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Revista Brasileira de Direito Civil
ISSN 2358-6974
VOLUME 6
OUT/DEZ 2015
Doutrina Nacional / Aline de Miranda Valverde Terra / Daniela de
Carvalho Mucilo / Daniel Bucar/ Luciano L. Figueiredo/ Paula Greco
Bandeira / Rafael Ferreira Bizelli
Doutrina Estrangeira / Lorenzo Mezzasoma
Pareceres / Gustavo Tepedino
Vdeos e udios / Heloisa Helena Barboza
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 2
APRESENTAO
A Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil tem por objetivo fomentar o
dilogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades
doutrinarias, jurisprudenciais e legislativas no ambito do direito civil e de areas
afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e a experincia comparada, que
valorize a abordagem histrica, social e cultural dos institutos jurdicos.
A RBDCivil composta das seguintes sees:
Editorial;
Doutrina:
(i) doutrina nacional;
(ii) doutrina estrangeira;
(iii) jurisprudncia comentada;
(iv) pareceres;
Atualidades;
Vdeos e udios.
Endereo para contato:
Rua Primeiro de Maro, 23 10 andar
20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Tel.: (55) (21) 2505 3650
Fax: (55) (21) 2531 7072
E-mail: rbdcivil@ibdcivil.org.br
mailto:rbdcivil@ibdcivil.org.br
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Diretor
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Universit degli Studi di Camerino,
Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela
Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado
Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Universit degli Studi di
Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil.
Luiz Edson Fachin Doutor em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paran, Brasil.
Paulo Lbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de So Paulo, Professor
Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Pietro Perlingieri Professor Emrito da Universit del Sannio. Presidente da Societ
Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Eduardo Nunes de Souza
Fabiano Pinto de Magalhes
Louise Vago Matieli
Paula Greco Bandeira
Tatiana Quintela Bastos
EXPEDIENTE
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Editorial
Novas famlias entre autonomia existencial e tutela de vulnerabilidades
Gustavo Tepedino
6
Doutrina nacional
A clusula resolutiva expressa e o contrato incompleto como
instrumentos de gesto de risco nos contratos Aline de Miranda
Valverde Terra e Paula Greco Bandeira
Situaes jurdicas patrimoniais: funcionalizao ou comunitarismo?
Daniel Bucar e Daniela de Carvalho Mucilo
Alimentos compensatrios: compensao econmica e equilbrio
patrimonial Luciano L. Figueiredo
Contratos existenciais: contextualizao, conceito e interesses
extrapatrimoniais Rafael Ferreira Bizelli
9
26
42
69
Doutrina estrangeira
Disciplina del contratto, tutela del contraente debole e valori
costituzionali Lorenzo Mezzasoma
95
Pareceres
A cobrana de direitos autorais sobre as obras musicais e fonogramas
transmitidos via Internet Gustavo Tepedino
128
SUMRIO
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 5
Vdeos e udios
Dez anos do Cdigo Civil: como tratar os efeitos jurdicos da
biotecnologia? Palestra proferida pela Professora Heloisa Helena
Barboza
--
Submisso de artigos
Saiba como fazer a submisso do seu artigo para a Revista Brasileira de
Direito Civil RBDCivil
151
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 6
NOVAS FAMLIAS ENTRE AUTONOMIA EXISTENCIAL E TUTELA DE
VULNERABILIDADES
Gustavo Tepedino
A evoluo do tratamento jurdico das famlias revela movimento pendular
entre dois valores caros ao atual sistema jurdico. Em primeiro lugar, a necessidade de se
assegurar a liberdade nas escolhas existenciais que, na intimidade do recesso familiar, possa
propiciar o desenvolvimento pleno da personalidade de seus integrantes. Esse o propsito do
art. 1.513 do Cdigo Civil: defeso a qualquer pessoa, de direito pblico ou privado,
interferir na comunho de vida instituda pela famlia. Por outro lado, a tutela das
vulnerabilidades e das assimetrias econmicas e informativas, para que a comunho plena
de vida se estabelea em ambiente de igualdade de direitos e deveres (art. 1.511, Cdigo
Civil, ex vi do art. 226, 5, C.R.), com o efetivo respeito da liberdade individual. Tendo-se
presentes esses dois vetores, e diante das intensas modificaes ocorridas nas ltimas
dcadas na estrutura das entidades familiares, torna-se indispensvel a reformulao dos
critrios interpretativos, a despeito da resilincia, de alguns setores da doutrina e da
magistratura, de admitir a incompatibilidade entre antigos dogmas de cunho religioso e
poltico com to radicais transformaes fenomenolgica, percebida na sociedade
ocidental, e axiolgica, promovida pela legalidade constitucional.
A Constituio da Repblica consagrou nova tbua de valores, da qual se
pode extrair a transformao do conceito de unidade familiar que sempre esteve na base do
sistema. Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230, C.R., que o centro da tutela constitucional
se desloca do casamento para as relaes familiares dele (mas no unicamente dele)
decorrentes; e que a milenar proteo da famlia como instituio, unidade de produo e
reproduo dos valores culturais, ticos, religiosos e econmicos, d lugar tutela
essencialmente funcionalizada dignidade de seus integrantes e ao desenvolvimento da
personalidade dos filhos. De outra forma no se consegue explicar a proteo constitucional
s entidades familiares no fundadas no casamento (art. 226, 3) e s famlias
monoparentais (art. 226, 4); a igualdade de direitos entre homem e mulher
EDITORIAL
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 7
na sociedade conjugal (art. 226, 5); a garantia da possibilidade de dissoluo da sociedade
conjugal independentemente de culpa (art. 226, 6); o planejamento familiar voltado para
os princpios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsvel (art. 226, 7) e
a previso de ostensiva interveno estatal no ncleo familiar no sentido de proteger seus
integrantes e coibir a violncia domstica (art. 226, 8).
A hostilidade do legislador pr-constitucional s interferncias exgenas
na estrutura familiar e a escancarada proteo do vnculo conjugal e da coeso formal da
famlia, ainda que em detrimento da realizao pessoal de seus integrantes
particularmente no que se refere mulher e aos filhos, inteiramente subjugados figura do
marido justificava-se em benefcio da paz domstica. Por maioria de razo, a proteo
dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensvel, em
tal perspectiva, a averso do Cdigo Civil de 1916 aos relacionamentos extraconjugais,
simbolizados pelo estigma da concubina. O sacrifcio individual, em todas as hipteses de
fracasso no relacionamento conjugal, era largamente compensado, na tica do sistema, pela
preservao da clula mater da sociedade, instituio essencial ordem pblica e modelada
sob o paradigma patriarcal.
O constituinte de 1988, todavia, alm dos dispositivos acima enunciados,
consagrou, no art. 1, III, entre os princpios fundamentais da Repblica, que antecedem todo
o texto maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a
superposio de qualquer estrutura institucional tutela de seus integrantes, mesmo em se
tratando de instituies com status constitucional, como o caso da empresa, da propriedade
e da famlia. Assim sendo, a famlia deixa de ter valor intrnseco, como instituio capaz de
merecer tutela jurdica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira
instrumental, tutelada na medida em que e somente na exata medida em que se
constitua em um ncleo intermedirio de autonomia existencial e de desenvolvimento da
personalidade dos filhos, com a promoo isonmica e democrtica da dignidade de seus
integrantes.
O afeto torna-se, nessa medida, elemento definidor de situaes jurdicas,
ampliando-se a relao de filiao pela posse de estado de filho e flexibilizando-se, com
benfazeja elasticidade, os requisitos para a constituio da famlia. O direito de famlia passa
a atribuir particular importncia (no afetividade como declarao subjetiva ou obscura
reserva mental de sentimentos no demonstrados, mas) percepo do sentimento do afeto
na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida comunitria. Nessa esteira, situa-
se a ampla admissibilidade, pela jurisprudncia atual, de entidades familiares
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 8
extraconjugais, incluindo-se a unio de pessoas do mesmo sexo, as famlias simultneas,
cuja repercusso geral foi reconhecida (STF, RG no ARE 656.298/SE), alm das unies
poliafetivas, reguladas pelo tabelionato (escritura pblica foi lavrada pelo 15 Ofcio de
Notas/RJ para contratualizar unio entre 3 mulheres), e cuja eficcia, no mbito do direito
de famlia, ainda objeto de controvrsia, justamente porque o conceito de famlia h de ser
necessariamente elstico, em contnua evoluo (cfr. )
Entretanto, h de se cuidar para que no se banalizem os sentimentos e o
afeto, submetidos percepo valorativa de cada magistrado ou, pior, s pretenses egostas
e patrimonialistas de protagonistas de conflitos de interesses. E o melhor antdoto para tais
riscos mostra-se o balizamento do merecimento de tutela das relaes afetivas pelos valores
normativos constitucionais (democracia, igualdade, solidariedade, dignidade) que permeiam
a legislao infraconstitucional.
No cenrio da vida como ela , o amor por vezes falta, o egosmo aflora e
os deveres estabelecidos nas relaes afetivas devem ser integralmente preservados. A
alteridade tem consequncias para o constituinte. como se a legalidade constitucional se
valesse da percepo do afeto para imediatamente impregn-la e plasm-la com os valores
constitucionais, vinculando as relaes jurdicas a deveres de solidariedade e igualdade.
Torna-se indispensvel, portanto, uma vez introduzida a realidade da vida, do amor e do
afeto na experincia normativa, que no se releguem as relaes de famlia pura
espontaneidade, desprovida de valores jurdicos, deixando-se em segundo plano os deveres
constitucionais a que corresponde o amor responsvel. Autonomia total para os arranjos
familiares, sendo a responsabilidade pelo outro e por tudo aquilo que se cativa
imprescindveis na legalidade constitucional.
