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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 3165
QUESTÕES DE EDUCAÇÃO NA TRILOGIA SOBRE O BRASIL DE MANOEL BOMFIM NA DÉCADA DE 1920-1930: UM (CONTRA)DISCURSO COMO
INDÍCIO DE PENSAR O PROGRESSO
Marcela Cockell1
Questões iniciais
Este estudo, ainda inicial, tem como objetivo apresentar algumas considerações em
torno das obras O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil nação
(1931) de Manoel Bomfim. Nossa abordagem pretende esboçar as perspectivas do autor em
torno da educação na dialética destas obras no contexto histórico de 1920 -1930. Esta trilogia
se destaca pela análise crítica da formação social brasileira, demonstrando a preocupação
com a relação entre educação e civilidade, em convergência com os debates intelectuais que
perpassam as décadas de 20 e 30 e culminaram na publicação do Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova (1932). Neste ponto, o seu discurso engajado em relação à educação está em
diálogo com as proposições sociais e políticas expressas nesta época e sua busca por
renovação e reorganização nacional da educação.
Nas obras é possível perceber a dualidade da ideia do “contra” em seu discurso, se
mostrando como um reforço para o debate, uma marca do autor que sinalizamos como
contradiscurso. Este “contra” não é apenas contrário, mas um movimento contracorrente ou
de deslocamento de um lugar comum. Bomfim apresenta a ideia de um futuro pela educação
buscando explicar o passado: sobre a América (nossa colonização), pela história (brasileira) e
para uma nação (soberana). Sua preocupação era elaborar uma produção interpretativa,
entendendo o processo social como contínuo e não apenas cronológico, ou seja, entender as
origens e seus males como forma de redefinir a própria história, as tradições e nos
estabelecermos como nação, tendo a educação como elemento indispensável neste processo.
Pela proposta da micro-análise (Revel, 1998) buscaremos vestígios ou indícios (Ginzburg,
1987) que permita empreender outros olhares em relação à tríade. Consideramos a micro-
história como metodologia em relação ao nosso modo de ver, graduando o foco entre as
1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: <marcelacockell@hotmail.com>.
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concepções do autor sobre a educação na trilogia, o micro; no contexto social e político em
torno de sua publicação, o macro.
Bomfim pretende defender uma representação da identidade nacional, ampliar as
perspectivas do seu ideário de “revolução pelo progresso”, sobre o dever do Estado na
instrução pública, a preocupação com a criança, o ajustamento físico e mental do indivíduo
na escola, as questões eugenistas, a questão do trabalho, a concepção de nação e o alcance do
progresso. Sua proposição tem aproximações com as propostas dos pioneiros da Educação
Nova na intenção de construir um ideal reformador, que justificasse o fracasso do Estado até
então. Para Bomfim, a instrução pública era fundamental para a democratização da
sociedade, isto é, a educação era o expoente de uma nação moderna e soberana.
Do olhar, do entre-lugar: a educação pela história
De certa forma, pensar neste movimento de olhar aquilo que não está no centro, bem
claro às nossas vistas, é um desafio ao nosso exercício de pensamento e de pesquisa. Não
estar em evidência, não significa a sua ausência, é necessário se deslocar para as
possibilidades partindo do já estabelecido para as minúcias indiciárias, como as pegadas
deixadas no percurso da margem ao centro. É um exercício sugestivo de perspectiva:
descentralizar e retomar.
Buscaremos neste trabalho, brevemente, sintetizar algumas questões iniciais para
reflexão em torno da trilogia de Manoel Bomfim2 (1868-1932): O Brasil na América (1929),
O Brasil na história (1930) e O Brasil nação (1931), que envolvem seu contradiscurso
engajado e seu diálogo com as ideias apresentadas no Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova de 1932. Desse modo, esta abordagem pretende sinalizar os vestígios deixados pelo
autor em relação às questões relacionadas à educação em um contexto histórico-político de
transformações e debates, que em seu caso, partiu da Belle Époque3 (1898- 1914), em que se
caracterizou como intelectual engajado4, ao início da Segunda República (1930 a 1945) na
capital federal. Segundo Bomfim (1929), as obras da tríade são uma continuação das
2 Sergipano da cidade de Aracaju, Manoel José do Bomfim (1868 -1932) cursou medicina na Faculdade de Medicina na Bahia, mas concluiu seus estudos no Rio de Janeiro em 1890. Atuou como médico até 1894 quando sua filha faleceu devido à febre tifoide e se desiludiu com a medicina. Este fato acabou por estimular sua atuação na educação. Foi diretor do Pedagogium (1896); professor de instrução moral e cívica na Escola Normal do Rio de Janeiro (1897); diretor da Instrução Pública do Distrito Federal e diretor interino da Escola Normal do Rio de Janeiro (1898); deputado federal pelo estado do Recife (entre 1907 e 1908) e membro da Liga Brasileira de Saúde Mental (1923).
