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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
EGLE BETÂNIA PORTELA WANZELER
O PENSAMENTO SENSÍVEL NOS ENTRE-LUGARES DA CIÊNCIA: FORMAÇÃO DE
PROFESSORES INDÍGENAS EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA/AM
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2012
EGLE BETÂNIA PORTELA WANZELER
O PENSAMENTO SENSÍVEL NOS ENTRE-LUGARES DA CIÊNCIA: A EXPERIÊNCIA
DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SÃO GABRIEL DA
CACHOEIRA/AM
Tese de Doutorado apresentada como requisito
parcial para obtenção de Grau de Doutor em Ciências
Sociais do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais, da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
Orientadora: Profa Dra Lúcia Helena Vitalli Rangel
SÃO PAULO
2012
TERMO DE APROVAÇÃO
EGLE BETÂNIA PORTELA WANZELER
O PENSAMENTO SENSÍVEL NOS ENTRE-LUGARES DA CIÊNCIA: A EXPERIÊNCIA
DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM SÃO GABRIEL DA
CACHOEIRA/AM
São Paulo,_____, de___________, de 2012
BANCA EXAMNINADORA:
Profa Dra. Lúcia Helena Vitalli Rangel (PRESIDENTE)
MEMBRO
MEMBRO
MEMBRO
__________________________________________________________
MEMBRO
AGRADECIMENTOS
À professora Lúcia Helena Vitalli Rangel, por ter aceitado orientar esta pesquisa em
tempos difíceis para mim, pelas contribuições fundamentais que enriqueceram meu trabalho, dotadas de sabedoria, rigorosidade e tolerância, e pela solidariedade e afetividade que teve comigo ao longo dessa jornada. Ao professor Edgard de Assis Carvalho pelas inspirações teóricas e poéticas que tanto me iluminaram durante a pesquisa. À minha família, por tudo, pela totalidade dessa construção. Ao Everdan da Silva Souza, íntimo amigo, pelo afeto carinhoso e pelo incentivo contínuo para que eu continuasse trabalhando nesta tese. Aos amigos do Sul, Suely e Luiz Mello pela presença divina, apesar de estarem distantes. Às minhas amigas especiais, Dudu, Maria de Jesus, Leila, Cacau, Sônia Peixoto, Rita Veloso, Carla, Clélia, Anete, Alice e Ângela Silva, pelo amor e força necessária e fundamental. Ao Marcos Freitas, anjo amigo, solidário em todos os momentos. Ao Sully Sampaio, amigo Lilly, pela presença espirituosa que tornou mais risível a minha vida. À Janeth Cisnero, amiga, irmã, companheira e incentivadora, por todos os cuidados. Ao Luís Balkar e à Luíza Ugarte, amigos sempre solidários nesta travessia. Ao amigo Harald Pinheiro, pela presença e apoio incondicional, típico dos homens sensíveis e fraternos. Ao Ailton Siqueira, amigo Arlequim, pelas contribuições cósmicas e singulares que me permitiram enxergar novas possibilidades de compreensão desta tese. Ao Américo Sommerman, amigo e “irmão Águia”, pela iluminação e ensinamentos da transdisciplinaridade e pela escuta sensível. Ao Tenório Telles, amigo protetor, sempre presente e solidário. Ao Luís Carlos Cerquinho, pela renovação fundamental da amizade. Às professoras Valéria Weigel e Arminda Mourão da Universidade Federal do Amazonas, pela solidariedade e amizade fundamentais em tempos muito difíceis.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, pelo apoio financeiro nos tempos primeiros desta tese e pela compreensão pelo atraso da entrega. À Universidade do Estado do Amazonas, pela concessão do afastamento para o estudo. À Secretaria Municipal de Educação de Manaus, pelo Programa Qualifica, que legitimou meu afastamento.
Agradeço
RESUMO
Este trabalho refere-se a uma análise reflexiva acerca de uma experiência de formação de professores indígenas, por meio da qual se procurou estabelecer uma prática de formação inspirada nos operadores da complexidade e da transdisciplinaridade. Trata-se do processo de construção de uma matriz de exploração epistemológica e metodológica implicada nesses operadores. Metodologicamente, este trabalho foi desenvolvido por meio da pesquisa etnográfica. A pesquisa buscou estabelecer diálogos pertinentes entre dois operadores cognitivos: pensamento sensível e pensamento científico, inerentes ao contexto da formação. O campo empírico da pesquisa foi a própria experiência de formação que se desenvolveu nas disciplinas Estágio Supervisionado e Prática da Pesquisa Pedagógica. Além disso, o trabalho procurou estabelecer vínculos entre o universo mítico e cosmológico dos sujeitos da pesquisa e inseri-los na experiência como conteúdos de ensino e de aprendizagem. Enfim, trata-se de uma pesquisa inspirada pela experiência do sentido e do vivido, a qual se procurou nutrir de sensibilidades, imaginários, intuições, sabedorias, ética e estética. Palavras-chave: Complexidade. Transdisciplinaridade. Formação de Professores. Mito. Consiliência. Terceiro Instruído. Etnopoesia. Mitopoesia. Autopoésis.
ABSTRACT
This work refers to a reflexive analysis over an indigenous teacher‟s education experience, in which it was established an educational praxis inspired in the complexity and transdisciplinarity operators. It consists of the construction process of a matrix towards an epistemological and methodological exploration implied in these operators. Methodologically, this work was developed through ethnographic research. The research tried to establish pertinent dialogues between two cognitive operators: sensible thought and scientific thought, inherent to the educational context. The empiric field of this research was the educational experience itself that was developed in the Estágio Supervisionado (Supervised Internship) and Prática da Pesquisa Pedagógica (Pedagogic Research) disciplines. Furthermore, this work tried to institute bounds between the mythical and cosmological universe of the individuals in the research and insert them in the experience as constituents of education and learning. At last, it comprises a research inspired by the experience on what has been sensed and lived, nurtured by sensibilities, imaginaries, intuitions, wisdoms, ethics and aesthetics. Keys words: Complexity. Transdiciplinarity. Teacher Education. Myth. Consilience. Third Educated. Ethnopoetics. Mythopoetic. Autopoiesis.
SUMÁRIO
ABERTURA .................................................................................................................. 13
I PARTE ...................................................................................................................... 20
O LUGAR DA NATUREZA E A NATUREZA DO LUGAR ........................................................ 20
II PARTE ...................................................................................................................... 59
EXPERIÊNCIA DA FORMAÇÃO E A FORMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA: AS JORNADAS MÍTICAS ... 59
PRIMEIRA JORNADA: A PARTIDA ................................................................................... 97
SEGUNDA JORNADA: A INICIAÇÃO ............................................................................... 135
TERCEIRA JORNADA: O DESPERTAR ........................................................................... 151
QUARTA JORNADA: A CONEXÃO ................................................................................. 163
QUINTA JORNADA: A EXPERIÊNCIA – TORNAR-SE PROFESSOR ..................................... 185
III PARTE .................................................................................................................. 238
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO E O CONHECIMENTO CONSTRUÍDO: A SEXTA
JORNADA .................................................................................................................. 238
REABERTURA: O LUGAR DA TESE E A TESE DOS LUGARES ........................................... 280
FONTES DE PESQUISA ................................................................................................ 289
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................302
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 1 – A SERRA DO CURICURIARI (A BELA ADORMECIDA) ............................... 82
ILUSTRAÇÃO 2 – OFICINA DE CRIAÇÃO: ENCENANDO O MITO ......................................... 122
ILUSTRAÇÃO 3 – OFICINA DE CRIAÇÃO: CONTANDO O MITO........................................... 123
ILUSTRAÇÃO 4 – CULTO ECUMÊNICO: RITUAL DE PAJELANÇA. ...................................... 276
ILUSTRAÇÃO 5 – CULTO ECUMÊNICO: O PAJÉ, O PADRE E O PASTOR. ........................... 276
ILUSTRAÇÃO 6 – A FORMATURA ................................................................................. 277
ILUSTRAÇÃO 7 – RECEBENDO O GRAU. ....................................................................... 277
ILUSTRAÇÃO 8 – O BAILE DE FORMATURA .................................................................. 278
ILUSTRAÇÃO 9 – O BAILE DE FORMATURA .................................................................. 279
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – TEMAS DE PESQUISA POR ÁREA DE CONHECIMENTO ................ 128
QUADRO 2 – PRÉ-PROJETO DE PESQUISA .......................................................... 130
QUADRO 3 – O DIAGNÓSTICO ESCOLAR ............................................................. 144
QUADRO 4 – ORGANIZAÇÃO E REORGANIZAÇÃO DAS EQUIPES. ................... 194
QUADRO 5 – OS PROJETOS DE ENSINO. ............................................................. 208
QUADRO 6 – ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS PARA ELABORAÇÃO DO
PLANO DE AULA ................................................................................................... 217
QUADRO 7 – RECURSO DIDÁTICO. ....................................................................... 232
QUADRO 8 – RECURSO DIDÁTICO: A MATEMÁTICA INDÍGENA ......................... 235
QUADRO 9 – ESQUEMA COGNITIVO DAS MONOGRAFIAS DE CONCLUSÃO
DE CURSO .............................................................................................................. 262
QUADRO 10 – A MATRIZ DE EXPLORAÇÃO EPISTEMOLÓGICA E
METODOLOGICA ................................................................................................... 281
13
ABERTURA
Este trabalho é um registro etnográfico de uma experiência de formação1 de
professores de origem indígena realizada em São Gabriel da Cachoeira no período
de março de 2007 a dezembro de 2008. Trata-se de uma narrativa poética
antropológica implicada na existência das relações entre a Natureza e a Cultura. O
lugar é a Amazônia, especialmente um lugar na Amazônia, mas poderia ser
qualquer lugar no mundo. Nesse lugar me incluo como sujeito que participa da
criação, mas que é ao mesmo tempo criado pela própria criação.
Por meio dessa experiência, expresso os conflitos e as possibilidades de
diálogos entre o pensamento sensível e o pensamento científico, bem como entre as
diferentes disciplinas e os conteúdos culturais dos aprendentes. Para compreendê-
los, tive que transpô-los para fora, por meio da escrita, dando a eles uma forma
narrativa capaz de me conduzir paulatinamente aos caminhos da pesquisa, inserida
nas questões que a ela foram colocadas: sob quais condições epistemológicas o
diálogo entre as ciências humanas e as ciências naturais pode ser instituindo? Como
construir conhecimento a partir dessa comunicação? A ciência do concreto pode
oferecer instrumentos de conciliação entre a natureza e a cultura? Sob quais
fundamentos essa conciliação pode ser experienciada? E em que medida a
educação e, por extensão, a formação de professores podem favorecer esse
processo?
É preciso, primeiramente, que atentemos para as condições sob as quais
ciência e sociedade se desenvolveram. A ciência, ao provocar a ruptura
natureza/cultura, produziu na sociedade a ideia de um homem superior à natureza,
esquecendo a condição primordial que o vincula diretamente a ela. O homem é parte
da natureza, portanto, ele é, ao mesmo tempo, um ser biológico e cultural, nas
palavras de Edgar Morin, um ser unidual. No entanto, essa ideia de superação
conduzida pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, no sentido de controlar
1 O conceito de formação adotado para a realização desta experiência tem uma perspectiva
ontológica, que vai muito além de educar e instruir. Trata-se de uma ação profunda sobre a pessoa,
tranformando todo o seu ser, que remete aos saberes, fazeres, práticas e criatividades. É um
processo de construção e realização de um Eu em ascenção, que busca a consciência do mundo e
de apreendê-lo em sua essênci (Ver SOMMERMAN, 2003).
14
e de aproveitar ao máximo os recursos da natureza, desencadeou, ao longo dos
séculos, seu desgaste ecológico.
O desgaste da natureza é também o desgaste do homem e da sociedade. A
poluição dos rios, o devastamento florestal, o aquecimento global e a
industrialização têm provocado inúmeros impactos no globo terrestre. Mudar esse
estado da natureza implica uma mudança radical nas formas de lidar com os
ecossistemas e, consequentemente, transformações nas relações sociais,
econômicas, políticas e culturais da sociedade. É necessário estabelecer um novo
acordo entre os homens que permita a reorganização planetária a partir de
mudanças nas relações entre homem e natureza, nas práticas das ciências e nos
seus modelos de intervenção na sociedade, com destaque a instituição escolar e/ou
a universidade.
Historicamente, a humanidade, por meio da cultura, construiu modelos de
organização e de reorganização que permitiram o convívio entre os homens a partir
do desenvolvimento das cidades, dos impérios, das comunidades, das nações,
estabelecendo crenças, costumes, saberes, normas, estratégias, ideias, valores,
mitos, ao longo de gerações. Pode-se afirmar, então, que a cultura é um processo
que prolonga a vida dos homens em sociedade e na natureza. Mas a natureza
possibilita as condições da vida e da sociedade, mesmo que possa condená-las à
destruição. Constrói e desconstrói identidades, diferenças, semelhanças.
A cultura é um processo dinâmico e complexo, visto que representa não
apenas o conjunto de saberes da humanidade, mas seu enraizamento original. A
natureza da cultura é, ao mesmo tempo, aquilo que separa e que une os homens. A
cultura, enquanto sistema vivo, por meio do qual a humanidade se organiza,
complexifica as relações entre os homens a partir da relação com a natureza. É a
diversidade da natureza que permite a diversidade da cultura. A coexistência entre
ambas vai permitir a diversificação do homem e suas práticas diferenciadas.
Por outro lado, são as práticas políticas que têm sido, ao longo dos tempos,
um exercício de organização entre os homens no que se refere à sociedade, à
economia e à cultura. No entanto, essas práticas têm levado cada vez mais à
fragmentação e à separação entre os homens. A sobrevivência do homem na terra,
e da própria terra, faz com que a política penetre em todos os problemas da
sociedade, fazendo intervenções na economia, na cultura, na religião, na saúde, no
trabalho e na natureza. Em todos os campos, a política se vincula às necessidades
15
básicas do homem no seu sentido biológico e cultural. Portanto, a sustentabilidade
do homem e da natureza passa necessariamente pelo empreendimento de políticas
que garantem a sobrevivência humana. As políticas educacionais devem ser
orientadas a partir deste vínculo, natureza e cultura, constituindo-se como chave
para reorganização humana na Terra.
Reconduzir a política ao seio da humanidade, garantindo a permanência
planetária, implica assumir o seu caráter multidimensional, antropológico e
planetário. Com efeito, esta experiência de formação de professores é uma atitude
política, no sentido de que se propõe a intervir nas práticas educacionais,
promovendo a reintegração de valores éticos, estéticos, sensíveis no seio das
práticas pedagógicas, rompendo com a fragmentação disciplinar e estabelecendo
vínculos entre o conhecimento da experiência com o conhecimento científico e entre
a natureza e a cultura.
Esta experiência foi construída pelo imaginário e pela intuição de que a
complexidade, como operador cognitivo de religação, proporcionaria a abertura do
conhecimento diante dos contextos em que eles nasceram. Isso inclui sabedorias,
cosmologias, ciências, culturas, mitos. Significou não apenas conhecer as fronteiras
do conhecimento, mas aquilo que está dentro dele, que o atravessa e vai além. Em
outros termos permitiu a experiência da transdisciplinaridade. Logo, traduzo esta
experiência como uma narrativa do conhecimento e considero essa narrativa como
uma etnopoesia, por entender que a ciência pode ser entendida como uma narrativa
da vida, do viver, do sentir, do saber e do fazer no mundo e pelo mundo; uma forma
de criar vidas.
Esta tese está estruturada em três partes. A primeira parte refere-se ao
contexto sócio-histórico e cultural do lugar onde realizei a pesquisa – São Gabriel da
Cachoeira: A Natureza do Lugar e o Lugar da Natureza. Trata-se da minha
inserção no contexto histórico e cultural do lugar, remontando aos tempos históricos,
passado, presente e mítico. Não tenho a pretensão de construir um conhecimento
histórico do lugar, para isso teria que me valer dos métodos da história, uma busca
por fontes históricas e um estudo aprofundado sobre a historiografia da região. Não
se trata de fazer a história do lugar, mas de situá-lo dentro de seus sistemas de
referências – a natureza e a cultura – e a partir disso percorrer as múltiplas
dimensões que marcam a natureza do lugar e que definem o lugar da natureza. Em
geral, essa parte apresenta a problemática indígena frente ao contato com os
16
colonizadores na região amazônica, mais especificamente em São Gabriel da
Cachoeira, no Amazonas. Percorri o passado, ressignificando o presente, dando
ênfase ao papel da escola para os povos indígenas em seus contextos atuais.
Acredito que a educação escolar dos povos indígenas e a chegada às universidades
se traduzem como uma nova narrativa mítica dos índios diante dos desafios do
mundo presente.
Metodologicamente, para a construção temporal da minha escritura, naveguei
sobre o passado e o presente desse lugar, valendo-me de estudos históricos,
míticos, antropológicos, sociológicos, arqueológicos e geográficos, inseridos dentro
de uma perspectiva complexa, que implica estabelecer conexões necessárias com o
conhecimento indígena e conhecimento científico, com as ciências da natureza e as
ciências humanas.
A segunda parte, intitulada: A Experiência de Formação e a Formação da
Experiência, diz respeito à minha experiência, como professora, vivida na cidade de
São Gabriel da Cachoeira. Trata-se de um curso de graduação da Escola Normal
Superior da Universidade do Estado do Amazonas, voltado para a formação de
professores de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental – Normal
Superior. O que caracteriza essa formação é o fato de os alunos serem índios, de
origem multiétnica e plurilíngue e de estarem cursando um curso de formação
fundamentado numa visão ocidental de formação. Foram ministradas seis
disciplinas: Prática da Pesquisa Pedagógica I e II e Estágio Supervisionado I, II, III e
IV. Essas disciplinas têm como base epistemológica a formação do professor-
pesquisador. Portanto, elas foram realizadas concomitantemente, estando atreladas
umas às outras. A questão que orientou toda essa experiência foi: como promover a
construção de conhecimento numa sala de 29 alunos, marcada por essas
características? Não se trata de colocar o fato de serem alunos índios, mas de ter na
sala de aula duas formas distintas de compreensão do mundo, duas linguagens
diferentes de comunicação. Uma responsável pela criação dos sujeitos, que são as
culturas indígenas, suas ciências e suas sabedorias; e outra responsável por novas
construções e re-elaborações dos sujeitos, a ciência ocidental e seus conjuntos de
técnicas e procedimentos científicos. A primeira funda e forma os sujeitos, a
segunda refunda e transforma. São dois operadores cognitivos: o pensamento
sensível e pensamento científico. Ambos encontram-se num mesmo espaço e a
partir desse espaço devem produzir conhecimento. Como conduzir essa experiência
17
marcada por essa polifonia da linguagem? Que instrumentos serão necessários
construir para realizá-la? Foram essas questões que me levaram a construir um
projeto de formação orientado pelos operadores da complexidade.
Denominei esse projeto de Canoeiro, que, por estar implicado no pensamento
da complexidade, assumiu alguns desafios que nortearam a construção desse
estudo ou dessa experiência: estabelecer o diálogo entre as ciências naturais e
ciências humanas; promover a religação da natureza e da cultura, enquanto
processo capaz de religar o homem às suas condições primordiais. Isso significa
compreender que os dispositivos mentais ou cognitivos estão imbricados com as
disposições corpóreas dos sujeitos aprendentes; produzir conhecimento incorporado
nos saberes dos índios e nos saberes ocidentais; criar uma matriz de exploração
epistemológica e metodológica que possibilite a construção de um conhecimento
nutrido pelo imaginário, pelas emoções, pelos mitos, pelas sensibilidades, pela
intuição e pela criatividade; estabelecer diálogos transdisciplinares e transculturais
enquanto processo de ressignificação dos sentidos e da construção do
conhecimento.
A Experiência de Formação e a Formação da Experiência revelou os
caminhos percorridos pelos aprendentes para tornarem-se professores e
pesquisadores. Trata-se de uma narrativa mítica que tem na escrita um instrumento
de criação, recriação, construção e reconstrução constantes do tornar-se professor.
Inicia-se com a experiência do sentido e do vivido, quando foram feitas leituras de
mitos e, a partir disso, criamos e recriamos mitos. Essa primeira fase deu as bases
para os aprendentes construírem seus objetos de pesquisa, explorando o cotidiano
escolar e a sala de aula, pela construção do plano de ensino e pela prática da
docência, finalizando com a produção de uma monografia de conclusão de curso. Ao
todo foram seis jornadas míticas e heroicas de aprendentes adultos com sérias
dificuldades de ensino e aprendizagem, especialmente voltadas para a escrita e
compreensão de texto. Essas jornadas representaram esse processo de estarem se
construindo como professores-pesquisadores.
O local de experiência desse processo foi a sala de aula. Simbolicamente,
esse foi um espaço por onde circularam os diferentes lugares da cultura e que, por
serem ao mesmo tempo contraditórios, antagônicos e convergentes entre si, foram
denominados de entre-lugares, seguindo a orientação de Homi Bhabha (1999) sobre
o local da cultura. A escrita é considerada um instrumento que interliga os lugares e
18
revela as condições de produção de um conhecimento implicado nos entre-lugares
da cultura. Os aprendentes fizeram registros escritos de seus objetos de pesquisa. O
método etnográfico os ajudou a desenvolver suas escritas e a compreender melhor
a experiência da pesquisa.
Metodologicamente, essa parte foi construída por meio de fontes escritas e
orais, vali-me de meus registros de campo, dos registros dos aprendentes (cadernos
de campo, relatórios de estágio e monografia), da história de vida e também da
memória. Há algumas passagens que foram recuperadas por meio da memória de
conversas, discussões e debates que não puderam ser registrados no meu caderno
de campo. Por isso, há algumas conversas entre mim e os aprendentes em que não
aparecem seus nomes. No que se refere aos registros dos aprendentes, estes são
citados com nomes fictícios, pois foi uma forma que encontrei de preservar suas
identidades, visto que os mesmos preferiram não ser citados com seus nomes
verdadeiros. No entanto, essas fontes podem ser vistas nas referências
bibliográficas desta tese. Na última jornada, fiz algumas entrevistas, questionários
fechados e duas oficinas. Essas oficinas foram voltadas para a história de vida dos
aprendentes, nas quais eles falaram sobre suas experiências com a escola.
A terceira parte se refere à Construção do Conhecimento e o
Conhecimento Construído. Está diretamente ligada à segunda parte, pois mostra o
resultado desta experiência de formação: a construção da Monografia de Conclusão
de Curso. Nela, o aprendente apresenta seu percurso para tornar-se professor. A
monografia é fruto de uma pesquisa etnográfica feita pelos aprendentes nas escolas
em que realizaram seus estágios. É uma representação gráfica sobre o campo
empírico da pesquisa e sobre suas atuações como professores. Simbolicamente,
representou o rito de iniciação do tornar-se professor-pesquisador. Nela, os
operadores cognitivos da sensibilidade e da cientificidade encontram-se
entrelaçados. Trata-se de um registro etnopoético, no qual se observa o encontro
entre o pensamento sensível e pensamento científico. Para essa construção,
trabalhei com os aprendentes o método da bricolagem (LÉVI-STRAUSS, 1989), por
meio do qual fizeram o exercício de juntar todos os dados coletados sobre os seus
objetos e os transformaram em conhecimento. Como nas citações anteriores, seus
nomes foram preservados. Essa parte pode ser vista como um entre-tempo que
pode estar presente em todas as partes desta tese. Extraí dela alguns elementos
importantes para compreensão dos processos cognitivos, simbólicos e culturais que
19
permeiam as experiências desses aprendentes com a escola, com a escrita e com
as suas próprias formações enquanto pessoas. Dentre esses elementos estão as
condições bioantropológicas de produção de seus escritos, notadamente:
diversidade sociolinguística, diversidade etnocultural e tempo. Com efeito, a
monografia é o registro gráfico dos aprendentes sobre eles mesmos em suas
relações com o conhecimento.
Na Reabertura, apresento os resultados dessa experiência laboral de
práticas pedagógicas implicadas na complexidade, transdisciplinaridade e no
pensamento sensível. Nela, indico as possibilidades de uma metodologia de
formação baseada numa perspectiva que denominei bioantropoformativa, na qual
explicito a matriz de exploração epistemológica e metodológica orientada pela
complexidade e transdisciplinaridade. Como toda experiência, esta computou riscos,
contradições, resistências, conflitos, ambivalências, mas também possui as marcas
da conciliação, da cooperação mútua e da solidariedade.
Reitero que esta foi uma experiência sincera. Nela houve espaço para
criatividade, solidariedade, cooperação mútua, mas também para os conflitos e as
contradições. Certamente, ela explicitará os meus equívocos, acertos, fracassos e
sucessos. Não me receio disso, pois é exatamente sobre isso que esta experiência
quis, ao logo de todas as jornadas, mostrar. Não existem verdades absolutas, muito
menos certezas. De fato, esta é uma experiência que nasceu no e do imaginário e
que se transformou em realidade, por isso mesmo, caminhou para errância,
apresentou riscos e viveu as incertezas da existência e do conhecimento.
A ciência se defronta com realidades escondidas, esquecidas, muitas vezes
negadas. O imaginário, a intuição, a emoção e a sensibilidade foram instituídos no
processo de construção desse trabalho e se tornaram bifurcações fundamentais
para a compreensão da realidade estudada e suas contínuas flutuações. Educar o
pensamento, ensinar para a compreensão, para vida, foi, de fato, uma atitude
arriscada. No entanto, essa experiência representou a esperança de que é possível,
sim, refundar a educação instaurando no processo de ensino e de aprendizagem a
totalidade da existência humana implicada na experiência mítica, na cultura e
natureza. Espero que a narrativa a seguir consiga ser compreendida naquilo a que
se propôs: conciliar os saberes e re-encantar os espaços de formação.
21
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA
Minha aventura eco-antropológica começa em 2007, quando aceitei ministrar
um curso de formação de professores pela Universidade do Estado do Amazonas.
Sempre desejei conhecer a natureza e a cultura da cidade de São Gabriel da
Cachoeira e quando me foi dito que o lugar seria esse, não tive dúvidas em aceitar.
Essa experiência foi fundamental para que eu pudesse vivenciar o diálogo entre
Natureza e Cultura, bem como construir uma prática de formação pautada no
respeito à diversidade cultural existente na sala de aula e na conciliação entre os
diferentes saberes, oriundos das experiências dos alunos e das experiências
acadêmicas.
Encontrei nos dados das ciências naturais e humanas o conhecimento
necessário para compreender as fontes eco-culturais que dão origem a São Gabriel
da Cachoeira: o grande Vale das Águas Pretas – rio Negro. Interagir com essas
fontes traduz o primeiro desafio deste trabalho: o conhecimento transdisciplinar,
vinculado ao mundo vivido, às experiências dos homens rumo a seu processo de
construção de suas humanidades.
É do alto da cidade, sobrevoando suas serras, seus rios e cachoeiras, que
inicio a viagem. Os ares, as águas e os verdes desse complexo me conduzem ao
universo das cores, dos cheiros e das vozes da floresta. As águas do rio Negro são
escuras. Entre o escuro das águas e a claridade do céu, o verde da floresta. É a
estação da seca, tempo das vazantes das águas. O clima tropical quente e úmido –
a temperatura máxima nesse período fica em média entre 30o e 33oC – é favorecido
pela vegetação e pelas águas do rio e dos igarapés, provocando uma sensação de
frescor, em tempos de cheia.
Era o mês de março. A temperatura aumenta consideravelmente nesse
período, atingindo um pico de 42ºC. São Gabriel atravessa uma grande estiagem, as
águas do rio Negro praticamente secaram. A areia da praia em frente à cidade toma
conta de toda a paisagem. Os nativos circulam de uma margem a outra a pé. As
mulheres atravessam as margens carregando alguns produtos nas costas para uma
possível negociação. Um rio de pouca água é um rio sem movimento. A espera da
subida das águas é desejada por todos, comerciantes, índios, brancos, militares,
pesquisadores. Em tempos de seca fica difícil navegar por entre o rio e seus
tributários.
22
Devido à seca dos rios, o custo de vida aumenta consideravelmente em São
Gabriel da Cachoeira. Os produtos de gênero alimentício encarecem, e a população
começa a reclamar dos preços altos. Os comerciantes justificam esse aumento
devido aos problemas de transporte das mercadorias, causados pela vazante do rio.
Os barcos ficam impossibilitados de navegar no rio e de aportar na cidade. Com
isso, as mercadorias são transportadas por avião, o que acarreta o aumento dos
preços. Porém, a população discorda dessa justificativa, pois garantem que esse
transporte aéreo é feito pelo avião da Força Aérea Brasileira, não havendo, portanto,
motivos para esse aumento.
Durante todo o mês de março, a cidade se movimentava em torno da espera
da cheia. Os povos que habitam a outra margem do rio em frente à cidade são
bastante castigados, pois têm que atravessar quilômetros de praia a pé para vender
seus produtos no centro. Eles preferem a cheia, pois ela facilita o transporte e a
comunicação com a cidade. Durante esse período, observei uma cidade marcada
pela preocupação com os problemas da vazante das águas, mas também muito
esperançosa, pois em breve as águas voltariam a subir.
Entramos no mês de abril, começa chover na cabeceira do rio Negro e a
paisagem da cidade assume uma nova estética. O rio começa a encher e com ele o
movimento das corredeiras aumenta; é possível escutar o barulho das águas
batendo nas pedras; o som da cachoeira descendo rio abaixo atravessa meus
ouvidos como uma música de uma trilha sonora de um filme sobre a vida. Uma
sinfonia da natureza, em que os botos aproveitam para dançar sobre as águas. Tudo
começa a se transformar nesta cidade. Voadeiras (espécie de lancha) e canoas
circulam de um lado para outro, transportando pessoas e mercadorias. Crianças e
cachorros brincam nas águas do rio. Mulheres fazem caminhadas pela praia.
Homens circulam pela orla alcoolizados e dormem pelo chão. A dinâmica das águas
repercute na dinâmica sociocultural da população.
São Gabriel da Cachoeira é reduto da diversidade humana e da natureza, um
lugar fundador de um conhecimento implicado nas condições ecológicas e nas
expressões da vida local, seus sentidos e significações. Mito e imaginário são
expressões que compõem a construção desse conhecimento, que, incorporado aos
modos de vida, dos saberes e fazeres dos índios, representam suas formas de
pensar a vida, o homem e a sociedade. Gilbert Durand (1997, p.18) conceitua o
imaginário como um conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui
23
o capital pensado do homo sapiens. Por ser um lugar marcado pelo encontro da
diferença (brancos e índios) e pela diversidade da natureza e da cultura,
encontramos nele expressões de mundos misturados, formas de vida pautadas pela
dinâmica sociocultural estabelecida a partir desse encontro. Vestimentas, escola,
igreja, comércio, lazer, jogos, festas e outras práticas cotidianas são elementos que
expressam e asseguram a permanência dessas relações, bem como ressignificam o
imaginário cultural dos homens.
O município de São Gabriel da Cachoeira fica no Estado do Amazonas e está
localizado a 853 quilômetros da capital Manaus. Situado entre serras e banhado
pelas águas do rio Negro, esse lugar de águas e florestas, rodeado por corredeiras
(ou como os nativos denominam, cachoeiras), é o reduto da diversidade humana,
marcada pela biodiversidade da natureza. É também o lugar por onde a experiência
mítica circula por entre as dimensões humanas da vida, da natureza e da cultura.
Essa experiência mítica revela as formas de viver, de construir e de relacionar dos
povos que habitam esse lugar. Viver, Construir e Relacionar são processos que se
materializam e são materializados pela e na concretude humana, em sua busca-luta
incessante pelo repouso na morada do Ser, de Si, do Outro, e do Ser Sagrado. Uma
representação do transviver, transfigurada em imagens ou objetos mundos da casa,
da família, da igreja, da escola, dos jogos, da dança e da festa. Seria a cultura o
lugar fundante de todas as experiências da vida do homem, que se encena no palco
contemplativo da natureza?
O rio Negro é considerado o maior rio de águas pretas do mundo,
caracterizado pelo alto nível de acidez das águas, que, por serem pobres em
nutrientes, tornam os solos das terras que drenam muito empobrecidos e lixiviados,
como se suas águas fossem destiladas e levemente contaminadas. Tais
características devem-se ao fato de que as águas escuras nascem de solos
extremamente arenosos e da vegetação de caatinga. A bacia desse rio é formada
por rios que se encontram encaixados nas falhas ou fraturas do Complexo
Guianense, caracterizado por planícies meio onduladas, apresentando, por isso,
inúmeras corredeiras. É por entre planícies e pedras de granitos que as águas do rio
Negro correm, atravessando diferentes lugares e impondo diferentes formas de vida,
que dependem de suas cheias e vazantes. Porém, são essas formas de vida que
asseguram a biodiversidade da natureza desse lugar e que vão definir as espécies
de vida nas águas e nas terras por onde o rio passa e a cultura se constrói.
24
São Gabriel da Cachoeira fica às margens das terras indígenas e faz fronteira
com a Venezuela e com a Colômbia. Possui 112.555 km2 de extensão territorial,
representando 7,8% da área total do território do Amazonas. Comunica-se com os
demais lugarejos do município, por meio dos vários rios afluentes que cortam o
grande vale: Uaupés, Tiquié, Papuri, Içana, Aiari, Querari, Curicuriari, Cubate,
Piraiawara, Cuiari, Xié e seus afluentes.
A história desse lugar sob o ponto de vista da colonização remonta ao século
XVIII, quando foram fundadas as primeiras fortificações militares no alto rio Negro,
em 1763. No entanto, os dados arqueológicos revelam que essa história começou
há mais de 3 mil anos. Atualmente, constitui-se um importante centro administrativo
e econômico de grande expressão geopolítica, razão pelo qual tem sido polo de
interesse indígena.
O principal veículo de comunicação da população é o rio. O rio Negro e seus
afluentes interligam os 340 lugarejos ou comunidades do município. É por meio dele
que as relações econômicas, políticas, sociais e culturais são construídas. Só
existem duas formas de acesso à cidade: pelo rio (barco) ou por via aérea (avião).
Pelo rio, os meios de locomoção são: pequenos barcos, bongos e canoas. Dadas as
dificuldades de navegação, devido às inúmeras cachoeiras, fica inviável as
embarcações de grande e médio porte navegarem. Tanto no passado como no
presente há a presença da Igreja, seja de filiação católica, protestante e, mais
recentemente, os evangélicos. Do mesmo modo, encontramos a presença de
militares e pequenos e médios comerciantes. Mas foi a partir da década de 1970 que
este lugar entrou em intenso processo de urbanização, que aflorou o aumento
populacional e foi causado pela descoberta de ouro na região.
Em São Gabriel da Cachoeira, o caminho percorrido pela cultura se estrutura
numa dinâmica estabelecida pela relação ordem-desordem-interação-organização.
Menos que identidades, a experiência da cultura nesse lugar ultrapassa as fronteiras
ou limites dos grupos humanos, colocando-se no mundo de forma criativa e
diaspórica, espalhando-se por todos os cantos, interligando todos os povos num
entrelaçamento de línguas, danças, jogos, cores, odores, sabores e festividades,
que se acumulam de geração em geração pelo entrecruzamento de suas diferentes
linguagens.
Esse município possui, aproximadamente, de acordo com o Plano de Diretor
da cidade/2006, 36 mil habitantes. Até 1991, a cidade de São Gabriel da Cachoeira,
25
sede do município, possuía cerca de 7 mil habitantes. Por conta do crescimento
desordenado da área urbana nas últimas décadas, esse número passou para 15 mil,
formado basicamente por uma população indígena, chegando a uma proporção de
97% (o restante é branca), composta por 22 grupos étnicos/linguísticos, falantes de
22 línguas, distribuídas em quatro famílias linguísticas: 1.Tukano Oriental (tukano) –
Tukano, Dessana, Kubeo, Wanana, Tuyuca, Pira-tapuya, Miriti-tapuya, Arapaso,
Karapanã, Bará, Siriano e Makuna; 2. Aruak: Baniwa, Kuripako, Baré, Werekena e
Tariana; 3. Maku: Hupda, Yuhupde, Dow, Nadöb (há ainda os grupos Kakwa, que
moram em território colombiano); 4.Yanomami: Yanomami. Essa diversidade de
povos e línguas compõe a natureza do lugar em suas múltiplas linguagens.
O caminho que interliga as culturas é o das águas. O rio Negro possui vários
afluentes, em cada um observa-se uma dinâmica socioambiental própria, que define
e estrutura as relações entre os sistemas da natureza e da cultura. É essa dinâmica
entre os sistemas que permite a sua diversidade. Sob o grande complexo das águas
vivem diferentes povos, reconhecidos como povos dos Rios e povos da Floresta.
Às margens dos rios Uaupés, Tiquié, Papuri, Querari, Curicuriari, Apapóris e
seu afluente Traíra, vivem os povos de origem étnica da família linguística Tukano
Oriental. Nos rios Aiari, Cuari, Xié, vivem os povos da família Aruak. Os povos dos
Rios vivem da plantação, principalmente, de mandioca, de que produzem a farinha,
beijus e uma bebida líquida da qual fazem o tucupi e maniquera, destinados à
culinária. Outras fontes de alimentação são a caça, a coleta e a pesca. Além disso,
os povos dos rios são exímios artesões. Produzem utensílios de cestarias, que
fazem da fibra de tucum (espécie de fibra vegetal) e do cipó. Também fazem
instrumentos feitos de cerâmica. O trabalho agrícola e a produção de cerâmica são
de responsabilidade das mulheres, enquanto os homens são responsáveis pela
caça, pesca e pela fabricação de utensílios de cestarias. Quando em momento de
colheita e de produção, ajudam as mulheres no carregamento dos mantimentos
destinados ao comércio de trocas ou de vendas.
Os Maku são conhecidos como Povos da Floresta, por ocuparem essa região
que fica longe das margens dos rios navegáveis. Ocupam as áreas próximas aos
rios Tiquié, Uaupés, Papuri, Apapóris, Traíra, Uneiuxi, Téa, e próximos aos igarapés
Castanha, Cunuri e Ira (à margem direita do Tiquié) O nome Maku é um termo
pejorativo de origem Aruak. Os Tukano denominam esses povos de Peoná, que
significa “os donos dos caminhos”, haja vista preferirem os caminhos da terra aos
26
das águas. Mas esses povos se autodenominam de Hup (ou hupda, no plural, que
quer dizer simplesmente “Gente”). A principal fonte de alimentação desses povos é a
caça e a coleta, apesar de se dedicarem também à agricultura, com a plantação de
mandioca.
Como estratégias de caça, costumam construir suas casas a uma distância
de três a quatro quilômetros dos rios navegáveis. Outra característica importante
que garante a sobrevivência e a economia de subsistência é que suas aldeias não
podem ter mais do que vinte e cinco a trinta pessoas (cinco ou seis famílias), visto
que suas caçadas não podem ultrapassar mais do que cinco horas diárias, para que
não ocorram grandes deslocamentos das aldeias, evitando que os homens fiquem
muito tempo longe de casa. O raio de distância das aldeias para a área de caça não
deve passar de sete a dez quilômetros. Quando ocorre um aumento da população,
aumenta a necessidade de alimentação e, consequentemente, esse raio de
distância deve aumentar, o que torna inviável a sustentabilidade do grupo, devido às
condições desfavoráveis, pois pode demandar muitos dias.
Essa distância das margens dos rios navegáveis, longe dos brancos e
missionários, permitiu a esses povos a sobrevivência de certas tradições, costumes
e práticas ritualísticas milenares.
O caminho das águas é o caminho da diversidade cultural.
A comunicação interétnica permitiu formas de relações sociais, políticas,
econômicas e culturais entre os Povos dos Rios e os Povos da Floresta. O comércio
de alimentos, de artesanato, e o matrimônio entre povos de origens étnicas
diferentes são exemplos dessas relações. De caráter patrilinear, a dinâmica dessas
relações permitiu também as trocas entre as culturas, que, pela sua natureza
plurilinguística, contribui para a formação de culturas diferenciadas que se reúnem
para atender as necessidades humanas naturais de sobrevivência.
Mas como surgem esses sistemas? Onde podemos encontrar suas origens?
Entrando no mundo mágico e mítico dos índios Desana, vi uma possibilidade de
respostas a essas indagações. No mito “Origem do mundo e da humanidade”2
encontra-se Yebá Buró, a Avó do Mundo, ou Avó da Terra. Yebá Buró é um ser que
surgiu de si mesma. Segundo o mito, antes de o mundo existir, só havia seis coisas
2 PÃRÕKUMU, Umusi & KĒHÍRI, Tõrãmũ. Antes o Mundo não Existia: mitologia dos antigos
Desana-Kēhìripõrã. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas: UNIRT/FOIRN/ISA, 1995, PP. 19-41.
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misteriosas: um banco de quartzo, uma forquilha para segurar o cigarro, uma cuia de
ipadu3, uma cuia de farinha de tapioca e o suporte dessa cuia. A partir desses
objetos misteriosos, a Avó do Mundo se transformou em si mesma, por isso é
chamada de a Não-Criada. A Avó do Mundo mora numa Maloca de Quartzo Branco,
chamada Diámomesuruwi‟i, a Maloca do Favo de Mel.
Yebá Buró, sentada no seu banco de quartzo branco, conta como criou o
mundo4.
Estava sentada no meu banco de quartzo branco, e fiquei pensando sobre como seria o mundo. Então resolvi comer ipadu, fumei um cigarro e me pus a pensar sobre o mundo. De repente, começou a levantar algo, como se fosse um balão, em cima dele surge uma espécie de torre. Tudo isso com o poder do meu pensamento. Esse balão foi tomado pela escuridão e se transformou no mundo, ainda sem luz. Só havia luz no meu quarto. Chamei esse balão de Umukowi‟i, que significa Maloca do Universo. A grande maloca do Universo.
O Pó e a Fumaça Criadora. A grande Maloca do Universo será habitada:
nascem os homens, ainda sem a humanidade.
Feito o Universo, resolvi colocar pessoas para morar nele. Então, voltei a mascar ipadu e a fumar o cigarro. Depois tirei o ipadu da boca e o transformei em cinco homens, que vieram a ser meus irmãos, os Avôs do Mundo, Umukoñehkusuma. Eles são os Trovões, Uhtãbohowermahsã, que quer dizer, Homens de Quartzo Branco. Saudei o surgimento dos meus irmãos, Umukusorã! Eles responderam, também me saudando: Umukusorãñehkõ, a Tataravó do Mundo! Dei para cada um dos meus irmãos um quarto para morarem na Grande Maloca, a Maloca do Mundo. Mais em cima de todos o cinco quartos havia o sexto, onde mora o grande morcego, que é parecido com um gavião. Esse lugar é chamado de Funil do Alto, Umusĩdoro, ou o fim (ou confins) do mundo.
E nascem as cinco Malocas do Universo
Os cinco quartos transformaram-se em cinco Malocas do Mundo, Umukowi‟iri. Cada um dos trovões ficou morando em suas malocas. Mas ainda não havia luz. Dei para cada Maloca um nome: a primeira, que é do primeiro Avô do Mundo, chama-se Diáahpikõwi‟i, Maloca de Leite que fica no sul. Ao leste, em Tunui Cachoeira, no rio Içana, fica a do segundo avô, e se chama Diágahsiruuhtãmũwi‟i, Cachoeira da Casca. A do terceiro chama-se Umusĩwi‟i, Maloca de Cima, pois fica no alto. Nela ficam todas as riquezas e diversos adornos usados na danças rituais. Essas coisas são muito especiais, são mágicas. A Maloca de Cima tem o poder de guardar
3 Espécie de pó feita de um arbusto chamado Erythoxylum coca var.ipadu, cujas folhas são toscadas
e socadas em pilão especial (ahpĩdeariru). Essas folhas são misturadas às de uma espécie de embaúba (ahpĩmos, “sal de ipadu”). O pó é mascado e engolido. (PÃRÕKUMUi & KĒHÍRI,1995. P.19) 4 Transcrevi a narrativa para a primeira pessoa do singular, não alterando nada da versão original
contada pelos autores. A ideia foi fazer de Yebá Bʉró a própria narradora desse mito.
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essas riquezas. É dessa maloca que surgirá a humanidade. A maloca do quarto Avô chama-se Diápasorowi‟i
5. A quinta Maloca chama-se
Diádihpamahawi‟i, Maloca da Cabeceira, e fica no norte. O dono dessa Maloca chama-se Abepõwehku, Anta do Brinco do Sol. Ele brilhava por si mesmo.
E surge, então, o Demiurgo, o criador da Terra e da futura humanidade.
Gerei esses Trovões para que eles criassem o mundo, pedi para que eles criarem a luz, os rios e a futura humanidade, mas eles nada fizeram. Eles fizeram apenas os rios. Então resolvi criar um outro ser, para que fosse criado o mundo e a humanidade. Tomei ipadu e fumando um cigarro me pus a pensar em quem seria esse ser que pudesse seguir minhas ordens. No momento em que estava pensamento nisso, surgiu o outro ser, da fumaça do cigarro. Esse ser era misterioso, não se podia vê-lo, nem tocá-lo. Então peguei meu pari de defesa, wereimikaru, e o envolvi, igual como as mulheres fazem quando dão a luz. Saudei meu bisneto, Umukosurãpanami! E ele respondeu Umukosurãñehkõ, Tataravó do Mundo. Chamei Umukosurãpanami de Yebá Gõãmũ, o demiurgo da Terra e pedi a ele que criasse as camadas da terra e a futura humanidade. Prometi ser sua guia e assim ele cumpriu com a minha ordem. Segurando seu bastão cerimonial (yewãĩgõã), feito de osso de pajé, subiu até o cume da Torre do Mundo. Esse bastão era também invisível.
Então se fez a luz e Abe, o Sol, é criado: masculino e feminino.
Para ajudar meu bisneto, enfeitei seu bastão com penas de diversas cores (verde, amarelo, azul e branco), brincos e pingentes de feição masculina e feminina. Isso fez com que o bastão brilhasse, transformando-se num rosto humano. Então a luz passou a brilhar em todos os cantos. Assim nasceu Abe, o sol, aquele que gira em torno de si mesmo.
É criada a Terra: a morada da futura humanidade
Continuando sua jornada, Yebá Gõãmũ, subiu até a Maloca do Terceiro Trovão. Para chegar até lá ele criou vários paris, para que pudesse se sustentar. Aproveitei esse momento e semeei esses paris com sementes de tabaco, que tirei do meu seio esquerdo. Adubei o tabaco com leite que tirei também do meu seio esquerdo. Tudo isso para formar e adubar a terra. Enquanto subia, Yebá Gõãmũ dividiu a terra em quatro camadas ou andares: o primeiro é onde eu moro, o Quarto de Quartzo Branco (Uhtãbohotaribu) O segundo fica o quarto das Pedras Velhas (Uhtãbuhutaribu). O terceiro andar é o quarto da Tabatinga Amarela (Bahsibohotaribu), fica na superfície da Terra. Nesse andar vive a humanidade. O quarto andar chama-se Firmamento ou Andar dos Brincos do Sol (Abepõtaribu). Esse é o Nível dos Santos ou Nível dos Demiurgos, onde mora o Umukoñehkũ, o bisneto do mundo. É a morada do Criador. Chega a hora de Yebá Gõãmũ criar a humanidade. Para isso, pedi-lhe que fosse até a Terceira Maloca, onde mora o terceiro Trovão, buscar as riquezas, adornos e enfeites que se transformarão em gente. E assim ele fez.
5 Palavra sem tradução na língua portuguesa.
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O encantamento:
Acompanhado pelo chefe dos Desana, Umokomahsũ Boreka, que era como se fosse seu irmão, Yebá Gõãmũ chegou a Terceira Maloca, que era toda de quartzo branco, pediu autorização para entrar. Ao entrar, pediu ao Avô do Mundo suas riquezas. Este prontamente atendeu, entregando-lhe as riquezas. O Avô do Mundo ensinou meu bisneto o ritual que transforma as riquezas em humanidade. Recomendou que fizessem isso quando forem colocar as Malocas de Transformação que dará origem a humanidade. O Avô do Mundo recomendou que os dois comessem ipadu e quando sentirem dor de barriga pediu que vomitassem imediatamente no buraco do rio. Assim eles fizeram, e desse ritual surgiram duas mulheres. Quando percebeu que Yebá Gõãmũ e Umokomahsũ Boreka agiram de forma correta, o Avô do Mundo resolveu acompanhá-los em sua viagem de criação da futura humanidade.
A Canoa de Transformação: a humanidade é criada.
O Bisneto do Mundo entrou novamente na Terceira Maloca, subiu até a superfície da Terra para formar a futura humanidade. Levantou-se num grande Lago de Leite, Diáahpikõdihtaru que era o Oceano. Lá encontrou a grande Canoa de Transformação, que na verdade era o Terceiro Trovão, que se transformou numa grande Jibóia, que mais parecia um navio. A Canoa da Futura Humanidade chama-se Pamũrigahsiru ou Canoa da Transformação. A Canoa de Transformação navega submersa a água, como um submarino. Sob os comandos de Yebá Gõãmũ e Umokomahsũ Boreka, a Canoa de Transformação inicia sua viagem, entrando primeiramente na Maloca de Leite, que fica na beira do Grande Lago de Leite, de onde surgirá a humanidade. Fez o ritual prescrito pelo Terceiro Trovão, que transforma os enfeites em pessoas e depois eles voltam a ser enfeites. Depois continua seu caminho, subindo o Lago. As primeiras Malocas de Transformação foram criadas a beira do Rio de Leite (Diáapikõ), em cima da Maloca de Leite, outras ficam na costa do Brasil, no rio Amazonas, rio Negro, no rio Uaupés e, por fim, no rio Tiquié. Em todos esses lugares foram criadas as Malocas de Transformação. Ao entrarem no rio Amazonas, a humanidade começa a amadurecer, passam por Manaus, chegam ao rio Negro, passando por São Gabriel da Cachoeira e continuam subindo rio acima. Por todas as Malocas os irmãos faziam o mesmo ritual ensinado pelo Avô do Mundo. Depois de chegarem a Maloca dos Cantos, a trinta Maloca transformada, eles perceberam que a humanidade estava formada. Nessa Maloca foram criadas as línguas. Meu bisneto resolveu fazer uma grande cerimônia para dar línguas aos povos: Tukano, Desana, Pira-tapuyo,Tuyuca, Siriano, Barasano, Baniwa e Branco. Cada um ia receber sua própria língua.
São criadas as línguas e a cultura é transformada em diferentes linguagens:
ritos, danças, cantos, enfeites, práticas, normas e regras.
Pois é, nesse mesmo dia, apareceu um ser misterioso, chamado de Gahpimahsũ, o filho de Caapi. Este ser nasceu de um rito feito por Yebá Gõãmũ e Umokomahsũ Boreka, o mesmo que o Avô do Mundo lhes ensinou, na Maloca de Cima. Eles fizerem esse rito para as duas mulheres. Uma deu origem ao Gahpimahsũ e outra deu a luz as araras, japus, e outras aves que têm penas coloridas. O permitiu que todos pudessem ter enfeites coloridos de penas.
30
Foi exatamente no momento que meu bisneto distribuía as línguas, nasceu Gahpimahsũ. Quando a mulher começou a sentir as dores do parto, todo seu corpo estremeceu e isso atingiu a humanidade. Tudo que a mulher sentiu no momento do parto, a humanidade também sentiu. Ela teve todo o cuidado para receber esse ser, fez trançados de diversas cores, e essa multiplicidade de cores e trançados penetrou nos olhos da humanidade. Dentro da Maloca dos Cantos, o baya, que é o mestre dos cantos, o Kumu, o sábio ou rezador e também os dançarinos viam os desenhos dos trançados das esteiras feitas pela mulher. O Kumu dava os nomes aos trançados. O sangue perdido pela mulher durante o parto impregnou os olhos da humanidade. O cordão umbilical era visto pelos homens como pequenas cobras. Ao pintar o rosto da criança com tinta vermelha extraída do caraiuru e com tabatinga amarela, vermelha e branca, no mesmo instante os homens viram as cores da pintura do rosto da criança. Ao entrar na Maloca dos Cantos com a criança, a mulher encontrou os homens praticamente cegos, pois eram tantas as visões, que eles não conseguiam se reconhecerem entre si. Estavam todos sob os efeitos do caapi. Ninguém entendia nada por causa dessa multiplicidade de visões. E foi por isso que cada qual falou um língua. Foi também nesse momento que Yebá Gõãmũ estabeleceu a lei dos Desana que permitiu o casamento deles com os Tukano e destes com os Desana. Outras formas de casamentos entre os homens e suas etnias também foram instituídas.
A Terra é habitada. A humanidade surge das águas e povoa a Terra.
A Canoa da Transformação continua sua descida, e quando chegou na 56ª Maloca de Transformação (Diáperagobewi‟i) que fica na Grande Cachoeira de Ipanoré, no rio Uaupés, a humanidade desceu a superfície da terra. Na medida em que a humanidade descia, meu bisneto ia dividindo os grupos, que saiam por si mesmo. Até hoje podemos vê nas pedras da cachoeira os buracos por onde a humanidade saiu. Cada saiu acompanhado de suas mulheres, em fila. O primeiro que saiu foi o chefe dos Tukano, Doethiro, conhecimento como Wauro, que era filho do Bisneto do Mundo, por isso ele também era um demiurgo da Terra. Tal como o filho de Deus. O segundo a sair foi chefe dos Desana, Umokomahsũ Boreka. Esses dois levaram as riquezas do mundo e distribuíram nas malocas. O terceiro a sair foi o Pira-tapuyo. O quarto foi o Siriano. O Quinto foi o Baniwa, que saiu com arco flecha, por isso são bravos. O Sexto foi os Maku. Todos receberam suas riquezas das mãos do meu bisneto, que deu-lhes o poder de serem mansos, de fazerem festas com danças, de reunirem entre si para conviverem em paz, sem guerras. O sétimo grupo a sair foi o Branco, que recebeu do meu bisneto o poder de fazer guerra, pois era uma gente que não tinha medo. E logo de cara, descendo ao sul, já começou a atirar com a espingarda, e chegaram a São Gabriel da Cachoeira fazendo guerra. Meu bisneto vê a guerra como brincadeira, uma festa. Por isso que os Brancos fazem guerra. O oitavo a sair foi o Padre, que veio com um livro na mão. Meu bisneto ordenou que ele ficasse com o Branco. Da Canoa de Transformação saiu muita gente, mas também saíram seres misteriosos, como o Wahti, o espírito do mato. Depois de todos saírem meu bisneto entrou na Canoa de Transformação, que era o terceiro Trovão e voltou para o grande Lago de Leite. O Avô para sua Maloca de Cima e meu bisneto também subiu. Assim surgiu a humanidade.
Essa é a história de Yebá Buró sobre a origem do mundo e da humanidade.
Nela encontramos sinais dos tempos pretérito, presente e futuro. Esse tempo mítico
recupera todos os tempos. Recorda e recria a vida a partir da experiência do vivido,
31
dando a ela sentido. O mito é capaz de atravessar o tempo para recolocá-lo no
centro das experiências da vida e com isso estabelecer conexões com a natureza e
a cultura, fontes de história e de memória.
Antes o mundo não existia...
A origem da vida descrita pelo mito Dessana opera com a intuição, com a
sensibilidade, com o imaginário, que conta a presença de imagens ou símbolos da
água, do fogo, da terra e do ar. São imagens que se desdobram pelo movimento do
pensamento e da memória e são guardadas no imaginário humano para serem
recuperadas em momentos de experiências dos sentidos, de significações e de
representações da vida.
Jacques Girardon (2002), em “A Mais Bela História da Terra”, obra que trata
das origens de nosso planeta e os destinos dos homens, nos apresenta um pouco
da compreensão da ciência ocidental sobre a origem da vida.
Ao fim de dez bilhões de anos uma nuvem entrou em colapso e uma estrela nasceu, cercada por um disco de partículas que, de tanto se entrechocarem, aglutinaram-se, formando nove planetas. (GIRARDON, 2002, p. 17)
Somos Filhos do Tempo...
Assim a narrativa científica ocidental revela, por outros caminhos, a origem da
vida. Nela o mundo é originado de uma poeira cósmica, de uma grande explosão, o
Big Bang que dá início ao Universo, há dez bilhões de anos. Primeiro, surgem as
estrelas e, a partir delas, os planetas. As primeiras formas de vida na Terra vieram
das águas. Para se chegar ao homo sapiens-sapiens, o homem passou por intensos
processos de desenvolvimento e de evolução. A origem do homem é única: ele
surgiu na África, passou por grandes deslocamentos, migrações, povoando todo o
planeta. Assim a humanidade foi se construindo, deslocando-se e fixando-se em
vários cantos do mundo. A colonização da Terra representou o surgimento da
diversidade humana. Mas antes o mundo não existia... Nada pode ser dito sobre o
que aconteceu antes da grande explosão. As versões míticas e científicas sobre a
origem do mundo e do homem, possuem em si um ponto em comum: ambas são
32
ativadas pelo imaginário e imaginação criadora e criativa do homem em busca de
respostas às questões que os inquietam.
O mundo e a vida são constantemente transformados no Vale das Águas
Pretas pela Canoa de Transformação. Por meio de um ritual, que é constituído de pó
e fumaça, o mundo é criado e recriado. O mesmo acontece com a narrativa de
Girardon, segundo a qual, o universo é originado de uma poeira cósmica.
A ocupação humana no Vale das Águas Pretas remonta há aproximadamente
3.200 anos. Pelos dados arqueológicos é possível afirmar a existência de um
sistema cultural complexo e uma forma de organização social bem estruturada neste
lugar. Suas formas de vida, como a produção de cerâmica, muito se assemelham
aos dias de hoje. Em todo o Vale é possível encontrar sinais de tempos milenares.
Desenhos rupestres são encontrados em muitos dos afluentes do rio. Sob diferentes
temas, esses desenhos representam os modos de vida da população e, pela
quantidade encontrada, pode-se afirmar que havia nesse lugar uma quantidade
expressiva de gente na região. Porém, não se pode afirmar se elas constituem o
mesmo grupo que hoje a habita. Sabe-se somente que a população anterior ao
século XVII era notadamente formada por diferentes grupos humanos, organizados
culturalmente sob as condições socioambientais da bacia do Alto Rio Negro.
É possível avistar nesse tempo a existência de uma extensa rede de comércio
a longa distância entre os grupos do Alto Rio Negro e os grupos do Orenoco e do
Japurá-Solimões. Para Sílvia Vidal (apud ANDRELLO, 2006, p.107), essas
evidências históricas e arqueológicas contribuíram para ideia de que haveria nessa
região um importante sistema macropolítico e econômico regional, multiétnico e
multilinguístico, que envolvia uma hierarquia interétnica. Isso denota a existência de
Confederações Multiétnicas nesse local. Da época da colonização há indícios
também de que grupos confederados e seus chefes indígenas mantinham comércio
com holandeses, portugueses e espanhóis. Esse processo vai favorecer a
transformação dessas Confederações e as levará à decadência a partir da metade
do século XVII. Veremos, no futuro, a existência de novas confederações nesse
lugar, mas orientadas sob outras lógicas.
De acordo com Marilene Correa da Silva:
Os espaços que constituem a Amazônia são produções histórico-sociais em que as diferenciações e as desigualdades correspondem aos movimentos de formação das sociedades locais, com interferências de caráter nacional e
33
mundial, delimitadas nos processos de intervenção da natureza em culturas regionalmente situadas. Incluem, portanto, características projetadas pelos homens, umas concretizadas, outras virtuais, delineadas como possibilidades de forma de ocupação e domínio do território e das populações amazônicas. (SILVA, 2000, p.223)
A natureza desse lugar possui outras marcas, visíveis nos corpos de quem as
construíram e sob as quais foram construídas. A colonização na Amazônia a partir
do século XVII foi responsável por intensos processos de transformação dos lugares
amazônicos, sejam da natureza, sejam da cultura. Sob os aspectos naturais,
observam-se mudanças nas paisagens, com a criação das Missões e,
posteriormente, com os Aldeamentos, exploração da fauna e flora de forma
desordenada, como as Drogas do Sertão, comércio de peixes e de tartarugas, mais
recentemente, de animais, plantas e da madeira, provocando mudanças
socioambientais; culturalmente, perdas humanas, de línguas e de práticas culturais
milenarmente construídas pelos homens.
No século XVII, evidenciam-se as primeiras formas de contato entre índios e
brancos. De certa forma, esse encontro representa a percepção da diferença e
revela a partir disso as construções políticas, econômicas, sociais e culturais que
fundamentarão o projeto colonizador na Amazônia.
O rio Negro ficou conhecido no mundo europeu no século XVI, quando Philip
Von Hutten e Hernan Perez de Quesada, por volta de 1538 e 1541, realizaram a
viagem rumo ao rio Orenoco. Em seus relatos, apontam a existência do rio Uaupés,
afluente do rio Negro. Mas foi Francisco Orellana, em 1542, quem desceu pela
primeira vez o grande rio. Frei Gaspar de Carvajal, que era o escrivão da expedição,
o chamou de rio de água negra como tinta. (MAPA-LIVRO, 2006)
Vale ressaltar que a literatura desse período nada fala sobre a existência de
índios nessa região. Isso só vai aparecer com a expedição de Pedro Teixeira, em
1639, quando o rio Negro foi mais explorado. A expedição de Teixeira subiu do rio
Amazonas até Quito, onde encontrou com padre jesuíta Cristóbal de Acuña, que fora
incumbido de relatar sobre a região e seus habitantes. Em seus relatos, o jesuíta
revela a existência de um grande fluxo populacional indígena nessa região. Acuña
afirma ter visto pelo menos 12 tribos no baixo curso do rio, muitas das quais tinham
um caráter belicoso.
A proposta da expedição, além da definição das fronteiras geográficas, era
apresar índios para o comércio de escravos, importante fonte de economia da Coroa
34
Portuguesa, que tinha como interposto comercial a cidade de Belém, na colônia de
Grão-Pará e Maranhão. A mão de obra escrava era destinada ao comércio das
Drogas do Sertão, que era de grande importância econômica para região e suas
relações com a Metrópole. Portanto, as primeiras formas de contato entre índios e
brancos não foram nada amistosas.
Os viajantes que passaram pelo rio Negro deram grande ênfase ao
contingente populacional indígena. Um fato interessante, pois a partir dessa
evidência é possível compreender os processos de ocupação na região e as
políticas administrativas aplicadas a ela. Sob os comandos dos missionários e dos
colonos, deu-se início à empresa colonial na região. Tal processo é marcado
também pela dificuldade de mão de obra ocasionada pelo decréscimo da população
indígena na colônia do Grão-Pará e Maranhão. Esse decréscimo teve como causas
as epidemias, principalmente a varíola, e as fugas indígenas do trabalho escravo.
O conhecimento de que havia um numeroso contingente populacional
indígena no Alto Rio Negro fortaleceu a empresa de escravos na região. Os
escravos eram presos e capturados por meio das chamadas Guerras Justas e das
Tropas de Resgate. Essas Tropas consistiam em resgatar os índios capturados em
guerra por outras tribos, e, com objetivo de protegê-los de seus inimigos, os
portugueses promoviam as Guerras Justas contra a população indígena.
Na verdade, esses instrumentos não passavam de justificativas da Coroa
Portuguesa para capturar os índios para o trabalho escravo, já que os resgatados
teriam que pagar a dívida do regaste com a servidão. Essa justificativa estava
fundamentada numa bula papal de 1454, chamada Romanus pontifex, concedida
pelo Papa Nicolau V, que dava direito aos missionários e colonos a conquistarem
novos territórios, bárbaros e infiéis, seja por meio de guerras ou de submissão à
escravidão. Em 1529, o Papa Clemente VII reitera esses direitos com a bula Inter
Arcana.
A ação missionária realizada na Amazônia foi uma solicitação de Portugal, no
sentido de facilitar seus investimentos e desenvolver uma ação política na região. A
Coroa portuguesa entregou nas mãos dos missionários a função de catequizar
espiritualmente os índios. Entretanto, a relação destes com os colonos foi
extremamente conflituosa. Como sabemos, cabia aos Capitães de Aldeia a
administração das colônias e a sistematização e controle da força de trabalho
indígena. Os missionários encontravam-se insatisfeitos com a forma pela qual os
35
colonos conduziam esse processo. Travou-se, então uma luta entre eles pelo
controle das aldeias de repartição e, principalmente, pela mão de obra indígena.
Essa luta entre colonos e missionários provocou uma modificação na
legislação. Com a acusação de que os colonos abusavam de seu poder contra os
indígenas, maltratando mulheres e crianças, obrigando-os a trabalharem em
excesso, bem como que estavam se apoderando dos salários que deveriam ser
pagos aos índios, os missionários recorreram à Coroa, reivindicado o controle das
aldeias de repartição. Entretanto, somente em dezembro de 1686, com o Regimento
das Missões, que vigorou até 1755, os missionários conseguiram efetivamente esse
controle, criando na região sólidas empresas comerciais. (MAPA-LIVRO, 2006, p.33)
O Regimento das Missões, criado pela Lei de 21 de dezembro de 1686,
sendo complementado por uma série de Leis – o Alvará de 1688 ou Alvará dos
Resgates e Carta Régia – passa a regular o recrutamento da força de trabalho
indígena e as relações de trabalho. Na verdade, esse novo sistema deu
continuidade à escravidão dos índios, tornando-a legalizada por 140 anos. Ou seja,
em larga medida, o sistema manteve as mesmas características do sistema de
capitães de aldeia, diferenciando-se apenas no fato de o controle estar nas mãos
dos missionários e, particularmente, dos jesuítas. De acordo com Freire (1990), essa
passagem de controle deve-se ao fato de que os missionários não tinham objetivos
tão imediatistas quantos os colonos, preocupados em enriquecer e voltar para
Portugal.
Quando o Regimento das Missões entrou em vigência, havia cerca de 50 mil
índios nos aldeamentos de distribuição, além de 10 mil escravos indígenas, pois a
economia colonial, em grande expansão, exigia um aumento da força de trabalho.
Apesar da introdução do Regimento das Missões, o problema de fugas dos índios
continuou. Os indígenas não aceitavam com passividade a exploração dos
portugueses, pelo contrário, promoviam inclusive formas de resistência armada.
Esse processo representava para economia uma escassez de mão de obra
(FREIRE, 1990).
Além disso, os conflitos com estrangeiros em torno do controle da força de
trabalho contribuíam para a instabilidade da administração missionária. De acordo
com Freire (1990), esses conflitos internos se deram em três níveis: 1) Holandeses,
franceses e espanhóis, confinados em territórios com fronteiras flutuantes,
continuavam a fazer incursões na região amazônica; 2) Os missionários, colonos e
36
funcionários continuaram a disputa para controlar os índios e 3) Desenvolveram-se
ainda conflitos entre diferentes ordens religiosas.
Resumidamente, pode-se afirmar que, nesse período, em função desses
conflitos, especialmente no que tange com os estrangeiros, toda a política de
construção de fortalezas na Amazônia portuguesa se deu como resposta aos
interesses imediatos de evitar os resgates de índios escravos feitos por colonos de
outras nações (FREIRE, 1990).
No que concerne às atividades econômicas, nesse período, ao contrário do
que diz a historiografia oficial, de que os missionários que vieram para Amazônia
atuavam apenas como propagadores da fé e suas atividades eram voltadas apenas
para as questões espirituais, na verdade, como nos lembra novamente Freire (1990),
eles se constituíram em agentes econômicos a serviço do colonialismo europeu.
Além disso, uma das funções básicas dos missionários foi criar e suscitar
comunidades agrícolas estáveis, como elemento fundamental no fornecimento e
repartição da força de trabalho indígena, dificultando, dessa maneira, a penetração
dos estrangeiros.
O controle absoluto da mão-de-obra indígena, a posição estratégica das missões, possibilitou o acúmulo de uma grande riqueza. Eles controlavam todo o comércio com a região e auferiam lucros 80% superiores àqueles obtidos pelos demais comerciantes. Na metade do século XVIII, os missionários possuíam 55 grandes fazendas de gado, com um rebanho avaliado em cerca de 500.000 cabeças, além de fazendas rurais, engenhos e outros estabelecimentos agrícolas. A ideia de que o Grão-Pará era uma colônia pobre deve ser questionada. Missionários e colonos puderam acumular riquezas às custas de uma intensificação sem precedentes na exploração da mão-de-obra. (FREIRE, 1990, p.46)
Assim, os missionários foram, pouco a pouco, transformando o modo de vida
dos indígenas, levando-os a um processo de extinção de suas culturas. Como nos
lembra Adélia Engrácia de Oliveira (1983), além dessa ação catequética e
deculturativa, eles exerceram um papel de destaque na criação de escolas e
colégios na Amazônia. Dessa forma, ao mesmo tempo em que exerciam um papel
de educadores, ensinando letras e religião, propagavam a ideologia do colonialismo
português, colaborando, assim, para a consolidação dos mesmos em terras da
Amazônia.
Por volta de 1669, com a criação do forte de São José na Barra do Rio Negro,
onde hoje é a cidade de Manaus, o processo de captura dos índios para o trabalho
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escravo intensificou na região. Até a década de 1680, os missionários jesuítas
conduziam o processo de catequização e recrutamento dos índios. A partir da
década 1690, com as repartições das aldeias entre as missões, os Carmelitas
assumiram essa responsabilidade, fundando as primeiras Missões no rio Negro por
volta de 1695. Mas foi a partir do século XVIII que foram criados os primeiros
núcleos de povoamento indígena. Esse processo consistia em atrair os índios para
facilitar o empreendimento colonial de escravização e de exploração econômica da
região.
Resumidamente, podemos afirmar que o processo de ocupação luso-
brasileira na Amazônia assumiu três faces distintas entre si: 1) a de defesa e posse
do território através de encontros militares, construção de fortificações e viagens
fluviais como a de Pedro Teixeira; 2) a econômica, que, inicialmente, tinha suas
atividades voltadas para o plantio da cana de açúcar e para extração das chamadas
Drogas do Sertão e, depois, foi seguida por uma experiência agrícola e pela
implantação da pecuária; 3) a espiritual ou religiosa, que se preocupou com
descimento, a catequese e a civilização dos índios, sob a responsabilidade dos
missionários (OLIVEIRA, 1983).
A empresa colonial no rio Negro e suas formas de recrutamento indígena para
o trabalho escravo provocou a depopulação das aldeias, um processo também
impulsionado pelas mortes por epidemias (varíola, sarampo) e pela fuga para o
interior da floresta. Evidente que o empreendimento colonial também representou
mudanças nas estruturas socioculturais da região. As relações econômicas são
construídas a partir do estabelecimento de relações culturais, o que irá definir novas
formas ou modelos socioculturais nas relações entre os homens. A língua tupi ou
nheengatu (língua geral) contribuirá para essa construção. Como uma língua de
comunicação interétnica instituída pelos missionários jesuítas, ela representará um
instrumento eficaz para construção de novas formas de sociabilidades e de
assujeitamento da população indígena. As formas de exploração nessa região
levaram muitos grupos a migrarem para outros lugares e navegarem em outros
afluentes do grande Vale das Águas Pretas.
Se, por um lado, a empresa colonial conseguia desenvolver seu projeto
colonizador na região do rio Negro, por outro lado as formas de resistência
intensificaram muito fortemente no início do século XVIII, dando início a intensos
conflitos: brancos e índios entram em guerra: a Guerra dos Manao. Uma guerra
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pautada por interesses territoriais e econômicos, mas, principalmente, uma guerra
de resistência indígena contra a ação colonial. A Guerra contra os Manao,
considerada uma guerra justa, é um exemplo dessa resistência. Na verdade, esse
grupo se contrapunha à presença portuguesa no rio Negro, pois, além de manter
relações comerciais com a Holanda, fato que vai legitimar a declaração de guerra
pelos portugueses, não aprovava a violência que os índios sofriam com o processo
de recrutamento. Os Manao era o grupo predominante e soberano no baixo e médio
rio Negro e sua língua era a mais falada na região até a primeira metade do século
XVIII, quando o nheengatu passa a predominar.
Vale ressaltar que os Manao também comercializam escravos indígenas
adquiridos nas guerras intertribais com outros comerciantes holandeses, o que
também vai impulsionar a guerra. Ajuricaba será o grande líder dos índios. Os
portugueses terão Belchior Mendes de Moraes, o homem que vai realizar uma
grande devassa contra os índios do baixo rio Negro, o que irá provocar o ódio dos
Manao. No entanto, Ajuricaba é preso e, em seguida, suicida-se, jogando-se no rio.
Por isso é considerado um herói não apenas pelos índios, mas também pelos
portugueses. A guerra provoca uma altíssima perda da população indígena do baixo
e médio rio Negro e vai desencadear novos deslocamentos desses povos. Outro
fator desencadeado por essa guerra é a intensificação da ação das tropas de
resgate no rio Negro, que terá como base o Arraial de Mariuá, para onde os índios
eram levados e despachados para a capital da colônia (ANDRELLO, 2006).
O século XVIII foi longo, as viagens de descobrimento e de reconhecimento
do grande Vale das Águas Pretas se intensificaram. Um período da história marcado
pela violência e massacre contra os indígenas, transformando o grande Vale das
Águas Pretas. A história navega em águas vermelhas, um rio de sangue,
desesperança e despovoamento.
Chega à época do Diretório dos Índios. Em pleno século das luzes, as
diretrizes Pombalinas chegam enfim na Amazônia. Por esse Diretório é instituído o
fim da escravidão indígena, pelo menos de maneira formal, pois as práticas de
exploração continuaram.
Em meados do século XVIII, precisamente em 1750, assume o trono
português D. José I. Com ele, inúmeras mudanças nos campos econômico e
político ocorreram em Portugal, alterando significativamente as relações coloniais.
José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, é nomeado secretário de Negócios
39
Estrangeiros e da Guerra. Os problemas de limites das colônias e a disputa com
outros países vão determinar a construção de novas políticas de consolidação da
presença portuguesa na Amazônia: aumentar a população está diretamente
implicado à necessidade de manutenção das fronteiras. Mas também implicava no
controle da população como estratégia econômica e garantia de mão de obra.
Pombal tratou de pôr em prática uma política de recuperação nacional e
consolidar o poderio português na região amazônica, procurando manter as
fronteiras já conquistadas. Sua política tinha como objetivo libertar Portugal da
dependência com a Inglaterra e promover uma ampla modernização nas suas
instituições sociais, políticas e econômicas, até então dominadas ideologicamente
pela Igreja Católica. Suas reformas, grosso modo, baseavam-se nas ideias
iluministas, que previa, além do fortalecimento do poder da Coroa, o incentivo às
práticas agrícolas e mercantis e a redução do poder da Igreja.
Por essa época, cada vez se deslocava o centro do poder de São Luís para Belém, uma vez que esta cidade ficava melhor localizada para vigiar às expedições exploratórias que, servindo-se de uma rede hidrográfica, penetravam para o interior. Assim, conhecendo cada vez mais o imenso vale da bacia Amazônica, os lusos brasileiros tinham condições de manter a soberania de Portugal na região. A resultante foi que, com a necessidade de demarcarem as fronteiras, para dar cumprimento ao Tratado de Madri, criou-se o Estado do Grão-Pará e Maranhão, no dia 31 de julho de 1751, deslocando-se a administração do mesmo para Belém. Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que era irmão do Marquês de Pombal, foi designado governador do recém-criado Estado e, ainda, em 1751, tomou posse de Belém. (OLIVEIRA, 1983, p. 205)
As políticas pombalinas foram marcadas por uma ditadura que durou vinte
dois anos, deixando marcas profundas e duradouras nas áreas coloniais. A partir
dessas reformas, a Amazônia passa a ser incorporada efetivamente no espaço
político-econômico português e a receber intervenção direta da Coroa. Dentre as
principais medidas tomadas pela reforma destacam-se: a) a lei sobre liberdade dos
índios do Pará e Maranhão; b) o alvará que instituía a Companhia Geral do
Comércio do Grão-Pará e Maranhão; c) a lei que tirava aos missionários o governo
temporal das aldeias e determinava que as povoações e aldeias do Estado fossem
elevadas a categoria de Vilas com denominações portuguesas; d) o incentivo ao
desenvolvimento agrícolas com incremento do povoamento, através da imigração de
casais agrícolas e negros escravos trazidos da África; e) criação da Capitania de
São José do Rio Negro, em março de 1755; f) miscigenação entre índios e
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portugueses, por lei assinada em abril de 1755, que visava a apressar o povoamento
e a ocupação da região; e g) a criação do Diretório dos Índios, em maio de 1757,
que visava à substituição dos missionários (OLIVEIRA, 1983, p. 207).