G.T.
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 9
A CLUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA E O CONTRATO INCOMPLETO
COMO INSTRUMENTOS DE GESTO DE RISCO NOS CONTRATOS
The express resolutive clause and the incomplete contract as mechanisms of
management of risks
Aline de Miranda Valverde Terra Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora agregada do Departamento de Direito Civil e da ps-graduao
lato sensu da Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora do Centro de Estudos e
Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED/UERJ).
Paula Greco Bandeira Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Centro de Estudos e
Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED/UERJ). Advogada
Resumo: O artigo destaca a importncia do contrato como instrumento de gesto dos riscos
negociais, precisamente os riscos econmicos supervenientes, que atingem sua execuo.
Tal alocao de riscos permitir a atribuio de responsabilidades entre os contratantes.
Nesta direo, as partes podero proceder gesto positiva ou negativa desses riscos. No
mbito da gesto positiva de riscos, a clusula resolutiva expressa assume particular
relevncia, permitindo s partes definir os eventos que, uma vez verificados, deflagraro a
extino do contrato independentemente de recurso ao Poder Judicirio. De outra parte, a
gesto negativa de riscos se expressa por meio do contrato incompleto, mediante o qual os
contratantes deliberadamente deixam em branco determinados elementos que sero
definidos em momento futuro, pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou
mediante fatores externos, segundo o procedimento contratualmente previsto para a
integrao da lacuna, como forma de pleno atendimento aos interesses das partes in concreto.
Palavras-chave: Clusula resolutiva expressa; Contrato incompleto; Gesto de riscos
contratuais.
Abstract: This article emphasizes the importance of the contract as a mechanism of
allocation of risks, especially the economic risks which affect its performance. This
SEO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 10
allocation of risks allows the definition of parties responsibility. In this sense, the parties
may allocate the risks in a positive or negative manner. Within the positive allocation of risks
the express resolutive clause may assume an important role, consenting the parties to define
the events which, once verified, extinguish the contract independently of the judicial dispute
resolution. On the other hand, the incomplete contract determines a negative allocation of
risks, by which the parties deliberately left in blank some elements which will be defined in
the future, as the execution by one or both parties, a third person or the application of external
factors, in accordance to the contractual proceeding, in order to attend the concrete interests
of the parties.
Keywords: Express resolutive clauses; Incomplete contract; Allocation of contractual risks.
Sumrio: Introduo: o contrato como mecanismo de gesto de riscos 1. Os modos de
alocao de riscos nos contratos: gesto positiva e negativa 2. A clusula resolutiva
expressa como instrumento de gesto positiva dos riscos 3. O contrato incompleto como
instrumento de gesto negativa dos riscos 4. Consideraes Finais
Introduo: o contrato como mecanismo de gesto de riscos
Em tempo em que se assiste quilo que o Prof. Stefano Rodot denominou
de financializao do mundo,1 com a economia desempenhando papel de protagonista do
cenrio global, a propriedade se insere novamente no centro das preocupaes atuais, a
demandar reviso crtica do paradigma proprietrio. Neste contexto, embora o contrato possa
ser reduzido a mero fmulo da propriedade, descurando de outros valores fundamentais, se
bem empregado, pode servir de instrumento legtimo para a promoo das atividades
econmicas privadas, consagrando o valor constitucional da livre iniciativa (arts. 1, IV; 170,
caput, C.R.).
Nessa esteira, os contratos traduzem instrumento de gesto dos riscos
econmicos merecedor de tutela, apto a estimular negcios que concretizem, para alm dos
interesses dos contratantes, outros interesses extracontratuais dignos de proteo. Com vistas
consecuo de todas as suas potencialidades funcionais, os contratos ho de ser
compreendidos como mecanismo de gesto de riscos econmicos que atingem sua execuo.
De fato, os negcios jurdicos levados a cabo pelos particulares tm por
1 A expresso foi adotada em conferncia intitulada Conversas com Stefano Rodot, proferida pelo Prof.
Stefano Rodot na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC-Rio, no dia 6 de novembro de
2015.
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 11
finalidade repartir os riscos de determinada atividade econmica entre os contratantes, de
modo a fixar as respectivas responsabilidades e, assim, efetivar os interesses das partes in
concreto.
Nesta direo, atribui-se ao contratante a responsabilidade pelas
consequncias deflagradas pelo implemento de determinado fato superveniente previsvel,
cuja ocorrncia, no momento da contratao, era incerta (rectius, risco). A verificao do
risco repercutir, assim, na esfera jurdica dos contratantes, desencadeando as
responsabilidades definidas no contrato, com impacto na relao contratual e na economia
das partes. guisa de exemplo, em contrato de empreitada, pode-se atribuir ao empreiteiro
a responsabilidade por determinados riscos geolgicos que, uma vez verificados, podero
atrasar a concluso da obra. Neste caso, os prejuzos econmicos da decorrentes ho de ser
suportados pelo empreiteiro, que se responsabiliza notadamente pelos danos sofridos pelo
dono da obra. Ou, ainda, em contratos de compra e venda de energia, a comercializadora,
que se compromete a entregar determinada quantidade de energia aos compradores,
responde pela sua escassez, devendo comprar a energia no mercado para atender aos
compromissos assumidos.
A alocao dos riscos econmicos deve ser identificada no caso concreto,
de acordo com o especfico regulamento de interesses. Deste modo, mostra-se possvel
alargar a responsabilidade dos contratantes, imputando-lhes risco maior do que aquele
comumente assumido em determinado tipo contratual. No mencionado exemplo do contrato
de empreitada, as partes podem atribuir ao empreiteiro a responsabilidade pelas chuvas
abundantes que atrasem o cronograma da obra, ainda, que, normalmente, as chuvas
configurem fortuito ou fora maior, que afastaria a responsabilizao do contratante.
A partir da alocao de riscos estabelecida pelas partes, define-se o
sinalagma contratual, isto , a comutatividade ou correspectividade entre as prestaes, a
qual revela a equao econmica desejada pelos contratantes. Tal equao traduz o equilbrio
intrnseco do concreto negcio e, por isso mesmo, h de ser perseguida pelas partes.2
2 A ideia de equilbrio contratual se aproxima da noo de sinalagma funcional a que a doutrina faz,
didaticamente, referncia. Como explica Massimo Bianca a respeito do conceito de sinalagma funcional: A
correspectividade entre as prestaes significa que a prestao de uma parte encontra remunerao na prestao
da outra. (...) A correspectividade comporta normalmente a interdependncia entre as prestaes. A
interdependncia exprime, em geral, o condicionamento de uma prestao a outra. Ao propsito, feita uma
distino entre sinalagma gentico e sinalagma funcional. (...) O sinalagma funcional indica a interdependncia
entre as prestaes na execuo do contrato, no sentido de que uma parte pode se recusar a cumprir a prestao
se a outra parte no cumpre a sua prpria (exceo de contrato no cumprido: art. 1460
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 12
Da afirmar-se que o conceito de risco contratual se relaciona diretamente
com o de equilbrio, tendo em conta que as partes estabelecem negocialmente a repartio
dos riscos como forma de definir o equilbrio do ajuste.3 Ao se perquirir a alocao de riscos
estabelecida pelos contratantes, segundo a vontade declarada, o intrprete dever atentar para
o tipo contratual escolhido e para a causa concreta do negcio. Cada tipo contratual possui
critrios de repartio do risco previamente estabelecidos em lei. Entretanto, as partes
podero modelar a alocao de riscos do negcio, inserindo na sua causa repartio de riscos
especfica e incomum a certa espcie negocial.
Ao lado do tipo contratual, o intrprete, para fins de identificao da
alocao de riscos e das respectivas responsabilidades, h de considerar a qualidade das
partes, investigando-se a atividade normalmente praticada pelos contratantes. A ttulo de
ilustrao, considera-se justo imputar maior risco ao empresrio do que a indivduo que no
seja expert em determinado setor.4 Ou, ainda, imputar a responsabilidade ao contratante pelo
risco inerente atividade econmica por ele regularmente desenvolvida. Deve-se, tambm,
observar se h clusula limitativa ou de excluso de responsabilidade, bem como o sistema
de responsabilidades que decorrem da interpretao sistemtica e teleolgica das clusulas
contratuais.5
Em relaes paritrias, em que no h assimetria de informaes, a
equao econmica estabelecida pelos contratantes por meio da alocao de riscos h de ser
observada em toda a vida contratual. Afinal, a repartio dos riscos traduzir a finalidade
almejada pelos contratantes com o concreto negcio, os quais buscam satisfazer os seus
interesses por meio daquela especfica alocao de riscos.
A alocao de riscos no contrato revela, portanto, o equilbrio econmico
do negcio perseguido pelas partes e mediante o qual os contratantes visam a concretizar
seus objetivos econmicos. Tal repartio de riscos insere-se, assim, na causa concreta do
contrato, isto , nos efeitos essenciais que o negcio pretende realizar, ou, em outras palavras,
na sua funo econmico-individual ou funo prtico-social, que exprime a racionalidade
desejada pelos contratantes, seus interesses perseguidos in concreto, com
cc) e pode ser liberada se a contraprestao se torna impossvel por causa no imputvel s partes (1453 s
cc) (BIANCA, Massimo. Diritto civile: il contratto. Milano: Giuffr, 1987. v. 3, p. 488; traduo livre). 3 BESSONE, Mario. Adempimento e rischio contrattuale. Milano: Giuffr, 1969, p. 2 e ss. 4 BESSONE, Mario. Adempimento e rischio contrattuale. cit., p. 39. 5 Sobre o tema, v. ALPA, Guido. Rischio. In: CALASSO, Francesco (org). Enciclopedia del diritto. Milano:
Giuffr, 1989. v. 40. p. 1158, em que o autor passa em revista critrios que devem orientar o juiz na repartio
dos riscos, dentre os quais o exame da qualidade das partes; da prestao (fungvel, infungvel etc.); e da funo econmica do negcio.
