so firmados.
O Captulo II encerra-se com o delineamento das premissas normativas que do lastro
ao art. 190 do CPC/2016, demonstrando-se a sua compatibilidade vertical com a Constituio
Federal de 1988 e explicitando-se os fundamentos que lhe do arrimo no ordenamento
jurdico ptrio.
A construo dos sentido e alcance da clusula geral de negociao processual tarefa
empreendida no Captulo III. Tomando-se por base a insero do art. 190 do CPC/2015 no
contexto de um microssistema de negociao processual estruturado no direito brasileiro,
busca-se conferir-lhe maior grau de concretude, explicitando-se os pressupostos de existncia,
os requisitos de validade e as condies de eficcia dos negcios processais atpicos. Alm
disso, so tecidas consideraes variadas sobre os negcios processuais bilaterais e
plurilaterais, abordando-se temas referentes sua revogabilidade, sua interpretao e ao
mbito de incidncia da clusula geral de negociao processual. Examinam-se, ainda, nesse
Captulo, questes atinentes ao direito intertemporal, lanando-se ponderaes, ao final, sobre
as vantagens e desvantagens da adoo dessa clusula no Direito Processual ptrio.
Realizada a construo dogmtica dos sentido e alcance da clusula geral de negociao
processual, os parmetros lanados no Captulo III serviro como base para o
desenvolvimento do Captulo IV, que se prope a apresentar os contornos especficos do
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regime jurdico de negociao processual envolvendo o Poder Pblico. Trata-se do ncleo da
tese apresentada.
Nele, a preocupao primordial residir no mais no estabelecimento dos parmetros
gerais de aplicao do art. 190 do CPC/2015, tarefa j desenvolvida no Captulo precedente (e
cujas concluses, como regra, so aplicveis ao Poder Pblico, quando no conflitantes com
as especificidades de seu regime jurdico de negociao processual). Cuidar-se- de delimitar
as peculiaridades da negociao processual envolvendo o Poder Pblico, tendo como foco as
convenes processuais. O Captulo IV buscar comprovar a hiptese lanada nesta
introduo, ao mesmo tempo em que procurar apresentar respostas s perguntas a ela
atreladas. Com esse intuito, sero desenvolvidos temas como a competncia para celebrao
do negcio processual, os limites subjetivos, objetivos, formais e finalsticos a que se sujeita o
Poder Pblico na negociao processual, a publicidade como condio de eficcia das
convenes processuais celebradas pela Administrao Pblica, os mtodos idneos a garantir
o respeito ao princpio da igualdade dentro dessa atuao consensual dos entes pblicos e a
conformao do tema aos processos administrativos. Ao final do Captulo IV, sero feitas
algumas consideraes acerca da celebrao de protocolos institucionais pelo Poder Pblico.
Prope-se o presente trabalho a buscar apresentar uma estruturao mnima do regime
jurdico especfico de negociao processual envolvendo o Poder Pblico. As consideraes
lanadas no Captulo IV aproveitam, em grande medida, aos negcios jurdicos unilaterais
praticados pelo Poder Pblico e aos contratos processuais por ele celebrados. Por essa razo,
tratou-se, no Captulo IV, do regime de negociao processual envolvendo o Poder Pblico,
fazendo-se uso da expresso genrica negcio jurdico processual em muitas passagens
daquele Captulo.
No entanto, deve-se advertir que, estando o foco da pesquisa direcionado s convenes
processuais, o captulo IV no contemplar, seno excepcionalmente, as especificidades que,
dentro desse regime de negociao processual envolvendo o Poder Pblico, compitam aos
negcios unilaterais ou aos contratos processuais.
Logicamente, tratando-se a clusula geral de negociao processual de um instituto
recm-ingresso no ordenamento jurdico-processual ptrio (ao menos efetivamente,
abstraindo-se, nesse momento, as discusses quanto possibilidade de se atribuir, no plano
terico, esse papel ao art. 158 do CPC/1973), muitas questes decorrentes de sua aplicao
prtica podero, futuramente, forjar novos contornos matria.
22
Pretende-se apresentar uma contribuio ao estudo do tema, que se constri luz de
uma indissocivel e ntima relao entre as reas do Direito Administrativo e do Direito
Processual Civil. O aprofundamento dessa abordagem relacional consiste, possivelmente, no
enfoque inovador exigido para a elaborao da tese ora apresentada.
Por fim, h de se deixar assente que o trabalho pauta-se em constante preocupao com
sua utilidade prtica. Busca-se, tanto quanto possvel (inclusive com a apresentao de
exemplos diversos), fornecer no apenas concluses terico-dogmticas, mas, tambm,
reflexes de carter marcadamente prtico, capazes de contribuir para a efetiva aplicao do
instituto pelo Poder Pblico. Se, em alguma medida, esse desejo converter-se em realidade,
todo o esforo ter valido a pena.
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1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO
1.1 CONSIDERAES INICIAIS
O tema abordado no presente trabalho a negociao processual envolvendo entes
pblicos pressupe, para uma melhor percepo, o seu enquadramento em uma esfera mais
ampla, concernente atuao consensual do Estado.