Marilene Corrêa da Silva, em sua análise sobre a política de colonização na
Amazônia, afirma que
O absolutismo lusitano na Amazônia reelabora os temas e problemas sempre presentes nas relações coloniais: a impositividade da escravidão, a subalternidade e racismo das relações de dominação, a capacidade ou a incapacidade produtiva da terra e dos índios, a imposição cultural sobre os povos conquistados. As medidas do reformismo português deram um equacionamento próprio a estas questões. Comércio, trabalho compulsório e institucionalização das relações, tendo no Estado o parâmetro de regulação do processo sociocultural. (2004, p.89-90)
Todo esse conjunto de medidas instituídas por Pombal para efetivar a política
econômica de Portugal pressupunha, conforme Freire, o “cumprimento de uma paz
colonial, com uma ampla reformulação dos métodos até então utilizados, fazendo
com que a população indígena se constituísse num elemento importante na
manutenção e expansão dos espaços coloniais” (1983, p.56). Em outras palavras,
Portugal, impossibilitado de promover a imigração da massa metrópole, se vê
obrigado a confiar a segurança da colônia à população local, por meio da libertação
e da europeização dos índios (FREIRE, 1983, p.57).
Notadamente, a implantação e implementação do Diretório dos Índios, que
vigorará até 1798, tem como principais características a regulamentação do trabalho
forçado dos índios e seu profundo caráter etnocêntrico, evidenciando a flagrante
tentativa de portugalizar a Amazônia e destruir as diferenças e a alteridade
representada pelas culturas indígenas (FREIRE, 1983, p. 57).
Com o Diretório, os índios tornaram-se vassalos da Coroa. A extinção da
escravidão, no entanto, irá concorrer com as necessidades econômicas dos colonos.
O trabalho indígena foi regulamentado. Os índios disporiam de um tempo para
trabalhar nas construções ou na agricultura, além de receber um salário, o que não
foi respeitado pelos colonos. Pelo novo sistema de aldeamento, os índios descidos
estariam sob os comandos de diretores, nomeados pelo governo colonial. O
Diretório criou um rigoroso sistema de controle e de trabalho indígena. A mão de
obra indígena passou por um cuidadoso processo de agenciamento, que, segundo
Andrello,
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deveria ser empregada em proporções bem estabelecidas nas diferentes atividades, ficando uma parte destinada aos serviços demandados pelo Estado. Essas regras levaram a criação de um sistema complexo de controle da produção e distribuição de alimentos e lucros decorrentes do comércio dos produtos de extrativismo, o que viria gerar de mais maneira mais efetiva a freqüente burla de disposições legais. (2006, p.76)
Os índios resistiram ao novo modelo. Mesmo com a presença militar no vale
do rio Negro, ocorreram muitas revoltas e deserções por parte dos índios descidos.
A política de deculturação indígena imposta pelo Diretório foi tão perversa e até mais
acirrada que na época dos missionários, levando muitos grupos à extinção cultural e
fazendo com que os que escapavam fugissem para as cabeceiras dos rios ou para o
interior da floresta. A ideia de civilizar compulsoriamente o indígena levou a
formação de uma classe operária que se integrava aos colonos, com a qual acabou
por confundir-se.
Com a ameaça ao avanço estrangeiro que continuava cobiçando a Amazônia,
Pombal tomou novas medidas: em agosto de 1772, subdividiu o Estado do Grão-
Pará e Maranhão em dois outros, independentes – Estado do Maranhão e Piauí,
com sede em São Luís, e o do Grão-Pará e Rio Negro, com sede em Belém,
continuando receber ordens diretamente da Coroa, sem qualquer vínculo com o
vice-rei do Brasil. A criação de fortes no Vale do rio Negro foi uma importante
estratégia do reformista para assegurar e garantir as fronteiras da colônia. Em 1760,
foram criados os fortes de Marabitanas e de São Gabriel da Cachoeira, lugar que
dará origem ao município com o mesmo nome.
Observa-se que o Diretório dos Índios na realidade modificou apenas quem
eram os responsáveis pela exploração da força de trabalho indígena, que passou
para as mãos dos diretores. Tal como nos sistemas anteriores, os abusos feitos
contra os indígenas continuaram. As pequenas aldeias, transformadas em
povoados, passaram a ser conhecidas com “vilas de índios de Diretor”, vistas como
verdadeiros ducados, marquesados e condados (FREIRE, 1983).
Para Patrícia Sampaio, a implantação do Diretório em 1757 foi a mais
importante medida tomada pela Coroa Portuguesa no processo de desenvolvimento
da região.
(...) Na avaliação dos administradores coloniais, sua implantação configurava-se como um instrumento tutelar necessário de transição para a liberdade considerando o estado incipiente da civilização dos índios recém-aldeados. É sobre esse duplo prisma que o Diretório deve ser avaliado: além de configurar-se como instrumento legal de organização da força de trabalho, pretende também viabilizar a civilização dos índios. Trabalho e
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civilização são conceitos complementares neste século XVIII, e o ócio, a vadiagem são tratados com rigor de uma falta criminosa. A dilatação da fé e a extinção do gentilismo, a civilidade dos índios e o bem comum dos vassalos, o aumento da agricultura e introdução do comércio, a opulência e a felicidade geral do Estado são finalidades do Diretório apresentadas quando de sua publicação. (2001, p. 220)
A Nova legislação atingiu vários aspectos da realidade amazônica:
econômicos, sociais, políticos, culturais e espirituais.
Proibiu o uso da língua materna e também do nheengatu, tornou obrigatório o uso de sobrenomes portugueses, obrigou a construção de moradias em estilo europeu. Do ponto de vista econômico, deu ênfase à agricultura de exportação, mas também aos cultivos alimentares para sustento próprio e das povoações. Estimulava o “interessantìssimo comércio dos sertões”, liberando-o em todas as povoações e padronizando pesos e medidas. As localidades próximas ao mar ou rios deveriam dedicar-se às feitorias de salgas de peixes destinadas ao comércio; naquelas onde havia disponibilidade de cacau, salsa ou cravo, os índios deveriam ser conduzidos para esse negócio. (SAMPAIO, 2001, p.123)
O Vale das Águas Pretas sofrerá as consequências das Reformas
Pombalinas para Amazônia. As atividades dos Missionários Carmelitas nesta região
serão fortemente afetadas, visto que além de perderem o poder espiritual, perderam
também o controle administrativo das aldeias, que ficaram sob a direção dos
colonos, civis ou militares. Com isso, a ação missionária diminuiu sensivelmente na
região. Apesar de os missionários terem a autorização de continuar seus trabalhos
nas aldeias e povoamentos e prosseguirem no processo de catequese e de
convencimento dos índios, estes não conseguiram evitar a diminuição das
populações indígenas nos centros missionários (MAPA-LIVRO, 2006, p. 79).
Nas décadas de 1750-1760, as tensões entre índios e portugueses
mantiveram-se acirradas no alto rio Negro. Inúmeras revoltas e rebelião ocorreram.
Fica claro que Diretório não respondeu às necessidades da Coroa Portuguesa,
voltadas, principalmente, para o povoamento e para a garantia do território. Até o
final do século XVIII, a questão das fronteiras não estava resolvida. Pelo Tratado de
Madri – uti possidetis – a ocupação da Amazônia volta novamente a ser um ponto
das preocupações da Coroa e novas expedições são enviadas ao curso dos rios.
Por volta de 1780, sob o comando do capitão-general João Batista Caldas,
uma nova expedição é enviada ao alto rio Negro. Manuel da Gama Lobo D‟Almada
foi o responsável pelo mapeamento da região. O Vale das Águas Pretas encontra-se
com uma nova estrutura organizacional. Lobo D‟Almada, agora governador da
43
capitania do rio Negro, percorreu toda a região do Vale e promoveu o seu
desenvolvimento investindo na agricultura, com a plantação de anil, algodão, cacau,
café e tabaco, e na tecelagem, com a produção de panos para o consumo e para a
comercialização (ANDRELLO, 2006). Com tudo isso, o problema do esvaziamento
populacional na região do grande Vale continuava. Nem mesmo a política de
casamento entre brancos e índios conseguiu aumentar a população. Na verdade, a
libertação dos índios, tornando-os vassalos da Coroa Portuguesa, constitui-se como
um fator de agravamento do problema. Mas o que vai determinar esse esvaziamento
é a forma de exploração e violência que continuava contra os índios, apesar das
determinações políticas. É o paradigma da diferença que classifica os homens em
civilizados e não civilizados, em superiores e inferiores que vai dar continuidade as
formas de dominação e as relações de poder entre índios e brancos.
Em 1798, por meio de uma Carta Régia, o sistema de aldeamento instituído
pelo Diretório é abolido. Entramos, então, no século XIX, navegando pelo grande
Vale das Águas Pretas, circulando por entre os seus afluentes, e então se percebe
que as ações realizadas nos séculos anteriores repercutiram diretamente nos
sistemas vivos da natureza e da cultura do Vale. Principalmente, dar-se conta de
que a história desses sistemas é marcada por continuidades e rupturas, no qual
observar-se o mesmo processo de exploração e violência exercida contra os povos
indígenas, com outros dispositivos é claro, mas com os mesmos objetivos, que se
constituem com as mesmas ideias do passado. Nesse caso, ideia e ação são
complementares e antagônicas ao mesmo tempo. Os índios foram libertados da
escravidão, mas a exploração compulsória continuava. A questão dos limites e de
exploração da região concorreu para o afastamento dos índios para o interior da
floresta, o que garantirá algumas formas de sobrevivência.
“Um vazio institucional assolou a capitania do rio Negro, após a extinção do
Diretório”. É o que diz Andrello (2006, p.80) sobre o alto rio Negro no início do
século. Em Manaus, a presença de índios acorrentados no comércio era bastante
frequente, o que denota que a exploração continuava em alto nível. A capital do rio
Negro apresentava a ambição de prosperidade econômica. É um período de
formação de um novo ordenamento político e econômico. Em 1808, a Coroa
Portuguesa é transferida para o Brasil e, em 1822, ocorre a independência do Brasil.
Tais fatos vão desencadear uma série de revoltas e conflitos em todo o país. Na
44
Amazônia, a Cabanagem é um exemplo desse processo, que atingirá também o rio
Negro. E a capitania do rio Negro é rebaixada a Comarca.
Tempos difíceis no Vale das Águas Pretas. Com a atual estrutura
administrativa da colônia, foi criado em 1837, por meio de uma lei, um novo sistema
de trabalho denominado de Corpo de Trabalhadores. Segundo Andrello (2006, p.80),
esse sistema re-editou a escravidão indígena e oficializou o trabalho compulsório
para mais 2/3 da população da comarca. As povoações entram em decadência e a
população atinge números preocupantes: 19 mil pessoas, dentre as quais 15 mil
morando em Manaus e nas freguesias do baixo rio Negro. E apenas 4 mil residiam
nas Aldeias do alto rio Negro, apesar de haver indícios de um mesmo número viver
no interior da floresta (Cf. ANDRELLO, 2006).
Nessa metade do século, o rio e seus afluentes são poucos navegados.
Poucas casas povoam o local. Pequenos comerciantes circulam e negociam
mercadorias. Nos entre-tempos dos povoados via-se uma festa. As festas ocorriam
por ocasião dos santos ou da presença de pessoas ou comerciantes.
Representavam também um momento de deslocamentos da população indígena
para os povoados. Eram os chamados índios civilizados ou semicivilizados, pois
mantinham relações socioculturais e econômicas com os brancos. As festas dos
santos nos povoados também representavam um espaço de sociabilidades e de
negociações.
Entramos em meados do século XIX, o Brasil estabelece uma nova estrutura
administrativa para a Amazônia. Em 1850, é criada a Província do Amazonas e um
novo programa de civilização e catequese, bem como de controle da população
indígena, que pressupunha três níveis ou graus de civilização dos índios: gentios,
aqueles que viviam na floresta; os aldeados, que mantinham comércio com os
brancos, e os civilizados, aqueles que trabalhavam para o serviço público
(ANDRELLO, 2006).
Esse Programa se fundamentava, ainda, na lei pombalina do Diretório. Com o
decreto de 24 de julho de 1845 foi recriado o cargo de Diretor dos Índios. Apesar de
que no passado essa diretoria estaria voltada para instituição da libertação dos
escravos indígenas, as diferenças são pequenas quanto às funções dos novos
diretores que eram: atrair os chamados gentios para as margens dos rios para
serem conduzidos e introduzidos no serviço público da Província, só que agora de
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forma obrigatória, ou seja, pela força. Como vimos, pouca coisa mudou no Vale das
Águas Pretas, pois era pra lá que os diretores eram muitas vezes nomeados.
Com os poderes atribuídos aos diretores, muitos lançaram mão das
chamadas cartas patentes, no qual eles indicavam pessoas de suas confianças, no
caso os líderes indígenas, ao cargo de principais. Os indígenas passaram a compor
o quadro administrativo da Província. Os principais passaram a ser os mediadores
entre os índios e os brancos no processo de negociação das práticas de exploração
e de formação da mão de obra. Dada a ineficácia da nova diretoria, em 1866, esse
cargo foi extinto, mas as práticas dos comerciantes continuaram, e um novo
instrumento fora construído: o endividamento. É o que nos informa Andrello:
Se as Diretorias não foram eficazes como “elo” a manter os grupos indígenas unidos à sociedade que se pretendeu construir no rio Negro, outro meio mostrar-se-ia mais persuasivo: o endividamento. Este talvez tenha sido o diferencial entre essas duas fases da colonização, pois não há menções à divida no século XVII. (2006, p.86)
A instituição da dívida tornou-se um mecanismo eficaz de exploração da mão
de obra indígena. Consistia basicamente no adiantamento de mercadorias a crédito
para os índios. A diferença estaria na prestação de contas, pois os indígenas
sempre ficavam devendo, já que os comerciantes aumentavam de forma
desproporcional o débito, exigindo dos índios mais produtos, que superavam
enormemente o valor da dívida (WALLACE, [1853] 1992, p.178). Para Robin Wright
(1981, p.263) dadas as necessidades de acesso às mercadorias, era praticamente
impossível os índios escaparem do endividamento. Dentre os produtos
comercializados entre índios e brancos estavam: castanha, farinha, peixe seco,
salsaparrilha, drogas e artesanatos, que os índios trocavam por anzóis, facas,
panelas, espingardas, panos, agulhas, linhas e, na maioria dos casos, por trabalho
(ANDRELLO, 2006, p.86).
O endividamento tornou-se um instrumento efetivo e legal de exploração da
mão de obra indígena. Um processo que será fortalecido pela ideia presente na
mentalidade da época, segundo o qual, possuir dívidas representaria a passagem da
gentilidade para a civilização. A economia do alto rio Negro baseava-se basicamente
em dois tipos de mercadorias: pessoas e coisas (ANDRELLO, 2006). “Ter um patrão
e uma dívida em mercadorias era a credencial para aquisição do status de civilizado”
(Idem, p.94). Uma ideia que foge a ação. Um índio civilizado não é um branco
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civilizado, mas sim um sujeito atrelado às redes de poderes instituídas nas relações
com os brancos. Dito de outro modo, um índio civilizado acorda com a exploração,
aceita a condição de escravo, ainda que esta já houvesse legalmente sido retirada.
O fetiche da dívida é a garantia da permanência dessas relações.
Certamente foi com a economia da borracha que essa instituição se
fortaleceu. Entre regatões, seringueiros e índios atravessamos o século XIX com a
impressão de que o passado não passou, e de que o presente se constituía com as
mesmas marcas que fundaram a Amazônia nos séculos anteriores: exploração,
violência e escravidão. É claro que a dívida, como recurso para se atingir a
civilização, não foi aceita de forma absoluta pelos índios do alto rio Negro, o que vai
gerar uma série de conflitos e rebeliões. É o caso dos índios do rio Uaupés, que vão
lutar pelo cancelamento das dívidas. Entram em cena os missionários, agora
franciscanos, que vão apoiar os povos indígenas nessa luta contra a exploração. Os
movimentos messiânicos será a tônica nesse fim de século. A ideia de libertação, do
fim da opressão e da exploração, bem como do cancelamento da dívida, aconteceria
com a chegada de futuros padres à região. Um processo que foi brutalmente
reprimido (ANDRELLO, 2006).
De qualquer forma, esse processo pode ser visto como um desdobramento
das necessidades dos índios em alcançar a civilização. Já que, para atingir um nível
de igualdade nas relações com os brancos, era imprescindível ter acesso aos
mesmos meios social, econômico, político e cultural dos ditos civilizados: no primeiro
momento, as mercadorias e a dívida; no segundo momento, a língua, que passa a
ser também um instrumento de civilização para esses povos. Mas é no campo
religioso que o projeto civilizatório dos índios atinge um melhor nível de reflexão. Os
franciscanos adotam as práticas xamânicas dos índios em seus rituais de
catequização, atraindo-os para as aldeias. Além disso, os indígenas encontram nos
rituais católicos, no caso, o batismo, um instrumento de resistência e de
sobrevivência de suas tradições. Os nomes indígenas eram ocultados: esta era
forma segura de evitar doenças ou malefícios oriundos de inimigos. Civilizar-se
representou, nesse contexto de fim de século e início de outro, um mecanismo de
proteção, mas também de resistência.
Chegamos ao século XX, também marcado pela permanência e por rupturas.
A exploração dos povos indígenas é mantida. Porém, novas formas de resistência
serão construídas. A economia da borracha resiste até meados do século,
47
mantendo, no entanto, a mesma forma de recrutamento e exploração da força de
trabalho. A chegada dos missionários Salesianos na região nesse início de século,
1914, vai desencadear novos processos de ocupação e de colonização no Vale das
Águas Pretas.
Um novo modelo de organização se funda na região, no entanto, sustentado
pelo mesmo paradigma: diferença e desigualdade. Neste mesmo ano, é criada a
primeira Missão salesiana em São Gabriel da Cachoeira, com a fundação da
Prefeitura Apostólica do Rio Negro pelo Bispo Dom Frederico Costa, que contou com
o apoio do Papa Pio X, ficando a Congregação Salesiana de Dom João Bosco
responsável pela catequese dos índios. É o tempo dos internatos e das missões
evangélicas. O que muda nesse novo contexto?
Nesse contexto, novas mudanças serão encaminhadas. Sob o controle das
Missões Salesianas, os povos indígenas de São Gabriel da Cachoeira passaram a
ter um novo tratamento. Até a chegada da Missão, as condições de vida dessa
população eram de extrema violência e de exploração por conta dos comerciantes
colombianos e brasileiros e dos seringueiros, que mantinham um sistema de
patronagem. Por esse sistema, os índios eram obrigados a pagar dívidas que nunca
findavam, o que os obrigavam muitas vezes a sofrerem humilhações e até violência
e abuso contra suas mulheres (MAPA-LIVRO, 2006).
Os salesianos se empenharam em combater e proteger os índios contra os
abusos dos comerciantes. Missões foram criadas em pontos estratégicos do grande
Vale das Águas Pretas. Uma forma de controle territorial, mas também da
população. Se, por um lado, os missionários tiveram o papel de protetores dos índios
contra os abusos que sofriam, por outro, foram incapazes de conviver com suas
culturas de forma respeitosa. A máxima cristã de que todos eram iguais perante aos
olhos de Deus foi, de certa forma, a tônica dessas relações. Os salesianos, sob o
paradigma da igualdade não conseguiram entender a diferença. E, para acabar com
as diferenças desses povos, impuseram suas visões de mundo e de vida, proibindo
os índios de manifestarem suas culturas, seus rituais sagrados e, até mesmo, de
falarem suas línguas. É o projeto civilizatório dos salesianos que irá definir as novas
configurações socioculturais de São Gabriel da Cachoeira.
Novamente, a Igreja assume esse papel. A história se repete. Mas agora
encontra nos espaços educacionais um lugar fecundo de transformação. São
criados os internatos, um modelo que já representava uma marca dessa
48
congregação. Para os salesianos, o processo de mudança dos índios só seria
possível por meio da educação de crianças e de jovens. Estes seriam os agentes
capazes de penetrar na consciência dos adultos e velhos. O afastamento dessas
crianças e jovens da família foi um mecanismo eficaz para a formação de novos
sujeitos inseridos no modelo salesiano.
O modelo pedagógico dos salesianos, muito próximo dos jesuítas, era
extremamente rigoroso e disciplinar, além de punitivo. Castigos, proibições e
punições físicas eram métodos muito utilizados por esses padres. O uso das línguas
indígenas foi expressamente proibido e quem descumprisse a ordem era punido com
pancadas.
O projeto civilizatório dos salesianos contou com apoio do governo brasileiro,
que desejava a integração do país e pacificar os índios. Esse apoio vai garantir o
sucesso do empreendimento dos missionários na região. Além disso, o projeto
repousa naquilo que foi definido como territórios missionários, que simboliza uma
nova fundação de ações da Igreja nesse lugar. Para Judith Albuquerque, esse
dispositivo discursivo de poder irá representar a construção de novos espaços e
lugares de afirmação dos salesianos,
desautorizando esforços anteriores, como se tudo começasse ali, não estabelecendo, todavia, uma ruptura com as práticas anteriores, confirmando que se trata, realmente, de um discurso fundacional. Se, em vez de se referir as “Missões em território missionário”, o autor se referisse as “missões em território indìgena”, seria uma outra formação discursiva operando, outra posição-sujeito. Porém essa posição de admitir que está chegando em território alheio o missionário salesiano não pode assumir. Ele traz na bagagem só certezas e o que vinha fazer estava definido pela Igreja – que os envia – e pelo Estado – que os recebe. Assim, a postura de considerar o lugar da Missão um “território missionário” marca essa posição de quem toma posse e um território, posição que dará todas as coordenadas do trabalho e das relações de poder, na região. Os salesianos não têm dúvida sobre o que fazer no “território missionário” do Rio Negro. (ALBUQUERQUE, 2006)
Mais uma vez, o problema da territorialidade irá infletir nas medidas
geopolíticas do governo para a região do alto rio Negro. Essas medidas estão
implicadas na concepção de que os índios são seres hostis, inferiores, selvagens ou
primitivos e incapazes de pensar a si mesmos. Essa concepção está presente tanto
no imaginário dos portugueses do período colonial, estende-se ao Império e chega
ao século XX. Civilização e cultura, dois conceitos que irão nortear a presença
salesiana no rio Negro e que irão determinar o conjunto de ações criadas para o
49
desenvolvimento da região e para a garantia da territorialidade e da integração as
demais regiões do país. A política de pacificação dos índios se apoiará no projeto
civilizatório salesiano de catequese, proteção e educação. No entanto, por volta de
meados da década de 1970, o projeto civilizatório entra em crise. Falta de verbas e
também o aumento populacional inviabilizarão o trabalho dos missionários. Os
internatos fecham as portas. E, sob acusação de etnocídio pelo Tribunal Russeil de
Amsterdã, no final dos anos 1980, os salesianos são obrigados a pensar sua
presença na região. Outros atores sociais comporão a tônica das relações índios e
Igreja. É o caso do Conselho Indigenista Missionário, que terá um papel
importantíssimo no processo de demarcação das terras indígenas nesse período
(ANDRELLO, 2006).
Não há dúvidas quanto aos efeitos que esse projeto provocou nas culturas
locais. No século XX, percebe-se os impactos das ações desmedidas dos
governantes para com os índios. Marcas do desrespeito, da violência física e
simbólica contra os índios acompanham o século. Seus modos de vida foram pouco
a pouco se modificando, transformando-se. Mas a consolidação dessas mudanças
não significou a destruição total das culturas indígenas. Sob o ponto de vista
histórico e cultural, essas mudanças não se consolidariam se não houvesse
possibilidades de permanências. E o mito indígena é a expressão desse processo
de permanências, visto que não apenas permite a compreensão dessas mudanças,
mas é também o guardião da memória, da imaginação, da história e das tradições
desses povos. Seu conteúdo sagrado é capaz de recuperar os tempos e re-elaborar
as suas práticas milenares. Por isso mesmo, os mitos representam a resistência
indígenas ao processo civilizatório, bem como uma estratégia de reinvenção cultural
e identitária.
Não se pode, efetivamente, afirmar que nesse movimento mítico e histórico
das relações entre índios e brancos, os índios foram incapazes de pensarem si
mesmos como sujeitos e agentes dessa história. Ouvimos de Yebá Buró: os brancos
foram o sétimo grupo a descer da Canoa da Transformação, e a eles o bisneto do
mundo entregou-lhes as armas de fogos, cabendo a eles a guerra (PÃRÕKUMUi &
KĒHÍRI, 1995). Ou seja, a presença dos brancos na história desses povos faz parte de
suas reflexões. É comum ouvir dos índios que eles fizeram a escolha errada ao
entregar aos brancos as armas. “Foi um erro nosso, mas agente não esperava que
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tudo isso fosse acontecer. Nós quase desaparecemos” (LANA, Feliciano. Entrevista,
2008).
Nesse breve século XX, a Amazônia sofreu, como todos os países, os
impactos da economia capitalista e foi contornada por um fluxo de mudanças
políticas, econômicas, sociais e culturais de âmbito global e local. Duas grandes
guerras atravessam o século. Instaura-se a internacionalização da economia e a
globalização constitui-se como uma realidade sem volta. As marcas da crise do
capitalismo expõem ao mundo a falência do sonho das luzes, da felicidade
iluminista. A desigualdade e a distancia entre ricos e pobres aumenta
significativamente. A economia ocidental se cristaliza, expandindo-se em todos os
países. Ciência e tecnologia tornam-se o fundamento de sustentação do capital. A
expansão do capitalismo refletirá na Amazônia.
Para Marilene Correa da Silva, a tese de que a Amazônia é marcada pelo
esquecimento da região pelo Estado-nação e pelo mundo, bem como a de que as
escolhas de modelos de desenvolvimento foram incompetentes, não se sustenta.
“Tanto o esquecimento com as „escolhas‟ privilegiam a vontade de grupos e ou de
coletividades donos de seu destino, promotores e produtores de ordem social que os
articula (2000, p.2). Para a socióloga,
A Amazônia sempre esteve na lembrança dos atores sociais, sejam estes representados pelas forças de processos de mudança ou por indivíduos privilegiados; o fato de que a região continua a despertar preocupação quanto ao seu desenvolvimento deve-se mais à intensidade dos impactos de suas formas de ocupação do que ao esquecimento propriamente dito. A Amazônia pode ser vista como uma formação econômico-social produzida pela dinâmica do capitalismo e, portanto, sujeita aos processos de expansão e crise do capital. (2000, p.2)
Com efeito, as dimensões da economia internacional, seja no passado ou
presente, reverberá sobre a Amazônia. Significa dizer que não é possível pensar
essa região de forma isolada ou localizada. É preciso estabelecer conexões entre o
local e o global, passado e presente, para que se possa atingir um grau de
compreensão mais complexa do lugar.
O mundo que a globalização produz envolve diferentes movimentos e sentidos. No caso da Amazônia, os impactos da globalização confundem-se com os processos da natureza, de ocupação econômica, de fronteiras físicas e políticas. Os impactos também refletem ou dinamizam mudanças culturais, perspectivas de autodeterminação social, de interlocução mundial, e ainda, o imaginário universal. No quadro da globalização a Amazônia tanto é um território datado e situado com como é uma ideia, uma fabulação, uma utopia. No limite, pode constituir-se em um “não-lugar”, cuja
51
característica mais contraditória é ser um lugar no mundo, um não-lugar da diversidade, outra face do não-lugar. (AUGÉ, apud SILVA, 2000, p.3-4) (...) As relações mundiais contemporâneas impõem outras circunstâncias históricas de inserção na Amazônia na dinâmica global, de onde a região reemerge como espaço geopolítico, um paraíso fiscal, um patrimônio da humanidade, uma zona econômica emergente, um banco genético planetário, mais as contradições pretéritas e presentes dos ciclos históricos da acumulação originária do capitalismo internacional, da economia mundial ganham complexidade no plano local. (Idem, p.5)
O Vale das Águas Pretas sofreu a ação de medidas econômicas e
geopolíticas de caráter nacional. Novos atores sociais compõem o cenário deste
lugar. Em 1910, foi criado o Serviço de Proteção Indígena – SPI, que, em
consonância com o projeto salesiano, pois em prática um conjunto de medidas
voltadas para definição dos limites, pacificação, proteção e integração dos índios na
sociedade. O governo cria o cargo de Delegados de Índios. Um cargo que não terá
uma função muito clara nesse processo, haja vista as dificuldades do alcance
territorial desses povos. Até a década de 1960, o SPI esteve presente no contexto
das relações índios e não índios. Sabe-se que essas relações foram tão perversas
quanto nos séculos anteriores, especialmente no que tange aos processos de
aberturas de fronteiras. Por isso, e sob acusações de corrupções, esse serviço foi
extinto. Entra em cena a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, criada em 1967.
Em 1970 o governo lança mão do Plano de Integração Nacional – PIN
destinado a cumprir com o desenvolvimento e com o progresso da nação. Na
década de 1970, considerada a década milagrosa, foram feitos significativos
investimentos nas áreas de infraestrutura, na indústria mineral e petrolífera, na
construção de estradas e de hidrelétricas.
O conjunto de medidas instituídas pelo PIN incluirá a região do alto rio Negro,
situando a chamada Boca do Cachorro. Trata-se da instalação de postos da FUNAI,
da chegada dos militares do Batalhão de Engenharia e Construção, bem como de
trabalhadores de empresas contratadas para abertura da BR-307, que faz ligação
entre S. Gabriel e Cucuí e de um trecho da rodovia Perimetral Norte (BR-210)
(MAPA-LIVRO, 2006, p.98). São os sinais do chamado progresso chegando ao
grande Vale das Águas Pretas. E com ele toda a má sorte para os que ali vivem.
A rapidez com que atravessamos o século, representada por um fluxo
contínuo de mudanças radicais, revela os contornos de um mundo globalizado e
seus impactos em realidades localizadas. Novas relações de espaço e tempo são
52
definidas. Essas novas características, segundo Stuart Hall, “resultam na
compreensão de distâncias e de escalas temporais, estão entre os aspectos mais
importantes da globalização a ter efeitos sobre as identidades culturais” (2002, p.68).
Esse processo terá um profundo significado a partir da década de 1980 na região do
Vale do rio Negro, quando se inicia um novo ciclo de exploração na região:
garimpeiros e empresas de mineração comporão o novo ciclo, não menos perverso,
nas relações entre índios e brancos. Os conflitos entre esses sujeitos vão, de certa
forma, favorecer o ressurgimento e o fortalecimento das identidades indígenas na
região. A briga pela terra implicou no processo de reafirmação identitária, na
construção de lugares e na luta pela sobrevivência desses povos.
Em 1985, durante o governo Sarney, é lançado o Projeto Calha Norte,
destinado a fortalecer a presença nacional ao longo da fronteira amazônica. O
Projeto previa a criação de várias fortificações na região, totalizando 84 fortes, mas
apenas 15 foram efetivamente implantados. Militares e índios enfrentam inúmeros
conflitos que tematizam a questão territorial. Para os militares, as terras indígenas
deveriam ser limitadas apenas às aldeias em que vivem e seu entorno. Para os
indígenas, as terras deveriam ser extensas e contínua à região de fronteiras.
Para resolver o impasse, coube ao Conselho de Segurança Nacional – CSN o
poder de resolução da problemática da demarcação das terras. O que de fato não
ocorreu, a divergência continua. O CSN cria diferentes categorias de demarcação
das terras indígenas: área indígena para índios não aculturados; colônias indígenas,
destinadas aos índios aculturados e as Flonas (Florestas Nacionais). Os povos
indígenas têm a pretensão de um território único e contínuo. O impasse
permanecerá até a década seguinte.
Da exploração do solo para o subsolo, as relações entre índios e brancos
tornaram-se mais acirradas. Novos conflitos emergem na região: garimpeiros, índios,
missionários, FUNAI e militares encenam esses processos. É iniciada a luta pelos
direitos indígenas sobre a terra, suas culturas, suas identidades. Uma luta que
assumirá seus contornos mais acirrados na década de 1980, culminando com a
Promulgação da Constituição Federal de 1988, que garantirá aos índios o direito a
terra, o respeito pelas suas culturas e suas línguas. Diz a Constituição, no Capítulo
VIII – sobre os ìndios, art. 231: “São reconhecidos aos ìndios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
53
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar seus bens (BRASIL, 1988).
Os processos de luta pelos direitos adquiridos na Constituição continuaram,
haja vista que a presença de militares, de garimpeiros e de empresas de mineração
permaneceu nessa região. E o problema da territorialidade sobre as terras indígenas
atingiu um nível de debate elevadíssimo. Interesses antagônicos e contraditórios
compõem a dinâmica desses conflitos. Em 1987, foi criada a Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, que terá um papel fundamental na
luta pela demarcação das terras indígenas do rio Negro.
No final do século XX, as terras indígenas da região do alto e médio rio Negro
são, finalmente, reconhecidas. Em 1996, o governo federal dar posse permanente
das terras aos índios. Cinco áreas foram reconhecidas: Terra Indígena Médio Rio
Negro I; Terra Indígena Médio Rio Negro II; Terra Indígena Rio Téa; Terra Indígena
Rio Apapóris e Terra Indígena Alto Rio Negro. Coube á FUNAI realizar o processo
de demarcação das terras, mas logo abriu mão da administração desse processo.
Por conta disso, a FOIRN indica o Instituto Socioambiental – ISA para assumir essa
tarefa. Dois anos depois, os decretos foram homologados. Agora cabe aos índios a
responsabilidade sobre suas terras, suas formas de ocupação, de exploração, de
sustentabilidade e de desenvolvimento.
O Vale das águas Pretas entra no século XXI, contando ainda com presença
da Igreja, ramificadas entre católicos, protestantes e evangélicos, dos militares,
comerciantes, da Universidade e de Instituições e organizações não-governamentais
indígenas e não indígenas, como é caso do ISA, que possui uma sede portentosa na
cidade de São Gabriel da Cachoeira. Se no passado arqueológico do grande Vale foi
detectada a existência de inúmeras confederações, no presente, essas
confederações são ressignificadas por interesses que muito se aproximam daqueles
do passado: a necessidade de contato interétnico, como elemento que permite
novas relações econômicas, sociais e culturais e pela necessidade que os povos
indígenas têm de serem reconhecidos como protagonistas de suas vidas, de suas
histórias, tanto pretérito como presente. O contexto é outro, mas a busca pela
emancipação e autonomia parece ser a mesma.
Existem ao todo 29 organizações indígenas filiadas à FOIRN. Elas
representam os interesses das comunidades, das mulheres e dos trabalhadores da
região. Todas essas organizações, em maior ou menor medida, desenvolvem
54
trabalhos voltados para necessidades comunitárias e contam com a presença e
apoio de organismos nacionais e internacionais, que financiam projetos de apoio ao
desenvolvimento regional, destinados, principalmente, às populações indígenas.
Conceitos como sustentabilidade, etnodesenvolvimento, identidade cultural,
interculturalidade, etnociência e educação escolar diferenciada constituem a nova
ordem paradigmática das políticas destinadas aos povos indígenas. A Lei Municipal
no145, de 11 de dezembro de 2002 estabelece a co-oficialização das línguas
Nheengatu, Baniwa e Tukano no município de São Gabriel da Cachoeira. As
instituições públicas deverão prestar serviços fazendo uso das três línguas. Isso
inclui escolas, secretarias e demais órgãos públicos.
Com isso, todas as escolas em São Gabriel da Cachoeira passaram a ter em
seu currículo a disciplina Nheengatu, Baniwa e Tukano, mas somente a primeira é
ministrada. Contudo, a sobrevivência de antigos paradigmas continua rondando a
região do alto rio Negro: diferença cultural e civilização são dois conceitos que
entrecruzam na dinâmica das relações sociais entre índios e brancos. A escola é,
sem dúvida, o lugar de vivência dessas relações, apesar de todos os esforços e
garantias de uma escola diferenciada, bilíngue e intercultural. Como veremos mais
adiante, as escolas tem muitas dificuldades no exercício de uma prática curricular
pautada na diversidade cultural, no bilinguismo e na interculturalidade.
Minha aventura eco-antropológica atravessou tempos, registrou lugares,
espaços e chegou ao século XXI com as imagens dos tempos pretéritos, mas
reconhece no presente a possibilidade de transformação no que tange às relações
entre índios e brancos, em outras palavras, um novo convívio com as diferenças.
Pautadas em interesses que legitimam suas culturas e suas identidades, os
indígenas agora recorrem à escola, o espaço acadêmico, como um lugar que
permitirá a inserção dos mesmos na sociedade de forma mais segura, democrática,
solidária, igualitária e respeitosa. O acesso à escola, bem como o domínio da escrita
e da leitura, seja nas suas línguas ou na portuguesa, é um instrumento concreto
para a legitimidade desse processo. Diferente, mas nem tanto, como no passado, a
escrita representa a passagem para emancipação e libertação desses povos rumo a
uma vida mais plena e mais humana. No passado, a escola representou um
instrumento de dominação e de exclusão social e cultural desses povos. Atualmente,
representa um lugar pelo qual se busca estabelecer um novo modelo de relações
entre os índios e a sociedade envolvente.
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Em São Gabriel da Cachoeira, as imagens do passado continuam presentes,
especialmente no que diz respeito às relações entre índios e brancos e podem ser
recuperadas e melhor compreendidas, na medida em que encontramos nesse lugar
os sinais de um mundo historicamente não tão distante. A flecha do tempo, apesar
de suas contingências, apresenta pontos de bifurcações e tem na experiência mítica
a possibilidade de visualização desse processo. Como vimos, é a partir dela que
podemos atravessar o tempo, recuperá-lo e experienciá-lo por meio dos ritos, das
danças, dos cantos e, mais recentemente, por meio da escrita. No século XXI,
encontramos situações de conflitos, contradições e violências numa cidade marcada
pela presença indígena.
Escolhi como ferramenta de análise deste trabalho a escrita, pois ela parece
representar o fundamento que vem recriando a vida dos índios em São Gabriel da
Cachoeira. Mas a escrita a que me refiro deve ser vista como um sistema complexo
da linguagem, portanto, da cultura. Significa dizer que pretendo a analisar a escrita
dos alunos em seu processo de construção de conhecimento, suas condições de
produção e não como processo puramente gramatical ou mecânico de produção
textual. A conquista da escrita é sem dúvida um ponto, dentre outros, uma
bifurcação decorrente de intensos processos de flutuações dos sistemas
organizacionais dos povos indígenas.
O tempo é irreversível, afirma Ilya Prigogine (2001), mas a história, marcada
pelo tempo, apresenta temporalidades diferentes, no qual é possível ver situações
do passado serem vivenciadas no presente. É certo que o tempo não volta atrás, ele
não para. Mas o que nos faz sentir em algumas ações, acontecimentos, práticas,
sentimentos, emoções, que já vivemos tais momentos?
Como um big bang, a vida da cultura e o sistema cultural de São Gabriel da
Cachoeira se estrutura pela criação de infinitas flutuações6 que permitiram sua
diversificação. Nascida de bifurcações, a diversidade cultural deste lugar permitiu o
surgimento de formas humanas diferenciadas de estar no mundo, sem, no entanto,
perder o sentido que as une: pertencimento a um lugar comum a todos, a terra-
6 Flutuações é um conceito desenvolvido por Ilya Prigogine para explicar os sistemas vivos, que são entendidos
como Estruturas Dissitipativas. As flutuações são responsáveis pelo não equilíbrio dos sistemas, no entanto,
elas geram pontos de bifurcações pelos quais os sistemas ganham uma dimensão histórica. Longe do equilíbrio
permite que os sistemas se refaçam continuamente sem parar, porque são guiados pela flecha do tempo que é
irreversível (PRIGOGINE, 2001).
56
pátria. Todas as culturas, em menor ou maior grau, se situam no plano da
experiência mítica do homem em sua busca de respostas aos problemas
fundamentais: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Experiência que
em sua construção criativa, tem no corpo a descoberta primeira de nossa condição
humana sapiens-demens e que permitiu o estabelecimento de relações complexas
tais quais: a linguagem, o conhecimento, a comunicação. Essas relações,
responsáveis pela integração dos homens na complexidade social, são ao mesmo
tempo geradora e regeneradora dos princípios que normalizam a vida em suas
dimensões sociais, políticas e econômicas.
O sistema cultural na Amazônia, situando São Gabriel da Cachoeira, anterior
ao processo colonizador, visto anteriormente, se estabeleceu por intensas flutuações
migratórias, que ao longo de milênios, produziram expressões culturais próprias.
Mas o processo de conquista e de ocupação na região foi capaz de provocar novas
instabilidades na natureza desse lugar. De forma agressiva e destruidora, os
colonizadores impuseram suas culturas, sua língua e obrigaram os índios a prestar
serviços escravos, negando o conhecimento e a sabedoria indígena, sem deixar de
fazer uso delas.
Contudo, apesar das perdas culturais e humanas sofridas por esses povos no
passado, ainda é possível encontrar sinais ou fragmentos existenciais, expressos
por meio de danças, mitos, símbolos, festas, comidas, práticas, fazeres, que
expressam e representam suas condições socioculturais de sobrevivência. Esses
fragmentos da memória, entendida como presença do passado e do imaginário, têm
a responsabilidade de regenerar parte daquilo que ficou no vazio, localizado no
passado, e que o presente preenche para se recompor no futuro. A diversidade de
cores usadas pelos diferentes indígenas em seus adornos, artefatos, não seria de
certa forma, uma maneira de carregar as identidades culturais de seus
antepassados?
Os povos Amazônicos, especialmente os povos indígenas, são, sobretudo,
frutos de um mosaico colorido absorvido por diversas cores e formas ancestrais, que
ao longo dos tempos foram inseridas em suas culturas por meio do entrelaçamento
de povos, tradições, que ao adquirem sentido no corpo, dão a forma hologramática
da natureza de suas culturas.
A cultura na Amazônia é, portanto, potencialmente polissêmica e polifônica,
pois carrega em si a identidade de inúmeros povos que a habitaram-na, pretérito –
57
presente. Movimento que se expressa pelo corpo, celebrado pelos cinco sentidos,
representados pelas danças, pinturas, cores, sabores, músicas. Essas
representações transubstanciadas pelo corpo, instrumento de memória e, portanto
de tradução cultural revelam o caráter recursivo da cultura, processo em que os
produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que os
produziu e que é conduzido por meio das relações e interações dos grupos sociais
(MORIN, 2003).
Nesse movimento celebrativo do corpo, a conquista da escrita é o instrumento
eficiente para retratar a condição humana para além de sua dimensão cultural e
identitária; levando-a para uma transcendência configurada numa teia complexa que
religa passado e presente, saberes e povos, potencialmente marcada pela dimensão
da corporeidade, federativa dos sentidos, responsável pela experiência cognitiva e
mitológica do homem em toda sua trajetória humana.
A escrita pode ser entendida como um recomeço de um novo estar no mundo,
uma nova forma de habitação dos povos indígenas, seguindo novas orientações
cognitivas e culturais, que funda e refunda novos princípios de vida. Ao desencadear
novas habitações culturais e existenciais, a escrita permitirá uma nova relação entre
o homem e a natureza, razão e emoção, representada não apenas pelos processos
cognitivos, mas pela relação que estabelecemos com o corpo e deste com o mundo
e com a natureza.
A escrita, dentro dessa ótica, pode ser entendida como a construção de novos
objetos-mundos, na qual os indígenas tentam se apropriar para transformar-se a si
mesmos. No entanto, ressalto, é preciso ter cuidado para que a voz dos índios, suas
histórias, seus mitos e suas tradições, não sejam roubadas pela escrita, tornando-se
sua serva. A escrita pode ser um lugar por onde os índios podem perpetuar a si
mesmos, uma maneira de organizar as vozes, armazenar sabedorias, ideias,
sentidos e significações sobre a vida, a morte, o mundo e os homens. Mas também
pode transformar esses lugares em coisas imóveis, sem vida, enclausurados. É um
lugar da natureza, mas é também lugar em que a cultura, e por extensão a
linguagem, se circunscreve.
Simbolicamente, essa conquista representa a construção de uma nova forma
de relação sociocultural entre índios e não índios, e encontra nos contos, nas
narrativas míticas e na exaltação de suas expressões culturais, um novo traçado, um
ornamento diferente de comunicação entre esses povos. Surge então um novo
58
artesão da natureza e da cultura: o escritor. A arte de escrever é, portanto, uma
prática sacra-profana e mítica, na qual os elementos da natureza e da cultura, ora se
profana, ora se torna sagrada.
A natureza da escrita indígena é, neste sentido, mítica, pois permite a
reorganização e a sistematização das práticas, costumes, rituais, hábitos, saberes e
fazeres da ciência do índio. Nesse sentido, a escrita é uma garantia não apenas da
sobrevivência de suas culturas, mas permite um novo transbordar humano diante do
mistério de sua existência, levando-o a compreender melhor sua realidade e a
relacionar-se com os outros de forma mais coletiva. É o que veremos a seguir.
60
O PROJETO CANOEIRO: CONSTRUINDO UM SISTEMA DE REFERÊNCIA TRANSDISCIPLINAR
O contexto, as intenções e os fundamentos
Esta experiência de formação começou a partir da construção de um Projeto
de Formação ou Plano de Curso que denominei de Projeto Canoeiro, como uma
alusão a Canoa da Transformação. Trata-se de uma metodologia de ensino e de
aprendizagem desenvolvida em dois anos de trabalho que teve como objetivo
supervisionar os alunos durante o estágio de docência, oferecendo ferramentas
teóricas e metodológicas para o desenvolvimento de uma prática pedagógica
implicada na pesquisa que culminaria na produção de uma Monografia de
Conclusão de Curso.
O Canoeiro baseou-se na perspectiva de uma aprendizagem transdisciplinar
que vincula os saberes disciplinares aos saberes socioculturais dos aprendentes. A
ideia foi desenvolver uma prática de formação contextualizada. Nela, as condições
de ensino e de aprendizagem foram favorecidas pelo diálogo entre natureza e
cultura e pelo respeito ao universo sociocultural dos aprendentes, entendidos como
responsáveis por suas formações.
Essa experiência de formação de professores ocorreu em São Gabriel da
Cachoeira, município do Estado do Amazonas, no período de 2007-2008. Ela se
constituiu pelo o encontro entre os saberes indígenas e os saberes ocidentais e foi
construída a partir da compreensão das interações recíprocas entre natureza e
cultura na Amazônia7.
Em primeiro lugar, esclareço que entendo a natureza e a cultura como
sistemas complexos que se encontram implicados mutuamente um no outro e são
representados por múltiplas formas de existência, resistência e de sentido e se auto-
organizam por meio de processos autopoiéticos.
O termo autopoiético é emprestado de Humberto Maturana e Francisco
Varela e foi pensado para caracterizar a organização dos sistemas vivos. A
organização autopoiética indica que “os seres vivos se caracterizam por –
7 A Amazônia a que nos referimos está inserida apenas no contexto brasileiro, e é entendida como uma longa
construção cultural, e não um dado a priori da natureza. Deve-se, portanto, pensar nela enquanto uma categoria
espacial que expressa uma especificidade, uma singularidade, dentro de uma totalidade: assim a região configura um espaço particular dentro de uma determinada organização social mais ampla com a qual se articula. (AMADO apud WANZELER, 2002, p.129)
61
literalmente – produzirem de modo contínuo a si próprios” (MATURANA e VARELA,
2001, p.52). São, portanto, produtos e produtores de si mesmos, numa rede de
interações provocadoras de processos de transformações originárias de sua própria
dinâmica de formação, relação e construção.
A cultura é aqui definida como um conjunto de hábitos, costumes, práticas,
savoir-faire, saberes, nomes, interditos, estratégicos, crenças, ideias, valores, mitos,
que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, gera e
regenera a complexidade social. A cultura acumula o que é conservado, transmitido,
aprendido e comporta vários princípios de aquisição e programas de ação. O
primeiro capital humano é a cultura (MORIN, 2002e: 35). Assim, do mesmo modo
que a cultura está na natureza, a natureza está na cultura.
O Projeto Canoeiro foi realizado em seis etapas ou encontros de formação. O
percurso metodológico dele será apresentado neste estudo em seis jornadas. Essas
jornadas serão relatadas em forma de narrativa, pois são de natureza etnográfica, na
qual explicito todo o processo de formação, apresentando as dificuldades, os
desafios, os avanços do ensino e da aprendizagem, bem como aponto para a
construção de uma matriz de exploração teórica e metodológica de formação de
professores fundamentada no pensamento complexo e na transdisciplinaridade.
O Canoeiro atravessou tormentas, instabilidades; fecundou caminhos,
instaurou solidariedade, respeito, partilha e compartilha; despertou saberes,
recuperou outros; inseriu sabedoria e reconstruiu ciências; vivenciou ódio,
experienciou o amor; construiu significados, destruiu sentidos; instituiu práticas,
destituindo outras. Enfim, navegou por entre rios imaginários; por tempos múltiplos e
lugares diversos; atravessou fronteiras; conquistou novos territórios de saberes, de
existências, reafirmando culturas e identidades; mas principalmente, mostrou que a
religação dos saberes é uma condição fundamental para a transformação da escola,
da sociedade e do mundo.
A viagem para São Gabriel da Cachoeira provocou uma série de expectativas
em torno do lugar, especialmente sobre sua população, os alunos do curso e o
processo de formação que seria desenvolvido. Eu havia sido convidada pela Escola
Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas a ministrar duas
disciplinas no curso Normal Superior8, destinado à formação de professores de
8 As Escolas Normais surgiram no século XIX, no Período Imperial. Foram criadas para formação de professores
e sofreram muitas mudanças e intervenções políticas educacionais até serem substituídas pelos cursos de
62
Educação Infantil e Ensino Fundamental (anos iniciais). A primeira disciplina era
Prática da Pesquisa Pedagógica I e a segunda, Estágio Supervisionado I. Apesar de
ter alguma experiência no processo de formação de professores, bem como na
orientação de projetos de pesquisa, tive muitas dúvidas quanto à metodologia de
ensino a ser trabalhada nessa formação. Minha formação inicial em História – aliada
aos estudos continuados voltados para as culturas amazônicas, sua biodiversidade
e sobre processos de formação de professores, educação, currículo e o pensamento
complexo – me permitia circular por entre os saberes socioeducativos que
orientavam o curso Normal Superior. No entanto, isso não representou nenhuma
certeza ou segurança quanto à metodologia a ser trabalhada com os alunos e nem
quanto aos resultados desse início de experiência.
A questão central das minhas preocupações era o fato desses alunos serem
indígenas das mais diferentes etnias, falantes de diferentes línguas e o Curso era de
natureza acadêmica pautada nos princípios pedagógicos da ciência ocidental. Isto
implicaria na construção de uma estratégia de formação orientada por operadores
cognitivos capazes de dialogar com outras formas de pensamento, linguagens e
culturas. São Gabriel da Cachoeira, município do estado do Amazonas, tem 90% de
sua população indígena, falante de 22 línguas étnicas.
A proposta pedagógica do Curso Normal Superior vincula Docência a
Pesquisa, o que significa uma prática de formação implicada na elaboração de
projetos de estágio a partir da pesquisa escolar. O modelo adotado nessa formação
foi o Modular, ou seja, os cursos eram realizados separadamente a cada três
semanas. Como se tratava de duas disciplinas, meu tempo de permanência nesse
município foi de seis semanas, resultando daí uma experiência enriquecida pelo
encontro entre os saberes da ciência ocidental, da qual fui portadora, e os dos
saberes indígenas, que tem nos alunos seus portadores.
A base dessa experiência de formação é a docência implicada na pesquisa, o
que tornou esse estudo um desafio para a linguagem da ciência, enquanto
ferramenta que descreve e explica a realidade. Os sujeitos da formação são de
origem multiétnica e plurilíngue, o que significou construir um conhecimento
implicado em referências culturais contextualizadas. Isso representou uma
Pedagogia. Com a LDB 9.396/97, que estabelece que todos os professores devem ter cursos superiores, as
Escolas Normais ressurgem, porém, oferecendo cursos de Pedagogia. É o caso da UEA, que teve que
reformular o curso em 2007.
63
possibilidade de diálogo entre as diferentes disciplinas e culturas e encontrou na
consiliência uma atitude transdisciplinar, já que busca promover a unidade do
conhecimento.
Diante de uma sala multiétnica e plurilíngue, a formação defrontou-se com
alguns desafios. Estes, em maior ou menor medida, conviveram com o atual modelo
das Ciências em tempos contemporâneos e representaram, no espaço da sala de
aula, um processo de construção e desconstrução mútua entre aquilo que se ensina
e o que se aprende; indicando as zonas de riscos entre o ensino e a aprendizagem,
bem como as fronteiras do conhecimento: as diferentes disciplinas e o universo
sociocultural dos indígenas.
A formação de professores tem sido um instrumento de extrema importância
para ocorrência de processos transformadores nas práticas de construção de
conhecimento e na formação de uma ciência com consciência, que, incorporadas
pela e na escola, devem ser capazes de garantir a sustentabilidade9 do ser e da vida
na Terra. Um espaço que representa rupturas paradigmáticas em diversos campos
do conhecimento e que pode promover mudanças em torno da vida e da sociedade.
Mudanças essas possíveis de reflexões nos seres e fazeres do mundo, bem como
em torno das contradições e conflitos gerados pelo próprio processo de
desenvolvimento da ciência e da sociedade.
Vivemos hoje em uma sociedade permeada por conflitos econômicos,
culturais, religiosos, éticos, étnicos, políticos e sociais, bem como por problemas de
natureza ecológica e ambiental, que ameaçam o equilíbrio ecológico e a
sobrevivência planetária. A escola e a Universidade, sem dúvida, têm sido o lugar
que representa a vivência desse processo. Se, por um lado o avanço científico
trouxe melhorias na qualidade de vida na Terra, para o homem e para vida, por
outro, se revelou incapaz de conduzir a humanidade para uma vivência mais
igualitária quanto aos próprios meios que ela mesma produziu. A miséria, a pobreza,
as guerras, os conflitos sociais, políticos e étnico-culturais têm sido a grande
expressão do estágio da nossa humanidade.
A ciência e a escola, nesse processo, encontram-se distanciadas, separadas
e ligadas, ao mesmo tempo, pelos problemas produzidos pelo avanço do
9 O termo sustentabilidade é usado aqui como processo que possibilidade a sustentação da vida a partir de seus
mecanismos de organização biológica e cultural, respeitando seus princípios organizadores. (Ver CAPRA, 2001)
64
conhecimento: a fragmentação dos saberes e a consequente compartimentação das
disciplinas. Frutos de um paradigma que se fundamenta pela separação do
homem/natureza, sujeito/objeto, sagrado/profano, razão/emoção, que provocou o
distanciamento entre ciência e cidadãos e, consequentemente, a vivência de valores
desprovidos de ética, moral, sensibilidade, estética e de responsabilidade quanto à
vida e à sobrevivência do planeta.
A UNESCO, em 1994, estabeleceu os quatro pilares necessários para
educação: aprender a ser, aprender a fazer, aprender a conhecer e aprender a
conviver. A escola fundada nesses princípios exigirá de si uma reforma quanto à
sua função e a seus princípios de organização. Isso implica também uma reforma no
interior da ciência, que a leve a aproximar-se mais de sua função social,
compartilhando com os cidadãos suas experiências. Os quatro pilares representam o
fio condutor do Projeto Canoeiro.
Em síntese, esses pilares conduzem ao aprendizado da condição humana a
partir de escolhas pertinentes quanto ao conhecimento necessário para a
sobrevivência dos sistemas vivos na terra: homem e natureza. Diante das incertezas
quanto ao futuro planetário, surge a necessidade de construção de novas formas de
relações entre ciência, escola e sociedade, o homem e a natureza, que possibilitem
um projeto de sociedade sustentado por valores nutridos de sensibilidade, estética,
imaginação, intuição, solidariedade, respeito e cooperação entre os seres, que
estendido à escola instaure uma prática educativa produtora de conhecimentos
transdisciplinares, permitindo uma cooperação mútua entre os saberes disciplinares
e os saberes das humanidades.
São Gabriel da Cachoeira é um lugar em que essas situações-limites tornam-
se visíveis, onde o global e o local encontram-se imbricados e, portanto, os
processos educativos neste lugar são definidores de novos modelos de
sociabilidades, de sobrevivência e de luta por melhores condições de vida. A escola
representa, aqui, um espaço para reafirmação da presença indígena, suas culturas e
saberes, no seio da sociedade brasileira e nas suas instituições. É por meio dela que
o vínculo entre as culturas das humanidades e as culturas científicas tem sido
estreitado.
Mesmo que este modelo ou experiência de formação tenha as características
da pedagogia ocidental, o processo de tradução, construção e produção de
conhecimento escapuliu a esse modelo. Esse processo se configurou de maneira
65
diversa e, muitas vezes, foi permeado por contradições, incompreensões,
sabedorias, demências, devaneios, imaginários. Sob o ponto de vista de uma ciência
enraizada nos fundamentos originários da vida e do homem, pôs em evidência o
complexo sistema da natureza e da cultura. E estes, enquanto sistemas
incorporados entre si, possibilitaram uma forma de compreensão científica
atravessada pelo cruzamento de ideias, práticas, saberes, fazeres, sentimentos e
sentidos pelos quais a cultura se funda.
A construção de uma estratégia de formação de professores que vinculasse
uma atitude transdisciplinar, guiada pelos quatro pilares da educação, e que
favorecesse o diálogo entre as disciplinas e os saberes construídos pelas
experiências de vida dos aprendentes e do seu entorno sociobioantropológico, foi
um grande desafio ao processo de ensino e aprendizagem orientado pela pesquisa.
Essa experiência foi construída a partir da análise e da compreensão das
inter-relações ecobioantropossociológicas ocorridas na sala de aula, local de
vivência dos entre-lugares da cultura. Os entre-lugares, conceito construído por
Homi K. Bahbha (1999), permitem pensar o processo de tradução cultural como
espaço no qual as relações entre as culturas são estabelecidas a partir de contatos
conflituosos, ambivalentes e contingentes.
É nesses entre-lugares de formação, notadamente marcado pela
complexidade das relações da natureza e da cultura, que vivenciei uma experiência
formativa implicada no pluralismo das linguagens e na contingência pedagógica do
ato de formar professores pesquisadores. A sala de aula foi composta de 29 alunos,
entre 24 e 50 anos, distribuídos em sete etnias: Tukano, Tikuna, Baré, Desana,
Tariana, Baniwa, Piratapuia, falantes das línguas tukano, desana, baniwa e
nheengatu. Foi nesse lugar de encontros entre as culturas e línguas de naturezas
diversas, que o Projeto Canoeiro, objeto de análise e de reflexão desse estudo, foi
realizado.
A sala de aula, como entre-lugares da cultura, é um espaço constituído por
sujeitos múltiplos, pela diversidade cultural e pela diferença. Nela, o processo de
construção de conhecimento está implicado pela multiplicidade de línguas e
linguagens e está diretamente ligada às experiências culturais e/ou de vida desses
sujeitos. Esse processo foi marcado por relações ao mesmo tempo conflituosas,
contraditórias e solidárias, nos quais as condições de construir conhecimento
66
resultaram dessas relações. Ensinar e aprender são dois processos que atravessam
os entre-lugares das culturas e vão além deles.
A perspectiva teórica e metodológica desse projeto está diretamente ligada
aos estudos da complexidade, que se deu a partir do contato com a obra de Edgar
Morin, especificamente “O Método”10. Essa obra me provocou inquietações sobre o
pensar a Amazônia dentro de uma experiência transdisciplinar. Como é possível
realizar uma prática de pesquisa que levasse em consideração não apenas a minha
formação de historiadora, mas que eu pudesse comportar outras dimensões
epistêmicas que garantissem a competência disciplinar, indo para além dela? Como
produzir um pensamento que incluísse, numa dimensão epistemológica, a natureza,
a cultura, subjetividades, emoções, razão, sensibilidades, imaginários e mitos? O
diálogo entre as ciências da natureza e as ciências das humanidades é possível? De
onde partir?
Essas inquietações encontraram nesta experiência de formação de
professores a possibilidade de vivenciar uma prática co-formativa inserida dentro do
pensamento complexo. O ponto de partida foi a sala de aula, que procurou na
relação entre os saberes indígenas e os saberes da ciência ocidental, construir uma
prática pedagógica de exploração teórico-metodológica que pudesse fornecer os
princípios organizadores da produção do conhecimento realizada durante a
formação desses alunos.
Por meio dessa formação foi possível compreender os fundamentos que
organizam a construção científica dos alunos indígenas, sem perder de vista suas
referencias cognitivas e culturais. Muito embora, estas fossem atravessadas pela
ciência ocidental, foi possível produzir novas formas de construção e compreensão
do conhecimento. Refletir sobre como essas formas de construção de conhecimento
foram elaboradas e como elas podem contribuir para a renovação epistemológica do
modelo de ciência, foi muito importante para renovação de minhas práticas
pedagógicas.
A partir do processo de apropriação e tradução feita pelos alunos durante a
prática de ensino e aprendizagem, pude reconhecer as matrizes pedagógicas que os
orientaram, bem como o significado destas para suas vidas e para futura condição
10
O Método se desdobra em seis volumes (ver bibliografia): O Método I. a natureza da natureza; O Método II. a
vida da vida; O Método III. o conhecimento do conhecimento; O Método IV. as idéias, habitat, vidas, costumes,
organização; O Método V. a identidade humana. A humanidade da humanidade; e o Método VI. Ética.
67
de ser professor. Nesse caso, o imaginário, como elemento que estrutura o
entendimento e o pensamento humano, foi uma ferramenta de análise desse
processo que permitiu, em certa medida, a interpretação simbólica dos alunos sobre
suas compreensões do saber, fazer, conhecer e construir conhecimento.
A complexidade representa uma possibilidade de construção do
conhecimento transdisciplinar, pois requer uma análise multirreferencial. Para Morin,
a complexidade é entendida como um tipo de pensamento que não apenas separa,
mas une e busca as relações necessárias e interdependentes de todos os aspectos
da vida humana, integrando os diferentes modos de pensar. Afirma Morin (2001b,
p.24) ser a complexidade,
Uma viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a riqueza, o mistério e o caráter multidimensional do real; e de saber que as determinações cerebral, cultural, social, histórica, às quais se submete todo o pensamento, sempre co-determinam o objeto do conhecimento. É isso que chamo de pensamento complexo.
A complexidade parte, então, da noção de totalidade incorporando a
solidariedade, colocando, lado a lado, razão e subjetividade humana. Desse modo, a
complexidade coloca-se por meio da transdisciplinaridade, que considera aspectos
como princípio da incerteza, a perspectiva dialética e dialógica, inserindo a dimensão
espiritual, mítico-simbólico do humano. Além de favorecer uma análise emancipada
do conhecimento, visto que a reflexão do cotidiano, o questionamento e a
transformação social, reconhece e aceita as ambivalências, o uso das contradições
e as incertezas em todas as dimensões, cujo princípio Morin denomina de dialógico.
O princípio dialógico consiste em manter a unidade de noções antagônicas, ou seja,
unir o que aparentemente deveria estar separado, o que é indissociável, com o
objetivo de criar processos organizadores e, portanto, complexos. Desse modo, o
homem é visto como um ser unidual, totalmente biológico e totalmente cultural a um
só tempo (MORIN, 2001g).
Outro princípio que se junta ao dialógico é o hologramático, que “põe em
evidência este aparente paradoxo das organizações complexas, em que não apenas
as partes estão no todo, como o todo está inscrito nas partes” (MORIN, 2001f, p.94)
Morin costuma citar uma passagem de Pascal que serve de base para a
fundamentação de sua epistemologia da complexidade:
68
Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes (2001f, p. 25)
O terceiro princípio da complexidade é a recursividade, processo em que os
produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que os
produziu.
Nós, indivíduos, somos os produtores de um processo de produção que é anterior a nós. Mas uma vez que somos produzimos, tornamos-nos produtores de um processo que vai continuar. (...) A sociedade é produzida pelas interações entre os indivíduos, mas a sociedade, uma vez produzida, retroage sobre os indivíduos e produ-los. (MORIN, 2003l, p.108)
Os três princípios da complexidade encontram imbricados um no outro, o que
significa compreender no processo de formação dos aprendentes indígenas uma
experiência implicada na interação entre indivíduo-sociedade-espécie, na qual se
observa relações, ao mesmo tempo, antagônicas, concorrentes e convergentes, em
que a experiência que produz a formação, também produz experiência. Ou seja, a
experiência produz formação e a formação produz experiências.
Ao assumir a epistemologia da complexidade como ponto de partida e de
chegada do estudo das relações entre as culturas indígenas e as culturas ocidentais,
não estou apenas querendo provocar o problema das fronteiras disciplinares,
procurando suas aberturas, mas indicar uma possibilidade de transformar o que gera
essas fronteiras: os princípios geradores do conhecimento, incluindo o conhecimento
indígena nesse processo de formação de professores. “Trata-se de procurar as
relações entre cada fenômeno e seu contexto, a reciprocidade entre o todo e as
partes; perceber como uma determinação local repercute sobre o todo e como uma
modificação do todo repercute sobre as partes” (MORIN, 2001f).
O método da complexidade pede para pensarmos nos conceitos sem nunca
dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas, para restabelecermos
as articulações entre o que foi separado, para tentarmos compreender a
multidimensionalidade (...) (MORIN, 2001g, p. 192).
A ciência moderna provocou a proliferação do conhecimento, levando à
separação entre sujeito e objeto, natureza e cultura, razão e emoção. Essa ciência
apoia-se no paradigma da simplicidade, produzido pela física clássica e na ideia de
separação entre o indivíduo observador e realidade observada. A ciência clássica
conduziu um pensamento reducionista-determinista, segundo o qual o universo era
69
regido pela ordem e a razão se baseava na dedução, indução e na lógica
aristotélica, que exigia o respeito aos axiomas da não contradição, da identidade e
do terceiro excluído (MORIN, 2001j, p.22).
Essa grande matriz do pensamento ocidental orientou as práticas
pedagógicas de formação de professores por muito tempo. Até o século XXI, ainda
percebe-se a existência de um modelo de formação pautado na racionalidade
técnica. O professor é formado para ser um técnico, especialista em uma
determinada área do conhecimento. Um mero transmissor de conhecimentos, capaz
de aplicar os métodos e as regras da ciência. Essa educação tecnológica distancia-
se do contexto sociocultural. Esquece-se de que este é, também, um espaço
educativo marcado pelas contradições, incertezas, pluralidades e singularidades de
valores socioculturais, políticos e econômicos e por instabilidades quanto ao
presente e ao futuro planetário.
O pensamento complexo indica que caminhemos para uma razão aberta, que
não se restrinja aos princípios da lógica clássica. Nele se aceita a inseparabilidade
entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura, as contradições e as incertezas do
conhecimento, as desordens e a imprevisibilidade dos acontecimentos. Busca-se,
portanto, a religação do homem com a natureza, do mundo profano com o mundo
sagrado. Instauram-se novas dimensões no conhecimento: o mistério, a intuição, a
sensibilidade, a arte, as emoções e a estética. E sob esses aspectos, os saberes
indígenas têm muito a acrescentar para a construção de novos modos de saber e de
fazer ciência dentro dos princípios organizadores do pensamento complexo.
Palco de inúmeras temáticas, a Amazônia tornou-se um lugar emblemático no
cenário acadêmico regional, nacional e internacional. Vista por diferentes olhares,
que também representam diferentes lugares de produção de conhecimento dentro
os quais: antropologia, educação, sociologia, história, ecologia, biologia, economia
entre outros. Saberes que se encontram muitas vezes presos aos seus campos
disciplinares, fechados a outras possibilidades de se pensar a região em questão,
revelando, dessa maneira, um conhecimento fechado e isolado, que exclui em larga
medida, os saberes dos índios.
Nessa perspectiva de pensar a Amazônia, o Projeto Canoeiro se configurou
como uma experiência científica que tem no seu centro de articulação disciplinares a
possibilidade de recriação do conhecimento seguindo a necessidade de busca da
unidade entre os saberes.
70
A incorporação dos saberes indígenas no processo de construção do
conhecimento e da formação dos professores implicou o reconhecimento primeiro da
necessidade da articulação e comunicação disciplinares e culturais. A aceitação de
que esses saberes são resultados de experiências humanas, realizadas
empiricamente ao longo de séculos, implica considerá-los como fonte da e/ou para a
ciência. Em geral, essas fontes encontram-se na dinâmica sociocultural desses
povos, em suas práticas cotidianas, mas encontram-se, especialmente, em suas
narrativas míticas, podendo ser chamadas de Ciências do Mito, pois são fontes da
sabedoria dos índios, e constituem-se como referência cognitiva, imaginária e
cultural desses povos no processo de resoluções de seus problemas. O antropólogo
Claude Levi-Strauss (1989) denomina esse conhecimento de Ciência do Concreto,
que se distingue da ciência ocidental apenas por ser incorporado pela sensibilidade,
pela intuição e pelas reflexões mitopoéticas.
Para Lévi-Strauss, o pensamento selvagem e o pensamento científico são
duas formas de fazer ciência. A primeira muito próxima a intuição sensível e a outra,
mais afastada. A ciência do concreto, não foi nem seria menos científica e seus
resultados não foram nem seriam menos reais e, ainda, permanecem como essência
da nossa civilização (LÉVI-STRAUSS, 1989). Para o autor temos ainda, nos tempos
atuais, uma forma de atividade que se aproxima desta ciência primeira.
O homem do neolítico ou da proto-história foi, portanto, herdeiro de uma longa tradição científica; contudo, se o espírito que o inspirava, assim como todos os seus antepassados, fosse exatamente o mesmo que o dos modernos, como poderíamos entender que ele tenha parado e que muitos milênios de estagnação se intercalem, como um patamar, entre a revolução neolítica e a ciência contemporânea? O paradoxo admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes de pensamento científico, um e outro funções, não certamente estágios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mais dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento científico – um aproximadamente ajustados ao percepção e ao da imaginação, e outro deslocado; como se as relações necessárias, objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes: um muito próximo da intuição sensível e outro mais distanciado. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.30)
O conhecimento indígena, com seus operadores míticos, intuitivos, simbólicos
e imaginários, quando transformados em objetos de ensino e de aprendizagem
nesta experiência de formação, provocou a renovação dos sistemas didáticos,
desestabilizando o currículo escolar, as ordens disciplinares e permitiu a vivência de
uma prática pedagógica de natureza transdisciplinar.
71
O espaço acadêmico da formação de professores de origens multiétnicas foi
um laboratório vivo para se explorar epistemologicamente as condições de produção
de conhecimento, tendo como orientação o pensamento complexo. Esse lugar de
formação, que representa o encontro entre os dois operadores cognitivos –
pensamento sensível e pensamento científico –, ao provocar a evocação e a
inclusão de valores estéticos, éticos e transculturais, permitiu uma comunicação
mais efetiva, do ponto de vista do ensino e da aprendizagem, entre as diferentes
culturas, sejam científicas e/ou das humanidades.
A necessidade de dialogar com o conhecimento indígena requereu, em
primeiro lugar, que nos situássemos em torno da problemática desses povos a partir
de suas múltiplas realidades, sejam históricas, políticas, culturais, sociais ou
econômicas, haja vista que foram elas que configuraram o contexto da produção do
conhecimento dos mesmos nesse espaço acadêmico de formação de professores.
Quando o conhecimento indígena, seus mitos, suas cosmologias foram
inseridos nessa experiência de formação, foi aberto o caminho para a religação entre
os saberes e para o contato com a milenar ancestralidade humana. E o trajeto desse
caminho se fez lendo os mitos, que nos ensinou a voltar para dentro de nós, nos
ajudando a colocar a nossa mente em contato com a experiência criativa e afetiva,
de estar vivo no mundo. Os mitos abrem o caminho para dimensão do mistério e
fornece as bases para a compreensão do mundo, que do ponto de vista pedagógico
encaminha o homem a viver uma vida humana sob qualquer circunstância
(CAMPBELL, 1990).
Quando inseri as leituras de mitos na sala de aula, muitos alunos
aproveitaram esse momento para refletirem sobre o passado de seu povo, e isso os
fez recordar outros mitos. A compreensão que eles têm dos mitos é histórica.
Sempre procuram encontrar elementos concretos que comprovam suas histórias. “O
mito foi o nome que o homem branco deu pra nossas histórias, mas não é mentira e
nós podemos mostrar que é verdade” (LUDI, aprendente, 2008). Então, outras
narrativas apareceram. Os alunos começaram identificar os lugares do mito:
montanha, pedra, rio, cachoeira, árvores, animais. Afirmaram a existência desses
lugares, por já terem tido contato com eles. Quando o artista plástico e narrador de
mitos, Feliciano Lana, da etnia Dessana, apresenta suas gravuras do mito, um aluno
da etnia Tariana chegou comigo, dizendo: se eu quisesse ir até aquele lugar, me
levariam (LUDI, aprendente, 2008).
72
A ciência ocidental e, por extensão, a escola, encontram-se deslocadas dos
princípios norteadores da dimensão humana, que legitimam e dão sentido as suas
experiências tais como o mito, a intuição, o amor e a solidariedade. Por isso, esses
lugares, ciência e escola ocidental, necessitam se refundar, ressignificando suas
práticas a partir de sua vocação humana original: potencializar as experiências do
homem pelos caminhos da criatividade e da afetividade, na formação de um homem
integral, consciente de seu enraizamento primordial na natureza.
O diálogo com o conhecimento indígena representou um caminho fecundo
para a produção e construção de aprendizagens significativas. Os mitos possibilitam
a abertura para um conhecimento transdisciplinar, que tem a função de re-encantar
o mundo diante dos conflitos da existência humana. Como nos lembra Ailton
Siqueira11, “os mitos são as vozes do tempo que nunca passa”, uma possibilidade de
re-encantamento do mundo frente à perda dos homens de suas capacidades de
escuta desse eco que atravessa os tempos.
Em outras palavras, reitera o antropólogo Edgard de Assis Carvalho,
a grande questão que se apresenta é que, apesar das diferenças
entre mito e ciência, estas duas perspectivas podem mostrar-se
igualmente válidas e que a própria ciência moderna, em sua
evolução, abre campo para integrar as chamadas matérias perdidas
no âmbito da explicação científica. Em síntese, pode-se afirmar que
estamos vivendo um momento em que, talvez, seja possível apostar
na superação deste divórcio entre a ciência moderna e outras formas
de pensamento, até porque a ciência é sempre algo inacabado e
sempre haverá novos problemas a serem discutidos e que,
anteriormente, foram postos de lado. (CARVALHO, 1997, p.23)
Essa formação, enraizada ou fundamentada pelo diálogo com o pensamento
sensível e o pensamento científico, contribuiu para a produção de saberes
incorporados pelos sentidos. Isto significou estabelecer relações do ensino com os
saberes do mundo, fundados na intuição, na sensibilidade e na emoção. Portanto,
essa experiência foi construída, fundamentalmente, pela abertura, que se faz pelo
intermédio de um contrato baseado não apenas nos aspectos socais, mas que prevê
o retorno do homem ao seu enraizamento na natureza. Michel denomina esse
contrato de Contrato Natural (1999). Isso requer a reconciliação da natureza com a
11
SIQUEIRA, Ailton. O Mito e o Re-encantamento do Mundo. Entrevista cedida a Eglê Wanzeler. Manaus,
2006.
73
cultura, conjuntamente entendida enquanto elementos incorporados no
conhecimento humano e que tem na linguagem o elo de religação.