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 13
base na qual se interpreta e se qualifica o negcio, em procedimento nico e incindvel.
Como observou Francesco Camilletti, o equilbrio contratual se expressa no em termos
objetivos de valores, mas corresponde finalidade almejada pelos contratantes ou ao
interesse que pretendem realizar com o sinalagma ou correspectividade entre as
prestaes.6
Deve-se, portanto, averiguar a finalidade do sinalagma ou da
correspectividade in concreto, que tem por escopo satisfazer aos interesses dos contratantes.
A alocao de riscos insista-se insere-se na causa do negcio, isto , nos efeitos essenciais
perseguidos pelos contratantes com vistas ao atendimento de suas pretenses. Em definitivo,
h de se prestigiar a repartio dos riscos estabelecida pela vontade negocial, que traduz o
equilbrio do negcio, impedindo-se que o intrprete refaa a valorao do risco j efetuada
pela autonomia privada.
1. Os modos de alocao de riscos nos contratos: gesto positiva e negativa
No ordenamento jurdico brasileiro, existem duas formas de gesto de
riscos nos contratos: a gesto positiva e a gesto negativa. Evidentemente, os riscos que
constituiro objeto de gesto pelos particulares ho de ser previsveis, de modo a que se
possa atribuir a um ou outro contratante os efeitos de sua verificao. Ao ser repartido entre
os contratantes, o risco previsvel passa a integrar a lea normal do contrato, compreendida
como o risco externo ao contrato, o qual, embora no integre a sua causa, mantm com ela
relao de pertinncia, por representar o risco econmico previsvel assumido pelos
contratantes ao escolher determinado tipo ou arranjo contratual. A definio da lea normal
ir se operar no concreto regulamento de interesses, mostrando-se possvel que determinado
evento previsvel no se insira na lea normal e, portanto, no figure como fato previsto,
objeto de gesto pelas partes. Por outro lado, as partes podero
6 Como elucida o autor: em linha terica e geral, pode-se continuar a sustentar a subsistncia, em nosso
ordenamento, de um princpio que tende a se desinteressar pelo equilbrio contratual compreendido como
correspondncia de valores (objetivos) entre as prestaes trocadas, tal sendo a consequncia lgica do
reconhecimento da autonomia privada como instrumento para a atuao da liberdade de iniciativa econmica.
(...) o legislador, portanto, se absteve de considerar a validade do contrato com base em valoraes quantitativas
do sinalagma, tendo, ao revs, deslocado a prpria valorao sobre a funo teleolgica da correspectividade,
que aquela destinada a satisfazer os interesses de ambas as partes, s quais apenas compete estabelecer quais valores econmicos atribuir s prestaes que satisfazem aos seus interesses (CAMILLETTI, Francesco.
Profili del problema dellequilibrio contrattuale. In: Collana diritto privato. Milano: Giuffr, 2004. v. 1. p. 44;
traduo livre).
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 14
alargar a lea normal, incluindo na gesto do risco eventos previsveis que ordinariamente
no sejam associados a determinada espcie negocial (e que, portanto, no comum dos casos,
seriam considerados fatos extraordinrios).
Deste modo, as partes, ao distriburem os riscos econmicos previsveis a
partir das clusulas contratuais, procedem gesto positiva da lea normal. Aludida
alocao de riscos, que ser identificada com base na vontade declarada7 pelos contratantes,
estabelece o equilbrio econmico do negcio. Tal equao econmica, que fundamenta o
sinalagma ou a correspectividade entre as prestaes, deve ser observada no curso da relao
contratual, em ateno aos princpios da obrigatoriedade dos pactos e do equilbrio dos
contratos. Dentre os diversos instrumentos disposio dos contratantes voltados gesto
positiva dos riscos, a clusula resolutiva expressa assume destacada relevncia, como se ver
a seguir.
Ao lado da gesto positiva da lea normal, os contratantes podero optar
por gerir negativamente os riscos econmicos previsveis supervenientes, deixando,
deliberadamente, em branco certos elementos da relao contratual, a serem determinados,
em momento futuro, pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou mediante fatores
externos, segundo o procedimento contratualmente previsto para a integrao da lacuna.
Trata-se do contrato incompleto.
2. A clusula resolutiva expressa como instrumento de gesto positiva dos riscos
Dentre as diversas formas de gesto positiva dos riscos econmicos, situa-
se a clusula resolutiva expressa. Fruto da autonomia privada dos contratantes, que ajustam,
livre e conscientemente, sua incluso no contrato, a clusula resolutiva expressa permite ao
credor, uma vez verificado o evento nela previsto, desvincular-se de relao jurdica estril,
incapaz de cumprir o programa negocial traado pelas partes, de forma clere, mediante
simples declarao receptcia de vontade. Revela-se, assim, aquela que , sem sobra de
dvidas, uma das extraordinrias vantagens da clusula em comparao com
7 Sobre a teoria da declarao, originada no Sc. XX e em pleno vigor na teoria contratual contempornea,
assinala Vincenzo Roppo: no contrato, importante no apenas a efetiva vontade individual, em como esta se
forma na esfera psquica do sujeito, mas tambm a sua projeo social externa, e, em particular, o modo pelo qual a vontade das partes percebida pela contraparte. Esta percepo determinada essencialmente pelo modo
como a vontade, objetivamente, vem manifestada externamente; por isso o teor objetivo da declarao de
vontade (ROPPO, Vincenzo. Il contrato. In: IUDICA, Giovanni; ZATTI, Paolo (Org.). Trattato di diritto
privato. Milano: Giuffr, 2001. pp. 38-39; traduo livre).
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sua congnere a clusula resolutiva tcita: a possibilidade de resolver a relao
obrigacional extrajudicialmente, sem que tenha, o credor, que se socorrer do Poder
Judicirio.8
Mas no tudo. A clusula resolutiva expressa consente ao contratante no
inadimplente, ainda, transferir ao devedor o risco de sua insatisfao.9 No obstante se
afirme, usualmente, que a clusula se destina a regular to s o inadimplemento absoluto,10
no h bice incluso, em seu suporte ftico, de riscos diversos, desde que sua verificao11
conduza disfuncionalizao da relao obrigacional. Embora, em sua origem, o instituto
estivesse ligado, de fato, ao inadimplemento absoluto, sua percepo histrico-relativa
impe a ampliao de seus confins, a permitir a gesto de outros riscos que, uma vez
implementados, impeam a promoo da funo econmico-individual do negcio.
Tome-se como exemplo a impossibilidade da prestao superveniente e
inimputvel ao devedor, que acarreta a resoluo ipso iure da obrigao, independentemente
de sentena constitutiva, liberando o devedor da prestao.12 Trata-se, aqui, de
impossibilidade provocada por caso fortuito ou fora maior,13 caracterizada,
8 Para o desenvolvimento do tema, confira-se TERRA, Aline de Miranda Valverde. Clusula resolutiva
expressa e resoluo extrajudicial. Civilistica.com. Rio de Janeiro. v.2. n.3. jul./set. 2013. Disponvel em:
. Acesso em: 30
nov. 2015. 9 GARRIDO, Mara Luisa Palazn. El remedio resolutorio en la propuesta de modernizacin del derecho de
obligaciones en Espaa: un estudio desde el derecho privado europeo. In: DOHRMANN, Klaus Jochen Albiez
(Dir.); GARRIGO, Mara Luisa Palazn; SERRANO, Maria Del Mar Mndez (Coord.). Derecho privado
europeo y modernizacin del derecho contractual en Espaa. Barcelona: Atelier Libros Jurdicos, 2011. p.425. 10 Veja-se, por todos: PROENA, Jos Carlos Brando. A resoluo do contrato no direito civil: do enquadramento e do regime. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.76. A rigor, como aponta Guido Alpa,
mesmo nessa hiptese, o problema a resolver um problema de distribuio dos riscos (ALPA, Guido.
Manuale di diritto privato. 8 ed. Padova: CEDAM, 2013. p.540, traduo livre). 11 Sobre a contempornea conformao do inadimplemento absoluto, confira-se: TERRA, Aline de Miranda
Valverde. A contempornea teoria do inadimplemento: reflexes sobre a violao positiva do contrato, o
inadimplemento antecipado e o adimplemento substancial. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rgo;
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau (Org.). Direito Civil. 1. ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 2015. v. 2. p. 183-200. 12 A supervenincia de caso fortuito no faz surgir para o credor o direito potestativo de resolver a relao
obrigacional: a lei incide diretamente sobre o fato, resolvendo o contrato automaticamente, conforme esclarece
Judith Martins-Costa: Nos casos em que a impossibilidade informada por culpa e o devedor no infringe dever de diligncia mas a prestao, ainda assim, se torna impossvel teremos, ento, a impossibilidade
no-imputvel, que libera o devedor e o desonera do pagamento de perdas e danos, afastando a possibilidade
de o credor invocar o direito resoluo, pois h extino ipso iure (MARTINS-COSTA, Judith. Comentrios
ao novo Cdigo Civil: do inadimplemento das obrigaes. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v.5. t. 2. p.271). 13 Utilizam-se as expresses como sinnimas, na esteira do entendimento predominante na doutrina nacional.