3 Consideramos o recorte de Needel (1993). 4 Conforme a definição de Sartre (1994): como uma figura que intervém criticamente na esfera pública trazendo
consigo o seu conteúdo intelectual em diferentes áreas, sua autonomia de opinião e sua visão da atualidade.
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proposições apresentadas em A América Latina: males de origem (1905)5, ou seja, a partir
desta obra podemos observar, em torno da educação, as suas questões, suas articulações, a
formação de seu discurso6 e a sua exposição na sua produção que se segue na trilogia.
Para nos ajudar transitar neste espaço movediço, à procura de vestígios que podem
estar contidos em uma outra linha7 (história, sociedade, linguagem), utilizamos como
estratégia a microanálise. A micro-história nos auxilia a potencializar nossa capacidade de
observação, o entreolhar, mostrando, sutilmente, que além do olhar, precisamos de um modo
de ver:
Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo de ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao primeiro (BOSI, 2000, p.10, grifos do autor).
Para focalizarmos no objeto do nosso olhar são necessárias lentes que se graduam:
aumentam, diminuem, aproximam, distanciam, ou seja, a possibilidade de mudar as escalas
da objetiva, modificando o nosso modo de ver: o micro e o macro. Para esta questão, Revel
(1998, 2010), nos ajuda a compreender outras articulações e outras perguntas ao nos
depararmos com determinados indícios que nos levarão a outras interpretações sobre um
objeto, que muitas vezes não está em evidência. Por esta razão, pensar numa variação de
escalas entre o micro e o macro nos auxilia a observar Bomfim de um outro foco, em uma
escala que nos convida a revisitar aspectos diferentes que numa visão macro poderia não ser
percebida. Revel (1998, p.15) denominou este movimento de variação de lentes como “jogos
de escala”. Nesta perspectiva, o micro e o macro não são excludentes, o que varia é o modo de
olhar do observador em pensar no micro como a especificidade e no macro como a
generalização:
5 Na dissertação de mestrado trabalho a referente obra de 1905 e Através do Brasil (1914), de co-autoria com Olavo Bilac, assim como o engajamento intelectual do autor e suas redes de sociabilidade no período da Belle Époque (1898-1914). Cf. COCKELL, 2011.
6 Consideramos aqui o texto pertencente ao o discurso: toda a atividade comunicativa, numa situação determinada, conforme Koch e Travaglia (2011, p.12).
7 A importância da linguagem, aqui analisada sob a perspectiva linguística dos estudos do discurso, é fundamental para compreensão dos processos e ações sociais no seu contexto histórico. Segundo Burke (1995, p.10), a linguagem pode ser reconhecida como uma instituição social, parte da cultura e vida cotidiana entre os seus membros e contextos, desse modo qualquer forma de comunicação, oral ou escrita, não é neutra e podem ser fontes ou objetos históricos.
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A abordagem micro-histórica se propõe enriquecer a análise social tornando suas variáveis mais numerosas, mais complexas e também mais móveis. Mas esse individualismo metodológico tem limites, já que é de um conjunto social – ou melhor, de uma experiência coletiva – que é sempre preciso procurar definir as regras de constituição e de funcionamento (REVEL, 1998, p. 23).