Para Michel Serres (1999), o Contrato Natural só pode ser legitimado se for
ancorado numa perspectiva epistemológica que inclua uma aproximação não
apenas com a lógica da ciência, mas com a lógica dos viventes. Esse acordo deve
estar pautado no respeito mútuo a natureza, na responsabilidade sobre seu uso,
mas, principalmente, ser regido por novos princípios do conhecimento, capazes de
provocar reformas no pensamento, a partir de inscrições cognitivas contextuais,
colaborativas e solidárias.
Nesse percurso formativo, as práticas pedagógicas foram se construindo, e,
ao mesmo tempo, destruindo-se, desfazendo-se para se reconstruírem. Uma
aventura que perigou entre o viver e o morrer, por onde circulou saberes, normas,
crenças, mitos, práticas, costumes, tradições, valores. Uma experiência marcada
pelo encontro de diferentes culturas, nascidas do cruzamento de várias identidades
e se estabelecendo sob a diversidade colorida de linguagens, povos e sociedades.
Como sabemos, a cultura indígena é marcada pela tradição oral. Os saberes
indígenas são reproduzidos de geração em geração pela prática de contar histórias,
cabendo aos mais velhos assegurar esses saberes, produzidos milenarmente pelos
seus antepassados. As histórias indígenas, conduzidas pelos mitos, têm um arsenal
riquíssimo de conhecimento sobre a natureza, doenças e curas. Na coleção
Narradores Indígenas do Rio Negro, o narrador Luiz Lana, em entrevista a Berta
Ribeiro, expressa as razões de escrever sobre os mitos:
A princípio não pensei em escrever essas histórias. Foi quando vi que até rapazinhos de dezesseis anos, com o gravador, começaram a escrevê-las. Meu primo-irmão, Feliciano Lana, começou a fazer desenhos pegando a nossa tribo mesmo, mas misturando com outras. Aì falei com meu pai: “todo mundo vai pensar que a nossa história está errada, vai sair tudo atrapalhado”. Aì ele também pensou... Mas meu pai não queria dizer nada, nem para o padre Casemiro, que tentou várias vezes perguntar, mas ele dizia só umas besteiras assim por alto. Só a mim é que ditou essas casas transformadoras. Ele ditava e eu escrevia, não tinha gravador, só tinha um caderno que eu mesmo comprei. Lápis, caderno, era todo meu. Quando estava na metade, aí eu escrevi uma carta ao padre Casimiro. Ainda não era amigo dele, mal o conhecia, mas disse que iria escrever tudo direito. Ele me respondeu e mandou mais cadernos. Fiquei animado... Não escrevia todo dia não, fui perguntando ao meu pai. Às vezes passava uma semana sem fazer nada. Quando terminei, quando enchi todo um caderno, mandei o caderno ao padre Casimiro, o original em dessana, a história da criação do mundo até a dos Diloá. Continuei trabalhando, fazendo outro original, já em português. Aí pedi ao padre Casimiro para publicar, porque essas folhas datilografas acabariam se perdendo, um dia podiam ser
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queimadas, por isso pedi que fosse publicado para ficar no meio dos meus filhos, que ficasse para sempre. (KEHIRI e PÃRÕKUMU, 1995, p. 11-12)
Nesse contexto, o uso da escrita para os indígenas se configura como um
instrumento de divulgação de seus saberes, mas fundamentalmente como veículo
que assegura as futuras gerações o conhecimento milenar de suas culturas. Essa
produção vem ganhando espaço no cenário local, regional e nacional a partir da
educação escolar indígena, representando um novo instrumento de luta e resistência
contra as novas formas de subjugação cultural dos povos indígenas.
É nesse caminho que podemos atribuir a produção escrita indígena como um
entre-lugar, por fornecerem um “terreno para elaboração de estratégias de
subjetivação – singular e coletiva – que dão início a novos signos de identidade e
postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de
sociedade” (BHABHA, 1998, p. 20). Um lugar de fronteiras no qual passado e
presente caminham mutuamente num mesmo espaço. É nesse sentido que o
conhecimento mítico indígena inserido na escola, enquanto fronteira que atravessa o
tempo, se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um
movimento de ir e vir, no qual é possível encontrar um espaço intermediário de
intervenção no aqui e no agora.
O trabalho fronteiriço da cultura, de acordo com Bhabha, exige um encontro
com „o novo‟ que não seja parte do continuum de passado e presente, mas como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como
causa social ou precedente estético, porém o renova, refigurando-o como um entre-
lugar contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O „passado-
presente‟ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA,
1998).
Os saberes construídos nesta experiência a partir de processos relacionais e
dialógicos, que se deram pelo encontro de culturas diferentes, ao entrarem no jogo
das inter-relações produziram um conhecimento mestiço12, que é e não é ao mesmo
tempo a cultura indígena e a cultura ocidental, porém é o resultado dessa mistura
entre as culturas. A disciplina tornou-se, então, uma ferramenta de comunicação
entre elas, pois é a partir dela que essa experiência foi se construindo. Quando digo
12
O termo mestiço é compreendido aqui para designar as misturas ocorridas entre seres humanos, saberes,
imaginários e formas de vidas oriundas de diferentes lugares e culturas. (Ver GRUZINSKI, 2001).
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disciplina, estou me referindo aos cursos ministrados (Prática da Pesquisa
Pedagógica e Estágio Supervisionado)
O tempo vivido nessa formação foi intercalado por dois vetores: o da
aprendizagem e o do ensino. No entanto, esses vetores encontraram-se implicados
entre si, e apesar de possuírem um espaço em comum, a sala de aula, o processo
de ensinar e aprender se construiu, muitas vezes, em espaços diferenciados. Os
múltiplos espaços da aprendizagem são também vividos em temporalidades
múltiplas. Nesse caso, o tempo da formação é sempre múltiplo e a aprendizagem é
estabelecida de acordo com o tempo de cada aluno. Por isso, o espaço do ensino foi
um lugar que recuperou o tempo da aprendizagem a cada encontro de formação.
Significou estabelecer conexões entre os diferentes tempos e, a partir disso,
provocar nos aprendentes a compreensão do conhecimento.
Se, no passado, a escola indígena foi marcada por interesses civilizatórios,
um instrumento de dominação colonial que excluía o conhecimento do índio, sua
cultura e sua língua, no presente, passa a preencher uma necessidade política dos
povos indígenas, um instrumento de apropriação e de luta para a manutenção de
suas identidades e de suas culturas, mas também possibilita a construção de novas
formas de sociabilidades entre os índios e os não índios.
Nesse contexto de mudanças, a busca por uma aprendizagem pautada na
biografia dos sujeitos aprendentes – tomada de consciência de suas trajetórias de
vida e de formação – tornou-se urgente para o desencadeamento de novos
processos educacionais; para a vivência de novos valores, fundados na ética, na
solidariedade; no respeito às diferenças étnico-culturais e no amor, estendidos não
apenas numa dimensão humana, mas em escalas ecológica e planetária.
Diante da ideia da complexidade existente entre a natureza e a cultura na
Amazônia, bem como da aceitação da existência de uma relação autopoiética
desses sistemas, construídos nos entre-lugares da cultura, a proposta de articulação
entre os saberes indígenas e os saberes ocidentais representou a construção de
novos conhecimentos; permitiu a abertura para novas compreensões
epistemológicas e, principalmente, para novas formas de relações entre os homens
e suas diversidades de saberes, fazeres e linguagens, guiados por uma ética
complexa. Segundo Morin, esta ética nutre-se pelos princípios da autonomia e da
responsabilidade do homem em relação a vida, a natureza, a cultura, a terra, um ato
de religação humana com a sua própria condição, uma aposta na incerteza e na
76
compreensão de nossas contradições e ambiguidades, mas seguramente, um ato de
resistência contra a crueldade do mundo e a barbárie humana.
A atitude transdisciplinar, como princípio fundador desse estudo, recolocou a
ciência como lugar que produz experiências sociais, uma aventura humana nos
caminhos da descoberta, do conhecimento e de transformação social. O próprio
prefixo trans, que significa aquilo que está entre as disciplinas, através das
disciplinas e para além das disciplinas (NICOLESCU, 2000), indica a relação da
ciência com toda sua dimensão humana.
A sala de aula foi, neste estudo, um lugar de experiências complexas que tem
como ferramenta de análise: o conhecimento em seu processo de construção e
produção de sentido. Um conhecimento construído a partir de experiências
desenvolvidas no processo de ensino e aprendizagem. Nesse caso, a sala de aula
constitui-se como um ecossistema, formado pelo conjunto das relações
socioculturais estabelecidas pela e na dinâmica dos sistemas natureza e cultura pela
qual a sociedade se constitui e é constituída.
A formação dos professores indígenas é fruto de um contexto histórico-
cultural conflituoso, contraditório e destruidor que estes sofreram ao longo do
processo colonizador no Brasil e na Amazônia e que vem refletindo até os dias de
hoje. No entanto, essas populações vêm, ao longo dos tempos, encontrando
alternativas de luta e de sobrevivência. A educação escolar diferenciada tem sido um
instrumento de reivindicações política, cultural e social, que ao entrarem no jogo das
ações políticas intra e intergovernamental, provocam alterações significativas nos
seus modos de estar no mundo, nos seus ecossistemas, redefinindo novas
configurações socioculturais.
Para compreensão desse processo, foi preciso fazer a ecologia das ideias,
que, de acordo com Morin, confere autonomia às teorias, ideologias, mitos, deuses,
e que são visto como “produtos” fabricados pelo espìrito humano e pela cultura,
constituindo, portanto, seu ecossistema co-organizador e co-produtor. As ideias
devem ser consideradas no sentido amplo que abrange teorias, filosofias, ideologias.
Logo, as mesmas ideias ou teorias podem ter uma significação inteiramente
diferente, e até inversa, segundo a ecologia mental ou cultural que as alimenta
(2001g, pp.103-104).
É nesse sentido, que a formação oferecida aos professores indígenas foi
compreendida. Foi preciso refletir sobre como as ideias circularam nesse processo
77
formativo e como elas foram traduzidas, visto que foram experienciadas dentro um
ecossistema diverso cultural e linguisticamente. Em larga medida, essa tradução
fugiu aos princípios organizadores das teorias estudadas, e estas sofreram
influências de novos operadores cognitivos e, consequentemente, o processo de
significação sofreu alterações. A noção de educação intercultural refletida pelo índio
Tariano em seu projeto de pesquisa, intitulado “A Metodologia da Matemática e o
Conhecimento Indígena na 3ª série do Ensino Fundamental” (LUDI, 2008, pp.26-27),
é assim traduzida:
O homem desde sua origem com sua capacidade e pelos seus conhecimentos dotados de inteligência veio praticando matemática na pratica sem ter aula de teoria. Tudo por interesse marcava com um objeto e outros semelhantes para definir, os tipos de animais perigosos, os animais nutritivos, os pássaros, lugar do inimigo do ser humano, os pássaros nutritivos. Procurava madeira grande, começava marcar com os sinais verticais para animais perigosos, com sinais horizontais indicava os pássaros nutritivos. (sic). Ainda marcava lugar, a existência da variedade de peixe colocava na lasca de madeira cinco pontos diferentes, amarava com cipó na madeira significando para matar. No lugar da existência de vários tipos de animais utilizava cinco pedacinhos de varas cravado também na lasca. (sic). Para fazer um roçado usava um cipó começava marcar, ainda usava varas afirmando quantas madeiras grossas existia no lugar, toda esta organização determinava o dia do inicio e acabamento. (sic). Quando derrubava uma madeira para construir canoa, banco e remo primeiro tirava cipó ou cortava uma vara comprida de acordo do seu trabalho foi usando os objetos citados acima conforme sua necessidade, por exemplo, começava medir o diâmetro com um cipó, com este mesmo material foi medido o comprimento da canoa, ainda media a largura, o comprimento do banco, e media espaço de cada um dos bancos outras coisas semelhantes. Para construir uma casa utilizava a principal medida cipó, com a finalidade de medir altura do esteio, a largura da casa, divisão do quarto, os tamanhos dos caibros, dos travessões, o diâmetro do travessão, a distância das ripas para cobertura com caraná. Quando fabricava tipiti, urutu, balaio, peneira, e outro semelhante separavam as peças de arumã por pares e impares de acordo de seu trabalho, tudo medido com uma vara para não ficar atrapalhado durante sua atividade até no acabamento do material. O material denominado arumã o ancestral partia do meio todos iguais, tendo por objetivo de fabricar matérias para o uso do trabalho da mulher da vida cotidiano. Com este trabalho inventado pelo homem, a mulher começava de produzir vários tipos de produtos de gêneros alimentícios como: beiju, farinha, farinha de tapioca, massa de tapioca, com este trabalho as meninas mais nova aprendia partir o beiju do meio, quantas aturas de mandiocas saem uma lata de farinha, uma lata de farinha de tapioca e outros. Todos esses métodos colocados podem ser aplicados nas escolas diferenciadas, tirando o trabalho cotidiano da vida, entra a área de matemática e outras disciplinas para serem aprofundadas para o
78
conhecimento do aluno. Foi colocado este trabalho com a finalidade de facilitar aprendizagem do aluno da terceira série do ensino fundamental, sem ter quase preocupação com aula teórica procurando sempre desenvolver com materiais concretos para alcançar o objetivo maior da escola: ensinar a aprender. Há milhares de anos, o homem primitivo com sua capacidade dotado de inteligência de entender, e o conhecimento sobre a natureza utilizava certos materiais concretos praticando medidas de vários tamanhos, conforme sua atividade a matemática foi utilizado cotidianamente pelo ser primitivo. O ser humano usava palmo da mão, cipó, vara, braço de acordo para medir a distância, na fabricação de qualquer objeto, na construção da maloca, da canoa, do tipiti, o diâmetro da madeira, balaio, peneira, urutu e outros semelhantes. Com esta utilização já estava praticando a maneira de resolver e calcular a área de matemática, ainda os antepassados não conhecia sistema de negócios, apenas viviam na base de troca de alguns objetos com seus semelhantes, de acordo, “Antigamente, por mais analfabeta que fosse a pessoa já usava matemática sem saber.” (sic). (BRASIL, 1997, p. 159) Quanto mais valoriza o aprendizado a sua aprendizagem de matemática pode ser utilizada com certos objetos envolvidos ao seu redor até com as frutas como: laranja, abóbora, melancia, abacate, abacaxi, caroço de açaí, caroço de buriti, com um pedaço de cana, quando vai tecer urutu, tipiti, peneira, balaio esta sabedoria ancestral vai desenvolver a capacidade do aluno operacionando qualquer problema brincando e vai ter facilidade de resolver a adição, subtração, multiplicação, divisão, fração quando for aplicada esta regra o próprio aluno vai gostar na área de matemática, o importante cabe valorizar o raciocino do aprendiz. Também podem ser aproveitadas em relação com outras disciplinas com certos objetos citados outras áreas de conhecimento colocando mais argumento sobre atividade. “Aprender a valorizar o raciocino lógico e argumentativo torna-se um dos objetos da Educação Matemática.” (sic). (CENTRION, 2002, p.35)
O conhecimento construído por Ludi é ao mesmo tempo um processo de
significação e de tradução teórica e cultural, no qual os autores são colocados entre
parênteses, e suas frases são colocadas como argumento final do seu pensamento.
O que direciona a reflexão do aprendente é a experiência da cultura que o formou.
São dois instantes do pensamento: o primeiro, refere-se a experiência da cultura
indígena, e o segundo é a experiência fundada pela pesquisa científica. Ele
reconhece o papel da teoria no seu campo de produção científica, mas coloca que
esta não tem lugar na sua cultura. Disto resulta um conhecimento implicado numa
epistemologia da prática, da experiência, que tem no objeto concreto a base de sua
compreensão.
Para Gaston Bachelard (2004), o conhecimento é construído pela
aproximação entre o conceito e a experiência. Portanto, o que define o conceito, o
que o torna compreensível é a experiência do sujeito e sua capacidade de recorrer
aos seus sistemas de referências e a partir disso descrever sua compreensão dos
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dados recebidos. O conhecimento aproximado se constitui, portanto, pela inclusão
das experiências no processo de compreensão e descrição do conhecer. A
aprendizagem começa pela organização dos pontos de referências, nos quais os
dados são percebidos no interior da teoria. Essa descrição é feita pelo impulso
intuitivo recebido num instante em que experiência e sentido se amalgamam dando
unidade ao conhecimento e, nesse caso, o sujeito compreende e aceita o sistema
pelo qual ele o construiu e foi construído.
Acredito que a leitura nunca e jamais deve ser motivo de perda de tempo em uma sala de aula. Lógico, temos de saber se os nossos alunos estão lendo com precisão, mas é preciso incentivar a prática da leitura em casa. Conscientizar o aluno sobre a importância da leitura para o crescimento dele no conhecimento de todas as disciplinas. Porque se o aluno não souber ler, como é que ele vai conseguir fazer outras atividades de outras disciplinas que requerem o uso constante da leitura. Penso que devemos parar de se preocupar tanto com as regras gramaticais, ortográficas e dar mais importância a produção de textual, como também a interpretação de texto. As regras gramaticais precisam ser conhecidas pelos alunos, mas de maneira contextualizada. (LENITA, Baré. Relatório de Campo, Estágio II)
Aceitar o sistema implica reconhecer nele suas categorias, suas ideias e
conceitos e a partir disso estabelecer conexões com as experiências da vida. O
Projeto Canoeiro apresenta-se como uma proposta de co-formação que reconheceu
na biografia dos sujeitos aprendentes processos de aprendizagem e de ensino que
interferem direta e indiretamente no seu processo de construção de conhecimento;
compreendeu que a formação é uma via de mão-dupla no qual os sujeitos da
aprendizagem também são sujeitos de ensino, bem como os sujeitos de ensino
também são sujeitos de aprendizagem; viu a sala de aula como um lugar da
multiplicidade de tempos, de espaços, conflitos, contradições, ambivalências,
imprevisibilidades e incertezas quanto aos rumos do processo de ensinar e aprender
e entendeu que foi preciso estar preparado para o imprevisível, pois dele foi possível
construir apostas mais seguras quanto ao futuro.
A partir dessas orientações, fundamentadas pela complexidade, o Projeto
Canoeiro foi implantado. Caminhou na errância do aprender e do ensinar, e com isso
conseguiu, ainda que de maneira incerta, realizar uma prática formativa inspirada na
transdisciplinaridade.
80
A Travessia do Canoeiro: um começo infinito
Da imagem ao texto, do contexto ao imaginário: a produção textual
Iniciei essa experiência partindo de uma preocupação: qual o contexto
sociocultural dos aprendentes e qual a percepção dos mesmos sobre o lugar em que
vivem. Era necessário me inserir em seus sistemas de referencias culturais e
naturais, para que eu pudesse perceber qual dimensão que teria que dar a essa
formação. Precisava também conhecer o nível de suas escritas. Para tanto, usando
uma imagem como inspiração, pedi a eles que falassem sobre suas impressões e
sentimentos diante da imagem da Serra do Curicuriari (Figura1) ou Bela Adormecida
que fica em frente à cidade, no bairro da Praia. Orientei que deixassem essas
impressões registradas em seus cadernos. Em seguida, partimos para uma reflexão
sobre a problemática socioambiental da cidade e tivemos como base a leitura e a
discussão dos seguintes textos:
1. MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte. A Agonia Planetária. In: Terra Pátria.
Tradução de Paulo Alves. Porto Alegre: Sulina, 2001.
_________. Saberes Globais, saberes locais: o olhar transdisciplinar. Rio de
Janeiro: Garamond, 2001.
2. CAPRA, Fritjof. A alfabetização ecológica (Epílogo). In: A Teia da Vida: uma
nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton
Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2000.
Os autores, em seus textos, apresentam uma preocupação com o destino
planetário, e isso inclui homem e natureza. Afirmam que o desenvolvimento das
ciências aliado ao desenvolvimento tecnológico provocaram uma série de problemas
para a natureza, que vão desde a afetação da camada de ozônio, à poluição das
águas, desmatamento das florestas, aquecimento global e o lixo, que, aliados ao
problema da desigualdades sociais, geram e intensificam a miséria humana por todo
o planeta. Reconhecem a necessidade da conciliação entre os saberes globais e
saberes locais, e acreditam que aproximar esses saberes pode provocar processos
transformadores na sociedade e nas condições de vida do planeta.
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A problemática socioambiental para esses autores precisa ser levada para as
escolas. Eles indicam os caminhos para uma vida sustentável. Capra propõe um
projeto de escola voltado para Alfabetização Ecológica. Essa proposta implica a
construção de um modelo de educação destinado a cuidar do mundo a partir da
integração entre as ciências, sejam biológicas, sociais, econômicas e culturais, pois
compreende que as dimensões dessas ciências possuem um caráter sistêmico, visto
que, tal como os sistemas vivos, são interligadas por redes complexas. Educar para
a sustentabilidade planetária é a grande tarefa da escola para o século XXI, que
deve reconhecer e respeitar a diversidade humana e garantir a sustentabilidade
ecológica (CAPRA, 2000).
Edgar Morin aposta na ideia de uma educação voltada para o saber pensar,
saber ser, aprender a viver, a partilhar, comunicar e comungar enquanto humanos
da terra. Acredita que precisamos viver uma nova civilização, sendo esta nutrida
pelos valores da humanidade, da solidariedade e da ética planetária. Civilizar a terra
a partir desses valores humanísticos representa a garantia da sobrevivência das
culturas, da natureza e da Terra-pátria. Criar uma comunidade de destino terrestre é
o grande desafio para a permanência dos sistemas vivos, os sistemas complexos.
Marcos Terena, índio que participou da palestra de Edgar Morin, que gerou o
livro “Saberes Globais e Saberes Locais: o olhar transdisciplinar”, pede a aliança
entre as ciências da academia e as culturas indígenas e suas ciências. Para ele, o
conhecimento indígena precisa ser respeitado e aceito em sua inteligência e eficácia
e a academia deve ser um portal possível para a preservação desse conhecimento.
Seguindo a leitura e discussão dos textos, fizemos um passeio ecológico pela
cidade. Nesse passeio, os aprendentes elegeram a Serra da Bela Adormecida13
como a imagem que melhor representa a natureza da cidade, não apenas pela
beleza, mas pela relação que ela tem com a história do lugar, pois, segundo a
mitologia local, estaria lá a origem do município.
A ideia dessa experiência era construir uma escrita partindo da imagem, com
o objetivo de perceber a importância da imagem e da imaginação no processo de
criação do texto. Como atividade final, partimos para a produção textual, tendo a
13
Bela Adormecida é como é popularmente conhecida a Serra do Curicuriari. É um conjunto de oito serras, que
lembra uma mulher deitada. O nome tem sua origem no conto de fada A Bela Adormecida.
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imagem fotográfica da Bela Adormecida como elemento inspirador do processo dos
aprendentes na construção do conhecimento.
Ilustração 1 - A Serra do Curicuriari (A Bela Adormecida). São Gabriel da Cachoeira, 2008.
Fonte: Arquivo Pessoal
A experiência de produção de texto a partir do objeto gerador – imagem da
Bela Adormecida – levou-me a compreender que a sala de aula é um lugar formado
pela multiplicidade de culturas e línguas que desemborcaram na escrita dos
diferentes sujeitos e traduziram o universo polissêmico de suas ideias, pensamentos
e imaginários. Foi isso que os escritos dos aprendentes revelaram.
A imagem que estou vendo na tela do computador é a serra da Bela Adormecida, rio Negro e a praia do Muçunquara (sic) tudo isso representa as belezas naturais do município de São Gabriel da Cachoeira. Ela está situada na margem esquerda do rio Negro. A beleza da serra Bela Adormecida me traz uma lembrança muito triste dos antigos colonizadores da região perto dessa serra muitos índios derramaram sangue e perderam a vida no trabalho escravos que os colonizadores faziam (sic) A Serra nos traz uma bela lenda de uma mulher linda adormecida, essa lenda me encanta e me da orgulho de eu fazer parte do morador desse lindo município.(sic) Tem também a bela praia Muçunquara onde ela também tem sua bela história de uma cobra que saia antes da enchente do rio segundo os antigos moradores da praia. A linda praia com o crescimento da cidade e aumento da população está muito poluída. Vendo isso me dá muita tristeza, coisa boa que Deus fez para o homem sendo destruído pelo próprio homem e ninguém toma providência, principalmente os órgão (sic) competentes de São Gabriel, se ninguém abrir o olho acabaremos destruindo toda a nossa natureza. Temos que colocar em prática o que autor diz, alfabetizar o ecológico para a garantia da própria sustentabilidade da nossa mãe terra. (COCAH, 2007)
_______________________ A Bela Adormecida é um dos pontos turísticos de São Gabriel da Cachoeira, que torna a cidade atraente e bonita. Explica uma mitologia Dessana, que segundo um pajé da etnia, Feliciano Lana a Serra de Curicuriari (Bela Adormecida) é o retrato de uma das filhas
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de Wariró (origem indígena). A Bela Adormecida recebe a pessoas de braços abertos. Hoje observando a Bela vimos que São Gabriel da Cachoeira precisa ser conservada para se compactibilizar com sua beleza que os tem. (sic) Isso depende muitos de nossas consciências para conservá-la. Por exemplo, para observamos a Serra mais de perto para vermos com nitidez, precisamos ir para a praia e chegando na praia nos deparamos com lixo jogados sobre ela e no rio que atrai doenças e corre risco de acidentes. Já pensou se pudéssemos tocar na Bela Adormecida andar sobre ela. Será que ela continuaria sendo ela?. Pela forma com as pessoas tratam a cidade e a natureza, a Bela seria encoberta de lixo. Portanto, é preciso conservar o que temos para que as futuras gerações não sofram as conseqüências. Mas por outro lado. São Gabriel pode ter o defeito em outros fatores, mas em termos de beleza cultural é nota dez, isso é indiscutível. Por isso vamos conservá-la, São Gabriel e a Bela Adormecida agradece (sic) (BENI, 2007)
_________________________ A Serra Desejada A serra desejada se chama a Bela Adormecida, localizada no nosso município São Gabriel da Cachoeira. De um modo geral, talvez o nome é oferecido pelo seu formato, de uma mulher deitada, porém sua paisagem é mais linda, onde o morador local e o visitante possa olhar e dizer que ela está intacta. Não se sabe até quando, mas a bela está bem localizada, um pouco distante da nossa cidade fazendo que ela seja bem preservada. Que belas és tu serra Onde todos possam olhar E não pode tocá-la Dessa maneira, continuará Sempre desse jeito, linda Maravilhosa, eternamente Caso contrário nunca mais Será a mesma Quantas pessoas já lhe cobiçaram Mas você sempre ali, fazendo Com que eles se apaixonam dDistantemente, seja assim mesmo Comparo você quando alguém vai navegar a internet e ao acessar, conhece uma garota que mora distante, a mesma coisa você. Serás sempre a mais bela e a mais famosa do nosso Brasil e do nosso município. Parabéns continue assim. ( JANDI, 2007
Encontrei nessas escritas uma particularidade importante: nelas ouvimos as
vozes dos aprendentes. Eles produziram uma escrita com as marcas da oralidade.
“A imagem que estou vendo na tela do computador é a serra da Bela Adormecida,
rio Negro e a praia do Muçunquara (sic) tudo isso representa as belezas naturais do
municìpio de São Gabriel da Cachoeira” (COCAH, 2007).
Além disso, suas escritas apresentaram outras marcas e/ou conteúdos: a)
conteúdos conceituais: sustentabilidade, conservação, preservação, turismo,
política. Os conteúdos conceituais tiveram relação direta com a leitura dos textos
lidos. Neles, os aprendentes apreenderam as palavras chaves dos autores e as
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colocaram em contato com suas próprias compreensões e referencias. “Já pensou
se pudéssemos tocar na Bela Adormecida andar sobre ela. Será que ela continuaria
sendo ela? Pela forma com as pessoas tratam a cidade e a natureza, a Bela seria
encoberta de lixo. Portanto, é preciso conservar o que temos para que as futuras
gerações não sofram as consequência.” (sic) (BENI, 2007). Na concepção de Cocah,
a garantia da sustentabilidade da natureza tem relação direta com a conscientização
política da população e dos órgãos públicos:
Vendo isso me dá muita tristeza, coisa boa que Deus fez para o homem sendo destruído pelo próprio homem e ninguém toma providência, principalmente os órgão (sic) competentes de São Gabriel, se ninguém abrir o olho acabaremos destruindo toda a nossa natureza.Temos que colocar em prática o que autor diz, alfabetizar o ecológico para a garantia da própria sustentabilidade da nossa mãe terra. (COCAH, 2007)
b) conteúdos reflexivos: poluição, lixo, destruição, consciência e
conscientização. Os conteúdos reflexivos resultaram do encaixe da experiência com
a teoria. Esse encaixe se traduz pela observação direta do aluno sobre a realidade.
A compreensão teórica acompanhou a experiência concreta.
Hoje observando a Bela vimos que São Gabriel da Cachoeira precisa ser conservada para se compactibilizar com sua beleza que os tem. (sic) Isso depende muitos de nossas consciências para conservá-la. Por exemplo, para observamos a Serra mais de perto para vermos com nitidez, precisamos ir para a praia e chegando na praia nos deparamos com lixo jogados sobre ela e no rio que atrai doenças e corre risco de acidentes. (BENI, idem)
Os principais agentes de poluição da praia são as garrafas pet, sacos plásticos e
garrafas de vidros, que se quebram quando atiradas ao rio, sendo, por isso,
apontadas como os riscos de acidentes. Outra fonte perigosa de contaminação das
águas é o esgoto. São Gabriel da Cachoeira não possui saneamento básico
adequado, e todo o dejeto das casas é jogado nos igarapés da cidade, e estes
deságuam no rio. As doenças mais comuns causadas pelas águas são: verminoses,
infecções intestinais e doenças de pele, como as micoses.
c) conteúdos mitopoéticos: exaltação da beleza, mitos de origem, poesia.
Esses conteúdos representam a permanência da tradição, como referência cultural
primeira dos aprendentes, no processo de tradução e construção do conhecimento.
São conteúdos da reminiscência e da conciliação entre os saberes. Possuem as
marcas da memória, do passado, que se conciliam com a experiência do presente.
Passado e presente reconciliados pelo conhecimento. Pensamento sensível e
85
pensamento científico, um encontro, uma dialogia entre os saberes construídos pela
escrita.
A beleza da serra Bela Adormecida me traz uma lembrança muito triste dos antigos colonizadores da região perto dessa serra muitos índios derramaram sangue e perderam a vida no trabalho escravos que os colonizadores faziam (sic) (COCAH, idem) Explica uma mitologia Dessana, que segundo um pajé da etnia, Feliciano Lana a Serra de Curicuriari (Bela Adormecida) é o retrato de uma das filhas de Wariró (origem indígena). A Bela Adormecida recebe a pessoas de braços abertos. (BENI, idem)
Essas marcas representam a composição de um conhecimento instruído pela
experiência de vida dos aprendentes, suas referências multiculturais, e os saberes
da sala de aula, os saberes da disciplina. Essa mistura perpassa toda a produção do
conhecimento feita pelos os aprendentes, e se orienta pela junção do imaginário
com o real, pela conciliação do mito com a razão e pela experiência teórica com a
experiência prática. Um processo instituído por um conjunto de elementos míticos,
imaginários, repletos de significações e sentidos sobre o ato de fazer pesquisa e
produzir conhecimento.
É nesta perspectiva pedagógica que vejo a sala de aula como uma Bacia
Semântica ou Bacia Fluvial14, formada pelos rios de imaginários, emoções, intuições,
sentidos e significações simbólicas que deságuam em diferentes culturas. O Projeto
Canoeiro, que tem como solo semântico de exploração a sala de aula, representa o
trajeto antropológico do torna-se professor-pesquisador. Um processo que é
impulsionado pela vontade de se fazer algo capaz de guiar processos de mudanças
no interior da existência humana.
A sala de aula é como o grande Vale das Águas Pretas, que tem como rio
principal o rio Negro, que, nesse caso, é o conhecimento. A partir dele, os rios se
desdobram em vários afluentes e se juntam para compor esse complexo das águas.
Algumas junções são antagônicas, possuem flutuações intensas, mas também se
convergem, transformando-se pela mistura dos afluentes, criando pontos de
bifurcações que vão possibilitar a realização de práticas pedagógicas implicadas no
14
Bacia Fluvial é uma metáfora usada, segundo Gilbert Durand, pelos embriólogos, que afirmam que a Bacia
determina o curso do rio, que por sua vez é regulado pelo fluxo dos afluentes (2001, p 102). Essa determinação
não representa uma linearidade com o tempo, mas estabelece que o percurso social, histórico e cultural da
sociedade possui processos instáveis e dependem das condições ecológicas em que este encontra-se inserido.
86
conhecimento incorporado pela natureza e pela cultura. A sala de aula é, então,
regulada por fluxos contínuos que determinam essa coexistência.
Essa Bacia Semântica, metáfora para traduzir a dinâmica da sala de aula,
permite a incorporação dos princípios geradores da complexidade a partir da
formação de um pensamento ecologizante, experienciado pelo e no encontro das
culturas das humanidades com as culturas científicas. O Mito como experiência de
sentidos foi a base dessa análise, pois foi por meio dele que os aprendentes
desenvolveram muitas de suas práticas pedagógicas.
A escola como lugar dessas experiências se traduz como uma nova narrativa
mítica dos indígenas em busca de novas significações e possibilidades de estar e
ser no mundo valorizando e respeitando suas culturas. É possível reconhecer no
Mito um lugar de representação simbólica do imaginário e neste, um lugar por onde
os mitos se eternizam.
A experiência dessa formação foi nutrida pelo imaginário e pelo mito. Foi uma
narrativa mítica que revelou as jornadas dos aprendentes em seus processos de
construção de conhecimento orientado pelos princípios organizadores da pesquisa
ocidental e implicado na experiência e na inteligência mítica, sensível e intuitiva dos
índios. Esse conhecimento foi construído pela mistura de diferentes culturas, dando
as bases para um conhecimento mestiço.
Para Michel Serres (2002), o conhecimento mestiço é aquele instruído por
uma aprendizagem adquirida pela incorporação de saberes, práticas, costumes,
ideias construídas pela dinâmica das relações socioculturais estabelecidas em
diferentes lugares, tempos e sociedades. Nesse sentido, o conhecimento é instruído
não apenas pelos saberes científicos, que sofrem a atuação da vida sociocultural e
cotidiana, mas também pelas experiências de vida de quem o produziu.
O conhecimento mestiço, na perspectiva de Serres, é composto pela
diversidade, matizado e formado pelo cruzamento de diferentes linguagens, que
traduzem a diversidade humana em seu processo de construção de culturas. É
nesse cruzamento de culturas que ele se funda como mestiço, incorporando para si
a diferença, mas guardando suas origens.
Promover o processo de construção de conhecimento num espaço
multifacetado e multiétnico significou, primeiramente, refazer o percurso das
palavras, seu nascimento, seu contexto e seus interesses. Foi preciso despertar nos
aprendentes a compreensão das palavras, seus sentidos e significados, para que
87
eles chegassem a formar um sistema de ideias, desejos e significados para suas
pesquisas. Ao construírem seus próprios sistemas, foram possibilitados a navegar
pelo mundo das ideias, teorias, conceitos, práticas e, a partir disso, puderam
produzir, cada um no seu tempo, o imaginário da pesquisa.
O nascimento desse imaginário da pesquisa foi fruto da relação entre o
conhecimento descoberto e o conhecimento da experiência. Foi esse cruzamento de
conhecimentos que permitiu a construção de um conhecimento instruído, no qual foi
possível compreender que as ideias possuem histórias, são sempre interventivas.
Exprimem uma visão de mundo e de homem. Possuem vida própria e são capazes
de construir sistemas diversos. Nascem de si mesmas, de seus próprios espíritos, e
suas formas dependem das condições socioculturais de onde emergem.
De onde vêm as palavras? Como as transformamos em ideias, valores,
desejos? Para que servem as palavras, senão para nos proteger dos nossos
silêncios e nos esconder daquilo que somos? Somos citações de nossas palavras. É
a partir delas que nos fundamos humanos, e é por elas que nos transformamos e
modificamos nosso mundo. A palavra apropriada, enraizada pelo conhecimento
instruído, mestiço, incorporado, permitiu aos aprendentes indígenas a elaboração de
projetos de pesquisa implicados nas suas experiências de vida, relacionadas
diretamente com o uso da língua portuguesa no processo de comunicação com a
sociedade envolvente não indígena. Para eles, compreender as dificuldades da
leitura e da escrita na língua portuguesa, tema recorrente na maioria dos projetos,
seria fundamental para melhoria das relações entre índios e não índios.
No silêncio de cada palavra escrita, na língua portuguesa foi possível escutar
o chamado dos aprendentes para a vida, para a participação, integração e interação
sociocultural:
O objetivo desse projeto de pesquisa é saber por que os aprendentes sentem dificuldade na leitura e na escrita, pois existe (sic) muitas dificuldades por parte dos mesmos em falar de maneira correta, certa, para que o homem possa entender e assim podemos alcançar uma educação de qualidade, em que todos podem participar da sociedade de forma igual, democrática. (Grifos meus) (LUDI, 2007) Analisar as dificuldades que os aprendentes tem (sic) na hora de ler um texto escrito, saber pronunciar as palavras corretamente e assim poder se comunicar corretamente. (Grifos meus) (BALI, 2007) Compreender as dificuldades dos aprendentes indígenas na escola de branco para ler e escrever corretamente na língua portuguesa e assim eles podem atuar de maneira participativa na sociedade dos brancos. (Grifos meus) (SOLI, 2007)
88
Os objetivos dos pesquisadores indígenas em seus subprojetos de pesquisa
apresentaram uma preocupação com o domínio da palavra escrita e falada na língua
portuguesa. Eles perceberam que esse é um domínio importante para a vivência
plena entre os homens, é uma forma de estar no mundo sem a preocupação de ser
ou não compreendido. Ter o domínio das palavras em todas as suas formas de
manifestações (faladas ou escritas) pode ser compreendido como um recurso
cognitivo de sobrevivência, de luta e de autoafirmação das populações indígenas.
Os projetos realizaram a alquimia das palavras e instauraram a polissemia das
ideias e por extensão da cultura.
As jornadas míticas dos aprendentes rumo à produção do conhecimento,
orientadas pelo do Projeto Canoeiro, foram capazes de compor histórias, reconstruir
ideias, que, reveladas pela escrita, apontaram os caminhos e descaminhos dessa
experiência de formação. Pelos caminhos da escrita foi possível reencontrar os
tempos de formação e a história de vida dos aprendentes, suas experiências, seus
conflitos, trajetórias que se cruzaram na e pela escola.
Nessa experiência de formação, o papel das etnias amazônicas foi
fundamental para elaboração das estratégias de ensino e aprendizagem. Suas
culturas possuem um imenso acervo científico, milenarmente elaborado, que têm em
seus aspectos ferramentas cognitivas incorporadas pela intuição, sensibilidade
estética, imaginário, emoção, mitos e o sagrado. Fontes atualmente compreendidas
como essenciais para a transformação do próprio modelo de ciência e que do ponto
de vista da transdisciplinaridade fecunda o conhecimento e pode provocar
mudanças quanto ao seu uso, pois permite a sustentabilidade da vida, do ser e
garante a solidariedade e a compartilha dos diferentes entre os diferentes níveis de
conhecimento e de realidade.
A experiência realizada em São Gabriel da Cachoeira representou uma
possibilidade de diálogo transcultural entre duas culturas: culturas indígenas e
culturas ocidentais. Ela revelou as situações-limites do desenvolvimento das ciências
e suas implicações no cotidiano. Não bastou apresentar aos futuros professores
indígenas os sistemas de teorias, conceitos, categorias de análises, ideias universais
sobre a vida, a cultura, a política, economia, democracia, enfim sobre as sociedades
humanas de modo geral, que o ocidente construiu. Foi preciso ensiná-los sobre
como esses sistemas se construíram e de que forma eles se constituíram como
89
instrumentos transformadores de realidades, de práticas e saberes ao mesmo tempo
construtivos e destrutivos. Assim, os aprendentes dos saberes ocidentais, puderam
também ser ensinantes de seus próprios sistemas de conhecimento, bem como de
suas práticas transformadoras de realidades. Para tanto, a instauração do diálogo
transcultural (BASARAB, 2000) foi fundamental para o exercício da democracia
cognitiva (MORIN, 2001), na qual cidadãos e conhecimento interagiram mutuamente
no processo de novas construções disciplinares, inter e transdisciplinares,
fundamentadas na pesquisa.
O espaço de aprendizagens dessas práticas transdisciplinares ensaiado no
decorrer das disciplinas Pesquisa e Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado,
me possibilitou um trabalho com os operadores cognitivos da complexidade e da
transdisciplinaridade. Um processo sustentado pelas contradições, conflitos,
desordens e incertezas sobre os rumos dessa experiência transcultural. O método
etnográfico foi o fio condutor de toda a prática da pesquisa pedagógica dos
aprendentes.
Os aprendentes foram orientados a descrever a escola a partir de seu espaço
físico e de suas práticas pedagógicas dentro e fora da sala de aula. Disso resultou o
estudo do cotidiano escolar em suas múltiplas dimensões: imaginárias, simbólicas e
culturais. O objetivo era explorar a realidade escolar e despertar neles um tema de
interesse para pesquisa. Posteriormente, com o tema e o problema de pesquisa
definido, o foco da etnografia seria a sala de aula.
A formação do professor-pesquisador requer que os futuros professores
reconheçam na pesquisa uma prática não apenas científica, mas também educativa.
No entanto, os fundamentos da prática da pesquisa vinculada à docência
representaram para os futuros professores a apropriação do conhecimento e sua
consequente tradução, para que os dados coletados pudessem ser efetivamente
interpretados. Disso resultou o primeiro desafio dessa formação: apropriação do
conhecimento produzido numa língua, a portuguesa, na qual os aprendentes não
dominam efetivamente seus códigos linguísticos. Como eles mesmos colocam, “as
palavras são difíceis, não entendo o que quer dizer essa palavra”, ou então, “não sei
falar como se fala na língua de vocês”. “Se fosse na minha língua eu saberia dizer,
mas não sei como dizer isso também na minha língua, não sei o que significa”.
(COCAH, 2007)
90
Como sabemos as palavras possuem histórias, seus significados são
polissêmicos, remetem sempre a outras palavras. Então, não basta sugerir o uso do
dicionário, pois a questão não é de leitura, mas de compreensão, significação e
tradução. Isso resultou num outro desafio: passagem da palavra falada para a
escrita. Nesse espaço de tradução, que remete sempre a uma interpretação,
ocorreram a vivência de conflitos, tensões e contradições. Transformar
pensamentos, sentimentos, problemas e ideias em palavras escritas, e em uma
língua que não se tem domínio de seus códigos, signos e símbolos, representou um
grande esforço cognitivo para os aprendentes indígenas e para mim, ensinante e
aprendente dessa formação.
Foi preciso encontrar nesse espaço de conflitos um lugar de diálogo,
paciência e, principalmente, disposição para a escuta. Esse espaço de entre-
lugares da cultura é sempre deslizante, contigente, ambivalente e contraditório, um
lugar onde se realiza a tradução cultural e que fornece os princípios e/ou as
estratégias para elaborações de novas formas de negociações e de apropriação e
apoderamento do saber. Esse entre-lugar pode ser concebido como a morada do
terceiro incluído15 (NICOLESCU, 2000), pois permitiu a entrada no domínio do
imaginário, dos símbolos e dos mitos, para que pudesse ser estabelecida uma
comunicação possível entre razão e emoção, saber e fazer, entre a fala e a
construção da escrita. Isso nem sempre é possível, visto que em nossa sociedade, o
tempo direciona nossas vidas, e, no caso do curso, o tempo é muito condensado. E
era preciso ensinar aos aprendentes a como fazer pesquisa. Que métodos devem
ser utilizados para elaboração? Se para nós, pensantes e escritores da língua
portuguesa, esse processo já é difícil e desafiante, imagina para quem, como eles
mesmos dizem, “não nasceu falando português”.
Isso me remeteu a um terceiro desafio: o aprendizado da pesquisa, ou seja,
como fazer com que esses aprendentes plurilíngües, numa sala multiétnica,
aprendam a fazer pesquisa com as ferramentas cognitivas da ciência ocidental:
justificativa, objetivos, delimitação do problema, referencial teórico, metodologia,
cronograma? Se estas categorias de palavras não estão sobre os seus domínios?
15
O terceiro incluído é uma lógica conciliatória que rompe com a lógica binária da separação sujeito objeto, e
integra novas dimensões à realidade. Segundo Basarab Nicolescu, essa lógica é um dos pilares da
transdisciplinaridade, os outros são: níveis de realidade e a complexidade. Adotou-se esse pilar para estabelecer
o diálogo entre os diferentes operadores cognitivos existentes na sala de aula.
91
Dito de outro modo, como produzir conhecimento a partir de vínculos entre o
pensamento científico e o pensamento selvagem?
Mais uma vez, foi preciso transformar esse espaço de conflitos e contradições
em um espaço de descoberta. Foi preciso despertar nos aprendentes a necessidade
da questão, de se perguntar, de querer saber, de querer buscar. Mas isso só foi
possível a partir do exercício da escuta, da paciência e mais do que nunca da
capacidade de doação. Desse modo, os aprendentes partiram para o estágio de
observação, entraram no campo da pesquisa. E nesse espaço puderam não apenas
refletir sobre suas problemáticas de pesquisa, mas revelaram-se excelentes
etnógrafos. Um momento em que a sabedoria ocidental se serviu da sabedoria
indígena, com sua sensibilidade, imaginação, criatividade e leveza. Seus relatórios
de observação, o diagnóstico, apresentaram um pouco de seus mundos, da
sensibilidade estética com qual observaram as salas de aulas, as práticas dos
professores, os interesses dos aprendentes, a escola ocidental no seu cotidiano.
(...) a professora estava sentada tirando as dúvidas do aluno de forma
individual, quando chegou a vez de uma aluna, ela se dirigiu a mesa
da professora e todos os aprendentes começaram a rir, apelidando-a
e imitando a colega. Logo percebi que a mesma era portada de
necessidades especiais, pois tinha seu pé totalmente voltado para
trás e quando ela caminhava o seu corpo se remexia todo causando
um certo requebrado, e ela por possuir deficiência, que não é culpa
dela, sofria sérias discriminações por parte dos coleguinhas de aula
(...) Devido a esse tipo de situação notei que os professores e nem a
escola não tomam nenhuma atitude para pelo menos minimizar as
piadinhas feitas pelos colegas (...) A escola deveria trabalhar essa
questão... (BENI. Registro de campo, 2007)
Nesta escola o cristianismo é muito forte, antes de começar a aula
sempre as professoras agradecem a Deus e a Virgem Maria, pela
saúde dos aprendentes, depois começam perguntando se dormiram
bem, como foi o final de semana, as crianças começam a responder e
ela faz de conta que não está escutando... (RENI. Registro de campo,
2007)
É muito interessante o relato a seguir, pois serve de base de uma
grande expectativa observada no decorrer de duas semanas, onde
detectado os prós e os contras dos fatos ocorridos de acordo com
serão o meu projeto: ausência do aluno em sala de aula. (...) No
primeiro dia do estágio perguntei a professora, quanto aprendentes
tinham faltado, procurou na pagela ou diário e citou que faltaram
cinco aprendentes. Então todo o dia algum aluno falta por algum
motivo... (DOMI. Registro de Campo, 2007)
92
Seguramente, essa formação resultou na construção de um conhecimento
mestiço (SERRES, 2001). Este, atravessado pelo diálogo transcultural, revelou a
construção de um novo conhecimento, que, pela natureza de suas formas, possui
características epistemológicas impregnadas de sensibilidades e de razão, mas
apresentou conteúdos oriundos de fontes primordiais; um saber incorporado pela
sensibilidade, estética, imaginário, mito e emoções e tem no cotidiano o espaço para
reflexões pertinentes sobre a realidade e as práticas culturais das escolas,
sinalizando a possibilidade de construção de conhecimento aproximado da e pela
realidade observada. Foi preciso tornar a tarefa de construir conhecimento, pelos
aprendentes indígenas, como algo útil às suas vidas e às suas perspectivas em
relação ao fato de serem futuros professores.
Nessas observações de campo, foi possível perceber que a escola continua
sendo um lugar de discriminação, preconceito, de violência e despreparada para
uma formação pautada nos valores e princípios da cidadania, do respeito, da
democracia e da ética. A escola precisa definitivamente ser humanizada, para que
seja sustentável. E isso representa um outro desafio para formação de professores:
como transformar a escola e aprendizagem dos aprendentes, num espaço de
vivência humanizadora? De que forma Pesquisa e Docência podem contribuir para
essa transformação? A sabedoria dos povos indígenas é capaz de contribuir,
efetivamente, para esse processo?
O diálogo transcultural dessa experiência de formação contribuiu para o
desenvolvimento de processos transdisciplinares e permitiu a vivência de valores
éticos, estéticos e solidários entre os diferentes níveis de realidade, de
conhecimento e percepção. Mas o processo disciplinar do curso Normal Superior
precisará ser ressignificado, para que a busca pela unidade do conhecimento seja
possível. As disciplinas precisam se comunicar entre si, isso é fato, mas o diálogo
com o conhecimento indígena, enquanto vetor epistemológico de saberes deverá ser
instaurado, para que a Escola e a Ciência sejam capazes de uma refundação
epistemológica mais próxima possível da vida e da realidade dos seus aprendentes.
É nessa inquietação que o Projeto Canoeiro se deteve. Sob quais princípios
organizadores de conhecimento é possível estabelecer a relação entre a ciência do
índio e a ciência ocidental? A complexidade como estratégia do pensamento,
conhecimento e do sentimento pode, efetivamente, ser um instrumento capaz de
orientar essas relações? É possível construir uma epistemologia fundada nessas
93
relações transdisciplinares e transculturais? O imaginário como fonte de
representação, interpretação e compreensão da realidade me inspira a refletir sobre
como os aprendentes indígenas pensam a escola e a importância da mesma para o
processo de transformação social, cultural e política dos mesmos e suas relações
com a sociedade envolvente.
Dito de outro modo, a relação Mito e Ciência, Razão e Sensibilidade,
Epistemologia e Cotidiano podem fundar uma epistemologia mestiça. Nela, a
conciliação entre as diferentes dimensões do conhecimento pode produzir novas
concepções de mundo, de vida, de homem e de cultura (SERRES, 1993). O
conhecimento instruído produz uma forma de pensar concebido pela conciliação das
culturas científicas com as culturas das humanidades. Portanto, a epistemologia
mestiça, produto desta conciliação, produz um conhecimento singular e plural e por
sistemas de referências múltiplas. Ela se inscreve e é inscrita sob a ordem da
impureza, do entrecruzamento, do nem isso nem aquilo, da incerteza, da
instabilidade e do imprevisível.
Pode-se, então, afirmar, caminhando para a errância, que a escola ou
academia, enquanto espaço de novas sociabilidades e de aprendizagens, vem se
constituindo, para os indígenas, como um mito contemporâneo, que vem se
construindo aos poucos como uma ferramenta de luta e de conquista: sua arma está
sendo moldada pela escrita. E a escola é, sem dúvida, o lugar privilegiado para
essas experiências.
A escola é um lugar que nos lança a outros mundos. Pela aprendizagem
podemos nos localizar no mundo e pelo ensino localizarmos o mundo. A partir
desses sistemas nos misturamos com os mundos e assim construímos múltiplas
referências identitárias, conceituais, culturais e sociais. Nas palavras de Serres,
O aprendizado consiste numa mestiçagem assim. Estranha e original, já misturando os genes de pai e de mãe, a criança apenas evolui através desses novos cruzamentos; toda pedagogia retoma o gerar e o nascimento de uma criança: nascido canhoto, aprende a servir-se da mão direita, mas permanece canhoto, renasce destro, na confluência dos dois sentidos; nascido gascão, continua assim e torna-se francês, realmente mestiço; como francês, viaja e torna-se espanhol, italiano, inglês ou alemão; casa-se e aprende a sua a cultura e sua língua, ei-lo, enfim quarterão, octavão, alma e corpo misturado. Seu espírito se assemelha ao manto despido de Arlequim. (SERRES, 1993, p. 60)
Os aprendentes indígenas, mestiços pela língua e pela linguagem, fundadora
das culturas, são sujeitos múltiplos e unos, recorrem aos seus mundos para
94
compreender os outros, e recorrem aos outros mundos para compreenderem a si
mesmos. Alguns perderam suas línguas originais e assumem outras línguas.
Nascem Dessana e falam Tukano, mas não deixam de ser Dessana. Outros não
falam nenhuma língua indígena, são falantes da língua portuguesa, mas são Tikuna,
Baré, Tukano, Tariano, continuam sendo índios. Seus sistemas de referências
produzem sujeitos múltiplos, produtos de suas aprendizagens mestiças e produtores
de aprendizagens complexas e transculturais. Eles encontram na escola a afirmação
de suas identidades.
Vale ressaltar que a ideia de a escola ser um mito contemporâneo para os
índios, no qual a escrita é, mas não totalmente, uma importante chave para o viver
em sociedade, não é restrita a esse povo. Há pelo menos cinco séculos da
Institucionalização da escrita nas sociedades modernas. Quando a escrita passou
ser o elemento disparador do processo de desenvolvimento das sociedades
modernas, ocorreu, de acordo com Michel de Certeau, um corte profundo com a
oralidade, provocando o afastamento do mundo mágico das vozes e da tradição. O
oral passa a ser visto como uma oposição ao progresso. A prática escriturística
assumia a partir do século XVII um valor mítico, um instrumento de progresso e de
disciplinaridade da sociedade moderna (CERTEAU, 1994, p.224).
A institucionalização da escrituralidade nas sociedades indígenas acompanha
o processo de luta desses povos em torno de seus direitos a terra, suas culturas,
línguas, práticas simbólicas e a escola. A oralidade, marca de suas culturas, se
integra a mundo da escrita como forma de manutenção de suas tradições, mas pode
também ser uma ferramenta, tal como nas sociedades modernas ocidentais, de
separação com o mundo mágico das vozes e da tradição. Se a escrita perpetua a
tradição, também pode fazê-la desaparecer. Esta ameaça foi percebida pela
aprendente Tuli, que afirma:
Não sei não, nossos mitos são constantemente alterados, cada pessoa ou grupo conta de um jeito, dependendo de seu grupo. Isso vai sendo contado, falado pelos mais antigos, que vai passando, passando... O importante disso era esse momento de contar nossa história. A nossa história é como um grande círculo, às vezes vamos ao passado para resolver nossos problemas. Lá no passado, a gente pode mudar. Assim, agente ouvia e aprendia e depois transmitia. Depois que está escrito, ninguém mais contará... eu acho... sei lá. É bom saber escrever, ler, nós já fomos muito enganados, mas eu me preocupo com isso também. (TULI, Tukano. Entrevista, 2008)
95
Essa preocupação é de natureza existencial e remete a outras questões: o
que escrevemos de nós mesmos traduz o que somos? Se somos o que está escrito,
como podemos transformar a nossa história? Como recuperar o tempo? Manter o
mito vivo, ouvido e contado, é uma maneira de nos mantermos próximos de nós
mesmos, de nossas histórias e da nossa ancestralidade. Foi a partir dessas
inquietações que o Canoeiro, sujeito e objeto de sua própria trajetória, orientou os
aprendentes dessa experiência de formação em suas jornadas em busca do tornar-
se professor, tendo como fundo epistemológico a prática da transdisciplinaridade
realizada pelos operadores da complexidade.
O Canoeiro: do tema às estratégias metodológicas
O tema central do Canoeiro é a Formação do Professor e a Construção do
Conhecimento. Essa formação representa um processo de construção de uma
matriz de exploração epistemológica e metodológica orientada pela complexidade e
a transdisciplinaridade. Essa experiência se organizou em seis etapas de formação.
Por se tratar de um processo que mostra o percurso dos aprendentes em tornarem-
se professores pesquisadores, essas etapas foram consideradas como experiências
míticas as quais denominei de jornadas. Ao todo foram seis jornadas: 1ª jornada: a
partida – momento de entrada dos aprendentes no processo de elaboração de seus
projetos de pesquisa, a busca do tema, justificativas, objetivos, teoria e metodologia;
2ª Jornada: a iniciação – contato dos aprendentes no campo de pesquisa – trata-se
da análise da realidade do cotidiano escolar e suas relações com o tema da
pesquisa; 3ª Jornada: o despertar – a temática da pesquisa problematizada –
refere-se ao processo de análise do problema da pesquisa e suas fontes; 4ª
Jornada: a conexão – o problema da pesquisa entre a teoria e a prática; 5ª jornada:
a experiência – o tornar-se professor; e a 6ª Jornada: a consagração – o
conhecimento construído.
As seis jornadas representam os caminhos percorridos pelo Projeto Canoeiro,
suas estratégias metodológicas, seus recursos cognitivos, teóricos e imaginários.
Ressalto que, no decorrer desses percursos, essa experiência de formação
enfrentou flutuações, vivenciou desvios, bifurcações, instabilidades, ordens,
desordens; mas encontrou esperanças, alegrias, encantamentos, refundando
práticas, culturas; e ensaiou uma possibilidade de religação dos saberes, de
96
comunicação entre as culturas das humanidades e as culturas científicas,
construindo um conhecimento orientado por dois operadores cognitivos:
pensamentos sensível e pensamento cientifico.
Descrever e refletir sobre essa experiência de formação foi, sem dúvida, uma
forma de recuperar não apenas suas memórias, mas de recolocar o pensamento
mítico na base das aprendizagens do homem frente aos desafios do re-
encantamento do mundo. Em tempos de crises planetárias, a escola e a ciência são,
sem dúvida, veículos importantíssimos para transformação da sociedade. E
formação de professores é uma ferramenta possível para concretização desse
projeto milenar.
98
O CURSO E O PERCURSO
O curso Prática da Pesquisa Pedagógica I exigiu dos alunos a elaboração de
um pré-projeto de pesquisa vinculado à prática da docência. No entanto, para que
este fosse construído, seria necessário que os alunos já tivessem a experiência de
ser professor ou ter tido alguma forma de contato com a sala de aula, além de terem
passado pela experiência da pesquisa. De fato, dos 29 alunos, apenas quatro
tinham essa experiência. Além disso, uma dificuldade acompanhou essa primeira
jornada: a pesquisa. Os alunos viram-se inquietos diante da ideia de fazer pesquisa.
Eles não compreendiam o sentido e o significado da palavra pesquisa, como
também os processos científicos que a constituem: tema, justificativa, problema,
objetivos, teoria e metodologia e referência bibliográfica.
Aliada a essa dificuldade havia outra: escrever. A escrita foi sem dúvida a
grande provocadora de conflitos entre os alunos e eu. Estes não conseguiam
traduzir seus pensamentos, ideias em palavras escritas, como também não
conseguiam expressá-las oralmente. E eu tinha dificuldades em usar uma linguagem
acessível para que eles pudessem compreender concretamente o sentido e o
significado da prática da pesquisa.
Diante desse quadro de dificuldades, um problema que atravessou todo o
percurso dos alunos e que, de certa forma, vai colaborar muito fortemente no
processo de ensino e aprendizagem da sala de aula foi o da linguagem e o da
diversidade sociolinguística dos alunos, muitos bilíngues, alguns poliglotas, e com
sérias dificuldades de comunicação na língua portuguesa. Outro problema, não
menos importante, era o fato de eu ser professora, com pleno domínio da língua
portuguesa, usuária dos operadores cognitivos da ciência formal, portanto usando
de uma linguagem comum a minha cultura, a minha formação e a minha condição de
pesquisadora, mas incomum à cultura desses alunos. Instaurou-se dessa maneira a
primeira desordem desse processo de formação: dificuldade e diferença constituem-
se como elementos que irão definir a prática pedagógica da sala de aula. E é na
linguagem escrita que esses elementos melhor se identificam.
Essa justificativa é para atender o desenvolvimento de uma educação de qualidade. Para melhorar os alunos, a aprender melhor escrever, fazer contas, usar bem as palavras... (sic) O objetivo é melhorar a educação do nosso município. (LUDI. Pré-Projeto de Pesquisa. 2007)
99
O tema de pesquisa do aprendente era: Dificuldades de aprendizagem na
escrita dos alunos da 4ª série do Ensino Fundamental. Observa-se que ainda não há
um problema de pesquisa, apesar de apresentar um problema socioeducacional. A
formulação do problema de pesquisa foi um processo de longa duração, e de muita
paciência, compreensão e cooperação.
A formulação de um problema é um processo criativo de invenção, e a
dificuldade reside em não apenas em encontrar o problema, mas em formulá-lo
(BERGSON, 2006). Essa formulação está implicada na percepção da realidade, e
muitas vezes ocorre de forma intuitiva. Porém, essa dificuldade se complexifica na
medida em que ela depende do uso da linguagem escrita. E quando se tem uma
sala de aula na qual mais de 90% é falante de outra língua, e apesar de falarem a
língua portuguesa, percebe-se que tiveram uma alfabetização precária que
comprometeu o letramento16 nessa língua, essa problemática torna-se o fio condutor
do processo de ensino e aprendizagem.
Foi necessário imprimir uma metodologia de trabalho que levasse em
consideração esse contexto apresentado, mas que também pudesse aproveitar
exatamente essas condições de dificuldades e diferenças (ou de culturas e
linguagens) e de natureza e cultura, como elementos fundadores de práticas
pedagógicas concebidas a partir da inter-relação homem/natureza, natureza/cultura,
conhecimento/sabedoria e ciência do concreto/ciência ocidental. Eu precisava
ensinar os aprendentes e estes precisavam aprender. Construir conhecimento a
partir dessas implicações representou a construção de um projeto de formação
inspirado no pensamento complexo e na transdisciplinaridade.
Foi preciso ver a sala de aula como um sistema vivo. E enquanto sistema vivo
tornou-se necessário levar em consideração o contexto de sua construção, as
tessituras das relações, bem como religar as diferentes dimensões da vida, as
16
Letramento é um conceito novo usado para compreender o processo de apropriação da leitura e da escrita. Trata-se de uma nova perspectiva sobre as práticas sociais da leitura e da escrita. No Brasil esse termo foi empregado pela primeira vez na década de 1980 por Mary Kato na obra intitulada “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüìstica”. De acordo com Magda Soares o letramento resulta da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e de escrita. Ou seja, é uma conseqüência do processo de apropriação da escrita e de suas práticas sociais. Apropriar-se da escrita é torná-la própria, ou seja, assumi-la como propriedade. Para a autora, um indivíduo alfabetizado, não é necessariamente um indivíduo letrado, pois ser letrado implica em usar socialmente a leitura e a escritura e responder às demandas sociais de leitura e de escrita (SOARES, 2003).
100
diversas dimensões humanas, suas diversidades de saberes, sejam científicos,
míticos ou comuns ao cotidiano sociocultural dos sujeitos aprendentes.
Compreender a sala de aula como sistema vivo significou aceitar sua
condição autopoiética, dada a sua capacidade de auto-organização, que se estrutura
a partir das relações que estabelece com o meio pelo qual se organiza. Portanto, é a
estrutura que define o padrão de organização de um sistema, mantendo sua
identidade. São as mudanças nas estruturas que permitem a sua conservação.
Nesse caso, a sala de aula como sistema auto-organizacional, é constituída por um
conjunto de inter-relações com meio e se organiza a partir da dinâmica processual
de suas estruturas pedagógicas, cognitivas e culturais. Dito de outra forma, a sala de
aula é constituída por alunos e professora e se estrutura a partir das relações entre
esses sujeitos e destes com o meio em que vivem, seja ecológico, pedagógico,
imaginário, cultural, cognitivo ou mítico.
Essas relações permitiram o padrão organizacional desse sistema, apesar de
suas estruturas entrarem em constantes fluxos de mudanças. A cada aula, uma
prática, a cada prática uma mudança, a cada mudança uma nova perspectiva de
aprendizagem e de ensino. Assim a organização pedagógica da sala de aula se
manteve. Ensinar representou nesse processo uma aprendizagem. Do mesmo modo
que aprender tornou-se um ato de ensinar. Aprender e ensinar são, portanto, dois
subsistemas de um sistema maior: conhecer. Significa dizer que conhecer é um ato
ao mesmo tempo de ensino e de aprendizagem, cultural e biológico. E como ato,
conhecer é também um fazer.
Entre processos de mudanças, conflitos, desordens, instabilidades e
imprevisibilidades, foi possível realizar uma prática de formação pautada na ideia de
que o conhecimento é um ato do ser que por sua vez é um ato do conhecer. Tudo é
uma questão de aprendizagem, construção, interpretação e criação. Ser e conhecer
se encontram imbricados na nossa corporeidade. E o conhecimento é o produto da
cooperação entre o homem e a natureza, que perpassa em todo o organismo,
envolvendo nossas memórias, emoções, intuições, imaginação e razão.
A ideia foi pensar a prática pedagógica como um rio que deságua em vários
lugares, formado por inúmeros afluentes que constituem sua bacia. Nesse caso, a
sala de aula é uma grande bacia fluvial ou nas palavras de Durand (2001), uma
bacia semântica, possuidora de significados múltiplos, que representam o modo de
ser, de pensar, de sentir e perceber o mundo, o conhecimento, a vida, as ideias e as
101
práticas culturais da humanidade dos sujeitos aprendentes. Além de representar os
fluxos contínuos e descontínuos dos alunos nos seus processos de construção de
conhecimento e sob quais influências teóricas ou culturais organizaram seus
pensamentos. A bacia é, portanto, a morada do imaginário. Que ideias, teorias,
pensamentos, referências orientam o percurso do rio e de seus afluentes?
Assim, o Projeto Canoeiro navegou por entre os caminhos do processo de
construção de conhecimento dos alunos, compreendendo que esses caminhos, a
rigor, foram trilhados no e durante o percurso da formação.
Assim como um rio tem em seu trajeto acidentes e irregularidades, que
ajudam a moldar seu itinerário, que é conduzido a partir das relações que estabelece
com o meio, tais como o vento, as correntes marítimas, as tempestades e os
acidentes de percurso, o Projeto Canoeiro enfrentou inúmeras irregularidades,
acidentes, conflitos que moldaram seu percurso metodológico. O Canoeiro foi ao
mesmo tempo guia e guiado. Como a Canoa de Transformação dos Desana, na qual
o Bisavô do Mundo foi o guia do Bisneto do Mundo, mas também foi guiado pelo
Bisneto, e a Canoa era o próprio Bisavô.
Dessa maneira, imprimi em toda a trajetória do Canoeiro a perspectiva de que
o conhecimento a ser construído pelos alunos teria como base fundacional a
experiência cotidiana e a contextualização dessa experiência a partir de seus
aspectos socioculturais e pedagógicos (incluindo a sala de aula, os estudos teóricos
e a construção de ferramentas metodológicas para a pesquisa).
Os primeiros passos do Canoeiro:
a) aprender a conhecer: quando percebi que os aprendentes não tinham nenhuma
experiência com a prática da pesquisa, bem como não tinham a menor familiaridade
com a linguagem que envolve a pesquisa, resolvi construir uma estratégia
metodológica que os levassem a compreensão do processo de construção do
conhecimento, entendido como descoberta, aventura do homem diante das
incertezas do mundo. Rompi com o modelo padrão de ciência. Desisti de ensiná-los
a fazer projetos de pesquisa dentro desses padrões.
A primeira providência foi criar um ambiente de aprendizagem pautado na
sensibilidade, na imaginação criadora, na intuição, na solidariedade, na cooperação
mútua e na ética.
102
O conhecimento, sob forma de palavra, de ideia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro. Esse conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento. (MORIN, 2000, p.20)
Apostando nas palavras de Morin, criei uma Oficina Pedagógica que realizei
em três etapas: Pensamento, Conhecimento e Criação. O método dessa oficina
baseava-se na Leitura e na Pergunta-ação. Inicialmente, era feita a leitura de mitos
indígenas, fábulas, contos e notícias de jornais. Nessas leituras, desenvolvi com os
aprendentes processos de pergunta-ação. A ideia era promover neles o interesse
pela descoberta, pela problematização da realidade e com isso estabelecer vínculos
mais seguros entre eles e eu, pois naquele momento eu representava para eles os
seus fracassos. Comuniquei aos aprendentes essa proposta, dizendo para eles que
era um ensaio sobre como se faz pesquisa. Eles aceitaram-na, mas fizeram algumas
considerações:
Professora, a senhora sabe usar bem as palavras, a senhora está acostumada a fazer esse trabalho... Eu não sei o que isso quer dizer. Mas eu sou obrigado a fazer esse projeto, senão não me formo... Pra mim está muito difícil, prefiro desistir disso logo. Sei que não vou consegui fazer esse trabalho. (TUKANO, Cosme. Avaliação oral. Sala de aula, 2007) A senhora é cheia de palavras bonitas, mas pra nós fica difícil. A senhora tem que nos ajudar. Nós estamos aqui pra aprender. Se tudo começa com um problema, que tem objetivos, teoria, metodologia, referências... A gente nunca fez isso professora... E agora temos que fazer assim? Mas se a senhora disser pra gente com se faz, nós saberemos fazer. (TUKANO, Tereza. Avaliação oral. Sala de aula, 2007) Professora, então porque a senhora não nos dê um modelo, que a gente possa seguir? Eu acho que se a senhora nos der um projeto pronto, não é que agente vá colar, mas pelo menos a gente vê como é que faz... (BARÉ, Sandoval. Avaliação oral. Sala de aula, 2007) Da forma como está aí parece fácil, mas escrever é que é difícil... (BARÉ, Nazaré. Avaliação oral. Sala de aula, 2007)
No entanto, no início do curso foi explicitado, explorado e explicado, passo a
passo, sobre como se faz um projeto. Usei uma linguagem simples, para mim.
Verifiquei, oralmente, se eles haviam entendido, o que foi afirmado. Quando
partimos para o exercício as dificuldades se apresentaram, revelando suas
incompreensões. A primeira delas foi à escolha do tema, o qual não conseguiam
delimitar. De forma ampla, os temas foram assim escolhidos: “Educação Municipal”;
“Dificuldade de Aprendizagem”; “Cultura e Educação”. “Leitura e Escrita”; “Arte e
cultura indìgena”; “O Espaço fìsico na escola”.
103
Visando a aproveitar esses temas, para não desmotivá-los, pedia para que
refletissem sobre suas escolhas, e a partir dessa reflexão, definissem dentro do
tema escolhido algo que pudesse ser problematizado. Por exemplo: Quem iria
trabalhar com dificuldades de aprendizagem, teria que pensar sobre que dificuldades
trabalhar: Na escrita? Na leitura? Nas duas coisas? Em matemática? Aqueles que
trabalhariam Arte e cultura indígena deveriam pensar se trabalhariam o ensino de
Artes, ou sobre o currículo escolar, ou mesmo em saber como a arte indígena é
trabalhada na disciplina Arte?
Mas essa reflexão só aumentou mais ainda suas dificuldades. Acirraram-se
as tensões e os conflitos, muitas vezes silenciosos, pois muitos aprendentes não
demonstravam verbalmente seus desapontamentos, calavam-se, mas seus corpos
enrijecidos expressavam seus sentimentos. E o silêncio foi uma estratégia de luta
deles comigo. Ao ouvirem que seus escritos estavam incorretos, que eles teriam que
refletir melhor, eles queriam entender por quê, pois estavam fazendo igual como eu
havia dito. Significa dizer que eu era que estava ensinando errado para eles, disse
uma aprendente. Então, eu retornava tudo de novo, mas eles não conseguiam
entender a minha lógica. Foi quando eu resolvi mudar de estratégia, provocando
neles outros processos de reflexões.
Ler os mitos, artigos de jornais, contos e fábulas, foi sem dúvida uma
importante ferramenta de transformação das emoções e da visão dos alunos sobre a
pesquisa. A metodologia da pergunta-ação se baseou nos seguintes princípios:
ativar a imaginação; desenvolver o espírito investigativo; propor soluções possíveis;
e definir estratégias. As leituras eram foram escolhidas pelos próprios alunos.
A seguir apresento as etapas da oficina e sua metodologia. A primeira etapa
diz respeito à leitura dos mitos, que denominei de Oficina de Pensamento: lia-se
um texto e depois discutia-se sobre ele. Foram lidos cinco textos: (dois mitos, uma
fábula, uma lenda local e um artigo de jornal). Nessa reflexão, explicitarei a leitura do
Mito sobre a origem do fogo, porque ela foi bastante problematizada, conflitiva e
ilustrativa dos operadores cognitivos dos aprendentes.
104
1ª Etapa
Oficina do pensamento: leitura
Leitura 1 – MITO KAYAPÓ- KUBENKRANKEN: ORIGEM DO FOGO17
Antigamente, os homens não possuíam fogo. Quando matavam um animal,
cortavam a carne em tiras finas e as estendiam sobre pedras, para secá-las
ao sol. Eles também comiam madeira podre.
Um dia, um homem viu duas araras saindo de um buraco na rocha. Para
tirá-las do ninho, mandou o jovem cunhado (irmão da mulher) subir por um
tronco de árvore entalhado. Mas só havia pedras redondas no ninho. Há
uma discussão que degenera em briga, e termina como na versão
precedente. Entretanto, aqui, parece que o jovem, provocado pelo cunhado,
joga de propósito as pedras e machuca-o.
A mulher fica preocupada, o marido lhe diz que eles se separaram, e finge
que vai procurá-lo para evitar desconfianças. Enquanto isso, o herói, morto
de fome e de sede, é obrigado a comer os próprios excrementos e beber
sua urina. Está pele e osso, quando passa um jaguar carregando um caititu
nos ombros; a fera nota a sombra e tenta pegá-la. Sempre que ele tenta
pegá-la, o herói recua e a sombra desaparece. “O jaguar olhou para todos
os lados; e depois, cobrindo a boca, levantou a cabeça e viu o homem no
rochedo”. Começa um diálogo.
As explicações e conversa seguem como na versão precedente. O herói,
amedrontado, não concorda em montar nas costas do animal, mas aceita
subir no caititu que ele carrega. Assim, eles chegam até a casa do jaguar,
cuja mulher está ocupada, fiando: “Você está trazendo o filho do outro”, diz
ela, reprovando o marido. Sem se perturbar, ele anuncia que o rapaz ficará
sendo seu companheiro, que irá alimentá-lo e engordá-lo.
Mas a mulher do jaguar não dá carne de anta para o rapaz, somente a de
veado, e sempre o ameaça com suas garras. Aconselhado pelo jaguar, o
rapaz mata a mulher com o arco e as flechas que recebeu do protetor.
Leva consigo os “bens do jaguar”: algodão fiado, carne, brasas. Voltando à
aldeia, ele consegue que sua irmã, e depois a mãe, o reconheçam.
Ele é invocado para ir ao ngobê (casa dos homens), onde conta sua
aventura. Os índios resolvem se transformar em animais para pegar o fogo:
17
LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Mitológicas I. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés.
São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 93.
105
a anta levará o tronco, o pássaro Yao apagará as brasas que caírem no
caminho, o veado se encarregará da carne, o caititu, do algodão fiado. A
expedição é bem-sucedida, e os homens repartem o fogo.
As leituras eram feitas pelos aprendentes. Várias vezes fomos obrigados a
retorná-la, devido à dificuldade de pronunciar algumas palavras. Então, ora um
aprendente lia, ora outro lia, corrigindo. Depois eu finalizava lendo, sozinha, todo o
texto. Esse primeiro momento era muito tenso. Em geral os aprendentes não
queriam ler. Sentiam-se envergonhados, porque muitos colegas riam deles. As
palavras que eles tinham dificuldade de pronunciar eles simplesmente não liam,
passavam direto. Por exemplo:
As explicações e conversa seguem como na versão precedente. O herói,
amedrontado, não concorda em montar nas costas do animal, mas aceita
subir no caititu que ele carrega. Assim, eles chegam até a casa do jaguar,
cuja mulher está ocupada, fiando: “Você está trazendo o filho do outro”, diz
ela, reprovando o marido. Sem se perturbar, ele anuncia que o rapaz ficará
sendo seu companheiro, que irá alimentá-lo e engordá-lo.