A compreenso acerca dos contornos da consensualidade administrativa no Direito
brasileiro impe-se como raciocnio antecedente quele que perquira acerca do
reconhecimento dos entes pblicos como destinatrios do regramento geral estabelecido pelo
art. 190 do CPC/2015. Esse reconhecimento, por sua vez, conduzir descoberta dos
requisitos subjetivos, objetivos formais e finalsticos a que se submete essa negociao
processual.
Buscar-se- demonstrar, neste captulo, que, ao lado da atuao administrativa
tradicional, de cunho imperativo, a Administrao Pblica1 tambm se utiliza do instrumental
consensual em suas relaes com outros entes pblicos e com o particular. Destacar-se- o
crescimento do mbito de atuao da consensualidade administrativa nas mais distintas
1 A expresso Administrao Pblica, por sua equivocidade, demanda um esclarecimento quanto aos sentido e
alcance em que empregada neste trabalho. Sob o aspecto objetivo, a expresso refere-se funo administrativa
exercida por rgos e agentes do Estado (em contraposio s funes legislativa e jurisdicional). Sob o aspecto
subjetivo, compreende os sujeitos da funo administrativa, ou seja, agentes, rgos e entidades (entes
federativos Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios , autarquias, sociedades de economia mista,
fundaes pblicas e empresas pblicas) a quem esteja incumbida a execuo de atividades administrativas. Na
primeira perspectiva (objetiva), a expresso administrao pblica normalmente utilizada com iniciais
grafadas em letras minsculas. Ao se fazer aluso ao segundo sentido (subjetivo), grafa-se Administrao
Pblica com uso de iniciais maisculas. Importante destacar, ainda, que o exerccio de funo administrativa
no se limita ao Poder Executivo, tambm havendo atividade administrativa no mbito dos Poderes Legislativo e
Judicirio (CARVALHO FILHO, Jos dos Santos. Manual de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 06-08). A expresso Administrao Pblica (ou, simplesmente, o termo
Administrao), desse modo, ser utilizada neste trabalho sob a perspectiva subjetiva. Tratando o objeto deste
trabalho do regime jurdico a que se submete o Poder Pblico na celebrao de negcios jurdicos processuais, as
referncias feitas expresso Administrao Pblica constantes do texto estaro relacionadas s pessoas
jurdicas de direito pblico.
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esferas normativas (inclusive no processo penal), ao tempo em que ser demonstrada a
abertura do ordenamento jurdico brasileiro a essa tendncia.
A importncia progressiva que se atribui consensualidade administrativa no Direito
brasileiro, ao lado da reformulao do sentido de alguns conceitos centrais no Direito
Administrativo (como o da legalidade administrativa), confere legitimidade concluso no
sentido de que o art. 190 do CPC/2015 tambm se destina a regular a negociao processual
envolvendo o Poder Pblico2. Essa negociao pode ocorrer tanto no mbito do processo
judicial quanto no do processo administrativo; neste ltimo caso, tambm (mas no
exclusivamente) por fora do regramento estabelecido pelo art. 15 do CPC/2015.
Neste captulo, o enfoque estar deliberadamente voltado, com primazia, ao exame da
doutrina nacional, tendo em vista que o escopo primordial da anlise a ser empreendida reside
na identificao do espao ocupado pela consensualidade administrativa na estrutura jurdico-
positiva brasileira.
Sem desconhecer que a consensualizao no Direito Administrativo reflete tendncia
verificada em outros pases do mundo (algumas referncias sero feitas a fenmenos
estrangeiros que influenciaram o Direito ptrio, sem pretenso de aprofundamento ou de
exaustividade), o corte realizado objetiva, em ltima anlise, demonstrar que o contexto
jurdico brasileiro atual se coaduna com a ideia de utilizao de negcios jurdicos processuais
atpicos pela Administrao Pblica.
Alm disso, os institutos que denotam a expanso da consensualidade no Direito ptrio
sero apresentados panoramicamente, como fundamento para a demonstrao desse
movimento de ampliao do espectro de atuao estatal consensual. No h pretenso de
aprofundamento da anlise dos mesmos, o que extrapolaria os limites objetivos deste trabalho.
2 A expresso Poder Pblico utilizada como significativa de rgo ou entidade administrativa regido(a),
preponderantemente, por normas de Direito Pblico, em linha semelhante quela traada por BUENO, Cssio
Scarpinella. O Poder Pblico em juzo. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2008, p. 01. O autor apenas no faz meno
expressa aos rgos administrativos em seu conceito (embora estejam eles, logicamente, enquadrados, como
parte de um todo, na noo de pessoa administrativa, pelo autor referida). A opo metodolgica por incluir os
rgos administrativos expressamente na conceituao de Poder Pblico decorre do fato de que, em
determinadas circunstncias, os rgos pblicos detm capacidade de estar em juzo, sobretudo para defesa de
suas prerrogativas institucionais. Tratando-se de trabalho que objetiva estudar instituto diretamente relacionado
ao processo (negcios processuais), esse ajuste conceitual se faz necessrio, sem desvirtuar a ideia subjacente
expresso utilizada.