O contradiscurso de Bomfim pode ser considerado uma destas varáveis que nos
permite analisar alguns micro-detalhes. No nosso trabalho consideramos o contradiscurso,
não apenas em seu caráter contrário, mas o de se deslocar do fluxo e dessa forma
desconstruir aquilo que parecia sedimentado. O contradiscurso de Bomfim trabalha como
uma desconstrução do que já foi proposto, e por isso, em seu tempo se torna polêmico. As
concepções de Foucault8 (1972) e Derrida9 (1971, 1973) para esta questão nos ajuda a pensar o
quanto Bomfim, como autor, se coloca em um movimento de desconstrução, ou
deslocamento em relação às interpretações cristalizadas e defendidas pela intelectualidade
corrente. Desta forma, seguindo este raciocínio, podemos ainda pensar neste deslocamento
do autor para um entre-lugar, conforme a proposição de Santiago (2000), como um conceito
em que um autor questiona a dubiedade da intelectualidade que se coloca num repertório de
“imitação” de conceitos canonizados enquanto deveria operar deslocamentos e evidenciar as
diferenças, buscando transgredir e não apenas repetir, como um intelectual engajado10, de
fato.
Sendo assim, podemos pensar na configuração do entre-lugar, na análise das obras da
trilogia e do próprio autor, como um termo de esforço interpretativo que define o espaço
intelectual e a sua representação, expondo suas direções e demonstrando as suas opiniões. O
discurso contracorrente, a preocupação com à instrução primária, as críticas ao Estado e seu
a anseio pela educação como fundamental para o progresso são expostas em suas obras,
inclusive na sua trilogia, cujo objetivo é fundamentar o pensamento e social brasileiro.
O discurso deste contradiscurso são as vozes ideológicas que constroem as ideias do
autor para àqueles quem escreve (seus leitores) e é contemporâneo às ideias correntes.
Bakhtin (1997) fundamenta a polifonia e a dialogia como conceitos que marcam a
composição do discurso. Segundo Bakhtin (1997), texto em seu conjunto, é composto por
8 Foucault (1972) faz a leitura de Nietzsche, Freud e Marx deslocando (ou descontinuando) suas interpretações para as relações do saber e do poder.
9 Derrida (1971,1973) propôs a desconstrução dos conceitos para além do significado (metafísica da presença) colocando em crise os estudos estruturalistas.
10 Entendemos como o intelectual engajado conforme conceito formulado por Sartre, como sendo aquele que intervém criticamente na sociedade, dialoga intencionalmente com as ideias mais densas procurando dar direção a elas, e revelando a sua opinião crítica de forma autônoma e objetiva (NOVAES, 2006, p. 161).
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ideias e múltiplas vozes que constituem a sua totalidade, e por isso, é polifônico11. O diálogo
do autor para o seu leitor consiste no dialogismo e que tem várias concepções inseridas:
filosofia de vida, fundamentações políticas e sociais e concepções de mundo. Bomfim articula
em seus textos com as transformações sociais e políticas de seu tempo numa percepção
individual e coletiva de seus pensamentos, que pelo seu caráter contrário, se tornou
transgressora, como veremos, a partir de A América Latina: males de origem (1905). Por
isso, pensamos num contradiscurso, na perspectiva do deslocamento, da desconstrução de
um entre-lugar.
Podemos dizer que a obra A América Latina: males de origem (1905) foi um marco
relevante para Bomfim, delimitando o seu engajamento intelectual e o seu contradiscurso. A
obra foi o ponto de partida para que Bomfim entrasse nas discussões entre intelectuais e
virasse algoz de Silvio Romero12. A preocupação com a formação do povo brasileiro constituiu
o principal debate da geração de Sílvio Romero e Manoel Bomfim, que tinha como objetivo a
construção de uma nova nação, civilizada, comprometida com o progresso, influenciados
pelas ideias de modernidade que marcaram a Belle Époque (1898 - 1914). Contudo, sua
percepção ia além da presença da aparente modernidade, mas na ausência de se pensar nos
problemas sociais já existentes, e que eram visíveis:
Basta observar, sabendo observar, penetrando no nevoeiro das aparências, dominando o desencontro dos detalhes, para achar o fundo solo das causas reais. Observação difícil e geralmente incompleta. Uma sociedade é um fenômeno vasto demais; para dominá-lo, no conjunto das suas manifestações, é preciso que o espírito se sobreponha a si mesmo, e não se deixe nunca tentar nem absorver por uma série de efeitos (BOMFIM, 1905, p. 263).
