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IX Seminário Internacional Redes Educativas e Tecnologias. Rio de Janeiro, de 05 a 08 de junho de 2017 1
TESSITURAS TRANSDISCIPLINARES:
Um olhar sobre as dinâmicas marinha e costeira
Elza Neffa1
Mário Soares 2
Krishna Castro3
INTRODUÇÃO
Um dos maiores problemas enfrentados pelos educadores brasileiros refere-se à dificuldade
de compreender a sustentabilidade e o diálogo dos saberes e de ensaiá-los nas suas práticas e nos
projetos político-pedagógicos das unidades escolares onde atuam. Com a intenção de contribuir
para que o ser humano repense a si mesmo em sua forma de viver em sociedade e de se relacionar
com os outros, com os modelos de sociedade e com o meio ambiente, o Projeto Educação em
Ciência/Educação Ambiental em Ciências do Mar4 assume o desafio de transferir conhecimentos
científicos sobre o ambiente marinho brasileiro gerados por pesquisadores de diferentes áreas do
conhecimento (biologia, oceanografia, física, química, engenharia, educação, dentre outras) para os
profissionais de educação das redes públicas municipais e estaduais de regiões costeiras do Brasil,
com vistas a disseminar, na prática desses educadores, a abordagem metodológica transdisciplinar
que instrumentaliza o ato educativo para ver a realidade dinâmica, a totalidade com suas múltiplias
determinações, para além da aparência fenomênica, com o escopo de transformá-la. Nessa tarefa ,
algumas questões se colocam:
como forjar um novo espírito científico no ensino de Ciências no Brasil, de modo a formar
cidadãos capazes de buscar soluções para os problemas de conservação da sociobiodiversidade
brasileira, a partir de um paradigma diferente daquele que os criou?
que estratégias desenvolver para formar sujeitos solidários, críticos, intervenientes e autônomos,
capazes de internalizar uma visão integrada do meio ambiente e de atuar promovendo a
sustentabilidade ambiental, a prudência econômica e a justiça social?
1 Coordenadora-Adjunta do PPG-MA; Professora da Faculdade de Educação, Núcleo de Referência em Educação
Ambiental da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: elzaneffa@gmail.com
2 Coordenador-Adjunto do PPG-MA/UERJ; Professor da Faculdade de Oceanografia, Núcleo de Estudo de Manguezais
(NEMA), Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: mariolgs@uerj.br
3 Pós-Doc em Ciências Ambientais PPG-MA/UERJ. E-mail: krishnaneffa@gmail.com
4 Este projeto insere-se no Projeto Processos Oceanográficos Integrados da Plataforma ao Talude dos Institutos
Nacionais de Ciência e Tecnologia em Ciências do Mar – INCT-PRO-OCEANO que, dentre outros objetivos, pretende
sensibilizar para a importância da conservação da cultura e da biodiversidade da Amazônia Azul – patrimônio repleto
de riquezas minerais e biológicas – em mais de 4.000.000 km2 do território brasileiro.
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Para contemplar essas e outras questões, a Educação Ambiental em Ciências do Mar do
INCT-PRO-OCEANO propõe que, no processo educativo de formação humana e de transformação
social, seja incorporada a perspectiva metodológica transdisciplinar (NICOLESCU, 2003) como
forma de orientar os educadores para a necessária compreensão da relação teoria e prática e para a
aproximação do sujeito à sua realidade mais ampla.
Estimular o avanço da ciência e da tecnologia no Brasil em temas de fronteira demanda a
disseminação de saberes científicos que contribuam para a construção da mentalidade integrada dos
atores sociais das zonas costeiras brasileiras. A problematização das questões relacionadas ao
ambiente social e marinho e o trabalho educativo a partir de temas geradores, em um recorte
transversal, demanda a instrumentalização de profissionais da educação na abordagem
metodológica transdisciplinar, de modo a transmutar as práticas pedagógicas disseminadas nas
escolas públicas brasileiras com base nas descobertas científicas trazidas à tona durante as pesquisas
dos complexos ecossistemas marítimos realizadas pelos cientistas do INCT. A incorporação dessa
metodologia oportuniza o entendimento das complexas redes conceituais significadas nos
conteúdos dos processos de ensino-aprendizagem e a superação do conhecimento disciplinar que,
fragmentado em compartimentos, dificulta a resolução dos problemas socioeconômicos, ambientais,
emocionais, psíquicos e existenciais vivenciados pelos seres humanos na contemporaneidade.