Sobre a identidade dos conceitos, confira-se FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da
impreviso. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p.129 et seq.
http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Terra-civilistica.com-a.2.n.3.2013.pdf
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fundamentalmente, como se depreende do pargrafo nico do artigo 393 do Cdigo Civil,
pela inevitabilidade e necessariedade do acontecimento.14
A classificao da supervenincia como caso fortuito feita em concreto,
e requer anlise dos elementos exteriores ao obrigado e das peculiaridades de sua atividade
econmica, tomando como parmetro a possvel conduta de outros indivduos, em condies
objetivas anlogas.15 Tudo depende, ento, das especficas condies de fato em que se
verifica o evento.16
Para a resoluo do contrato e liberao do devedor requer-se, ainda, que
o evento inevitvel e necessrio conduza impossibilidade objetiva da prestao.17 A
exigncia deve, contudo, ser entendida nos seus devidos termos, no se demandando do
devedor esforos maiores do que os razoveis para o adimplemento da obrigao. Insere- se,
assim, no conceito tcnico-jurdico de impossibilidade, a necessidade de o devedor
despender esforo extraordinrio para o adimplemento da prestao.18
A despeito das regras oferecidas pela teoria legal do risco, podem as partes
gerir os acontecimentos inevitveis e necessrios, predeterminando, por exemplo, quais
eventos consideram caso fortuito capaz de impossibilitar a execuo da prestao. Admite-
se, outrossim, que uma das partes assuma o risco da impossibilidade causada por caso
fortuito. O prprio Cdigo Civil permite, no caput do artigo 393, que os contratantes
convencionem o deslocamento do risco do fortuito em favor do credor, fazendo com que
persista a responsabilidade do devedor mesmo se a inexecuo decorrer de evento
14 Adota-se a teoria objetiva, que se contrape subjetiva, a qual equipara o caso fortuito e a fora maior
ausncia de culpa, pelo que se daria o fortuito sempre que a inexecuo no se pudesse imputar ao devedor.
Para exposio detalhada de ambas as teorias, consulte-se SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito
civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957. v.2. p.459 et seq. 15 A esse respeito, Agostinho Alvim destaca que "a necessariedade do fato h de ser estudada em funo da
impossibilidade de cumprimento da obrigao, e no abstratamente" (ALVIM, Agostinho. Da inexecuo das
obrigaes e suas conseqncias. So Paulo: Saraiva, 1965. p.312). 16 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. op. cit. p.151. 17 Como destaca Arnoldo Medeiros da Fonseca, o caso fortuito ou fora maior podem ter como consequncia
a impossibilidade objetiva de executar, permanente ou temporria, total ou parcial, como tambm uma
dificuldade maior, ou onerosidade imprevista, o que normalmente sucede quando acarreta a perda ou
deteriorao de produtos que iam ser destinados satisfao de prestaes genricas. Como porm, nesse
terreno, a liberao do devedor est tambm subordinada impossibilidade absoluta de executar, segundo os
princpios tradicionais, no aludem geralmente os autores eventualidade de ter o caso fortuito como
consequncia apenas uma onerosidade maior da prestao, e elevam aquela impossibilidade de execuo a
condio elementar do prprio fortuito. De nossa parte, preferimos evitar tal confuso, embora reconheamos
que, nesse campo, surja tambm, como requisito essencial liberao do obrigado, esse novo elemento: a
impossibilidade de prestar (FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. op. cit.
p.152-153, grifos no original). 18 A impossibilidade definitiva a que inviabiliza para sempre a prestao ou que somente pode ser prestada
mediante esforo extraordinrio. [...] A simples dificuldade no exonera, mas a desproporcionalidade do custo
para o cumprimento da prestao equiparvel impossibilidade (AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado. Extino
dos contratos por incumprimento do devedor (resoluo). Rio de Janeiro: Aide, 1991. p.99-100).
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inevitvel, para o qual este no tenha concorrido. Homenageia-se a autonomia privada,
reconhecendo-se que a soluo adotada como regra pela lei pode no se coadunar com os
interesses concretos envolvidos no negcio.19
Por se tratar de exceo, a assuno do risco deve ser expressa.20
Imprescindvel, ainda, a indicao, um por um, de todos os fatos inevitveis pelos quais o
contratante assume a responsabilidade.21
Comprometendo-se o devedor a prestar mesmo que sobrevenha o risco
assumido, a impossibilidade decorrente do caso fortuito indicado na clusula no o exonera
da obrigao, mas configura, em vez disso, inadimplemento absoluto. A gesto da
supervenincia do evento inevitvel e necessrio transforma um risco econmico
extraordinrio (embora previsvel) em um risco de inadimplemento no mbito do concreto
regulamento de interesses (fato previsto). O inadimplemento, nesse caso, no decorre de
inexecuo culposa, mas da assuno contratual do risco: embora o caso fortuito exclua o
nexo de causalidade entre a conduta do devedor e a inexecuo da prestao, a assuno
expressa do risco estabelece um nexo de imputao entre o evento inevitvel e o devedor, a
atribuir-lhe a responsabilidade pela inexecuo.
De todo modo, o que releva para esta exposio so os efeitos do
deslocamento convencional dos riscos: enquanto, pela teoria legal do risco, a
impossibilidade da prestao causada por caso fortuito resolve automaticamente o contrato
e afasta qualquer responsabilidade do devedor pelos prejuzos sofridos pelo credor, havendo
assuno expressa do risco, sua concretizao conduz ao inadimplemento absoluto, e abre
para o credor a possibilidade de optar entre resolver a relao obrigacional,
19 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Cdigo Civil
interpretado conforme a Constituio da Repblica. 2.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. v.1.
p.712. 20 No se admite a assuno tcita do risco relativo supervenincia de caso fortuito e fora maior, conforme
destaca FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,
1958. p.180, nota de rodap n. 8. Da a ressalva de Agostinho Alvim, para quem, na dvida se houve ou no
a assuno do risco, resolve-se em sentido negativo; se se questiona acerca da sua extenso, corta-se a dvida
a favor do devedor (ALVIM, Agostinho. Da inexecuo das obrigaes e suas conseqncias. op. cit. p.320). 21 Agostinho Alvim observa que para que se entenda assumido o risco do caso fortuito extraordinrio,
necessrio referncia expressa" (ALVIM, Agostinho. Da inexecuo das obrigaes e suas consequncias. op.
cit. p. 320). Em sentido contrrio, Arnoldo Medeiros da Fonseca no exige a indicao de cada um dos riscos assumidos pelo contratante: "S os riscos decorrentes de casos fortuitos que foram ou podiam ser previstos na
data da obrigao consideram-se assumidos pelo devedor, no caso de dvida, pois as excees devem ser
interpretadas restritivamente (FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. op.
cit., p.181, grifos no original).
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ou manter o contrato e exigir o equivalente pecunirio, sem prejuzo, em ambos os casos,
das perdas e danos.
Nesse cenrio, a clusula resolutiva expressa participa decisivamente da
gesto do risco da supervenincia do caso fortuito, disciplinando os efeitos dele decorrentes:
apenas mediante sua aposio no contrato, a relao obrigacional poder ser resolvida
extrajudicialmente, no de forma automtica, mas mediante declarao do credor.22
Indispensvel, para tanto, a concomitncia da assuno do risco e da atribuio, ao credor,
do direito potestativo de proceder resoluo extrajudicial da relao obrigacional. Essas
duas declaraes podem mesmo constar da clusula resolutiva; impretervel, contudo, que
constem, de fato, expressas do contrato.
Por outro lado, de acordo com a disciplina legal do risco, quando a
impossibilidade parcial ou temporria, a tornar intil para o credor a prestao por
circunstncias inimputveis ao devedor em decorrncia de caso fortuito, ato de terceiro, ou
at ato do devedor sem culpa , no se processa a resoluo automtica do vnculo
obrigacional, nascendo para o lesado o direito formativo de resolver a relao.
Isso porque, quando a impossibilidade temporria, a configurao do
inadimplemento absoluto depender da demonstrao de que o cumprimento posterior
conduz perda de utilidade da prestao para o credor. O mesmo se passa em relao
impossibilidade parcial, em que s parte da obrigao afetada pela supervenincia,
aplicando-se o artigo 235 do Cdigo Civil. Em ambos os casos, portanto, ao credor caber
pleitear a resoluo em face da inutilidade da prestao, que se processar judicialmente,
caso no conste do contrato clusula resolutiva expressa, tendo em vista a necessidade de o
juiz aferir se a prestao j no atende, efetivamente, ao interesse do credor.
A gesto legal do risco de impossibilidade temporria ou parcial
inimputvel permite, ento, que o credor pleiteie a resoluo judicial da relao obrigacional,
se a prestao se tornou intil, ou a receba no estado em que se encontra na impossibilidade
parcial , se lhe conservar alguma utilidade. No entanto, aqui tambm podem as partes,
regulando seus interesses de acordo com o programa contratual, determinar, ex ante e de
comum acordo, que eventos passveis de conduzir
22 Aurora Martnez Flrez admite a possibilidade no mbito do ordenamento jurdico espanhol: Desde nuestro
punto de vista, sin embargo, y sin perjuicio de que las consecuencias sean distintas en una y otra hiptesis, no
existe obstculo en nuestro ordenamiento para que por la va de la clusula resolutoria las partes estn
distribuyendo o transmitiendo el riesgo a la medida de sus intereses (FLREZ, Aurora Martnez. Las
clusulas resolutorias por incumplimiento y la quiebra. Madrid: Civitas, 1999. p.23, nota de rodap n. 9).
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impossibilidade temporria ou parcial e, consequentemente, inutilidade da prestao,
autorizam a resoluo de pleno direito, em alterao, assim, aos efeitos legais da
supervenincia.
Para tanto, basta a previso do referido evento necessrio e irresistvel no
suporte ftico da clusula resolutiva expressa, no se exigindo, ao contrrio do que se passa
quando a impossibilidade decorrente do fortuito total, a assuno do risco pelo devedor.