Foi preciso criar um ambiente de descontração e imprimir um aspecto teatral
nessas leituras. Muitas vezes eu forjava ter dificuldade em algumas palavras e pedia
ajuda da sala. O que era prontamente atendido. A ideia de dar ludicidade à leitura,
fez com que os alunos ficassem mais a vontade e pudessem eles mesmos se
corrigir. Evidente que entre risos e aplausos, ocorria sempre uma tensão, e muitas
vezes fugas, discussão, até brigas, jogos de esconde-esconde, aqueles que
mudavam de lugar para não ler. De qualquer forma, a última leitura era feita por
alguém com o melhor nível de dicção e de leitura, quase sempre era eu, mas pouco
a pouco, muitos pediam pra fazer a leitura final.
Finalizada a leitura fomos para a segunda etapa da oficina, a da pergunta-
ação. Nesta etapa, os aprendentes foram orientados a fazer perguntas sobre a
história lida. Algo que não tenha ficado claro para eles ou curiosidades. As respostas
podiam ser dadas por qualquer pessoa. Então, surgiu a primeira pergunta:
106
1º Bloco:
Pergunta: Fiquei curiosa para saber como eles matavam os animais, o que eles
usavam para cortar a carne dos animais? E também fiquei curiosa pra saber que
animais eles comiam?
Respostas:
- acho que eles matavam com uma paulada na cabeça; (risos)
- Deviam usar o arco e a flecha.
- Mas como? Se o jaguar foi quem ensinou o homem a usar o arco e a flecha.
- Será que eles usavam faca ou usavam pedras afiadas ou madeira?
- Tudo isso é como as coisas foram criadas. Mostra que nem mesmos nós
criamos essas coisas. Elas já existiam antes de nós. Nem tudo foi a gente que
criou. É isso que eu estou entendendo.
Pergunta: Mas se nós fizéssemos parte dessa história, que animais nós
comeríamos?
Respostas: ah, eu comeria um porco do mato;
- Eu preferia uma Anta;
- E eu uma paca, um macaco;
- Eu prefiro um boi; (risos)
- E eu comeria uma cobra;
- E eu uma galinha, um Mutum;
- Comeria as araras mesmo, já que elas já estavam ali; (risos)
- Pode ser peixe? Um pirarucu! Quem sabe um surumbi ou ...
- E a senhora professora? Que animal a senhora comeria?
- Eu? Fico com o peixe.
Pergunta 3: professora, eu não entendi essa parte que fala de outra parte, que
não foi lido pela gente.
Professora: qual? Leia pra nós.
- Essa aqui: “As explicações e conversa seguem como na versão precedente. O
herói, amedrontado, não concorda em montar nas costas do animal, mas aceita
subir no caititu que ele carrega...”
107
A aprendente referia-se a parte da discussão entre o homem e seu cunhado.
Expliquei-lhes que essa era uma das versões desse mito, e que havia outras. Para
esclarecer li a outra versão:
LEITURA 2 - KAYAPO-GOROIRE: ORIGEM DO FOGO
Ao descobrir um casal de araras num ninho localizado no alto de uma rocha
escarpada, um homem leva consigo seu jovem cunhado, chamado Botoque,
para ajudá-lo a capturar os filhotes. Ele faz com este suba numa escada
improvisada, mas ao chegar à altura do ninho, o rapaz diz que só vê dois
ovos (não fica claro se ele mente ou não) O homem manda jogá-los, durante
a queda, os ovos transformam-se e machucam-lhe a mão. Furioso, ele puxa
a escada e vai embora, sem entender que os pássaros eram encantados.
Botoque permanece preso durante vários dias no alto do rochedo.
Emagrece; faminto e com sede é obrigado a comer os próprios
excrementos. Finalmente, ele vê um jaguar [onça pintada, cf.p.12, supra]
trazendo arco e flecha e todos os tipos de caça. Quer pedir-lhe socorro, mas
fica mudo de medo.
O jaguar vê a sombra do herói no chão; tenta pegá-la, sem sucesso, levanta
os olhos, conserta a escada, procura convencer botoque a descer. Com
medo, ele hesita durante um longo tempo; finalmente, resolve desce, e o
jaguar, amigavelmente, o convida a montar em suas costas para ir até a sua
casa comer carne assada. Mas o rapaz não sabe o significado da palavra
“assada, pois naquele tempo os índios não conheciam o fogo e comiam a
carne crua.
Na casa do jaguar, o jovem vê um enorme tronco de jatobá em brasa; ao
lado, montes de pedras, como aquelas que os índios usam hoje dia para
construir fornos (ki). Ele come carne moqueada pela primeira vez.
Mas a mulher do jaguar (que era uma índia) não gosta do rapaz, que ela
chama de men-on-kra-tum (“o filho alheio ou abandonado”); apesar disso, o
jaguar, que não tem filho, resolve adotá-lo.
Todos os dias, o jaguar vai caçar e deixa o filho adotivo com a mulher, que o
detesta cada vez mais; ela só lhe dá carne velha e dura pra comer, e folhas.
Quando ele reclama, ela arranha o rosto, e o coitado se refugia na floresta.
O jaguar repreende a mulher, mas em vão. Um dia, ele dá um arco e flechas
para Botoque, ensina-o a manejá-los, e o aconselha a usá-los contra a
108
madrasta, se necessário. Botoque a mata com uma flechada no peito.
Amedrontado, ele foge levando as armas e um pedaço de carne assada.
Ele chega à sua aldeia no meio da noite, procura apalpadelas a esteira da
mãe, que demora a reconhecê-lo (pensavam que ele estava morto); ele
conta a sua história, e distribui a carne. Os índios resolvem se apossar do
fogo.
Quando chegam à casa do jaguar, não encontram ninguém; e, como uma
mulher estava morta, a carne caçada na véspera ficou sem cozer. Os índios
assam-na e levam o fogo. Pela primeira vez, eles têm luz à noite na aldeia,
podem comer carne moqueada e se aquecer no calor da fogueira.
Mas o jaguar ficou furioso com a ingratidão do filho adotivo, que lhe roubou
“tanto o fogo como o segredo do arco e flecha”, e desde então odeia todos
os seres, especialmente o gênero humano. Do fogo, só lhe restou o reflexo,
que brilha nos seus olhos. Ele caça com os dentes e come carne crua, pois
jurou nunca comer carne assada. (banner 1957: 42-44)
Feita a leitura da outra versão do mito, novas reflexões passaram a configurar
as discussões na sala de aula.
2º Bloco
Comentário (aluno): essa outra versão fica melhor de compreensão. A outra
não.
Professora: é verdade. Mas lembrem-se: a escolha da leitura não levou em
consideração se havia ou não outra versão desse mito. Nós escolhemos
aleatoriamente. Mas isso serve para nos mostrar que uma mesma história pode ser
contada e até mesmo interpretada de forma diferente, depende da visão ou do
pensamento de cada pessoa ou grupo. Podemos ver a mesma coisa ao mesmo
tempo, mas elas podem ter significados diferentes para cada um.
Assim, continuamos com a dinâmica da pergunta-ação.
Pergunta: quer dizer então, que fica dúvida: o cunhado jogou ou não as pedras
no homem?
Respostas:
- Acho que eram realmente pedras encantadas.
109
- Acho que foram pedras de verdade. O cunhado queria se vingar do marido da
irmã.
Perguntas
- Vingar do cunhado? O que o cunhado teria feito para ele?
- E os ovos? Talvez o rapaz não quisesse dar os ovos para o seu cunhado. E
por egoísmo, inventou essas pedras, que ele deve levado com ele.
- Pra jogar no cunhado? Por quê?
Respostas:
- Acho que ele explorava o rapaz, com trabalho pesado.
- Eh! Talvez o cunhado tenha inveja do jovem.
- O cunhado não teria gostado do casamento da irmã.
- De repente o marido da irmã era só um homem malvado.
- Ou cunhado cansou de ser explorado.
Pergunta: e se o marido da irmã tivesse uma irmã que o cunhado quisesse
casar com ela? De repente o marido não quis o casamento. Então o cunhado
resolveu se vingar.
Comentário: professora, pelo que eu entendi, tanto o marido como o cunhado
não se gostavam. Eu vejo que tem vingança de ambas às partes. A razão de tudo
isso é a vingança e a inveja.
Observa-se, nessa etapa de pergunta-ação, o início de um processo
reflexivo e uma abertura para diferentes formas de percepção da realidade e do
conhecimento. Os aprendentes passam a questionar o texto, e ao questioná-lo,
acabam questionando a si mesmos. Isso resultou em processos de interpretação,
mas também os levou a compreensão de que a narrativa lida possui movimentos de
incerteza e também de ilusão.
Professora, o que eu entendi... não que eu queira dizer que esse mito seja uma mentira. Mas o que eu, assim, eu entendi que existem coisas nele.. como posso dizer? que são misteriosas. Pode ser verdade, mas também pode não ser. Vai depender de como nós aceitamos ou não. Não se pode ter certeza disso. Mas pra mim, no meu modo de ver, eu entendo que isso é uma verdade... (WANANA, Aluna, 2007. Oficina do Pensamento)
O aprender a conhecer foi se construindo a partir do desenvolvimento de
ações sensório-motoras recorrentes, que se auto-organizam em função das
perturbações ou flutuações cognitivas ocorridas durante o movimento das atividades.
110
Essas ações se corporificam por meio da geração de hipóteses, que, ao serem
projetadas pelos aprendentes, serviram de suporte para a percepção e interpretação
da realidade. Por isso, pode-se afirmar que ao interpretarmos o mundo, construímos,
destruímos e reconstruímos o conhecimento, que se dá em função de nossas ações
e observações.
Diante dessa compreensão, foi preciso criar um ambiente de aprendizagem
que fosse capaz de favorecer a própria aprendizagem. Para Humberto Maturana
(2001), o ato de educar e de aprender constitui-se como fenômenos biológicos que
envolvem todas as dimensões do ser humano, por meio da integração do corpo e do
espírito, do ser e do fazer, do sentir e do pensar, da razão e da emoção. Dito de
outra maneira, favorecer a aprendizagem significou estabelecer conexões com a
multidimensionalidade dos aprendentes, seja nos aspectos corporais ou cognitivos.
3º Bloco
Perguntas:
- Por que a mulher do Jaguar não gostou do rapaz?
Respostas:
- Acho que ela pressentia que ele era um traidor.
- Deve ser por ciúmes. O Jaguar dava mais atenção para o rapaz que para ela.
- Intuição feminina!
- Ou ela tinha medo que o rapaz pudesse fazer alguma coisa para ela.
- Ela era muito feia e malvada.
- Só que o Jaguar casou com ela.
- Detalhe: ela era humana, era índia.
- Porque tinha que ser assim mesmo, para poder o homem ter o fogo.
Pergunta:
- O Jaguar casou com a mulher, por quê? Como pode animal se casar com
gente?
Resposta:
- Antigamente essas coisas aconteciam mesmo. Homem falava com animais,
casava... Era assim.
Intervenção:
- Mas tu já falaste com algum animal?
- Já!
111
- Já? E o que tu falaste?
- Ora, um monte de coisa: como vai bichinho? Vem aqui comigo pra gente ser
amigos. Ele vinha e ficava comigo.
- Mas ele não falava, falava?
- Não, mas eu entendia ele. E ele me entendia.
Continuando com as respostas:
- Ora, o bicho só sabe caçar, ele não sabe cozinhar, cuidar da casa. Ele tinha
que ter uma mulher mesmo.
- É. A índia estava sozinha, sem ninguém. Aí apareceu o Jaguar e ela casou
com ele. Coitada, ela precisa de um marido e ele precisa de uma mulher.
- Gente, na verdade o Jaguar era um homem disfarçado. Claro! Por isso que
eles se casaram.
- Mas não tiveram filho.
- Por isso que o Jaguar adotou o rapaz.
- A mulher não podia ter filho. Por isso ela não gostava do menino.
- Agora está explicado. A mulher não podia ter filho, ficou com raiva do marido
por ele ter trazido o menino sem consultá-la.
4º Bloco
Perguntas:
- Por que o Jaguar mandou o filho adotivo matar a mulher?
- É verdade, se ele precisa dela, por que mandou matá-la?
Respostas:
- Por que a mulher infernizava ele dia e noite para querer ter filho.
- Ele não gostava dela e passou a se invocar com ela.
- Ela infernizava o Jaguar por outra coisa: ele devia trazer caça pesada. E ela
tinha que cuidar de tudo sozinha. Os trabalhos domésticos cansam.
- Ele demorava muito pra voltar da caça. Ela ficava sozinha e sentia raiva, medo.
- Ela percebeu que o rapaz só estava ali por interesse, e tentava alertar o
marido, que não acreditava nela. Ele ficou com raiva disso, porque tudo o que
ele queria era um filho para ensinar o que ele sabia. E a mulher perturbava toda
noite ele com essa conversa. Ele via o menino triste, envergonhado, então ele
ensinou ele a usar o arco-flecha para ser defender da mulher.
112
- Mas só que a mulher estava certa. Na primeira oportunidade o menino matou
ela, roubou a comida e ainda levou as armas do Jaguar. Ele traiu o Jaguar, seu
pai adotivo, que confiava nele. Foi muito triste isso para o Jaguar.
Perguntas:
- Mas será que o Jaguar também não queria fazer alguma malvadeza com o
menino? E se ele quisesse apenas engordar o menino para depois comê-lo? O
menino deve ter percebido, por isso fez o que fez, e foi muito rápido.
- E por que o menino matou a mulher?
Resposta:
- Mas ela vivia maltratando ele. Foi por isso que ele matou ela, e fugiu por medo.
- Não acredito nisso não. O Jaguar tinha boas intenções com o homem.
Pergunta:
- E tem outra coisa. O rapaz já tem antecedentes. Será que ele não quis enganar
o cunhado também?
Respostas:
- Não acho que ele quis enganar o cunhado. Só que quando ele viu comida
asada, o fogo... e depois ele aprendeu a usar o arco e a flecha, ele quis repassar
isso para o povo dele. Matou a mulher para poder fugir e levar o que aprendeu
na casa do Jaguar. Ele não traiu o Jaguar, ele foi fiel ao seu povo. Ele ficou com
medo do Jaguar.
- Mas esse povo, foi lá na casa do Jaguar e destruiu tudo.
Pergunta:
- Por que os índios fizeram isso?
Respostas:
- Pra mim foi por ganância. Queriam tudo para eles.
- Acho que eles ficaram com medo de outras pessoas descobrirem o fogo. Eles
queriam ser os únicos que conheciam o fogo.
-Ou ficaram com o medo do Jaguar, pensando que ele fosse fazer alguma coisa
contra eles.
- Eles queriam o fogo, pois viram que a comida era mais gostosa e mais fácil de
comer. Eles não conheciam o fogo, não sabiam fazer o fogo.
Perguntas:
- Mas o Jaguar não ensinou como fazer o fogo. Como será que ele aprendeu a
fazer o fogo?
113
- Como eles preservavam o fogo?
Respostas:
- Quando o fogo vai acabando, coloca mais lenha. Devia ter alguém que
cuidasse só do fogo, pra ele nunca apagar.
- Ah, tem várias maneiras de fazer o fogo. Com fósforo, é mais fácil. Mas se faz
esfregando uma pedra na outra. Ou também se faz cravando o espeto no chão.
Intervenção pedagógica: diante da sala curiosa sobre como se faz o fogo,
propus que a turma se dividisse em quatro equipes. Cada equipe iria investigar
sobre as diferentes formas de se fazer fogo. Assim, entramos na segunda etapa da
Oficina Pedagógica: o conhecimento. A ideia era instigar os alunos a descobrirem
o conhecimento e a partir disso construírem novos saberes. Com isso chegamos ao
segundo passo do Canoeiro.
b) Aprender a fazer: representou o início de um processo de construção de
conhecimento tendo como base a pesquisa. Os aprendentes organizaram os dados
pesquisados, fizeram comparações, classificando as informações, propuseram
generalizações, bem como criaram códigos próprios e conseguiram abstrair o
conhecimento, gerando novas fontes. Aprender a fazer representou a apropriação
do conhecimento por meio de uma aprendizagem contextualizada e nascida das
fontes do ser e do conhecer, pois partiu das inquietações dos próprios aprendentes.
Assim entramos na segunda etapa dessa Oficina: o conhecimento.
2ª Etapa
Oficina do Conhecimento: o Fogo
Nessa etapa foi proposto que os aprendentes investigassem diferentes
técnicas de fazer fogo. As equipes se organizaram, fizeram pesquisas na própria
comunidade, entre os diferentes grupos étnicos, e na internet. Alguns aprendentes já
conheciam essas técnicas, o que facilitou o trabalho em equipe. Outros já tinham
ouvido falar, mas nunca haviam visto e nem experimentado. As técnicas
apresentadas variavam desde o uso de fósforo, isqueiros, até os métodos mais
primitivos. Todas as equipes apresentaram praticamente as mesmas técnicas, sendo
que apenas uma demonstrou empiricamente. Fizeram a técnica da fricção com
graveto e com pedras. Além disso, essa equipe encenou um mito Desana sobre a
114
Origem do Fogo, que foi retirado da coleção “Narradores Indígenas do Rio Negro.
Memória, Identidade, Patrimônio cultural e Perspectivas para o futuro” (1996).
A peça teatral era constituída por um narrador e pelos personagens do mito
que usaram máscaras de animais e pinturas indígenas no corpo. As cenas eram
apresentadas de acordo com a narração. A sala de aula, que serviu de cenário, foi
toda enfeitada de plantas, galhos de árvores e tapete de plástico. Segue, então,
apresentação: o conhecimento em cena.
Mito Desana-Wari Dihputiro Põrã: A Origem do Fogo.
Narrador No princípio do mundo, os Ʉmʉrĩ mahsã, que significa Gente do Universo, sofriam muito. Alimentavam-se somente de carnes cruas e de outras coisas não cozidas. Um dia, descobriram que uma velha chamada Peha ñehkó, a “Avó das lenhas (de fogo)” possuía o fogo e comia somente coisas cozidas ou assadas. Eles foram provar a sua comida, gostando muito dela. Cena 1: uma mulher vestida de vermelho aparece trazendo comida, oferecendo para as pessoas, que comiam com prazer. Narrador Por isso, pediram para a velha que dividisse o fogo com eles. Mas Peha ñehkó não queria dividir o fogo com mais ninguém: por ela mesmo ser fogo, tudo o que tinha dentro de seu corpo transformava-se em fogo, principalmente quando ela estava peidando. Cena 2: A velha fala: não quero dividir meu fogo com vocês. E sai andando, soltando fogo pela bunda ao som de um barulho de um tambor. (a platéia ri) Narrador Como ela se recusava a dividir o fogo com eles, os Ʉmʉrĩ mahsã resolveram um dia roubá-lo. Decidiram roubar-lhe o fogo quando estivesse na roça fazendo um grande fogo para queimar capim. Eles foram então visitar a velha quando ela estava na roça. Vendo-os chegarem, ela perguntou: Cena 3 – A velha está na roça sentada no banquinho de madeira, quando percebe a chegada dos netos. - O que vocês andam fazendo por aqui, meus netos?” - “Viemos matar macaquinhos que come as frutas da sua roça, nossa avó!” - Então, guardem um para mim, eu quero comer um macaquinho assado!” - Tá bom! Em breve lhe traremos um macaquinho para comer!” Narrador Entrando no mato, chamaram o seu caçula. Transformaram-no no macaquinho chamado meneisĩ ñigũ, “macaquinho preto”, em seguida o empacotaram em folhas das árvores chamada em desana buresēna, waimaka, porá, nũgũho e õã. Por fim, amarraram o pacote com os cipós waiyura-dá, õsũ, sĩgã-dá e Omã sĩgã-dá, também difíceis de queimar. Antes de entregar o embrulho para a velha, explicaram para seu irmão caçula, que haviam transformado no macaquinho, como fazer para roubar o fogo.
115
Disseram-lhe que assim que tivessem uma oportunidade, devia agarrar as lenhas acessas e correr imediatamente para perto dele. Depois dessas explicações foram até a velha para entregar-lhe a encomenda. Cena 4: Um homem chega com um menino de três anos no colo. O menino estava todo enrolado de cipós, com uma máscara de macaquinho no rosto. Ele é entregue para a velha. Narrador Pegando o embrulho, a velha o enterrou na terra, com peito para baixo. Mas eles fizeram-na pensar em virar-lo de peito para cima, o que ela fez. Cena 5: a Velha vira o menino novamente, colocando-o de peito para cima. Os índios fazem rosto de aliviados. Narrador Sobre ele, ela colocou lenha e peidou por cima. A lenha pegou fogo. Assim que a lenha estava na brasa o caçula agarrou a brasa e correu pro mato onde estavam esperando seus irmãos. Ele chegou morto perto deles. Eles o benzeram, o chamando de volta a vida e ficou bom. Cena 6: a Velha fica de cócoras. Um toque de tambor é feito e o menino levanta e sai correndo com uma tocha feita de papel e pintada de vermelho. Chega junto dos seus irmãos encenando um desmaio. Os homens fazem uma benzedura em língua tukano, usando chocalho e cantando uma canção. De repente o menino desperta e todos demonstram alívio e alegria! Narrador Mas a Avó do fogo os amaldiçoou dizendo: Cena 7: a mulher levantou-se do banquinho de madeira e fala: - “Vocês que me roubaram o fogo amado, envelhecerão rapidamente de tanto aquecer no fogo e a sua geração se queimará dia a após dia! No fim, vocês serão preguiçosos”. Narrador Depois de se apropriarem do fogo, os Ʉmʉrĩ mahsã tiveram que tomar muito cuidado para não deixá-lo apagar. Passaram assim muito tempo cuidando do fogo. Eles carregavam o fogo com uma tocha feita de fibra de fazer cuêio, isto é, com tururi. Cena 8: os índios atravessam a sala carregando um tururi com uma vela dentro acesa. Narrador Um dia eles resolveram caçar e pescar no outro lado do rio. Por isso, ficaram esperando um meio de atravessar o rio. Depois de algumas horas, Jacaré chegou com a sua canoa. Cena 9: no meio da sala é colocado um tapete feito de sacola plástica preta, que representava o rio Negro. Pelo lado direito do rio estavam os índios fazendo cara de estarem preocupados. Um homem com máscara de jacaré no rosto atravessa o rio de plástico. Os índios chamam por ele e pedem-lhe ajuda:
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- Por favor, nós precisamos atravessar o rio para caçar e pescar. O senhor não nos levaria em sua canoa? Sendo que primeiro a ser levado é o nosso fogo. Temos medo de perdê-lo na travessia. - Está bem! (disse o Jacaré), levarei primeiro o fogo e depois venho pegá-los. (ao dizer isso, colocou o fogo na proa e partiu) Narrador: Só que quando o Jacaré começou a atravessar o rio, no meio da viagem, resolveu guardar o fogo para o seu uso pessoal. Sem pensar duas vezes, levou o fogo para o fundo do rio. Assim os Ʉmʉrĩ mahsã perderam o fogo. Jacaré procurou se esconder num lugar onde os Ʉmʉrĩ mahsã não poderiam chegar perto. Estes o procuraram no mundo inteiro, não o encontrando. Estavam prestes a desistir da sua busca quando encontraram a sua casa. Ele morava com as suas filhas perto do sítio atual conhecido com o nme de Bela Vista, no rio Uaupés. Mas ele nunca abria a sua casa. Os Ʉmʉrĩ mahsã estudaram uma maneira de fazer sair dela. Um dia, descobriram que ele gostava muito de rãs. Sem esperar o dia seguinte, foram fazer uma festa perto da casa dele. Começaram a festa no início da noite. Ouvindo o barulho da festa perto da sua casa, as duas filhas saíram para pegar rãs. Cena 10: a sala é enfeitada, uma música da banda Calypso é colocada e todos ficam dançando. Do outro lado da sala duas meninas com máscaras de jacarés conversam com o pai Jacaré. - Pai Jacaré nós queremos comer rãs, ajude-nos a enxergá-las melhor iluminando o mato? - Humm! Estou com pouco de preguiça, mas eu quero muito comer rã. Humm... Está bem, vou ajudá-las. Narrador Elas mandaram o seu pai alumiar o lugar onde estavam as rãs, mas estas sempre pulavam para o escuro. Não conseguindo pegar as rãs, pediram para o pai que saísse da maloca para iluminar o lugar a fim de que elas pudessem correr mais facilmente atrás das rãs. Jacaré, que estava com muita vontade de comer rãs, obedeceu o pedido das filhas. Cena 11: as meninas tentam convencer o pai a sair da Maloca. - Pai Jacaré, queremos comer rã, saia, por favor, da Maloca, pois não estamos conseguindo pegar rãs. - Está bem, vou sair da maloca para ajudá-las. (escondido no meio das cadeiras, um homem mascarado de jacaré, sai rastejando pelo chão em direção das meninas. Narrador Ouvindo a conversa dos três, dois dos irmãos correram até a porta do Jacaré, de modo a esperar sua saída e prendê-lo. Cena 12: os rapazes agarram o Jacaré e o amarram. Narrador Depois de prender Jacaré, exigiram dele o fogo, mas ele negou a lhes dar. Cena 13: os dois irmãos tentam convencer Jacaré a lhes devolver o fogo. - Nos devolva o fogo que você nos roubou, anda!!
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- Nunca!!! Jamais vou lhes devolver!!! (disse o Jacaré com uma voz sarcástica) Narrador Diante da negativa do Jacaré, eles o jogaram no chão e começaram a revistar e cortar o seu corpo à procura do fogo. Mas nada encontraram. Cena 13: o homem que fazia o jacaré estava vestido de uma manta verde feita de tecido de TNT. Os rapazes, pintados de índios, cortaram com uma faca toda a manta, a procura do fogo. Narrador Não achando o corpo o fogo em nenhuma parte do corpo de Jacaré, chamaram Japu, o seu primo. Quando este chegou, o encarregaram de revistar de novo o corpo inteiro de Jacaré. O que ele fez! No final, ele disse que o fogo estava mesmo com jacaré. Meteu então o bico na ponta do seu nariz, onde estava escondido o fogo. É por isso que o Japu tem a ponta do bico cor de fogo. Cena 14: um rapaz com máscara de jacaré, vestido também de manta de TNT verde entra em cena. Os índios então ordenam: - Japu, procure o fogo no corpo do teu primo Jacaré, pois nós não achamos. - Farei agora mesmo!! (disse o Japu, enviando o dedo no nariz do Jacaré) - Está aqui o fogo!! Podem levar. (o rapaz demonstrava que o dedo estava queimado e fazia cara de dor.) Os índios saem carregando o fogo no Tururi. Narrador Depois de retomar o fogo de Jacaré, os Ʉmʉrĩ mahsã o jogaram nas águas do rio, mas ele ficou boiando em cima da água. Não querendo mais ver esse sujeito maldoso, encheram a sua barriga de pedras de modo a afundá-lo. As pedras levaram Jacaré para o fundo do rio. É por isso que o jacaré tem sempre pedras na sua barriga, dizem os velhos. Para que não ocorresse outro incidente com o fogo, os Ʉmʉrĩ mahsã decidiram guardá-los nas pedras, nos galhos do urucuzeiro, nos cipós uambé e nos galhos de cacau do mato. Esses galhos, esses cipós e essas pedras eram iguais a fósforos para os Ʉmʉrĩ mahsã. Última cena: entram na sala todos os personagens, carregando cipós uambé, pedras vermelhas e urucum nas mãos. Por último aparece alguém com uma caixa de fósforo nas mãos, era o narrador, vestido de branco. Narrador: Aqui acaba a história do fogo. Obrigado (faz isso acendendo o fósforo)
Essa encenação favoreceu o surgimento de um clima mais afetuoso entre os
alunos. Muitos parabenizaram a equipe pela iniciativa de apresentarem o mito.
Outros afirmaram não conhecer o mito encenado. Os aprendentes avaliaram as
atividades realizadas e consideraram-na muito importante para a valorização de
suas culturas. Mas se colocaram preocupados com o fato de não entenderem qual a
relação dessas atividades com a matéria PPP1. Como afirma uma aprendente:
118
“Professora, eu gostei muito dessas práticas voltadas para nossa realidade, mas pra
mim fica uma dúvida: como vou fazer meu projeto de pesquisa? É isso que eu
gostaria de aprender. Como nós vamos fazer isso?” (SOL, Miriti-tapuia, 2007). Na
mesma direção, um outro questiona: “é que nós temos que fazer o projeto de
pesquisa. Nós estávamos aprendendo com a senhora. Aí a senhora inventou essas
oficinas. Fica a dúvida sobre o que a senhora quer da gente?” Então, uma
aprendente levanta a mão e fala:
“Eu entendi exatamente o que a professora quis nos ensinar. Ela quis que aprendêssemos a questionar a realidade, para que a gente possa saber fazer uma pesquisa. Foi o que nós fizemos aqui... Além de aprender ler direito, nós também fomos fazer a pesquisa sobre o fogo. Muitos aqui não sabiam nada sobre o fogo. Nem sabiam que existia um mito sobre o fogo na nossa cultura. E deve ter outras versões também, de outros grupos indígenas daqui da nossa terra. Nós temos 23 etnias. Então quantas versões devem ter? A turma que apresentou esse mito, ela teve que fazer pesquisa, teve que ler, depois interpretar aqui na frente de todo mundo. Fizeram a leitura direito e souberam interpretar. Assim deve ser fazer pesquisa científica: temos que saber fazer leitura da realidade, questioná-la e depois interpretar a realidade. Não é isso professora? (BALI, Tariana, 2007)
As inquietações apresentadas pelos aprendentes revelaram que o processo
formativo possui diferentes temporalidades, percepções e interpretações que variam
de acordo com nível de compreensão da cada aprendente. Eles esqueceram as
dificuldades que tiveram para fazer o pré-projeto. E naquele momento, e como em
muitos outros que virão, o tempo da formação precisava ser recuperado. Recuperar
esse tempo, para que o percurso formativo atinja um ponto em comum de
compreensão, foi um desafio para o curso. Mas é importante ressaltar que o
caracteriza o processo de formação é o fato dele está longe do equilíbrio18. Ou seja,
os conflitos, os pontos de divergências ou de incompreensões são inerentes ao
processo de formação, que deve ser entendido como um sistema aberto,
movimentado por fluxos e desvios naturais aos sistemas complexos.
Recuperar o tempo significou estabelecer vínculos mais fecundos entre o
ensino e a aprendizagem, fazer conexões entre o passado e o presente, bem como
18
Longe do Equilíbrio é um conceito criado por Ilya Prigogine para compreender os sistemas vivos.
Prigogine considera os sistemas vivos como sistemas abertos, como estruturas dissipativas, segundo
os quais os sistemas se auto-organizam longe do equilíbrio, sofrendo flutuações constantes, que
dentro do próprio sistema conduzem ao surgimento de pontos de bifurcações. São esses pontos que,
segundo o autor, levam os sistemas a fazerem escolhas, dando a eles um caráter de historicidade
(PRIGOGINE, 1996).
119
criar possibilidades de ligações entre o conhecimento e sabedoria. Os aprendentes
ainda não estavam preparados para elaborar o pré-projeto, ora porque não
compreendiam o que eu tentava explicar, ora porque não conseguiam escrever com
clareza. E eu precisava encontrar uma estratégia de comunicação com os alunos,
para que pudesse me fazer compreender. Da maneira como eu me expressava eles
não entendiam.
Um exemplo desse processo foi quando pedi para eles escolherem um tema
que tivesse a ver com sua área de interesse. A pergunta foi: “que área professora?
Como é essa área?” Eu tinha que explicar o que era área? Eu tive dificuldade para
conceituar. E quando eu disse que área era um espaço ou lugar físico, mas também
podia ser compreendida como um campo específico de conhecimento, eles
perguntaram que campo era esse? Então, mais uma vez expliquei, concluindo que
existem áreas ecológicas, ambientais, físicas, mas também existem áreas
científicas, que tinha a ver com as disciplinas, com as ciências. No caso da
pedagogia, a área de atuação era diversa, indo de estudos sobre aprendizagem,
linguagem, avaliação, currículo, sala de aula, cultura escolar e muitas outras.
Após a explicação um silêncio tomou conta da sala. Quando alguém levanta e
diz: professora nós vamos fazer isso mesmo? Encontrar uma área de interesse e
fazer um tema? E depois? Outra voz: professora, esse campo que a senhora falou,
no nosso caso é a escola, não é? Respondi: sim, o campo da pesquisa de vocês
será a escola. O que vocês farão lá é o que vai definir o tema da pesquisa. Foi então
que pedi para eles terem paciência, um pedido que fiz a mim também, e que na hora
certa, todos saberiam encontrar seu tema.
Apesar dos conflitos gerados pela ansiedade de construírem um projeto de
pesquisa, a experiência das Oficinas Pedagógicas provocou nos aprendentes a ideia
de questionar a realidade como processo que possibilita descobertas. Chegou o
momento de fazer uma nova passagem, entramos na próxima etapa do projeto
Canoeiro:
c) aprender a ser, um exercício de paciência, tolerância e de solidariedade,
que exigiu de todos nós a abertura para a diferença, o reconhecimento das nossas
limitações, das nossas potencialidades, da importância da escuta e do respeito pelas
ideias antagônicas. Essa aprendizagem promoveu nos aprendentes a consciência
de si diante do outro, juntou o conhecer com o fazer e permitiu, por meio do espírito
120
de cooperação, que a criatividade fosse acionada por meio da imaginação. Com
esse passo entramos na etapa da criação.
3ª Etapa
Oficina de Criação: criando mito
Essa oficina teve como objetivo desenvolver nos alunos a criatividade, usando
como ferramenta cognitiva o imaginário. A proposta era que os alunos re-
escrevessem ou criassem um mito sobre o fogo. Eles foram orientados a escrever
sobre como os homens aprenderam a fazer o fogo. As equipes se reuniram por duas
horas e em seguida apresentaram suas versões dando nome étnico para elas.
Explicitarei apenas duas:
Mito Baniwa: a descoberta do fogo
Era uma vez um mito que falava sobre como os homens descobriram o
fogo. Um dia um rapaz estava sentado em frente de uma fogueira, e
ficou pensando: quando será que eu vou parar de ficar guardando o
fogo? Tenho que descobrir uma maneira.
Ele estava segurando duas pedras nas mãos. Estava chateado com a
vida dele infeliz, de guardião do fogo, pois ele não podia brincar, correr,
fazer nada, só ficava olhando o fogo. Reparando.
Como ele estava com raiva, porque o cunhado o obrigou ficar ali,
começou a bater uma pedra na outra, foi batendo, batendo com força,
tentando fazer a raiva passar. Foi quando ele sentiu que a mão dele
estava queimando. A raiva passou mas ele ficou com dor nas mãos. Ele
gritou: Ai, ai, ai!!! Pensou que fosse algum castigo e jogou as pedras no
chão em meio às folhas secas. De repente as folhas começaram a
pegar fogo. Ele ficou assustado! Pensou que fosse fogo encantado, mas
viu que não era. Então ele percebeu que as pedras causaram a
fogueira. Pegou de novo as pedras do chão e começou esfregá-las uma
na outra. Foi quando ele viu sair uma faísca. Esfregou de novo, e viu
que as faíscas aumentaram. Então ele abaixou, pegou umas folhas
secas, juntou-as e começou a esfregar as pedras até que saiu faíscas e
as folhas pegaram o fogo. Desesperadamente feliz, o rapaz saiu
121
correndo para contar aos outros. Só que no meio do caminho achou
melhor ficar com esse segredo. Mas depois pensou melhor e resolveu
contar assim mesmo, pois isso o deixaria livre. Todos ficaram
admirados com a descoberta do rapaz, que passou a se chamar Rapaz
do Fogo. E todos ficaram felizes para sempre!
Mito Desana: o homem que descobriu o fogo
Após se apossarem de novo do fogo roubado da Avó das Lenhas, os
Ʉmʉrĩ mahsã, ficaram muito preocupados em perder o fogo novamente,
pois já estavam acostumados a comer carne assada ou cozida, assim
como outros alimentos como: macaxeira cozida, farinha e muitos outros
pratos deliciosos.
Um dia muito quente, o rapaz foi dar uma volta pela floresta a fim de
caçar. Ele estava querendo encontrar uma caça para o almoço da
manhã seguinte. Pois sua esposa estava grávida e queria comer uma
paca. Cansado de tanto calor, ele se sentou debaixo de uma árvore e
ficou descansando. Então, ele pegou dois gravetos da árvore e
começou a afiná-los, friccionando um no outro, pois ele queria fazer um
instrumento de flecha. Afiando daqui, dali, ele percebeu que os gravetos
ficaram muito quentes, pois sem querer ele queimou os dedos. Sem dar
muita importância continuou a afiar os gravetos, quando rapidamente os
gravetos soltaram faíscas de fogo. Impressionado, o rapaz, percebeu
que daquela forma podia-se fazer o fogo. Inteligentemente o rapaz
pegou duas pedras que estavam no chão, colocou uma próxima da
outra e depois pegou um graveto e começou a friccioná-lo entre as duas
pedras que estavam debaixo de folhas secas. Logo as folhas
começaram a pegar fogo. O rapaz sai correndo para avisar o seu povo,
que fica feliz com a descoberta e desde então eles não se preocuparam
mais em guardar o fogo. Mas se descuidaram, não apagaram o fogo,
que se alargou por quase toda a floresta. Os pajés fizeram um ritual,
que fez chover muito forte e com isso conseguiram apagar o fogo e
salvar a floresta. Fim!
Escolhi essas duas versões por elas terem conteúdos pedagógicos e
epistemológicos relevantes ao processo de construção de conhecimento. Sob o
ponto de vista pedagógico, percebe-se a forma como as equipes organizaram o
122
texto, o encadeamento das ideias, a estrutura da história e principalmente a
motivação para escrever. Parece-me claro que o texto só aconteceu por que havia
um contexto construído. O fato dos alunos escreverem a partir de suas próprias
referências foi sem dúvida uma ferramenta cognitiva fundamental para a produção
do texto. A função do imaginário nessa construção permitiu a leveza nos textos, a
criatividade e também a abertura para os diferentes níveis de percepção e de
realidade das equipes.
Para elaborarem o texto, os aprendentes tiveram que se aproximar de seus
sistemas de referências, que atravessou diferentes momentos na formação. Esses
sistemas representam suas formas de pensar, agir e sentir a vida. A ideia de criar
um mito a partir das referências produzidas na sala de aula, que também se produz
a partir daquelas trazidas pelos aprendentes, fez com que o conhecimento se
desenvolvesse de maneira pertinente.
O processo de criação das equipes seguiu os princípios do conhecimento
pertinente, que Morin orienta como sendo aquele capaz de desenvolver aptidão
natural do espírito humano para situar todas as informações recebidas em um
contexto e um conjunto, vinculando as partes ao todo, a multidimensionalidade e a
complexidade da vida. A organização do conhecimento constitui-se, portanto, no
processo capaz de “situar as informações e os dados em seu contexto para que
adquiram sentido. Para ter sentido, a palavra necessita do texto, e o texto necessita
do contexto no qual se anuncia” (MORIN, 2000j, p.36).
Ilustração 2 - Oficina de Criação: encenando o Mito. Mar/2007 Fonte: Arquivo Pessoal
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A Oficina de Criação, ao trazer o fogo como tema de construção do
conhecimento, provocou nos aprendentes e na sala de aula a religação da razão
com a emoção, despertando neles processos criativos, de descobertas e de reflexão
que irão culminar com a transformação do espaço de aprendizagem, que se torna
mais leve e menos tenso. O Canoeiro faz um novo passo:
d) Aprender a conviver foi sem dúvida a grande conquista da formação e um
passo decisivo do Projeto Canoeiro, visto que representou não apenas o convívio
com a tolerância, com o respeito às diferenças, mas principalmente permitiu a escuta
do outro e com ela a possibilidade de comunicação foi potencializada. Estar com
outro significa estabelecer meios de convivência e de respeito. Comunicar nesse
sentido representa o estar junto com o outro. Com esse passo entramos numa nova
etapa, a do saber criar sentido. Essa etapa permitiu aos aprendentes dar sentido
às coisas a partir do que eles são, do que foram e do que pretendem ser. Uma etapa
fundamental para a ancoragem do conhecimento.
A intuição de que a Oficina Pedagógica do Projeto Canoeiro iria ajudar os
aprendentes a se perceberem como sujeitos criativos e capazes de construírem
conhecimento, se constituiu como instrumento cognitivo eficaz para exploração e
elaboração do Canoeiro em suas novas jornadas. Manter vivo e ativo esse instante
do conhecimento, que nasce da fonte de nossa intelectualidade, foi uma estratégia
cognitiva de vital importância para o desenvolvimento da formação, sem a qual a
imaginação não seria potencializada. Potencializar a imaginação ativou a criação e
permitiu que o conhecimento se desenvolvesse, facilitando nos alunos a escrita de
seus projetos de pesquisa.
Evidente que a passagem da imaginação criadora para a criação do projeto
de pesquisa não ocorreu de forma menos conflitiva. Mas os alunos conseguiram
superar algumas limitações: a vergonha de exporem suas ideias, e o medo de não
errar. Do tema da pesquisa à elaboração do esqueleto do projeto, observou-se um
grande avanço. Escrever o pré-projeto foi um devir para os aprendentes. Entre idas
e vindas, erros e acertos, a escrita foi sendo construída. A cada refazer, uma
discussão, um avanço e também novas in-compreensões.
“Agora entendi, professora, vou fazer de novo”; “Professora, eu fiz como a senhora mandou naquela hora, mas agora a senhora já quer outra coisa”;
125
“Ah, sim, escreve pra mim professora, isso que a senhora está falando”. “Professora, a senhora deixa eu gravar essa conversa?” “Agora está certo professora? Obrigada!” “É para escrever com as nossas próprias palavras?”
Nessas idas e vindas, muitos traziam escritas retiradas de partes de livros,
tentando mostrar um trabalho certo. Os textos copiados eram facilmente
identificáveis, e os alunos sempre assumiam terem feito a cópia. Eu os orientava
caso houvesse necessidade de usar um trecho de um livro, que fosse dado o nome
do autor, ano e página. Mas os problemas se complexificavam ainda mais. Os
aprendentes não sabiam fazer citações de acordo com as normas da ABNT, apesar
de já terem cursado a disciplina Metodologia Científica. Além de ensiná-los a
elaborar os projetos, tinha de orientá-los nas normas da ABNT. Por mais que fossem
dados exemplos concretos, escritos no quadro, ou apresentados em slides, essa foi
uma tarefa muito cansativa e estressante. Por exemplo: eu dizia que a palavra
página deveria ser abreviada com p minúsculo. No entanto, eles escreviam pág. P.
pg. Esse problema foi recorrente durante todo o percurso da formação. Em geral dos
29 alunos orientados, 22 traziam esse problema. Considerei essa questão como algo
que ficou marcado no passado da aprendizagem deles. Morin denomina esse
processo de imprinting, marcas naturais ou culturais que orientam os homens desde
o nascimento, passando pela família, escola, universidade e pela vida profissional.
Nossa formação possui marcas profundas, difíceis de serem rompidas, pois
foram tidas como verdadeiras. Os aprendentes aprenderam abreviar a palavra
página de tal forma, que ficou praticamente impossível fazê-los mudar. Foi preciso
impor uma situação limite: ou eles escreviam da forma como estava sendo
orientado, ou perderiam pontos na avaliação. Com efeito, essa ameaça levou-os a
aceitarem a abreviatura correta. Na verdade, eles não reconheciam o problema, e
por mais que eu o apontasse, não havia retorno.
Do mesmo modo se deu com as citações dos sobrenomes dos autores em
caixa alta. Eu dava o exemplo, fazia o exercício no quadro, mas eles não
compreendiam. Confundiam citação com referência bibliográfica. Na verdade
cheguei a pensar que talvez não fossem incompreensões, mas sim uma forma de
resistência. Compreensão ou resistência, ficou claro que aquele espaço era também
um lugar de negociação. Além disso, o modelo que eles queriam de ciência, ou que
126
eles consideravam como o verdadeiro, era o do livro. O problema era a forma como
o livro era usado. Isso era uma questão de metodologia. Por mais que eu dissesse
sobre a importância de criar escritos originais, próprios, eles seguiam o modelo que
eles viam nos livros. Só que eles não sabiam fazer uso do modelo. Usavam
parágrafos inteiros para justificar o projeto. De certa forma essa estratégia
representava uma maneira de não serem identificados nas suas limitações. Romper
com esse imprinting foi outro desafio para a formação.
Oficina de Pesquisa: rupturas e permanências
Diante dessa realidade, percebi que o Projeto Canoeiro precisava se refazer.
Mudei de estratégia. O projeto de pesquisa, objeto da disciplina Prática da Pesquisa
Pedagógica I, não seria possível ser construído dentro das normas técnicas. Os
aprendentes não estavam prontos para esse trabalho. Era preciso criar uma
estratégia pedagógica que levassem os aprendentes a construírem seus projetos
sem precisar recorrer ao modelo dos livros.
Os aprendentes tinham acabado iniciar seu estágio nas escolas. Como esse
estágio duraria duas semanas, pedi que na primeira semana eles observassem a
sala de aula e a partir disso encontrassem um tema de pesquisa. Com esse primeiro
contato, os temas foram surgindo e eles ficaram mais seguros em relação ao que
pesquisar.
Decidi que eles deveriam me entregar um pré-projeto contendo apenas: tema,
justificativa, o problema da pesquisa e os objetivos. Pedi ainda que eles
esquecessem os livros em casa, e que a partir daquele momento iríamos exercitar
essa construção na sala de aula. Iniciei dessa forma a Oficina de Pesquisa, que
durou 8horas/aulas, no período de dois dias. Partimos primeiramente da escolha do
tema. Depois para justificativa e problematização e em seguida para os objetivos.
Nesse processo, percebi que a experiência da Oficina Pedagógica
potencializou a aprendizagem dos aprendentes, especialmente no que se refere à
construção do objeto de pesquisa.
Fazia orientação individual e, às vezes, em grupo. Agrupei os temas em
comum e reunia os aprendentes de acordo com esses temas, afim de que eles
discutissem e problematizassem as temáticas. Os interesses dos aprendentes foram
concentrados em quatro áreas de interesses (ver Quadro 1).
127
Observa-se que dos vinte e nove (29) temas de pesquisas, dezesseis (16)
foram voltados para o processo de ensino e aprendizagem, que se problematizaram
pelas dificuldades de aprendizagem da escrita ou da leitura, bem como de cálculos
matemáticos. No decorrer do percurso formativo, notaremos que a razão dessas
escolhas são oriundas das próprias dificuldades dos aprendentes em sua trajetória
escolar. Os outros temas remetem aos problemas sociais mais amplos que afetam a
escola. É o caso da discriminação étnica, da violência urbana e dos problemas
ambientais. O currículo escolar é discutido nos temas voltados para cultura e artes.
Nota-se que a questão da metodologia de ensino atravessou todos os temas.
Para essa análise, destacarei apenas dois pré-projetos (ver Quadro 2), e, em
seguida, ilustrarei a estratégia desenvolvida para a construção da Monografia de
Conclusão de Curso.
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QUADRO 1
TEMAS DE PESQUISA POR ÁREA DE CONHECIMENTO
ÁREA 1- ENSINO E APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA 1 A escrita nas séries iniciais Aprendente: NAZA, Baré 2 A dificuldade do aluno em entender com rapidez o assunto dado pelo professor. Aprendente: ALIR, Baré 3 O papel do letramento no processo de interpretação de texto Aprendente: LENITA, Freitas 4 Dificuldade de aprendizagem no ensino fundamental da 3ª série Aprendente: BABI, Baré 5 Novas alternativas de Ensino e Aprendizagem para séries iniciais Aprendente: SID, Tukano 6 A falta de interesse na leitura dos alunos das séries iniciais Aprendente: BALI,Tariano 7 Leitura de texto na sala de aula, tanto coletivo quanto individual Aprendente: JULI, Tukano 8 Dificuldade de Leitura dos alunos da 1ª série do Ensino Fundamental Aprendente: COCAH, Tukano 10 Aprendizagem da Matemática a partir de práticas significativas Aprendente: YARA,Tariano 11 Problemas ou dificuldades no processo de ensino-aprendizagem na 1ª série Aprendente: JOLE Tikuna 12 Processo de Ensino e Aprendizagem da Leitura e da Escrita Aprendente: TULI, Tukano 13 Dificuldades na Leitura dos alunos de 4ª série Aprendente: RENI, Desana 14 Dificuldade na Aprendizagem da Leitura e da Escrita na 1ª série do Ensino Fundamental Aprendente: PALI, Lindoso 15 Dificuldades da escrita e da leitura dos alunos da 1ª série do Ensino Fundamental Aprendente: ROSI, Tukano
129
Continuação
ARÉA 2: ENSINO E APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA
1 Metodologia de ensino da Matemática nas séries iniciais do Ensino Fundamental Aprendente: LUDI, Tariano 2 O Ensino da Matemática na 3ª série do Ensino Fundamental. Aprendente: JANDI, Baré
ÁREA 3: CULTURA INDÍGENA E LÍNGUA MATERNA 1 Valorização da cultura indígena e o ensino da língua Aprendente: JAME, Baniwa 2 As dificuldades de aprendizagem dos alunos indígenas na escola de branco. Aprendente: SOL, Tukano 3 Os novos caminhos das línguas maternas nas séries iniciais Aprendente: SANDI, Baré
ÁREA 4: OUTRAS DISCIPLINAS E A TEMÁTICA TRANSVERSAL
- Ensino e Aprendizagem em Educação Física Aprendente: NILO, Baré -Trabalho de prevenção na formação de galeras com alunos de 4ª série Aprendente: JUBI, Júnior - A baixa freqüência dos alunos na sala de aula. Aprendente: DOMI, Piratapuia - Discriminação étnica na escola Aprendente: BENE, Baré - Reaproveitamento do lixo na escola Aprendente: IVA, Silva - O espaço físico na escola como fator de ensino e aprendizagem dos alunos. Aprendente: ANGÓ, Baré - Atividades lúdicas na sala de aula Aprendente: IZA, Desana - Violência em São Gabriel da Cachoeira Aprendente: WENIR, Baré - A arte trabalhada na Educação Infantil como contribuição para o desenvolvimento crítico do aluno Aprendente: MANERÔ, Baniwa - O compromisso do ensino de Artes no Ensino Fundamental: aspectos
teóricos e práticos Aprendente: MILA, Baré.
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QUADRO 2 PRÉ-PROJETO DE PESQUISA
Pré-projeto de Pesquisa
Domi Piratapuia Tema: A ausência do aluno em sala de aula Justificativa: através de pesquisas temos visto grande número de ausência de alunos em sala de aula no Brasil e inclusive no Estado e no nosso município. Portanto, para um país de está tentando acabar com o analfabetismo, é muito negativo em matéria de educação e seu crescimento em relação aos outros países. O meu interesse é descobrir o motivo que leva a ausência do aluno em sala de aula. É preciso que alguém descubra as causas e solucione este caso. É muito importante que eu faça alguma coisa, para acabar com ausência dos alunos e com isso, com o meu trabalho, será grande a contribuição para crescimento da educação do meu país, em particular o meu município. Delimitação do problema: como resolver os vários fatores que causam ausência do aluno em sala de aula durante o ano letivo. Por que os alunos não deixam de ir para escola? Objetivos: descobrir os fatores causadores que levam o aluno a se ausentar da sala de aula; procurar juntos aos alunos faltosos as causas que os levaram a ausentar da sala de aula; solucionar em parte ou totalmente as ausências dos alunos em sala de aula na escola, combatendo as causas.
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Continuação
Pré-projeto de Pesquisa
Bali Tariana
Tema: A Falta de Interesse pela Leitura nas Séries Iniciais Justificativa: com a falta de interesse na leitura detectada nas séries iniciais, encontra-se uma situação muito crítica no desempenho do corpo discente. Deixando a comunidade educativa e até mesmo os pais dos alunos aflitos. E com meios a propiciar, o aluno será capaz de se interessar, assimilar e ter capacidade de desenvolver a interpretação de texto. (sic) No mundo globalizado e capitalista, com novas tecnologias que vem avançando no nosso Brasil, deixa os alunos cada vez mais acomodados e distantes dos livros. Atingindo a escola e, sem que os professores percebam, acabam influenciando indiretamente nas suas práticas pedagógicas. Com isso verificamos que São Gabriel da Cachoeira está no mesmo caminho. Onde alunos quando estão em casa só querem jogar videogame ou no computador jogando carta (baralho). E na escola no momento do intervalo em vez de um livro seja de historinha ou não, ficam correndo, gritando, empurrando e brincando de figurinhas. Chega o momento da leitura coletiva ou individual na sala de aula, muitas vezes o corpo discente não conseguem ler ou interpretar um texto. (sic) Na maioria das vezes os pais não tem tempo para acompanhar e outrso realmente não tem grau escolar necessário para acompanhar seus filhos nas tarefas da escola. O corpo docente muitas vezes não se preocupar de motivar através de meios a leitura. (sic)
Assim diante dessa situação bastante preocupante me identifiquei com o tema abordado acima e gostaria que os alunos obtivessem o prazer de ler. Para uma boa desenvoltura na leitura, na interpretação de frases, textos, na redação e principalmente na dissertação. Com certeza isso é influenciado pela leitura. Que futuramente ajudará no vestibular e até mesmo nos concursos. (sic) Portanto, devido a carência e deficiência na leitura faz-se necessário incentivar os alunos nos manuseio e cuidados com os livros, gerando neles o hábito de ler e, consequentemente, melhorando a qualidade de ensino. Delimitação do Problema: Por que os alunos não gostam de ler? Objetivos: - Identificar os meios pedagógicos que incentivem os alunos a gostarem de ler; - Entender o por que da falta de interesse dos alunos na leitura; - Criar metodologias que motivam o interesse do aluno pela leitura.
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Após a construção do pré-projeto, e dada às dificuldades de ensino e de
aprendizagem da sala de aula, decidi que nós faríamos as outras etapas do projeto
durante o processo formativo, que desenvolveria nos dois anos de curso. Rompi com
a ideia de que a pesquisa só se realiza mediante um projeto bem elaborado. A
elaboração do projeto seria feita durante a pesquisa e o estágio, seguindo a lógica
dos viventes, inserindo os mesmos diretamente no campo de pesquisa. Isso foi
facilitado pela proposta do curso Normal Superior que integra Docência e Pesquisa.
Lembremos que o Estágio Supervisionado I, II, III e IV é integrado às disciplinas
Prática da Pesquisa Pedagógica I e II. Com isso, iniciamos o Estágio I, usando da
seguinte estratégia:
1. Seminários teóricos: a fim de facilitar a reflexão teórica dos alunos,
foram feitos seis seminários enfocando as áreas de interesses de
pesquisa. Os alunos foram orientados a fazerem suas apresentações de
forma criativa e diferente. Além disso, eles teriam que fazer conexões com
seus projetos. As equipes se reuniram em torno dos textos e em seguida
apresentavam-no para turma. As técnicas de apresentação foram
variáveis: jogral, entrevistas feita no formato de jornal, além de um
documentário feito em vídeo. Os seminários duraram 40horas. 20 horas
foram destinadas ao estudo e as outras 20 destinadas às apresentações.
Essa etapa foi muito conflituosa, pois os aprendentes tinham dificuldades de
expressar as ideias dos autores, além de não conseguirem, no primeiro momento,
estruturar o texto de forma coerente. Dividiram os textos em partes, sem pensar na
sequência das ideias. Alguns apresentavam partes sem nenhuma ligação. E ao
serem corrigidos, ficavam chateados, pois os outros professores nunca haviam
reclamado. Diziam que os ensinaram a falar com suas próprias palavras ou como
eles haviam entendido.
E foi exatamente nesse ponto, o da compreensão, que os problemas se
intensificaram. Suas compreensões eram diferentes da compreensão dos autores.
Eles faziam a tradução de forma equivocada, liam de forma equivocada e
interpretavam o texto de forma desconexa, dando exemplos concretos sem falar do
que se tratavam.
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O exemplo a seguir explicita esse processo. Uma equipe ficou responsável
pela leitura do texto de Maria Tereza Esteban: a ambiguidade do processo de
avaliação escolar, que faz parte do livro da mesma autora, “O que sabe quem erra?
Reflexões sobre a avaliação e fracasso escolar”, publicado pela DP&A editora em
2001. Começaram o seminário sem apresentar a autora, apenas dizendo o título do
capítulo. Cada componente do grupo possuía uma parte do texto na mão. O primeiro
integrante inicia falando da importância de avaliar os alunos, do papel do professor
nessa avaliação e dos cuidados que devemos ter com esse processo. Não há
nenhuma menção ao texto. O segundo começa: “tal compreensão aumenta a
complexidade da avaliação”, citando uma parte do texto. Em seguida o mesmo aluno
diz: “temos que nos preocupar com a avaliação, para melhorar a qualidade da
educação.” A não ser pela citação, ele não faz nenhuma recorrência ao texto. O
demais integrantes fazem o mesmo papel. Citam uma pequena passagem do texto,
retirada ao acaso, sem nenhuma coerência com as ideias da autora.
Minha intervenção ao seminário se deu justamente pelas citações sem
conexão com a inteireza da obra. Pedi que refizessem a estratégia, e que lessem o
texto. O mesmo problema se deu com as demais equipes. Então, fizemos uma
experiência coletiva de leitura de texto e preparação de seminário. Tal como foi feita
com a experiência da pergunta-ação, só que procurando respostas no próprio texto.
O resultado foi positivo, as equipes conseguiram apresentar os textos de forma
organizada, colocando as principais ideias dos autores, usando da criatividade e de
uma didática melhor estruturada.
2. Etnografia da Escola: na etapa do estágio de observação, pedi para os
aprendentes que adquirissem um caderno para servir de anotações sobre a
escola. Seria o diário de campo. Essa etapa teve 40horas, com duas semanas
de duração. O caderno serviu para o registro de todos os acontecimentos, fatos,
práticas ocorridas e observadas durante suas permanências nas escolas, além
de estar presente em todas as etapas do Estágio.
3. Elaboração do Diagnóstico Escolar: essa foi a terceira etapa do Estágio I,
feita em duas semanas, com 40horas de duração. Nela, os aprendentes
elaboram o diagnóstico escolar. A base dessa construção foi às anotações de
campo. Para facilitar o trabalho dos aprendentes, foi entregue um esquema de
trabalho que serviu de guia para a construção do diagnóstico.
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Esse processo de construção será melhor analisado na próxima jornada, na
qual analisarei o processo de iniciação dos aprendentes ao campo escolar, suas
impressões sobre a escola, a sala de aula, os professores em suas práticas e os
aprendentes em seus processos de aprendizagem.
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A INICIAÇÃO
Para iniciar os aprendentes na prática da pesquisa, usei como estratégia
metodológica a etnografia, a partir da qual farei a análise dos textos produzidos
pelos aprendentes, que defino como escritos etnopoéticos, pois estes remetem ao
universo pessoal, mítico, social e cultural dos mesmos e representam suas
travessias rumo ao tornar-se professor-pesquisador. Um texto etnopoético (FITCHE,
1987) é construído a partir do encontro entre a linguagem científica e a experiência
de uma linguagem elaborada pela dimensão da vida, do vivido, dos sentidos e dos
significados construídos pelas experiências. A poesia é entendida como uma forma
de assimilação do mundo na linguagem, um meio de construir conhecimento com
criatividade. Em seus escritos é possível perceber as formas de compreensão da
realidade em que vivem, suas concepções pedagógicas, suas intuições, impressões,
sentimentos e incômodos sobre a escola, os alunos e professores. Fazer etnopoesia
significou uma prática de vida implicada na linguagem da escrita. Dito de outra
forma, é o registro do pensamento circunscrito pela escrita. É a marca da vida, do
pensamento, das ideias e dos sentimentos humanos construídos por meio de uma
correspondência lingüística entre a linguagem da ciência e a linguagem da
experiência de vida, traduzida pela e na escrita.
Dialogar com a escrita dos alunos, encontrar nelas pequenas pistas,
observando os sinais, muitas vezes escondidos, naquilo que foi dito e não-dito, no
silêncio, nos pormenores, como orienta Carlo Ginzburg em seu “Paradigma
Indiciário” (1999), foi um recurso eficiente para compreender os avanços dos
aprendentes no que se refere à aprendizagem da escrita. Fazer a ecologia das
idéias, como orienta Morin, põe em evidência os sistemas de referências dos
aprendentes, seus modelos de orientação e de percepção da realidade, bem como
permite compreender, por meio de suas práticas de observação e de descrição, os
processos de apropriação das palavras, transformando-as em frases, parágrafos,
chegando, enfim, a uma produção textual própria. Isso indica os caminhos práticos
percorridos por eles, a ecologia das ações (MORIN, 2002) que muitas vezes fugiu
das orientações pedagógicas.
As narrativas dos aprendentes, seus escritos sobre o cotidiano escolar, é um
lugar de exploração teórica e metodológica, no qual é possível encontrar as
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similitudes, as diferenças, as incertezas, os dilemas, bem como suas tentativas de
compreensão da realidade a partir de suas referências pedagógicas, suas
concepções de educação, de avaliação, de ensino e de aprendizagem.
A iniciação dos alunos ao campo da pesquisa foi bastante esperada por eles.
Estavam ansiosos em saber como iria se dar esse processo, o que iriam fazer na
escola, como deveriam se comportar e o que poderiam ou não fazer. Orientei-os
para que se detivessem apenas em observar e anotar tudo o que viam, ouviam,
sentiam, pensavam sobre a realidade escolar e procurassem saber tudo sobre a
escola, sua origem, dados dos alunos, professores, projeto político-pedagógico,
currículo e outras coisas. Mesmo assim, muitos tinham dúvidas. Então fiz um
pequeno roteiro para que eles pudessem seguir:
1. Dados sobre a escola: data de fundação, número de alunos, professores,
grau de formação e de qualificação dos professores, índices de aprovação,
reprovação, evasão, merenda escolar, APMC (Associação de Pais e Mestres
e Comunidade), grade curricular, planejamento, calendário escolar e projetos
pedagógicos.
2. Dados sobre a sala de aula: práticas pedagógicas dos professores, níveis
de aprendizagens dos alunos, relação interpessoal professor-aluno,
metodologia de ensino, processo de avaliação, conteúdos ministrados.
3. Dados sobre o cotidiano escolar: o recreio dos alunos, a merenda escolar,
o que comem, como brincam, ocorrência de desavenças, conflitos, atividades
extraclasse, o intervalo dos professores (o que fazem?)
Com essa orientação e usando o diário de campo, os aprendentes partiram
para o estágio e pesquisa. Os registros no caderno apresentaram os sinais de uma
escola marcada pelo paradigma tradicional. A prática etnográfica revelou as aptidões
dos aprendentes para observar e para descrever a realidade. Além disso, ao
descreverem a realidade observada, não se preocuparam em escrevê-la dentro dos
padrões da escrita culta, que, segundo eles, um projeto exige. Por isso, seus
escritos tornaram-se originais e mais fecundos de informações sobre a escola,
revelando o espírito etnopoético de suas escrituralidades, suas percepções e
interpretações dos dados.
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A escrita, como entre-lugar da formação, pôs em evidência os traços das
duas culturas que orientam os alunos no seu processo de produção textual: cultura
ocidental e cultura indígena, global e local, respectivamente. Os aprendentes
produziram um texto híbrido, no qual as duas culturas se comunicam, interferem
uma na outra. Isso resulta num modo de escrever próprio e consiliente, visto que se
aproxima de uma tradução cultural implicada no diálogo entre dois operadores
cognitivos: pensamento sensível e pensamento científico, dando a eles uma
unidade.
Às 6h40min saí de casa para o 1º dia de estágio no Colégio São Gabriel. Cheguei as 7h08min na escola, não teve recepção, mas aguardei a diretora. Depois de alguns minutos a coordenadora do colégio chamou na secretaria para divisão de classe. A coordenadora repassou as turmas que cada estagiário(a) ia ficar, só que não deu certo, pois a turma indicada era do turno vespertino. Então pedi para ficar pela manhã, aí a coordenadora perguntou que turma gostaria de ficar. Optei pela 3ª série B. Em seguida a coordenadora apresentou a professora, a qual apresentou a turma e deu a oportunidade de apresentar a classe. Logo um aluno falou: “que bom alguém diferente na aula!” E eu gostei disso. A professora pediu para os alunos copiarem o conteúdo da disciplina Geografia da lousa. Enquanto isso vai à sala dos professores para mimeografar o exercício. Todos ficam copiando, alguns alunos bagunçam com colegas, jogam bolas de papel uns com outros, mas um aluno diz: “- A mulher está aì olhando agente”. E o outro responde: “cala boca!” e não respeita seu amigo puxando o caderno na hora da cópia. A mestre não se sente bem, com dor de barriga, mesmo assim, continua na sala. Pergunta se todos copiaram o conteúdo, tem alguns que não terminaram. A professora aguarda para poder explicar. Logo faz a leitura coletiva. O recurso utilizado para explicação é o mapa e livro com gravura do planeta Terra. Em seguida inicia a explicação do conteúdo do dia: Geografia e subdivisões: Geografia Astronômica, Física e Humana. Os alunos não prestam atenção na explicação. Alguns participam respondendo. A professora retorna a perguntar se alguém está com dúvida. Logo passa o exercício, questionário de seis perguntas. Tem alunos que respondeu o questionário rápido e outros não. Ao mesmo tempo a professora vai corrigindo e dando nota para os alunos que terminaram o exercício até o último aluno. E fala: “quem não terminou o exercìcio e não mostrou o exercìcio vai ficar sem nota e tem que procurar de ser responsável.” Prosseguindo, passa tarefa para casa na lousa. Tarefa: Cole e desenhe as características da Geografia: astronômica, física e humana. Os alunos estão inquietos, os meninos, apesar de serem poucos, dominam a turma, bagunçando, se empurram, chamam palavrão para seu colega, como: “porra!” Saem toda hora fora de sala na ausência da professora. Eles mesmos tentam pedir silêncio, mas nem todos aceitam. A mestre pede para arrumar as cadeiras que estão fora da fila. Enquanto isso uma aluna tenta acertar a borracha na testa do colega. A professora chama atenção e pede silêncio. Logo diz: “alunos da 3ª série B, silêncio! E pergunta: “todos copiaram a tarefa? E pede para todos ficarem quietos e fazer as atividades de matemática e português no resto do tempo, porque está passando mal e vai voltar para sua casa e a coordenadora vai passar na classe quando puder para ver se está tudo em ordem. E um aluno quer ajudar para distribuir exercício mimeografado para os colegas. Na sala tem alguns dois alunos que não fazem nada, mas também
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não bagunçam. De vez em quando vai um menino lá mexer com eles, bate em suas cabeças e sai como se nada tivesse feito. Outro colega disse: “olha a mulher só tá te olhando”. Fiz uma cara feia para ele, mas ele nem ligou. Às 9h30min toca o sino para a merenda (intervalo). Todos os alunos saem de sala. Cada qual leva merenda ou compram o lanche na cantina. No corredor fica cheio de alunos, gritando feitos loucos, empurram colegas e brincam. E às 9h45min entram para a sala. Os alunos ficam sem a professora, pois teve que voltar para casa, por causa da doença (diarréia). Mas deixou atividade: cópia do texto “Gato Comunitário”, p.42 no caderno de caligrafia. Nem todos estão fazendo o exercício. Depois de alguns instantes chegou a coordenadora, pediu para alguns meninos que não estavam fazendo exercício ir à Diretoria com ela e o restante continuou na sala continuando a atividade na minha observação. Alunos que terminaram o exercício ficam brincando e conversando, uma turma difícil! Às 11h02min a Diretora liberou para aguardar o sino tocar para saída, no corredor da escola. Fim da aula. Na minha observação alguns alunos têm medo de falar, são tímidos. Passam o tempo todo sentados e muitas vezes não fazem o exercício que a Mestre passou, não gostam de escrever. A professora disse que esses alunos vieram do interior. Afirmou que eles são Tukano. Conversei com eles em Tukano, perguntei “Vocês moram com os pais de vocês?” Eles disseram que não, “moramos com os nossos tios”. Então eu penso que eles devem sentir saudades dos pai deles. É difícil viver longe da família. Perguntei se falavam o português, eles disseram que sabiam falar sim, mas não muito direito. Será que é por isso que eles ficam calados? (BALI, Tariana. Registro de Campo, 2007)
O registro de Bali revela as faces do paradigma tradicional na escola. Os
conteúdos são pouco explorados, trabalhados de forma descontextualizada, com
exercícios de memorização e uso, ainda, de mimeógrafos. A ordem das disciplinas
deixa suas marcas tanto na lousa, nas filas das carteiras, como nos corpos dos
alunos. Aulas monótonas, alunos inquietos. A desordem pedagógica reflete também
na desordem emocional: brigas, violência e discriminação são elementos presentes
nos registros dos alunos. Como vimos em seu registro, os alunos do interior sentem-
se intimidados na sala de aula, por não saberem falar o português, e sofrem
agressão física e simbólica por parte dos colegas.
Em geral, o estágio ocorria pelo período da manhã ou à tarde. À noite, reunia
a turma para refletirmos sobre a experiência. Essa reflexão seguia a orientação de
campo. Quando tratávamos do tema aprendizagem dos alunos, muitos afirmavam:
Ah, tem muita dificuldades. Tem alunos que não sabe escrever e nem ler, a maioria era assim, na quarta-série ainda! (DOMI, 2007) Achei a turma muito fraca. Realmente, na minha sala a maioria não sabe escrever. Quando a professora manda ler, aqueles que não lêem eu percebi que é porque não sabe ler. E a professora não fazia nada. Tem alunos fracos, mas tem também alunos muito inteligentes, que entendem rapidinhos o que a professora pede. Mas eu vejo que muitos são fracos porque não prestam atenção na aula, querem só bagunçar, são preguiçosos, lentos...
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Eu na minha observação vi uma turma muito boa. A professora sabe ensinar, e eles não têm muitas dificuldades de aprendizagem. Só alguns, poucos, que eu observei.
Essa reflexão revelou a concepção dos aprendentes sobre a aprendizagem e
suas implicações epistemológicas. Para eles, a ideia de fraco e forte é uma refeência
de medida de aprendizagem. Eles acreditam que existem alunos mais inteligentes
que os outros e que a aprendizagem pode ser mensurada por meio de exercícios.
Essa visão também reflete o modelo de formação pelo qual eles passaram. É
evidente que esse modelo tem sua origem no processo de escolarização dos
mesmos e que, de certa maneira, vai orientá-los na compreensão sobre a realidade
escolar. Com isso, é possível perceber as matrizes pedagógicas presentes em suas
formações e a partir dessa percepção indicar novos caminhos de compreensão
sobre o universo da escola.
Os aprendentes ficaram incomodados quando lhes perguntei qual era o
sentido de fraco ou forte? Se isto tinha a ver em ser mais ou menos inteligentes,
burros ou menos burros? E se havia alguma medida para essa questão? Eles
responderam que:
Sim, existem pessoas muito inteligentes, tanto é que a gente observa na nota das matérias, matemática, ciências, português. O aluno fraco é aquele que é, vamos dizer assim... burro, ele não tem muita inteligência para aprender. Já o forte é aquele que é realmente inteligente. O aluno fraco é aquele que não entende os exercícios, que não sabe ler direito, nem escrever. O forte já tem um domínio melhor. A gente observa pelo tempo que alguns passam para responder as questões dos exercícios ou das provas. O mais forte, termina logo.
Suas incomodações aumentaram mais ainda quando perguntei a eles, como
se sentiram quando tiveram que elaborar o pré-projeto? Na condição de professora,
eu podia afirmar que havia naquele espaço de aprendizagem alunos burros e
inteligentes? Fracos ou fortes? Diante dessas questões, um silêncio instaurou-se na
sala. Os aprendentes entre olharam-se, com risos contidos e olhares surpreendidos.
Não tinha pensado assim antes, professora. Mas a senhora tem que ver que nunca tínhamos feito um pré-projeto, muito menos projeto. Com isso nós tivemos dificuldades mesmo, mas isso não quer dizer que nós somos burros. Todo mundo aqui tem inteligência. (DOMI, Piratapuia, 2007)
Acompanhando o pensamento do aprendente, concordando com suas
palavras, perguntei novamente: Mas então o que levou vocês a pensarem que havia
alunos fracos na sala? E se esses alunos estavam tendo contato pela primeira com
aquele conteúdo passado pela professora? Mais uma vez eles se deram conta de
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suas reflexões equivocadas, afirmando que “na verdade a gente precisa mudar
nossa forma de pensar, nossa concepção de aprendizagem, senão podemos
cometer erros como esses quando tivermos dando aula um dia. Temos que estudar
mais” (JOLE, Tukano, 2007). Reiterei as palavras da aprendente, afirmando que
essa mudança só será possível na medida em que eles se derem conta das teorias
existentes sobre a aprendizagem, especialmente aquelas que estão presentes em
suas formas de pensar e nas práticas dos professores. Com isso, pedi que fizessem
um levantamento bibliográfico sobre o tema de seus projetos, para que eles
começassem a se familiarizar com as teorias que iriam nortear as reflexões sobre
suas pesquisas. Esse foi um passo muito importante para o desenvolvimento da 4ª
Jornada - a Conexão, que articulou a teoria e a prática a partir do foco da pesquisa.
Os aprendentes tiveram muitas dificuldades em fazer este levantamento. O
acervo da biblioteca era insuficiente, os exemplares existentes não correspondiam à
demanda deles. Com isso eles tiveram que recorrer à pesquisa na internet, o que
para muitos foi muito complicado, pois havia dificuldade de acesso, seja por
problemas financeiros, ou por falta de conhecimento técnico, não sabiam operar a
máquina. Mas mesmo assim, todos conseguiram apresentar o levantamento.
A jornada mítica de iniciação ao campo empírico da pesquisa provocou
mudanças na autoestima dos aprendentes. Eles começaram a se autodenominarem
de pesquisadores. Sentiam-se felizes com suas anotações, mostravam seus
cadernos com satisfação e diziam estarem descobrindo o que era fazer pesquisa. Os
encontros para troca de experiências foram fundamentais para que eles pudessem
compreender melhor o significado e sentido da pesquisa, a refletirem sobre a escola,
a prática pedagógica dos professores, os alunos em seus processos de
aprendizagem e, principalmente, sobre suas visões sobre o universo escolar.
O interessante dessa jornada foi que os aprendentes sentiam-se livres para
escreverem sobre suas observações, pois não havia um mecanismo de avaliação
que classificasse seus escritos. Eles simplesmente teriam que a cada encontro
comigo, mostrar suas anotações e socializar com os colegas o que viram na escola.
Mas no momento em que foi estabelecido que eles teriam que fazer um relatório
sobre o estágio, apresentando um diagnóstico da escola, estabeleceu-se uma nova
desordem. Mais uma vez o que irá nortear os conflitos é a escrita. Porém, percebi
que o problema não estava em escrever somente, pois isso eles vinham fazendo
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isso sem problemas. O que parece ser um problema é escrever dentro dos padrões
cultos da língua portuguesa.
Foram dois dias de ensino voltados para a elaboração do diagnóstico escolar.
Por mais que eu dissesse que as anotações do caderno continham as informações
necessárias para esse trabalho, eles não conseguiam entender o processo. E
sempre perguntavam como fomos fazer, professora?, ou então, o que é esse
diagnóstico? Dava exemplos de diagnósticos, eles pareciam entender, mas quando
me traziam para avaliar, não correspondiam aos objetivos. Várias vezes pensei em
desistir desse instrumento de avaliação, mas era uma exigência do curso. Pensei em
avaliar somente pelos registros etnográficos deles, mas depois pensava que esse
era um exercício importante, pois eles teriam que no final escrever a Monografia.