Educar a partir de temas geradores (FREIRE, 1983; 1984) demanda novas interpretações
fundamentadas nas noções de complementaridade, interdependência e subjetividade, inerentes à
linguagem simbólica que emerge no âmbito da mecânica quântica e das revoluções informática e
biológica.
A fim de oferecer ao professor outras possibilidades de produção do conhecimento científico
para superar o racionalismo moderno que dificulta uma interpretação dinâmica e integrada do
mundo incerto e complexo da atualidade, este artigo ilustra a aplicação da abordagem
transdisciplinar na interpretação dos fenômenos marinhos e costeiros brasileiros objetivando
estimular o exercício reflexivo de religação das áreas do saber rumo à diluição das fronteiras do
conhecimento.
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A SUSTENTABILIDADE COMO IDEÁRIO EM CONSTRUÇÃO NA
CONTEMPORANEIDADE
A Educação Ambiental em Ciências do Mar entende que no processo educativo contínuo e
permanente de transformação social encontra-se o desafio de considerar a sustentabilidade como
um
conjunto dos processos e ações que se destinam a manter a vitalidade e a integridade da Mãe
Terra, a preservação de seus ecossistemas com todos os elementos físicos, químicos,
ecológicos que possibilitam a existência e a reprodução da vida, o atendimento das
necessidades da presente e das futuras gerações, e a continuidade, a expansão e a realização das
potencialidades da civilização humana em suas várias expressões (BOFF, 2012, p. 14).
Embora registros de emprego do termo denotem essa preocupação há mais de 400 anos, a
partir das reuniões organizadas pela ONU nos anos 70 do século XX, a sustentabilidade consolida-se,
em 1987, como um conceito associado à noção de desenvolvimento sustentável, no âmbito do
informe final, do chamado Relatório Brundtland, “Nosso Futuro Comum” da Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Mais tarde, desponta como aspecto central do
documento-base da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CNUMAD) - “Cúpula da Terra” ou “Rio-92”- e como ferramenta complexa norteadora de valores,
parâmetros e princípios que vão sendo delineados, aos poucos, através de premissas filosóficas e
epistemológicas para orientar uma nova perspectiva civilizatória ou um futuro sustentável.
Concebida como um mosaico conceitual e valorativo, cujas interseções envolvem a
amplitude de aspectos de uma determinada realidade: ser economicamente viável, socialmente
inclusivo, politicamente ético, culturalmente aceito, ambientalmente equilibrado e espiritualmente
sincronizado, a sustentabilidade tem seus princípios expressos na Carta da Terra (2000) e
postulados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental do Conselho Nacional
de Educação e na Resolução n.2 de 15 de junho de 2012 (CNE), representando perspectivas para a
educação ambiental brasileira (NEFFA et al, 2014).
Em nosso entendimento, a sustentabilidade depende da coesão dos seres humanos em torno
de um objetivo comum que, por sua vez, demanda mudança no paradigma ético-cultural das
relações sociais, ambientais e econômicas, aproximando-se da ideia de ecodesenvolvimento. Tal
mudança sugere ações educativas que sensibilizem os atores sociais para o seu papel de produtor e
produto de uma mentalidade cujas bases construtivas das relações estabelecidas no processo
histórico-vital assentem-se, também, na conservação da biodiversidade marinha.
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Na ótica do ecodesenvolvimento de Ignacy Sachs (2007), cada ecorregião busca, a partir de
suas especificidades, as soluções para os seus problemas – levando em conta não somente os dados
ecológicos mas, também, os socioculturais, na perspectiva daquilo que escapa ao modelo de
desenvolvimento que utiliza, basicamente, o crescimento econômico como única medida de
eficiência. Essa proposta enfatiza a valorização dos elementos naturais locais e a satisfação das
necessidades sociais (dimensão ecorregional), o respeito às diversidades, à cultura e à qualidade das
relações humanas (dimensão da realização humana), a ética da solidariedade e a maximização dos
recursos renováveis (dimensão da solidariedade diacrônica5), o desenvolvimento de tecnologias
inovadoras com enfoque educacional, a partir da observação da fragilidade dos ecossistemas
(dimensão da ecotécnica6) e da sensibilização para a crítica ao modelo capitalista de produção, que
é degradante ambientalmente e excludente socialmente. Tendo como base um sistema de valores
ético-responsáveis por mudanças qualitativas nas relações entre as sociedades e a natureza
(dimensão educacional), essa proposta não aceita fórmulas universalistas que pretendem ser
aplicadas em qualquer situação. Em outras palavras, o ecodesenvolvimento parte da observação das
particularidades de cada região no que diz respeito à população, valores, recursos, necessidades de
habitação, saúde, educação e estilos de vida, sem buscar padrões globais hegemônicos de produção
ou consumo.