Isso porque as partes no alteram a partilha legal dos riscos, limitando-se a modificar os
efeitos de sua verificao. Por outro lado, se o devedor assumir o risco de forma expressa,
h alterao da alocao legal, e a ocorrncia do evento configurar inadimplemento
absoluto, a permitir ao credor pleitear, tambm, indenizao por perdas e danos.
Imprescindvel resoluo, ademais, que a impossibilidade parcial ou
temporria decorrente do evento fortuito conduza, inequivocamente, inutilidade da
prestao para o credor. A clusula resolutiva expressa no se presta promoo de
caprichos, de modo que apenas os atrasos ou as imperfeies que ofendam substancialmente
a obrigao, e comprometam a consecuo do programa negocial, podem integrar seu
suporte ftico. No suficiente que a prestao se torne menos valiosa, sem repercusses na
sua utilidade; indispensvel que se torne incapaz de promover o interesse perseguido pelas
partes.
Ao lado do caso fortuito, outro risco cuja gesto positiva pode ser realizada
por meio da clusula resolutiva expressa aquele relativo ao vcio redibitrio, entendido
como o defeito oculto que torna a coisa imprpria ao uso a que se destina ou que lhe diminui
o valor de tal modo que, se o credor soubesse da sua existncia, no realizaria o negcio pelo
mesmo preo (art. 441, CC).
Tais defeitos so designados redibitrios justamente porque, quando
descobertos, conferem ao credor a possibilidade de redibir a coisa, resolvendo a relao
obrigacional, a tornar ineficaz o negcio com a restituio da coisa defeituosa ao antigo
dono.23 Para tanto, dever o adquirente recorrer ao Judicirio, ajuizando a ao redibitria,
cujo efeito exatamente aquele da ao de resoluo: a extino do vnculo obrigacional.24
23 o que tambm observa Arnoldo Wald: A prpria etimologia do adjetivo redibitrio explica a finalidade
do instituto, que assegura a devoluo do objeto ao seu titular anterior (WALD, Arnoldo. Direito civil: direito
das obrigaes e teoria geral dos contratos. 18.ed. ref. So Paulo: Saraiva, 2009. v.2. p.321). 24 Os vcios redibitrios so inerentes coisa vendida; so chamados redibitrios porque podem dar lugar
resoluo do contrato (CARVALHO SANTOS, Joo Manoel de. Cdigo Civil brasileiro interpretado. 6.ed.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. v.15. p.335).
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A disciplina dos vcios redibitrios se fundamenta, conforme destaca Caio
Mrio da Silva Pereira, no princpio da garantia sem a intromisso de fatores exgenos, de
ordem psicolgica ou moral,25 e se insere no mbito da teoria legal do risco.26 Tal garantia
visa assegurar a posse til da coisa ao credor e, por ser consequncia da prpria natureza
jurdica do contrato comutativo,27 que pressupe relativa equivalncia entre as prestaes,
independe da culpa ou m-f do alienante28 a relevncia do conhecimento, ou no, do vcio
oculto pelo alienante se restringe imposio, ou no, do dever de indenizar.
Para Jorge Cesa Ferreira da Silva, os vcios redibitrios se reconduzem
categoria dicotmica do inadimplemento, qualificando-se os casos de redibio como
inadimplemento absoluto. De acordo com o autor, as regras sobre vcios comungam do
mesmo fundamento de proteo das regras relativas ao inadimplemento absoluto e mora.
Por essa razo, em vez de incluir os vcios redibitrios em uma terceira categoria de
inadimplemento, mais correto seria reagrupar as regras sobre vcios na classificao
dicotmica: mora e inadimplemento absoluto. Os casos de redibio seriam regulados como
inadimplemento absoluto, os de reduo proporcional do valor (quanti minoris), como
impossibilidade parcial [...].29
De toda sorte, qualquer que seja o entendimento adotado acerca da
natureza jurdica do vcio redibitrio, no se pode deixar de reconhecer que, tanto no
inadimplemento absoluto quanto no vcio redibitrio que retira a utilidade do bem para o
adquirente, h um incumprimento da prestao; e, em ambos os casos, a consequncia para
o credor a mesma: frustrao do escopo econmico perseguido. No por outra razo
25 PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v.3. p.107. 26 Para Orlando Gomes, trata-se de garantia de natureza especial, pelo que no se aplicam as regras da teoria
geral dos riscos (GOMES, Orlando. Contratos. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 95). 27 Embora tradicionalmente associada aos contratos comutativos, a garantia por vcios redibitrios h de incidir
tambm nos contratos aleatrios, ainda que de forma diferenciada, reconhecendo-se aos negcios aleatrios o
equilbrio entre as prestaes. V., sobre o tema, BANDEIRA, Paula Greco. Contratos aleatrios no direito
brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 190-193. 28 BEVILAQUA, Clovis. Cdigo Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 11. ed. So Paulo: Livraria
Francisco Alves, 1958. v.4. p. 215. 29 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-f e a violao positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
p.199-201, grifos no original. Na mesma direo, Raquel Salles, partindo da compreenso do inadimplemento
como o no cumprimento imputvel, subjetiva ou objetivamente, da prestao devida, entende plenamente
possvel a configurao dos vcios redibitrios como inadimplemento por imputao objetiva. Por essa razo,
a autora admite a incluso de defeitos ocultos no suporte ftico da clusula resolutiva expressa, a autorizar a
resoluo extrajudicial da relao obrigacional, dispensando o ajuizamento da ao redibitria (SALLES,
Raquel Bellini de Oliveira. Autotutela pelo inadimplemento nas relaes contratuais. Tese (Doutorado em
Direito Civil) Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. p.198-199).
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que, nas duas situaes, o ordenamento jurdico oferece ao credor instrumentos de tutela
que, embora diversos, produzem igual resultado: a extino da relao obrigacional.
Posto isso, afigura-se lcito e legtimo aos contratantes, valendo-se da
alocao de riscos previamente determinada pelo legislador, pactuar, de antemo, na clusula
resolutiva expressa, quais vcios ocultos comprometem irremediavelmente a utilidade da
prestao para o credor, a dispensar o ajuizamento da ao redibitria para a resoluo do
negcio.
A exigncia de que a redibio se processe judicialmente decorre da
necessidade de o juiz verificar se a alegao de perda de utilidade da prestao pelo credor
, de fato, procedente. Dessa forma, imprescindvel que os contratantes indiquem, de
antemo e de comum acordo, em que circunstncias a prestao no ter mais a utilidade
necessria promoo da funo econmico-individual do contrato,30 no bastando a
simples referncia a vcios redibitrios na clusula resolutiva. Do contrrio, considerar-se-
a previso contratual mera clusula de estilo, remetendo o credor via judicial.
3. O contrato incompleto como instrumento de gesto negativa dos riscos
De outra parte, ao lado da gesto positiva de riscos, desponta o contrato
incompleto, assim compreendido como o negcio jurdico que emprega tcnica de gesto
negativa da lea normal do contrato.31 Dito diversamente, em algumas hipteses, a
autonomia privada preferir no alocar positivamente o risco econmico previsvel no
momento da assinatura do contrato, deixando essa deciso para momento futuro, quando e
se o risco se verificar. Trata-se da denominada gesto negativa. Nessa hiptese, os
particulares deixam lacunas no negcio, que significam a ausncia de determinado elemento
da relao contratual que, no entender das partes, ser afetado pela oscilao da lea normal.
A lacuna representa precisamente essa no tomada de deciso pelos contratantes, que
remetem a distribuio dos efeitos do risco para momento futuro, por ocasio de sua
verificao.
30 No necessrio, portanto, que a prestao j no tenha qualquer utilidade em abstrato, mas apenas que o
defeito lhe retire a idoneidade de promover o concreto escopo econmico do contrato. Nesse sentido, confira-
se GAROFALO, Luigi. Garanzia per vizi e azione redibitria nell'ordinamento italiano. Rivista di Diritto
Civille, Padova. v.47. p.249, jan./fev. 2001. 31 Sobre o tema, seja consentido remeter a BANDEIRA, Paula Greco. Contrato incompleto. Rio de Janeiro:
Atlas, 2015, passim.
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Em determinados casos, os particulares no conseguem chegar a um
acordo quanto a determinada alocao de riscos; as partes desconhecem certos aspectos
mercadolgicos ou fatores econmicos que podero afetar o negcio; ou, ainda,
simplesmente, no querem decidir sobre a alocao de certo risco de antemo. A despeito
disso, desejam concluir o contrato e se vincular em carter definitivo. Por isso, optam por
firmar contrato incompleto, que permite, a um s tempo, instaurar o vnculo jurdico
definitivo e postergar a deciso quanto alocao de determinado risco para momento
futuro. Trata-se, em uma palavra, da no alocao voluntria do risco econmico (lea
normal), isto , do decidir no decidir.
Em outros termos, sobretudo em operaes econmicas complexas,
marcadas pela durao no tempo e pela incerteza dos resultados, os particulares podero
concluir contrato em carter definitivo, mas, concomitantemente, optar por no alocar ex
ante certos riscos econmicos previsveis, por entenderem que essa soluo melhor atende
aos seus interesses in concreto. Nesses casos, a autonomia privada celebrar contrato
incompleto, o qual representa soluo obrigatria, porm flexvel, pois permite a abertura do
regulamento contratual diante do implemento do risco, postergando, para momento futuro,
a deciso quanto alocao de riscos, segundo critrios j contratualmente definidos.
Diz-se que o regulamento contratual incompleto fornece soluo
obrigatria, pois estabelece o procedimento que as partes devero seguir diante da ocorrncia
do risco para distribuir os ganhos e as perdas econmicas dele resultantes; e, ao mesmo
tempo, traduz resposta flexvel, vez que as partes iro amoldar o contrato ao novo contexto
instaurado com a verificao do risco. O contrato incompleto se adapta, desse modo, nova
realidade contratual.