Enquanto Sílvio Romero privilegiava o determinismo racial como elemento autônomo
que se impõe, a partir de fatores climáticos ou geográficos, Bomfim ia de encontro às teorias
das raças: do branqueamento e das etnias inferiores do povo brasileiro como justificativa
para o atraso brasileiro. Para Bomfim, a questão das raças estava mais ligada às relações
sociais entre as classes dominantes e dominadas, concebendo a sociedade dentro de um
11 Bakhtin criou o conceito especificamente para designar o projeto estético de Dostoievski (1997), onde a voz dos personagens e a voz do autor falavam em uma mesma altura e simultaneamente. Contudo, hoje a polifonia e o dialogismo são estudados no âmbito do texto, como uma forma de pensar as vozes do discurso e a intertextualidade, levando em consideração o pertencimento individual e social.
12 Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero era também um intelectual engajado: um homem de letras, jornalista, crítico, historiador e membro da Academia Brasileira Letras e famoso por usas críticas ferozes. Escreveu em 1906, suas críticas em relação à obra de em Os Annaes uma série de artigos sob o título Uma suposta teoria nova da história latino-americana, sendo compilado em um livro no mesmo ano: A América Latina: analyse do livro de igual título do Dr. Bomfim. Tornou-se um importante interlocutor da rede de sociabilidade (ver COCKELL, 2011).
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sistema, o “parasitismo social”13. Para o autor a “cura” para os “males” do Brasil seria a
educação.
Bomfim tem uma característica própria de estar neste deslocamento entre o centro e a
margem, de estar no limiar do “entre”: no entrelugar. É um movimento dicotômico:
corrente/contracorrente, discurso/contradiscurso, esquecido/lembrado. Como vimos, o
autor carrega, em sua essência, uma oposição “entre um e outro” sugerindo tirar ou mudar
um lugar (ou de lugar) ou ser contrário a um determinado centro para reforçar outro. Não é
simplesmente negar. Estar no entre-lugar causa um desconforto pela suspeita de seu
descentramento, mas esta é a sua intenção: descentralizar para reconhecer a ideia de que o
centro deve ser questionado.
Bomfim transita pela por diversas áreas do conhecimento, sobretudo na história da
educação. A trilogia O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil
nação (1931), aborda suas proposições em relação à educação, especialmente a instrução
pública, no período de 1920 a 1930. Como vimos, conseguimos deslocar nosso modo de ver
com lentes de diferentes escalas e descentralizar determinadas ideias de um entre-lugar,
entendendo que o “contra” pode ser uma construção, inclusive no discurso. Neste momento,
buscaremos identificar, nas entrelinhas da tríade de Bomfim, as lacunas que precisam de
nossa atenção para proposições posteriores, já que as propostas apresentadas neste trabalho
são timidamente iniciais.
A tríade composta por O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O
Brasil nação (1931) se destaca pela análise da formação social brasileira, carregado de
críticas em relação às teorias de inferioridade cultural, social e econômica dos latino-
americanos. Segundo o autor as obras dão continuidade às ideias de A América Latina:
males de origem (1905), especialmente em relação às teorias que justificariam o atraso
brasileiro em relação à Europa. A trilogia foi publicada 24 anos depois e durante este tempo
Bomfim se dedicou a publicar outras obras, para o público infanto-juvenil e professores,
dentre eles: Através do Brasil (com Olavo Bilac em 1910), Lições de pedagogia: teoria e
prática de educação (1915), Noções de psicologia (1916) eram manuais de práticas
pedagógicas e Pensar e dizer (1923), pioneiro nos estudos relacionados a linguagem e a
psicologia com um laboratório que funcionava dentro do Pedagogium14.
13 Consiste na lógica da dominação externa imposta pelo colonialismo europeu, combinada com a dominação interna imposta pelas elites, causando males aos povos latino-americanos.
14 O Pedagogium tinha a função de coordenar as atividades pedagógicas do país e estimular reformas para o ensino público. Lá funcionava O Laboratório de Psycologia Experimental planejado por Manoel Bomfim foi enviado a Paris em 1902 pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Estudou psicologia com Georges Dumas e Alfred
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O autor demonstra nesta trilogia a preocupação em elaborar uma produção
interpretativa, entendendo o processo social como contínuo e não apenas cronológico. As
obras já possuem o mérito de tentar, naquele momento, entender as origens e seus males
como forma de redefinir a própria história, as tradições e nos estabelecermos como nação.
Diferente da obra de 1905, Bomfim utiliza uma linguagem menos metafórica, se distanciando
de um texto que evidenciava um discurso de “diagnóstico” com a utilização de termos
médicos como “males” e “cura”, para uma proposta de contornos mais históricos, com um
esforço em expor metodologicamente sua linha de pensamento, com a presença de seu
contradiscurso, topicalizando o objetivo de sua análise na descrição de cada livro da série:
América, história e nação e tendo como centralidade o Brasil.