O estabelecimento do diálogo entre o ser humano e o lugar como um espaço de construção e
reconstrução da subjetividade pretende superar a abordagem tradicional de ensino que trata a
natureza como um fator externo ao processo histórico e os conteúdos programáticos como matérias
descontextualizadas, dissociadas das contradições e das mediações que a totalidade social encerra,
reduzidas a temas/problemas do meio físico e dimensionadas como exteriores à vida humana, o que
contribui para desvirtuar a formação do sujeito protagonista-histórico (NEFFA; RITTO, 2014).
A percepção integrada e mutidimensional da realidade demanda um movimento de
articulação do processo ensino-aprendizagem que a transdisciplinaridade é capaz de estabelecer na
produção/socialização do conhecimento, tendo em vista sua função de resgatar o caráter dialógico
dos saberes para estabelecer caminhos que engendrem problematizações e passeios fora das zonas
de conforto, das certezas, dos hábitos e acomodações, com vistas a intervir na sociedade,
transformando-a.
5 Solidariedade diacrônica -princípio ético inerente à solidariedade. Diz respeito às evoluções que ocorrem com o
tempo. 6 Ecotécnica – intervenção tecnológica que visa à resolução de problemas ambientais com o uso eficiente de bens
naturais ao menor custo energético possível.
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Na perspectiva freiriana (1983),
a problematização insere-se como estratégia educativa, sobretudo, para a percepção da
realidade em sua totalidade, em uma dinâmica que vai das partes, relações e contradições, para
a integralidade que, a partir da abstração, permite que o sujeito social adquira uma visão crítica
e profunda de suas condições de vida e de ação. Nessa ótica, a preservação da capacidade de
pensar autonomamente em conjunção com a participação no processo de problematização
inclui o sujeito nas discussões pela via do conteúdo e o prepara para o processo de decisão.
Partir da realidade concreta, propiciar a criação de situações nas quais o sujeito possa
incorporar o seu referencial de mundo, identificar o que precisa ser mudado na realidade e
buscar os conhecimentos necessários à sua intervenção orienta a construção do conhecimento
com base na preservação da autonomia do ator social (NEFFA; RITTO, 2014, p. 116).
Essa educação, na concepção de Edgar Morin (2001; 2005; 2007), exige um esforço
transdisciplinar que seja capaz de rejuntar ciência e humanidades e de romper a dicotomia entre
natureza e cultura, visando à integralidade das ações e à formação ética do sujeito humanizado.
Enquanto espaço educador sustentável, a escola se constitui como locus de vivências, de
convivências e de formas de pensar que possibilitam, em suas estruturas de aprendizagem, a
integração da ciência com a política, da ciência com as artes, da ciência com o cotidiano da vida, da
ciência com os saberes tradicionais comunitários e com os processos de religação do ser humano ao
Cosmos. A construção da cultura do mundo do amanhã exige
uma escola expandida para além de seus muros e da suposta preparação teórica para a vida;
interativa; conectada à realidade cotidiana, aos conflitos socioambientais e ao território local;
articulada à atividade produtiva, ao mundo do trabalho e à dimensão da cidadania participativa;
inclusiva; humanizadora; fomentadora de uma práxis educacional dialógica; política;
libertadora; aberta à renovação contínua; orientada ao acolhimento da transdisciplinaridade e
da complexidade na interpretação da realidade; promotora de condições de estabelecimento de
laços afetivos e amorosos entre as pessoas; flexível aos processos de produção, acesso e uso da
informação; respeitadora das particularidades de cada comunidade e dos interesses, desejos,
sonhos e utopias das pessoas envolvidas no processo educacional; atenta ao ritmo individual e
grupal dos educandos; estimuladora de pesquisas em temáticas significativas inerentes à
dinâmica relacional existente entre aspectos diferentes de uma mesma realidade; provedora de
fóruns de decisões legitimados pelo coletivo e de novos espaços de experiências, convivências
e aprendizagens; promotora de educação continuada para instrumentalizar os educadores de
modo a que dominem teorias pedagógicas que permitam refletir sobre suas práticas e a criarem,
com autonomia, novos métodos de educação centrados na lógica da vida e na potência de agir
no mundo (NEFFA, 2017, p. 227).