No contrato incompleto, portanto, as partes, deliberadamente, optam por
deixar em branco determinados elementos da relao contratual, como forma de gesto
negativa do risco econmico superveniente (rectius, lea normal), os quais sero
determinados, em momento futuro, pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou
mediante fatores externos, segundo o procedimento contratualmente previsto para a
integrao da lacuna.
Quando e se o risco se concretizar, as partes distribuiro os ganhos e as
perdas econmicas dele decorrentes, por meio da integrao das lacunas, segundo o
procedimento definido originariamente no contrato. O preenchimento da lacuna ocorrer
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pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou mediante fatores externos,
consoante os critrios pactuados.
Eis a funo do regulamento contratual incompleto: consentir s partes no
alocar ex ante os efeitos decorrentes da variao da lea normal do contrato, remetendo essa
deciso para momento futuro, como soluo que melhor atende aos interesses dos
particulares no caso concreto.
A no alocao dos riscos econmicos supervenientes, mediante lacunas,
a serem integradas em momento futuro, de acordo com critrios predefinidos, por uma ou
ambas as partes, por terceiro ou mediante fatores externos, quando (e se) houver a verificao
do risco, traduz os efeitos essenciais que integram a causa do contrato incompleto. O trao
distintivo da causa do contrato incompleto corresponde, portanto, gesto negativa da lea
normal do contrato.
Assim sendo, com vistas a se qualificar determinado contrato como
incompleto, h de se verificar se o negcio tem por funo gerir negativamente a lea normal
do contrato. Identificado esse trao distintivo da causa do regulamento contratual
incompleto, qualifica-se o concreto negcio como contrato incompleto.
Nesse procedimento unitrio de interpretao e qualificao, deve-se
investigar, portanto, a causa in concreto, ou seja, a funo econmico-individual ou funo
prtico-social do contrato, considerada objetivamente, e identificada no caso concreto, que
exprime a racionalidade desejada pelos contratantes. A funo econmico-individual do
regulamento contratual incompleto h de abranger, em definitivo, o escopo dos contratantes
em gerir negativamente a lea normal do contrato.
A perspectiva funcional do contrato incompleto permite, assim, o
estabelecimento de critrios para a caracterizao dos negcios incompletos e de novos
parmetros interpretativos que guiaro sua execuo, figurando o regulamento contratual
incompleto como negcio jurdico que atende efetivamente aos interesses concretos dos
particulares na gesto de riscos atinentes a complexas operaes econmicas, no raro
desprotegidos pela insuficiente tcnica legislativa regulamentar.
De fato, os tipos contratuais tradicionais disponibilizados pelo
ordenamento jurdico se mostram, no mais das vezes, insatisfatrios proteo dos interesses
da autonomia privada no exerccio de suas atividades. Mxime em complexas operaes
econmicas que se protraem no tempo e se revestem de forte incerteza, com possibilidade
de supervenincia de diversos riscos econmicos.
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A autonomia privada eleger, por conseguinte, nessas hipteses, o contrato
incompleto, com o escopo de gerir negativamente a lea normal do contrato, protegendo os
seus interesses contra a oscilao da lea normal, a qual, uma vez verificada, acarretar o
desequilbrio entre as prestaes, com ganhos econmicos para um dos contratantes e
respectivas perdas para o outro, distribudos ex post mediante os critrios indicados ex ante
pelas partes. Por outro lado, o contrato incompleto, justamente por no conter disciplina
exaustiva dos elementos da relao contratual, exige dos contratantes padres de cooperao
mais elevados relativamente aos contratos dotados de gesto positiva dos riscos, a sofrer
incidncia diferenciada dos princpios da boa-f objetiva, da funo social, da solidariedade
social e do equilbrio econmico dos pactos.
4. Consideraes Finais
H, no ordenamento jurdico brasileiro, duas formas voluntrias de gerir a
lea normal dos contratos: a gesto positiva e a gesto negativa.
Pela gesto positiva, as partes alocam os riscos econmicos previsveis
segundo seus interesses, por vezes de forma diversa daquela prevista em lei. Dentre os vrios
instrumentos postos disposio das partes, a clusula resolutiva expressa se destaca pela
diversidade de opes que oferece aos contratantes.
A clusula resolutiva expressa concede ao credor transferir ao devedor o
risco de sua insatisfao, ou apenas disciplinar os efeitos decorrentes da concretizao de
riscos j imputados, pela lei, contraparte. De regra, utiliza-se o instituto como mecanismo
de gesto de especfico risco contratual: o inadimplemento absoluto. No entanto, a
autonomia privada faculta s partes valer-se da clusula tambm para (a) redistribuir as
perdas da supervenincia de caso fortuito e fora maior, bem como (b) para alterar os efeitos
de alocao anteriormente feita pelo legislador.
No primeiro caso, os riscos passveis de figurar na clusula so aqueles
que, uma vez concretizados, conduzem disfuncionalizao da relao obrigacional, ou, dito
de outro modo, incapacidade de o vnculo jurdico promover a funo econmico-
individual para o qual foi concebido. Podem os contratantes gerir acontecimentos inevitveis
e necessrios, atribuindo a um deles, expressa e especificamente, as consequncias de sua
concretizao. Assumindo o devedor a obrigao de prestar, a despeito da verificao do
evento pr-determinado, a impossibilidade da prestao que dele resulte configura
inadimplemento absoluto, e autoriza o credor a executar o contrato pelo
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equivalente ou a resolver a relao extrajudicialmente, sem prejuzo, em ambos os casos,
da indenizao por perdas e danos.
No segundo caso, incluem-se no suporte ftico da clusula os vcios
redibitrios. Os contratantes, valendo-se da alocao de riscos previamente determinada pelo
legislador, pactuam, de antemo, que tipos de vcios ocultos comprometem
irremediavelmente a utilidade da prestao para o credor, a dispensar o ajuizamento da ao
redibitria para a resoluo do negcio.
A gesto negativa, por sua vez, implementa-se por meio do contrato
incompleto, no qual as partes, de forma deliberada, no alocam ex ante o risco econmico
previsvel superveniente; as perdas e ganhos econmicos decorrentes do evento futuro so
distribudos posteriormente, quando de sua efetiva verificao, mediante o preenchimento
da lacuna contratual, de acordo com os critrios j definidos no contrato. O contrato
incompleto consiste assim, em uma palavra, em negcio jurdico que emprega tcnica de
gesto negativa da lea normal do contrato e que, por se revelar como soluo flexvel, se
apresenta, no mais das vezes, como medida que atende de modo mais efetivo aos interesses
das partes in concreto.
Assim sendo, h de se identificar no caso concreto o modo de alocao de
riscos positivo ou negativo empregado pelos contratantes, a partir da interpretao da
vontade declarada das partes, que poder ser expressa ou implcita, extrada da interpretao
sistemtica e finalstica das clusulas contratuais.
Por outro lado, os riscos que fujam esfera de previsibilidade dos
contratantes no caso concreto consistiro em riscos econmicos imprevisveis, razo pela
qual no podero constituir objeto de gesto pelas partes (no alocao involuntria do
risco). Nessa hiptese, presentes os demais pressupostos, aplicar-se- a teoria da excessiva
onerosidade prevista nos arts. 478 e ss. do Cdigo Civil.
Trata-se, portanto, a clusula resolutiva expressa e o contrato incompleto,
de institutos alicerados sobre a autonomia privada, e que conferem s partes a possibilidade
de gerir os riscos a que seu negcio est exposto de forma mais eficaz e consentnea com as
peculiaridades do negcio concreto, a fim de melhor promover a consecuo dos interesses
perseguidos.
Recebido em 03/01/2016
1 parecer em 20/01/2016
2 parecer em 14/02/2016
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SITUAES JURDICAS PATRIMONIAIS: FUNCIONALIZAO OU
COMUNITARISMO?
Patrimonials Rights: Functionalitazion or Comunitarianism?
Daniel Bucar Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Especialista em Direito Civil pela Universit degli Studi di Camerino
Professor de Direito Civil do IBMEC/RJ
Procurador do Municpio do Rio de Janeiro. Advogado.
Daniela de Carvalho Mucilo Mestre em Direito das Relaes Sociais pela PUC/SP
Especialista em Direito Civil pela Universit degli Studi di Camerino
Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito do Sul de Minas
Advogada.
Resumo: O artigo busca apresentar reflexos do debate entre pensadores liberais e
comunitrios no Direito. A controvrsia tambm afeta o conceito que em doutrina brasileira
se confere funo social e o ensaio apontar as divergncias, seguidas de uma proposta
conclusiva do debate.
Palavras-chave: Liberalismo. Comunitarismo. Funo Social.
Abstract: The article aims to present reflections of the debate between liberals and
communitarians in Law. The controversy also affects the concept that the brazilian doctrine
gives to the social function and the essay will indicate the differences, followed by a
conclusive proposal of the debate.
Keywords: Liberalism. Communitarianism. Social function.
Sumrio: Introduo 1. Liberalismo x Comunitarismo: A Dicotomia Histrica 2. Leitura
Liberal da Funo Social das Situaes Patrimoniais 2.1. Uma Nota sobre a Doutrina
Administrativista: O Interesse Pblico 3. Concepes No Liberais da Funo Social das
Situaes Patrimoniais 4. A Funo Social Expresso do Comunitarismo
Contemporneo? 5. Concluso
Introduo
A previso da funo social da propriedade na Constituio da Repblica
(artigos 5, XXIII, 170, III) e, posteriormente, a mesma funo como limite da liberdade de
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contratar no Cdigo Civil (artigo 421) suscita, em doutrina, o debate acerca da extenso
interpretativa que deve ser conferida ao termo, cujo prprio conceito ainda atrai alguma
incerteza.1
Como medida de superao da tica jurdica individualista,2 a discusso
encerra, em verdade, confronto que se confunde com a origem da prpria ideia de
ordenamento jurdico e traz ao ambiente de discusses duas antigas vertentes de pensamento
moderno: de um lado, os liberais e, de outro, os chamados comunitaristas. Ao passo que
liberais defendem o distanciamento estatal frente liberdade dos indivduos, os
comunitaristas adotam posio de uma pretensa interveno na esfera pessoal em prol da
coletividade.