25
1.2 DA ATUAO ADMINISTRATIVA IMPERATIVA ATUAO
CONSENSUAL: A CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 COMO MARCO DE
ABERTURA DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO CONSENSUALIDADE
1.2.1 A viso tradicional do Direito Administrativo brasileiro: a atuao
administrativa pautada na prerrogativa imperativa
O Direito Administrativo (visto sob a perspectiva de ramo autnomo do Direito
Pblico) tem suas origens no direito francs ps-revolucionrio, sendo apontada a Lei de 28
de pluvioso do Ano VIII (1800) como o seu marco de nascimento. Sob a conduo mxima
do Conselho de Estado francs, os tribunais administrativos firmaram, jurisprudencialmente,
as diretrizes basilares dessa disciplina3.
Fruto dessa produo jurisprudencial e da dissociao feita entre a justia comum e a
justia administrativa na Frana, as normas administrativas foram construdas sob a premissa
de que se tratava de um direito exorbitante ao direito comum e com carter derrogatrio deste,
calcado nos princpios da supremacia do interesse pblico sobre o particular e da
indisponibilidade do interesse pblico4.
No Brasil, essa influncia se fez sentir j no perodo do Imprio, com a criao de um
Conselho de Estado, dotado de atribuies consultivas5, e com a incluso da disciplina de
Direito Administrativo nos programas das faculdades6.
Com o advento da Repblica, o Direito Administrativo brasileiro sofre influncia do
Direito estadunidense, passando a adotar a unidade de jurisdio, com a extino do Poder
Moderador e do Conselho de Estado. Alm disso, a jurisprudncia ganha importante papel
como fonte do Direito e se reconhece a submisso da Administrao Pblica ao controle
3 ARAJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua histria. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo, v. 95, 2000, p. 152. Disponvel em:
. Acesso em: 20/03/2016; DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 10. 4 ARAJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua histria. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo, v. 95, 2000, p. 153. Disponvel em:
. Acesso em: 20/03/2016. 5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 29.
6 ARAJO, Edmir Netto de. O direito administrativo e sua histria. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo, v. 95, 2000, p. 164. Disponvel em:
. Acesso em: 20/03/2016.
26
jurisdicional7.
Tais circunstncias mitigaram, em parte, a influncia do direito francs no ordenamento
jurdico-administrativo ptrio, mas no a expurgaram por completo. Ao revs, a posio de
verticalidade ocupada pela Administrao no regime jurdico-administrativo manteve-se,
estando presentes as ideias de autoexecutoriedade dos atos administrativos, de prerrogativas
pblicas, de contratos administrativos com caractersticas distintas dos contratos privados,
dentre outras8.
Seguindo essa tendncia histrica, Celso Antonio Bandeira de Mello apresenta o regime
jurdico-administrativo brasileiro lastreado em dois pilares: a supremacia do interesse pblico
sobre o privado e a indisponibilidade do interesse pblico pela Administrao. Referidos
pontos fundamentais, qualificados de princpios pelo autor, extrairiam sua importncia do
prprio ordenamento jurdico9.
Esse modo de estruturar o Direito Administrativo pe em evidncia o elemento
7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 30.
8DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. So Paulo: Atlas, 2015, p. 31. Em verdade, o
Direito Administrativo brasileiro sofre, em seu desenvolvimento, uma pliade de influncias. A autora em
referncia, alm dos direitos francs e norte-americano, cita a adoo, pelo Brasil, de contribuies extradas do
direito italiano (conceitos de mrito, de autarquia e de entidade paraestatal, noo de interesse pblico e mtodo
tcnico-cientfico de elaborao e estudo do Direito Administrativo), dos direitos alemo, espanhol e portugus
(princpio da razoabilidade, uso de conceitos jurdicos indeterminados. Do direito alemo, especificamente,
ainda podem ser citadas a proteo confiana como corolrio do princpio da segurana jurdica, a
constitucionalizao dos princpios e a questo atinente centralidade da pessoa humana), dos sistemas de
common law (devido processo legal, mandados de segurana e de injuno, unidade da jurisdio, ideia de
regulao e de criao de agncias reguladoras, parcerias pblico-privadas), dentre outros sistemas (idem, p. 32-
34). 9 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. So Paulo: Malheiros, 2002, p.
38-39. Da supremacia do interesse pblico sobre o privado, tida por Celso Antonio Bandeira de Mello como
verdadeiro axioma do Direito Pblico moderno, decorrem as posies privilegiada e de supremacia do rgo
responsvel por zelar pelo interesse pblico, nas relaes com os particulares. Em razo da primeira, o
ordenamento jurdico prev privilgios materiais e processuais a tais rgos, a exemplo da presuno de
veracidade dos atos administrativos e dos prazos processuais diferenciados. A posio de supremacia, por sua
vez, representa a possibilidade de a Administrao, em razo de sua posio de autoridade na relao com o
particular, constitu-lo unilateralmente em obrigaes ou alterar unilateralmente obrigaes j estabelecidas.
Essas duas posies conjugadas do lastro autotutela, exigibilidade dos atos administrativos e
executoriedade destes, em determinadas situaes, sendo contidas pela ideia de que a Administrao exerce
funo (dever de alcance de finalidades tendentes satisfao de interesse de outrem), estando investida,
portanto, de poderes-deveres. J o princpio da indisponibilidade, pela Administrao, dos interesses pblicos
impede a livre disposio dos interesses da coletividade pela Administrao, estando a atividade administrativa
regida por lei. Em razo dele, conclui-se que a Administrao se subordina a diversos princpios, dentre os quais
os da legalidade, continuidade do servio pblico, tutela ou controle administrativo, isonomia, publicidade,
inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses pblicos e do controle jurisdicional dos atos
administrativos (idem, p. 41-47). Mais recentemente, o autor explicitou outra decorrncia da supremacia do
interesse pblico sobre o privado: as restries ou sujeies especiais havidas no exerccio da atividade pblica.