Mas, para que essa integração aconteça, é preciso resgatar o caráter de totalidade do
conhecimento – a unidade da diversidade.
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A TRANSDISCIPLINARIDADE COMO FORMA DE EDUCAR PARA VER A
TOTALIDADE
Como movimento de articulação do processo ensino-aprendizagem para ver a dinâmica da
realidade, a transdisciplinaridade é fundamental
na busca de uma nova estrutura capaz de unir vida e consciência e de recriar uma cultura do
questionamento e do imaginário, uma cultura que tenha em seu cerne a valorização do ser,
transpondo a cultura do saber e do saber para ter, na perspectiva de recompor o pensamento
com base em um novo movimento paradigmático capaz de se manifestar na transmutação da
ciência objetiva para a ciência epistêmica, das certezas para as probabilidades, da estrutura para
o processo (...) por abarcar perspectivas e interdisciplinas que possibilitam o diálogo com
outras formas de saberes e práticas passíveis de auxiliar a articulação entre educação e trabalho
na implementação e na condução de estratégias que possam levar a uma nova práxis (NEFFA,
2017, p. 38- 39).
Enquanto a abordagem analítica focaliza-se sobre os elementos da natureza, detalhando-os
com precisão e modificando suas variáveis de forma isolada no sentido de validar os fatos obtidos
por provas experimentais no âmbito de uma teoria, a abordagem transdisciplinar se interessa pelas
interações entre esses mesmos elementos, pela percepção global dos seus efeitos interativos, pela
religação dos saberes, considerando as dinâmicas de evolução, as relações no tempo e a inclusão em
um quadro de referências mais amplo (NICOLESCU, 1999).
Severino Antônio elucida os pressupostos em que se baseia a transdisciplinaridade ao
afirmar que essa metodologia
é um modo de conhecer e de conhecer o conhecimento. Um modo de pensar e de pensar o
pensamento. Recusa a separação rígida dos saberes e os especialismos cegos. Religa o que o
pensamento cartesiano separou e os mecanicismos dilaceraram. Nega e transcende a
fragmentação do conhecimento, o que devasta a compreensão, que atomiza a existência, que
desfigura a imagem de nós mesmos e do mundo. [...] Recria as concepções e as práticas do
ensinar e do aprender: assume a atitude multidisciplinar e a interdisciplinar, e vai ainda além:
conjuga o que existe de convergência e interação nas disciplinas, entre elas e para além delas.
Não é apenas um novo método, mas uma nova concepção. Reconhece a unidade complexa do
ser humano e do universo, e o que existe entre eles. Reconhece o real como rede de múltiplas
interações. A vida como teia. Como tessitura de variadas vozes. Como campos de sentidos e
energias, em complexas e dinâmicas interconexões (2002, pp. 27-28).
Incorporada à prática pedagógica, essa nova atitude científica cria um espaço para a
construção de uma rede de saberes que, articulada à realidade da vida, traz sentido à busca do
conhecimento e à ação transformadora, ampliando a educação para outras formas de interpretação
da realidade e de formação humana.
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Para melhor compreensão da difícil tarefa de promover as interconexões entre as partes de
um todo, propugnada pela transdisciplinaridade, Neffa (2017) sintetizou os principais elementos
diferenciadores das formas de interpretar o mundo no “Quadro comparativo das abordagens
metodológicas analítica e transdisciplinar”, abaixo explicitado.
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Fonte: Neffa, Rio de Janeiro, 2017.
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A PESCA MARINHA COMO TEMA GERADOR À LUZ DA
TRANSDISCIPLINARIDADE
As problematizações dos temas relacionados às Ciências do Mar objetivam disseminar
posturas e práticas transdisciplinares no processo ensino-aprendizagem, de modo a que os
educadores produzam conhecimento em rede integrando as descobertas científicas sobre os
ecossistemas costeiros e marinhos aos conteúdos programáticos do Ensino Fundamental, em
consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais (MEC, 1997) e com os Projetos Político-
Pedagógicos das escolas-alvo do Projeto Educação em Ciências/Educação Ambiental em Ciências
do Mar.