No , portanto, de outra forma que se desenvolve o litgio ideolgico em
torno da funo social das situaes jurdicas patrimoniais,3 acerca de cujo debate o presente
estudo pretende adentrar, mediante a anlise, inclusive, da acepo que liberais e
comunitaristas imprimem ao tema.
1. Liberalismo x Comunitarismo: A Dicotomia Histrica
Embora os escritos acerca dos ideais comunitaristas, em contraposio aos
liberais, tenham sido largamente divulgados a partir da segunda metade do sculo XX, a
discusso encontra-se h muito enraizada no tempo, sendo possvel confundir o incio do
debate com a prpria idade moderna. Enquanto os liberais se sentem herdeiros de Locke,
Hobbes, Stuart Mill e, sobretudo, Kant, os comunitaristas encontram seus pilares no
pensamento de Hegel e Marx.
As premissas do pensamento liberal remontam era renascentista
europeia, quando se inicia o processo de secularizao do Estado, em contraposio ao
governo excessivo da nobiliarquia dinstica. A burguesia ascendente, que j gozava de
prestgio por conta do acmulo de riquezas, mas permanecia afastada do centro do poder,
inicia um processo de contestao da legitimidade do poder concentrado na mo da
1 SCHREIBER, Anderson. Funo Social da Propriedade na Prtica Jurisprudencial Brasileira. In: Direito Civil
e Constituio. So Paulo: Atlas, 2013. p. 245. 2 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: Temas de Direito Civil, 4. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 341. 3 Unificam-se propriedade e contrato, em que incidir a funo social, no termo situaes jurdicas
patrimoniais. Compreende-se que tal funo, como instrumento de qualificao da tutela a ser emprestada,
no diferenciada em razo do lcus de aplicao, seja na propriedade ou no contrato.
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nobreza e do clero, o que resulta na doutrina do liberalismo-individulalista. A liberdade passa
a ser o valor mximo ser perseguido e o movimento se espraia em vrios aspectos da
realidade, desde o filosfico at o social, passando pelo econmico, o religioso4 e refletido,
finalmente, na ordem jurdica oitocentista.
Em linhas gerais, os liberais clssicos defendiam a ideia de liberdade
racional a partir da conscincia do indivduo e a total desconfiana do Estado, o qual no
teria outra funo seno difundir e impor uma concepo de vida alheia, o que significaria
um paternalismo supressor da individualidade. Para esta corrente, o Estado deve ser neutro
em relao concepo individual sobre o bem5 e o pluralismo de interesses deve ser
apenas um dado a ser constatado - derivado das somas de viso de mundo - e no imposto
ao indivduo.6 De tais premissas, percebe-se que sobressai a relevncia, para os liberais, das
regras de mercado como fruto da liberdade (negativa), cujo valor, precedente ao prprio
Estado, assegurado por direitos fundamentais previstos no ordenamento jurdico.7 A
teoria liberal, portanto, valoriza o indivduo em relao ao grupo
social, o qual, autnomo, no se define por suas interdependncias econmicas, sociais,
religiosas, ticas, sexuais e culturais, visto que a ele dada a liberdade de rejeitar qualquer
proposio externa, por conta da sua racionalidade.
Renovado aps a crise do Estado do Bem Estar social e do socialismo
sovitico, o liberalismo ganha novos contornos no fim do Sculo XX com a globalizao do
mercado. Hayek8 e, com tendncia mais moderada, Rawls e Dworkin, despontam como
pensadores liberais que voltam a marcar a dicotomia histrica. Ao afirmar que os indivduos
so pessoas livres e iguais9 e que o Estado deve ser neutro e respeitar a
4 WOLKMER, Antonio Carlos. Cultura jurdica moderna, humanismo renascentista e reforma protestante.
Revista Sequncia, n 50, jul. 2005, p. 12. Disponvel em
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15182/13808. Acesso em 10.09.2013. 5 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004, p. 129 6 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004. p. 81 7 A reflexo liberal no parte da existncia do Estado, encontrando no governo um meio de atingir essa
finalidade que ele seria para si mesmo, mas da sociedade que vem estar numa relaco complexa de
exterioridade e interioridade em relao ao Estado. FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collge de
France. Trad. Andra Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 90. 8 HAYEK, F. A. A arrogncia fatal. Os erros do socialismo. Verso digital disponvel em http://www.libertarianismo.org/livros/fahaarroganciafatal.pdf. Acesso em 20.05.2013. 9 Em virtude do que podemos chamar suas capacidades morais e as capacidades da razo (de raciocnio, de
pensamento e capacidae de inferncia relacionada com estas capacidades, dizemos que as pessoas so livres.
E em virtude de possurem essas capacidades em grau necessrio a que sejam plenamente cooperativos da
sociedades, dizemos que as pessoas so iguais RAWLS, John. Justia como equidade: uma concepo poltica,
no metafsica. Trad.: Regis Castro Andrade. Revista de Cultura Poltica n 25, 1992. p. 37.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15182/13808http://www.libertarianismo.org/livros/fahaarroganciafatal.pdfhttp://www.libertarianismo.org/livros/fahaarroganciafatal.pdf
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liberdade,10 Rawls e Dowrkin, respectivamente, relem as premissas liberais e imprimem
novos contornos ao liberalismo clssico, sem, contudo, afastar de suas premissas bsicas: a
garantia da liberdade e da autonomia pessoal frente a um Estado que deve apenas tutelar o
exerccio livre deste primado.
Em contraposio s ideias liberais, o comunitarismo surge como
movimento ideolgico pouco aps o liberalismo, sendo, por muitos, datado no ps-
revolues francesas e industrial.11 Na realidade, a forma primitiva do comunitarismo
identificada na crtica marxista Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, para quem
a carta, sob o pretexto de difundir a liberdade, tinha como verdadeiro objetivo proteger a
propriedade burguesa. O sarcasmo marxista contra a Declarao reside na clebre
constatao de que, no obstante o texto tratar de direitos dos homens, no se via na
sociedade esta categoria de forma homognea; porm, burgueses e proletrios.12
Assim, contra a atomizao generalizada do indivduo liberal, Marx
prope uma reorganizao radical da sociedade, fundada na abolio da propriedade privada
com sua substituio para aquela coletiva dos meios de produo, de forma a eliminar os
confrontos ticos, polticos e econmicos entre classes. , portanto, nesta maximizao do
interesse da coletividade em detrimento de interesses individuais que repousa o trao de
identificao do comunismo marxista com a ideologia comunitria.13
O incio do Sculo XX, no entanto, apresentou dificultosas e opostas
experincias comunitrias, baseadas no interesse da coletividade, que imps a este iderio
um certo asilo. Seja o totalitarismo experimentado nos pases da extinta Cortina de Ferro,
seja aquele imprimido pelos regimes nazi-fascistas, cuja semelhana reside no
desconhecimento do valor da pessoa, a defesa de uma ideologia comunitria se tornou um
tabu.14 No obstante a presena da comunidade no Estado do Bem Estar Social, foi
necessrio que pensadores norte americanos reavivassem com novos argumentos tericos
10 DWORKIN, Ronald. tica privada e igualistarismo poltico. Trad.: Antoni Domench. Barcelona, Ed.
Paids, 1993, p. 59. 11 Embora possa se identificar as razes do comunitarismo na concepo organicista, prpria da Idade Mdia,
apenas se concebe como movimento ideolgico estruturado no Sculo XIX. PAZ, Valentina. Comunitarismo.
Enciclpedia delle Scienze Sociali. Treccani. Disponvel em: http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/ . Acesso em 12/05/2015. 12 PAZ, Valentina. Comunitarismo. Enciclpedia delle Scienze Sociali. Treccani. Disponvel em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/. Acesso em 12/05/2015. 13 PAZ, Valentina. Comunitarismo. Enciclpedia delle Scienze Sociali. Treccani. Disponvel em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/. Acesso em 12/05/2015. 14 BRUGGER, WINFRIED. O comunitarimo como teoria social e jurdica por trs da Constituio Alem.
Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11. p. 55.
http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/
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para uma contraposio ao iderio liberal, conhecido com o comunitarismo
contemporneo.
Identifica-se em autores como Alasdair Macintyre, Michael Sandel,
Michael Walzer, Charles Taylor, entre outros, uma teoria comunitria, com algumas
variantes, em que se identifica, como elementos comum, a noo em torno de uma
prioridade comunidade em relao ao indivduo, na medida em que ele essencialmente
um ser produzido culturalmente.15 No se trata suprimir a expresso individual,16
diversamente procura-se lev-la em considerao a partir dos olhos da comunidade.