Para resolver esse problema, decidi fazer uma espécie de fichário (Ver
quadro 3) para que eles preenchessem os dados de forma descritiva, assim teriam
melhores condições para elaborar o diagnóstico.
Cada etapa do formulário era trabalhada coletiva e individualmente na sala de
aula. Os alunos preenchiam os dados e vinham até a mim, pra saber se estava
certo. Entre idas e vindas, conflitos e muitas vezes choro, o trabalho de correção era
feito. A questão central que conduzia os conflitos era escrita. Eles queriam escrever
de forma culta, mas não conseguiam fazer a coesão textual. Experimentavam
palavras, muitas saídas da minha boca, como relevante ou pertinente, e as
colocavam em lugares que faziam com que essas palavras perdessem o sentido. “A
escola possui um espaço físico bastante pertinente em buscar a melhorar a
qualidade da relevância educacional, com isso implica alunos mais preparados”
(COCAH, Tukano. Registro de campo, 2007).
Aproveitei essa brincadeira com as palavras e pedia para que eles fossem
buscar os significados das mesmas no dicionário. Quando descobriam os
significados, buscavam outros lugares no texto para empregá-las. Quando gostavam
de uma palavra, não a deixava mais. Contudo, a resistência de escrever seus
próprios textos continuava, apesar de insisti para que eles fizessem uso de suas
próprias palavras, dos escritos dos cadernos de campo. Para eles um texto correto
era aquele de palavras bonitas, organizados conforme o modelo dos livros.
É nesse sentido que a escrita representa um entre-lugar, pois coloca em
destaque dois modelos sociolinguísticos: aquele que fundou os alunos em suas
ontogêneses e o científico, que os refunda a partir de novos operadores. Dois
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modelos que entram em conflitos continuamente, mas que, pela experiência da
linguagem, comum a todos, negocia processos de comunicação, pondo em
evidência uma nova linguagem e um novo conhecimento.
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Quadro 3 O DIAGNÓSTICO ESCOLAR
Fonte: Roteiro do Diagnóstico Escolar. 2007.
ROTEIRO
1 Histórico escolar (ano de fundação, patrono, termos legais, localização) 1.1 Aspectos Físicos 1.2 Corpo Discente 1.3 Corpo Docente 1.4 Aspectos Administrativos e Pedagógicos 1.4.1 Níveis de Ensino 1.4.2 Turnos de Funcionamento 1.4.3 Número de turma por série e turno 1.4.4 O Planejamento Escolar 1.4.5 Organização Curricular 1.4.6 Projeto Político-Pedagógico 1.4.7 Projetos Pedagógicos (outros projetos desenvolvidos pela escola) 1.4.8 Rendimento Escolar 1.4.9 Merenda Escolar 1.4.10 Outros (APMC, Grêmio Estudantil) 2. O Cotidiano Escolar 2.1 A Hora de Entrada 2.2 A Hora de Saída 2.3 A Hora do Recreio 2.4 A Sala de Aula 2.4.1 Aspectos físicos (números de alunos, decoração, climatização, carteiras, quadro) 2.4.2 Aspectos pedagógicos (série, turma, organização de sala, recursos pedagógicos) 2.5 Os alunos 2.5.1 Faixa etária 2.5.2 Origem étnico-cultural 2.5.3 Perfil sócio-econômico (onde moram, como e com quem vivem) 2.5.4 Nível de Aprendizagem (leitura, escrita, interpretação de textos e cálculos matemáticos) 2.6 O Professor 2.6.1Trajetória profissional 2.6.2 Dimensão Pedagógica 2.6.2.1 Aspectos didáticos 2.6.2.2 Aspectos pedagógicos 2.6.2.3 Aspectos metodológicos 2.6.2.4 Avaliação do Ensino e da Aprendizagem 2.6.3 Dimensão Epistemológica 2.6.3.1 Perspectiva teórica (visão de educação, de aprendizagem, de homem, sociedade e escola) 2.6.3.2 Articulação Teoria e Prática 2.6.3.3 Formação Continuada 2.6.3.4 Saberes da Experiência 2.6.4 Dimensão Curricular 2.6.5 Dimensão Afetiva 2.6.5.1 Relação professor-aluno 2.6.5.2 Relação aluno-professor 2.6.5.3 Relação aluno-aluno 3. Gestão Escolar 3.1 Perspectiva Social e Educacional 3.2 Relação Gestor e professores 3.3 Relação Gestor e Alunos 3.4 Relação Escola e Comunidade 4. Considerações sobre o estágio de observação
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A estrutura desse conhecimento se organizou a partir de um modelo híbrido,
se construindo, muitas vezes, por um desejo mimético de produzir algo que
corresponda aos princípios da ciência. Essa forma de organizar o conhecimento se
deu por meio de interações recíprocas ocorridas entre o meio e os sujeitos e está
implicada nas contradições, ambivalências e convergências das relações entre
sujeito e objeto. Um processo que se constrói também por resistências ao novo, pelo
medo de produzir algo coerente ao modelo da ciência ocidental, que é considerado
como válido.
Esse processo de resistência foi aos poucos sendo superados. Na medida em
que os aprendentes percebiam que o que estava sendo avaliado era originalidade
de seus escritos, os conteúdos trazidos pelo processo de observação, as novidades,
as curiosidades e suas reflexões sobre esses dados, passaram a escrever com mais
leveza, sem deixar de se preocuparem com o uso de palavras comum ao meio
acadêmico, como eles costumavam dizer.
Diante do que foi visto, é muito pouco uso dos materiais pedagógicos. No primeiro momento, o livro é a única fonte de informação. Copia-se o assunto no quadro e faz a explicação. A fala verbal é constante, não se tem visto nenhum cartaz ou outro material que condiz com o assunto. Os alunos ouvem sentados a explicação teórica da professora, faz perguntas aos alunos se entenderam ou não. A seguir já aplica o exercício referente do assunto dado. Dificilmente usa material. (sic). (DOMI. Diagnóstico Escolar [item 2.6.2.2], 2007, p.10) A professora não tem apenas um modelo teórico e de métodos. O professor primário adota vários métodos para atingir o seu objetivo conforme a necessidade da classe. O docente avalia seus alunos a através de perguntas, leitura, ditados e principalmente através de exercícios feitos em sala de aula, tanto mimeografados como copiados pelos alunos. (sic). (YARA. Diagnóstico Escolar. [Item 2.6.2.3], 2007, p.10) A professora passa seu conhecimento dentro de sala de aula e procura usar a formalidade prática, usando a divisão no meio do quadro e quando vai fazer sua explicação e ler com os alunos bem devagar para o aluno entender melhor a leitura. (TULI, Tukano. Diagnóstico Escolar. 2007) Na aula dela são utilizados recursos próprios aonde consegue ter seu condicionamento estrutural de seu trabalho, de acordo com a minha observação, a professora realiza com esses alunos mais escrita e leitura, para que consigam melhor seus objetivos nas atividades. (sic). (SOL. Diagnóstico Escolar. [2.6.2.3], 2007, p.8).
Percebe-se que a descrição dos aprendentes se dá a partir de domínios
linguísticos próprios. De acordo com Maturana e Varela,
Toda vez que um observador descreve os comportamentos de interação de organismos como se o significado que acredita que essas condutas têm
146
para os participantes determinassem os cursos de tais interações, ele faz uma descrição em termos semânticos. (2001, p.231)
Para esses autores, a linguística seria uma conduta comunicativa ontogênica,
na qual o comportamento ocorre pelo acoplamento estrutural ontogênico entre os
organismos, que pode ser descrito em termos semânticos por um observador. Por
isso, os comportamentos linguísticos, ou os domínios linguísticos de um organismo
são variáveis e passíveis de mudanças ao longo das ontogenias dos organismos
que os produzem (MATURANA & VARELA, 2001, p.231).
A passagem de um domínio linguístico para outro modifica as ontogenias dos
aprendentes. No momento em que eles estão descrevendo a realidade observada,
usam de recursos linguísticos comuns aos seus organismos cognitivos, sociais e
culturais, mas quando têm que produzir um texto a partir dessa descrição, entram
em outros domínios linguísticos nos quais tem dificuldades de operar. O ato
cognitivo dessa passagem entre os domínios revela as dificuldades, os mecanismos
e as estratégias dos aprendentes em produzir a escrita dita científica ou acadêmica.
A escrita é, portanto, um ato cognitivo perturbador, conflituoso, mas é também um
ato imaginário de conciliação, criação, reconstrução e de reafirmação da vida, pois é
a partir dela que o conhecimento é significado.
Henri Atlan afirma que:
A passagem de um nível a outro no interior da linguagem faz-se por intermédio dos brancos da escrita (ou pausas e ritmos da palavra), que servem a um tempo, para decompor e para juntar as palavras e as frases. É aí, no vazio, naquilo que não é dito, que existe o espaço da criação dos significados. Eles são criados na intersecção de dois níveis: o das palavras e o das frases. As palavras são separadas e definidas pelos espaços em branco que as separam e articulam-se em frases através dos mesmos espaços que as reúnem. O vazio desempenha, portanto, o papel de um não-símbolo, de um não signo, de onde resultam, aparentemente, os significados, porquanto os signos sem espaços vazios entre eles não teriam significados. (1994, p.65)
O imaginário dos aprendentes é gerador de criatividade e de artifícios
cognitivos que impulsionam suas escritas e constroem um conhecimento implicado
num pensamento mestiço, instruído pela relação natureza e cultura e marcado pela
experiência do contexto que se evidencia pela linguagem. Para Serres (1993), o
pensamento mestiço ou instruído é constituído de conteúdos do contexto, das
experiências de vida, das relações estabelecidas nos lugares da vida cotidiana e nos
espaços das experiências corpóreas, e isso inclui a ciência. Nesse caso, a escrita
147
constitui-se como um lugar marcado pelas experiências do corpo e da mente, pelas
sensações, intuições, emoções, racionalidades e sentimentos em relação ao vivido.
Os escritos de Sol (2008) explicitam a construção de um conhecimento
instruído, no qual ela se utiliza de dados de suas experiências culturais e os cruza
com os dados científicos.
Antigamente os indígenas não se preocupavam em levar seus filhos à escola para serem alfabetizados, nem para se prepararem para o curso de informática tal hora, a educação já vinha sendo ensinadas nas ações a rotina do dia a dia, não precisava de nem um espaço específico. A escola era todo o espaço físico da comunidade, se o pai fosse pescar, levava o filho com ele, La ele tem todo o processo de ensino sobre a pescaria e caça, e a menina acompanha a mãe na roça, e aprende todo o processo de ensino de como plantar a maniva e colher mandioca, como arrancar, raspar, ao chegar à casa outro trabalho de ralar espremer fazer beiju, farinha e cozinhar o peixe depois que o marido chegar da pesca. Para os indígenas aprender e ensinar, qualquer lugar é lugar, qualquer hora é hora. Na escola de branco precisamos de um local especifico, em quatro paredes para aprendermos, tem uma pessoa profissional que atua na escola para orientar os alunos. Para os indígenas não precisa de professor, todos são professores. (sic) (Grifos meus) Hoje presenciamos uma modificação importante na educação escolar indígena, que estar sendo construído um novo modelo de enriquecimento cultural lingüístico, onde o indígena não precisa deixar de falar a lìngua para aprender o português. “É importante esclarecer que a formulação dessa política educacional não aconteceu por acaso, ela é fruto de um movimento de fortalecimento político das associações indìgenas.”. (MAHER. 2006, p.22). [(sic). (Grifos meus) Para esses povos indígenas a escola durante cinco séculos foi uma opressão, não foi fácil chegar até aonde chegamos, graças à política educacional e o esforço político das associações indígenas, apoiadas por várias entidades da sociedade civil. Antes o índio só tinha história, hoje é diferente, já esta adquirida sua presença na mídia para reivindicar os direitos de suas línguas e seus costumes e educacionais. Essa mudança, não vai acontecer da noite para o dia, tem que ter muito diálogo, e muitas ideias para pôr em procedimento esse processo escolar indígenas, pela minha observação nas comunidades já estão sendo construídas escolas com estrutura indígenas, todo isso para garantir segurança da educação escolar indígena diferenciada, sendo o condutor o próprio professor indígena que já obtém cursos de magistério indígena, para levar esse procedimento de educação adiante fugindo do antigo paradigma. (sic). (SOL, Miriti-tapuia. Relatório de Estágio I. 2007, p.07)
Observa-se que nesse diálogo há dois conteúdos importantes: o primeiro fala
da educação indígena, que tem como escola a comunidade. O segundo valida a fala
de Sol, ao tratar da escola indígena como um lugar que reafirma suas culturas e
suas línguas. No entanto, os dois conteúdos se antagonizam. Ela afirma que os
índios não precisam de escola para ser educados, essa é uma necessidade dos
148
brancos. Por outro lado, ela reafirma a importância de uma escola diferenciada para
os indígenas.
Entre os dois conteúdos, existe um espaço de conciliação entre as culturas
indígenas e as culturas dos brancos. Apesar de não ser dito pela aprendente, é
possível perceber nesse espaço do não dito o significado dado por ela à escola
indígena diferenciada, como processo de reafirmação de suas identidades e de suas
diferenças. Em seus escritos encontramos as marcas de sua cultura, do seu meio
social, bem como de seus sistemas de ideias, da noosfera, que se manifestam pela
e na linguagem. Mas a linguagem também comporta outras dimensões humanas,
que se apresentam na encruzilhada do biológico, do social e do cultural. Por isso é
considerada como uma parte da totalidade humana, mas esta também está contida
na linguagem. (MORIN, 2002, p.37)
Para Edgar Morin, “a linguagem é um suporte natural da imaginação e da
invenção. O pensamento só pode desenvolver combinando palavras de definição
muito precisa com as palavras vagas e imprecisas, extraindo palavras do sentido
usual para fazê-las rumar para novos sentidos” (2002, p. 37). No mesmo caminho,
Atlan (1993, pp. 66-67) afirma que no vazio da escrita, o espaço de passagem de
um nível ao outro, é que se dá a criação dos significados no interior da própria
linguagem e a transformação do efeito negativo de interrupção e de corte entre os
signos em efeito de composição e de reunião, mas é preciso levar em consideração
o seu processo auto-organizacional e a indeterminação e o ter em conta as
condições de observação e de contexto.
Para Luchesi (2003, p.50) diz em seu comentário em relação ao espaço físico escolar, faz dura acusação sobre a aprendizagem do aluno, que apenas já estamos em outra geração, com novo método, novas concepções (grifos meus) e sabendo também os fatores que prejudiquem ao ensino do educando, muitas coisas ainda vem acontecendo(...) (sic) Tudo o que o teórico diz em seu depoimento, é tudo o que a escola procura mostrar que as salas de aulas e os educadores estão preparados para dar ensino de qualidade, realmente isso que pensamos de qualquer escola, era o que deveria está acontecendo, (Grifos meus) mas decepcionamos ao vermos a situação em que se encontra o colégio Luz do Saber, sala de aula em pleno ano letivo em reforma, sem data para concluir, professores e alunos ocupando o mesmo espaço, não oferecendo conforto para ensinar e para aprender, dessa maneira o ensino acaba prejudicando o desenvolvimento de todos os alunos e é constrangedor saber que outras reformas há de acontecer ao longo do tempo e sempre prejudicando ainda mais o ensino e o andamento escolar dessas pessoas. Até quando será que os alunos pensarão que o ambiente onde estão inseridos estará contribuindo e jamais prejudicando na vida do aluno? (sic) (ANGÓ, Baré. Relatório de Estágio I. 2007, p.20. Grifos meus)
149
Observa-se o corte feito nas palavras do teórico Luchesi apontado por Angó.
Elas não aparecem explicitamente, mas estão ocultadas e aparecem nas entrelinhas
das frases do aluno. O autor referenciado pelo aprendente deve ter falado da
importância dos usos de novos métodos de ensino, novas metodologias, da
importância do ambiente de aprendizagem e do ensino e do papel da avaliação
nesse processo. Luchesi é um dos principais teóricos brasileiros que tratam do tema
avaliação da aprendizagem. A obra escolhida por Angó trata-se justamente dessa
temática, mas em nenhum momento de seus escritos isso é colocado. Além disso,
Angó tem como tema de pesquisa o Espaço Físico da Escola como fator de ensino e
aprendizagem dos Alunos.
Angó recorta pequenos fragmentos do autor e os encaixa na sua reflexão,
sem se preocupar em definir as bases teóricas de qual falar o autor. Trata-se de uma
estratégia de linguagem, para validar seu pensamento e sua escrita. Apesar de ele
tomar consciência da importância da teoria no processo de reflexão de seu objeto de
estudo, ele tem dificuldade em operar com ela. No entanto, a teoria é significada na
medida em que ele questiona sob as condições do trabalho pedagógico da escola,
sendo essas precárias, é possível caminhar para uma aprendizagem de qualidade,
como avaliar nessas condições? (ANGÓ, 2007)
A linguagem precisa de auto-referência, como nos lembra Atlan (1993) e nos
espaços vazios da escrita é possível encontrar conteúdos importantes, muitas vezes
menosprezados, que revelam os processos de aprendizagem dos alunos. Por meio
desses sinais ou indícios, podemos analisar seus sistemas de referências, suas
estratégias de aprendizagem e a forma como usam as palavras, seus
deslocamentos, acasalamentos, suas invocações e evocações, metáforas que
sacodem as cadeias gramaticais, alcançando a liberdade (MORIN, 2001d).
A linguagem depende das interações entre os indivíduos, as quais dependem da linguagem. Esta depende dos espíritos humanos, dos quais dependem delas para emergir enquanto espíritos. É, logo, necessário que a linguagem seja concebida como autônoma e dependente. (MORIN, 2001d, p.199)
Por isso, o que os aprendentes produzem em termos de linguagem escrita é
fruto da interação entre o que é ensinado no curso, as leituras e discussão na sala
de aula e aquilo que é aprendido por ele, que muitas vezes foge da sala de aula e
dependem das condições bioantropossocial das quais foram construídos. Morin
150
afirma ser a linguagem um cruzamento bioantropológico e antropo-sócio-noológico.
(2001d, p.210)
Fazemos a linguagem que nos faz. Somos, na e através da linguagem, abertos pelas palavras, fechados pelas palavras, abertos para o outro (comunicação), fechados nas ideias, abertos para o mundo, fechados no mundo. Reencontramos o paradoxo cognitivo maior: somos prisioneiros daquilo que nos liberta e libertos por aquilo que nos cerca. (MORIN, 2001d, p. 210)
Com essas palavras de Morin, encaminhamos nossa análise para a próxima
jornada, na qual encontraremos os reflexos do exercício pedagógico implicado no
respeito na diversidade sociolinguística presentes na sala de aula e que, em larga
medida, influenciou a trajetória de formação dos aprendentes.
152
O DESPERTAR
Essa etapa diz respeito ao segundo Estágio Supervisionado e ocorreu quatro
meses depois das duas primeiras jornadas. Teve duração de três semanas e carga
horária de 120h/a. Dessas, 40h/a, foram destinadas para o estágio na escola, 40h/a
para orientação e o restante para estudo e produção de relatório. O reencontro com
os aprendentes representou também um reinício de tudo o que fora passado
anteriormente. Eles entrariam no campo escolar para explorar seus objetos de
pesquisa. Era o momento de verificação, investigação do problema. Mas, para minha
surpresa, alguns não lembravam seus temas. Pedi a eles a revisão de seus pré-
projetos para que, a partir daí, entrassem novamente no clima da pesquisa.
Esse fato revelou um processo interessante na formação, o tempo da
ausência é marcado pelo arquivamento da memória, nesse caso do aprendizado,
que se recupera no tempo da presença. A aprendizagem é, portanto, marcada por
um devir, um movimento capaz de recuperar o tempo e de provocar mudanças
contínuas no ato de ensinar e de aprender. Com a experiência do estágio focada no
problema da pesquisa, todos os projetos foram rediscutidos. Muitos aprendentes, ao
entrar no campo para coleta de dados, despertaram interesses por outros temas. E
ao encontrar-se com os novos temas, defrontaram-se com a dificuldade de
formulação do problema. O que fazer com o tema novo? O que se quer investigar
agora?
De fato, essas questões foram desafiadoras para a formação, mas os
aprendentes estavam mais seguros quanto ao tema, por isso mesmo estavam
motivados a pesquisar e a descobrir respostas para suas novas inquietações. É
como se a possibilidade de investigação despertasse neles a responsabilidade de
produzirem um conhecimento realmente coerente e científico. Coletar dados
implicou reconhecer a existência de um problema a ser pesquisado. Implicou
também saber-fazer. Por isso nessa etapa, pode-se perceber o despertar dos
aprendentes rumo à construção do conhecimento, e de seus esforços em construí-lo
de forma pertinente.
Os aprendentes foram para as escolas investigar a sala de aula tendo como
foco o problema da pesquisa. Continuei com o método etnográfico, mas foi
necessária a construção de outros instrumentos de investigação. Assim, passamos
duas semanas estudando os instrumentos para a coleta de dados, sem perder de
153
vista as anotações no caderno de campo. De posse de seus instrumentos
(questionários, roteiro de entrevista com professores, alunos, roteiro de campo), os
aprendentes partiram para mais duas semanas nas escolas. Como nas outras
vezes, nos encontrávamos à noite para reflexões, debates, discussões e leituras.
Durante o Estágio, os aprendentes coletaram os dados de suas pesquisas,
entrevistaram alunos e professores, aplicaram questionários e depois fizeram análise
dos dados. Essa etapa foi bastante produtiva, eles mostravam-se espantosos com
os resultados, com o que viam, e fizeram reflexões relevantes sobre os seus temas.
Em suas reflexões apresentavam o desejo de fazer diferente quando tornarem-se
professores.
O instrumento de avaliação usado foi a produção de um relatório descritivo
das atividades de campo, tendo como tema: a sala de aula como foco da pesquisa:
uma etnografia do ensino e da aprendizagem. Com essa definição iniciou-se
novamente um processo conflituoso entre os alunos e eu. Mais uma vez a questão
central era: como fazer esse relatório? Havia algum modelo? Dessa vez, não
apresentei nada que servisse de orientação para eles. O que os deixou
extremamente irritados. Professora, nós nunca fizemos isso, como é que vai ser? A
senhora não pode fazer como fez na primeira vez? Pedia um aprendente. Mas
resisti, dizendo a eles que já sabiam o caminho da escrita e tinham condições,
portanto, de enfrentá-la sem maiores temores. De qualquer forma, eles foram
orientados a descrever a sala de aula a partir dos seus temas de pesquisa,
apresentando os resultados da coleta de dados, refletindo sobre a problemática.
Esse processo de escritura do relatório, como nas outras vezes foi muito
tenso. Os alunos apresentam o desejo de fazer algo igual ou parecido com o que
eles definem de pesquisa científica. O objeto de desejo deles é o modelo da ciência
ocidental. Querem ser cientista, aquele que faz pesquisa. Mas adotar esse modelo,
objeto de seus desejos, implicou aceitar que a referência desse modelo fosse eu. E
como alguém conhecedor desse modelo, passei a ser alvo de críticas, ódios, mas
também de salvação. Obviamente que essa relação é de natureza recíproca. Do
meu lado, também houve resistência, pois eles, ao construírem seus conhecimentos,
usavam uma linguagem pouco compreensiva, que fugia do modelo ao qual estavam
adotando e mostrava as dificuldades da escrita na língua portuguesa. Com essa
linguagem, ficou difícil a comunicação. Ou eles assumiam a produção de algo novo,
que atravessaria o modelo desejado, mas que imprimia um novo modo de produzir
154
conhecimento, ou então sofreriam as consequências da avaliação, que muitas vezes
os violentava. Nesse caso, a palavra foi a principal arma dessa violência, que se
instaura pela necessidade de copiar o desejo. Por isso, esse espaço de produção de
conhecimento foi, também, marcado pela rivalidade entre os aprendentes e eu.
Corrigir seus escritos foi, sem dúvida, um ato de violência; apontar-lhes seus
equívocos, os usos de palavras sem sentidos, deslocadas, os deixavam
sensibilizados, irritados, por vezes agressivos. E quando essa correção era
recorrente, eu também me via agressiva diante dessas dificuldades, pois pra mim
era muito difícil entender o que dificultava a aprendizagem dos aprendentes e por
que não conseguia dar conta dela? As questões que me seguiam: como fazer para
que eles me entendam? Onde estava o problema? Como mudar esse quadro
conflituoso?
Os estudos de René Girard (1990) sobre o desejo mimético me ajudou a
refletir sobre esse processo. Para o autor, o que está em jogo no desejo não é o
objeto e, sim, o sujeito do desejo. Os aprendentes querem o modelo do sujeito que o
sabe. Querem saber-fazer como o outro faz-sabendo. Para Girard “o sujeito deseja
porque o próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival designa-o ao
sujeito como desejável. O rival é o modelo do sujeito, não tanto no plano superficial
das maneiras de ser, das ideias etc., quanto no plano mais essencial do desejo”
(1999, p. 184). Por isso, o uso de palavras inadequadas, retiradas das minhas falas
em sala de aula ou dos livros, bem como do contato com outras disciplinas relativas
ao curso. Afirma Girard: “qualquer mimese relacionada ao desejo conduz
necessariamente ao conflito. Os Homens são sempre parcialmente cegos para esta
causa de rivalidade” (Idem, p.185).
Por um efeito estranho mas explicável da relação que os une, nem o modelo nem o discípulo estão dispostos a reconhecer que eles se destinam a um sentimento de rivalidade recíproca. Mesmo que tenha encorajado a imitação, o modelo fica surpreso com a concorrência do qual é objeto. Pensa que o discípulo o traiu. O discípulo, por sua vez, sente-se censurado e humilhado. Ele imagina que seu modelo julga-o indigno de participar da existência superior que ele próprio desfruta. (Idem, p.185)
Esse mal-entendido, segundo Girard, ocorre devido ao fato de o modelo
considerar-se superior demais ao discípulo, e este inferior demais ao modelo. Isto os
torna cegos diante da rivalidade estabelecida pela identidade dos dois sujeitos de
desejos. No entanto, Girard alerta que o discípulo pode também servir de modelo,
por vezes até para o seu próprio modelo. Por outro lado, esclarece o autor, o
155
discípulo possui uma posição essencial, por meio da qual deve ser definida a
situação humana fundamental (p.185).
De fato, principal o sujeito da aprendizagem é o aluno (discípulo), mas isso
não exclui o professor, o que torna o processo formativo complexo, pois a
perspectiva da formação foi a construção de um conhecimento implicado na relação
dialógica entre as ciências do concreto e a ocidental. O fruto dessa relação gerará
um conhecimento mestiço, complexo e transdisciplinar. Portanto, concordo com
Girard, quando este afirma que o desejo mimético é constituído pela reciprocidade
de relações que se rivalizam em torno de um desejo em comum. Nesse caso, a
construção do conhecimento é objeto de desejo tanto minha quanto dos
aprendentes. A diferença está nas identidades dos modelos as quais os sujeitos
desejam construir. Tanto os aprendentes como eu são sujeitos de desejos que ora
se antagonizam, ora se complementam.
A clareza dessa relação, ao mesmo tempo conflituosa e harmoniosa, é que
vai definir os rumos da formação. A aposta foi aproximar as o-posições e torná-las
objetos de desejos conciliatórios. A rivalidade deve ser aceita como uma flutuação
do processo de ensino e da aprendizagem, não como fundamento de poder pelo
qual o ensino se concretiza. Ela não precisa ser hostil. Talvez aí resida o problema
da dificuldade de aprendizagem, pois o professor possui o poder de ensino e
acredita que o conhecimento deva partir de suas fontes de saber. Quando esta se
mostra frágil, a violência torna-se imperativa na escola. Alunos e professores são
alvos contínuos de violências recíprocas, sejam elas físicas ou simbólicas. De certo,
a história da instituição escolar é marcada por práticas de violência, o que denota ser
esta um elemento constituinte desta instituição.
Apostar na proximia entre as o-posições contrárias e torná-las instrumentos
de aprendizagem e de construção de conhecimento, não eliminou a rivalidade. Mas
esta foi aceita como processo inerente ao percurso a ser seguido e vista apenas
como um jogo de interesses, exigindo renúncias de ambas as partes, para que se
atingisse um nível de conciliação, respeito e ética capaz de reorganização do
modelo pedagógico, epistemológico e metodológico pensado para esta formação.
Portanto, o empreendimento da nova jornada de formação foi conciliar os
diferentes interesses dos sujeitos com o modelo pensado para a construção do
Trabalho de Conclusão de Curso. Todavia foi preciso convencer os aprendentes da
proposta dessa construção. Para tanto, foi necessário fazê-los romper com suas
156
próprias exigências e com o modelo adotado para a pesquisa científica. Além disso,
foi preciso imprimir nas práticas de orientação a ideia de que suas construções
deveriam ser autênticas, marcadas por reflexões pessoais e que levassem em conta
seus universos culturais, seus mundos, suas formas próprias de percepções e de
compreensões da vida, da natureza e da realidade.
Nessa jornada mítica do despertar para novas fundações, a formação atingiu
um nível importante de confiança entre os aprendentes e eu, o que de certa forma
vai levar o processo formativo a assumir uma certa liberdade no processo de
comunicação. Os aprendentes sentem-se mais livres para expressar seus
pensamentos, suas intenções e suas críticas, tanto de forma oral como escrita.
Talvez essa etapa, sob um ponto de vista mítico, represente um chamado à
aventura, uma travessia rumo ao desconhecido, um processo desencadeador de
novas compreensões e de novos conhecimentos. De certa, forma esse despertar foi
provocado pela atitude pedagógica da formação em buscar, por meio da linguagem,
algo capaz de levar as pessoas a tomar consciência de si, de suas potencialidades e
de suas dádivas da vida. E isso exigiu, de ambas as partes, uma boa dose de
tolerância, paciência e respeito.
A partir dessa jornada os aprendentes assumiram seus próprios caminhos,
atingindo uma certa autonomia pedagógica e intelectual e com isso conseguiram
redigir seus relatórios de forma mais precisa e clara. Em suas descrições podemos
observar esse avanço, bem como encontrar conteúdos importantes de reflexões
quanto às leituras de seus objetos de pesquisas.
Os alunos têm muitas dificuldades para ler, não sabem escrever direito. A professora, nem liga para isso. Quando pergunto o que faz para melhorar a aprendizagem dos seus alunos, ela diz que passa bastante exercício, cobra dos alunos, faz ditado, tenta diversificar suas aulas, mas o problema é que a família não ajuda as crianças. Mas o que eu vi nessa professora, foi totalmente o contrário, ela só passava exercício no quadro, explicava depressa e depois já passava para outra matéria. Ela era muito tradicional. Na minha opinião ela deveria realmente ser mais construtivista. (sic) A sala tem 29 alunos, desses, 12 não sabem ler com clareza, e suas escritas apresentam muitos erros de português, principalmente ortográficos. Quatro alunos não sabem ler nem escrever. A professora diz que é porque eles vieram do interior, os pais não acompanham. Perguntei pra eles se eles entendiam o que a professora falava. Eles disseram que um pouco. Perguntei se sabiam falar português, eles disseram que só um pouco. Penso que essa deve ser uma dificuldade de aprendizagem na leitura e na escrita. Falei com a professora sobre isso, ela disse que percebia as dificuldades deles, e que tentava estimulá-los com exercícios e ditados. (sic). Na minha opinião a professora deveria primeiro se aproximar desses alunos, tentar falar na língua deles. Eles falam tukano. Fazer com que eles interagem com os outros coleguinhas. A escola deveria primeiro alfabetizar
157
os alunos na língua portuguesa, pra depois colocarem na sala de aula com os outros. Os alunos ficam tímidos na sala de aula, sentem vergonha de falar, pois os seus colegas avacalham com eles. Eles preferem ficar quietos. (sic). (BALI, Tariana. Relatório de campo II. 2007)
Essa descrição de Bali é recorrente em outros registros de campo. Como a
maioria dos temas foi voltada para as dificuldades da leitura e da escrita, decidimos
que essas dificuldades deveriam ser focadas no ensino e aprendizagem na língua
portuguesa. Com isso, os aprendentes passaram a investigar se as dificuldades dos
alunos estariam implicadas no processo de alfabetização do português, visto como
uma língua estrangeira. Outro conteúdo recorrente nos registros etnográficos dos
aprendentes é a discriminação, presente tanto nos escritos de Bali como nos de Beni
Baré (Registro de Campo II. 2007):
A sala de aula da EJA (Educação de Jovens e Adultos) onde estagiei na 3ª e na 4ª séries, percebe-se que há um certo grau de diferenças de idade, isso interfere no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que o mais jovem tem mais facilidade de assimilar conhecimento em relação a pessoa mais adulta. É nessa questão que o professor deve ser compreensivo e paciente com esses alunos que necessitam um pouco mais de atenção especial e o professor por sua vez mostra preocupação a esses alunos repetindo várias vezes o assunto até que eles aprendam. (sic). (Grifos meus) Na EJA, pelo fato de os alunos serem péssimos na leitura principalmente os indígenas. Há um certo caráter discriminatório entre alunos indígenas e não indígenas. Se os alunos indígenas lêem de forma baixa, difícil de compreender é porque em certos momentos já foram vítimas de preconceito na sala de aula. É isso que faz com que os alunos se sintam desmotivados. O professor deve trabalhar seriamente essa questão a ponto de minimizar essas diferenças, fazendo mais trabalhos em grupos, onde os alunos possam interagir entre si, tornando a aula mais dinâmica e com bom entrosamento entre os alunos. (sic). (BENI, 2007. Grifos meus)
Apesar de encontrar no registro de Beni falta de clareza quanto à modalidade
de ensino no qual ele está investigando, trata-se da Educação de Jovens e Adultos,
logo, é natural encontrar uma sala com diferença de idades. Perguntei a ele se sabia
o que significava EJA, ele demorou a responder, mas afirmou dizendo que sabia, no
entanto, via que essas diferenças na sala de aula prejudicavam a aprendizagem,
pois os mais velhos acabam ficando pra trás. Em sua opinião as aulas deveriam ser
feitas de outra forma. Perguntei qual seria essa forma? Ele disse, com mais
dinâmicas, mas interação, novos métodos. Disse a ele, que era bom que pensasse
assim mesmo, pois quando fosse fazer regência de classe, deverá se preocupar
com a metodologia de ensino.
158
Observa-se nessa etapa que os aprendentes estão encontrando o caminho
da pesquisa, mostram-se dispostos a compreender a realidade observada e
apresentam suas percepções em torno do tema.
Meu tema pesquisado durante o estágio foi a falta de interesse na leitura nas séries iniciais. Diante de situações bastante degradantes, abordei inicialmente algumas perguntas: por que certas crianças não gostam de ler? Por que não se interessam pela leitura? Qual a responsabilidade dos pais e professores nesses problemas? E da Escola? É importante que os professores conheça e saibam identificar esses distúrbios tanto em seus alunos, como em si mesmos, em suas aulas, no ambiente educacional e social. (sic). No início do estágio, depois da acolhida coletiva, a gestora da escola distribuiu os professorandos nas classes. A qual fui indicada para ficar o segundo andar, sala número dois do segundo ano do primeiro ciclo, turma B, do turno matutino, contendo vinte e nove alunos. Para enriquecer a coleta de dados, resolvi mudar de classe. Então no dia primeiro de abri fui estagiar na sala 6 do segundo no do primeiro ciclo, turma F do mesmo andar estagiado anteriormente, nessa turma o total era vinte e sete. Nesse período de estágio o meu objetivo foi coletar dados enfocados no meu tema: a falta de interesse na leitura nas séries iniciais. Observei que entre as duas professoras, somente uma conseguia despertar interesse na leitura e na aprendizagem cognitiva, enquanto que uma procurava de explorar o texto através de cartaz pregado na lousa realizando leitura coletiva, não mudando sua metodologia e recursos. Por isso os alunos não se interessavam por nada e a maioria apresentava dificuldade na leitura e na escrita. A professora da sala seguinte foi mais dinâmica, criativa e sempre mudando de tática, inovando os recursos de acordo com a realidade e a necessidade da disciplina. Com leitura em grupo, leitura através de gravura e figuras relacionada a consoante trabalhada. Recorte de palavra da revista e depois pedia para forma pequena frase. Nesta turma tem dois alunos especiais, onze alunos dominando a leitura e escrita, sete alunos estão a caminho do aprendizado e sete alunos estão praticamente sendo alfabetizados. No primeiro tempo de aula é o momento da leitura coletiva e individual e já depois da merenda é aplicada atividade escrita. (sic). Conforme pergunta reflexiva abordada no início do relatório vem através do questionário aplicado, apresentar que a falta de interesse na leitura é influenciado por vários motivos, como: moram com avós, parentes, pais separados, pais que trabalham fora em dois turnos. A maioria não tem acompanhamento necessário e quem acaba ajudando nos deveres da escola são os irmãos, mas quando cansam fazem atividades por eles. Quanto ao corpo docente mostrou que nem todos têm a facilidade de transmitir e ensinar, motivar alunos de diversos comportamentos. (sic). Os dados foram coletados através de observações, entrevistas aos alunos e professores, buscando conhecer o ambiente familiar, convivência no lar e suas concepções sobre a educação, sua participação e acompanhamento nas atividades escolares dos filhos. De acordo com a maioria dos alunos são de baixa renda, mães solteiras, pais separados, também vindos do interior do município e etnias diversificadas: baniwa, tukano, baré, tariano e desana. (sic). (BALI, Tariana. Relatório de Campo II. 2007, p.12. Grifos meus)
Os registros etnográficos dos aprendentes revelam o movimento da sala de
aula, apresentam a percepção do observador sobre o observado e mostram o uso
de uma linguagem marcada pela leveza e clareza quanto aos seus apontamentos
159
críticos e descritivos. A leveza sinaliza para o que denomino de etnopoesia, pois
remete aos seus universos míticos, culturais, linguísticos e imaginários, além de
evidenciarem a natureza lúdica de seus escritos.
Esse caráter de leveza, que transforma os escritos dos aprendentes em
poesia, é algo que, como nos elucida Ítalo Calvino, “se cria no processo de escrever,
com os meios linguísticos próprios do poeta, independentemente da doutrina
filosófica que ele pretende seguir.” (1990, p.22). Para o autor, “a poesia do invisìvel,
a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como o poeta do nada,
nascem de um poeta que não nutre qualquer dúvida quanto ao caráter do mundo
fìsico” (1990, p.21).
Apesar de a linguagem apresentar erros ortográficos na escrita, não se pode
deixar de perceber o processo de aprendizagem do pensamento dos aprendentes.
Educar seus pensamentos para que atinja um nível de compreensão de seus
próprios pensamentos e dos conhecimentos construídos a partir dele representou
um avanço quanto ao processo da escrita. A exatidão com a qual descrevem a
realidade revelam seus modos de pensar a vida. Despojam-se da escrita, como se
ela fosse a própria encarnação daquilo que vêem e representam.
A linguagem escrita, como sistema vivo, educou os aprendentes para o ato de
pensar, instrumentalizando seus pensamentos. Porém, para atingir esse nível de
pensamento educado, foi preciso que eles fizessem uso de suas próprias
linguagens, terem consciência sobre elas. Fazer uso dessa consciência com ciência,
(MORIN, 2001d ) permitiu aos alunos o desenho de seus modos de pensar. O que
eles pensam representa sua aprendizagem.
Foi a partir dessa compreensão que eles passaram a ter consciência do uso
da linguagem escrita, de seus processos de representações para que pudessem
transformar e ultrapassar os limites de seus conhecimentos. Eles escrevem com as
ideias, e estas possuem relação com seus pensamentos. São essas ideias que dão
significados à linguagem, e são capazes de fazer novas associações, construções e
compreensões do mundo e da realidade. A aprendizagem da linguagem escrita foi
um momento de fundação, na qual os sujeitos voltaram-se para seus códigos,
expondo suas linguagens para si mesmos, construindo uma metalinguagem. Foi
essa metalinguagem que desvendou os processos de organização das linguagens
dos aprendentes, deixando transparecer suas concepções, desnudando palavra
160
para se dizer palavra. Por isso ensinar constrói consciência e esta constrói modos de
pensar.
O relato de Nilo Baré explicita essa reflexão:
O trabalho de pesquisa tendo a sala como foco de pesquisa no estágio II, deu-se início no dia dezesseis de agosto de dois e sete, na Escola Municipal Indígena Batista Baré, no turno vespertino. Cheguei à referida escola as 13h14min, onde conversei com o professor da quarta série, turma “F”. No mesmo momento perguntei pela diretor da escola, e o mesmo me informou que ela chegava por volta das 13h30min às 14h15min, então me apresentei como aluno da Universidade do Estado do Amazonas, do Curso Normal Superior e no presente momento como estagiário. Disse também o objetivo que era de observação na sala de aula e no espaço escolar, mas o foco principal será em cima do tema do meu projeto: ensino e aprendizagem da Educação Física. Neste momento o professor informa que as aulas de Educação Física de sua turma são realizadas em sala de aula, nas segundas-feiras, por motivo de falta de espaço, mas que, no ponto de vista do mesmo, isso prejudica bastante as crianças, porque não podem fazer uma atividade completa. As crianças gostam de atividades como: futebol utilizando todos os alunos, não há uma quadra de Vôlei, com essa falta de estrutura no geral aos alunos são os mais prejudicados, as únicas atividades deles é pular corda, cabo de guerra, pega-pega. Diz também, que a reação dos alunos não é boa e são constantes, sempre reclamam das brincadeiras repetidas porque são as mesmas coisas, então ficam sem interesse na hora da atividade física. As 14h30min a diretora chegou à escola, apresentei-me e expliquei o motivo da minha estada na escola, então ela me fez algumas perguntas: a série escolhida para estagiar, se conhecia a professora. Em seguida foi encaminhando para a professora coordenadora para mostrar-me da aula de educação física por séries, após isso fiz um reconhecimento de todas as salas para acertar os dias que eu ia assistir as aulas e fazer minhas observações. Ao explica o motivo do meu estágio aos professores enfatizando o foco da pesquisa todos reclamaram da falta de estrutura na escola para a prática dessas atividades. Com essa falta de espaço, algumas professoras sentem até desmotivadas para ministrar suas aulas. Apenas uma professora disse que tanto faz para ela, tendo espaço ou não ela sai da sala de aula para prática de atividade física, esse fato me deixou preocupado, pois a professora não mostrava nenhum interesse a respeito dessa aula tão importante para as crianças da escola. (sic). (...) Quanto ao diagnóstico do problema, percebi durante a observação, os alunos mostram interesse em participar das aulas de Educação Física, mas o maior problema na escola é a falta de espaço e a falta de criatividade dos professores. Atualmente nas aulas de Educação Física, as brincadeiras mais utilizadas são: queimada, pula corda, cabo de guerra e corrida de saco. Pois fica bem nítida a carência de outras atividades na escola. A figura (apêndice 1) mostrará como é nítida a tristeza dos alunos, vendo o antigo espaço utilizado para jogar futebol e voleibol, espaço que já algum tempo encontra-se cheio de entulho e água, impedindo o uso pelos alunos nas aulas de Educação Física. Com a elaboração do projeto montado em cima da problemática na escola, o qual tornou o tema de pesquisa, tem como finalidade minimizar o problema da falta de espaço, levando propostas de brincadeiras que podem ser realizadas em pouco espaço. Quero também através do projeto reforçar a conscientização dos professores, mostrando a eles a importância das atividades recreativas na vida escolar dos alunos e as vantagens no conceito escolar e com a sociedade. (sic). (NILO, Baré. Relatório de Campo II. 2007, p. 6)
161
A escrita de Nilo Baré desenha seu pensamento sobre o objeto de sua
pesquisa e mostra sua tomada de consciência sobre a realidade escolar e as
implicações dela para o desenvolvimento de seu projeto. Sujeito e objeto se
entrelaçam na organização da escrita, tornando explícita a percepção da realidade,
por meio da qual a descrição é figurada, levando a configuração do pensamento e
consequentemente o conhecimento vai se construindo.
A seguir, temos o relato de Sol. Esse relato é o mais emblemático de todos,
pois ele representa o exemplo de superação de uma aluna, que ao longo do curso
apresentou muitas dificuldades na escrita, mas enfrentou o desafio de escrever com
muita perseverança. Dizia sempre, estou aprendendo, treinando, treinando, vou
melhorando, eu vou chegar lá. E ela chegou e sua escrita põe em evidência essa
superação.
A observação cotidiana das salas de aulas foi focada na dificuldade de aprendizagem que o aluno indígena enfrenta na escola de branco. A primeira aula observada foi de matemática, que assisti no momento que entrei nas salas. As professoras passavam revisão de matemática no quadro para os alunos copiarem, ao mesmo tempo era passado tarefas para resolverem em casa e na sala também. Na minha observação nem todas as crianças conseguem resolver as contas, pelo menos tentam e não sabe tabuada uns vão perguntar da professora, outros não, ficam sentados sem saber resolver, a professora tenta explicar novamente, e atende as dificuldades dos alunos. Os trabalhos são realizados com materiais que as crianças trazem de casa para sala de aula, como: feijão, milho, tampinhas e palitos de picolé, para que eles possam aprender como se resolve ou multiplicar as contas, em momento algum observei o professor estimulando os alunos em sala de aula. Em todas as escolas há uma professora que trabalha com a língua nheengatu que é da própria região. As metodologias são aplicadas com palavras básicas da língua, como: cores amarelas, azul, branca, verde, roxo laranja, preto, e sinais matemáticos, como: + mais, - menos, vezes, ÷ dividir, = igual e diferente. Todos escritos em nheengatu, os trabalhos passados pela professora são mimeografados e colados no caderno, ela entrega para os alunos pintarem e escreverem o nome das cores da roupa dos meninos. (sic). No 3º Ano do Segundo Ciclo, nas aulas de ciências naturais, foi trabalhado o tema animais selvagens, e lixo, onde alunos lêem em conjunto a leitura, para melhor desenvolvimento. O maior problema que eu observei, é que as professoras não utilizam plano de aula, e vão passando diretamente do livro, e nem perguntam do aluno o que eles tem a dizer, e vão só repassando os conteúdos para os alunos. (sic). No Segundo Ano (CBFE) essa sim passou quase a tarde toda explicando sobre folclore, mas os alunos dela brincavam muito na sala, corriam, brigavam, conversavam e foram parar até na diretoria, mas com tudo isso a reação dos alunos é boa, eles têm interesse de aprender, faltam mais práticas, mais estimulação onde que o aluno possa se soltar e esclarecer tudo que ele tem dentro de si. As crianças ficam muito presas consigo mesmo, o professor não conquista a confiança do aluno, não mostra a realidade para que a criança possa perceber que há uma grande diversidade em qualquer escola, e caia na real e se esforce para uma aprendizagem melhor, para não se sentirem envergonhados. (sic).
162
Nas salas de aulas há de 30 a 35 alunos, poucos filhos de brancos, a maioria indígena, e a dificuldade é na leitura e escrita. (sic) As crianças que questionei disseram que falam língua indígena, como: Tukano e nheengatu. Muitas crianças relataram que os pais não falam, mas os avós falam e muitos pretendem aprendê-las, e outras crianças falaram que os pais falam mais eles não entendem. (sic) Tem alguns alunos que vieram das comunidades sem alfabetização e tem muita dificuldade de ler. Muitos disseram que gostam de estudar outros responderam que é bom ser indígena, e responderam também que o professor nunca falou sobre índio, e gostam de aprender a língua portuguesa é mais importante para eles. (sic). No Diagnóstico dos problemas nas salas em geral que, observei, tive um foco de 35 alunos de cada sala, segundo a professora, 11 alunos têm mais dificuldade de leituras de escritas e cálculos, e quatro deles são os que têm mais dificuldades. Esses alunos nem se quer se levantam para perguntar da professora. Ela quem se aproxima deles, para ver se fizeram ou não os trabalhos de sala de aula. A professora trabalha encima dessas dificuldades, passando muito trabalho e exercício para eles se exercitarem dentro da sala ou em casa. Perguntei dos alunos se os pais ajudavam em casa, disseram que sim, isso é muito importante para as crianças. A pergunta que fiz para os meninos brancos, se eles estavam gostando da aula de nheengatu? E responderam que sim, que gostavam, até falaram algumas palavras, como bom dia, boa tarde boa noite. (sic). Em minha opinião, eu trabalharia um pouco de dinâmica, bastante leitura, formação de frases o problematizando os assuntos, interpretação de texto, chamando as crianças no quadro para que elas possam deixar a timidez, inserindo melhor na sociedade, aprendendo a ler mais alto, principalmente às crianças com mais dificuldades, passando muitas cópias e fazer perguntas para que elas se soltem mais, desenvolvendo mais conhecimentos, sendo critico buscando alternativas para o desenvolvimento educacional, valorizando suas culturas e costumes. (sic). É preciso otimizar a qualidade do ensino e da aprendizagem na escola, reestruturando o currículo escolar, buscando novas abordagens metodológicas, para desenvolver as atividades conscientizando o aluno em sua formação, procurando alternativa para articular o andamento de ensino, através de pesquisa de campo e observar o avanço do aluno. Portanto, o educador tem o compromisso de cidadão, conhecendo os seus direitos e deveres perante a sociedade envolvente. O método deve que ser criado, por nós mesmos se baseando no que aprendemos em disciplinas do curso. Todo planejamento deve ser flexível, na área de educação. (sic) A minha reflexão em sala de aula na Escola Indígena Vila Nova, foi sobre qualidade de ensino diferenciado que as lideranças indígenas necessitam, está sendo desconhecida nessa Escola onde estagiei. (sic). O professor, mesmo com formação Superior, continua com suas técnicas tradicionais, falta somar experiências e assumir progressivamente conhecimentos culturais dentro de sala de aula, Na reflexão que tive em nenhum momento vi o professor incentivando o aluno a resgatar a sua própria cultura indígena, para tornar-se mais evidente e ser mais respeitada. Questionei perguntando o que achava ser professor? Mencionou dizendo que o professor não é valorizado, mas sempre esquecido, e disse também que o salário não é digno, e é, mas difícil ser professor quando o aluno não tem interesse em aprender, e quando não consegue ler e entender o texto, interpretar e elaborar pequeno texto e fazer redação, alunos não tem interesse de aprender, ai que torna difícil para ser professor. E questionei perguntando o que pensa da escola indígena? E respondeu que a escola indígena é uma escola que funciona com a realidade dos alunos, com convivência da localidade onde o aluno nasceu. E disse que nessa escola não existe orientação sobre índios, mais as aulas sempre são relacionadas com a cultura indígenas e sobre a cultura envolvente (sobre cultura de branco) A dificuldade que ele encontra para ensinar, sempre existem,
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muitas vezes a escola não disponibiliza uma biblioteca com livros suficientes para os alunos pesquisar, as dificuldades é sobre a leitura e matemática porque não sabem ler e não conseguem decorar tabuada. A educação indígena diferenciada deve melhorar com ajuda dos pais e professores juntos tomar decisões relativas ao funcionamento, estabelecendo a necessidade de criação da categoria escolar indígena, para assegurar a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngüe, junto com sistema de ensino. (sic). Na segunda série onde estagiei a maioria é indígena, uns ainda utilizam sua própria língua e gostam de serem indígenas, outros dizem que as avós falam que é bom ser índio, por que a maioria dos pais morou na comunidade, e não se preocupam em pagar contas como: água, energia, telefone e impostos. (sic). A maioria dos alunos é indígena que já perderam sua identidade cultural, não falam mais sua própria língua nativa e sim o português, e tem vergonha de dizer que são indígenas. Os alunos estão dominados pela língua portuguesa, que é a mais utilizada na escola, como eles não falam mais sua língua materna os pais não se comunicam com as crianças usando a língua materna. (sic). Quando as crianças vêm de sua comunidade chegam à cidade falando a língua materna com os familiares, depois que entram na escola da cidade deixa de falar sua língua e ficam com vergonha, e não querem ser indígenas. A língua portuguesa não tem a função de tornar povos indígenas em não-indígenas, que apesar de deixar de utilizar sua língua o português permite que os indígenas conheçam o funcionamento da sociedade envolvente e tenha acesso às informações tecnológicas. (sic) A única língua resgatada nessa Escola Indígena Vila Nova é nheengatu, ela está inserida na disciplina da escola dentro de sala de aula, as metodologias utilizadas são: palavras, frases, separação de sílabas, estudando o nheengatu poderão conversar com os coleguinhas, com os mais velhos e seus familiares. (sic) A língua materna para uma escola principalmente de um povo indígena é de uma importância, pois através dela poder se falar da cultura e da origem local. Atualmente ela está se perdendo, até mesmo na família esta sendo esquecida por essa razão é importante a língua materna na escola, só então ela pode ser ensinada de geração em geração. (sic) Meu foco é a dificuldade de leitura e escrita das crianças indígenas, que estão enfrentando a escola na cidade para dar continuidade aos seus estudos praticando costumes dos brancos. (sic)
O importante dos relatos é qualidade do que é escrito e não da escrita. Não
significa que os problemas da língua portuguesa não foram trabalhados, pelo
contrário, mas o objetivo era fazer com que os aprendentes escrevessem suas
ideias, transportando seus pensamentos para a escrita, que fossem capazes de
elaborar um escrito crítico e reflexivo. Como orientadora, entendia que o importante
no processo da escrita é que ela seja capaz de comunicação, transmissão, tradução
e interpretação.
As narrativas evidenciam os diálogos entre os códigos verbais e os não-
verbais, a palavra falada e a palavra escrita e entre os diferentes sistemas de
referências dos alunos, da vida e da escola. E isso exigiu deles a capacidade de
selecionar, classificar, refletir e organizar o texto escrito. Nesse processo, o
164
importante é a prática do saber-pensar, de educar o pensamento para que este
possa infletir na produção do conhecimento.
A próxima jornada mostrará a busca pelos fundamentos teóricos do projeto
como ferramenta de interpretação da realidade observada. Trata-se da análise
teórica do problema da pesquisa. É um momento no qual o objeto da pesquisa se
fundirá com a prática e a teoria de análise. Orientei os aprendentes para que, a partir
do levantamento bibliográfico, fizessem a leitura das obras sobre o tema bem como
os seus fichamentos. Com isso, entramos na etapa da conexão entre a teoria e a
prática, nossa próxima jornada.
166
Professora, só se faz ciência com teoria? E se não houver teoria, não há ciência?
Luís Tariana
Passaram-se sete meses depois da última jornada. Era março de 2008. Ao
contrário do ano passado, a vazante do rio Negro não foi tão forte. O rio manteve um
nível de água normal. Mas, de todas as jornadas, esta foi, sem dúvida, a mais
exaustiva. Os alunos tiveram que fazer conexões entre a teoria e a prática de
observação. Ler os teóricos que refletem os seus temas de pesquisa e, a partir
disso, analisar os seus problemas, constituiu-se como o maior desafio do processo
de formação.
O questionamento acima do aprendente Luís Tariana ocorreu no final do
primeiro encontro com os alunos, e foi resultado da apresentação da proposta para o
terceiro Estágio Supervisionado. Estávamos saindo da Universidade, em busca de
condução, quando esse aprendente me parou e me fez essas perguntas. A resposta
à primeira foi afirmativa, a segunda foi desconcertante. Realmente fiquei emudecida
diante da segunda pergunta. Ela provocou em mim um enfrentamento
epistemológico, haja vista que refletiu diretamente na minha proposta de formação.
Se eu pretendia fazer conexões entre os dois operadores cognitivos: ciência do Índio
e ciência Ocidental; então o nível teórico de exigência em relação aos projetos dos
aprendentes deveria ser relativizado.
Portanto, decidi introduzir a teoria em seus projetos como ferramenta de
análise de suas pesquisas, a ser usada como fonte empírica de reflexão de seus
objetos e não apenas como instrumento interpretativo da realidade. Ou seja, ela
seria mais um dos fragmentos que comporiam seus pensamentos e suas
construções de conhecimentos e com quais eles iriam operar. Fazê-los compreender
que fazer ciência implicaria estabelecer conexões com outras pesquisas, das quais
refletem sobre os seus temas, foi fundamental para que eles aceitassem o desafio
de escrever sobre a temática: o dizer da teoria sobre a realidade observada. E foi
com essa tarefa que iniciamos essa jornada.
Os aprendentes foram para a escola fazer a experiência de observação
participante. Nesta, eles fizerem o papel de assistente pedagógico da professora
regente. A ideia era que começassem a interagir com o processo de ensino e de
167
aprendizagem, além de estar fazendo conexões com suas pesquisas. No caderninho
de campo, faziam suas anotações e observações sobre a experiência.
Como nas outras jornadas, as dificuldades dos aprendentes residiram na
produção textual, mas, dessa vez, esta tomou novos contornos, pois, além de terem
que escrever sobre suas observações, tiveram que apresentar o diálogo com os
autores selecionados a partir de seus temas. A entrada desse conteúdo na escrita
transformou seus escritos. Eles agora teriam que fazer a passagem de uma escrita
oriunda da experiência do pensar a partir de suas próprias fundações, para a escrita
de um pensamento implicado pelas experiências de outros pensadores. Era o
momento de conectar os dois operadores e produzir um pensamento pertinente que
os levassem a construir seus próprios conhecimentos.
Esse experimento foi iniciado na segunda jornada, mas foi posto em
suspensão pelo fato de os alunos não estarem suficientemente preparados para
fazer esse tipo de composição textual. Naquele momento, o mais importante era que
eles exercitassem a escrita, se apossassem das palavras e expusessem suas ideias
e pensamentos. Com esta nova jornada, chegou o momento de eles aprenderem a
fazer associações, comparações e abstrações.
Produzir um escrito incorporado pela conexão entre essas duas formas de
pensar deu origem ao que denominei anteriormente, de escrita mestiça, inspirada no
terceiro instruído (SERRES, 1993). A escrita mestiça é aquela instruída por um
conjunto de experiências da linguagem, que se cruzam com aquelas relativas às
primeiras fundações do pensamento dos alunos, aprendizagem da vida, como
também aquelas que incorporam as experiências da aprendizagem escolar, neste
caso, fundadas na Universidade.
A escrita mestiça também pode ser compreendida como uma escrita circular e
espiralante, que se constrói a partir de um movimento contínuo, gerador de sentidos,
capaz de se remeter a si mesma num círculo recursivo de ideias, pensamentos,
sentimentos e significações, provocando o aflorescimento de sensibilidades e
criatividades. Trata-se de uma escrita que representa a fundação de uma nova forma
de compreender a vida, sem negar as origens fundantes das condições de
aprendizagens dos aprendentes. Em outras palavras, é a escrita da práxis, que une
dois sentidos: o cognitivo e o vital – e reúne os dois operadores: pensamento
sensível e pensamento científico. Um processo que se construiu entre e nas
fronteiras do cognitivo, do sensível, do pensamento selvagem e do domesticado
168
(LEVI-STRAUSS), atravessou as fronteiras das emoções e sentimentos e repousou
no coração da consciência, lugar de autoformação dos sujeitos, que são instruídos
pelas conjunções de conhecimentos aplicados por eles mesmos e a si mesmos.
A circularidade das escritas dos aprendentes revelou a recursividade de seus
pensamentos e apresentou os seus processos de apropriação do conhecimento,
bem como de seu o manuseio. Mostrou, ainda, que suas linguagens se constituem a
partir da relação com o meio em que interagem, assumindo suas dimensões
culturais, sociais, econômicas e políticas. Nela residem também aspectos memoriais
e históricos. É o que veremos no texto de Sol Miriti-Tapuya (Registro de campo II.
2007, p.7):
Aqui em nosso município temos 22 etnias sendo que, das 22 etnias cada uma tem uma língua diferente, aonde só três línguas são faladas, quantos as outras línguas já estão em extinção. TUKANO, BANIWA E BARÉ, são as línguas mais fortes, que temos hoje e devemos conservar resgatando e repassando para nossas crianças, para não perderem sua filosofia original. “O Brasil é uma nação constituída por grande variedade de grupos étnicos, com histórias, saberes, cultura e, na maioria das situações, línguas próprias”. (RCNE/indìgenas 2005, P.22). (sic). O professor da sala que estagiei, entregava para todos os alunos ler, textos mimeografados. As crianças liam em conjunto, a maior parte das crianças não sabia ler, depois ele pedia que a interpretassem o pequeno texto lido por eles. A maior parte das crianças não sabia ler, e a grande dificuldade foi à interpretação, na escrita e na leitura, (algumas crianças conseguem responder e outras não). (sic). Nas escolas onde estagiei, o meu foco foi sobre a dificuldade na leitura e a escrita, meu objetivo é trabalhar muita leitura, e interpretação de texto,
ditado de palavras, e pedir que crie historinhas com seu próprio texto. (sic).
Sol Miriti-Tapuya põe em destaque a importância das línguas maternas no
currículo escolar e entende essa inclusão como um meio pelo qual se assegura a
cultura dos povos indìgenas e, palavras dela, “para não perderem sua filosofia
original”. Essa ideia se apoia no Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNEI), que norteará sua reflexão teórica sobre o seu objeto de
pesquisa. Seguindo seu pensamento:
E observei que as crianças na sua maioria eram indígenas, de várias etnias falantes de suas línguas diferentes. Outras só entendiam, não falavam, entre eles. Como essas crianças nas suas casas são acostumadas a ouvir os pais falarem com a sua própria língua, eles sentia muita dificuldade na escola sendo ensinadas pelos professores não índios. (sic) Pelo que observei as pessoas tem muito preconceito pela educação escolar indígena diferenciada, elas acham que com esse processo de educação, os povos indígenas vão voltar a ser como eram antes, como por exemplo: andar sem roupa e falar só a língua indígena, muitos não gostam, e ficam criticando. (sic). (Idem)
169
Para Sol, as maiores dificuldades de aprendizagem das crianças indígenas na
escola do branco está na falta de domínio da língua portuguesa, o que dificulta
aprendizagem da leitura e da escrita. Outro fator que ela apresenta para essa
dificuldade está na própria ideia da Escola Indígena Diferenciada, vista de forma
preconceituosa pela sociedade, que a compreende como um retorno aos antigos
hábitos indígenas, negando suas línguas originais. É o que ela afirma:
A maior dificuldade dos alunos é na língua portuguesa, que domina a educação escolar, como a maior parte dos alunos vem das comunidades, onde fala a língua de cada etnia, o professor deve constituir na seleção de ideias nos conteúdos, de maneira diferente de acordo com a experiência que pode obter. Tem que partir do seu conhecimento que adquiriu sem aguardar que um dia as mudanças venham acontecer. O professor deve cobrar muita leitura e escrita dos aprendentes. “É sua também a tarefa de refletir criticamente e de buscar estratégias para promover a interação dos diversos tipos de conhecimento que se apresentam e se entrelaçam no processo escolar”. (GRUPIONE, 2004, p.43). Mesmo sendo na escola de branco, os professores devem impor a realidade dos povos indígena para que as crianças deixem de ter vergonha, e sempre trabalhando sobre conhecimentos culturais da região como: contar historia sobre lendas da cidade, impondo sobre comidas típicas da região, ensinando os aprendentes a história do nosso povo para dar continuidade a nossa cultura.
A constituição federal votada e aprovada, em 05 de outubro de 1988,
assegurou aos povos indígenas do Brasil o direito à educação escolar
diferenciada, reconhecendo a legitimidade da utilização de suas
línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem (art.210),
Bem como a proteção à suas manifestações culturais (art. 215). Da
mesma forma, reconheceu (art. 232) a autonomia de suas
comunidades e organizações para ingressar, em juízo, em defesa de
seus direitos e interesses coletivos, á revelia da FUNAI. (RAMOS,
2007, p. 35).
Para a aprendente, essas dificuldades poderiam ser minimizadas se os
professores mudassem suas práticas de ensino, valorizando o conhecimento
indígena, incentivando os aprendentes a falar suas línguas maternas, bem como
acreditassem nos saberes de suas experiências. Além disso, ela faz uma reflexão
sobre a função da escola indígena no passado e suas intenções no presente.
Esse direito ao uso da língua materna e do processo próprio de aprendizagem ensejou mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que menciona pela primeira vez de forma explícita, a educação escolar específica para os povos indígenas.
Além do reconhecimento dos direitos indígenas de manter sua identidade cultural, a constituição garante, no artigo 210, o uso de suas línguas maternas e processo próprio de aprendizagem, cabendo ao estado proteger as manifestações das culturas indígenas.
(GRUPIONI, 2004, p.48).
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O que se pretendia era educar o índio para deixar de ser índio, aproveitando a religião para ensinar os indígenas a falarem o português em forma de civilização, construindo colégio salesiano de meninos e meninas. Objetivo da escola era fazer-lo os indígenas deixar de suas línguas, suas crenças e suas culturas, incorporando os costumes e obrigatoriamente o uso da língua português como língua oficial, pois deixavam os índios envergonhados. Hoje na minha reflexão, as crianças vêm de suas comunidades, são falantes de suas línguas indígenas, e quando chegam à escola de branco são obrigados a falar o português. Até no momento durante o estagio não observei nenhuma criança que veio do interior sabendo escrever sua língua indígena, a maioria escreve o português. A educação escolar indígena é muito ressente, agora que estar engatiando devagar, pois vamos chegar lar é o que nos indígenas queremos é respeito com os nossos direitos. Durante cinco séculos, os povos indígenas esperaram por essa aprovação constitucional, para eles foi uma opressão, estar registrada na memória desses povos indígenas. A escola de branco foi como uma devoradora de identidade desses povos. Na Escola Estadual indígena Nazaré, o meu foco foi nos professores, que continuam sendo tradicionais, passando o que aprenderam ou que sabem alguns professores utilizam o plano de aula outros não, vão diretamente aos livros, a professora da 2ª série do segundo ciclo, na qual estagiei é formada no Proformar, ela propõem a cultura, incentivando os aprendentes a valorizar sua identidade cultural
Discuti-se, ainda, a formação de professores indígena, que pressupõem a observância de um currículo diferenciado, permitindo atender às novas diretrizes para a escola indígena. Contempla a construção do currículo e sua flexibilização, devendo ser uma missão a ser cumprido pelos professores que em articulação com a comunidade indígena submeterão tal documento o aprovado dos respectivos órgãos normativo do sistema de ensino. (RAMOS, 2007, p.38).
Pelo que observei, em nosso município de São Gabriel da Cachoeira, as escolas estão vinculadas e administradas pelo município, com ajuda do estado, já está sendo implantada exclusivamente, a educação escolar indígena. A secretaria municipal colabora com os professores das comunidades, que estão atuando dentro de sala de aula, utilizando a orientação do MEC, para educação indígena diferenciada, com a participação de todos os membros das comunidades, fortalecendo as organizações indígenas existente, acompanhando este processo educativo para fortalecer e assegurar os direitos indígenas.
Observa-se nos seus escritos que as propostas teóricas para Educação
Escolar Indígena estão muito distantes das práticas escolares. Mostra a presença do
poder público na elaboração desse modelo de escola e o papel das políticas
públicas voltadas para esse processo, mas indica as possibilidades de mudanças
que leve as populações indígenas se fortalecerem por meio da escola.
A educação escolar, sempre foi determinada pelo poder político em nosso país. Mais isso mudou os indígenas têm todo direito de ser critico, e dar um passo para iniciativa e pôr em prática nosso conhecimento cultural, estruturando o funcionamento das escolas indígenas, reconhecendo e fixando as diretrizes curriculares. “Ás secretarias estaduais competem ofertar e executar a educação escolar indígena seja diretamente ou por meio de colaboração com o município. (RAMOS, 2007, p.63).
171
A educação indígena tem o objetivo de desenvolver e dar iniciativas que possam subsidiar a restauração do sistema escolar indígena na região do Rio Negro, com base em reivindicação dos professores indígenas valorizando a língua e cultura desses povos, junto com os membros da comunidade indígenas
É possível realizar um trabalho educacional conjunto e integradamente com os povos indígenas, buscando estratégias de um trabalho participativo onde organização e a solidariedade caminhe juntas, fazendo com esse povos sejam os autores e os sujeito do seu próprio desenvolvimento e não um objeto de uma ação externa como população alvo ou meta de um programa político de qualquer governo. O núcleo central dessa proposta é que a educação escolar indígena no Estado do Amazonas promova uma mudança de mentalidade sobre o índio, na sociedade e garanta a participação dos povos indígenas em todas as fases do seu processo educacional,
considerando em suas peculiaridades próprias. (RAMOS, 2007, p. 63).
Nas comunidades das escolas Tuyuka, Baniwa e Tariano, já estão dando procedimento com a valorização da língua das três etnias, as elaborações do currículo é traduzido pra essas línguas, seu ensino é diferente da educação da escola de branco, vem sendo ensinado com as próprias línguas com o apoio da Secretaria de Educação de seu município, possibilitando para melhoria de suas condições de vida, e fortalecendo seus direito quanto à educação escolar indígenas dessas comunidades, as suas proposições curriculares são: criação de peixes, como plantar na horta e medicina, tudo parra sua sobrevivência e melhora da saúde. Aqui no município de são Gabriel da Cachoeira tem um colégio de freiras, pela minha observação, ainda obrigam os aprendentes de outra igreja a participar dos encontros evangélicos, a escola não é local de rezar, isso atrapalha muito, faz o professor atrasar na sua aula. Observa-se nos livros didáticos, a permanência da ideia de que o Brasil foi descoberto, o livro da sala onde estagiei continuava com essa história, hoje o professor deve mostrar para as crianças, antes de Colombo e Cabral chegar já existia índios nessa terra, e tinha dono isso deve ser descrito e explicado de que o Brasil foi invadido, e até hoje continua essa invasão, mais os povos indígenas não perderam a guerra continuam lutando para que um dia possam ter autonomia, o aluno tem que se inteira na historia real do nosso País.
Sol acredita que as escolas indígenas precisam assumir a cultura indígena
como ponto de partida e de chegada para o ensino e a aprendizagem. Para ela, o
currículo deve ser o principal instrumento dessas mudanças, pois vê nas práticas
pedagógicas dos professores aspectos tradicionais, os quais fazem uso de um livro
didático desatualizado, que não apresenta o outro lado da história do Brasil e dos
povos indígenas. Essa crítica ao modelo de escola tradicional deverá ser superada
por uma perspectiva de escola que prepara o aluno para a vida, para que aprenda a
contextualizar o mundo a partir de suas próprias referencias culturais. Sua visão de
educação se pauta na ideia da inseparabilidade da natureza e da cultura, que
representa o modo de viver, de sentir e de pensar dos povos indígenas. A
aprendizagem estaria implicada no movimento cotidiano, num aprender-fazer a partir
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do saber-fazer do Outro. Para a criança na família, os pais são as referências desse
aprendizado, que se traduz pelo e no corpo. Na escola, os professores tornam-se
suas novas referências, e é no corpo também que ela, a aprendizagem, se constrói.
Dependendo dos movimentos do corpo, ela pode libertar ou aprisionar. Um olhar
terno produz sentimentos de abertura e de respeito, um olhar severo produz
sentimentos de medo e fechamento.
No passado as crianças indígenas em suas comunidades eram preparadas desde crianças para enfrentar a vida na floresta, o processo de ensino e de conhecimentos era transmitido pelos pais e mães, tios e avós pela convivência do seu dia a dia. Antigamente era essa forma de educação, desde criança ela já vinha observando a movimentação cotidiana dos pais. A partir de que tiveram contato com os brancos, tudo começou a modificar, para os indígenas tornou-se difícil para receber a educação dos brancos, tiveram que deixar de falar suas línguas e exercer seus costumes e suas culturas. Porem, hoje está recuperando o que estava quase perdido, podemos aprender a conhecer os códigos e símbolos dos brancos para ter melhor contato com a sociedade. Foi com toda essa história que surgiu a educação escolar indígena. Para esses povos indígenas a escola durante cinco séculos foi uma opressão, não foi fácil chegar até aonde chegamos, graças à política educacional e o esforço político das associações indígenas, apoiadas por várias entidades da sociedade civil. Antes o índio só tinha história, hoje é diferente, já esta adquirida sua presença na mídia para reivindicar os direitos de suas línguas e seus costumes e educacionais. Essa mudança, não vai acontecer da noite para o dia, tem que ter muito diálogo, e muitas ideias para pôr em procedimento esse processo escolar indígenas, pela minha observação nas comunidades já estão sendo construídas escolas com estrutura indígenas, todo isso para garantir segurança da educação escolar indígena diferenciada, sendo o condutor o próprio professor indígena que já obtém cursos de magistério indígena, para levar esse procedimento de educação adiante fugindo do antigo paradigma.
Durante a década de 80 e 90, um conjunto de medidas legais fez com que as questões que envolvem a Educação Escola Indígena passassem a fazer parte do rol de responsabilidade do Estado e, hoje, vários dos programas de formações de professores indígenas são geridos por secretarias estaduais de educação. (MAHER. 2006, p.24).
Na escola em que estagiei o ensino era muito restrito, a maioria dos professores apesar de serem indígenas, utilizavam o plano de aula tradicional, professor com sua cultura indígena deve-se constituir uma seleção com ideias no conteúdo valorizando seus objetivos, para formação de aprendentes, gerando forma de consciência critica, construindo seu próprio calendário escolar culturalmente especifica, e preparar os aprendentes para um grande desafio.
As ideias escritas por Sol apresentam situações do cotidiano dos povos
indígenas, mas revelam suas condições existenciais de natureza política, nas quais
ela expressa a partir do uso de expressões como “espaços jurìdicos de aceitação da
diversidade étnica”. Nesse caso, a escola representa esse novo espaço de luta.
173
Obviamente que essa expressão é tomada dos discursos políticos dos indígenas e é
encontrada no próprio RCNEI.
Os povos indígenas estão tendo esforço para projetar uma nova educação escolar indígena, que será concretizada e fundamentada nos currículos efetivando uma educação especifica e diferenciada, a afirmação da possibilidade desses povos fortalecerem sua identidade e praticando e abrindo novos espaços jurídicos de aceitação da diversidade étnica e cultural representadas por eles, antes eram desvalorizada, hoje são reconhecidas e valorizadas abrindo espaço para aceitação de diferenças e pluralismo. (MEC.RCNEI, 1998)
A jornada mítica da conexão efetuada por Sol atingiu níveis de reflexão e
criticidade de grande pertinência educacional. Ao apontar a falta de capacitação dos
professores para atuarem nesta nova modalidade de ensino, aponta para o
investimento na formação continuada a partir de cursos voltados principalmente para
a metodologia de ensino, planejamento, currículo e avaliação, como assegura a Lei
de Diretrizes de Bases Educacionais 93/94/96.
Os professores das duas Escolas estaduais indígenas onde estagiei, pude focalizar a falta de capacitação e apoio, para esse prosseguimento de educação indígena nessas escolas, não estão sendo realizados os conhecimentos culturais, como pede as Leis Diretrizes. Ao desenvolver seu trabalho nas escolas indígenas, os professores devem diariamente fazer escolha e tomar decisões que exigem ações de planejamento, registro e avaliação. Para termos uma educação especifica e diferenciada, o professor tem que pôr em prática seus conhecimentos, buscando soluções abrangentes conquistando autonomia curricular e administrativa, reivindicando com as organizações, seus objetivos próprios de conteúdos metodológicos, esse processo de construção deve ser permanente, são os mais velhos que estão em extinção.
A inclusão das escolas indígenas nos sistemas oficiais de ensino em todo o país é muito recente e ainda se encontra em difícil processo de construção, enfrentando problema e buscando soluções condizentes com o direito constitucional a uma educação especifica e diferenciada. (RCNE/indígenas, 2005, p. 39).
Na minha observação, a dificuldade dos professores, tanto indígenas como não indígenas, é a elaboração de currículo, mesmo tendo o magistério não possuem os conhecimentos indígenas, isso impede o desenvolvimento das educações indígenas, o professor deve proporcionar interesses da realidade sociocultural dos aprendentes.
A crítica ao currículo realizado na escola se fundamenta na perspectiva de
que este deve ser constituído de conteúdos oriundos da cultura dos povos indígenas
e a partir das necessidades da comunidade. A comunidade junto com a escola deve
decidir sobre qual o conhecimento necessário a escola deve ensinar. No entanto, o
que ela verifica na prática é que não existe um currículo diferenciado nas escolas
174
indígenas da cidade de São Gabriel da Cachoeira, este se constitui como uma cópia
das escolas oficiais.