Como o tema gerador - pesca marinha - demanda novas interpretações, ele foi estruturado,
neste estudo, para que o educador compreenda as possibilidades de que dispõe para orientar suas
práticas na produção de um conhecimento científico capaz de superar a perspectiva analítica, pois o
racionalismo moderno dificulta uma interpretação dinâmica e integrada do mundo incerto e
complexo da atualidade.
A pesca marinha - que se desdobra em pesca artesanal, industrial e amadora - é uma das
atividades mais tradicionais no Brasil e, por isso, foi adotada como tema gerador dessa análise.
Além de possibilitar a geração de trabalho e renda nas regiões litorâneas, este tema nos remete às
dimensões da convivência social, dos significados culturais e das relações afetivas que envolvem as
pessoas que dela participam, direta ou indiretamente. Não podemos esquecer, também, que a pesca
fornece uma importante e saudável fonte de proteína animal.
Para ilustrar a problemática da pesca incorporada ao estudo como tema gerador, trabalhada
sob o viés transdisciplinar, elaboramos o organograma (figura 1) abaixo, com vistas a clarificar a
análise dos elementos que alicerçam a proposta de educar para ver a totalidade, onde tudo se
relaciona de forma interdependente. Nessa perspectiva, "o sentido das coisas não está na aparência
fenomênica da realidade, mas na sua essência que, enquanto totalidade, se expressa na manifestação
das múltiplas determinações que se negam, se enriquecem e se contradizem" (NEFFA, 2017, p. 28).
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Fonte: os autores, 2017.
Ao longo da história, comunidades tradicionais acumularam um saber construído
empiricamente, através do qual os recursos pesqueiros tem sido utilizados ao longo de gerações,
caracterizando uma forma sustentável de exploração. O saber científico, por sua vez, baseia-se em
dados e observações de fenômenos físicos, químicos, biológicos e antropossociais, e é produzido a
partir de metodologias científicas que podem ser excludentes ou complementares. Na prática, a
incorporação desses saberes na regulamentação da atividade pesqueira e na elaboração de políticas
públicas tem ocorrido de forma desequilibrada, prevalecendo o saber científico em detrimento da
integração dos conhecimentos, caminho este que permite às comunidades costeiras usufruírem dos
ambientes marinhos de forma sustentável.
A sustentabilidade dos recursos pesqueiros ocorre quando há equilíbrio entre sua exploração
e sua conservação.
A exploração pode ser feita de forma artesanal ou industrial, sendo esta última responsável
pelo maior impacto sobre a vida marinha por contribuir para a diminuição da população biológica
explorada (peixes, crustáceos e moluscos). Para que as espécies marinhas sejam exploradas sem
correr o risco de extinção, é necessário que conhecimentos sejam elaborados sobre as áreas de
berçário, de reprodução, de alimentação, ou seja, que o habitat seja conhecido para que possa ser
conservado. Invariavelmente, o conhecimento tradicional abarca as particularidades de cada caso
(e.g. biológicas, geográficas, ambientais, sociais) de forma mais apropriada mas, normalmente, o
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que prevalece é o conhecimento científico por ser considerado mais robusto e, por isso, legitimado
como verdadeiro.
A partir desses conhecimentos é possível determinar políticas públicas de conservação das
espécies que abordem aspectos relacionados ao manejo de estoques. Controlado por variáveis
climáticas e oceanográficas (físicas, químicas, geológicas, biológicas), este estoque sob pressão, por
sua vez, depende da capacidade de suporte (quanto pode ser capturado sem comprometer a
perpetuação da população explorada); da definição de critérios de captura (épocas e locais, tamanho
do pescado, apetrechos utilizados na pesca – rede, anzol, sarrafo etc.), dos incentivos fiscais, das
políticas de exploração e defeso e da fiscalização.
A sucinta análise da temática pesca marinha pretendeu demonstrar que a compreensão da
totalidade do fenômeno, em suas múltiplas determinações, é fundamental para a articulação
teoria/prática que se alicerça nos fundamentos do ecodesenvolvimento, cujos pilares apóiam-se na
lógica da sustentabilidade.
Esse novo olhar sobre o mundo como um todo indiviso, trazido pela Teoria Quântica, no
qual as partes do universo, incluindo o observador e seus instrumentos de observação, se unem em
uma totalidade (BOHM, 1980), é fundamental para a superação da visão fragmentária que
obstaculiza a aquisição da visão integrada e multidimensional da realidade e a formação de sujeitos
criativos e conscientes do seu papel de protagonistas na tessitura de redes interativas.