Ressaltou que essa caracterstica exterioriza o aspecto mais relevante do Direito Administrativo e do princpio da
supremacia do interesse pblico sobre o privado: sua vinculao aos interesses da sociedade. Dentre as sujeies
impostas ao administrador esto a impossibilidade de livre escolha de seus contratantes e a necessidade de
motivao e de publicidade dos atos administrativos (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. 32. ed. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 70-75).
27
autoridade em detrimento de seu contraponto, a liberdade. A atuao administrativa brasileira
tradicional reveste-se de cunho marcadamente autoritrio, sustentando-se sobre trs bases: a
imperatividade, a unilateralidade e o ato administrativo. A denominada prerrogativa
imperativa consiste na possibilidade de a Administrao impor ao administrado10
o contedo
de deciso por ela definido. Dessa prerrogativa advm a unilateralidade dos provimentos
administrativos, resultados que so do exerccio do poder estatal, no derivando eles de
acordo entre Administrao e administrado, ainda que o ato praticado pela Administrao se
coadune com a vontade do administrado11
.
Ambas as caractersticas (imperatividade e unilateralidade) esto presentes como
atributos do ato administrativo, afastveis, apenas, excepcionalmente. A ateno dispensada
ao ato administrativo em detrimento do processo administrativo privilegiou uma anlise
esttica da relao havida entre Administrao e administrado, desconsiderando o processo de
formao da deciso administrativa. Por consequncia, excluiu-se do mbito de considerao
do Direito Administrativo a participao do administrado na construo dessa deciso12
.
As premissas sobre as quais se embasa a atuao administrativa imperativa (posio
verticalizada da Administrao na relao com o particular; prerrogativas fixadas em prol da
Administrao nessa relao; imposio unilateral de suas decises administrativas) parecem
no se harmonizar, a priori, com a ideia de celebrao de acordos pela Administrao.
mesma concluso se pode chegar em relao aos princpios sobre os quais se estrutura o
10
Egon Bockman Moreira critica a utilizao do termo administrado, tendo em vista que a sua origem atrela-
se a um perodo o do surgimento do Direito Administrativo - em que o sujeito que se relacionava com a
Administrao no era visto como um titular de direitos subjetivos a serem exercidos em face do Poder Pblico,
mas, apenas, como um mero interessado/colaborador da atividade administrativa ou, ainda, como objeto do
Direito Administrativo (MOREIRA, Egon Bockman. As vrias dimenses do processo administrativo brasileiro
(um direito-garantia fundamental do cidado). Revista de Processo, So Paulo, ano 39, n. 228, fev./2014, p. 41).
No mesmo sentido, afirmando a mudana paradigmtica da viso que o Direito Administrativo confere ao
particular, no mais visto como objeto (administrado), mas, sim, como cidado, titular de direitos exercitveis
inclusive em face da Administrao: OMMATI, Jos Emlio Medauar. Do ato ao processo administrativo: a crise
da ideia de discricionariedade no direito administrativo brasileiro. Revista dos Tribunais, So Paulo, ano 102, v.
930, abr./2013, p. 24. Tendo em vista tratar-se o termo administrado de vocbulo de uso consagrado no mbito
do Direito Administrativo, este trabalho dele se valer. Deixa-se de logo assente, porm, que a referncia ao
termo em comento no se faz (salvo quando tomado em um contexto histrico) com a carga ideolgica apontada
pelos autores acima mencionados. Reconhece-se ao administrado/particular a condio de consumidor do servio
estatal, de participante ativo na construo da deciso administrativa e de titular de direitos exercitveis em face
da Administrao, como poder ser inferido da leitura deste trabalho. 11
PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sano e acordo na administrao pblica. So Paulo: Malheiros, 2015, p.
71-73. 12
PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sano e acordo na administrao pblica. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 84
-86. Apontando o carter processual de formao do ato administrativo, a perspectiva do processo administrativo
como local de confronto e coexistncia de uma multiplicidade de interesses e como instrumento de controle do
particular sobre a atividade administrativa e a prevalncia, no Direito Administrativo contemporneo, da ideia de
democracia procedimental: MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evoluo. So Paulo: RT, 1992, p.
210-211.
28
Direito Administrativo brasileiro (supremacia do interesse pblico sobre o Direito Privado e
indisponibilidade do interesse pblico pela Administrao).
1.2.2 A Constituio Federal de 1988, a reforma da gesto pblica de 1995 e a
reformulao de paradigmas do Direito Administrativo brasileiro
A Constituio Federal de 1988 constitui-se em marco fundamental compreenso da
abertura do Direito Administrativo brasileiro consensualidade. Se tal diploma normativo no
inaugurou o caminho para a adoo de solues consensuais no mbito da Administrao
Pblica ptria, conferiu-lhe inegvel incremento, tendo em vista as transformaes impingidas
ao Direito Administrativo.