Podemos dizer, até o momento, que a trilogia é uma tentativa de sintetizar a história
brasileira, levantar questões que inspirem os ideais de nacionalidade e progresso partindo da
educação popular. Em O Brasil na América (1929), procura explicitar as questões
relacionadas às diferenças entre a colonização da América portuguesa e espanhola,
mestiçagem e sentimento latino-americano. Em O Brasil na história (1930), destaca a
importância das tradições nacionais e as questões históricas e, por fim, em O Brasil nação
(1931), aborda questões ligadas a nacionalidade, democracia e revolução pela educação.
Ora, O Brasil que vem atrasado se séculos, e nada tem de válido a conservar, há de arder, nessa obra revolucionária, que nem chega a ser renovação, mas tardio nascimento. Repete-se: que a necessária regeneração tem de ser inicialmente uma obra de educação e formação do povo. Sem dúvida: é indispensável que a massa da nação brasileira suba de nível – mental e social, mediante sistemática educação (BOMFIM, 1998, p. 665)
É necessário pensarmos, a dialética destas três obras em conjunto, para entendermos
as vozes presentes em seu discurso e seus interlocutores como um todo, sem destituí-la do
seu sentido original. Para estabelecermos a construção das ideias de Bomfim em torno da
educação não podemos corroer sua essência transgressiva, que contrapõe ao entre-lugar com
nítidos contornos de construção. Numa perspectiva histórica, o contexto em que a trilogia foi
publicada, no desencadear da Segunda República (1930 a 1945), nos remete à questão da
dialética das obras e do autor numa dinâmica social que refletindo a relação entre os espaços
e os fatores sociais que geram as especificidades históricas. As obras O Brasil na América
(1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil nação (1931) dialoga com as novas propostas
em educação em ebulição: o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932.
Binet (na Universidade de Sorbonne). Durante esta viagem escreveu A América Latina: males de origem publicado em 1905.
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Podemos dizer que existem pontos, os nossos vestígios, ao analisarmos as ideias
latentes que permeavam a reforma da instrução pública e as obras da trilogia. A preocupação
do autor em pensar uma população civilizada através da educação, é uma concepção
constantemente presente na bibliografia do autor, e também ganha destaque nas obras da
tríade: o dever do Estado, a preocupação com a criança, o ajustamento físico e mental do
indivíduo na escola, as questões eugenistas, a questão do trabalho, a concepção de nação e o
alcance do progresso pela educação.
A geração que se intitulou “pioneiros” tinha a intenção de construir um ideal
reformador, e por isso, procura novas propostas teórico e metodológicos para implementar a
ideia de um novo começo, e justificasse o fracasso do Estado até então. Bomfim seria visto
como um representante da geração passada, que necessitava ser superado. Pretendemos
investigar se essa caracterização dada ao autor colaborou para um entendimento superficial
de sua obra, marcada pela contraposição, mas interpretada como conservadora.
Bomfim acreditava que a educação deveria servir à nação e que este seria o grande
projeto para o Brasil. Em O Brasil nação (1931), o autor sinaliza que só a educação,
especialmente a pública, de responsabilidade do Estado, permitiria uma revolução. Educar
também significaria preparar para o mercado de trabalho, desse modo a ideia da cidadania
estava determinada pela inserção no mercado de trabalho, isto é, o trabalho como um ato
civilizador e, por isso, uma forma de valor social. Bomfim concordava com os pioneiros ao
pensar na educação como uma construção com resultados à longo prazo, sem imediatismo,
mas como um investimento de função social, democrática e única pelo Estado:
Para os signatários a escola devia ser compreendida como célula mater, núcleo de difusão e irradiação de uma nova concepção de civilização, onde a ela era destinado um papel fundamental na reconstrução do país, mas para que isto se efetivasse cabia ao Estado o papel central de coordenador e gestor na execução de uma proposta unificada para a educação pública (CAMARA, 2003, p.39)
Esse conceito em relação ao papel transformador da educação é demonstrado em
Cultura e educação do povo brasileiro (1932), sua última obra, publicada postumamente,
no mesmo ano do Manifesto:
Sofremos, neste momento, uma inferioridade, é verdade, relativamente aos outros povos cultos. É a IGNORÂNCIA, é a falta de preparo e de educação para o progresso – eis a inferioridade efetiva; mas ela é curável, facilmente curável. O remédio está indicado: necessidade imprescindível de atender-se à instrução popular (BOMFIM, 1932, p. 41).