Os currículos das escolas indígenas não podem ser uma cópia das escolas oficiais, eles devem ser elaborados pelos professores, junto com os pais e lideranças de suas comunidades, de acordo com sua qualidade que caracteriza a especificidade de planejamento curricular das escolas indígenas, trabalhando com método de individualidade de cada professor indígena, uma grande parte deles domina conhecimentos próprios de sua cultura, e tem precário conhecimento da língua portuguesa.
Todas essas decisões acabam por desenhar um determinado currículo, ou seja, acabam por organizar e dar uma direção a experiência educativa vivida pelo aluno e pelos professores, em sua escola, num período de tempo, e essas decisões vai sofrendo mudanças de acordo com as necessidades diversas que vão surgindo na comunidade educativa. (RCNE/indígenas, 2005, p.57).
Todos nós sabemos que a escola é muito importante para os indígenas, é o local aonde o professor pesquisar junto com os aprendentes adquirindo conhecimentos universais, onde o aluno pode aprender a ler e escrever para inserir na sociedade dos brancos.
A construção de uma pedagogia escolar indígena vai ocorrendo com o trabalho de cada professor, em conjunto com sua comunidade educativa, a parte de uma atitude de curiosidade que resulta em processo de investigação e criação. (RCNE/indígenas, 2005, p.65).
(...)
Avaliação de um aluno, o professor deve ter uma reflexão sobre cada individuo, observando se ele esta interagindo ou participando junto com os colegas, os valores e conhecimento desenvolvido nos trabalhos passado pelo professor, Identificando o avanço alcançado pelo aluno, observando a dificuldade para ser trabalhado. “O professor tem que compreender o aluno e avaliar sensivelmente. E sempre ouvir no que o aluno quer falar. Utilizando coisas da sua própria vivência.” (RCNE/indìgena, 2005, p.77). Em nosso município os professores precisam de curso especialização, para possibilitar nos procedimento metodológico, que serão utilizados e produzidos pelo docente, que ainda sentem muita dificuldade na parte de educação indígena especializada, onde utilizam muito livros didáticos produzidos pelo branco.
Precisamos em nosso curso de formação, de mais informação em geral da política branca. Precisamos também fortalecer a organização dos professores indígenas para que, juntos, possam fazer suas avaliações de trabalho e das dificuldades que enfrentam. Só assim ganhamos autonomia. (RCNE/indígena, 2005, p.81).
Todas as disciplinas devem ser pesquisadas de acordo com a cultura, se o professor não souber das origens indígenas deve procurar os mais velhos, para mais informações tem que impor sobre práticas a iniciação da pesquisa independente, através da participação do desenvolvimento do trabalho de investigação. “Para isso, há que aprender a fazer levantamentos, sistematizar e analisar as informações reunidas, interpretar esses conhecimentos e promover pesquisa como processo de ensino e aprendizagem na escola”. (RCNE/indìgenas, 2005, p.81). Na escola onde estagiei, os materiais didáticos utilizados pela professora, era tudo da escola de branco, em nenhum momento observei nem que sejam cartas, escritas ou desenhos com características indígenas. Professor deve ser pesquisador de vários assuntos de interesse da escola que produz conhecimentos em vez de utilizar conhecimentos produzidos por outras pessoas, por isso tem que haver levantamentos, sistematizados e
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analisados com informações reunidas, deve-se interpretar esses conhecimentos e promover a pesquisa como processo de ensino e aprendizagem na escola.
A produção de material didático-pedagógicos: pode ser resultado das ações de registros das atividades anteriores, como reflexões sobre a prática, a iniciação à pesquisa e o estudo independente, que ganham, assim, uma função educacional e social, posta a serviço do trabalho docente. (RCNE/indígena 2005, p.82).
Nas escolas indígenas já existe esta recuperação de língua, aqui em nosso município, a maioria é falante de línguas indígenas, principalmente quem mora no interior. A escola já foi à culpada de enfraquecimento da língua indígena, hoje ela quer ajudar a recuperar essa perda contribuindo para que não desapareça, isso possibilita que os aprendentes indígenas usufruam dos direitos lingüísticos e desenvolvam atitude positivas no nível oral e escrito.
Aprender e saber usar a Língua Portuguesa na escola é um dos meios de que as sociedades indígenas dispõem para interpretar e compreender as bases legais que orientam vida no país, sobretudo aquelas que dizem respeito aos direitos dos povos indígenas. (RCNE/indígenas 2005, p.121).
Essa dificuldade é porque o indígena não cresce falando o português, ele vem aprender com o pai e a mãe, e os pai já tem dificuldade de pronunciar, a criança aprende no ritmo que eles falam, o indígena tem um sotaque diferente de falar o português, e por este motivo que há dificuldade na escrita e na leitura, o aluno indígena tem uma grande possibilidade de aprender a ler e escrever com o português e se expressar melhor, e ter um conhecimento garantindo para que tenha acesso ao português padrão oral e escrito. “Outra função da escola é desenvolver nos aprendentes a competência necessária para que eles possam entender e falar sobre os novos conhecimentos introduzidos pelo próprio sistema escolar”. (RCNE, 2005, p.124). (...) O professor deve trabalhar a metodologia e o desenvolvimento da linguagem oral dos aprendentes, para uma boa expressão, é importante que o professor discuta sobre a diferente forma de falar oralmente dentro de sala de aula. No caso na escola em que estagiei o professor trabalha muito com ditados. Aqui na cidade em São Gabriel a uma parte dos aprendentes, principalmente quem nasceu na cidade, fala português, mas maior parte é vinda do interior, falantes de sua língua natural, para alguns dificulta muito o aprendizado, uns se entrosam facilmente sem dificuldade de aprender, quando o aluno já foi alfabetizado pelo português é que facilita mais o aprendizado.(...) (SOL, 2007)
O importante nesta citação de Sol, apesar de longa, é a forma como ela fez
uso da teoria sobre a Educação Escolar Indígena Diferenciada e, principalmente,
como a encaixou dentro da realidade observada, ou melhor, dentro de seu objeto de
pesquisa. Esse encaixe teórico mostra a circularidade de suas ideias, o movimento
que faz entre o que viu, sentiu, leu e desejou, mostrando o devir de sua produção
textual, resultante de sua construção de conhecimento.
Essa mistura de pensamentos, ideias, conceitos, sentimentos como resultado
de suas percepções do mundo vivido, observado e experienciado foi fundado nas
primeiras jornadas, que tem no corpo os primeiros elementos de suas composições
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textuais: o sentir-pensar. Disso resultou uma escrita etnopoética, orientada pelo
espírito científico e poético, entendido como a assimilação do mundo pela
linguagem. Eles tiveram primeiro que sentir o objeto, olhar para eles com olhos de
descobertas, de curiosidade, para depois partirem para conexões mais profundas.
Portanto, educar seus pensamentos, para que, posteriormente, pudessem organizá-
los e com isso partirem para a escrita do pensar, foi uma via de acesso aos seus
sistemas de referências culturais.
Inicialmente, suas escritas eram difíceis de ser produzidas, pois, sob o ponto
de vista tecnológico, eram muitos frágeis, visto que não dominavam os códigos
linguísticos da língua portuguesa efetivamente, impedindo-os de expressar seus
pensamentos, suas ideias em gráficos escritos. Com o tempo, essa tecnologia
passou se ingressar no cotidiano dos aprendentes, fazendo parte de suas trajetórias
acadêmicas. O caderno de campo, como exercício contínuo da escrita da realidade,
foi, sem dúvida, a grande ferramenta que os ajudou a avançarem nesse aspecto.
Para Edgar Morin, “o ato de conhecimento, ao mesmo tempo biológico,
cerebral, espiritual, lógico, linguístico, cultural, social, histórico, faz com que o
conhecimento não possa ser dissociado da vida humana e da relação social” (1999,
p.26). De certa forma, essa ideia encontra sentido no pensamento de Sol sobre a
importância da língua portuguesa para os indígenas e suas implicações nas relações
com a sociedade dos brancos.
Tudo que podemos ler, e que temos direito nesta vida na sociedade, todos os tipos de documentos que utilizamos são escritos em português, como: títulos, registros e estatutos, são documentos oficiais que é utilizado na sociedade brasileira, onde o indígena tem o direito de conhecer o funcionamento da sociedade envolvente. (SOL, Miriti-tapuia. Relatório de Estágio III)
Sol avançou na escrita, apesar de esta apresentar erros ortográficos. Porém,
esses erros revelam os entre-lugares da escrita e possuem as marcas do
mimetismo. A falta de pontuação, os excessos de vírgulas e a falta de ligação entre
as frases revelam suas dificuldades em escrever. As citações aparecem como
complemento de seus pensamentos e, muitas vezes, não fazem ligação entre si.
Contudo, ela consegue assimilar as ideias dos autores, mesmo sem apresentá-las, e
fazer delas reflexões pertinentes sobre o real e sobre o imaginário da escola
indígena diferenciada.
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Sol usou a teoria como complemento de seu pensamento, mas encontramos
nos escritos de outros aprendentes uma outra forma de conexão. É o caso de Rosi
Tukano (2007).
O professor deve ter boa formação para lecionar na sala de aula tanto nas escolas urbanas e nas rurais, colocando em prática os métodos mais facilitadores para os alunos adquirir aprendizagem de forma simples e prazerosa. Deve procurar pronunciar palavras simples na sua explicação ao repassar os conteúdos para seus alunos de acordo com faixa etária que as crianças encontram nas determinadas séries. Muitas vezes percebi durante minhas observações que os próprios professores dificultam a aprendizagem por falta de criatividade no momento de exploração dos assuntos, levando o aluno a ter medo de tirar as dúvidas a se entrosar com os colegas da sala. Na minha opinião o método tradicional que a maioria dos professores utilizam não ajuda bastante para o desenvolvimento cognitivo das crianças, por causa que os alunos quase não tem espaço para discutir outros assuntos existentes na realidade. Essas aulas são muito cansativas, os aprendentes só fazem copiar do quadro e realizar atividades o tempo todo na sala de aula. Priorizando mais sobre o tema intitulado, dificuldade da leitura e da escrita, especificamente dos aprendentes da 2ª série. Segundo Souza, Fátima Rosane da Costa.
A aprendizagem ocorre mediante processos de assimilação e acomodação, ou seja, a criança ao agir sobre o meio, na tentativa de satisfazer suas necessidades (assimilação) muitas vezes encontra obstáculos que forçam sua transformação, ocorrendo assim uma adaptação ao meio (acomodação), resultando em processo de aprendizagem (PIAGETapud SOUZA et al, 2003, p.52)
Interpretando essa ideia, de acordo com a realidade observada na sala de aula, os aprendentes assimilam os conhecimentos através dos métodos que os professores utilizam para repassar para os aprendentes, porém esses métodos deixam os aprendentes cansativos, devido que todos os dias são utilizados os mesmos métodos, deixando os aprendentes acomodados e começam a conversar e brincar na sala de aula. Praticamente não querem copiar atividades colocadas no quadro pelo professor. Nessas instancias, o professor deve procurar fazer uma aula dinâmica, ou seja, fazer brincadeiras, ler historinhas que tenham ilustrações para despertar o interesse do aluno pela leitura. O ponto importante destacado, através da minha observação que dificulta o aluno na leitura e na escrita é o quadro liso. As palavras nele escritas mal aparecem, posição das carteiras onde o aluno sentem preguiça de copiar porque recebem dos professores atividades mimeografadas, a falta de acompanhamento dos pais nos deveres de casa, muitas faltas na freqüência, onde o aluno perde o conteúdo de determinadas aulas. Os aprendentes de onze anos de idade na segunda série não sabem ler, por isso copiam as palavras trocando um determinada letra por outra. Durante o meu estágio apliquei um questionário com várias perguntas, na qual duas questões eram: Você gosta de sua escolar? Qual a matéria preferida? Através deste questionário pude observar que os aprendentes gostam da escola, porque a escola é um lugar onde adquirem vários conhecimentos. A maioria não gosta da matéria português, isso representa uma dificuldade para os aprendentes e é preciso que o professor saiba trabalhar com as diferenças de cada aluno para que possa adaptar a transformação. Segundo Carla Cristina da Silva Nazareth.
A atividade intelectual não pode ser separada do funcionamento total do organismo. Assim sendo ele considerou o funcionamento
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intelectual como uma forma especial de atividade biológica (1952). Ambas as atividades intelectual e biológica são partes do processo global através do qual o homem se adapta ao meio transformando os elementos assimilados bem como tornando-os parte da estrutura do organismo, e organiza as experiências, possibilitando o ajuste e acomodação deste organismo aos elementos incorporados (PIAGET apud NAZARETH et al, 2005, p.12)
Outra dificuldade observada na aprendizagem da leitura e escrita dos aprendentes é a diversidade das culturas em línguas, ou seja, tem alunos que falam a língua nhegatú, tukano e outros. Quando chegam à sala de aula, onde todos falam a língua portuguesa, ficam com medo de se entrosar com colegas, principalmente para tirar dúvidas ao professor. Neste caso o professor deve estar preparado para lhe dar com este tipo de situação, falar pelo menos uma língua para mediar o aluno na sua aprendizagem, infelizmente isso ainda não acontece na sala de aula, por mais que tenham professores que falam essas línguas. Para Nazareth Carla Cristina da Silva Vigostky, “defende a ideia de que não há um desenvolvimento pronto e previsto dentro do ser humano que vai se atualizando conforme o tempo passa e recebe influências externas (VIGOSTKY apud NAZARETH, Ano 2005, p.33)
Observa-se, nos escritos de Rosi, a tentativa de traduzir a teoria para a
realidade observada. Ela usa a teoria como instrumento de validação do objeto de
pesquisa. Faz crítica às práticas pedagógicas dos professores valendo-se da teoria.
A teoria legítima sua visão sobre o real, mas o real não dialoga com a teoria, mas é
traduzido por ela. Ao mesmo tempo em que apresenta os conceitos, estes se
perdem no campo de sua análise. Nesse caso, sua análise sobrepõe à teoria, pois é
por meio dela que expõe seus pensamentos, suas ideias e suas intenções. A teoria
é usada como artefato de seus pensamentos, é um dado concreto do real, que se
destrói na experiência dos professores. As citações são retiradas sem conexões com
o pensamento do autor. Os autores com quais dialoga fazem parte de duas
coletâneas elaboradas para as disciplinas Fundamentos da Educação Infantil e
Psicologia e Prática da Educação Infantil II do curso Normal Superior que são
produzidas pelos professores das disciplinas.
O que parece ocorrer na produção textual dessa aprendente é que ela leu a
coletânea, fez a reflexão e retirou dela citações que precedem suas compreensões.
É como se o entendimento que ela teve da leitura não precisasse ser respaldado.
Ela traduz o pensamento dos autores, mas não consegue identificá-los na escrita.
No entanto, como garantia dessa tradução ela faz as citações. Logo, as citações são
usadas como recursos cognitivos e imaginários do fazer ciência. Não importa o que
diz a citação, mas o porquê dela. E elas aparecem para legitimar a sua escrita
científica. Se a interpretação e a tradução dos conceitos obedecem ou não ao
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pensamento do autor referenciado por ela, não cabe aqui a discussão, trata-se
apenas de apontar como estas foram construídas e de que forma operam em seu
pensamento.
Nos escritos do aprendente Ludi Tariana, a apropriação teórica obedece
outras regras do pensamento. Nela, os conceitos servem para dar legitimidade ao
seu pensamento. Ele primeiramente apresenta suas impressões sobre a escola
indígena diferenciada, expressa sua visão do que seria o ensino de matemática a
partir das práticas culturais dos índios, bem como delineia uma proposta de
metodológica para o ensino intercultural. Os conceitos servem de base para aquilo
que acredita. Talvez essa escrita do aluno seja mais próxima de um pensamento
intercultural.
Com o trabalho diário o aluno vai desenvolvendo sua capacidade com sua experiência e conhecimento aplicando matemática, arrancando mandioca, macaxeira, cortando maniva para plantio, colhendo pimenta, milho, ucuquí, Wacú, abiu e outros. Com esta atividade de trabalho cotidiano vai aprender calcular matemática, e resolução de problemas é um sistema de organizar conhecimentos, também é o hábito da raça indígena de calcular peso e quantidade de colocar no aturá, e no balaio, no urutu e a massa de mandioca no tipiti, quando carrega lenha,em fim no momento de carregar aturá cheio de objetos de acordo. Nesse processo é preciso saber fazer cálculos mentais. „Grande partes das crianças do nosso país, em seu dia-a- dia utiliza o cálculo mental para resolver situações concretas.” (CENTRION, 2002, p.328) Na aula de matemática a aprendizagem do aluno vai ser aplicada de acordo com sua capacidade, saber e entender a dificuldade de cada um sem ter diferença de raça e de cor, precisa fazer o acordo com aluno para aproveitar máximo possível o material concreto trazido pelo discente, é um processo principal de aprendizagem com diversidade cultural, é o momento do desenvolvimento individual, precisa organizar o conhecimento com certos materiais exclusivos desta área norteando ao aprendiz como resolver as operações de matemática como analisa, (Costa, 2005, p. 35). “O uso do material concreto na dinâmica diária determinará a direção dada a trabalho no processo de ensino aprendizagem voltada para a compreensão, desenvolvimento e aprofundamento das formas do pensamento do aluno.” (sic). O não letrado com sua experiência diária e prática já valorizava dentro da cultura indígena a matemática no momento de organização do trabalho, para fazer urutu com talo de aruma separava por peças formando impares, para um fazer um tipiti o nativo colocava no chão a peça de arumã formando pares, o mesmo processo acontece na fabricação de abano formam só os pares etc. Esta experiência na sala de aula com materiais concretos provavelmente vai ajudando para aprendizagem dos números pares e impares adição e subtração, a base é o aluno conhecer o processo com os materiais, só depois deve passar para abstrato. A matemática deve ser criada pelo homem diariamente dentro de casa no momento de repartir beiju, peixe, carne de um animal de caça e outros como afirma, (Monteiro & Júnior, 2001, p. 31). “É matemática esta presente em culturas indìgenas e em grupos sem escolarização.” importante perceber que esse caráter empirista da‟‟. (sic).
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O ser humano com sua inteligência inventou vários tipos de desenhos nos trabalhos diários como fabricação de cestaria e da tecelagem, para mostrar a importância do trabalho imprimiu pintura corporal com vários tipos de desenhos significativos, caminho de formigas, galhos de pimentas, triângulos, sinais maior que menor que do meio marcam uma bolinha, perninha de gafanhoto e estrelinha. Estes tipos de desenhos podem ajudar na aprendizagem de matemática nas séries iniciais na aula prática sala de aula como analisa, “Este conhecimento pode estar expresso nas formas diferenciadas de conceber o espaço; nos padrões geométricos da tecelagem, cestaria ou pintura corporal.” (BRASIL, 1997, p. 161) (sic). O aluno pode aprender matemática traçando duas linhas transversais e dividindo por partes iguais fazendo os grafismos no assento do banco, usando um pequeno delicado pincel feito de capim, e um conjunto de pequenos triângulos feito de arumã dobrado amarrado em sua base por uma leve fibra de tucum, junto com o artesão ao fabricar seu banco, com este modelo vai aprender de contar os números através de desenhos como: banco com desenhos tradicionais, banco pássaro- tesoura, banco da canela de anta, banco do couro da paca e banco maior, do mestre de cerimônia. E também com estes mesmos desenhos podem ser aproveitadas outras disciplinas para poder aprofundar conhecimento de acordo, “Traçam também duas linhas transversais separadas entre si por uns cinco centímetros que dividem a extensão do assento em duas partes mais ou menos iguais.” (BETO, 2003, p.46). (sic). Na sala de aula o orientador deve combinar com os aprendentes de trabalhar matemática de forma diferente preparar flauta-pã (cariço em tucano), aprender de tirar medidas em centímetros, cortar corretamente sem errar, contar quantas peças pode ser amarrado com fio de tucum, tocar flauta com ritmo correto contando os passos tudo isto é uma cultura profissional do professor como analisa, (COSTA, 2007, p.23) “A criatividade deve vir de dentro, e para ser criativo é preciso, também, uma grande doce de estudo e de cultura profissional.” (sic). O professor com sua capacidade, e criatividade deve preparar vários tipos de materiais juntos com os aprendentes aproveitando máximo possível para trabalhar na sala de aula, com a finalidade de explorar melhor o conhecimento, fazendo painéis, depois convidar durante reunião, a comunidade para acompanhar as atividades dos filhos como primeira mostra, o orientador deve ser pesquisador para ajudar aos alunos no momento da dificuldade como afirma, (BONJORNO, 2006, p.4). (sic).
É importante destacar as ideias fundamentais em painéis, os quais, se possível, deve ser confecciona dos pelo próprio aluno, estabelecendo umas cor possibilidade no desenvolvimento da sua aprendizagem.
Na sala de aula o aluno deve aprender junto com o professor construindo casa de bambu ou com outros materiais semelhantes, esta é uma brincadeira cotidiana de uma criança com seus colegas ao redor de casa, no quintal, na praia não existe lugar adequado com esta atividade, deixar o aluno à vontade na construção do seu trabalho, o orientador manda anotar tudo no caderno quantos materiais levam esta construção, e a medida utilizado no momento de colocar caibros, a medida da largura da janela, altura, e largura da porta e a altura, e outros, quando acabar o aluno pode fazer exposição para os colegas, e vai aprendendo para ser autônomo de acordo. Para Piletti, “O professor agiria como um estimulador e orientador da aprendizagem cuja iniciativa principal caberia aos próprios alunos.” (1989, p.30). (sic).
181
Como a aprendizagem de matemática torna importante com materiais concretos ante de entrar abstrato, o orientador junto com os aprendentes podem construir com mologó (é uma madeira leve) triangulo, retângulo, cubos, quadrados, losango, dados, e outros materiais de vários tamanhos para formar conjuntos, unidades, dezenas, centenas e usando medidas anotando no caderno com estes materiais o orientador organiza brincadeiras, e o aluno vai aprender de saber identificar observando objetos concretos, só depois de ter assimilado pode partir para o abstrato vai ter facilidade de aprender a matemática. (sic). Atualmente os aprendentes aprendem com mais velhos o processo de fazer girau catar saúva, com esta atividade vai aprender de formar um triângulo, cortando varas amarrando com cipó, quando saúva sair do buraco na época da tanajura o discente vai aprender contar os números catando um por um e fazendo anotações no caderno, também pode ser aproveitado várias disciplina com esta atividade como afirma, Ghedin (2007, p.45). “As novas gerações aprendiam no cotidiano com experiência dos adultos que eram responsáveis pela condução do processo de aprendizagem.” (sic). O orientador como pesquisador deve aprofundar mais conhecimento fazendo explicação aos aprendentes o desenvolvimento de matemática, com sua capacidade utilizando os materiais, para acompanhar o mundo globalizado o aluno deve conhecer a importância do computador e internet, como o homem atualmente resolve matemática dentro de um segundo quando tem muitos trabalhos em qualquer setor como afirma Bigode “O calculo passou várias fases, das primeiras contagens aos milenares ábacos, até os computadores de uma geração, que fazem bilhões de cálculos em segundos‟‟. (2000, p. 9). (sic). Quando homem nasce comece o mundo e vai conhecendo objetos simbólicos com seu próprio trabalho, o professor juntamente com o aluno precisa aprofundar conhecimento a contagem de números e os quatros operações colocando argumentos na reunião dos pais dos aprendentes, escola diferenciada precisa este tipo de trabalho fazendo comparação os números inventados do branco, o próprio nativo também pode inventar o número de acordo do trabalho realizado como afirma, (Montalvão, 1982. p.112). “As palavras e os objetos encerram grande significados‟‟. (sic). Outra maneira de aprender medir, fazer conta é construção de casas brincando na área livre da escola, cada aluno pode anotar no caderno medidas utilizadas pelo aluno, cabe ao professor planejar bem plano de aula tudo que foi aprendido na aula teórica pode ser colocado como pratica como foi citado acima é um tipo de formação para toda vida do individuo de acordo vivencia do aluno segundo, (Barbosa, 2007. p.118). “Coloca-se como um tipo de formação para toda vida do individuo em idade profissional produtiva‟‟. (sic). Ainda o professor pode preparar materiais utilizando jogos simbólicos de matemática como: adição, subtração, multiplicação, fração na sala de aula ou pode ser feito esta brincadeira fora da sala de aula sentada em circulo acompanhando melhor e que os alunos sintam a vontade que pode facilitar aprendizagem da criança segundo, (Sampaio, 2006. p. 104) “O jogo simbólico inicia-se na criança por volta dos dois anos e encerra-se em torno de sete anos de idade‟‟. (sic).
Percebe-se que, na escrita de Ludi Tariana, não há conexão entre a realidade
observada e os conceitos. Ele não segue a orientação proposta para essa jornada.
Na verdade, ele dar um salto do real para o imaginário. Na próxima jornada veremos
182
um outro salto: do imaginário ao real. Ludi acredita que o conhecimento indígena
pode ter conteúdos de aprendizagens para escola e quer que esses conteúdos
sejam valorizados pelos professores e fará disso uma atitude pedagógica para suas
futuras práticas de docência.
O diálogo com a teoria não expressa uma conexão coerente com a proposta
da formação. Ludi Tariana não sistematiza os conceitos e estes não se coadunam
entre si. Como os escritos da Rosi Tukano, representam pequenos fragmentos das
ideias dos autores, os quais ele não explora no texto. Para o aprendente, o que tem
de estar em evidência é o conhecimento indígena associado ao método do processo
de ensinar e aprender. Significa dizer que esta é uma forma de garantir esse
conhecimento dentro da escola. Ele não contradiz os conceitos, os coloca como
ponto de articulação entre aquilo que acredita e o que pensam os autores.
De certo que a teoria é um caminho científico de explicação da realidade. Mas
é importante lembrar o que diz David Bohm (2008 )sobre a ideia da teoria, segundo
a qual esta deve ser entendida como uma forma de insigth (ou introvisão), ou seja,
um modo de olhar para o mundo, e não uma forma de conhecimento de como ele é,
que não é nem verdadeira nem falsa, mas, antes, clara em certos domínios e
obscura quando estendida além desta.
Clareza de percepção e de pensamento requer, evidentemente, que sejamos cientes de como a nossa experiência é moldada pela visão (clara ou confusa) estabelecida pelas teorias que são implícitas ou explícitas na nossa maneira geral de pensar. Nesse ponto é importante enfatizar que a experiência e o conhecimento representam um único processo, em vez de pensar que o nosso conhecimento é sobre algum tipo de experiência separada (BOHM, 2008, p.22)
Para Bohm, quando olharmos para o mundo por intermédio de nossos
insights teóricos, o conhecimento factual que obteremos será, evidentemente,
moldado e formado por nossas teorias, que não é nunca um conhecimento absoluto,
verdadeiro de como as coisas são.
Deleuze e Guatarri (1992) encaminham essa discussão para o campo dos
conceitos. Para esses autores, o conceito nunca pode ser unilateral, ele sempre
remete a outros conceitos, portanto, seu contorno é sempre irregular, pois não há
conceito frio. Eles são construídos para novas construções. Logo, não há conceito
finito, ele é sempre feito de variações sobre o tema. É sempre impuro. Um ponto de
coincidência, inflexão, juntura, ordenação, entrelaçamento de outros conceitos. É
sempre problemático. Deve-se extrair do conceito aquilo que nos toca. Conceito é
183
sobrevoo, é sempre movente, nunca é definitivo, tem sempre uma ressonância com
outros conceitos. O conceito é um centro de vibração. O importante não é o
conceito, mas a ondulação, a intensidade, o entrelaçamento. Por isso, o pensamento
é sempre uma heterogênese que se faz por meio dos conceitos, pulsões e
sensações.
Uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimento; uma teoria não é uma chegada; é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é uma solução; é a possibilidade de tratar um problema. Em outras palavras, uma teoria só realiza seu papel cognitivo, só ganha vida com pleno emprego da atividade mental dos sujeitos. É essa intervenção do sujeito
que dá ao termo método seu papel indispensável. (MORIN, 2001e, p.333)
Retornando a questão do aluno sobre a relação ciência e teoria, obviamente
que as teorias são operadores cognitivos da ciência, uma atividade organizadora da
mente (MORIN, 2001e). Mas é preciso entendê-la como representações do
pensamento sobre a realidade, o mundo, a vida, ou seja, a ciência é uma
construção. Nesse caso, a ciência do concreto tem no mito um sistema cognitivo de
interpretação da realidade que representam suas ideias, pensamento, sentimentos,
portanto, pode ser vista como uma forma teórica de compreensão do mundo.
Ludi elaborou uma forma de pensar a escola indígena, circulando entre os
dois mundos: o sensível e o científico. Ambos dão sentidos aos seus pensamentos e
significam suas ideias sobre o método de ensinar a matemática a partir da realidade
cultural dos aprendentes indígenas. Como nos lembra Morin, a ciência é uma
atividade de investigação e de pesquisa que gera conhecimento, e este deve ser
entendido não como coisa pura, independente de seus instrumentos e não só de
suas ferramentas materiais, mas também de seus instrumentos mentais que são os
conceitos; a teoria científica é uma atividade organizadora da mente, que implanta
as observações e que implanta, também, o dialogo com o mundo dos fenômenos
(2001e, p.43).
Os aprendentes virão nas teorias um campo de exploração sobre a realidade
observada. As teorias foram consideradas em num dado da realidade, um objeto de
análise sobre o tema de suas pesquisas. Uma experiência de encontro com a
realidade e com a construção do conhecimento sobre a mesma.
Na quinta jornada, mostrarei como a docência foi construída pelos
aprendentes, de que forma as teorias foram inseridas em suas práticas de ensino e
quais ferramentas metodológicas eles construíram para desenvolver suas práticas
184
pedagógicas. Além disso, essa jornada mostrará as contradições do processo de
formação, as ambiguidades das práticas de ensino e de aprendizagem e as
possibilidades de uma educação intercultural orientada por uma atitude
transdisciplinar de ensino.
186
DO SER AO TORNAR-SE
A etapa da experiência da docência foi muito esperada pelos aprendentes e
trouxe muitas expectativas quanto à metodologia a ser usada na sala de aula. Este
era o último Estágio Supervisionado (IV) e chegara o momento da regência de
classe. Do estágio anterior para este, passaram-se cinco meses. Era também o
último período da faculdade. Os aprendentes encontravam-se nervosos, ansiosos e
muito preocupados, pois esta etapa era fundamental para que eles colassem Grau.
Como já foi dito anteriormente, a última etapa do Estágio culminaria com a produção
de uma Monografia de Conclusão de Curso, aliando as atividades da docência com
a prática da pesquisa pedagógica.
Nesse contexto de preparação para a docência e de construção de
monografia, os aprendentes atravessavam um momento de grande tensão. Será
que, enfim, concluíram o curso? Como fazer a monografia? Como aliar docência
com pesquisa na sala de aula? Nos estágios anteriores, os aprendentes cumpriram
com a tarefa de levantar dados, fazer diagnóstico, problematizar o tema escolhido
para pesquisa e fazer estudos teóricos e metodológicos. Neste estágio, eles tiveram
que elaborar um plano pedagógico de caráter de intervenção a partir de seus
projetos de pesquisa.
Essa tarefa foi extremamente difícil tanto para eles quanto para mim, pois
colocar em prática uma proposta pedagógica de ensino e aprendizagem aliada à
experiência da pesquisa pedagógica não é algo simples de desenvolver.
Experienciar docência e pesquisa no campo escolar representa uma tomada de
consciência epistemológica e uma concepção clara da pesquisa pedagógica. Apesar
de termos passado por três estágios e de termos, em certa medida, avançado nesse
processo, esse último estágio foi o momento em que apareceram todas as
contradições inerentes a essa proposta, bem como à própria formação. Foi nesse
momento que as falhas do processo formativo ficaram mais evidentes. Mas também
foi a partir dele que foi possível fazer alguns acertos e, com isso, provocar processos
de mudança no pensamento dos aprendentes.
Com efeito, a aliança entre docência e pesquisa é um grande desafio que
deve fazer parte de todo e qualquer projeto educacional de formação de
professores, mas que, infelizmente, é pouco refletido e/ou compreendido pelos
departamentos dos cursos de licenciaturas. Quase sempre se coloca como problema
187
das ciências da educação e como proposta pedagógica enfrenta um grande
obstáculo: dicotomia entre ensino e pesquisa.
Nessa etapa de formação, a proposta de formação do professor-pesquisador
como novo modelo de formação docente enfrentou um problema de compreensão
epistemológica no que se refere ao conceito de pesquisa científica e pesquisa
pedagógica. Apesar de ambos compreenderem a pesquisa como prática de
investigação e de descoberta, quando se inserem no processo de desenvolvimento
dos projetos, torna-se necessário distinguir a natureza dessas práticas de
investigação. No campo científico, as pesquisas assumem uma elaboração mais
ampla da realidade investigada e seus objetos se complexificam na medida em que
assumem contornos sociais abrangentes. No campo pedagógico, as pesquisas
devem infletir nas práticas pedagógicas focalizadas nos processos de ensino e de
aprendizagem e se complexificam na medida em que assumem contornos sociais de
intervenção pedagógica localizada. Nesse caso, a prática da pesquisa pedagógica é
de natureza social, de intervenção e de transformação e reconstrução das práticas
da docência. Portanto, seu objeto é a docência, e seu objetivo é a re-elaboração
constante das práticas pedagógicas, daí seu caráter de intervenção. Vale ressaltar
que, apesar de sua natureza de intervenção, a pesquisa pedagógica não exclui os
procedimentos científicos, pelo contrário, eles são responsáveis pelo processo de
construção dos projetos de pesquisa dos estagiários. A base metodológica da
pesquisa pedagógica tem grande influência da etnografia, pesquisa do cotidiano e
da pesquisa-ação, o que permite uma efetiva aproximação entre as ciências da
educação e a antropologia. Como vimos, foi esta perspectiva metodológica que
orientou este trabalho de formação do professor pesquisador.
Uma preocupação comum para a maioria dos aprendentes era se saberiam
ensinar os conteúdos de forma objetiva, bem como que estratégias de ensino
usariam para facilitar a aprendizagem. Ouvia-se a toda hora: “professora, eu nunca
dei aula”; ou então: “professora, eu fiz esse curso, mas só depois que eu vi que era
pra ser professor e tem gente aqui que já é professor”. Intrigas entre colegas,
desejos de dar a melhor aula, de saber ensinar direito aos aprendentes foram as
questões que marcaram toda essa etapa. Eles se mostravam muito preocupados em
dar uma boa aula, em serem destacados como um bom professor, com uma boa
didática e um método excelente.
188
Do meu lado, essas questões também fizeram parte das minhas
preocupações. Era o momento de iniciar os aprendentes na prática da docência, de
ensiná-los a fazer planos de ensino, planos de aula e elaborar estratégias de ensino
e de aprendizagem a partir de processos criativos e dinâmicos. Diante dessas
preocupações, elaborei um plano de curso, seguindo a metodologia das Oficinas de
Projetos de Aprendizagem, focada na Formação, com a orientação de Jean-Pierre
Boutinet19 (2002), nas quais os aprendentes foram preparados para construir seus
planos a partir de um eixo em comum, combinando prática pedagógica e prática da
pesquisa. O centro dessa ideia era promover nos aprendentes a experiência
científica aliada à investigação pedagógica, tendo a sala de aula e a docência como
laboratórios de análise. Significou considerar nessa formação o papel do professor
como sujeito investigador; capaz de dar significado ao seu saber-fazer a partir da
compreensão epistemológica, política e sociocultural desse percurso; dar a eles a
competência de produzir explicações sobre a realidade do ensino ou da realidade
educativa, entendidas como práticas sociais.
A pertinência desse processo insere-se na perspectiva de que a pesquisa
pedagógica representa um instrumento de construção da autonomia do professor
frente à realidade escolar, permitindo a construção de saberes e a reconstrução das
práticas docentes, como consequências da transformação do pensamento. Portanto,
o fundamento dessa formação e do exercício docente está na pesquisa, que, aliada
aos procedimentos científicos, permitiria uma intervenção nas futuras práticas
pedagógicas dos aprendentes.
Os Projetos de Aprendizagem tiveram como perspectiva metodológica a
ruptura com as práticas pedagógicas tradicionais e colocou em evidência o papel do
aluno no processo de construção do conhecimento, na sua trajetória de formação.
Essa perspectiva educativa baseia-se no ensino para a compreensão, um ato não
apenas cognoscitivo, mas experiencial, relacional, investigativo e dialógico. Um
19
Jean-Pierre Boutinet apresenta uma proposta metodológica de formação a partir da elaboração de
projetos educacionais através de uma perspectiva antropológica. Nessa perspectiva os projetos são
pensados considerando os seus múltiplos usos, numa abordagem transversal, com a tarefa de ir além
das fragmentações, atravessando os vários campos disciplinares e metodológicos. Segundo o autor,
“o recurso a um procedimento antropológico deve permitir ultrapassar esse problema da
fragmentação” (BOUTINET, 2002, p.268). Para Boutinet, os projetos são conduzidos por quatro fios
condutores ou dimensões: inspiração vital; conotação cultural; psicológica e existencial e uma
dimensão metodológica de referência pragmática. São essas dimensões que permitem que estes se
desenvolvam (Idem, 2002).
189
constructo de sentidos e significações realizado pelo próprio aprendente; nesse
caso, o professor atua apenas como o mediador e/ou orientador. Trata-se de ensinar
os aprendentes a ensinarem. Para Edgar Morin, ensinar a compreensão20 constitui-
se como um saber necessário para que se atinja a compreensão mútua, um „bem
pensar‟ que “permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio
ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, complexo, isto é, as
condições do comportamento humano.” (MORIN, 2000, p.100)
Os Projetos de Aprendizagem constituíram-se também como um método de
organização da aprendizagem ou da formação a partir de estudos relativos a uma
determinada área do conhecimento (no caso, os temas dos projetos dos
aprendentes), seja de uma disciplina, seja de uma pesquisa científica. Como método
que organiza a aprendizagem e o estudo, ele se constituiu como processo de
construção do conhecimento e permitiu ao sujeito dessa construção a autonomia
intelectual na medida em que exigiu deste uma tomada de consciência quanto aos
referenciais cognitivos que orientarão sua compreensão sobre o mundo e sobre a
realidade que o cerca. Dito de outro modo, os Projetos de Aprendizagem são aqui
entendidos como uma ferramenta cognitiva que permitiu a experiência do saber
aprender e de organizar o pensamento a partir de processos auto-organizadores, de
construção de referenciais próprios com vista à emancipação do sujeito.
Por ser tratar de uma ferramenta cognitiva de organização da aprendizagem,
especificamente nessa formação, um método de aprender a ensinar, os Projetos de
Aprendizagem se estruturaram a partir dos seguintes princípios organizadores de
conhecimento:
- Aprendizagem problematizadora: é a capacidade de formular problemas a
partir da realidade observada. Pensar a realidade implica considerar os seus
contextos, suas múltiplas dimensões e suas relações com o mundo. Não se
trata de buscar soluções, mas de refletir sobre os problemas, assumindo uma
postura crítica, favorecendo possibilidades de intervenção. Nessa etapa, os
aprendentes voltaram-se para os seus projetos de pesquisa, refletiram sobre
os seus objetos relacionando-os com as futuras práticas de docência.
20
Ensinar a compreensão compõe um dos sete saberes necessários à educação do futuro sugerido
por Morin, os demais são: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios do
conhecimento pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrena; enfrentar as
incertezas; e ética do gênero humano (ver MORIN, 2000).
190
- Aprendizagem conceitual ou de conteúdo: trata-se de um processo de
estudos teóricos e conceituais, bem como de estudos relativos ao conteúdo
de aprendizagem de determinada área de conhecimento de natureza
disciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar e tem como ponto de partida o
problema da pesquisa. A base epistemológica dessa aprendizagem foi a
leitura de autores referentes ao tema de suas pesquisas.
- Aprendizagem metodológica: diz respeito à construção de estratégias e/ou
ferramentas de intervenção pedagógica objetivando a resolução de
problemas. Os aprendentes foram orientados a construir recursos didáticos a
partir das concepções teóricas estudadas.
- Aprendizagem cooperativa e solidária: trata-se da capacidade de
aprender a conviver em grupo, com respeito às identidades individuais e
culturais, de forma ética e solidária, procurando desenvolver o espírito de
cooperação mútua no processo de resoluções dos problemas em comum.
Sob o ponto de vista cognitivo, é uma aprendizagem de articulação entre os
saberes, uma forma de comunicação e complementação.
- Aprendizagem cronológica ou temporal: é aprendizagem de organização
do tempo de aprendizagem e do trabalho a ser realizado.
Esses princípios representaram os instrumentos culturais com os quais os
aprendentes deveriam operar o pensamento durante o processo de construção de
estratégias cognitivas para a elaboração de seus planos de ensino. A partir desses
princípios organizadores da aprendizagem, os aprendentes deveriam ser capazes
de construir competências técnica e pedagógica quanto:
a) Organização do tempo de estudo;
b) Organização do sumário da aprendizagem;
c) Elaboração dos instrumentos metodológicos;
d) Organização do plano de trabalho e
e) Avaliação do processo de forma contínua.
Observa-se que os Projetos de Aprendizagem devem ser construídos a partir
da busca de alternativas para resoluções de um problema em comum. Um processo
coletivo, cooperativo e democrático, do qual todos devem fazer parte e assumir
responsabilidades individuais e coletivas.
191
As oficinas duraram uma semana, totalizando 40h/a e foram desenvolvidas
em oito etapas pedagógicas:
1. Criação de grupos por áreas afins. Inicialmente foram criadas quatro áreas
de conhecimento: 1) Ensino e aprendizagem da língua portuguesa e da
matemática; 2) Ensino e aprendizagem da matemática; Culturas indígenas e
línguas maternas; 3) O lúdico na sala de aula e o ensino da arte; 4)
Diversidade cultural e discriminação étnico-racial. A partir dessas áreas os
grupos se dividiram em seis equipes.
2. Definição do tema do projeto de trabalho pelos grupos. Essa etapa foi de
extrema importância, pois permitiu aos grupos reflexões sobre os temas de
pesquisa, processos de classificações e comparações, levando-os a escolha
de um tema comum relacionados aos seus projetos de pesquisa.
3. Elaboração de um Sumário temático a partir do tema do projeto. Essa
etapa constituiu-se como um processo de elaboração de uma proposta
curricular de ensino que seria desenvolvido pelos grupos durante a prática da
docência. Trata-se da estrutura lógica da organização da aprendizagem dos
aprendentes no que se refere ao conteúdo a ser ministrado e do mapa
conceitual que orientariam as aulas.
4. Construção das estratégias metodológicas. Nessa etapa, os aprendentes
se organizaram em torno de estudos sobre o tema, conteúdos de
aprendizagem, procedimentos metodológicos e criação de recursos didáticos.
5. Divisão das tarefas de trabalho. Momento importantíssimo, no qual se
definiram responsabilidades individuais em torno do projeto. Nessa etapa, o
trabalho em equipe foi fundamental para o sucesso ou fracasso dos projetos.
É o plano de trabalho das equipes, no qual os aprendentes apresentam seus
planos de aulas.
6. Construção dos materiais didáticos pedagógicos. Essa é a etapa da
criação e da criatividade. Nela, os aprendentes tiveram que construir seus
próprios recursos didáticos a serem usados em suas aulas.
7. Cronograma das atividades. Refere-se à organização do tempo do trabalho,
horário das aulas, data de avaliação, de entrega das avaliações, dos
exercícios.
8. Avaliação. Etapa fundamental que está implicada em todo o projeto. De
forma contínua, a avaliação foi feita em conjunto, permitindo a interação
192
professor-aluno durante todo o processo de realização dos projetos,
pontuando os acertos, apresentando os erros e, consequentemente,
reconstruindo práticas.
A partir dessas etapas pedagógicas, foi possível ter uma dimensão maior da
formação e da complexidade das relações interpessoais, pedagógicas e
interculturais da sala de aula. Os grupos foram formados por temas afins, mas o
critério que definiu essa formação foi a afinidade entre os colegas. A turma tinha
uma característica bastante heterogênea, os aprendentes divergiam muito em
termos de ideias, pensamentos e práticas. Além disso, havia uma rivalidade muito
forte entre eles, que disputavam entre si em vários aspectos, inclusive a minha
atenção. E isso muitas vezes era motivo de riso, mas também de problemas, pois se
eu passasse muito tempo com uma equipe, os outros exigiam de mim o mesmo
tempo e quando as coisas davam errado de alguma forma para uns e certo para
outros, a causa era a minha atenção desigual. Apesar disso, as equipes foram
formadas e organizadas em torno de temas comuns, sem, no entanto, deixar de
sofrer alterações, pois muitas vezes foram refeitas (ver Quadro 4).
As razões pelas quais as equipes foram refeitas parecem ter implicações
diretas com as relações interétnicas, pois os grupos se reuniam por afinidades sim,
mas também pela origem étnica. Ocorre que os temas escolhidos para os projetos
se convergiam entre si, o que acarretava no encontro entre aprendentes de origens
étnicas diferentes. Esse encontro deu origem a uma série de conflitos, discussões e
desentendimentos entre os colegas. Quando as equipes foram formadas, notei que
a turma ficou muito quieta e ao mesmo tempo tensa. Alguns se dirigiam a mim,
pedindo se seria possível mudar de equipe. Eu concordava, mas os alertava que
fossem para uma equipe com a mesma afinidade temática. Foram dois dias de
conflitos que finalizaram com as equipes desfeitas.
As seis equipes ficaram distribuídas nos cantos da sala. O nível de
inquietação era muito forte, quase sempre elas estavam incompletas. Parecia não
haver entendimento entre si. Era comum ver membros de equipes conversando com
outras equipes. A discussão que explicitarei a seguir é um exemplo desses conflitos,
e representou um marco para futuras mudanças.
193
- Professora, esse momento não é pra gente definir o tema do nosso projeto envolvendo todos? (TIGUI, aluna) - Sim, é esse o momento de vocês conversarem em torno de um projeto em comum envolvendo todos os projetos. (Eglê, professora) - Mas o tema já não está decidido, não é o que a senhora definiu? (Bigri, aluno) - Não, eu defini as equipes por áreas de conhecimento, ou seja, pelas semelhanças entre os projetos, mas cada uma deve criar seu próprio projeto, definindo tema, problema, objetivos, procedimentos... (Eglê, professora) - Gente, a professora já explicou isso mais de uma vez. A gente tem que decidi isso logo. Ninguém aqui é burro. (Tigui, aluna) - Eu não sou burro não. Tu acha que só tu é inteligente?(sic) (Bigri, aluno) - Mas eu não estou te chamando de burro, mas se tu quer ser...(sic) (Tigui, aluna)
Irritado, o aprendente sai da sala de aula acompanhado de mais dois colegas.
Um deles saiu dizendo: “tem gente que está sempre querendo se mostrar, mas não
é nada...” (Nandi, aluna). Quando retornaram, vieram conversar comigo:
- Professora é o seguinte: nós não queremos mais ficar nessa equipe. A gente não pode formar nossa própria equipe? (Bigri, aluna) - Mas só vocês três? É muita equipe pra eu acompanhar. Não dá pra vocês resolverem isso não? Vocês estão agindo como crianças... (Eglê, professora) - Não, professora, acontece que há colegas que querem impor suas ideias. Ela acha que só a dela é mais inteligente. Aí fica difícil... (Nandi, aluna) - Também fica difícil pra mim. Não terei como acompanhar todo mundo. Vão lá, conversem novamente e tentam resolver essas coisas. (Bigri, aluno)
Eles saíram, mas não retornaram para suas equipes. Fiquei observando, vi
que eles se inseriram em outras, foi quando percebi que as equipes já estavam
sendo refeitas. Optei em não interferir nessa mudança, no entanto, resolvi perguntar
sobre o porquê de eles terem formado novas equipes.
Professora fica melhor assim. Tava dando muita confusão. A gente já não estava mais se entendo. Cada um querendo impor suas ideias. (Bali, aluna) A gente tem que ficar com os colegas que a gente já vem trabalhando. (Sid, aluna) Assim, fica melhor. (Ongó, aluno) Professora, eu acho que a senhora deveria pensar que nós temos condições de montar nossa própria equipe. (Landi, aluna)
Nada mais foi dito por eles. Os conflitos silenciaram-se. Continuamos com a
oficina. Não retornei os aspectos já trabalhados. Dei um tempo para que elas
refizessem seus temas e entramos na etapa dos procedimentos metodológicos.
Apesar do aparente silêncio, percebia que as intrigas continuavam, mas agora não
mais dentro das equipes e sim entre elas. Posteriormente, uma aprendente, Bali
Tariana, confessou que resolveu formar outra equipe porque ficava mais fácil
194
trabalhar com pessoas da mesma etnia, pois facilitava as escolhas dos conteúdos
culturais.
É que a senhora disse pra que nós valorizássemos a nossa cultura. Com pessoas de outras etnias ficava complicado escolher assuntos da cultural local, como a senhora orientou. O seu Luiz, é o mais velho, é um conhecedor das origens, ele sabe dizer de como surgimos, ele conhece a nossa mitologia. Com os outros ficava mesmo complicado, porque cada um ia querer falar de suas origens. A Ilda também já é uma experiente como professora. (BALI, Tariana.)
QUADRO 4
ORGANIZAÇÃO E REORGANIZAÇÃO DAS EQUIPES
Formação por aproximações
temáticas.
Formação por aproximações interpessoais e/ou étnicoculturais.
Área de Conhecimento 1: Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa e da Matemática Equipe 1: 3 Baré, 1 não índio, 1 Tukano, 1 Tariano Equipe 2: 3 Tukano, 2 Baré e 1 Piratapuia Equipe 3: 2 Tariano, 1 Desano, 1 não índio, 1 Baré, 1 Tukano Área de Conhecimento 2: O lúdico na sala de aula e o ensino da Arte Equipe 4: 1 Tukano, 1 Baniwa, 1, Tariano, 1 Baré Área de Conhecimento 3: Culturas Indígenas e Línguas Maternas Equipe 5: 1 Baré, 1 Baniwa, 1 Miriti-tapuia Área de Conhecimento: Diversidade, Meio Ambiente e Discriminação étnico-racial Equipe 6: 1 não índio, 2 Baré,
Equipe 1 - Aprendentes Reflexivos Integrantes: 1 não índio, 1 Tukano, 2 Baré e 1 Baniwa. Equipe 2 – São Gabriel da Cachoeira e sua diversidade cultural Integrantes: 1 Baré, 2 Tukano e 1 Piratapuia. Equipe 3 – Aprendizagens Transversais Integrantes: 2 não índio, 2 baré Equipe 4 – Diversidades para aprender a conhecer e a conviver Integrantes: 1 não índio, 1 Baré, 1 Tukano, 1 Desana e 1 Miriti-tapuia. Equipe 5 - Valorização Cultural Integrantes: 3 Tariano, 1 Tukano, e 1 Baré. Equipe 6 – Valorização da Cultura Indígena Integrantes: 2 Baré e 1 Tukano.
Fonte: Pesquisa de campo. 2008.
195
Fica evidente que há nesses conflitos entre as equipes uma relação direta
com suas origens étnicas. A princípio, considerava esse processo conflituoso
comum a uma sala de aula, somente depois notei que havia algo mais profundo
nesses conflitos. E, de fato, diante desse fluxo de confusão, não conseguia entender
a razão para tanto, por motivos muitas vezes infantis e sem nenhuma correlação
com as aulas ou mesmo com as práticas pedagógicas adotadas. Insistia com eles da
importância do trabalho em equipe, que passava pela qualidade das relações
interpessoais, da necessidade do respeito entre os colegas. Eles me escutavam e
até concordavam comigo, mas lá do fundo da sala vinha uma voz que por vezes me
deixava intrigada: “mas tem gente que só quer ser o que não é” (Sid, aluna).
Escutava essa frase e a relacionava com os aspectos cognitivos ou afetivos. Mas
certa vez, ela veio acompanhada da expressão: fingimento. Aparentemente banal,
pois essa expressão é muito comum nos meios sociais, percebi que o tom usado
pela a aluna parecia querer dizer algo mais além do que foi dito. Foi então que
resolvi entrar no campo subjetivo da frase e extrair dela conteúdos possíveis de
compreensão das relações conflituosas entre os aprendentes.
Aproximei-me dos sujeitos, que foram os mesmos do conflito relatado acima,
e perguntei o que significava “ser o que não é”? Um silêncio tomou conta entre eles.
Os aprendentes ficaram meio que envergonhados, talvez por não pensarem que eu
pudesse tê-los ouvido ou porque os peguei de surpresa. Diante desse silêncio,
decidi deixá-los em seus pensamentos, avisando que iria conversar com eles em
outro momento. Mas uma aluna, Sid, me acompanhou e me falou no ouvido:
“professora é que tem gente aqui, que nunca disse ser ìndio na vida, mas agora é”.
Eu perguntei como era isso? Ela então respondeu: “professora, diz que é ìndio, mas
não é, vive dizendo que é Baré, que fala a língua e tudo..., mas ele é branco, sempre
foi” (Sid, aluna). Mas o que tem isso a ver com as nossas aulas? Perguntei
novamente. “É que ele quer ganhar confiança com a senhora, só pode”. Confiança?
“É professora, para ganhar pontos...”. (idem)
Este diálogo de pé de ouvido trouxe algumas reflexões para repensar o trajeto
antropológico da formação: sob quais condições o ser índio é construído? Quando é
importante ser índio? Em que medida as relações interétnicas interferem na
dinâmica pedagógica e cultural da sala de aula? Quais os limites da presença
branca nesse de processo de formação e suas implicações na aprendizagem?
Apesar de a sala de aula ser formada por uma maioria indígena, mais de 90% do
196
total dos aprendentes, a presença branca era muito forte, seja do ponto de vista
institucional ou cultural. Está presente nos textos teóricos, no espaço acadêmico,
nos métodos e técnicas de ensino, nos recursos didáticos e na presença do mestre.
É nesse contexto que as relações são vivenciadas, construídas e destruídas no ato
de aprender e de ensinar.
Se, de um lado, o objeto da formação era ocidental – formação de
professores –, do branco, do outro, o sujeito da formação era indígena. No entanto,
o sujeito pretende a aprendizagem do objeto, e o objeto pretende aprendizagem do
sujeito. Logo, a aprendizagem está implicada tanto no sujeito que aprende quanto no
objeto que ensina. Portanto, nesse processo não há separação entre ambos: sujeito
e objeto. Por isso, quando inseridos no processo de construção do conhecimento o
resultado é a mistura de aprendizagens que são determinadas pelas condições
dessas relações e determinantes do processo formativo.
Certamente que essa mistura antecede essa formação, visto que as relações
entre índios e não índios são bem mais antigas, o que significa considerar que
alguns pressupostos de valores, conhecimento, saberes, práticas e afetos
desenvolvidos nessas relações fazem parte do processo de construção desse
sujeito. Mas é preciso considerar também que essas misturas de conhecimentos,
saberes e culturas não eliminaram a diferença e muitas vezes a reforçaram.
No caso dessa formação, pode-se afirmar que a sala de aula é um lugar que
provocou a mistura, mas também reforçou as fronteiras culturais e, especificamente
neste caso, interétnicas21. Apesar do fluxo de pessoas interagindo entre si, nota-se a
persistência dessas fronteiras, o que denota que esse sistema social, se sustenta
21
Para Fredrik Barth, o que define um grupo étnico são as fronteiras sociais, e não o material cultural
que ela abrange. Significa dizer que “Se um grupo conserva sua identidade quando membros
interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar
manifestas a pertença e a exclusão”. (BARTH, 1998, p.195) Para este autor o que canaliza a vida
social de um grupo étnico são as fronteiras, que além de originar traços organizacionais complexos e
comportamentais, permitem que uma pessoa se identifique como pertencente a um grupo étnico e
seja capaz de compartilhar critérios de avaliação e julgamento. Esse processo implica a
dicotomização dos outros como estrangeiros, como membros de outros grupos étnicos, o que leva à
formulação de critérios de diferença, de valores e de ações. Compreende-se com isso, que são as
situações de contato entre pessoas de culturas diferentes que mantém as fronteiras interétnicas. Em
outras palavras, “a persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas critérios e sinais de
identificação, mas igualmente uma estruturação da interação que permite a persistência das
diferenças culturais”(Idem, p.196).
197
pela permanência das diferenças culturais e pelas experiências, novas ou antigas,
de contato (BARTH, 1998).
A formação, ao provocar a interação entre os diferentes grupos étnicos,
permitiu formas de reorganização dos processos de afirmação e de negação de
identidades. Porém, indicou os caminhos possíveis de convivência, denotando que
as relações humanas se constroem e se recriam por meio de um importante veículo:
a comunicação. É esse veículo que permite o encontro entre eles e os outros e é
capaz de instaurar uma prática pedagógica implicada na cooperação mútua, uma
linguagem conduzida pelas emoções e pelos sentimentos da partilha e da
compartilha de saberes, pensamentos e ideias, mesmo que esses se apresentem
nos limites ou nas fronteiras das diferenças culturais. Compreender esses limites é
ponto fundamental para a compreensão social das relações humanas e para
construção de novas práticas pedagógicas.
Com efeito, as implicações interétnicas levaram à reorganização das equipes.
No entanto, estas não podem ser vistas de forma absoluta. Elas têm, também,
relação com a necessidade dos aprendentes em se organizarem a partir de
interesses comuns, de afinidades pessoais e de terem autonomia nas escolhas de
suas equipes. Que a presença dos Baré entre as equipes foi motivo de conflito e até
mesmo de desestruturação nos grupos, não há dúvida, mas isso não representou a
necessidade de excluir-los. Como se observa, há presença dos mesmos em todas
as equipes depois que estas foram refeitas. O que parece indicar que essa mudança
tem de fato a ver com o exercício de autonomia dos aprendentes no que se refere a
escolha das pessoas com quais querem trabalhar.
Os limites que atravessaram a formação das equipes implicou a vivência do
encontro com as diferenças e os conflitos inerentes a elas, mas não significou a
eliminação do outro, nem tampouco excluiu as diferenças. As perturbações ocorridas
durante esse processo fazem parte do próprio sistema social, que está longe de ser
equilibrado.
Os sujeitos da formação são homens e mulheres, jovens e adultos, dotados
de experiências de vida, com uma estrutura cognitiva organizada e desenvolvida em
condições culturais, sociais, políticas e ecológicas específicas. Portanto, suas
aprendizagens se desenvolvem a partir dessas condições. É importante salientar
que o lugar de onde se originam, São Gabriel da Cachoeira, possui as marcas do
processo civilizador na Amazônia. Aprenderam com os salesianos a ler e escrever,
198
bem como a ser civilizados, ou melhor, disciplinados. Boa parte dos aprendentes
estudou nos colégios salesianos. E, nesses lugares, foram obrigados a esquecer
suas línguas maternas, suas culturas, aprendendo outras. E no encontro com outras
culturas se reinventaram enquanto sujeitos, construíram novos de modos de ser e de
existir, criando novos territórios existenciais dos quais fala Felix Guatarri22. Os
territórios existenciais seriam espaços de ressingularização da experiência humana,
permitindo o surgimento de novas formas de valorização, que envolvem a
subjetividade e a sociabilidade. Nesse caso, a sala de aula representa um novo
espaço de subjetividades por onde o sujeito circula, pensa e aprende a si mesmo e
com isso passa a compreender melhor o outro.
O sujeito da formação é múltiplo e complexo, pois carrega em si as condições
bio-antropológicas23 que o formou. Portanto, suas aprendizagens dependem
também dessas condições existenciais. Desse modo a sala de aula representa o
lugar por onde circula diferentes condições de vida, de natureza, de cultura e de
história. É o que nos mostra o texto da aprendente Orda, sobre a vida e natureza de
São Gabriel da Cachoeira:
Pensar em São Gabriel é pensar num panorama ecológico onde Deus exagerou no momento da criação, isto é na origem do mundo, com suas belezas naturais e a partir dos valores da cada povo com etnias diversificadas, costumes, tradições, a imagem que cada etnia tem como o transcendente. A lembrança que São Gabriel traz é de um imagem “pura” na dimensão sociocultural, onde o povo preza pelos seus valores, como benzimento, a pajelança, a dança, os rituais, o artesanato, as plantas medicinais, as lendas, os mitos. Estes conjuntos de valores caracterizam a imagem de São Gabriel da Cachoeira. Outras lembranças fortes que caracterizam essa imagem são as belezas naturais como: a praia onde as pessoas vão banhar-se com toda a liberdade e simplicidade, o rio negro onde as pessoas vão pescar, navegar, admirar e sobretudo onde buscam seu próprio alimento que é o peixe, o morro da Boa Esperança, onde se encontra os 14 passos do sofrimento de Cristo, que é a via sacra, é um local de muito
22
Felix Guatarri propõe em sua obra “as três ecologias” uma nova forma de relação do homem com o seu meio ambiente, rompendo com o modelo da sociedade capitalista, responsável pelo atual estágio de desequilíbrio da natureza. Nesta obra o autor apresenta a existência de três registros ecológicos: o ambiental, que corresponde ao relacionamento do homem com meio ambiente; o social, que se refere as relações entre os homens; e o subjetivo, que é o registro da subjetividade humana - ecologia mental, responsável pela compreensão das relações em sociedade e pela atuação do homem em seu meio ambiente. Os territórios existenciais seriam os espaços de subjetividade humana que permitem que o ser esteja propício a re-singularização e a reinvenção de sua subjetividade. São os registros da subjetividade que permitem que os sujeitos organizem outros registros ecológicos. (Ver GUATARRI, 1990) 23
Retomo o pensamento de Morin, segundo o qual nossa existência é ao mesmo tempo natural e
cultural. Somos são 100% natureza e 100% cultural. Por isso somos seres uniduais. Significa dizer
que nos construímos em condições naturais e culturais, e são essas condições que nos permitem
interagir no mundo e sobre ele intervirmos. (MORIN,1999)
199
respeito, pois neste morro que o povo expressa a sua espiritualidade, sua fé e o seu louvor a Deus; a Ilha Adana, que lembra a luta dos dois guerreiros Buburi e Kurucui disputando a índia Adana, a princesa do rio Negro; a pedra da Fortaleza onde se encontra vários desenhos feitos pelos nossos ancestrais através de lendas e mitos. Com essas riquezas naturais São Gabriel tornou-se o município mais famoso do Amazonas e o interesse cresceu segundo as intenções, isto é através das pesquisas, dos patenteamentos das plantas medicinais que levam e não tem retorno para sociedade gabrielense. Isso é um desrespeito e desumano para com a população de São Gabriel da Cachoeira. (ORDA, 2007)
Vida, natureza, cultura e história são sistemas complexos que orientam a
trajetória acadêmica rumo à sua formação cultural, científica e humana. A partir
dessa compreensão foi possível perceber com mais clareza o papel das relações
interétnicas no contexto dessa formação. Como vimos anteriormente, o alto rio
Negro é constituído por uma infinidade de povos, línguas e culturas diversas. Sob o
ponto de vista político nacional, as relações entre esses povos, no que se refere à
sociedade brasileira, são pautadas em interesses comuns na luta por direitos à terra,
cultura e educação. Mas, sob o ponto de vista local, essas relações se
complexificam, as diferenças se acirram, os interesses se deslocam e mudam de
acordo com a visão de cada povo. Nesse contexto local, o universo mítico e
cosmológico desses povos orienta essas relações, de caráter hierárquico, simbiótico
e conflituoso (RAMOS; 1980)
Os Baré, durante o processo colonizador no rio Negro, foram um povo que
manteve relações bastante estreitas com os colonizadores. Dominavam a língua
geral, e se adaptaram aos costumes e hábitos dos brancos com facilidade. Por conta
disso, foram considerados índios civilizados, ou índios que se tornaram brancos.
Culturalmente, suas referências míticas e cosmológicas se perderam pelo contato
com o branco. Disso resultou, entre os índios do alto rio Negro, a ideia de que esse
povo perdeu sua identidade, pois, ao se adaptar ao mundo dos brancos, na tentativa
de se tornar um deles, deixaram de ser índios. No entanto, por volta da década de
1980, esse povo busca a autoafirmação da identidade indígena e se junta ao
processo de luta pelo direito à terra, cultura e educação. É nesse contexto de
mudanças e de autoafirmação identitárias que as diferenças entre Baré e outros
grupos étnicos se acirram. Se, no passado, o povo Baré buscava o mundo dos
brancos para se autoafirmar, no presente, reivindica sua condição indígena.
Da trajetória histórica de negação à afirmação identitária, os Baré são alvos
de críticas entre os índios do alto rio Negro, que colocam em dúvida sua identidade
200
indígena. Esse processo infletirá em vários lugares de sociabilidade: escola,
comércio, instituições, organizações.
Retornando ao movimento da sala de aula, compreende-se melhor o
significado da expressão “fingimento”, do “diz ser o que não é”. Esse espaço
formativo representa também um processo de autoafirmação de identidades e de
legitimidade étnica, no qual as fronteiras interétnicas são reforçadas. A condição
indígena passa a ser um instrumento de direito político, mas também de negação da
diferença, por meio do qual os conflitos se originam. A presença Baré na sala de
aula é de aproximadamente 30%. Dos 29 aprendentes, 10 são Baré. O restante se
divide entre Tukano (6), Tariano (3), Desana (2), Baniwa (2), Piratapuia (1), Tikuna
(1), Miriti-tapuia (1) e brancos (4).
Quando os grupos foram formados, levou-se em consideração apenas os
temas em comuns. Com isso, os Baré foram inseridos em vários grupos, o que
resultou em conflitos constantes. Muitos aprendentes procuraram mudar de tema,
criaram estratégia de exclusão, tais como: horário incompatível para o estágio,
encontros de estudos diferenciados, inviabilidade da proposta pedagógica com o
tema de pesquisa. Outra estratégia usada pelos grupos foi a denúncia. Eles
chegavam até a mim, denunciando que o aluno X não colaborava, não participava,
que o trabalho estava sendo feito por poucos. Observa-se que, nos encontros
anteriores, esses problemas não apareciam nitidamente, apesar de que a
competitividade entre eles era muito forte, mas entendia isso como algo natural ao
ambiente da sala de aula. A estratégia de denunciar o colega às escondidas recaía
quase sempre ao aluno Baré.
De certo que os Baré têm um comportamento muito próximo à cultura do
branco, possuem uma linguagem bem articulada e, apesar de algumas dificuldades
do letramento, escrevem razoavelmente bem. No entanto, as dificuldades de
compreensão e construção do conhecimento são as mesmas que as dos outros
grupos. O que muda no processo de formação são as estratégias que eles usam
para alcançar o sucesso nos trabalhos e na avaliação. Enquanto que os
aprendentes de outras etnias colocavam suas dificuldades no processo de
compreensão das tarefas, precisando constantemente de orientações, os Baré
afirmam não ter dificuldades em realizar as tarefas. Dizem tê-las compreendido
perfeitamente. Mas quando não cumprem com elas, justificam por falta de tempo,
por ter alguém da família doente ou ele mesmo, ou então negam não ter recebido
201
orientação. Vale ressaltar que isso não é estendido a todos os aprendentes Baré,
mas, na maioria das vezes, recaiu mais sobre eles.
Com os conflitos na sala de aula, os procedimentos metodológicos sofreram
contínuas alterações, o que permitiu, de um lado, a flexibilidade do planejamento do
curso e no processo de lidar não apenas com as diversidades, mas também com as
adversidades presentes. Por outro, esses conflitos provocaram mudanças
significativas nas orientações pedagógicas voltadas para o estágio docente. Os
projetos de aprendizagem, como proposta metodológica da formação, não
corresponderam, na sua totalidade, aos seus princípios norteadores. A maioria foi
apresentada de forma fragmentada e deslocada das situações-problemas.
Outra dificuldade apresentada pelos aprendentes foi a articulação entre os
saberes curriculares (da escola) e os projetos de pesquisa. Como a proposta do
curso Normal Superior é formar o professor-pesquisador, esse era o momento de
eles explorarem seu campo de pesquisa, atuando como professores. A princípio,
eles foram construindo seus planos de aula sem se preocupar com a pesquisa.
Quando foram relembrados de que iriam desenvolver uma prática docente aliada
aos seus projetos, sentiram-se extremamente inseguros. Isso causou uma
instabilidade nas equipes. Era como se elas tivessem perdido o fio da meada.
Iniciaram de uma forma e agora teriam que refazer tudo. Com isso novos conflitos se
estabeleceram entre eles e eu, que fui acusada de não tê-los orientados quanto a
isso. O interessante, nesse processo, é que esse foi o primeiro questionamento
deles quando do início das aulas: como aliar pesquisa à docência? No entanto, essa
preocupação desapareceu no momento em que eles estavam preocupados em
como planejar suas aulas. Entre confusões e acertos, as equipes foram se refazendo
e, com isso, refizeram seus projetos coletivos e individuais.
Como algumas equipes foram refeitas, o tempo de elaboração de novos
projetos diminuiu. Muitos alegaram que o tema e a situação-problema não se
articulavam ao conteúdo curricular do(a) professor(a) da classe em que iriam
estagiar. Contudo, alguns grupos conseguiram desenvolver seus projetos de ensino
seguindo as orientações, apesar de que também tiveram dificuldades em articulá-los
com o conteúdo curricular da professora.
Essa dificuldade de articulação curricular tem sua origem na estrutura
pedagógica da escola, que segue o modelo tradicional de ensino, no qual os
conteúdos disciplinares são organizados de forma linear e sequencial, seguindo
202
etapas previamente definidas por nível de ensino ou série e são norteadas pelos
livros didáticos. Por conta dessa estrutura, os estagiários não tiveram espaço de
apresentar suas propostas seguindo as orientações teóricas e metodológicas
adotadas por eles em seus planos de aula. As equipes que tinham como tema de
pesquisa a cultura indígena e a interculturalidade foram as mais prejudicadas, pois
as professoras das classes não deram abertura para novos conteúdos e impuseram
os conteúdos a serem ministrados pelos estagiários. Alegaram que isso poderia
provocar um atraso no cumprimento da grade curricular24.
As oficinas de projetos como método de trabalho dessa formação de
preparação para docência provocaram intensas flutuações, ou pontos de
desequilíbrio no que se refere ao processo de aprendizagem dos aprendentes.
Entende-se com isso que o exercício cognitivo não é uma tarefa fácil, pois requer o
convívio com os princípios da incerteza e da instabilidade e, mais precisamente, com
a possibilidade constante de mudanças no processo de compreensão do real,
mudanças quase sempre imprevisíveis e muitas vezes inesperadas. O que garantiu
a sustentabilidade desse processo foi o movimento provocado pelo circuito ordem-
desordem-interação-organização, inerente aos sistemas complexos (MORIN, 2001).
A dinâmica desse sistema formativo implicou constantes ressignificações no modo
de operar o pensamento em ação. Foi preciso atentar para a ecologia cognitiva que
orientou o percurso de formação dos estagiários, seus conflitos, contradições e
incertezas, para que se pudesse ter uma construção mais totalizante e aproximada
da realidade. Com isso, o conhecimento se concretizou de forma complexa e
contextual.
A ecologia cognitiva se apresentou entre duas instâncias da natureza e da
cultura: razão e emoção. Ambas têm no corpo o suporte de suas manifestações. Foi
a partir dessa percepção que conseguimos organizar o trabalho pedagógico e
desenvolver as atividades da docência. Sob o ponto de vista emocional, os
24
Posteriormente, quando os aprendentes iniciaram o estágio de docência, percebeu-se que na verdade havia outras razões por detrás dessas orientações curriculares impostas pelos(as) professores(as). Os conteúdos de ensino listados por eles, já haviam sido trabalhados com os alunos. O motivo dessa repetição seria pela necessidade dos professores em mostrar suas competências para o ensino, mostrando os avanços dos alunos, evitando dessa maneira que os estagiários percebessem as fragilidades dos alunos e consequentemente as suas? Alguns responderam que fizeram isso porque fazem sempre recapitulação dos conteúdos, outros porque queriam reforçar a aprendizagem.
203
aprendentes apresentaram aspectos interessantes, que desencadearam processos
de reorganização do trabalho pedagógico:
- Afetivos: dimensão que definiu a re-formação das equipes, a reorganização
dos temas dos projetos e a readequação ao plano de trabalho. A afetividade
representou o ponto central nas relações interpessoais e interétnicas e
estabeleceu limites entre os diferentes grupos, expressos em ideias,
pensamentos, sentimentos, valores e intervenção;
- Psicológicos: dimensão que promoveu o desequilíbrio entre os
aprendentes e permitiu a reintegração e re-formação dos grupos nas
atividades pedagógicas. Psicologicamente, os aprendentes encontram-se
ansiosos com o trabalho da docência, e quando se viram inseridos em grupos
formados por pessoas fora do seu convívio afetivo e cultural, não
conseguiram manter o equilíbrio. Abalados com a estratégia de formação dos
grupos, eles buscaram mecanismo de exclusão e inclusão, que iram conduzir
a construção de estratégias de negociação e de afirmação intergrupais.
- Dificuldades de interação: a formação das equipes por temas afins
dificultou a interação entre os aprendentes, tendo em vista que um dos
aspectos que influenciaram essas dificuldades recaiu sob suas experiências
históricas de natureza étnico-culturais e sociais. São essas dificuldades que
irão gerar processos de resistências e de conflitos intragrupais.
- Resistência: o desenvolvimento do trabalho em grupo sofreu muita
resistência, não apenas aquelas referentes aos aspectos de interação, mas
ao processo de construção coletiva de um projeto de formação, que exigem
respeito, colaboração e responsabilidade entre os membros. A resistência ao
encontro com a diferença, com o outro e com o novo foi um fator de
instabilidade no processo de formação. A resistência constitui-se como um
processo de afirmação de ideias, valores, intencionalidades e de identidades,
bem como de ressignificações desse processo, recolocando nas equipes
novas formas de sociabilidades interpessoais e interétnicas.
- Conflitivo: a tentativa de reunir grupos por temas afins implicou no encontro
com grupos étnico-culturais diferentes, desencadeando conflitos na sala de
aula. Obviamente que esses conflitos não foram focalizados apenas nas
relações interétnicas. Os conflitos se deram também no campo pedagógico
por divergências de ideias, pensamentos e de atitudes. A superação desses
204
conflitos se deu no momento em que os aprendentes perceberam as
implicações disso no processo de formação e graduação.
Observa-se que a dimensão da emoção foi responsável pela vivência de
diferentes processos de reorganização e de interação, que estão implicados na
desordem dos conflitos gerados pela experiência do encontro com a diversidade,
com a diferença e com o novo. No entanto, a emoção produziu um campo de
fecundação pedagógica que permitiu novas possibilidades de experiências
cognitivas. Pode-se dizer, portanto, concordando com Maturana (2009), que, sob o
ponto de vista cognitivo, o que fundamenta as ações humanas são as emoções.
Para esse autor, “as emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os
diferentes domìnios de ação em que nos movemos” (2009, p.13). Nesse caso, a
razão tem como fundamento a emoção. É a partir desse entrelaçamento que o
homem organiza sua vida, define ações a serem desenvolvidas na relação com o
outro e na aceitação do outro como legítimo outro (MATURANA, 2009).
Orientados pelos dispositivos corpóreos da emoção, os aprendentes
construíram estratégias cognitivas, que, sob o ponto de vista racional,
proporcionaram a reoganização de suas propostas pedagógicas, seja no plano
coletivo ou no individual, que, em maior ou menor medida, permitiram a evolução do
trabalho coletivo, que destaco:
- Flexibilidade: diante da possibilidade de verem seus projetos emperrados
por conta de suas insatisfações quanto à formação das equipes e diante da
determinação de que os trabalhos teriam que ser desenvolvidos em conjunto,
os aprendentes tiveram que flexibilizar suas opiniões e ideias em relação aos
colegas e aos seus projetos. A troca de colegas entre as equipes foi permitida
sem grandes conflitos. Com isso, muitos tiveram que adaptar seus projetos ao
tema da nova equipe. A relação entre as equipes, apesar de muitas terem
sido desfeitas, foi importante para que eles pudessem se perceber não
apenas pela suas diferenças, mas principalmente pela imprescindível
necessidade de aceitação do outro na convivência social.