O Estado Democrtico de Direito, consagrado pela Constituio Federal de 1988,
coloca em evidncia a valorizao da participao cidad no exerccio das funes pblicas,
como forma de legitim-las13
. Objetiva-se democratizar a democracia atravs da
participao14
. Alm disso, a CF/1988 explicita o compromisso social de busca da soluo
pacfica de controvrsias, conclamando-o j no seu Prembulo15
.
13
Afasta-se da ideia de presuno de legitimidade, prpria da democracia indireta, para assumir-se a concepo
de participao cidad legitimadora da atuao estatal, por meio do procedimento administrativo (MOREIRA
NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ao administrativa. Revista de direito
administrativo, Rio de Janeiro, v. 231, jan.-mar./2003, p. 136). 14
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 301. A anlise do texto
constitucional brasileiro evidencia, em diversas passagens, o estmulo participao popular no exerccio de
funes estatais: o art. 1, II, da CF/1988 elenca a cidadania como fundamento do Estado Democrtico de Direito
e o mesmo artigo, em seu pargrafo nico, explicita que o poder emana do povo e por ele ser exercido,
inclusive diretamente. No mbito legislativo, h a previso de institutos como plebiscito, referendo e iniciativa
popular (art. 14 da CF/1988), formas de exerccio direto da soberania popular. Na esfera jurisdicional, essa
participao concretizada, no processo criminal, pela instituio do jri (mencionada, embora no disciplinada,
no art. 125, 4, da CF/1988) e, em todos os processos jurisdicionais, pelo resguardo ao contraditrio, clusula
geral estatuda no art. 5, LV, da CF/1988 e qual esto atreladas as ideias de participao e de poder de
influncia. Por fim, de relao ao exerccio da funo executiva, alm do reconhecimento de aplicao dos
princpios do contraditrio aos processos administrativos, com toda a extenso que a clusula geral alcana na
seara jurisdicional, podem ser citados como hipteses de participao popular na gesto pblica os arts. 10, 29,
XII, 37, 3, 187, 194, pargrafo nico, VII, 198, III, 204, II, 205, 206, VI, 216, 1, 216-A, 1, X, 225, 227, 1
e 231, 3. Alm disso, h a ao popular, instrumento jurisdicional de controle social da atividade executiva
(art. 5, LXXIII, da CF/1988). Apresentando diversos instrumentos de participao popular na Administrao
Pblica, inclusive previstos na legislao infraconstitucional federal e em legislaes estaduais, ver: GROTTI,
Dinor Adelaide Musetti. A participao popular e a consensualidade na administrao pblica. Revista de
direito constitucional e internacional, So Paulo, RT, ano 10, v. 39, abr.-jun./2002, p.133-140. 15
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ao Direta de Inconstitucionalidade n 2076-5/AC, sob a relatoria
do Ministro Carlos Velloso, explicitou que o Prembulo da Constituio no dotado de fora normativa. No
entanto, cabe-lhe, como regra e ainda segundo o entendimento adotado pelo STF, apresentar texto poltico
exortador dos princpios e valores contidos na Constituio.
29
A Constituio Federal de 1988 surge, porm, ainda sob o influxo do chamado Estado
Burocrtico, iniciado sob a Era Vargas em 1937 e cujo enfoque era o de conferir efetividade
ao aparelho estatal, a quem competiria assumir novas responsabilidades de ordens econmica
e social. O descompasso entre essa forma administrativa de Estado e o modelo poltico de
Estado adotado pelo Brasil a partir de 1984, com a transio democrtica (Estado
Democrtico Social), no tardou a ser percebido e evidenciou-se com a promulgao da
Constituio de 198816
.
A ausncia de sintonia entre os modelos poltico e administrativo do Estado
impulsionou a realizao, em 1995, de reforma administrativa (reforma gerencial ou de gesto
pblica)17
. O acmulo de responsabilidades prestacionais assumidas pelo Estado Social
ensejou a ineficincia e a insuficincia dos servios pblicos prestados populao, ao
mesmo tempo em que promoveu um aumento dos gastos pblicos. A reduo da mquina
estatal tornou-se medida imperiosa para conter o crescente endividamento pblico; o
redimensionamento da atuao estatal frente aos servios pblicos a serem prestados
populao revelou-se como providncia necessria busca da eficincia administrativa e
continuidade do desenvolvimento estrutural do pas18
.
Tal como explicitado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (documento
que apresentou as bases da reforma administrativa realizada no Brasil a partir de 1995), um
dos objetivos da reforma operada consistiu na busca do aumento da governana estatal, ou
seja, da capacidade de implantao eficiente de polticas pblicas, tendo como foco o
atendimento dos cidados19
.
O princpio da eficincia passou a exercer papel central no contexto da reforma
administrativa de gesto do Estado, sobretudo aps a promulgao da Emenda Constitucional
16
PEREIRA, Lus Carlos Bresser. Os primeiros passos da reforma gerencial do estado de 1995. Revista
eletrnica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n. 16,
dez./2008-fev./2009, p. 02-03. Disponvel em: . Acesso em 08/04/2016. 17
PEREIRA, Lus Carlos Bresser. Os primeiros passos da reforma gerencial do estado de 1995. Revista
eletrnica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n. 16,
dez./2008-fev./2009, p. 02-03. Disponvel em: . Acesso em 08/04/2016. 18
DUARTE, Luciana Gaspar Melquades; SILVA, Raquel Lemos Alves. As parcerias pblico-privadas na
administrao pblica moderna. Revista de direito administrativo, v. 265, jan.-abr./2014, p. 71-73. 19
MARE (Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado). Plano diretor da reforma do aparelho do
Estado. Braslia: Imprensa Oficial, set./1995. Disponvel em:
. Acesso em: 08/04/2016.