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Podemos pensar que o discurso de Bomfim na sua trilogia são vestígios, entrelinhas
que precisam ser investigadas com outras variações de lentes, com mais astúcia no
entreolhar, tendo sua trilogia como objeto e a reciprocidade de seu discurso na busca por
respostas para perguntas que ainda precisam ser feitas.
Considerações Preliminares
Este trabalho ainda é um estudo iniciante, que superficialmente pretendeu apresentar
alguns pontos que se mostraram relevantes acerca de questões referentes à educação nas
obras que compõem a tríade de Manoel Bomfim: O Brasil na América (1929), O Brasil na
história (1930) e O Brasil nação (1931), destacando, especialmente, a importância de seu
contradiscurso como uma característica marcante do autor, não apenas como um estilo, mas
como uma forma de se apresentar como um intelectual engajado, que observa e questiona
transformando a ação escrita também como uma ação política, no caso de Bomfim, tendo
como objetivo o debate em torno da educação brasileira, que a seu ver, seria a única maneira
de vislumbramos algum progresso. No momento da publicação de sua trilogia as suas
esperanças nos ideários republicanos ou de modernidade já não se sustentavam, a desilusão
tomada pelos seus últimos anos de vida só lhe permitia acreditar naquilo que se dedicou uma
vida inteira: a educação como redenção de uma nação. Através da história brasileira Bomfim
acredita em um modo de pensar no futuro pelo passado:
Ora, as tradições existem, concretamente, na história nacional, que, por isso, tem de ser defendida com a mesma vivacidade e intransigência com que são tratados e defendidos os interesses reconhecidos e o patrimônio comum. Não pareça estranha esta fórmula defender a história nacional... A história é o campo onde se travam todos esses combates de que resulta a vitória de umas instituições sobre as outras, e classes e doutrinas, em detrimento de outras, pois que as instituições, classes e doutrinas são outros tantos meios em que deriva a experiência comum, como são os aspectos concretos em que as tradições se confrontam e se combatem. No final toda a história se reduz a contendas de tradições, sem perder, por isso, o papel superior. – De fazer a confiança da nação nos próprios destinos, delineados pelos fatos já explícitos. Daí resulta, juntamente, o dever de ser a história sincera purificada, vivaz, exata... capaz de orientar, estimular e defender o desenvolvimento nacional de que participamos, e que se torna cada vez mais consciente nas aspirações comuns. Desta sorte cria-se na história, mais do que em qualquer das instituições concretas, um mundo onde se encontram os desejos e as realizações através dos tempos e das classes sociais. Vão com ela os sentimentos dominantes e fecundos, sem que isso lhe contradiga a função essencial, antes beneficiando-a, pois que o sentimento é o próprio estímulo na consciência “não é a razão; é a paixão que faz a história porque é a paixão que trabalha para o futuro” (BOMFIM, 2013, p. 56, grifos do autor)
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Vale ressaltar que até o momento o estudo das obras com mais afinco ainda necessita
de intenso investimento teórico, a priori destacaremos nossos principais movimentos.
Primeiramente, buscamos apresentar uma investigação que nos auxilie a interpretar as obras
da tríade, numa tentativa de propor uma zona de contato entre o nosso olhar e o do autor. O
olhar e o entre-lugar, aqui, é a troca, numa atitude de entender a força do objeto, no caso, do
poder do texto de Bomfim e sua representação concernente às questões da educação. A trilha
escolhida foi pelo viés da microanálise, a partir da abordagem da micro-história Revel (1998).
A micro-história nos permitiu acionar um desvio pela margem, instituindo uma forma de
descentralizar o olhar, deslocar o discurso e desconstruir elementos com a perspectiva de
exercer uma heterogeneidade. Partindo da questão educacional, como a linha central do
pensamento de Bomfim dentro da história da educação, deslocamos o seu olhar, o seu
contradiscurso e a sua inversão ao demonstrar identificações com as propostas apresentadas
pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932.
Referências
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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 3175
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