BREVES APONTAMENTOS DE UMA PRÁXIS EDUCATIVA
TRANSDISCIPLINAR
Em busca da restauração de significações humanas do conhecimento e de ações
transformadoras, tecemos considerações sobre alternativas metodológicas que estabelecem
interconexões entre temáticas socioambientais relacionadas às Ciências do Mar, passíveis de
análises contextualizadas nos processos educativos, como a pesca marinha por exemplo, e saberes e
métodos que articulam ciências sociais e ciências naturais, na perspectiva de apontar caminhos para
uma práxis educativa que integre os saberes no processo de construção da cultura do mundo do
amanhã.
Tal práxis exige estratégias de ensino-aprendizagem que quebrem as resistências às
mudanças e às inovações e assumam configurações transdisciplinares na transferência das ações de
ensino para o aluno instrumentalizando-o para contextualizar e problematizar temáticas
relacionadas à sua vida e à sociedade onde se insere, tornando-as significativas e propositivas de
redes de saberes e de fazeres integradores e fomentadores de mudanças socioambientais locais. Tais
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inovações respondem às demandas de uma sociedade que transforma a relação homem-mundo na
contemporaneidade e desafia o sujeito a captar e a compreender uma ampla gama de informações e
tecnologias, a criar outros padrões de pensamento e de comunicação e a desenvolver novos
conceitos capazes de resolver e avaliar velhos problemas com base em novos paradigmas7, ao
mesmo tempo que ajudam a instaurar profundos processos de auto-reflexão, fundamentais aos
mecanismos de enfrentamento da "sociedade do cansaço" (HAN, 2015). Uma sociedade que deixou
de ser a sociedade disciplinar foucaultiana para ser a "sociedade do desempenho", cuja dinâmica
resulta na guerra do sujeito consigo mesmo em processos de auto-agressão, de auto-fiscalização e
de auto-acusação destrutiva geradores da depressão e do sentimento do fracasso. Como resistência a
esses processos impositivos e opressivos, a aprendizagem de ver a totalidade, que a
transdisciplinaridade nos convida, significa "habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-
aproximar-se-de-si" (HAN, 2015, p. 51).
REFERÊNCIAS
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7 A noção de paradigma, aqui apresentada, parte da concepção de Kuhn (1997), em sua obra A estrutura das revoluções
científicas, que o define como “o conjunto das crenças, dos valores reconhecidos e das técnicas comuns aos membros
de um determinado grupo”. A análise incorpora, também, a proposta de Edgar Morin (2007) que conceitua paradigma
através de um enfoque relacional em que conceitos-mestres sobrepõem-se à teorias rivais sem fazê-las desaparecer.
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NEFFA, Elza; CAVALCANTE, Deise Keller; MELLO, Maristela Barenco de (orgs.). Saberes e práticas de Educação
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SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desen volvimento. São Paulo: Cortez, 2007.
RESUMO
Este artigo pretende estimular o ensino em redes de conhecimento e contribuir para a socialização da ciência
em temas de fronteira. Para tanto, aponta elementos para aplicação da metodologia transdisciplinar na
prática pedagógica dos educadores objetivando instrumentalizá-los para compreender a problemática da
sustentabilidade socioambiental, ensaiar o diálogo dos saberes nos processos formativos e transmutar as
práticas pedagógicas disseminadas das unidades escolares onde atuam, com base nas descobertas científicas
trazidas à tona pelas pesquisas realizadas pelos cientistas do INCT-PRO-OCEANO sobre a complexidade dos
ecossistemas marinhos brasileiros. A incorporação da transdisciplinaridade oportuniza o entendimento das
complexas redes conceituais presentes nos processos de ensino-aprendizagem e a superação do
conhecimento disciplinar que dificulta a resolução dos problemas socioeconômicos, ambientais, emocionais,
psíquicos e existenciais vivenciados pelos seres humanos na contemporaneidade. A problematização das
questões relacionadas ao ambiente social e marinho e o trabalho educativo a partir de temas geradores, em
um recorte transversal, faculta o entendimento da interconexão existente entre sociedade e natureza. Nesse
sentido, a compreensão da relação teoria e prática e a aproximação do sujeito à realidade concreta demanda
a interligação de saberes que contribuam para a construção da mentalidade integrada dos atores sociais das
zonas costeiras brasileiras.
Palavras-chave: Redes de conhecimento. Ciências do mar. Transdisciplinaridade. Formação humana.
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