30
n 19/1998, cujo art. 3 alterou o caput do art. 37 da CF/1988, vinculando expressamente a
Administrao Pblica quele princpio20
.
Para a concretizao do princpio da eficincia, tornava-se imperiosa a adoo, pela
Administrao Pblica, de uma postura mais flexvel e paritria no seu relacionamento com o
administrado. Por um lado, necessrio seria o redimensionamento das prerrogativas
administrativas em busca de uma horizontalizao (no absoluta, obviamente) das relaes
entre Administrao e administrado; por outro, haver-se-ia de incrementar o uso de
mecanismos de atuao consensual nessas relaes, ampliando-se o espectro de negociaes
nelas envolvidas21
.
Tais medidas refletem o resultado da associao do modelo poltico de Estado
Democrtico Social ao modelo administrativo de um Estado de gesto pblica. Em
decorrncia dela, uma nova ordem de ideias ganharia espao no contexto do Direito
Administrativo brasileiro, pari passu com a mudana paradigmtica que se operava na relao
entre Administrao Pblica e administrado.
As categorias bsicas do Direito Administrativo, forjadas no sculo XIX, revelaram um
descompasso com a conformao social e seus anseios perante a Administrao Pblica,
sobretudo a partir da promulgao da Constituio Federal de 1988. Ao menos quatro
paradigmas do Direito Administrativo brasileiro passaram a ser alvo de questionamentos: o
princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado, a legalidade administrativa vista
como vinculao positiva lei, a intangibilidade do mrito administrativo e a unitariedade do
Poder Executivo (estrutura piramidal).
base das transformaes pelas quais vem passando o Direito Administrativo est a
sua constitucionalizao, tomando-se a democracia e os direitos fundamentais como valores
que estruturaro a atuao administrativa, a partir de princpios e regras que os veiculem22
.
Examinando a denominada supremacia do interesse pblico sobre o privado, Humberto
vila esclarece que ela tratada como norma-princpio voltada a regular as relaes entre o
20
No se deve perder de vista que o princpio setorial da eficincia administrativa, dirigido Administrao
Pblica e encartado no art. 37 da CF/1988 pela EC 19/1998, insere-se em um contexto mais amplo de princpio
da eficincia estatal, tido como vetor tico-jurdico do ordenamento constitucional brasileiro e princpio
implcito, extravel do regime republicano e do Estado Social e Democrtico de Direito (GABARDO, Emerson.
Princpio constitucional da eficincia administrativa. So Paulo: Dialtica, 2002, p. 88-90). 21
DUARTE, Luciana Gaspar Melquades; SILVA, Raquel Lemos Alves. As parcerias pblico-privadas na
administrao pblica moderna. Revista de direito administrativo, v. 265, jan.-abr./2014, p. 75-76. 22
BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalizao do direito administrativo no Brasil: um inventrio de avanos
e retrocessos. In: SOUZA NETO, Cludio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coord.). A constitucionalizao do
direito: fundamentos tericos e aplicaes especficas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 747-749.
31
particular e o Estado. Cuidando-se de princpio relacional, a supremacia do interesse pblico
resulta de uma ponderao em abstrato de interesses supostamente conflitantes, que se define,
tambm abstratamente, em prol do interesse pblico23
.
Humberto vila nega ao princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse
privado a qualidade de norma-princpio, tanto conceitualmente (a norma-princpio deve
permitir uma concretizao gradual e sua ponderao com outras normas-princpio deve se
dar no plano concreto e no no plano abstrato), quanto normativamente. Sob esse segundo
vis, o autor esclarece que o denominado princpio da supremacia carece de fundamento
jurdico-positivo de validade, padece de indeterminabilidade abstrata, dissocia interesses
indissociveis (pblicos e privados) e se contrape a postulados normativos como os da
proporcionalidade e da concordncia prtica24
.