Para um cotejo sinttico de ambos paradigmas, vlida a citao de
Maia:
De modo simplificado, o principal trao caracterizador da grande diviso
em torno da qual o debate sobre modelos de democracia vem se
desenrolando na cultura anglo-saxnica o seguinte: as vertentes liberais
sublinham a importncia dos direitos individuais como prioritrios em relao autonomia coletiva; j as correntes comunitarianas e republicanas
asseveram inspirados em Rousseau a primazia da vontade coletiva em
face dos direitos individuais.17
Dentre as variantes do comunitarismo, trs despontam com primazia: o
conservador, o universalista-igualitrio e o liberal. Em resumo, enquanto o conservador
prega o respeito individualidade quando diante de uma sociedade homognea,18 o
universalista-igualitrio busca o sentido da comunidade global, nos direitos humanos,
desconhecendo, inclusive, as fronteiras territoriais. Por fim, o comunitarismo liberal, que
evita os exageros das duas correntes citadas, legitima os interesses da pessoa considerados a
partir de um ncleo menor (famlia), que confere legitimidade sociedade e, por fim,
humanidade. Pretende-se, desta forma, compreender a validade das obrigaes morais a
partir dos menores ncleos at alcanar toda a comunidade.19
15 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004. p. 86 16 Muito embora a crtica no sentido de conduzir, de forma paternalista, a autonomia. FANRSWORTH, Alan.
Contracts. 4. ed. New York: Aspen, 2004. p. 29. 17 MAIA, Antnio C. Revista Jurdica da PUC-RJ. Disponvel em: Acesso em 10.09.2013. 18 O que seria utpico, pois na atualidade a maioria dos Estados so marcados pelo multiculturalismo.
BRUGGER, WINFRIED. O comunitarimo como teoria social e jurdica por trs da Constituio Alem.
Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11. p. 63. 19 BRUGGER, WINFRIED. O comunitarimo como teoria social e jurdica por trs da Constituio Alem.
Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11. p. 65.
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Verifica-se que o fio condutor de ambas variantes sempre perpassa,
diversamente do liberalismo, pelos interesses da comunidade, de forma que a autonomia
individual somente se justifica com a validao conferida pelo grupo maior.
Para o Direito, ambas correntes imprimiram - e ainda imprimem -
consequncias metodolgicas e interpretativas. Na realidade, possvel identificar,
inclusive, ser no debate da amplitude da autonomia privada que ambas escolas surgiram e se
desenvolveram:20 para liberais, que concebem a liberdade como um dado pr-jurdico, a
autonomia privada, protegida pelo Estado e por ele tambm incentivada, dever ser imune a
influncias externas; j para a concepo comunitria, o exerccio da auto- regulamentao
apenas se legitima, se atendidos os interesses da coletividade.
Neste confronto bilateral, entretanto, vlido tratar de uma terceira via
proposta por Habermas. Para o filsofo alemo, interesses individuais e coletivos, embora
tidos como fenmenos contrapostos, so, em verdade, situaes complementares. Mais que
complementares, duas faces de uma mesma moeda, pois, alm de ambas no subsistirem de
per si, moldam-se e tm origem mtua e conjuntamente.
Na medida em que ser humano apenas se reconhece como tal quando
inserido em sociedade e esta, da mesma forma, somente reconhecida a partir da
coexistncia prprio ser humano, o poder de auto e heteroregulamentao, da mesma forma,
surge da simbiose sociedade/homem que, mediante dilogo e concesses mtuas, partilha as
competncia e atribuies de regulamentao.21
Trata-se, em verdade, da noo de cooriginariedade dos interesses,
notadamente refletidos em autonomia pblica e da autonomia privada, que, defendida por
Habermas,22 prope no ser possvel verificar a precedncia ou sobreposio de um
fenmeno em relao a outro. Em uma sociedade democrtica, onde a autonomia privada
20 O conceito de liberdade acima exposto carrega de forma nsita uma relao de oposio entre o exerccio
da autonomia privada e os ento chamados limites externos ao exerccio da autonomia, provenientes de leis de
carter geral com origem no poder poltico estabelecido. Esta relao de oposio acaba por gerar uma tenso
que, de forma simplificada, pode ser identificada como a causa originria do debate entre liberais e
comunitaristas, tendo-se que aqueles evocam uma viso kantiana acerca da interpretao recproca dos
conceitos de direitos do homem e soberania popular, ao passo que estes partem de uma concepo
rousseauniana. SILVA, Denis Franco. O princpio da Autonomia: da Inveno `Reconstruo. In: MORAES,
Maria Celina Bodin de (coord.). Princpios de Direito Civil Contemporneo. Rio de Janeiro, Renovar, 2006. p.
140. 21 Neste sentido, as identidades individuais e sociais se constituem a partir da sua insero em uma forma de vida compartilhada, na medida em que aprendemos a nos relacionar com os outros e com ns mesmos atravs
de uma rede de conhecimento recproco, que se estrutura atravs da linguagem CITTADINO, Gisele.
Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004. p. 91. 22 HABERMAS, Jurgen. Facticidad y validez. sobre el derecho y el estado democratico de derecho en trminos
de teora del discurso. 4. ed. Madrid: Trotta, 2005. p. 165.
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constitui a legitimao para o exerccio da autonomia pblica - e vice-versa,23 ambas formas
de regulamentao so delimitadas simultaneamente e, atravs de um processo dinmico,
dialogam de modo perene.
Postas as divergncias entre as escolas liberal e comunitria, bem como da
terceira via habermasiana, no indene de reflexos a interpretao que se d funo social
das situaes patrimoniais no ordenamento brasileiro. Os prismas interpretativos a partir de
cada viso, a propsito, so to dspares quanto as prprias escolas.
2. A Leitura Liberal da Funo Social das Situaes Patrimoniais
Na medida em que condiciona o exerccio das situaes patrimoniais no
ordenamento brasileiro, a funo social ganha contornos interpretativos prprios em
doutrina, a partir das lentes tingidas pela ideologia a que se filia o observador. Embora se
apresente, de certa maneira, paradoxal uma leitura liberal da funo social, j que, em tese e
a prima facie, ambos os conceitos parecem configurar uma contradio terminolgica,
possvel encontrar textos que promovem a conjugao lgica e racional dos termos.
Ao assimilar a funo social supresso do exerccio da autonomia
privada do indivduo, visto que prpria de regimes totalitrios, Sztajn incisiva ao limitar
seu significado a um compromisso moral com a responsabilidade social, reafirmando, de
toda sorte, que o termo no pode ser enfrentado como limitador da liberdade contratual:
Ser que um cdigo de direito privado - mesmo que seja visto como a
constituio do homem comum, na dico de Miguel Reale - deve conter dispositivos que induzam as pessoas a agirem tendo em vista interesses de
terceiros, a distribuir benesses ou agir de conformidade com interesses do
Poder Pblico? Esse sentido que se daca expresso funo socialno
ordenamento italiano poca do fascismo. Prever funo social para a empresa, assim como para a propriedade, nada mais era que meio para
facilitar a interveno ou controle do Estado sobre a atividade econmica
ou a propriedade fundiria, de vez que a titularidade sobre esses bens era reconhecida na medida em que satisfizessem o interesse nacional. Contudo,
os italianos, assim como os alemes, no se atreveram a ipor funo social
aos contratos! Foram contidos por algum sentido de prudncia.
23 Nesse sentido: Trata-se da codependncia desses dois tipos de autonomia, vez que uma condio para o
exerccio da outra. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Sade, Corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 151.
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Retrospecto histrico permite constatar que recorre funo social
caracterstica de regimes no democrticos (...).24
Quanto ao exerccio da empresa, que no se faz sem contratos, a funo social que se pretende venha ela a exercer implica liberdade de contratar com responsabilidade social. Mas no se supe sirva para comprometer a continuao e estabilidade que a atividade requer e que devem dominar a
sua preservao.25
Parece seguir a mesma trilha Salomo Filho. Com efeito, ao alargar o
conceito analisado e entender que a funo social a prpria funo de toda e qualquer
relao da vida civi,26 constata-se um esvaziamento do prprio termo para permitir a
manuteno do status quo. Tambm perfilha o mesmo entendimento Theodoro de Mello,
que, embora reconhea um interesse externo na funo social, entende, no entanto, que no
se lhe pode permitir uma virtude solidria:
O princpio dirige-se, portanto, a inspirar a interpretao de todo o
microssistema do direito dos contratos e integrar suas normas, bem como para limitar a liberdade privada, impedindo que se ajustem obrigaes
atentatrias aos demais princpios, valores e garantias sociais. Dever
inspirar, ainda, a interpretao do prprio ajuste, porquanto no se admitir sua execuo de modo a contrariar os interesses e fins que a sociedade
vislumbrou em determinado tipo contratual.
Mas no poder o aplicador do direito arvorar-se de realizador de polticas
tendentes a realizar a redistribuio de riquezas e a poltica social que
entender mais justa. A autonomia da vontade garantia que s cede em
face do interesse pblico e nos termos da lei. S a deformidade, o absurdo e o teratolgico exerccio do direito de contratar, que atente contra a
regularidade das relaes privadas e leve a aviltar os prprios fundamentos,
as garantias e os valores sociais que sustentam e protegem a liberdade
que ser passvel de invalidao por interveno do juiz.27
Ainda sob ares liberais, mas com a internalizao do discurso da anlise
econmica do direito, Timm segue o mesmo modelo do livre exerccio da autonomia
privada, defendendo, inclusive, uma reverso de paradigma contratual brasileiro, que a
proteo da parte mais fraca. Neste sentido, afirma que:
24 SZTAJN, Rachel. A funo social do contrato e o direito dc empresa. Revista de Direito Mercantil,
Industrial Econmico e Financeiro. n. 139. So Paulo: Malhciros. p. 31. 25 SZTAJN, Rachel. A funo social do contrato e o direito dc empresa. Revista de Direito Mercantil,
Industrial Econmico e Financeiro. n. 139. So Paulo: Malhciros. p. 48. 26 SALOMO FILHO, Calixto. Funo social do contrato: primeiras anotaes. Revista de Direito
Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro. n. 132. So Paulo: Malheiros Editores. p. 13. 27 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A funo social do contrato e o princpio da boa
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