- Negociação: aspecto fundamental no desenvolvimento do trabalho
pedagógico. Os aprendentes negociaram entre si processos de mudanças e
de organização do trabalho. Por conseguinte, tiveram que negociar comigo
essas mudanças, pois elas implicavam reorganização de seus projetos e de
seus planos de ensino, e alteração do plano da disciplina, nos seus aspectos
205
metodológicos. Nesse espaço de negociação, foi preciso ceder e conceder
mudanças, como também estabelecer novas regras e condutas para que os
objetivos do curso não se perdessem.
- Organização: a partir das mudanças ocorridas nas equipes, os aprendentes
tiveram que se reorganizar em torno de seus projetos. O primeiro obstáculo
que tiveram que superar foi o tempo, pois a ordem cronológica dos trabalhos
não podia ser alterada e as equipes teriam que cumprir os prazos previstos,
caso contrário não concluíram o estágio. Nesse processo de organização e
reorganização dos trabalhos, outro obstáculo a ser superado foi a
reconstrução dos projetos de formação das equipes e suas adequações às
diversidades temáticas trazidas pelos novos membros. Além disso, todo o
planejamento teria que ser organizado a partir do plano de ensino da
professora regente da classe de estágio, e isso requereu das equipes
constantes reorganizações quanto ao projeto de ensino individual e coletivo.
Disso denota que a prática pedagógica é movimentada por intensas
flutuações que expressam a condição irreversível do tempo, as instabilidades
do processo de ensino e de aprendizagem e as incertezas quanto ao método
e aos objetivos da aula.
A reflexão sobre a ecologia cognitiva dos aprendentes em seus processos de
organização e reorganização do trabalho pedagógico teve uma importância muito
grande na compreensão da realidade sociocultural da sala de aula e suas
implicações na formação dos sujeitos, bem como na suas aprendizagens. Parece
claro, que a diversidade cultural inerente a esse grupo, foi um aspecto que orientou
as relações sociais, sendo estas responsáveis por um conjunto de ações atitudinais
e comportamentais que interferiram diretamente no desenvolvimento cognitivo dos
aprendentes.
Do entrelaçamento da razão com a emoção foi possível construir uma
comunidade de aprendizagens que culminou com a elaboração de seis projetos de
ensino, dos quais destacarei apenas quatro (ver Quadro 5). Esse destaque foi
atribuído ao modelo pedagógico adotado pelas equipes no que se refere ao
processo de ensino e aprendizagem e as suas relações com o projeto de pesquisa.
A ideia é mostrar como os projetos foram construídos e desenvolvidos no estágio de
docência dos aprendentes.
206
Todos os projetos de ensino tiveram como tema central a perspectiva de
valorização da cultura local e da diversidade étnica. Observa-se, no entanto, que os
estudos que tivemos sobre práticas interdisciplinares, transversais e da importância
dos conteúdos oriundos das experienciais culturais locais, apesar de comporem
seus projetos, não foram desenvolvidos em seu conjunto, quando se desdobram em
plano de aula. Em geral, as equipes seguiram a lógica disciplinar da ordem dos
conteúdos de ensino. Isso apareceu não apenas na organização dos conteúdos
curriculares, nos quais as disciplinas português e matemática aparecem sempre em
primeiro plano (por ocuparem o maior tempo de aulas - 50% do total), como também
no momento da regência.
Essa forma de organização hierárquica dos conteúdos é comum à própria
estrutura de ensino das escolas. Reconheço que na história da educação esse
modelo é resultado de um processo de fragmentação do conhecimento advindos do
próprio modelo de ciência, que, em larga medida, tem sido responsável pelos
programas pedagógicos destinados a educação escolar. Com efeito, o paradigma
tradicional de ensino, orientado pela teoria comportamentalista25, enfatiza a
aprendizagem como processo de memorização e repetição por meio de exercícios
sistemáticos. É esse modelo que ainda está presente na escola e esteve presente
nas práticas de estágio dos aprendentes, com algumas exceções, que tratarei
posteriormente. O centro do ensino está no professor, entendido como sujeito que
detém o conhecimento e somente por ele a aprendizagem se efetiva. Como
transmissor do conhecimento, cabe a ele a decisão quanto aos passos do ensino e
os objetivos a serem fixados.
Esclareço que, ao mostrar o modelo pedagógico adotado pelos aprendentes e
o seu caráter tradicional, não estou querendo desmerecer suas práticas, quero
apenas apontar que estas estão intimamente relacionadas com suas experiências
escolares. Apesar dos estudos de teorias e métodos avançados do ensino e da
aprendizagem ocorridos durante o percurso formativo dos mesmos, estes não foram,
25
O modelo ou paradigma comportamentalista, também conhecido como Behaviorista, de inspiração empirista e positivista, baseia-se na idéia de que todo comportamento humano é influenciado pelo meio ambiente. São os fatores externos que determinam as características humanas. A escola dentro dessa perspectiva é o lugar que modela o comportamento das crianças. Sob o ponto de vista pedagógico o ensino se desenvolve por meio da memorização e da repetição dos conteúdos desarticulados do contexto sociocultural dos aprendentes. A eficiência dessa prática se dar pelo contínuo uso de exercício de fixação e de cópias. (Ver WATSON, J.B, 1971)
207
efetivamente, assimilados ou não ganharam significados. Estaria o ato de ensinar
implicado no ato de aprender? Pois me parece que a forma como os aprendentes
aprenderam influenciou a forma como ensinaram. Logo, para fazer a passagem de
um método para outro ou, como nos lembra Bachelard (1996), fazer a ruptura
epistemológica, significa reconhecer primeiramente o modelo que orientou suas
experiências e sob quais condições foi construído.
Após uma semana de estágio, resolvi fazer a avaliação dos trabalhos em
curso, com a intenção de provocar e promover nos aprendentes a ruptura com as
práticas tradicionais adotadas no estágio. Mas para fazer essa passagem
paradigmática foi preciso, primeiramente, levá-los a se confrontarem com os seus
próprios modelos. Para que isso acontecesse, fizemos um estudo em torno de dois
processos de leitura: a primeira voltada para as teorias da aprendizagem e a
segunda para os cadernos de campo. Na primeira leitura reflexiva, explanei sobre as
bases paradigmáticas da educação tradicional, dando ênfase à teoria
comportamentalista e sua influência na educação escolar e no processo ensino-
aprendizagem.
208
QUADRO 5
OS PROJETOS DE ENSINO
Projeto 1 – Valorização da cultura indígena
Equipe:
Juli Tukano
Naza Baré
Nilo Baré
Justificativa
Existem aproximadamente 216 povos indígenas no Brasil, que forma uma população
estimada em 350 mil e que falam 170 línguas. Ainda existem povos os quais não há
informações. A população indígena total tem crescido nos últimos 25 anos, embora povos
específicos tenham perdido população e alguns estejam ameaçados de extinção.
Assim, o projeto da valorização da cultura indígena tem como finalidade, ampliar os
conhecimentos sobre a trajetória dos povos indígenas ao longo da história, seus costumes,
tradições, valores, crenças, hábitos e forma de pensar através do estabelecimento de
relação direta entre a escola e os habitantes das aldeias locais, que são os legítimos
representantes desses povos.
Através desse projeto objetiva-se a ampliação dos conhecimentos sobre a cultura
indígena dos aprendentes que compõem a comunidade escolar, implicando não só o
aspecto cognitivo, mas sua totalidade dinâmica. Dessa forma, acredita-se que a escola
possa contribuir para que as relações sociais entre os aprendentes índio e não índios sejam
de igualdade, uma vez que cada um é estimulado a conhecer e a valorizar a cultura dos
outros povos.
Sabendo que as populações de São Gabriel da Cachoeira não são só somente
indígena, e sim são constituídas por outros povos, diferentes entre si, com usos, costumes e
crenças próprias, falando línguas diferentes e tendo direito a essas diferenças asseguradas
por lei, a escola desempenha um importante papel na democratização do saber e na
construção de uma sociedade mais justa, pois através de suas ações, pode garantir o direito
de expressão cultural da comunidade e atua junto aos aprendentes na difusão e valorização
das diferentes culturas existentes.
Objetivos
- Desenvolver no âmbito escolar ações que promovam a pluralidade cultural, valorizando as
raízes e as línguas indígenas;
- Refletir sobre as diferenças étnicas, respeitando a convivência harmoniosa entre os
209
aprendentes;
- Oferecer condições de aprendizagens utilizando conteúdos culturais e os saberes das
comunidades dos aprendentes;
- Despertar a criatividade dos aprendentes, valorizando suas origens culturais;
- Desenvolver interesse na área de artesanato, língua materna, artes, brincadeiras
maternas, canta e dança indígenas;
- Despertar interesse pela pesquisa sobre o município;
- Analisar a diversidade étnica e cultural dos povos indígena do Amazonas, em especial o
município de São Gabriel da Cachoeira;
- Estimular um diálogo contínuo entre os aprendentes e comunidades, procurando repassar-
lhe alguns conteúdos aprendidos na escola, sempre com respeito a forma de ser indígena;
- Conhecer, divulgar e valorizar a cultura indígena das diversas etnias;
- Valorizar as diferenças culturais dos grupos indígenas;
Conteúdo Programático
- Português: uso do mal (advérbio) e mau (adjetivo) - Matemática: expresões (revisão) e
divisão - História: moradores portugueses nos primeiros tempos (livro) - História dos povos
indígenas no município (texto de apoio) - História do povo Baniwa - Tipos de cestas
produzidas pelo povo Baniwa - Geografia: os componentes naturais das paisagens –
Ciências: grandes e pequenos microorganismos - Nheengatú: número de 0 a 20, escrita e
pronúncia - Educação Física: alongamento, confecção de brinquedos indígenas (boi-tapyra
e pega-pega) para jogos - Artes: confecção de lagarta (tapuru) e aranha (jandú).
Metodologia
Leitura silenciosa e leitura em grupo; tira dúvidas; pesquisando palavras desconhecidas;
recapitular as atividades passadas, avaliando; pedir aos aprendentes que expressem suas
percepções sobre o texto lido; utilizar materiais concretos; utilização de música regional.
Recursos Didáticos
Microssistem; CDs de musicas; textos; cartazes; papel cartão; cola branca; pincel; caixa de
papelão, caroço de tucumã; caneta; giz; quadro branco; tesoura; garrafa pet; meia; jornal;
caroço de açaí; pedaços de tijolos; linha de costura; agulha.
Avaliação
A avaliação será por meio de exercícios e pela participação nas aulas.
210
Continuação
Projeto de Ensino 2 – São Gabriel da Cachoeira e sua diversidade cultural
Equipe:
Deni Baré
Cocah Tukano
Domi Piratapuia
Sid Tukano
Objetivo: fazer conhecer e conscientizar a importância da valorização da cultura local
através de conteúdo estudados, adaptando-se a realidade do aluno.
Conteúdo Programático
- Português: substantivos (abstrato, concreto, primitivo e derivado)
- Matemática: multiplicação
- História: a chegada dos portugueses; os povos indígenas contam sua história
- Geografia: a paisagem do campo; trabalho no campo
- Ciências: ideia sobre o universo; estudo sobre o universo; o sistema solar
- Neengatu: cânticos da língua indígena
- Artes: cores secundárias
- Educação Física: jogos variados
Metodologia
Estudo dirigido; dinâmica/jogos; trabalho em grupo; filmes; recorte e colagem; teatro com
fantoche; contando histórias: lendas, mitos e adivinhações.
Recursos Didáticos
Gravuras, cartazes; TV e DVD; tinta guache; água; copos de plásticos; livros paradidáticos;
papeis diversificados; tesoura; cola; pincéis; quadro branco; fantoches; mapas; livros
didáticos.
211
Continuação
Projeto de Ensino 3 – Aprendizagem Transversal
Equipe:
Joabi Júnior
Ongó Baré
Paulo Antônio Lindoso
Wani Baré
Objetivo: desenvolver a capacidade de raciocínio próprio dos aprendentes, através de aulas
práticas que facilitem o entendimento do meio e suas características.
Sumário
Português: leitura; interpretação de texto; gramática;
Matemática: subtração com recursos e sem recursos;
História: o Bairro; nomes de ruas e limites;
Geografia: os pontos cardeais;
Ciências: os vegetais;
Religião: Jesus nos ajuda a crescer.
Recursos Didáticos
Serão usados todos os materiais disponíveis na sala; livrinho de historinha; folhas de papel
ofício; cartolina; lápis de cor e pincel;
Plano de Ação
Estabelecer o primeiro contato com a apresentação do grupo e iniciar os trabalhos
observando os aprendentes com menos disposição para o aprendizado, firmando assim
uma referência de mudança de comportamento para os outros aprendentes.
212
Continuação
Projeto 4 – Valorização Cultural
Equipe: Ludi Taraiano
Sandi Baré Tuli Tukano Bali Tariano Izo Tukano
Objetivo: desenvolver a valorização da cultura, disciplinas diferentes, preservando e
respeitando as diferentes etnias e raças de acordo com os conteúdos explorados.
Conteúdo Programático
- Textos: mitos e lendas, histórias regionais;
- Gramática: substantivos comuns;
- Ortografia;
- Família da árvore;
- Expressões numéricas;
- Multiplicações: numeração de 0 a 10 em nheengatu e tukano
- Propriedades
- Os missionários do Rio Negro;
- O tempo da borracha no Rio Negro;
- A sabedoria e a simplicidade;
- A população do município de São Gabriel da Cachoeira;
- Os instrumentos musicais regionais;
- Os variados desenhos dos instrumentos musicais;
- O coaxar do sapo;
- Picada de carangueixo;
- A cutia saiu do toco da árvore;
- Historinha em nheengatu;
Metodologia
Diálogo; explicação; perguntas orais; atividades escritas; leitura coletiva e individual;
exposição em gravuras; utilização de materiais concretos; músicas educativas.
Recursos didáticos
Quadro; pincel; cartazes; régua; lápis de cor ou giz de cera; cola; fita gomada; borracha;
caneta; papel atômico e tesoura.
Fonte: Coleta de dados, 2009
213
Durante essa leitura as discussões recaiam sobre a visão que os aprendentes
tiveram sobre a escola e as práticas pedagógicas observadas na sala de aula.
Todos concordavam que o que viam na escola era o modelo tradicional da
educação. Seguindo a reflexão teórica, partimos para leitura dos cadernos de
campo. Li vários relatos feitos pelos aprendentes durante os três estágios. De fato, o
que eles escreveram sobre a permanência do tradicionalismo condizia com a
reflexão teórica feita.
Após o intervalo, entram para a sala de aula, a ponto de continuar a atividade do dia, que é atividade de matemática. (Adição). A professora passou no quadro atividade de adição, pedindo que os aprendentes escrevessem no caderno e resolvessem. (...) Neste momento os aprendentes se concentram para escrever o exercício, pois a professora diz que: a resolução requer concentração de cada um. Então os mesmos continuam concentrados. Antes de terminar a aula a professora começa a distribuir aos alunoso dever e a lição de cada. Assim cada um tomar o rumo de suas casas. (BALI, Tariana. Caderno de Registro, 2007) No dia 21 de agosto de 2007, fiquei estagiando na 2ª série A da professora Cleonízia, com 25 aprendentes. Disciplina a ser vista é matemática. Antes de tudo a professora diálogo com seus aprendentes e ressalta várias vezes sobre a obediência e o respeito ao próximo. Logo inicia a aula de matemática com revisão de conteúdo multiplicação com reserva. E em seguida aplica a atividade no quadro. No terceiro momento dá aula de História com o conteúdo trânsito. As 9h20min saem para o intervalo. Na volta continuam com atividades na classe: exercício sobre o conteúdo de história. No quinto momento a professora pede para pegar o caderno de Português e faz revisão de conteúdo: singular e plural. Em seguida passa exercício. (SOL. Miriti-tapuia. Caderno de Registro, 2007)
A professora começou a aula com uma conversa com os aprendentes sobre o que eles fizeram durante o final de semana. Vários aprendentes relataram oralmente o que tinham feito, e outros não conseguiram falar quase nada. Em seguida a professora começa a disciplina Geografia, passando atividades do livro didático: atividade em classe/exercício. A professora não explorou o conteúdo, não explicou aos aprendentes e eles apresentaram muitas dificuldades na leitura e interpretação do texto, pois não conseguiram responder as questões. (FAFA, Baniwa. Caderno de Registro, 2007) Na sala de aula as professores tinha um hábito de perguntar aos aprendentes sobre o caderno de Português, Matemática, Geografia, História, Artes e outros de acordo com o horário do dia. A seguir o aprendiz tirava o caderno, borracha e o lápis para começar a aula. Neste momento alguns ficavam com a cabeça baixa, era um sinal: não estavam com os materiais completo. Na aula de Português, foi utilizado mais o conteúdo do livro, exercício tirado do livro, ditado tirado do livro. A professora não trazia de casa um texto real do lugar para os aprendentes lerem, para facilitar a aprendizagem, ainda foi usado mais quadro e o papel mimeogrado. Em nenhum momento as professoras apresentavam materiais concretos, com a finalidade de extrair o conhecimento do aprendiz e explorar desta matéria o máximo possível. O mesmo precisava de liberdade para o desenvolvimento de sua capacidade dos assuntos preparados pelo professor. Os aprendentes não manifestavam suas ideias e não perguntava, ficavam quietos diante dessa situação. (Relatório de estágio, 2008)
214
Acrescentei nessas leituras os relatos que fiz sobre as suas experiências de
estágios de docência, sem que eles soubessem de quem se tratava a descrição.
Começou a aula dando boas vindas aos aprendentes, fazendo perguntas sobre o seu estado de saúde, família, colegas e a escola. Em seguida escreveu no quadro o conteúdo de Português: Substantivos Próprios e Comuns. Pediu para que os aprendentes copiassem. Em seguida explicou os conteúdos, testando seus conhecimentos frequentemente: “João é substantivo próprio ou comum?” Os aprendentes respondiam PRÓPRIO. Então a professora dizia: “Não entendi, é próprio ou comum?” E todos respondiam: PRÓPRIO! E a professora, mais uma vez dizia: como? Mais alto não escutei direito. E então os aprendentes respondiam aos gritos: PRÓPRIO!!! Essa repetição sistemática perdurou em toda a explanação da professora. Ao término da explicação passou um exercício no quadro para a casa. (...) (Wanzeler, Eglê. Registro de Campo, 2008)
Fizemos comparações entre as descrições e discutimos as possibilidades de
mudanças das práticas e de como elas se dariam. Os aprendentes fizeram uma
série de sugestões, apresentando suas experiências bem-sucedidas, segundo
acreditavam, no estágio. Resolvi então confrontá-los, dizendo que metade dos
relatos lidos diziam respeito às suas práticas e que, concordando com eles, todas
retrataram uma visão de escola tradicional. Afirmei que o que tinha sido
desenvolvido por eles havia sido uma mera tradução e reprodução do modelo que
eles, durante os dois anos de estágio, haviam criticado e que, portanto, chegara o
momento de eles reavaliarem suas propostas de ensino, seus planos de aula, e
suas concepções sobre o processo de ensino e aprendizagem.
Após esse processo de reflexão e de intervenção, a sala ficou em choque.
Não poderia ser diferente. Esse momento foi, sem dúvida, o mais paradigmático de
todas as jornadas. Dar-se conta de que suas práticas estavam vinculadas ao modelo
tradicional, foi de fato, um grande constrangimento. Saber que alguns colegas
fizeram diferente foi mais inconveniente ainda. No entanto, eles reconheceram a
verdade desse processo, sem, no entanto, apresentar suas justificativas pelas
posturas tradicionalistas:
Bem, fomos tradicionalistas, até porque, professora, nós nunca havíamos estado antes numa sala de aula. Nunca fizemos planos de aula, avaliação. E tem colegas que já estão nisso há muito tempo, por isso foram construtivistas. Nós não. Nunca ninguém nos ensinou sobre ser um professor construtivista. Professora, se fomos tradicionais, então precisamos ganhar mais experiência nisso. Ser professor não é assim. Muitos já nasceram com essa vocação, outros não... A gente está começando agora. Sendo que não
215
houve um professor que nos dissesse sobre como seria uma prática inovadora. Agora a senhora está nos mostrando isso... Eu não acho que fui tradicional, eu interagi com os aprendentes, sempre perguntava se eles entendiam, se queriam fazer alguma pergunta?... Mas os aprendentes ficavam quietos, sinal que estavam aprendendo... Professora, eu li estorinha, cantei músicas, isso é ser tradicional?
Essas falas estão impregnadas de sentidos, significações e interesses. O
modelo tradicional de ensino é vinculado a uma prática negativa, considerada ruim,
vista como atraso. No entanto, é este modelo que está presente na escola, nos
professores e também nos estagiários. Desprezá-lo representa uma forma de negar
a historicidade dessa instituição, bem como da constituição dos próprios sujeitos. Se
a escola ainda está organizada por práticas tradicionais, significa dizer que o
professor continua sendo representado como sujeito transmissor do conhecimento.
A representação do professor é, portanto, marcada por esse paradigma e qualquer
possibilidade de inovação possui riscos, encontra resistência e é constantemente
negada, tanto pelo aluno como pelo professor. É o que disse uma aprendente, já
professora, sobre propostas inovadoras:
Acontece também da gente propor uma atividade diferente, e os próprios aprendentes dizem que a gente tá enrolando, que não queremos dar aula. Porque pra eles tem que ter cópia, exercícios...Os outros professores dizem que isso não leva a nada, pois se os aprendentes não obedecerem a gente, como nós ficamos?
A busca pelo sentido de suas práticas pedagógicas foi uma forma de aceitar a
realidade, mas foi também um mecanismo de afirmação de si diante do outro. Dar
significados às suas práticas tradicionais implicou considerar, dentro do percurso de
formação, as falhas do próprio curso e explicitar isso foi fundamental para que os
aprendentes pudessem rever-se e, a partir disso, reconstruir suas práticas futuras.
Claro que ensinar sobre métodos e técnicas de ensino não é função do professor de
estágio, pois existem disciplinas específicas para isso, mas cabe a ele orientar sobre
as diferentes formas de planejamento e de organização do trabalho pedagógico.
Indicar caminhos para uma prática inovadora também faz parte de sua vocação. No
entanto, o modelo modular desse curso de formação não permite que se desenvolva
um acompanhamento contínuo e sistemático. Tudo é feito dentro de uma
temporalidade previamente estabelecida e sem condições de ampliação. O tempo de
(maturação) da aprendizagem não acompanha o tempo do ensino. São duas
trajetórias convergentes e concorrentes entre si. Ensinar e aprender, muitas vezes,
216
se concretiza em espaços e tempos diferentes. Nesse processo, a aprendizagem
ocorre em outros intervalos. Portanto, pode-se afirmar que a maturação da
aprendizagem é um processo que se constrói nos intervalos do ensino e da
aprendizagem. Melhor dizendo, nos entre-lugares (BHABHA, 1999) do ensino-
aprendizagem, que ora ocorre na sala de aula, ora se estende a outros lugares e em
outros tempos. Porém, é no espaço de formação que essas contradições se
evidenciam e é nele que elas precisam ser discutidas e resolvidas.
Com todos os obstáculos apresentados no caminho do tornar-se professor,
conseguimos realizar a passagem de um modelo tradicional de ensino para um
modelo de perspectiva mais avançada quanto aos métodos e técnicas. Evidente que
a passagem não foi precisa, houve muitos tropeços ainda. Alguns não conseguiram
trilhar dentro dos caminhos previstos, mas, mesmo desviando, conseguiram chegar
ao fim da jornada.
Para ajudá-los nesse processo de ruptura, apresentei alguns exemplos de
planos de ensino de tendência contemporânea. Passei alguns vídeos da TV Escola
(BRASIL. MEC) que mostravam experiências avançadas sobre o processo de ensino
e de aprendizagem. Recomendei a leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais –
PCN‟s (BRASIL. PCN), pois ali eles poderiam encontrar orientações mais precisas
quanto aos aspectos teóricos e metodológicos para o ensino dos anos iniciais.
A fim de facilitar o trabalho das equipes, apresentei um roteiro de trabalho que
serviu com guia para a elaboração dos seus planos de aulas (Quadro 6).
217
QUADRO 6
Orientações Metodológicas para elaboração do Plano de Aula
1. Definição do conteúdo de ensino: ao definir o conteúdo de ensino lembre-se de
estabelecer relações com a realidade sociocultural dos aprendentes. Atente-se para
o contexto em que eles vivem, seus aspectos naturais, culturais, sociais e
econômicos. O livro didático, caso seja necessário usar, deve ser apenas uma
ferramenta de aprendizagem. Crie seus próprios conteúdos. Aproveite os aspectos
da cultura local e transforme-os em conteúdos de ensino. É preciso saber aplicá-los
fazendo relações com as experiências pessoais dos aprendentes.
Exemplo: A Feira de São Gabriel da Cachoeira: produtos naturais e culturais.
Observe que um único tema pode ser trabalhado em conteúdos de várias
disciplinas, de forma interdisciplinar. No tema acima pode ser trabalhado Ciências
(reino animal e vegetal), história (lugares, trabalho, costumes, práticas dos povos da
cidade), português (gramática e produção de texto), matemática (cálculos: venda de
produtos, preços, quantidade), geografia (paisagem, espaço, tipos de produtos,
origem dos produtos: rios, floresta) e Artes (cores, artes plásticas, esculturas,
desenhos).
2. Definição dos objetivos: os objetivos de ensino devem fazer relação direta com o
conteúdo. Deve-se dizer claramente o que se quer ensinar, que aspectos devem ser
atingindo no processo de aprendizagem dos aprendentes.
Exemplo - Conceituar os elementos da natureza e da cultura; - Conhecer e diferenciar os tipos de paisagens. - Conhecer o reino animal, vegetal e cultural de São Gabriel da Cachoeira; - Reconhecer os produtos naturais e culturais vendidos na feira municipal; - Diferenciar os produtos naturais e produtos culturais; - Classificar os produtos naturais: animais, vegetais; - Conhecer os produtos culturais: culinária, ornamentos, vestuários etc; - Conhecer a origem dos produtos da feira: lugar de produção, os produtores; etc.
3. Procedimentos Metodológicos: nos aspectos metodológicos é importante
desenvolver atividades que tenham a participação direta dos aprendentes. Estas
atividades devem ser flexíveis, permitindo ajuste sempre que possível no momento
das atividades. No tema proposto como exemplo, deve-se instigar os aprendentes a
responderem sobre a feira, certamente eles devem saber o que se vende nela.
Estimule-os a evidenciarem seus conhecimentos e a partir disso desenvolva o
conteúdo de ensino oriundos das disciplinas. Peça que eles produzam seus próprios
conteúdos e apresente-os a turma. Isso é muito importante para o desenvolvimento
cognitivo dos mesmos. Inventem uma feira na sala de aula e peça que os
aprendentes sejam os feirantes e os consumidores.
4. Avaliação: essa etapa é fundamental para a compreensão do desenvolvimento
cognitivo dos aprendentes. Numa perspectiva crítica a avaliação deve ser feita a
partir de duas vias: autoavaliação e avaliação. A autoavaliação é importante porque
o aluno precisa refletir sobre o que foi construído em termos de conhecimento, qual
a sua participação nesse processo e o que precisa melhorar no desempenho da
aprendizagem. A avaliação cabe ao professor refletir sobre o que os aprendentes
aprenderam e o que ainda precisam aprender, pois é a partir desse processo que
218
Fonte: Orientação Metodológica, 2008.
Diante dessas orientações, os aprendentes partiram para a reformulação de
seus planos. Entretanto, tínhamos pouco tempo, restava apenas uma semana. Com
isso, tive que dobrar o horário de acompanhamento pedagógico. Apesar do tempo
restrito, foi possível reorganizar o trabalho pedagógico da turma. Contudo, as
equipes tiveram dificuldades em construir seus planos com a orientação
metodológica proposta, o que se estendeu ao momento de suas práticas.
Denota-se que a passagem de um modelo para outro não ocorreu de forma
simples, bastando-lhes apenas confrontá-los. Talvez porque seja preciso uma
tomada de consciência interior, que pode ocorrer no momento da formação ou não.
Esse processo me faz pensar que a conscientização epistemológica se faz por duas
vias de subjetividades: interna e externa. Mas não basta atingi-la, é preciso saber
pensar sobre como transformá-la. Compreender implica conhecer. É o conhecimento
que gera a mudança. Mas este precisa de tempo, de práticas e de reflexão. Nesse
caso, conhecer implica sempre pensar, pois é a partir da experiência do pensamento
que o conhecimento se transforma. Dito de outro modo, conhecimento supõe o
desenvolvimento do pensamento e desenvolver o pensamento supõe metodologia e
procedimentos sistemáticos do pensar, que sejam capazes de interpretar a realidade
e organizar estratégias de intervenção. Para tanto, a aprendizagem conceitual e/ou
de conteúdo permite que os aprendentes aprendam a pensar teoricamente a
respeito de um objeto e a saber lidar com ele na prática, em situações concretas da
vida.
A reorganização das ideias, pensamentos e das práticas foi uma experiência
que se construiu em três momentos simultâneos: conhecer, sentir e pensar. Esses
ele é capaz de se replanejar e se organizar em torno do ensino e da aprendizagem.
Os exercícios servem como uma ferramenta de pesquisa nesse processo reflexivo.
É a partir deles que o professor analisa e avalia o desempenho dos aprendentes e a
com isso cria novas estratégias de intervenção. Eles não devem ser usados como
instrumentos de classificação da aprendizagem.
5. Organização do tempo. Organize os tempos de aulas de forma equilibrada, para
que as atividades possam ser concluídas de forma satisfatória. Deixe um tempo para
avaliação, reflexão e conclusão da aula.
219
momentos se constituíram como ferramentas cognitivas implexas nas condições
existenciais dos aprendentes e foram responsáveis pelos processos de re-
elaborações dos seus projetos de aprendizagens. A implexidade do pensamento,
sentimento e conhecimento, resultado de uma relação autopoiética, produtora de si
no outro e do outro em si, permitiu o desenvolvimento de novas práticas
pedagógicas e inserção de seus complexos sistema de valores, ideias, costumes,
hábitos, saberes e práticas, que deram sentindo a esses processos de mudanças de
paradigmas.
Explicitarei a seguir como essas mudanças foram incorporadas pelos
aprendentes e que significados foram dados a elas.
Ensinar e aprender: entre o tradicional e o inovador
A reconstrução dos planos de aula foi um processo intenso e muito dinâmico.
Tínhamos apenas três dias para re-elaborar as propostas de ensino. Com pouco
tempo, inserimos o domingo para a orientação, pois entraríamos na última semana
de estágio e na etapa final de avaliação. Em geral, a preocupação dos aprendentes
recaía sobre os procedimentos técnicos de ensino, dentre os quais foram os mais
utilizados nos seus planos os jogos lúdicos. No que diz respeito aos conteúdos de
ensino, algumas equipes inseriram temas da realidade cultural de São Gabriel, indo
de encontro às orientações das professoras regentes. Fizeram isso seguindo a
minha orientação, por eu acreditar que seus planos deveriam ser coerentes com
seus projetos de pesquisa.
Outro aspecto importante observado nas suas práticas é que, apesar de
assumirem em seus planos de aula técnicas inovadoras, estas não se concretizavam
numa didática de ensino dinâmica e inovadora. Outras vezes, a técnica era
tradicional, mas a didática era boa. Significa dizer que nem tudo que é tradicional
representa atraso ou baixa qualidade de ensino-aprendizagem e nem tudo que inova
se traduz em qualificação. Parece claro que saber ensinar vai muito além de um
conjunto de técnicas de ensino, representa sempre uma expressão de linguagem, de
domínio conceitual e metodológico, que se constrói na e pela experiência. Os cursos
de formação de professores é apenas uma experiência que possibilita o tornar-se
professor, mas é a escola que, efetivamente, o constrói.
220
As experiências da última semana de estágio foram bastante enriquecedoras
e trouxeram conteúdos importantes para reflexão do processo de formação de
professores. Percebi que os conteúdos disciplinares do curso Normal Superior pouco
se refletiram nas práticas dos estagiários, faltou-lhes a aprendizagem dos conceitos
e dos métodos referentes à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, além de
conteúdos referentes ao ensino das ciências humanas e naturais. A educação
científica não foi de fato aplicada, pois lhes faltaram também conhecimentos básicos
para o ensino das ciências de modo geral. Eram claras suas fragilidades em
Português, em Matemática, Ciências, Geografia, História e Artes.
Como ensinar sem saber? Como colocar em prática um ensino que não fora
apreendido? Não estaria aí uma das causas do fracasso escolar? O ensino superior
precisaria ser repensado, situando os cursos de licenciaturas. É necessário pensar a
educação científica para o campo escolar, dada sua importância no desenvolvimento
cognitivo dos sujeitos. Pois são os conteúdos científicos, considerados como
recursos cognitivos apreendidos na formação, que devem os ajudar na construção
de significados, na interpretação da realidade, permitindo-lhes que organizem
estratégias de intervenção sobre ela. A ineficiência da educação científica pode
significar a ineficácia da educação escolar. Mas essa é uma questão que não cabe
aqui discutir, trata-se apenas explicitá-la como um problema da formação de
professores e na qualificação escolar. O curso Normal Superior forma professores
generalistas, destinados a ministrar conteúdos de todas as ciências, mas a formação
precisa se preocupar em ensinar competências científicas, pois sem elas o ensino
tende ao fracasso.
Minha preocupação com a educação científica dos professores não deve ser
vista de maneira hierárquica ou hegemônica, supervalorizando o saber científico,
pois acredito que a escola precisa também ensinar conteúdos mais humanísticos
que incluam as dimensões do imaginário, da ética, da estética, do simbólico e do
mito na formação dos aprendentes. Creio que a escola é um lugar legítimo para a
formação de novos sujeitos e também para reaproximar ciência e sabedoria, culturas
científicas e culturas das humanidades. No entanto, os cursos de formação de
professores teriam que refazer seus programas de ensino para poder dar conta da
emergência de novos saberes para educação.
Apesar dos esforços dos aprendentes em realizarem uma prática inovadora,
muitos não conseguiram romper com o modelo tradicional, preocupando-se apenas
221
em transmitir conteúdos e muitas vezes excluíram a participação do aluno nesse
processo. Outros se detiveram em trabalhar conteúdos sociais oriundos dos
problemas da realidade, negligenciando os conteúdos disciplinares, caindo, portanto,
numa perspectiva espontaneísta. Houve alguns que conseguiram cruzar uma prática
tradicional com uma prática mais inovadora, ou seja, inovaram nas técnicas, mas
deram aulas sem contextualizar os conteúdos.
A aula de arte aconteceu no mesmo dia da aula de religião, sendo que atividade realizou-se no quinto tempo e o conteúdo a ser trabalhado foi a arte e o espaço e a importância da arte, escolhi esses dois temas por motivo que eles estão relacionado com o tema da minha pesquisa, a arte está em qualquer lugar que nós estejamos, como, por exemplo, em nossa casa, no trabalho, nas praças, na sala de aula, etc., e em todo lugar que ela estiver está sempre ocupando um determinado espaço, e a importância dela, é porque ela transmite cada momento e pensamento de um artista em relação a uma cidade ou de acontecimento seja ela alegre ou triste. (sic) Logo no inicio fiz um breve comentário sobre a arte e o seu valor, falei que dentro da sala de aula que nós estávamos existia obra de arte, só que ela estava passando despercebida, dei um exemplo que uma delas eram as carteiras onde eles sentam todos os dias, depois disso passei atividade em grupo sendo que três era composta de cinco elementos e dois de quatro aprendentes, deixei eles a vontade para desenhar o que eles quisessem. É um pouco difícil trabalhar com eles, sabendo muito bem que aprendentes dessa idade gostam de ficar conversando, mas o bom professor tendo o domínio de si, é fácil de controlar os aprendentes. Gostei de trabalhar nesse dia com arte, eles são bastante criativo, eles gostam de pintar, é pena que esse tipo de atividade necessita de mais tempo, quando menos a gente esperar já terminou a hora, enfim, pra ser professor tem que ter vocação e paciência. (sic) (OZORIO)
Houve aqueles que conseguiram desenvolver uma prática contextualizada,
relacionando conteúdo das disciplinas com a realidade dos aprendentes, além de
inserirem os conhecimentos indígenas, apesar de também apresentarem processos
pedagógicos tradicionais. E é sobre essas práticas que analisarei, visto que elas
representaram uma experiência possível de realização de práticas pedagógicas
contextualizadoras, significativas e vinculadas ao universo mítico cultural dos povos
indígenas. Nessas práticas é possível perceber alguns sinais de uma epistemologia
intercultural.
Iniciarei minha reflexão em torno das aulas da equipe 4, que desenvolveu o
Projeto de Aprendizagem: Valorização Cultural (ver Quadro 6). Essa equipe
construiu um projeto baseado num ensino contextualizado e reflexivo quanto aos
aspectos históricos e étnico-culturais. A intencionalidade desta equipe foi apresentar
um trabalho pedagógico que expressasse e valorizasse as culturas de seus povos:
222
Tukano, Tariana e Baré. O interessante nesse processo foi o modo como os
conteúdos foram desenvolvidos, sem qualquer menção ou uso do livro didático. Os
aprendentes construíram seus próprios conteúdos, valendo-se de suas experiências
culturais. As disciplinas transformaram-se em instrumentos culturais, e os conteúdos
de aprendizagens foram criados a partir do universo mítico, cosmológico e culturais
dos povos indígenas em destaque. Foi a partir desses conteúdos culturais que o
ensino e a aprendizagem foram sistematizados, dando a essa experiência
significados importantes para a renovação da prática pedagógica.
As aulas da aprendente Bali Tariana puseram em evidência aspectos
fundamentais para um ensino implicado no contexto e nas experiências culturais.
Pode-se afirmar que suas aulas, tais como as dos demais colegas da equipe,
assumiram uma perspectiva intercultural, na qual o diálogo com outras culturas
tornou possível uma prática pedagógica significativa. Bali inicia suas aulas se
colocando como índia e falando na língua Tukano, se apresenta aos aprendentes,
em seguida faz a apresentação na língua portuguesa:
Bom dia aprendentes, eu sou a professora Bali, sou da etnia Tariana, estou aqui como meus colegas, fazendo estágio supervisionado, e bem ali sentada esta minha professora orientadora, que está aqui pra me avaliar como professora. Hoje darei a aula de português, onde nós iremos trabalhar a ortografia.
O plano de aula que Bali propôs para língua portuguesa tem como conteúdo:
Treino Ortográfico (ar, er, ir, or, ur) e objetiva “treinar e distinguir as formas gráficas e
fonemas” (BALI. Plano de Aula 1, 2008). Sua proposta metodológica para aula se
baseia numa atividade concreta com os aprendentes:
Mostrar concretamente o vaso com plantinha (jambeiro) e apresentar o texto - a árvore – no cartaz. Distribuir texto mimeografado para a leitura coletiva. Diálogo sobre a árvore e sua importância e utilidade para o ser vivo. Trabalhar ortografia: ar, er, ir, or, ur, através de atividade. Atividade: Preenchar o espaço com: ar, er, ir, or, ur. Tarefa (BALI. Plano de Aula, 2008)
Bali conduziu a aula com segurança, se utilizando de uma didática interativa.
Os aprendentes participaram das atividades, demonstrando bastante interesse.
Afetivamente, Bali demonstrou uma boa relação com a turma. Ela demonstrava
muito afeto para com os aprendentes, que a abraçavam vez por outra. No que se
refere aos conteúdos, valeu-se das plantas regionais que fazem parte da realidade
223
local. Bali explorou o conhecimento dos aprendentes sobre essas árvores e sempre
pedia que eles as descrevessem a partir de suas características físicas, cheiros,
sabores, lugares, utilidades, etc. De modo geral, apesar de ter usado um texto26
pronto e de seus exercícios terem sido de natureza de fixação, os aprendentes
conseguiram assimilar os conteúdos satisfatoriamente.
Reflexões sobre a prática por Bali
A partir do plano de aula preparado, baseado no plano de curso: valorização da cultural - apliquei a minha aula partindo do concreto. Mostrei o vaso com a plantinha jambeiro e apresentei o tema do texto a árvore no cartaz, onde explorei com diálogo com aprendentes a interpretação do texto. Conforme as respostas foram listadas os tipos de árvores como: pé de cupuaçú, goiabeira, limoeiro, jambeiro, ingazeiro, abacateiro, bacabeira, açaizeiro, abiozeiro, jaqueira, laranjeira, pé de biriba, pé de graviola, pé de tucumã, pé de carambola na lousa. Em seguida explorei a importância da árvore e sua utilidade para o ser vivo. Logo distribui o texto mimeografado para a leitura coletiva. Posteriormente trabalhei a ortografia: ar, er, ir, or ur. Os aprendentes gostaram da aula, pois houve a participação, demonstraram interesse pelo assunto, avalie o nível do aprendizado por meio de observação individual: interesse, participação, assimilação e atividade e é preciso que o professor esteja atento na hora da avaliação, cada aluno tem seu nível de aprendizado. A aula de língua portuguesa foi proveitosa, pois os aprendentes gostaram da aula, mas percebi que para estar na sala de aula precisa estar seguro no conteúdo, porque o aluno é muito ativo e curioso.
Apesar do esforço de Bali em ministrar a aula de forma interativa se utilizando
de uma abordagem histórico-cultural, esta apresentou um equívoco conceitual:
formas gráficas e fonemas. O ar, er, ir, de acordo com as regras gramaticais, trata-
se de conjugação verbal, caracterizada pela vogal temática a, e, i, respectivamente
1ª, 2ª e 3ª conjugação. Certamente que esse equívoco reflete um pouco da
deficiência do curso de formação (Normal Superior), mas também reflete a falta de
estudo quanto ao conteúdo previsto. Não pretendo refletir sobre essas falhas
conceituais, pois isso exigiria de mim competências disciplinares específicas, que
não cabem aqui nesse trabalho. Mas como se trata de um processo de formação de
duas vias de mãos-duplas: eu e os aprendentes e estes com outros aprendentes é
importante explicitar esse processo problemático, pois este recaiu sobre aquilo que
já apontei anteriormente, que é a formação científica, sem a qual a aprendizagem
26
O texto usado por Bali nessa aula foi extraviado, por conta disso não pude explicitá-lo. Em todas
suas aulas Bali sempre apresentava um texto de sua autoria.
224
conceitual e metodológica não se desenvolve satisfatoriamente. Não poderia deixar
de apontar esse problema, pois isso representaria negligenciar aspectos importantes
dessa experiência de formação. Por conta disso, fiz uma intervenção no plano de
aula de Bali, esclarecendo-a sobre o problema de sua aula. Esta se mostrou
incomodada pela situação, mas afirmou ter retirado o conteúdo do livro. Disse que
na próxima aula tentaria reverter o problema27.
Transposição Didática intermediária: o conhecimento indígena como objeto de
ensino
Um conteúdo de saber que tenha sido definido como saber a ensinar sofre, a partir de então, um conjunto de transformações adaptativas que irão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O „trabalho‟ que faz de um objeto de saber a ensinar, um objeto de ensino, é chamado de transposição didática. (Chevallard, 1991, p.39)
A proposta teórica de Chevallard (1991) para analisar os sistemas didáticos e
suas transformações, denominada de Transposição Didática, consiste na análise do
processo de adaptação pelo qual passa o saber sábio (científico) para o saber
ensinado (escolar). De acordo com o autor, o saber sofre intensas transformações
até chegar à sala de aula, passando por três níveis de mudanças:
a) saber sábio: saber original, oriundo da comunidade científica e tido como
ponto de referência para as disciplinas escolares. Esse saber sofre adaptação
ao ser transformado em conteúdo disciplinar;
b) saber a ensinar: refere-se à transformação de um saber sábio para um
saber a ensinar, materializados em livros didáticos, manuais universitários e
programas de ensino escolares. Nesse caso, o saber é adaptado para uma
linguagem mais simples, direcionada para a escola. Além disso, esse nível de
saber sofre um processo de descontextualização – quando rompe com seu
lugar de origem – despersonalização – significa perda de seu contexto original
– e de dessincretização – representa a ruptura com suas bases
epistemológicas, e, consequentemente, ao ser demolido, passa por uma
transformação que dá a ele um novo contexto epistemológico. Chevallard
chama esse processo de transposição didática externa;
27
Infelizmente não pude assistir à aula em que Bali fez a correção, pois estava supervisionando
outras equipes. Mas ela afirmou ter resolvido o problema.
225
c) saber ensinado: trata-se de uma segunda transposição do saber, adaptado
para o tempo didático, ao momento da sala de aula, aquele que o professor
ensina ao aluno. Essa adaptação é feita a partir de dois recortes: quando o
saber sábio é transformado em saber a ensinar e estar presente nos livros
didáticos – transposição didática externa – e quando esse saber é adaptado
pelo professor para a sala de aula – transposição didática interna, pois é feita
no espaço escolar. Em ambos os casos o saber passa por transformações
que difere completamente do saber sábio, pois perde seu sistema de
referência original. Portanto, as disciplinas escolares não podem ser vistas
como conhecimento científico e apesar de fazer parte dele, esta se encontra
completamente modificada.
Os lugares pelos quais essas transformações são construídas e estabelecidas
até chegar a sala de aula, Chevallard denomina de noosfera, esfera de ação pela
qual o saber é transformado. Ela é constituída por todos os representantes do
sistema de ensino (instituições, pais de aprendentes, professores, pedagogos,
diretores, editoras, pesquisadores e especialistas das disciplinas). A noosfera é a
responsável direta pelo processo de transposição didática em todos os níveis de
saber: definição dos conteúdos a serem ensinados; estabelecimento dos conteúdos
por níveis de ensino; criação de uma linguagem adaptada ao processo de
transmissão desses saberes; definição das competências de ensino e seus
objetivos, bem como os meios e as técnicas a serem desenvolvidas. Em outras
palavras, a noosfera representa o fio condutor que liga os três níveis de saberes
(CHEVALLARD, 1991, p.28-30).
Se os saberes escolares sofrem a ação da noosfera, assumindo
características diferentes dos seus sistemas de referências, como afirma Chevallard,
significa dizer que os sistemas didáticos possuem vida própria e têm certa
autonomia em relação aos saberes escolares. Nesse caso, o conceito de noosfera
deve ganhar um sentido mais complexo, visto que amplia as dimensões desses
saberes para além das ciências ou das disciplinas e incluem novas ideias e novas
formas de interpretações e traduções da realidade. Essa compreensão se apoia em
Edgar Morin, que define a noosfera como o reino das ideias, habitado por entidades
vivas, seres de espíritos, dotados de certa autonomia, que operam o pensamento.
Morin afirma que:
226
Vivemos, vale lembrar, em um universo de signos, símbolos, mensagens, figurações, imagens, ideias, que nos designam coisas, situações, fenômenos, problemas, mas que isso, por isso mesmo, são os mediadores necessários nas relações dos homens entre si, com a sociedade, com o mundo. Nesse sentido, a noosfera está presente em toda visão, concepção, transação, entre cada sujeito humano com o mundo exterior, com os outros sujeitos humanos e, enfim, consigo mesmo. A noosfera tem certamente uma entrada subjetiva, uma função intersubjetiva, uma missão transubjetiva, mas é um elemento objetivo da realidade humana. (MORIN, 2001, p.140)
Essa compreensão nos dá segurança para afirmar que o conceito de noosfera
de Chevallard precisa incluir novos elementos para o entendimento mais claro do
processo de transposição didática e para a própria análise dos sistemas didáticos.
Para Morin, a noosfera é a esfera que conduz o conhecimento humano. Este se
constrói para além das ciências, sofrendo influência do contexto
biosocioantropológico em que é produzido, logo, é preciso pensar a noosfera como o
habitat dos mitos, dos símbolos, ideias, lendas, deuses, saberes ancestrais, pois são
seres que se tornaram indispensáveis a vida humana na terra (MORIN, 2001, p.140).
A transposição didática realizada pelos aprendentes sofre a ação de uma
noosfera que representou muito mais que uma grade curricular de ensino, de um
plano de aula ou de uma proposta metodológica. Ela representou a vivência de uma
experiência implicada nas contradições do processo de escolarização dos mesmos,
nas suas condições existenciais e no universo mítico, natural, cultural e sociológico
em que estas foram estabelecidas.
Significa dizer que os aprendentes construíram suas experiências de
docências ancoradas por uma noosfera povoada por seres de espíritos oriundos não
apenas do mundo das ciências, mas do mundo dos mitos, da sabedoria, do
imaginário, dos símbolos e da experiência do vivido.
No mundo das ciências, especialmente, os aprendentes apresentaram uma
transposição didática deformada ou construída com uma ancoragem conceitual
equivocada. Quando isso ocorre, o processo de ensino e aprendizagem se fragiliza
e o acesso ao conhecimento produzido pelas ciências se torna inviável. Portanto, os
equívocos da transposição didática podem ser responsáveis pelo fracasso escolar.
Os cursos de formação de professores, centrados muitas vezes em reflexões
teóricas e no processo de aprendizagem, esquecem, muitas vezes, de refletirem
acerca do ensino, dos saberes escolares e de como desenvolvê-los.
Isso representa um problema para escola e ficou evidente nessa experiência
de formação. É o caso da aprendente Bali (aula de português acima citado), em que
227
a transposição didática foi realizada dentro de um sistema de referência interpretado
de forma equivocada, pois o conteúdo foi apreendido e ensinado erroneamente. O
que me permite afirmar que os conteúdos de ensino precisariam ser reconhecidos
não apenas como um saber a ser ensinado, mas como saber construído
cientificamente e que, portanto, possuem condições próprias para serem ensinados
e que estas devem levar em consideração as mudanças sofridas pelo conhecimento.
O movimento do saber sábio – produzido pelos cientistas – para o saber a ensinar –
definido para o livro didático – ao saber ensinado – que ocorre na sala de aula – ao
qual Chevallard chama de transposição didática, necessita constantemente ser
ressignificado e atualizado, bem como ser reconstruído pelos professores para que
se possa de fato atingir ao que Morin chama de democracia cognitiva (MORIN,
2002).
Com efeito, atingir esse nível de relações entre os saberes, significa atentar
para sua ecologia. Nesse caso, a forma como os saberes são desenvolvidos e
compreendidos pelos sujeitos da aprendizagem depende de condições existenciais
próprias e de uma compreensão profunda das dimensões espirituais, cognitivas,
sociais e culturais nas quais esses saberes foram construídos e transmitidos. Pois,
nesse movimento, os saberes sofrem transformações que muitas vezes fogem de
suas origens, e por vezes são recriados de forma completamente diferente daquelas
que os criaram, acarretando sua deformação. Ecologizar os saberes significa trilhar
pelo circuito da vida-morte ao qual eles são submetidos e que, em alguns
momentos, perdem sentidos, noutros ganham. Assim os saberes escolares devem
ser tratados, dentro desse circuito, para que eles possam de fato dar significados ao
processo de ensino e aprendizagem.
Em que pese as dificuldades evidenciadas por Bali no que se refere à
transposição didática e à legitimidade do conteúdo de ensino da língua portuguesa,
é importante considerar que esse processo também se desenvolveu com outras
condições cognitivas e culturais que merecem ser refletidas. Essas condições
correspondem a um tipo de transposição didática elaborada a partir de um contexto
cultural próprio e fora dos domínios da ciência ocidental. O conhecimento a ser
ensinado foi originário dos saberes indígenas. Ou seja, foi construído dentro de um
sistema de referência cognitiva ligado às experiências desses povos, que, em larga
medida, não se encontram nos livros didáticos. No entanto, ao ser transformado em
objeto de ensino escolar, permitiu a renovação dos sistemas de referências
228
escolares, ressignificando o ensino e, consequentemente, tornando a aprendizagem
mais significativa para os aprendentes.
Para David P. Ausubel (2000, p.4)
O conhecimento é significativo por definição. É o produto significativo de um processo psicológico cognitivo (“saber”) que envolve a interacção entre ideias “logicamente” (culturalmente) significativas, ideias anteriores (“ancoradas”) relevantes da estrutura cognitiva particular do aprendiz (ou estrutura dos conhecimentos deste) e o “mecanismo” mental do mesmo para aprender de forma significativa ou para adquirir e reter conhecimentos.
O que torna uma aprendizagem significativa é a possibilidade de estabelecer
relações entre o contexto e o conceito, o conteúdo e a realidade, o mundo e a
escola. É nesse sentido que a ancoragem conceitual ou os sistemas de referências
cognitivos são imprescindíveis para o processo de transmissão, aquisição e
assimilação da aprendizagem.
O texto produzido por Bali para aula de história, concernente à época da
extração da borracha em São Gabriel da Cachoeira foi feito segundo as orientações
da aprendizagem significativa, na qual ela assumiu como conteúdo de aprendizagem
um saber oriundo da memória de seu povo Tariana. Esse texto foi elaborado em três
etapas: consulta às fontes curriculares; consulta às fontes históricas de seu povo –
história oral e memória; tradução da língua Tukana para Portuguesa. Bali valeu-se
da pesquisa histórica para elaborar o conteúdo de ensino, que teve como objeto o
tempo da borracha no rio Negro. O sujeito de sua pesquisa foi o seu pai, falante da
língua Tukano. Por isso, a aprendente fez um duplo trabalho de tradução do
conhecimento e de transposição didática: gravar a narrativa do pai em língua
Tukano, traduzir para o português e em seguida produzir um texto para a sala de
aula.
O tempo da borracha no rio Negro
Tudo começou no tempo da Guerra dos Canudos. Onde alguns soldados foram enviados para trabalhar com a extração da borracha, para investirem nos armamentos. Manoel Albuquerque, conhecido como Maduca, e seu irmão Francisco Albuquerque eram chamados de soldados da borracha, a qual (sic) foram enviados para comandar a extração da borracha. Nesse tempo o Maduca escravizava e explorava os índios para trabalharem na extração da borracha, maltratando e até mesmo matando. O local estava localizado no outro lado da comunidade chamado Boa Vista e que até hoje permanece o lugar. Com a mão-de-obra rígida houve um progresso e exportação para Manaus onde sustentaram com isso em nível do Amazonas e até mesmo Brasil, sendo bastante valorizado. Naquele tempo o comerciante mais forte em São
229
Gabriel da Cachoeira era o senhor Graciliano Gonçalvez o avô do atual prefeito da cidade. (sic) Assim ficou marcada essa história verídica até os dias atuais. (TARIANA, Bali. Plano de aula, 2008)
Observa-se no texto da Bali que ela não se preocupou em contextualizar o
conteúdo historicamente. A base de suas reflexões foi a história narrada por seu pai,
na qual o tempo assume um caráter atemporal e originário. “Tudo começou no
tempo da Guerra dos Canudos... Naquele tempo...” Tal como as narrativas mìticas, o
texto de Bali busca recuperar um tempo que não mais se vive, mas que pode ser
sentido, tornando a existência humana mais significativa.
A aula de Bali começa com ela distribuindo as carteiras dos aprendentes em
forma de círculo. Os aprendentes são recepcionados carinhosamente. Ela então
inicia o conteúdo de ensino perguntando para a turma se conhece alguma história
sobre a extração da borracha? Se os aprendentes sabiam de qual árvore se tira o
leite que vira borracha? E como ela é produzida? Alguns souberam responder.
Então ela começa a falar sobre a importância desse tema para a história dos povos
indígenas. Mostra aos aprendentes as formas de exploração, o trabalho escravo
sofrido por esses povos e de como ainda essa história está presente nas suas vidas.
Ensina-os como se tirava o látex, como se produzia a borracha e para que ela
servia. Em seguida faz uma leitura coletiva do texto (O tempo da borracha no rio
Negro), afirmando primeiramente que teve ajuda do pai para elaborá-lo. Os
aprendentes participam ativamente das atividades propostas: elaboração de um
desenho sobre o texto estudado.
A transposição didática realizada por Bali, assim com a dos demais membros
da equipe, se apoiou em três tipos saberes: saberes ocidentais, saberes indígenas e
saberes mestiços. Esses saberes resultam de um processo de relações interculturais
e transculturais entre índios e não índios. Estão em comunicação mútua, mas
mantêm suas especificidades, bem como seus sistemas de referências. As trocas
entre esses saberes permitiu a criatividade no processo de elaboração de novos
saberes de ensino – saberes escolares.
Os saberes ocidentais são aqueles referentes ao processo de organização
curricular e aos procedimentos metodológicos estabelecidos nos programas de
ensino. Neles se encontram as disciplinas, as estratégias de ensino e a avaliação. É
a partir desses saberes, instituídos socialmente, que os aprendentes formularam
230
suas práticas e ou os seus modelos didáticos pedagógicos. Têm como sistema de
referência a objetividade, racionalidade, disciplinaridade e a ordem hierárquica dos
conteúdos.
Os saberes indígenas são aqueles encontrados no universo sociocultural
desses povos, nas suas experiências míticas e cosmológicas elaboradas
milenarmente. Por isso, são considerados saberes tradicionais. Seus sistemas de
referência estão ancorados na subjetividade, sensibilidade, no imaginário e no
simbólico. Os aprendentes recorreram a esses saberes para dar legitimidade as
suas culturas e para torná-las presentes no campo escolar.
Um exemplo desse processo foi a aula de Tuli Tukano, que, na disciplina
língua portuguesa, com conteúdo interpretação de texto e produção textual, se valeu
de um conto indígena sobre os animais. O objetivo dessa atividade era promover
nos aprendentes o interesse pela região, reconhecer seus animais e sua floresta.
O Jabuti e a Onça Um dia a onça foi procurar o jabuti para comê-lo. Após pouco tempo de caminho, encontrou e viu: estava deitado perto do tronco de uma grande arvore. Aí a onça arrastando-se, foi devagar sobre ele. (sic) Quando ela se aproximava, o jabuti entrou no buraco daquele pau. Desse modo ao chegar, a onça foi abaixando-se para espiar pelo buraco, enfiou uma das mãos para lá, para pegar o pé do jabuti. Enquanto isso, o jabuti enfiou todos os pés dentro de seu casco. Inesperadamente, a onça sentiu morder e arrancar o próprio dedo. Então sangrou muito. Sentindo dor de sua ferida, a onça saiu correndo e gritando pelo mato adentro. (TUKANO, Tuli. Plano de aula, 2008)
A transformação desses saberes em conteúdos de ensino e de aprendizagem
foi muito significativa sob o ponto de vista da construção do conhecimento voltado
para a sala de aula, pois representou a inclusão de um novo sistema de referência
conceitual: o mitopoético. Essa referência mitopoética deve ser entendida como uma
narrativa de ensino e aprendizagem implicada na experiência mítica dos povos
indígenas, fundadora de suas cosmologias e refundadoras de suas histórias e de
suas experiências com outras culturas. A escola passa ser um espaço-tempo
recriador e renovador de suas identidades, de suas culturas e de suas narrativas. Os
conteúdos míticos, ao serem transformados em objetos de ensino, expressam suas
concepções sobre o mundo, a vida, os homens e a natureza.
231
Os saberes mestiços são aqueles construídos a partir do encontro entre os
saberes ocidentais e os saberes indígenas. Sob o ponto de vista teórico, esses
saberes podem ser compreendidos como aqueles que se encontram ancorados
pelos operadores da complexidade. Significa dizer que são tecidos em conjuntos, em
conexões mútuas. Logo, são misturados e instituídos pelo diálogo entre as culturas e
pela valorização dos sistemas de referências que as organizam. Portanto,
comportam um sistema de significados e representações que ultrapassam as
fronteiras disciplinares, indo para além delas, estabelecendo processos pedagógicos
criativos, dialógicos e transdisciplinares.
A partir desses processos, os saberes mestiços foram construídos e
transformados em objetos de ensino. Neles encontram-se as marcas das duas
culturas: culturas das humanidades (indígenas) e culturas científicas (ocidentais).
Apesar da mistura, explicitam a presença da diferença, da contradição, ao mesmo
tempo em que põem em evidência as trocas e as conexões entre os saberes, por
isso mesmo apresentam os sinais da incerteza e do imprevisível.
O curso desses saberes misturados são instáveis, flutuantes e flexíveis. Os
saberes mestiços, ao serem construídos pela aproximação das disciplinas científicas
e das experiências culturais, transformam os saberes escolares e dão a eles uma
dimensão intercultural. Logo, esses saberes infletem na produção de um saber e de
uma prática intercultural, visto que tanto os saberes científicos como os saberes
indígenas são transformados em objetos de ensino.
Um exemplo de produção de um saber mestiço foi a proposta do aluno Ludi
Tariana para o ensino de matemática. O conteúdo foi retirado da cultura Tariana, no
entanto, foi desenvolvido na língua tukana e, ao ser transformado em objeto de
ensino, contou com as referências conceituais do saber ocidental (Quadro 7). O
objetivo de sua aula foi ensinar os números hindo arábicos na língua indígena,
valorizando a cultura da região do alto rio Negro.
Primeiramente, Ludi ensinou os números de 1 a 10 em língua Tukana. Notou-
se que alguns aprendentes reconheciam esses números, pois falavam na língua
sem dificuldade. Verificou-se depois que essa era língua materna deles. Os
aprendentes não índios demonstravam interesse pela aprendizagem. Os recursos
didáticos utilizados pelo aprendente foram um cartaz contendo os símbolos
numéricos dos Tukano e o artesanato indígena: cestaria, banco e instrumentos
232
musicais. Esses objetos mostravam traços étnicos, que simbolicamente
representavam os números hindo arábicos em Tukano.
QUADRO 7
RECURSO DIDÁTICO
Fonte: Pesquisa de Campo, 2008.
OS NÚMEROS INDO ARÁBICOS NA LÍNGUA TUCANA
Mani
Nikaga
Piaga
Itiaga
Baparatise
Nikamukise
Nikamikuse nikasa
Nikamukise piaga
Nikamukise itiaga
Nikamukise baparitise
Puamukuse
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
233
Ludi afirmava o tempo todo a importância desses símbolos para a sua cultura
e a presença desses símbolos na vida cotidiana dos índios. Essa preocupação
também vai aparecer no artigo de sua autoria sobre a origem da matemática
indígena:
A origem da Matemática Indígena
O homem através de seu trabalho diário veio dedicando matemática com a prática concreta desde sua origem sobre o mundo com a finalidade de lembrar ou para não esquecer começou utilizar certos objetos ou símbolos de acordo com a atividade. Os índios sabiam matemática oralmente e foi repassado para seu genitor (sic) quando completava oito anos de idade por sua vez ele crescia como esta sabedoria. Infelizmente não foi deixados (sic) sinais como outros povos. Exemplos na fabricação de bancos, das malocas, das casas, fabricação de canoas, na fabricação de instrumentos musicais, fabricação de adornos, no plantio de maniva, a distancia do caminho da roça etc. Os nativos sabiam contar com os dedos, com os dedos dos pés, com um pedacinho vara, marcando sinais na madeira deixando marca na terra, dando nomes específicos como qualquer povo como: egípcios, japonês com as pronúncias totalmente diferentes foi uma grande riqueza de ser descoberto. Começou espalhar no mundo inteiro com línguas diferentes, chegou até continente americano com pronúncias diferentes como: América do Norte: Inglês e Francês; América Central: Inglês, Francês e Espanhol; América do Sul: Espanhol, Português, Francês e Inglês e foram dominados de acordo com seus dominadores. Os índios para não perder a sabedoria dos antigos, pesquisando, aprofundando o conhecimento como os outros povos civilizados, inventaram os números para ser ensinados para os aprendentes na escola indígena sem desvalorização do conhecimento do mundo tecnológico, mas sempre em acompanhamento. Finalmente foram inventados os números indígenas, é uma riqueza muito grande com este avanço para os homens nativos e não nativos. Este foi um avanço muito significativo desde 1920 quando foi fundada a Escola São Gabriel por Dom Massa com a finalidade de educar os Baré e os nativos dessa região com a língua portuguesa desconhecida da época pelos habitantes do alto rio Negro e dos seus afluentes como: rio Waupés, Tiqué, Papuri, rio Içana e rio Negro. Assim os habitantes desta região foram perdendo a contagem de números diante dos povos civilizados ou europeus. Os índios revitalizaram esta contagem de números, colocando em escrita para não serem mais esquecidas, atualmente algumas escolas adotam este ensino nas escolas diferenciadas dando origem ensino bilíngüe nas instituições. (TARIANO, Ludi. Plano de Aula, 2008)
Na aula seguinte, ainda com disciplina Matemática, Ludi inseriu o conteúdo
Adição usando os símbolos tukanos (Quadro 8). A aula teve como objetivo “saber
adicionar com os símbolos apresentados totalmente diferentes usando sinais da
matemática não alterando os fundamentais”. (sic) (TARIANA, Ludi. Plano de aula,
2008). Ludi assumiu um comportamento tradicional no que se refere à didática e ao
método de ensinar. Pedia aos aprendentes o tempo todo que prestassem atenção
ao que ele explicava. Apesar de os conteúdos terem uma dimensão intercultural e
234
dos recursos didáticos serem de origem indígena, a prática pedagógica seguiu o
modelo tradicional, com uso de exercícios de fixação e condicionamentos. Em meio
a esse processo, ouvia-se dele a toda hora: “Presta atenção!”
A expressão “presta atenção” usada por Ludi me parecia mais um processo
de legitimação de sua autoridade, do que um chamado de atenção dos aprendentes,
pois estes estavam bem envolvidos com aula e, de fato, não apresentavam um
comportamento desviante ao processo de ensino e aprendizagem, pelo menos nada
que pudesse atrapalhar a aula.
A princípio, pensei que essa expressão era resquício da educação salesiana
responsável pela formação de Tuli, mas quando o questionei sobre o porquê de
pedir para crianças prestarem atenção, o mesmo afirmou: “porque eles têm que ficar
prestando atenção em como eu estava fazendo as coisas no quadro. Eles tinham
que ver eu fazendo, pra eles aprenderem direito, a fazerem como tem que ser feito.
A gente aprende as coisas vendo as coisas sendo feitas e juntos fazendo também.”
(Estágio IV. Coleta de dados. Grifos meus. 2008).
Certamente que a explicação de Tuli não eliminou o caráter autoritário de sua
prática, haja vista que esta parece refletir sua formação escolar salesiana. Porém, é
possível dar a ela outro significado, na medida em que representa também
conteúdos da educação indígena (aprendizagem pela imitação dos adultos) e que,
portanto, expressam os valores, as regras e os métodos educacionais dessa cultura.
Nessa perspectiva educacional, a aprendizagem é entendida como um processo que
se desenvolve no conjunto, envolvendo ensinantes e aprendentes numa relação
dialógica, partícipe e circular. Aprender as coisas vendo as coisas sendo feitas é o
mesmo que aprender-fazendo.
235
QUADRO 8
RECURSO DIDÁTICO: A MATEMÁTICA INDÍGENA
Fonte: Pesquisa de Campo, 2008.
De fato, isso exige uma atenção constante, pois representa uma
aprendizagem construída pela experiência do outro no encontro com o outro. Em
outras palavras é uma aprendizagem adquirida pelos sentidos, pelo corpo e pela
relação com o outro, que está pautada na experiência do concreto. O aprender-
fazendo pode ser entendido como um método concreto de ensino e aprendizagem,
que possibilita a mútua compreensão das linguagens, bem como faz emergir seus
múltiplos significados.
Numa perspectiva intercultural, esse processo de ensino e aprendizagem
possibilitou, ainda, a reflexão sobre os fluxos e as cristalizações dos saberes e
técnicas de ensino; permitiu a ruptura com ordem hierárquica dos conteúdos
disciplinares que excluem o conhecimento dos índios; desequilibrou as dicotomias
entre as culturas e, consequentemente, possibilitou bifurcações capazes de
interligarem as diferenças culturais a partir do estabelecimento de interconexões
múltiplas e de relações dialógicas.
ADIÇÃO COM SÍMBOLOS DIFERENTES
Os símbolos de matemática usados na língua indígena possuem valor como qualquer
sinal de matemática em termo de conhecimento, o sinal foi inventado pelo homem
desde sua existência para calcular o valor dos objetos, o nativo da região usou os
símbolos como, por exemplo:
a) + =
b) + =
c) + =
d) + =
Com certeza aprofundando o conhecimento estamos revitalizando a cultura regional
matemática brincando aprendendo chegaremos a alcançar a nossa cultura na escola.
236
As três fontes de conhecimento (disciplinares, culturais e mestiços) permitiram
uma experiência pedagógica originária e originadora de processos complexos e
transdisciplinares, vinculados e vinculadores de culturas e saberes diferentes e
convergentes entre si, fornecendo as bases de uma transposição didática
intermediária.
Denomino de transposição didática intermediária ao processo de elaboração
de práticas de ensino que se dá a partir da interação entre diferentes tipos de
saberes, oriundos de culturas específicas, portanto, com referenciais cognitivos
diferentes, que, ao serem adaptados para o ensino, sofrem transformação quando
transmitidos didaticamente. O saber adquirido por esta interação caracteriza um
modo de saber-fazer original e, ao ser usado como objeto de ensino, explicita a
epistemologia desses saberes nos seus aspectos intercultural e transdisciplinar.
A noosfera responsável pela transposição didática intermediária, numa
perspectiva morindiana, assume um caráter polissêmico e polifônico, pois vai além
das transformações dos saberes disciplinares, e expressa o universo mítico,
simbólico e cultural dos aprendentes que inflete direta e indiretamente em seus
saber-fazeres didáticos e pedagógicos.
Trata-se de um tipo de transposição didática intermediada pelos saberes
ocidentais e indígenas, que, ao serem misturados, produzem um objeto de ensino
com características didáticas complexas, que, longe de ser equilibradas, apresentam
pontos de bifurcações relevantes a renovação epistemológica dos saberes
escolares. Sob a perspectiva da construção do objeto de ensino, esses pontos estão
explícitos na produção textual dos aprendentes, nas concepções dos conteúdos e
nos conceitos sobre estes, bem como na elaboração dos recursos didáticos
destinados ao processo de ensino e de aprendizagem.
Por outro lado, são essas bifurcações que permitem perceber a difícil tarefa
de reunir os saberes, as culturas e as diferenças que delas procedem, bem como
representam as dificuldades da formação de professores orientadas pelos
operadores cognitivos da complexidade. Tais dificuldades estão presentes não
apenas nesse processo formativo, mas encontram-se ancoradas em toda trajetória
da educação escolar dos aprendentes. Significa dizer que a experiência de tornar-se
professor encontra-se implicada na formação humana, cultural e científica dos
aprendentes. Em outras palavras, o tornar-se professor necessita de processos
refundadores da própria formação humana. Ou seja, não são os cursos de formação
237
superior os únicos responsáveis por mudanças de paradigmas educacionais, mas é
a educação escolar em todos os níveis (da educação básica ao ensino superior) que
precisa ser reconstruída, repensada e recriada, para que se atinja uma formação
plenamente humana, dialógica e complexa.
A jornada do tornar-se professor representou um devir da formação humana
em suas dimensões culturais e científicas. Representou também algumas rupturas
com o modelo tradicional de ensino e de aprendizagem; recolocou a importância dos
saberes escolares e seus vínculos com o cotidiano e com a dimensão antropossocial
da vida, da cultura e da natureza; legitimou o conhecimento indígena e sua
importância na formação escolar, transformando-o em objeto de ensino; apresentou
as contradições da formação, seus equívocos conceituais e metodológicos;
reafirmou o papel do imaginário, dos símbolos e dos mitos como elementos
fundamentais para recriação pedagógica e para didática de ensino e
consequentemente para refundação dos saberes escolares a partir de uma
epistemologia implicada na interculturalidade, na complexidade e na
transdisciplinaridade. E, principalmente, mostrou que a competência disciplinar é
uma ferramenta imprescindível para a melhoria da qualidade de ensino e
aprendizagem, sem a qual a escola tende ao fracasso.
Para avaliar os aprendentes, pedi para que eles elaborassem um relatório
dessa experiência, que teve como tema “reflexões sobre a prática da docência:
teoria, método e intervenção pedagógica”. Esse relatório foi entregue no primeiro dia
de aula do próximo módulo: Prática da Pesquisa Pedagógica II.
A seguir, abordarei o processo de construção da Monografia de Conclusão de
Curso, destacando não apenas os aspectos teóricos e metodológicos, mas
apresentando as dificuldades e os avanços que os aprendentes tiveram no decorrer
de suas produções escritas. Além disso, esse momento da pesquisa representa a
reflexão sobre a matriz de exploração epistemológica e metodológica pensada a
partir dos operadores da complexidade, proposta central desse trabalho.
239
I A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
Chegamos à etapa final desta experiência de formação. Passaram-se apenas
dois meses depois da V Jornada. Foi um período de quatro semanas, entre os
meses de novembro e dezembro de 2008. A disciplina ministrada foi Prática da
Pesquisa Pedagógica II e seu objetivo era orientar os alunos na elaboração da
Monografia de Conclusão de Curso. Essa disciplina representou a consagração de
todo esse processo formativo: construção do conhecimento. Um processo derivado
por uma constelação de imagens, desejos e necessidades, reproduzidas no ato de
pensar, sentir e de escrever, circunscrito na trajetória antropológica do tornar-se
professor.
Como na jornada anterior, os aprendentes estavam extremamente ansiosos.
Esta seria a última disciplina do curso. Para mim, essa jornada representaria a
concretização dos objetivos desse projeto de formação: juntar os fragmentos dos
saberes construídos pelos aprendentes durante as cinco jornadas, dando-lhes uma
unidade. Fazer essa antropologia dos saberes levou-me à criação de uma matriz de
exploração epistemológica e metodológica de natureza transdisciplinar e complexa
destinada a formação de professores. Com efeito, esses desafios estiveram
presentes nas cinco jornadas deste percurso formativo e constituem-se como objeto
de análise e de reflexão desta pesquisa.
Resumidamente, as disciplinas Estágio Supervisionado e Prática da Pesquisa
Pedagógica constituem-se como eixos teórico e metodológico da formação do
professor pesquisador. As estratégias metodológicas que usei para o processo de
ensino e de aprendizagem foi o Projeto Canoeiro. O Canoeiro foi inspirado nos
quatro pilares da educação: aprender a ser, aprender a fazer, aprender a conviver e
aprender a conhecer. Esses quatro pilares também foram responsáveis pela
vivência de uma experiência transdisciplinar desse processo de formação, orientada
pelos operadores da complexidade: recursividade, hologramático e dialógico28.
Como última etapa da formação do Projeto Canoeiro, esta jornada também
pode ser vista como aquela que recuperou os tempos vividos das outras jornadas.
Escrever sobre os seus próprios percursos, abrir os baús de suas memórias e
28
Esses operadores são estabelecidos por Edgar Morin em sua obra sobre “O Método”, já
apresentados neste estudo (pp.57-58).
240
traduzi-las em um texto acadêmico foi, de fato, um grande exercício cognitivo e
emocional para os aprendentes. No entanto, eles já tinham caminhado mais da
metade desse percurso, era o momento agora de dar significado à experiência,
juntando os fragmentos deixados em suas escritas feitas ao longo desse processo.
As jornadas míticas do tornar-se professor sofrerão o refinamento do tornar-se
pesquisador.
Na jornada anterior, os aprendentes ficaram com a tarefa de elaborar um
relatório sobre a experiência da docência a ser me entregue logo no primeiro dia de
aula. Esse dia chegou. E com ele, todo o início de preparação para o trabalho de
conclusão de curso. Felizmente, todos os aprendentes me apresentaram o relatório,
o que, de fato, colaborou com as atividades propostas para essa etapa da formação.
Os aprendentes estavam visivelmente cansados e preocupados com essa
disciplina. Apesar disso, havia neles uma certa leveza, um misto de vitória e de
incerteza. “Finalmente, chegamos, professora. Chegar até aqui pra mim já me deixa
muito alegre. Agora temos que transformar nosso trabalho em pesquisa, em ciência.