Tambm nega vila ao princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse
privado a natureza jurdica de postulado normativo, seja em razo da dificuldade de se
delimitar o que se deva entender por interesse pblico, seja em razo da importncia do
interesse privado. Quanto ao primeiro ponto, pondera o autor que a impossibilidade de
dissociao entre interesses pblicos e privados, a pluralidade significativa e a indeterminao
23
VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da
supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 173-174. O artigo em questo foi
publicado pela primeira vez em 1998. 24
VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da
supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 183-204. O autor embasa a ausncia de
fundamento jurdico-positivo de validade do princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular a
partir do exame da Constituio Federal de 1988. Do texto constitucional, extrai-se uma profunda preocupao
de proteo aos direitos privados (liberdade, igualdade, cidadania, propriedade privada, dentre outros), alguns
enquadrados como direitos fundamentais, bem assim dignidade da pessoa humana, de modo que o afastamento
de tais direitos pressupe um nus argumentativo Administrao. Com base em tal premissa, o autor conclui
que, a ser possvel extrair o princpio de supremacia do ordenamento por intermdio de tcnica de deduo, seu
contedo no seria o de supremacia do interesse pblico sobre o particular. Alm disso, referido princpio revela-
se abstratamente indeterminvel, a comear pela impossibilidade de se descrever objetivamente o que seria
interesse pblico, uma vez que se trata de conceito jurdico indeterminado que se refere a variadas normas e
contedos, concretiza-se por procedimentos tanto administrativos quanto judiciais e se preenche a partir da
compreenso do que se entenda em cada lugar por Estado (ideia que tambm varia ao longo do tempo em uma
mesma comunidade). Essa indeterminabilidade, segundo o autor, macula a segurana jurdica ao desconsiderar o
postulado da explicitude das premissas. Outro fator que infirma a ideia de que o princpio da supremacia seria
uma norma-princpio reside na indissociabilidade entre interesses pblicos e privados, o que prejudica a ideia de
prevalncia de uns sobre os outros ou a de contradio entre eles. A atividade administrativa e os fins do Estado
conjugam elementos privados e pblicos. Por fim, o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o
privado contrapor-se-ia aos postulados da proporcionalidade e da concordncia prtica, os quais, vista de um
conflito entre normas-princpios, objetivam garantir, partindo da anlise da situao concreta, a mxima
realizao dos interesses abarcados no conflito, ideia que se ope ao estabelecimento de uma regra abstrata de
prevalncia, com a resoluo do conflito feito a priori. vila esclarece, ainda, que a posio privilegiada
ocupada pelos rgos administrativos na relao administrativa no corrobora, por si s, a existncia de um
princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado, tratando-se de norma procedimental e no
finalstica, voltada atuao impessoal e desinteressada do rgo pblico.
32
objetiva da expresso interesse pblico conferem ao propalado princpio a qualidade de
postulado tico-poltico (ideia representativa de uma necessidade racional para a comunidade
poltica) e no normativo25
.
Sobre a importncia do interesse privado, vila alude complexidade das relaes
administrativas atuais, que deixam de ser vistas apenas como relaes bipolares para
assumirem contornos multipolares. Aponta, ainda, a existncia de diversos interesses
qualificveis como pblicos e que podem, inclusive, em determinadas situaes, colidir entre
si, a exigir ponderao, bem como a presena de elementos privados contidos na definio de
interesse pblico. Mesmo os interesses privados no absorvidos pelo interesse pblico devem
ser alvo de ponderao no caso concreto. Nesse contexto, ganham espao as ideias de
administrao cooperativa, pautada em uma coordenao de interesses, cabendo a discusso
sobre como se deve promover a proteo de interesses no seio de uma sociedade complexa e
multicultural26-27
.
vila qualifica o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado como um
axioma, um dogma sem esteio na Constituio Federal de 198828
. Sendo-lhe negadas as
naturezas de norma-princpio e de postulado normativo, conclui o autor que o princpio da
supremacia do interesse pblico sobre o privado no pode nortear a exigncia, pela
25
VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da
supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 204-207. 26
VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da
supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 207-211. 27
Lus Roberto Barroso explicita que, no raro, a concretizao de um interesse pblico primrio perpassa,
necessariamente, pela satisfao de interesses privados. Cita como exemplos a garantia de preservao da
integridade fsica de um detento e da liberdade de expresso de um jornalista ou, ainda, a concesso da educao
primria de uma criana, que devem ser tutelados ainda que contrariamente vontade expressa de seus titulares
imediatos (BARROSO, Lus Roberto. Prefcio O Estado contemporneo, os direitos fundamentais e a
redefinio da supremacia do interesse pblico. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus
interesses privados: desconstruindo o princpio da supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, p. XIV). 28
VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da
supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 202. No mesmo sentido, Wilson Vieira
Loubet e Juliana Bonacorsi de Palma qualificam no apenas o princpio da supremacia do interesse pblico sobre
o privado como, tambm, o princpio da indisponibilidade do interesse pblico como construes tericas sem
previso normativa expressa (LOUBET, Wilson Vieira. O princpio da indisponibilidade do interesse pblico e
a administrao consensual, Braslia: Consulex, 2009, p. 64-66; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sano e
acordo na administrao pblica. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 176). Wilson Loubet conclui que o
reconhecimento do carter dogmtico (e no normativo) da indisponibilidade do interesse pblico conduz, por
consequncia, defesa da possibilidade de o Poder Pblico negociar e discutir o interesse pblico sob uma
perspectiva crtica e aderente realidade e aos anseios dos administrados. Juliana Palma parte da premissa, no
adotada no presente trabalho, da inexistncia de princpios implcitos no ordenamento jurdico brasileiro (idem,
p. 167, nota de rodap n 147). No entanto, sua concluso assemelha-se de Humberto vila, quanto ausncia
de carter normativo dos dois princpios do Direito Administrativo antes referidos.
33
Administrao ao particular, de adoo de determinada conduta. Tambm no pode o referido
princpio ser utilizado para interpretar regras existentes. A anlise de interesses abarcados em
determinada relao jurdico-administrativa deve pautar-se, portanto, na ponderao,
buscando-se a mxima proteo aos bens jurdicos nela envolvidos29
.
Maral Justen Filho, examinando o posicionamento doutrinrio que reconhece nos
princpios da supremacia e da indisponibilidade do interesse pblico (por ele tratados como
um nico princpio) o fundamento do regime de Direito Administrativo, a ele apresenta quatro
objees. Em primeiro lugar, afirma o autor que o Direito Administrativo no possui
fundamento nico, de modo que o princpio da supremacia e indisponibilidade do interesse
pblico, encontrando-se no mesmo nvel hierrquico que os demais princpios (a exemplo
daqueles que protegem valores como a propriedade e a liberdade privadas), no poder
exclu-los, aprioristicamente. A soluo h de ser buscada vista do caso concreto e pelo uso
da ponderao30
.
Em segundo lugar, constata Maral Justen Filho que, a rigor, no possvel falar-se em
um nico interesse pblico, havendo, ao revs, um plexo de interesses aptos a receber tal
qualificao, inclusive com a possibilidade de concretamente colidirem entre si. Logo,
qualquer utilizao do princpio da supremacia e indisponibilidade do interesse pblico
pressuporia, necessariamente, uma prvia ponderao para definio de qual seria o interesse
pblico a prevalecer no caso concreto, revelando-se a inutilidade da atuao a posteriori do
princpio31
.
O terceiro bice soerguido pelo autor reside na impropriedade da afirmao de
existncia de um verdadeiro conflito entre o interesse pblico e direitos subjetivos privados. O
reconhecimento desses ltimos pelo ordenamento jurdico confere-lhes proteo jurdica em
29
VILA, Humberto. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da
supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 214-215. importante esclarecer que
Celso Antonio Bandeira de Mello, em rebate s crticas lanadas ao princpio da supremacia do interesse pblico
sobre o privado, deixa claro que no adota as acepes de princpio tratadas nas obras de Alexy e de Dworkin.
Para o autor, haveria diferena entre princpio e norma, sendo aquele um alicerce do sistema, um fundamento
nuclear dele, integrativo do esprito das normas e elemento de sua interpretao. Haveria, assim, em seu
entender, equvoco da doutrina que critica o princpio da supremacia ao trat-lo sob acepo terminolgica
distinta daquela em que apresentado e explicado na sua obra (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de
direito administrativo. 32. ed. So Paulo: Malheiros, 2015, p. 54). A crtica lanada por Humberto vila ao
pensamento tradicional sobre o princpio da supremacia (no qual se insere o posicionamento de Celso Antonio
Bandeira de Mello) leva em considerao a multiplicidade de significados do termo princpio, refutando ao
princpio examinado as naturezas de norma-princpio e de postulado normativo e negando, fora dessas duas
qualificaes, a possibilidade de uso do princpio para impor exigncias de conduta a particulares ou para
estribar a interpretao normativa. 30
JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. 11. ed. So Paulo: RT, 2015, p. 131-133. 31
JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. 11. ed. So Paulo: RT, 2015, p. 133-134.
34
face de interesses inclusive pblicos contrapostos. Os limites nos quais o direito subjetivo
deve ceder espao ao interesse pblico devero, assim, ser previstos e determinados pela
ordem jurdica. Mesmo no conflito entre direitos (pblicos e privados) ou entre interesses
(pblicos e privados) no possvel estabelecer uma soluo de ponderao a priori sempre
aplicvel a tais casos32
.
Por fim, Maral Justen Filho salienta a dificuldade existente em se definir o que se deva
entender por interesse pblico. No atende a tal objetivo a delimitao negativa do conceito
(o que no se entende por interesse pblico33
) e tampouco a soluo de compreend-lo como
lugar-comum. Diante da impossibilidade de se conferir preciso ao conceito, torna-se invivel
a estruturao do regime jurdico administrativo em princpio que o toma como alicerce.
vista de tais bices, o autor prope que o verdadeiro fundamento do Direito Administrativo
estaria consignado na supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais. A realizao
desses direitos comporia, assim, o ncleo daquele Direito34
.
Paulo Ricardo Schier, admitindo a existncia do princpio da supremacia do interesse
pblico sobre o privado, critica a sua aplicao no mbito do Direito Administrativo, por
considerar que aludido princpio tem sido autoritariamente vislumbrado, na prtica, como
verdadeira clusula geral restritiva de direitos fundamentais35
.
32
JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. 11. ed. So Paulo: RT, 2015, p. 134-136. A
distino bsica adotada pelo autor entre direito subjetivo e interesse, com lastro nas doutrinas privatsticas de
Windscheid e Jhering, consiste na circunstncia de que, no direito subjetivo, a posio jurdica conferida pelo
ordenamento ao sujeito garante-lhe a possibilidade de exigir de outrem uma especfica conduta, relativamente a
um ou mais sujeitos. Esse dever jurdico atribudo a algum e passvel de exigibilidade pelo titular do direito no
existe quando se trata de interesse jurdico (idem, p. 134-135). 33
Nesse sentido, Maral Justen Filho enfatiza que o interesse pblico no se confunde com o interesse: 1) do
Estado (havendo interesses pblicos no estatais); 2) da Administrao (o autor nega o que se convencionou
denominar de interesse secundrio, tratando-se, em verdade, em seu entender, de convenincias
circunstanciais, no jungidas ao mbito jurdico); 3) do agente pblico (que se configura, em verdade, como
interesse privado); 4) da sociedade (hiptese em que have
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