Será que a gente consegue...?” (LUDI, 2008) Se já chegaram até aqui, não tem
como não conseguir. Tudo já foi feito, agora é só uma questão de reorganização,
disse ao aprendente.
Como proposta metodológica dessa jornada, criei um roteiro de atividades
que os aprendentes deveriam seguir:
1. Levantamento de todas as atividades realizadas no decorrer da disciplina
Estágio Supervisionado (I, II, III, IV);
2. Leitura de todos os relatórios de estágios;
3. Elaboração de um roteiro desses relatórios, apresentando os principais
pontos de análise dos mesmos;
4. Criar um sumário a partir do roteiro;
5. Fazer interligações entre as partes e o todo: organizar a monografia.
Essas atividades foram realizadas em sala de aula. E, a partir delas,
passamos ao processo de escritura da Monografia. Nesse caso, essa escrita foi o fio
de ligação entre as partes – que, ao serem tecidas, dariam o formato de suas
monografias – e o todo.
Os quatro relatórios foram organizados e/ou tematizados da seguinte maneira:
1. Diagnóstico Escolar (Estágio I);
241
2. A Sala de Aula como objeto de pesquisa: etnografia da sala de aula (Estágio
II);
3. O objeto da pesquisa entre a Teoria e a Prática (Estágio III);
4. Reflexões sobre a Docência: teoria, método e intervenção (Estágio IV).
Com base nessa organização, os aprendentes foram orientados a construir
suas Monografias. Disse um aprendente: “professora, então quer dizer que a gente...
na verdade, nós já fizemos esse trabalho. Agora nós temos que organizar, dar uma
sequência lógica a ele. Temos apenas que pegar tudo o que foi feito e fazer um
único texto” (LENITA, 2008). Com efeito, todas as jornadas culminariam com esse
momento. Essa foi a estratégia que usei a fim de conduzir essa experiência. Cada
tema representaria um capítulo de suas monografias. Os temas deveriam ser
recriados para atender as exigências e as especificidades dos projetos individuais.
Como vimos, as dificuldades de aprendizagens dos aprendentes, suas fontes
cognitivas e culturais implicadas no pensamento sensível, defrontaram-se com a
linguagem da ciência ocidental e seus operadores técnicos. Com isso, o processo
formativo sofreu uma série de conflitos, de contradições e de dificuldades de ensino
e de aprendizagem. Em outras palavras, esse processo deparou-se com as
dificuldades de comunicação entre as duas formas de operar a ciência: pensamento
sensível e pensamento científico. O principal veículo dessa comunicação foi a
escrita.
Como vimos, a sala de aula era um lugar de sujeitos múltiplos, multiétnicos,
falantes de várias línguas e, portanto, portadores de um universo mítico e cultural
diferente dos saberes da ciência ocidental, mas sabedores dos mesmos. Eles
reconhecem e diferenciam os saberes escolares, pois estes também compõem suas
existências e fazem parte de suas culturas. No entanto, observou-se, que essa
forma de reconhecimento foi construída, muitas vezes, de maneira equivocada.
Sabemos que esses equívocos são, em larga medida, oriundos da formação
escolar. É na escola que eles são construídos. Aprender a ler, a escrever, a contar,
a interpretar e a refletir sobre o conhecimento são, em larga medida,
responsabilidades da educação escolar.
Portanto, essas dificuldades da formação, especialmente referentes ao
processo de ensino e de aprendizagem, não residiram na diferença cultural, étnica
ou nas formas de operar o pensamento. Elas têm suas origens no processo de
letramento ou alfabetização dos aprendentes. Nesse caso, encontram-se nos
242
domínios sociolinguísticos da língua portuguesa. Ou seja, os aprendentes não foram
bem alfabetizados nesta língua, portanto, suas dificuldades de tradução, produção e
interpretação de texto se explicitam. Logo, não se trata de um problema étnico-
cultural, mas um problema de linguagem e de aprendizagem.
No entanto, o nível de letramento/alfabetização, aliado às diferenças de
linguagem e de pensamento, tornou o processo formativo mais difícil ainda. Mas, por
outro lado, essa dificuldade colaborou para inserção de uma prática pedagógica
transcultural. Reconheci nos operadores cognitivos do pensamento sensível um
caminho possível para a vivência de uma prática de ensino e de aprendizagem
dialógica, inspirada no pensamento mítico dos povos indígenas e no seu modo de
operar o pensamento, sem, no entanto, perder as referências do pensamento
científico. A partir dessas referências cognitivas foi se construindo o imaginário da
pesquisa dos aprendentes.
O imaginário, entendido como capital pensado do homem (DURAND, 1997),
projetado para o projeto de pesquisa dos aprendentes, se estruturou
antropologicamente em duas dimensões humanas: natureza e cultura. Nelas os
operadores da ciência do concreto (LEVI-STRAUSS, 1989) e da ciência ocidental
foram destacados, colocando em relevo novas condições de ensino e aprendizagem
e novas formas de produção de conhecimento.
As dimensões da natureza e da cultura, vistas como sistemas complexos,
quando inseridas no processo de construção do conhecimento, permitiram não
apenas o cruzamento de saberes míticos, científicos, cotidianos, culturais e
simbólicos, como produziu um saber-fazer fundado e fundador de experiências
complexas e transdisciplinares. Significa dizer que a aprendizagem ancorada nessas
experiências, tornou-se mais significativa e, consequentemente, o ensino mais
humanizado, visto que se realizou respeitando as leis dos vivos, com seus contextos
e seus sistemas de referenciais existenciais e culturais.
A aliança entre a ciência do concreto e a ciência ocidental, respectivamente,
entre o pensamento sensível e o pensamento científico, permitiu a renovação do
ensino e deu um significado a aprendizagem. O ofício de aprender é um processo
longo e dura por toda a vida. O ofício de ensinar também, visto que não há ensino
sem aprendizagem e nem aprendizagem sem ensino. A tarefa do
educador/professor está em abrir caminhos para que os educandos possam se
243
perceber no mundo e exercer sobre ele processos de mudanças e transformação
social, cultural, política e econômica.
Cabe aos educadores revelar ao aprendente o seu potencial de aprendizagem, as potencialidade de atualizações, e de estabelecer relações que nós possuímos enquanto seres vivos. (...) Atualmente, no mundo inteiro se impõe a urgência de uma verdadeira alfabetização, que consiste em compreender – e em escrever – o livro do meio ambiente, o livro dos outros e o livro de si mesmo. (TROCMÉ-FABRE, 2004, p.13-14. Grifos da autora)
Trocmé-Fabre, com essa citação, me instigou desde o início desta
experiência a procurar estabelecer relações entre as lógicas dos viventes
(aprendentes) e o conteúdo da aprendizagem. O lugar da formação, a sala de aula,
possui características multiculturais e pluriétnicas. Conhecer o universo cosmológico
e cosmogônico dos sujeitos da aprendizagem foi o primeiro passo para o
desenvolvimento do processo formativo. Fazer com que os aprendentes
compreendessem seus mundos e estes serem vistos como conteúdo de ensino e de
aprendizagem foi fundamental para que eles potencializassem suas aprendizagens
e para que estas fossem desenvolvidas de forma criativa e significativa.
Essa dialogia de saberes de diferentes lógicas implicou na construção de uma
linguagem sensível, desenvolvida pelo poder da escuta, da espera e da paciência.
Significou também a ruptura com o tempo cronológico (chronos), substituído pelo
tempo da existência (kairos), pois abarcou a temporalidade do vivido, do momento
oportuno. Entramos numa nova etapa: a organização da escrita. Nessa etapa,
chronos e kairos conduzem o percurso. E, entre conflitos, tempos de espera, de
entrega e de decisão, realizamos a travessia. O Canoeiro, enfim, aportou. O que não
representou o fim, mas o início de uma nova travessia.
Organizar a escrita significou reordenar as experiências. O reordenamento
das experiências implicou recuperá-las em seus diferentes tempos. Para muitos
aprendentes, essa foi uma tarefa fácil, para outros, um processo difícil. Muitos se
valeram de orientações de professores de outros cursos, outros recorreram aos
colegas ou amigos já formados.
Alguns aprendentes entendiam a monografia como relatório que deveria
conter: memorial, quadro teórico, metodologia e resultados. Eles copiaram esse
modelo, na tentativa de antecipar o trabalho que estava por vir ou muitas vezes para
não terem trabalho. Isso acarretou uma série de conflitos, pois, nesses relatórios,
244
suas experiências do estágio não apareciam. Na verdade, eles perderam seus
relatórios de estágios e recorreram a essa estratégia. Mas foram surpreendidos
quando viram que a orientação era outra. Eles tiveram que recuperar os trabalhos
perdidos e, em alguns casos, refazê-los. Entre tempos e contratempos, a orientação
seguiu.
A bricolagem: os entornos e contornos de uma aprendizagem contingencial e
necessária
A formação do professor pesquisador, conduzida pelas disciplinas Estágio
Supervisionado e Prática da Pesquisa Pedagógica realizou-se dentro de um
contexto sociocultural específico que exigia mudanças no processo de orientação
pedagógica. A lógica da ciência ocidental, projeto da escola Normal Superior, para
formação de professores-pesquisadores não coadunava com a lógica dos viventes.
Como vimos, os aprendentes sentiam muitas dificuldades em aprender dentro dessa
lógica e ao mesmo tempo apresentavam dificuldades de linguagem no processo de
reconhecimento e tradução dos conceitos e métodos da ciência ocidental.
Decifrar os códigos da língua portuguesa, dar significados aos conceitos,
categorias ou conteúdos das disciplinas, foi, de fato, um grande problema ao
processo de ensino e de aprendizagem. Os aprendentes nasceram e se
desenvolveram fazendo uso de outras línguas, linguagens e culturas. Levá-los a
construir conhecimentos orientados pelos operadores científicos ocidentais,
portanto, tornou-se outro problema. Como romper com essa lógica sem perder de
vista suas referências? Como desenvolver um projeto de formação que levasse em
consideração as duas lógicas: lógica científica e lógica dos viventes/aprendentes?
Lévi-Strauss (1989), em sua análise sobre a ciência do concreto, apresenta
os meios pelos quais essa ciência é construída. Trata-se da bricolage, definida como
o modus operandi da reflexão mitopoética. O bricoleur realiza seu trabalho pela
ausência de um plano preconcebibo, ou seja, ele não necessita de um projeto que
delimite linearmente causa, meios e fins. A bricolagem se faz por meio de uma razão
prática, de um fazer prático, no qual o bricoleur se utiliza de meios já disponíveis
para executar um grande número de tarefas. O resultado de suas pesquisas é
contingente e sempre renovável. Ele opera por meios de signos e estes são sempre
245
limitados. Ao contrário do cientista, que opera por meios de conceitos que são
ilimitados.
Foi inspirada nessa forma de operar o pensamento que elaborei essa
proposta de formação vinculada e orientada ao mesmo tempo pelo pensamento
mágico e pelo científico. Já na primeira jornada essa metodologia se explicita. Nela,
abri mão indiretamente do modelo padrão de fazer ciência, deixando de lado a
construção do projeto de pesquisa, enquanto ferramenta que antecede a produção
do conhecimento. Considerei o professor-pesquisador como bricoleur, aquele capaz
de fazer seu caminho de pesquisa a partir de um conjunto de peças singulares, mas
deve, assim como um artista, ultrapassar o limite do concreto, abrindo passagem
para o novo, elaborando questões cujas respostas ainda não foram dadas. Com
isso, ele pode confeccionar algo que é material, mas ao mesmo tempo é também
conhecimento (LÉVI-STRAUSS, 1989).
Num certo sentido, inverte-se a relação entre diacronia e sincronia: o pensamento mítico, esse bricoleuse, elabora estruturas organizando os fatos ou os resìduos dos fatos, ao passo que a ciência, “em marcha” a partir de sua própria instauração, cria meios e seus resultados sob forma de fatos, graças às estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias. Mas não nos enganemos com isso: não se trata de dois estágios ou de duas fases da evolução do saber, pois os dois andamentos são igualmente válidos. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.37. Grifos do autor)
Lévi-Strauss insere a arte entre o pensamento sensível e o pensamento
científico. A arte como elemento que possibilita a aproximação entre essas duas
formas de operar ciência permitiria não apenas a renovação científica, mas
transformaria o objeto do conhecimento em uma experiência sensível, dando a ele
uma estética prazerosa de descoberta e de significação.
a arte se introduz a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico; pois todos sabem que o artista tem, por sua vez, algo do cientista e do bricoleur: Com meios artesanais ele confecciona um objeto material, que é, ao mesmo tempo, um objeto de conhecimento. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 43)
Ao longo de dois anos, os aprendentes inventariaram uma série de dados
sobre a escola, a cultura escolar, a sala de aula, a prática do professor, os
problemas de ensino e de aprendizagem e as dificuldades dos alunos. Foi com
esses dados, adquiridos etnograficamente, que eles construíram seus objetos de
conhecimento, levantaram questões, teorias, conceitos, métodos e construíram as
estratégias de pesquisa.
246
A bricolagem como proposta de construção de conhecimento se configurou
entre os dois níveis estratégicos da ciência: o primeiro apoiado pela experiência
sensível da intuição, do imaginário e da contemplação do objeto de investigação –
pensamento sensível. O segundo orientado pela etnografia, pelo registro escrito da
realidade observada, assegurado pelos os conceitos e técnicas – pensamento
científico. Os dois níveis encontraram-se numa mesma realidade, comunicando-se
de forma dialógica e recursiva.
Esse fazer da bricolagem pode ser comparado ao fazer da alquimia, no
sentido que o termo se propõe como transformação de substâncias.
Metaforicamente, o fazer monográfico pode ser entendido como um processo de
manipulação de palavras, transformando-as e dando a elas uma polissemia de
significados e sentidos, além de permitir a liberação da alma, aprisionada pelas e
nas palavras, ativando as possibilidades imaginativas no processo de construir
conhecimento. As palavras criam objetos, que por sua vez recriam as palavras. As
palavras produzem conhecimento, mas é também seu produto. Como nos lembra
Bachelard:
A alquimia é uma cultura íntima. É na intimidade do sujeito, na experiência psicologicamente concreta, que ela encontra a primeira lição mágica. Compreender, em seguida, que a natureza opera magicamente é aplicar ao mundo a experiência íntima. É preciso passar pela magia espiritual na qual o ser íntimo sente sua própria ascensão para compreender a valorização ativa das substâncias primitivamente impuras e conspurcadas. Um alquimista, citado por Silberer, lembra que só fez progressos em sua arte no momento em que percebeu que a natureza age de forma mágica. Mas é uma descoberta morosa; é preciso merecê-la moralmente para que ela ilumine, depois do espírito, a experiência. (1996, p.66. Grifos do autor)
Percebi que para que os aprendentes conseguissem desenvolver suas
pesquisas, teriam de, primeiramente, entrar em contato com seu próprio mundo,
natural e cultural. Fiz isso por meio dos mitos, entendidos como experiência do
sentido e do conhecimento (ver Primeira Jornada). Entendia, concordando com
Bachelard, que a experiência psicológica devia ser acompanhada pela experiência
material, concreta, intuitiva e pessoal (BACHELARD, 1996, p.67). A construção da
monografia, nesse sentido, foi feita nessa comunhão entre a magia e a ciência. Daí
a importância do contato com o universo da pesquisa – a escola, antes da definição
do objeto de investigação. Somente a partir dele eles tiveram condições de definir
seus problemas e objetivos de pesquisa.
247
Foi preciso primeiramente instaurar a experiência do vivido e do sentido para
que eles pudessem dar significado à pesquisa e, consequentemente, construir seus
textos escritos, pois estes só ganhariam significados quando aplicados a um
contexto de produção. Significa dizer que a monografia foi uma experiência íntima,
existencial, espiritual e concreta, transformada de forma objetiva em conhecimento.
Nasce no imaginário, mas se materializa em objeto de conhecimento. A escrita
representaria o instrumento de mediação entre esses dois universos: científico e
mágico. É nesse sentido que a monografia representa uma escrita do ser, de si, do
mundo e da vida. Escrevê-la é de certa forma é escrever a si mesmo.
Com esse processo, os aprendentes foram construindo suas fontes,
coletando dados e analisando o objeto. Como vimos nas jornadas anteriores, eles se
valeram do registro etnográfico, de entrevistas aos sujeitos da escola: professores,
alunos, gestores, pedagogos, agentes administrativos. Esse contato com o campo
empírico da pesquisa foi fundamental para a realização das outras etapas do
trabalho pedagógico e da pesquisa. Dele se retirou questões e com ele se
estabeleceram processos, estratégias de investigações e de intervenções futuras.
A leitura de teóricos relacionados aos temas de pesquisa também se inseriu
nessa experiência. As teorias foram manipuladas do mesmo modo como foram os
dados concretos. Elas representaram um dado sobre o objeto ou sobre realidade e
os aprendentes as usavam ora para validá-lo, ora para discordar. Eles não as
entendiam como possibilidade de reflexão sobre os dados da realidade, mas sim
como um dado da realidade a ser refletido (ver Jornada IV).
Um exemplo desse processo é texto de Sol em que ela faz uma reflexão
sobre o seu objeto de pesquisa a partir da leitura dos teóricos. Primeiro ela faz a
referência:
Com o objetivo de favorecer o desenvolvimento da oralidade, o professor deve reservar um tempo, em sua sala de aula, para que os alunos contem e comentem os fatos que acontecem com eles; para conversar sobre ideias polêmicas; para que os alunos descrevam, por exemplo, o processo de construção de uma casa, as partes de uma planta, uma brincadeira infantil; para pedir que o aluno faça dramatização sobre história conhecidas sobre situações do cotidiano (caçada, pescaria, festas tradicionais...) ou sobre situações imaginárias (um problema de saúde, uma situação de compras e vendas, uma conversa ao telefone ou pelo rádio, uma solicitação de informação na polícia, no banco. (sic) (RCNEI apud SOL, 2008, p. 28)
248
Em seguida, faz a reflexão:
Não podemos dizer que a criança tenha facilidade de aprender a ler e escrever, na escola o professor deve expressar com clareza as atividades de leitura e escrita, para os alunos perceberem que é útil para sua própria vida, revelando interesse onde o aluno se tornara um bom leitor (sic) A criança que mora na cidade já entende ao chegar à porta de uma padaria, já ver uma linguagem escrita em frente de uma loja, em frente o banco, há um grande estímulo para que elas comecem a se interessar pela leitura e escrita. (sic) “O desenvolvimento da lìngua escrita sua competência oral vai se desenvolvimento natural e tranquilamente, na medida da sua necessidade de uso da linguagem. (RECNEI, 2005, p. 134)
Com uma coletânea de dados concretos, fragmentos elaborados em cinco
jornadas, os aprendentes desenvolveram suas pesquisas e conseguiram construir
conhecimento. A monografia estava sendo construída, desde o princípio, dessa
experiência de formação. Chegara o momento de fazer a bricolagem, de juntar os
fragmentos e dar a ele um significado de ciência.
Manipular dados empíricos e teóricos foi um trabalho demasiadamente
cansativo para os aprendentes. Orientá-los na confecção desse trabalho também
não foi uma tarefa fácil. O resultado dessa experiência de construção de
conhecimento orientada pelos operadores da complexidade e implicada na dialogia
entre o pensamento sensível e científico foi um conhecimento etnopoético: aquele
que é instruído e construído pela e na experiência do vivido e pela reflexão
mitopoética e que incluem as ferramentas cognitivas do fazer científico ocidental:
objetivos, teoria e metodologia.
Sob o ponto de vista mitopoético, a construção da monografia representou o
caminho percorrido pelos aprendentes nas jornadas do tornar-se professor. Essas
jornadas de formação são entendidas como narrativas míticas dos indígenas rumo à
escolarização. Significa dizer que, ao considerarmos as jornadas como experiências
míticas, pois foram construídas por meio de uma aprendizagem biográfica, não
perdemos de vista as condições bioantropológicas das quais fazem parte os
aprendentes. Nesse caso, foi preciso considerá-los também como sujeitos do
conhecimento, reintegrando-os ao conhecimento ao qual foram (des)integrados.
Necessitamos, portanto, reintegrar e conceber o grande esquecido das ciências e da maioria das epistemologias; enfrentar, sobretudo aqui, o problema incontornável da relação sujeito/objeto. Não se trata de modo algum de cair no subjetivismo, mas, ao contrário, de encarar o problema complexo em que o sujeito cognoscente, permanecendo sujeito, torna-se objeto do seu conhecimento.
249
O sujeito reintegrado não é o Ego metafísico, fundamento e juiz de todas as coisas. É o sujeito vivo (...), aleatório, insuficiente, vacilante, modesto, que menciona a sua própria finitude. Ele não é o portador da consciência soberana que transcende os tempos e os espaços: introduz, ao contrário, a historicidade da consciência. (...) (MORIN, 1999, pp 30-31. Grifos do autor)
Embora, concordando com Morin (1999), o conhecimento seja, de fato,
construído em condições históricas, sociais, culturais e ecológicas específicas,
porém, é preciso refletir sobre como essas condições foram circunscritas no
processo de construção do conhecimento dos aprendentes e quais os efeitos delas
nesta construção. Como vimos nas jornadas anteriores, esse processo foi
desenvolvido em torno das dificuldades da escrita, da produção textual e da
tradução e interpretação da leitura na língua portuguesa.
Aliado a isso ainda encontramos as diferenças étnico-culturais e a diversidade
sociolinguística, responsáveis pela forma de organização dos pensamentos dos
aprendentes. Portanto, as dificuldades oriundas da linguagem refletiram na
comunicação entre os saberes científicos e culturais e esta refletiu na construção do
conhecimento, infletindo direta e indiretamente no processo de ensino e
aprendizagem, perfazendo todo percurso formativo. O processo de ensino e de
aprendizagem sofreu a ação dessas condições bioantropológicas. Mas estas
também sofreram a ação desse processo. As formas pelas quais essas condições
interferiram no processo de formação são assim destacadas:
1. Diversidade linguística: a sala de aula foi um lugar marcado pela
diversidade de línguas, portanto, pela diversidade na forma de operar o
conhecimento. Apesar de a língua portuguesa ter sido o veículo principal de
comunicação nesse processo de formação, ela não assegurou a
aprendizagem dos aprendentes no que se refere à assimilação dos conteúdos
de ensino. Ainda que os aprendentes sejam falantes da língua portuguesa,
suas formas de operar o pensamento possuem vínculos estreitos com suas
línguas maternas. Eles aprenderam a pensar a vida, o mundo, a natureza e a
si mesmos com suas línguas originais. Significa dizer que, sob aspectos
biocognitivos, suas aprendizagens estão atreladas às suas línguas e às suas
experiências de vida e da cultura.
Como vimos, a aprendizagem da língua portuguesa se realizou sob a pressão
do catequismo e das escolas cristãs. Nelas os aprendentes foram forçados a
abandonar, ainda que não totalmente, suas línguas e a falar apenas o
250
português. E entre o falar e o pensar, um problema: tradução e a
comunicação. Um problema que recriou a linguagem e a cultura e que
produziu um sotaque estrangeiro a fala dos aprendentes, bem como uma
escrita marcada pela oralidade. Também dificultou o acesso aos conteúdos
disciplinares e, consequentemente, a aprendizagem se desenvolveu de
forma, muitas vezes, deformada. E foi na escrita que esses problemas se
potencializaram.
Historicamente, o processo de alfabetização dos índios na língua portuguesa
parece ter sido fortemente marcado pela aprendizagem da língua falada.
Saber falar o português sobrepôs o letramento. A escola não conseguiu, em
larga medida, realizar uma prática pedagógica capaz de desenvolver um
processo de ensino e de aprendizagem satisfatório, pois as dificuldades de
aprendizagem dos aprendentes recaíram basicamente sobre o letramento.
Eles não tinham o domínio dos códigos sociolinguísticos da língua
portuguesa. Apresentaram dificuldades de leitura e de escrita, bem como de
interpretação e tradução dos conteúdos de ensino.
Os aprendentes entendiam que o fazer científico, a pesquisa, tinha relação
direta com a lógica científica ocidental. Eles pretendiam um ensino voltado
para essa lógica. No entanto, suas dificuldades, por estarem implicadas
diretamente no letramento, não permitiram uma compreensão correta desse
modelo. Foi uma questão de interpretação, tradução e comunicação, que se
circunscreveu na ordem do desejo. O desejo mimético dos aprendentes era
voltado para o modelo da ciência ocidental e foi responsável por uma série de
conflitos nesta formação (ver Quarta Jornada).
Produzir conhecimento nessas condições levou-me a reconstruir a proposta
pedagógica pensada para as disciplinas e a romper com o modelo o padrão
de fazer ciência. O programa disciplinar falhou. Isso acarretou a construção
de novas estratégias (ver Jornadas I e II).
Para Edgar Morin:
A estratégia supõe a aptidão do sujeito para utilizar, pela ação, os determinismos e acidentes exteriores e pode-se defini-la como método de ação próprio a um sujeito em situação de jogo (...) em que, para alcançar os fins, deve-se submeter-se ao mínimo e utilizar ao máximo os limites, as incertezas e os acasos do jogo. O programa é predeterminado nas suas operações e, nesse sentido, “automático”; a estratégia é predeterminada nas finalidades, mas não nas suas operações. (...) ( MORIN, 1999, p. 71).
251
Foi necessário, primeiramente, comunicar-me com o universo antropológico
dos aprendentes, dialogar com suas lógicas de pensamento e, a partir delas,
encontrar uma possibilidade de ensino inspirada na transdisciplinaridade e na
complexidade, instaurando a experiência sensível nesse processo de ensino
e de aprendizagem. O diálogo com os operadores cognitivos dos aprendentes
indígenas permitiu a inserção do conhecimento mítico no conhecimento
científico e deste no mítico.
Essa comunicação entre as duas lógicas permitiu que os aprendentes
tomassem consciência de suas referências bioantropológicas, responsáveis
por suas formações enquanto sujeitos, e das referências científicas,
responsáveis pelas suas reconstruções subjetivas e objetivas. O resultado
dessa comunicação foi a construção de uma escrita instruída por uma
linguagem mestiça reunida pelos saberes indígenas e pelos saberes
científicos e construída nos entre-lugares da cultura. Pois, é preciso ressaltar
que essas condições de aprendizagens foram favorecidas pela inserção dos
aprendentes no contexto das próprias condições de produção do
conhecimento: a escola.
É na escola que o conhecimento começa a ser registrado, descoberto e
reconhecido. Foi o exercício etnográfico que permitiu que a escrita evoluísse,
se desenvolvesse e organizasse o pensamento. A escrita ao educar o
pensamento, organizou o conhecimento que por sua vez renovou o
pensamento sobre a realidade. A diversidade linguística foi, portanto, uma
condição primordial para que o conhecimento e a escrita do conhecimento
fossem significados e apreendidos pelos aprendentes.
2. Diversidade étnicocultural: encontramos na sala de aula uma diversidade
de etnias e de culturas. Nessas condições o ensino e a aprendizagem
precisaram ser dinamizados a partir dos contextos socioculturais dos
aprendentes. Os conteúdos culturais das diferentes etnias no contexto da
produção do conhecimento atravessaram a dinâmica do processo de
construção da escrita do conhecimento.
O encontro entre as diferentes culturas e etnias provocou processos de
fricções interétnicas que desestabilizaram, em larga medida, a formação (ver
Jornada V). Esses processos vão interferir diretamente não apenas na
construção do conhecimento, mas também na sua compreensão. Os
252
aprendentes orientaram seus pensamentos a partir dos conteúdos culturais
de suas etnias.
Esses conteúdos são influenciados pelas relações interétnicas e estas foram
trazidas à sala de aula originando os conflitos entre os aprendentes. São
esses conflitos que irão determinar os lugares dos sujeitos na aprendizagem
e também no ensino. Isso foi observado no Estágio de Docência IV, quando
as equipes foram formadas. Vimos que elas se organizaram em torno de suas
origens étnicas, seja em comum ou por proximidades.
Os conteúdos de ensino foram selecionados obedecendo a hierarquia da
sabedoria dos mais velhos. Não se trata de uma hierarquia dos saberes, mas
de uma hierarquia dos que sabem e dos que podem dizer. O conhecimento
oriundo dessas e nessas condições conduziram uma prática formativa
transcultural. As diferentes culturas presentes na sala atravessaram o
conhecimento, mas foi para além dele e ao serem introduzidas nele
provocaram sua emancipação. Nesse sentido, o conhecimento se transforma
e ganha contornos culturais específicos, que, ao serem transportados
didaticamente para a sala de aula, provocaram a ressignificação do processo
de ensino e de aprendizagem.
3. Tempos, temporalidades e história: notadamente, o processo formativo
dessa experiência é marcado por tempos múltiplos, representado pelo ciclo
do dia, da noite e das horas, pela duração e pela existência e experiência do
sentido. Trata-se de um tempo biológico, individual, social e existencial. O
tempo biológico é aquele marcado pela experiência do dia, da noite, das
horas e é sentido de forma diferente por cada pessoa ou sociedade; o tempo
individual diz respeito ao tempo do sujeito e suas características próprias de
estar no mundo, pois cada pessoa tem um biorritmo próprio; o tempo social
diz respeito ao tempo destinado ao estudo, ao lazer, a família. Sofre influência
do modelo de sociedade, de sua relação com o mundo do trabalho; o tempo
existencial representa o tempo da vida e da existência humana. É o tempo
vivido, sentido e experienciado (PINEUA, 2003). Os três encontram-se
implicados mutuamente e sofrem a ação da flecha do tempo e da sua
irreversibilidade. Tudo caminha pelo tempo e no tempo se transforma e se
dissipa. De acordo com Prigogine, os sistemas vivos são auto-organizadores,
se formam a partir de estruturas dissipativas que ocorrem longe do equilíbrio.
253
As estruturas dissipativas se caracterizam por uma nova coerência associada com interações a longo prazo e com a quebra de simetria (...). O aparecimento das estruturas dissipativas ocorre em “pontos de bifurcação”, onde novas soluções das equações não-lineares da evolução se tornam estáveis. Temos em geral, uma sucessão de bifurcações que conduz a uma dimensão de historicidade. (PRIGOGINE, 2001, p.28)
As estruturas dissipativas são organizações espaço-temporais surgidas a
partir de flutuações, essenciais para o aparecimento de pontos de
bifurcações. Nota-se que são nesses pontos, geradores de acontecimentos,
que fazemos escolhas e definimos valores (PRIGOGINE; 1996; 2002). Se
entendemos a formação como um sistema aberto, logo, este é movimentado
por fluxos de energia e matéria, o que implica instabilidade, que pode gerar
novas estruturas (PRIGOGINE, 1996). É nesse sentido que podemos afirmar
que o processo de transformação ocorrido pelo e no tempo, são determinados
pelas flutuações do sistema e pelas bifurcações que delas derivam
(PRIGOGINE, 1996). Pode-se afirmar que o sistema de formação está
fundamentalmente implicado na experiência do tempo, veículo organizacional
dos sistemas vivos.
Por outro lado a experiência do tempo como elemento organizador dos
processos de ensino e de aprendizagem, ou seja, da formação, também será
influenciada pela experiência mítica do estar do mundo, que é atemporal. E
por ser assim, o tempo foi constantemente revisitado, recuperado ou revivido.
O tempo da aprendizagem foi diferente do tempo do ensino. Ele obedeceu a
lógica dos aprendentes, que se apropriaram do tempo da formação de
maneira diferente. Cada aprendente tinha um ritmo próprio de aprender.
Logo, o aprender é um constructo do tempo, que também é um constructo
individual, social e existencial.
Para ilustrar essa compreensão trago como exemplo a história de vida de Sol
Miriti-Tapuia.
Sou filha de pai indígena e mãe não-índia. Nasci no Rio de Janeiro em 1959 e aos seis anos de idade, quando meus pais se separam, retornei com o meu pai para São Gabriel da Cachoeira, onde estudei durante um ano no Colégio São Gabriel. Em 1967 mudei para Distrito de Tarumã e logo em seguida fui para a Comunidade Vila Nova no Rio Tiqué. Nesse lugar eu tive que aprender a conviver com esse povo. Tive que aprender a língua deles, a comer a comida deles, os Tukano. Um ano depois ingressei na missão Salesiana de Tarumã, onde encontrei muitas dificuldades nas relações sociais da escola, pois não sabia falar a Língua Tukano, minha língua materna era o português. No entanto, como maioria dos colegas falava o
254
Tukano e sentia dificuldades de falar o português, fui muito judiada. Eles não gostavam de quem falasse português. Os colegas me judiavam muito, era um povo muito bravo, me batiam, me empurravam. Os indígenas maltratavam quem falava o português. O que fez com que eu desistisse de estudar na terceira série do ensino fundamental em 1971. Minha mãe morreu. Meu pai morreu também. Eles não me deixaram parentes. Não tenho tio, tia, avós. Me criei no mundo. Acho que o mundo me criou também. E eu acabei criando meu mundo. Fui crescendo longe da escola. Somente vinte e dois anos depois voltei a estudar, já era 1993. Já estava morando em São Gabriel da Cachoeira e me matriculei no Programa PETI onde conclui a 4ª série, depois fiz Ensino Fundamental - 5ª a 8ª série. Em 2000 entrei no Ensino Médio através do Programa Telecurso 2000. Aí eu fui fazendo as provas e passando. Foi quando apareceu a UEA. Em 2005 entrei na Faculdade, onde tive muitas dificuldades, pois eu só tinha o acadêmico. Não aprendi escrever direito o português, eu só falava. Não sei como eu passei de ano, nem como entrei na faculdade. Não entendia as palavras da apostila. Eu fui fazendo e aprendendo e cheguei até aqui... Me casei, tive filhos, fiz concurso público, passei, fiz vestibular depois e passei, tudo junto. Foi uma grande mudança na vida quando terminei a escola. Também me separei do meu marido, ele bebia muito e me batia algumas vezes. Daí me cansei dele, me separei. Hoje eu estou muito bem, estou melhor. Mas eu comecei muito tarde, já era velha. Minha dificuldade de aprendizagem vem muito disso. Fiquei muito tempo sem estudar, sem ler nem escrever. De repente me vi numa faculdade, onde escrever era o principal. Não sabia escrever aquilo que eu pensava. Isso tudo demorou, foi muito difícil pra mim. Também não sabia falar o que eu pensava ou que os autores diziam. Tinha dificuldade de interpretar as coisas. Para mim, fazer etnografia foi muito importante, porque eu tinha que escrever. No início foi difícil escrever, mas depois eu fui indo até... Hoje sou professora... Tenho cinquenta anos. (SOL, Miriti-Tapuia. Entrevista cedida a Eglê Wanzeler, 2009. Grifos meus).
A história de vida de Sol é marcada por intensas flutuações, muitas idas e
vindas. A escola foi uma bifurcação e representou um lugar de sofrimento, violência,
mas também de transformação e de crescimento. Ela ficou vinte dois anos sem
estudar, sem ter contato com leituras e escrita. Esse tempo sem dúvida repercutiu
na sua aprendizagem. A aprendizagem de um adulto não se processa do mesmo
modo que a de uma criança. Ele já carrega um mundo de vidas, de escolhas, de
conhecimentos que precisam ser recuperados nesse processo, para que a
aprendizagem seja, de fato, significativa. Ele já construiu sua ancoragem cultural de
compreensão da vida e das coisas da vida, de valores e de escolhas e opera a partir
delas. Vejamos esse processo na história de Ludi Tariano.
Eu sou Luis Aguiar Kuenaka da etnia Tariano natural da comunidade Vila São Pedro do distrito de Iauareté denominado Boca do Cachorro, filho do Senhor Antônio Nicolau Aguiar Kuenaka da etnia Tariano e, da dona Amazonina Campos Nhama Phakó natural da comunidade Ananás Ponta do rio Waupés da etnia Piratapuia. A maior parte da minha infância foi à vida de aventureiro dediquei mais na Colômbia conhecendo outra realidade, e outras culturas diferentes, dificultando a minha comunicação, fiz muito esforço para acompanhar e entender linguagem dos meus colegas da época, a multilíngüe acomodou mais respeito na minha formação para
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crescer juntos com eles, são com os costumes diferentes no momento de dar o nome de cada objeto. Em mil novecentos e setenta e um retornei da Colômbia com onze anos de idade, neste mesmo ano fui matriculado na primeira série do ensino fundamental na escolhinha da Comunidade Santa Maria situada na margem direita do Rio Papuri do distrito de Iauareté conheci novos colegas, a minha primeira professora ensinou-me a ler e escrever as primeiras palavras as pronuncia corretas. Encontrei dificuldade na escrita e na leitura a linguagem era só tucano na sala de aula, quanto à professora falava português para os alunos seguirem a mesma linha de aprendizagem, devagar fui aprendendo até conseguir identificar o formato da letra. Em mil novecentos e setenta e dois estudei na Escola de 1º Grau São Miguel na época existia um decreto nº 1212/68 de 10.09.68 criado pelo Governo do Estado do Amazonas, para os alunos era um grau de estudo muito elevado. Neste ano conhecia os alunos de várias etnias, a sensibilidade foi um pouco estranho na conversa na sala de aula, e na hora do intervalo no do recreio sempre procurei respeitar e valorizar as diferenças culturais dos meus colegas. Em mil novecentos e setenta e nove conclui a oitava série, tive bons professores da minha raça indígena, sempre procuravam de entender a dificuldade de cada aluno, foram rígidos, mas valeu muito para minha aprendizagem e da formação, outros formadores da educação estão na memória, já faleceram, mas os frutos ainda continuam na batalha para formarem melhores alunos. Em mil novecentos e oitenta e sete com a finalidade de continuar meus estudos para minha formação fiz via ensino supletivo o curso de 2º grau com habilitação para o magistério de 1º Grau de 1ª a 4ª série, os meus professores foram compreensivos dedicavam completamente valorizando a educação, na aula teórica com o dialogo dos meus colegas de estudos, e na troca de idéias aperfeiçoei o meu conhecimento, dando a importância da educação com as crianças nas séries iniciais do ensino fundamental. Na aula pratica no primeiro momento a acolhida foi bom, devido os formadores ensinavam como fazer com os alunos ao entrar na sala de aula. A troca de experiência com os colegas no momento de preparação de materiais didáticos para o dia seguinte foi excelente, os orientadores acompanhavam sempre aos alunos no momento das atividades para poder avaliar. Nestes três anos de conhecimentos, aprendi dos meus colegas realmente a importância da educação, quantos os formadores orientavam sempre a formação do aluno completa diante da sociedade não envolvente e do envolvente sempre acompanhando o mundo globalizado. Em mil novecentos e oitenta e nove, conclui com novo conhecimento para educação, desde daquela época fui entendo a importância do aluno para ter educação de qualidade. Em mil novecentos e noventa e seis fiz curso, Quarto Adicional no Município de Santa Isabel do Rio Negro com a finalidade de aumentar meus conhecimentos para ministrar as aulas das 5ª a 6ª série do ensino fundamental nas áreas de Estudo Sociais, os professores experientes de cada disciplina ensinavam como pode ser desenvolvido com os alunos na sala de aula o assunto de qualquer área para alcançar o objetivo, estas trocas de idéias com diferentes culturas foram excelentes aperfeiçoei novos conhecimentos com os professores de vários municípios, perguntavam no trabalho em grupo como orientador incentivava o aluno para alcançar o objetivo de acordo o planejamento. Os mais experientes professores colocavam com vários exemplos na sala de aula o trabalho executado de acordo a capacidade do aluo. A minha formação como professor começou quando fiz estágio na Escola São Miguel no Distrito de Iauareté nas séries iniciais de 1ª a 4ª série no ensino fundamental, a gestora sempre dava visto o plano de aula antes o
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estagiário entrar na sala de aula, as minhas atividades foram preparadas com atenção de acordo com o nível do aluno para ter assimilação e habilidade no trabalho, no exercício e nas outras atividades na sala de aula. Em mil novecentos e oitenta e seis, fui contratado pela gestora da Escola São Miguel para trabalhar no processo da educação com a primeira série do ensino fundamental, aplicando a minha experiência de acordo dos meus orientadores do meu estágio, aprendi nova cultura com meus alunos totalmente diferentes principalmente na comunicação, no momento de acompanhamento de aprendizagem dos alunos de diferentes comunidades. Fui descobrindo do aluno o valor da educação recebido dos pais até chegar à escola a forma de comportamento em relação do seu colega dentro da sala de aula, o grupo étnico foi muito elevado, foi importante conhecer e entender a diversidade cultural com um mundo da cultura muito diferente. Acompanhei com atenção a dificuldade para encontrar uma alternativa, perguntei sempre do assunto repassado em qualquer disciplina, foi maior o meu entusiasmo quando deu sinal positivo, isto significou o trabalho de acordo do meu planejamento foi alcançado. Percebi a minha carreira profissional importante, quando acompanhei os alunos na hora de entrada na sala de aula, no momento de intervalo, quando iam ao auditório, nas festividades da escola para não criar problema entre eles, a felicidade foi quando aprendi novo hábito do aluno. A vida profissional continuou com muita luta por gostar de dar aula, aperfeiçoei meu conhecimento lendo vários livros na biblioteca da escola por falta de cursos para capacitação. Em mil novecentos e noventa e seis, tive oportunidade de aperfeiçoar meu conhecimento na minha formação como professor fiz curso de formação, oferecida pelo Centro de Formação e Treinamento de professores padre José de Anchieta, com a habilitação para o exercício do magistério na 5ª e 6ª série do Ensino Fundamental na área de Estudo Social no município de Santa Isabel do Rio negro. Durante o curso tive apoio dos professores mais experientes dos vários municípios, também contribui a minha experiência na troca de idéias com meus colegas, durante o curso foi muito importante, principalmente no debate, e no trabalho em grupo. Importante, encontrar uma alternativa adequada diante da dificuldade do aluno à atividade exposta pelo orientador em qualquer disciplina na sala de aula. Enquanto não surgiu faculdade continuei dando aula de maneira delicada aos discentes, tendo maior preocupação de ser um professor transformador e isso para precisei de uma faculdade para enriquecer o meu conhecimento. Em dois mil e quatro fiz vestibular da Universidade do Estado do Amazonas na cidade de São Gabriel da Cachoeira, desta vez foi feita duas provas, só no final vinha aprovação do candidato, fiquei muito feliz quando recebi a minha aprovação, agora depende mim. A transformação da educação de qualidade do país e do município precisa o orientador preparado para o processo de educação. No primeiro ano da faculdade tive um conhecimento mais profundo, devido a meterias sempre orientou para minha formação e também para o educando de ser um cidadão autônomo dentro da sociedade. As disciplinas identificadas durante o curso foram, a filosofia, a sociologia, pedagogia, as políticas publicas educação infantil, e a didáticas. Estas disciplinas citadas acima chamaram mais atenção do meu cotidiano na vida profissional, cada curso é importante na carreira do educador. Os professores foram competentes, compreensivos, comprometidos com a educação e formação dos alunos, como a professora Egle wanzeler orientadora do pré- projeto, dos estágios I, II, III apesar de ser exigente sempre acreditava no nosso esforço, a ela o meu sincero agradecimento batalhadora para minha formação durante o curso. Hoje, concluindo o Curso Normal Superior, tenho meta de fazer curso de especialização, com a finalidade de contribuir a educação de qualidade na escola, principalmente aos alunos carentes formando bom cidadão autônomo.
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Tudo, exposto e escrito, só posso dizer muito obrigado meu Deus. (LUDI, Tariano. Entrevista cedida a Eglê Wanzeler. 2000)
O tempo existencial está implicado no tempo biológico, com seus ritmos
específicos e individuais. O curso de vida de Sol é um constructo do tempo e pelo
tempo. Um movimento, um vir a ser, um devir. Para compreender esse curso foi
preciso atentar para sua antropologia temporal. Nesse caso, fazer história de vida foi
uma estratégia que favoreceu essa compreensão antropológica. No adulto, ela
possui condições específicas que estão vinculadas à dinâmica da vida social e
cultural.
A cada encontro de formação, os conteúdos de aprendizagem eram
retomados como se fossem ensinados pela primeira vez. Mas essa repetição não
era feita da mesma maneira que foi dada outrora. Ela sofria alterações
metodológicas e conceituais. Portanto, o tempo de ensino também era apropriado de
forma diferente a cada jornada de formação e se organizava de acordo com os
ritmos de aprendizagens dos aprendentes. Daí a ideia de entender a formação como
um movimento, um devir. É esse movimento que dá a ela o caráter histórico,
contingencial e imprevisível dada a irreversibilidade do tempo. Repetir, revisitar,
recuperar ou reviver, não significa voltar ao passado, mas estabelecer com ele
novas experiências de ensino, de aprendizagens e compreensões.
Por conseguinte, pode-se afirmar que esse processo formativo possuiu as
marcas do tempo mítico, representado pelo ciclo ensinar-aprender, mas é
organizado de maneira individual, social e existencial. Ou seja, ocorre de maneira
complexa e transdisciplinar, visto que se desenvolve em função de novos contextos
e temporalidades. Os aprendentes haviam passados por novos processos de
aprendizagens oriundos das disciplinas cursadas anteriormente. Por isso, novos
conteúdos disciplinares eram representados e expressos em suas linguagens, mas
estas foram submetidas ao tempo da disciplina, ou seja, ao sistema formativo. Como
afirma Morin, “Todo sistema, toda organização são submetidos ao tempo (...), ele faz
parte da definição interna de toda organização humana. A atividade é evidentemente
um fenômeno no tempo” (2002, p.265).
(...) o tempo irreversível e o tempo circular se envolve um no outro, entrelaçam-se e entrerrompem-se, entreparasitam-se: eles são o mesmo. O tempo irreversível e desintegrador, transforma-se no e pelo circuito, no tempo do recomeço, da regeneração, reorganização, da reintegração. E, entretanto, eles são distintos: um seqüencial, o outro é repetitivo; eles são antagônicos, um trabalha para dissipação, o outro para organização. Há um
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circuito precisamente porque há um duplo e mesmo tempo, senão seria um círculo vicioso do movimento perpétuo num vácuo absoluto, ou a dispersão. A recursão, repetimos, não é anulação, mas produção. (2002, p.266)
O espaço tempo dessa experiência de formação representou a vivência de
novas flutuações e a formação de novas bifurcações para Sol. Essas bifurcações,
sob o ponto de cognitivo permitiu a formação de novas estruturas dissipativas de
natureza social, cultural e identitária. Sol se metamorfoseou. Tornou-se professora.
Leciona numa escola em São Gabriel da Cachoeira e hoje faz pós-graduação lato
sensu em educação de Jovens e Adultos.
A flecha do tempo é de fato irreversível, mas as bifurcações que delas
derivam permitem a percepção de que é possível recuperar o passado, dando a ele
significação e sentido, tornando o presente mais significativo e compreensível.
Nesse sentido, a história está ligada a memória, que é a presença do passado e
permite a comunicação com os outros tempos (HALBWACHS, 2004). Essas
bifurcações, quando guardadas na memória, permitem que o passado seja vivido,
sentido e recuperado. Ela nos aproxima do passado. O vir a ser de Sol,
experienciado ao longo de seis jornadas míticas é um exemplo de que o tempo é ao
mesmo tempo, mítico, por ser circular, e irreversível, porque não volta atrás, é
contingencial e imprevisível. Contudo, por ser um constructo individual, social e
existencial, permite a construção de realidades e a partir delas promove
transformação dos sistemas vivos. Fazemos escolhas e com elas construímos
realidades. Isso é fazer história.
A construção do conhecimento, a partir dessas dimensões bioantropológicas,
pode ser vista também como um constructo individual, social e existencial que se
organiza pelo e no tempo, sofrendo influências de seus múltiplos ritmos e
experiências. Foram nessas condições que os aprendentes construíram
conhecimento. A Monografia de Conclusão de Curso ocorreu nos entretempos da
formação e nas flutuações inerentes a ela. Os projetos surgiram dessas e nessas
flutuações, aqui entendida como conflitos, portanto, podem ser vistos como
bifurcações da formação e do conhecimento oriundo dela. A monografia representou
uma escrita biográfica dos aprendentes frente aos seus processos míticos e
acadêmicos. Ela mostrou a caminhada deles rumos à emancipação intelectual e à
formação profissional: tornaram-se professor.
259
O conhecimento construído: mitopoesia, intuição e razão sensível.
Pode-se, a cada instante, corrigir, completar, enriquecer, contextualizar a representação através de mudanças de ângulo e de distância. Pode-se então, à vontade, retrabalhá-la, recomputá-la e, além disso, cogitá-la e recogitá-la, pois toda representação é acompanhada, explícita ou implicitamente, por palavras e idéias que exercem sobre aquelas análises e sínteses. Assim, a representação é cognoscente, reconhecível, analisável, descritiva por um espírito-sujeito que, além do mais, pode, pela troca de informações e descrições com outros espíritos-sujeitos, objetivar melhor e enriquecer a sua percepção e, nesse sentido, conferir o seu conhecimento do mundo exterior. (MORIN, 1199 p.119)
A Monografia de Conclusão de Curso como fruto de uma construção do
conhecimento, expressa a representação gráfica do aprendentes sobre a realidade
investigada. Ela é, portanto, uma tradução e interpretação do real. Um real traduzido
de forma polissêmica, polifônica e semanticamente criativo. Ela representa o
universo cognoscente do aprendente diante do reconhecimento da realidade, que
passa a ser analisada, refletida e descrita sob o ponto de vista de sua
aprendizagem, cultura e linguagem.
O processo criativo de produzir um conhecimento implicado na relação entre
o pensamento sensível e o pensamento científico orientado pelos operadores da
complexidade e da transdisciplinaridade se desenvolveu a partir de experiências
oriundas do universo mítico e cosmológico dos aprendentes, bem como pelo
exercício da escrita etnográfica da escola (Jornadas I, II, III, IV e V). Ao longo de seis
jornadas, os aprendentes fizeram pesquisa, levantaram dados, escreveram sobre os
mesmos e refletiram quanto aos objetivos e intervenções necessárias para uma
prática docente inovadora. Vimos que nem sempre essas práticas foram
desenvolvidas. No entanto, houve experiências riquíssimas que indicaram a
possibilidade de construção de aprendizagens pautadas no ensino criativo, dotado
de significação e sentido (Jornada V). O resultado de todo esse processo foi um
conhecimento instruído pela experiência mítica, sensível e transdisciplinar, possuído
pela sabedoria ancestral dos povos indígenas e pelo conhecimento científico das
disciplinas.
A bricolagem desses elementos construídos ao longo das jornadas mostrou
que é possível desenvolver um ensino voltado para a compreensão, para uma
aprendizagem prática, sustentada pela criatividade e pela sensibilidade. Os
260
aprendentes construíram conhecimento, assumindo um compromisso consigo
mesmos de tornarem-se professores, transformadores da realidade.
Ser professor é acima de tudo pensar e refletir antes de abraçar a profissão. Ser professor não é nenhuma brincadeira, pois o professor tem uma missão muito importante na sociedade, dele depende a transformação do mundo. Como professor, meu papel é dado tudo de mim: a minha sabedoria, o meu tempo e a minha dedicação às crianças, aos adultos. (...) Quero que meus alunos aprendam tudo o que tiver direito: do assunto mais simples ao mais complexo. Quero que eles acompanham as transformações do mundo. (...) Quero ensinar sobre as culturas dos povos indígenas. Dizer sobre a importância de praticar a cultura, para que ela não seja esquecida. O meu papel será de valorizar a cultura de nascença de cada um. Cada um terá que reviver a sua cultura. (sic). (DOMI, Piratapuia. Ser professor. Questionário respondido à Eglê Wanzeler. 2008). Como professor quero ser o ponto diferencial para a busca de uma sociedade melhor, para isso dedicar-me aos alunos, propondo-os sempre uma nova visão de educação com novas metodologias na sala de aula e despertar o interesse de aprender realmente, para que o aluo vá na escola não apenas porque são mandados pelos pais. No primeiro momento não escolhi ser professor, com decorrer dos anos do curso, aprendi a valorizar e respeitar ainda mais a profissão do professor, com isso poder contribuir com a formação dos indivíduos para transformar um pouco mais a sociedade. (sic) (MILA, Baré. O Ser Professor. Questionário respondido à Eglê Wanzeler, 2008).
Esse caráter de professor transformador vai estar presente em todas as falas
dos aprendentes. O entusiasmo se amplia na medida em que eles percebem essa
construção nos seus escritos monográficos. Para eles, a monografia foi o registro do
nascimento do professor.
Dentro deste trabalho eu vejo como eu fui me tornando professor. É como se fosse uma história de um nascimento de uma criança, mas é de um professor. Aqui eu renasci como professor, renovei minha profissão. Eu já lecionava, mas nunca tinha me visto assim pela escrita. Sei, como a minha escrita, preciso muito melhorar ainda. Mas vê esse trabalho assim, na capa dura, é como se fosse também uma criação minha, uma obra de arte. Sou ainda uma pedra, precisa ser lapidada para se tornar preciosa. Serei um professor pesquisador. (sic). (LUDI, Tariano. Ser professor. Questionário respondido à Eglê Wanzeler, 2008. Grifos meus).
As afirmações desses, agora professores, representam a natureza
mitopoética de seus pensamentos. Devem ser vistas como um movimento de seus
pensamentos implicados em suas existências. Nesse caso, seus pensamentos
sofreram e sofrem as ações de experiências oriundas do conhecimento, da cultura,
das relações sociais, políticas e ecológicas, bem como dessa formação. Adiante,
veremos que seus textos traduzem não apenas suas relações com o conhecimento,
mas também as relações do conhecimento construído com suas vidas e com seus
pensamentos.
261
(...) o pensamento é um tipo de “dança da mente” que funciona de forma indicativa e que, quando desempenhada adequadamente, flui e se funde em um tipo harmonioso e ordenado de processo na vida como um todo. (...) O pensamento com totalidade, como seu conteúdo, deve ser considerado como uma forma de arte, tal qual a poesia, cuja função é primeiramente oferecer uma nova percepção, e uma ação que seja implícita nessa percepção, em vez de comunicar o conhecimento reflexivo de como tudo é. (...). (BOHN, 2008, pp. 68-75)
Como vimos, as monografias foram organizadas a partir de dados levantados
ao longo de cinco jornadas. A sexta jornada significou pensar esses dados e ordená-
los dentro dos princípios do pensamento de cada aprendente, relacionando-os com
os objetivos definidos para as suas pesquisas. Esse processo de ordenamento do
pensamento a partir dos objetivos propostos pelos aprendentes gerou as formas e
os conteúdos da monografia. A seguir, mostrarei o esquema cognitivo das
monografias. Ao todo foram construídas vinte nove monografias, das quais
destacarei apenas seis. Para dar voz ao pensamento do aprendente Ludi, acima
citado, quando afirma ter produzido uma obra de arte, os esquemas cognitivos serão
expostos em páginas individuais e serão apresentados a partir dos seguintes pontos:
Tema, Resumo (na língua portuguesa e na língua materna) e Sumário.
262
QUADRO 9
ESQUEMA COGNITIVO DAS MONOGRAFIAS DE CONCLUSÃO DE CURSO
AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGENS DOS ALUNOS INDÍGENAS NA ESCOLA DO BRANCO
Sol Miriti-Tapuia RESUMO Este trabalho traz uma reflexão crítica sobre o processo de ensino e aprendizagem de alunos indígenas na escola de branco. Trata-se dos resultados de pesquisa realizada nos anos de 2007 a 2008, nas disciplinas Prática da Pesquisa Pedagógica - PPP I e II e Estágio Supervisionado. Nesta pesquisa procuro perceber em que medida os falantes da língua indígena no contexto da educação escolar sentem dificuldade de aprendizagem e quais os fatores que interferem nesse processo, tendo em vista que sua compreensão do mundo é feita a partir de suas culturas e de suas línguas maternas. A metodologia da pesquisa foi a etnografia, feita através da observação participante e análise da literatura sobre o tema da pesquisa: o índio na escola de branco. (sic) Palavras-chave: educação escolar indígena, interculturalidade. escola. ensino e aprendizagem.
MIRĒ-PEO’KÉ29
A‟to yii da‟ raké, bue‟ké, the‟go a to bhesewi: blue‟se diasharo na wiìmarã tionasé, thonikã hoasé. The‟ego yii a‟tere piakima pho‟sé da kawi 2007, 2008, yi‟ire bu‟ego wereowõ a‟té puri wa‟atero PPP I, II, thonikã bueriwi‟ipe wa‟akã. Tho bu‟eriwi‟ipire ñarõ niwi, de‟eró weró, ñerõ na wi‟imarã diasha‟akó teoñarõ, ohasé, a‟até nipe‟etise ñakahasane‟kõ, a‟atirópe yi‟i na wi‟imarare buégoti nei ñarõ niwe, na diashoró teoñatika, na bu‟esé mhasikã nigoó. A‟arã buerã, wi‟imarã nipe‟tina yi‟ire wetamuã a‟até da arasé pheoa‟to nirã the‟go a‟atiro weé pheowe yi‟i da araseré. (sic) Nirõ Kha’sé weroró: wi‟imarã na diashoré teoñorõ, no bueseré thonikã na hoesé, de‟roki buregi wesetisé. (sic)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO I Diagnóstico Escola: a escola do Branco
1. Aspectos Físicos 2. Organização Curricular 3. Rendimento Escolar 4. Origem étnico-cultural dos alunos e professores 5. Trajetória Profissional da Professora 6. O meio econômico Sócio-cultural
II Dificuldade de aprendizagem do aluno indígena e o problema da pesquisa 1. Educação Escolar Indígena: considerações teóricas e metodológicas
III A Prática da Pesquisa e a Perspetiva Intercultural do Ensino e da Aprendizagem CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APÊNDICE
29
Resumo na língua Baniwa.
263
Continuação
A METODOLOGIA DA MATEMÁTICA E O CONHECIMENTO INDÍGENA NA 3ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL
Ludi Tariano
RESUMO A valorização da cultura indígena na escola é de grande importância para as populações indígenas. O conhecimento indígena inserido na proposta curricular das escolas, pode produzir mudanças pertinentes quanto a metodologia de ensino e aprendizagem, despertando nos alunos interesses pelos estudos e criatividades nas atividades educativas. A proposta desta pesquisa é proporcionar aos alunos uma aprendizagem significativa, tendo como ponto de partida o ensino da matemática a partir da inclusão do conhecimento matemático do povo de língua tukana. O método adotado foi o etnográfio, no quel nos valemos dos registros de campo, que foi a escola e a sala de aula, além de aplicarmos questionários e fazermos entrevistas aos professores e alunos. A base teórica se apóia principalmente nos Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Escola Indígena – RENEI‟s (2000), Centrion (2002), Costa (2005), Monteiro & Júnior (2001) e outros. (sic) Palavras-chave: educação. Cultura. Interculturalidade. Currículo.
RESUMEN30
La recuperación de La cultura indígena em lãs escuelas es de gran importância para los pueblos indígenas. El conocimento indígena inserta em el currículo de las escuelas, pueden producir los câmbios en la metodologia de la enseñanza y el aprendizaje, despertarr el interes em los estudientes para los estúdios y la creatividad em las actividades educativas. La propuesta de esta investigación es proporcionar a los estudientes um aprendizaje significativo, tomando com punto de partida la enseñanza de la matemática a partir de la pueblo Tukan. El método utilizado fue el entográfico, em el que valemos de los registros en el campo, que es la escuelas y Del aula, además de hacer la aplicación de entrevistas y cuestionarios a professores y Estudiantes. La teoria básica se basa principalmente em el Consejo Nacional de Referencia Curricular para Escuela indígena – la RCNEI‟s (2000), Centrion (2002), Costa (2005) y Junior Monteiro (2001) y outros autores. (sic) Palabras Clave: educacion. Cultura. Interculturalidad. Curriculum. SUMÁRIO INTRUDUÇÃO 1 A Escola Santa Terezinha: diagnostico escolar
1.1 Histórico 1.2 O Meio físico 1.3 O meio econômico, social e cultural 1.4 O ambiente humano 1.5 Ambiente de aprendizagem 1.6 Os indicadores escolar: pontos fracos e fortes
2 O Ensino da Matemática e a Proposta Intercultural: o conhecimento indígena 3 A Prática da Docência e o Ensino Intercultural: a matemática indígena CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
30
Ludi Tariano é falante das línguas espanhol, tukana, tariana e português. Preferiu traduzir o resumo
para o espanhol devido sua aproximação com os tukano da Colômbia.
264
Continuação
O ENSINO E APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA NO 2º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Tuli Tukano RESUMO Este trabalho refere-se a análise do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita nos alunos do 2º ano do Ensino Fundamental, tendo em vista as dificuldades enfrentadas pela escola em promover de ensino e de qualidade. O objetivo da pesquisa é analisar se as diferenças culturais entre as crianças das séries iniciais do ensino fundamental interferem em seus aprendizados, pois a maioria dos alunos do nosso município é oriunda de diversas etnias indígenas e vem de diferentes ambientes familiares, socioeconômicos e culturais. Por isso apresentam dificuldades de aprendizagem e o rendimento é desigual. A metodologia baseou-se na pesquisa etnográfica, na observação, participação e utilização de entrevistas e aplicação de questionário aos sujeitos da pesquisa. (sic) Palavras-chaves: Dificuldade de aprendizagem. Educação. Cultura
KHA’RÕ31
A‟té nëmiriê, mari Kahatirimë Kohore, ahpitë, bo‟erãre mahsĩse, ayürõ niisehetiseré ukumã, keoró be‟ro përe wa‟to niirã. Toho wera a‟té ohake a‟tipũri niisé ukũrosa de‟ro we boésere, na bo‟ era të‟oyê‟sere ohã bo‟ esere. Towetaha naa ohake‟re a tirota niirõ wee nii i iya massisehere, nee bo‟enē kãrãre ahëtë ukũrosa‟. Toho wee të‟o yã‟ro ni‟i de‟ro wee naare bo‟egë oha, ĩ iya mahasĩ bo‟esari, a‟ti mahaká ma‟a páhara po‟terikãhara ni‟ima, mêhekã niisetirã niima meheka të‟oiyarã, aqhpeye kihiti këorã. Nãa ahkawerêrã me‟ra niikã‟ra nii‟ ma. Toho weerã ni‟kãroihi niitima. Nãa bo‟erro përé a „tiro weena naaré bo‟era, nãa mahasësehere naare të‟oma naá me‟ra bohokarã, teere miiye‟ ukũsetima niise ĩ iyõrosa. (sic) Ukũsehe-dë’pokã: mahsĩsé ãyusé. Bo‟esehe. Niisetisehe. (sic) SUMÁRIO INTRODUÇÃO I O Diagnóstico Escolar
1. História da Escola 2. Aspectos Administrativos e Pedagógicos 3. Organização Curricular 4. Aspectos Sócioculturais 5. Aspectos Físicos 6. Gestão Escolar
II A Sala de Aula como Foco de Pesquisa 1. Uma visão do Processo de Ensino e Aprendizagem da Leitura e da Escrita 2. O Professor e o Aluno diante do Processo de Ensino e Aprendizagem da Leitura e da Escrita
III Reflexões sobre a Prática da Docência: contando mito, escrevendo textos CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
31
Resumo na Língua Tukano.
265
Continuação
A FALTA DE INTERESSE DA LEITURA E DA ESCRITA
Bali Tariana RESUMO Neste trabalho pretendemos investigar as situações pela qual atinge de uma forma direta na falta de interesse na leitura nas séries iniciais, envolvendo aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos. Diante de um contexto bastante preocupante na leitura em relação a construção do conhecimento por meio de leitura é essencial aplicar metodologia, didática, conforme sua realidade, por meio de inovações, criatividade, principalmente motivação. Respeitando a diversidade das culturas locais, seja mito, raça ou „religião. Para diagnosticar onde, como, em que e porque há falta de interesse na leitura dos alunos, foi realizado o Estágio Supervisionado I, II, III. A partir de analise de dados (entrevista com alunos, professores e pais), constatamos que os elementos didáticos e motivações dos pais e professores são favoráveis e essenciais no interesse na leitura nas séries iniciais.(sic) Palavras-chave: leitura. Motivação. Construção do Conhecimento.
KHA’RÕ32
A‟té da rakehê niî wi‟ marãme‟rã bu‟éseré ayarô be seweéni‟Kõ tu‟nikã de „renathá wi‟marã Lee tisahawee‟ti a tenimiriré to‟erã nhãnoapî naâ me nekharâ me‟râ de ró niîshétisê, naâré bueramerâ ayarô niîti, thú‟nikã de‟rô niîshetisé naâ tishétisé, naâ ti‟ohâshétisé, naâ papéra apabishéturi kiotì, mohõtiî. A‟pithî wi‟marã naâré tioka‟sániîkõ, de‟ré naârema‟asikã weenâsari, naã ti‟onâháphekâ weenasari, de‟rê Lee thi‟sakã weeboósarî, tu‟nikã naâ niîshetisé mera yâka‟ sanikô bue‟ró niî, tu‟nikã a‟tiro pe‟tá bue‟kã ayhubosâ niîroniîsá. Wi‟marãré naâ masâkuruniîki yehôpeóro niî, naâ yehôpeoshétisê, tu‟nikã diporôpi kiîti naâ yehôpeoshétisê. Niîphêtishé a‟to miarô ohaké iîtistimerâ wi‟marãmerá naâ bu‟eri wi‟ì, tu‟nikã naã bue‟rithûki yãkhásanikõ, be‟esheweenikôwî. Thoégô naã, naãre bue‟rã, pa‟kisîmiã senith6inowì, tho‟erã naãre wereka‟sani‟konodiakî niî naâ ahyorõ‟tayrõ. (sic) Palavras-chaves: léerô. A‟teretá yashá. Bu‟egi. Mahasishére neheka‟no. (sic) SUMÁRIO INTRODUÇÃO I O Cotidiano Escolar
1. Diagnóstico 2. Dimensão Pedagógica 3. Dimensão Afetiva: relação professor aluno 4. Dimensão Avaliativa
II Reflexões sobre o Problema da Pesquisa: caminhos percorridos III Leitura e Letramento: entre a teoria e prática IV A Prática Docente: intervenções pedagógicas e o Projeto de Aprendizagem CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APÊNDICE
32
Língua Tukano.
266
Continuação
AS DIFICULDADES DO ENSINO DA MATEMÁTICA NA 3ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL
Jandi Baré RESUMO O Presente Trabalho de Conclusão de Curso reúne a trajetória da pesquisa realizada no decorrer do estágio supervisionado no período de 2007/2008. Nele se reúne o relatório realizado durante os estágios, quando foi produzido o diagnóstico da escola. E a monografia intitulada: dificuldade de aprendizagem da matemática na 3ª série do Ensino Fundamental, que mostra os problemas que os alunos enfrentam no processo de ensino e aprendizagem e as propostas de ação pedagógica a fim de minimizar os problemas. (sic) Palavras Chaves: matemática. Dificuldade. Aprendizagem.
MUKUAIRA33
Ka muraki umuatiri ka, yumbuesara ka barra kit, ka tawaa akayú piterarupi. Ape umuatiri apapera umunhawaa mairame umunha ukunhai wa escola resewara kua muraki wasú uyumbué papassa ape umuramaré wasusa yumbuesara ussâ umunhã muraki kwaira. (sic) Puruguintá-nheén: yumbuesara, iwasú, -mbué. (sic) SUMÁRIO INTRODUÇÃO I Diagnóstico Escolar
1 Histórico Escolar 2 Meio Físico da Escola 3 Meio Econômico, Social e Cultural 4 Ambiente Humano 5 Ambiente de Aprendizagem
II O Ensino da Matemática: uma etnografia do processo de ensino e de aprendizagem 1 Focalizando o Problema 2 Diagnóstico do Problema
III Educação Matemática: entre a teoria e a prática IV Reflexões sobre a Prática da Docência CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APÊNDICE 1 APÊNDICE 2 APÊNDICE 3 APÊNDICE 4 APÊNDICE 5
33
Língua Nheengatu
267
Continuação
DIFICULDADE DA LEITURA E DA ESCRITA
Rosi Tukano
RESUMO Este trabalho realizou-se no período de dois anos, durante o estágio supervisionado I, II, III e IV no qual se desenvolveu a pesquisa intitulada: dificuldade da leitura e da escrita dos alunos da segunda série, envolvendo alunos, através de atividades lúdicas na sala de aula como: desenhos, jogos, músicas e cantos para motivar a aprendizagem, contribuindo na minha aprimoração no campo da Educação Infantil e Básica, sempre preocupando em formar um aluno crítico e reflexivo diante dos problemas da realidade. (sic) Palavras-chave: educação. Aprendizagem. Dificuldade de Aprendizagem. KITI UKUSE PE’TISE Buesé niîpe‟tira bu‟é masise niî. Makã bu‟esere wetamum, pehé ayusére masisére were naâ bu‟ekã ayuró wi‟imarã masirã wa‟to niîra. Weregi, wi‟imarã naâ ukusé masigi niî masisamo terê pire yõ‟ó bu‟éki ni‟îgi. Ki‟i bu‟erãré werekasami ãyuró wa‟to ninîgi. Naâ bue‟rã yaâ tikupire ti‟oye nikõsere we‟é GO naâ ãyuro diasasere opó ni‟ikõ masikã. (sic) Ukese ser tiase”bu’esé. Masisé. Hoáse bu‟ekase diasase. (sic) SUMÁRIO INTRODUÇÃO I CÁPITULO O Diagnóstico Escolar II CÁPITULO Etnografia da sala de aula: dificuldade da leitura e da escrita III CÁPITULO Dificuldade da Leitura e da Escrita: comparação entre a teoria e a prática IV CÁPITULO Reflexão sobre a prática da docência: trabalhando a dificuldade da leitura e da escrita CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS
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Os seis esquemas cognitivos dos aprendentes nos dão uma visão geral do
que foi produzido em termos de conhecimento. Chegar até essa culminância não foi
fácil. A sexta jornada foi nosso último encontro de formação e, como nos outros
encontros, não deixou de haver conflitos, incompreensões, dificuldades de
interpretação quanto às orientações finais: revisão técnica dentro das normas da
ABNT, da língua portuguesa, construção do resumo da monografia entre outros.
Apesar de nesse momento as dificuldades quanto à escrita terem amenizado
bastante, os problemas semânticos e de coesão textual continuavam.
Fazer o resumo da Monografia foi uma tarefa estressante. Os aprendentes
não conseguiam entender o que significava resumir, como transformar todo o
trabalho escrito em um resumo de meia página? Depois tinham que fazer a tradução
para língua estrangeira. Foi uma semana de trabalho em torno do resumo. Além
disso, a disciplina Prática da Pesquisa Pedagógica II exigia não apenas a
monografia, mas a defesa da mesma, que teria que ser feita mediante a produção
de um resumo expandido. Ou seja, eles teriam que trabalhar dobrado. Não se
tratava apenas de organizar os dados, dar significados a eles, mas teriam que saber
interpretá-los e comunicá-los publicamente. Todo esse processo só aumentava suas
angústias. No entanto representou mais um desafio a ser vencido. E venceram.
Vencemos.
Trocmé-Fabre (2004, p.43) afirma existir três etapas fundamentais para a
autonomia dos aprendentes, que são: saber-integrar, saber-compreender e
saber-comunicar. Nestas etapas somente eles poderão estar no comando. As
jornadas dos aprendentes caminharam para isso, para que os mesmos pudessem
assumir seus próprios percursos. A última jornada foi a consagração desse
processo.
Nesse período assumi a responsabilidade de orientar não apenas os 29
alunos da turma para a qual eu ministrava, mais a turma de outra professora, que
não chegou no tempo previsto. Foram mais 19 alunos a serem orientados, o que,
para mim, foi extremamente desgastante. Infelizmente, não pude dar uma orientação
satisfatória, houve falhas, passaram-se erros e muitas coisas poderiam melhorar.
Mas o meu tempo foi marcado pelo Chronos, que me guiava e me fazia enfrentar o
tempo Kairos. Eu tinha que entender que os aprendentes tinham processos de
compreensão diferentes, possuíam ritmos diferentes, mas o tempo não para e,
nessa etapa, eu não podia mais esperá-los. Agora era a vez de eles me
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acompanharem, de aceitarem o meu tempo, o tempo da disciplina, o tempo do
trabalho. São as contradições dos sistemas. Ou então, fracassaríamos. Foram
quatro semanas de trabalho realizado nos três turnos do dia: manhã, tarde e noite.
A ideia de fazer o resumo na língua indígena surgiu de um aprendente
chamado Nilo. Ele me questionou quanto ao resumo da língua estrangeira, pois os
havia orientado que poderia ser em Inglês ou espanhol.
- Professora, esse resumo da língua estrangeira, tem que ser nessas línguas mesmos? Será que agente não pode colocar a nossa outra língua, a língua indígena? A gente precisa valorizar a nossa língua. Nós temos uma lei que nos permite fazer isso.” (NILO, Baré. Conversa em sala de aula. 2008)
Diante desse questionamento, dei-me conta das minhas contradições. Passei
o tempo todo investindo nessa formação em valores míticos, cosmológicos e
respeitando as culturas e línguas indígenas e não havia me dado conta de que a
língua, como identidade cultural desses povos, deveria ser legitimada nesse
contexto de produção de conhecimento. Assim decidi, junto com os aprendentes,
que eles poderiam fazer o resumo nas línguas estrangeiras: Inglês, Espanhol,
Baniwa, Tukano e Nheengatu. O que foi plenamente acordado por todos. Somente
um aprendente apresentou o resumo na língua inglesa. O restante foi nas línguas
Tukano, Baniwa, Nheengatu e Espanhol.
No entanto, apesar de não conhecer as línguas indígenas em destaque,
observei que houve problemas na escrita de seus resumos. Nota-se que certas
palavras são escritas de maneira diferente na mesma língua. É o caso da palavra
resumo em Tukano. A aprendente Bali Tariana escreve Kha’rõ (ver Quadro 9),
enquanto que Rosi Tukana escreve Kiti ukuse pe’tise (idem). Ao serem
questionadas sobre qual seria a escrita certa, elas disseram que não sabiam,
afirmando que não sabiam escrever bem em Tukano. Rosi recorreu ao marido. E
Bali recorreu ao pai. Infelizmente, não tive tento de aprofundar esse assunto, mas
denota-se que em ambas as línguas: português e tukano, mantém-se o problema do
letramento, no que se refere ao desenvolvimento da escrita.
Outro problema na escrita da língua indígena foi o fato de os computadores
não terem os sinais gráficos necessários para o uso de certas palavras. Então as
palavras não foram digitadas da mesma forma em que são manuscritas. Portanto,
àqueles que conhecem essas línguas, peço-lhes que compreendam aos
270
aprendentes e a mim, que, por razões do tempo do percurso da formação, não
conseguimos encontrar uma alternativa para resolver esse problema. Contudo, não
podemos deixar de considerar a importância dessa iniciativa, não apenas por
expressar as identidades culturais dos aprendentes, mas pela abertura acadêmica
para outras formas de expressão de linguagens. A atitude pedagógica de aceitar os
resumos em línguas indígenas não deixa de ser uma transgressão às normas
técnicas da academia. De certo que ao fazer isso assumi todos os riscos e
incertezas deste processo. Assumo também a responsabilidade quanto às falhas e
os equívocos linguísticos dessa construção.
Com efeito, ao assumir a complexidade e a transdisciplinaridade como
operadores cognitivos deste curso de formação de professores, fiz uma aposta de
que é possível, sim, promover uma educação sustentada na relação entre os
saberes da experiência de vida, do mundo vivido e os saberes científicos. Os
saberes da experiência são dotados de imaginação, intuição, sensibilidade,
corporeidade e possuem um vetor epistemológico de grande importância para a
compreensão dos contextos e das realidades aos quais estamos cotidianamente
experienciando. São saberes enraizados na experiência do vivido, numa razão
sensível (MAFFESOLI, 1998). Os científicos promovem outras formas de
compreensões sobre esses contextos, a imaginação e a sensibilidade ganham
novas dimensões epistemológicas quando inseridas em teorias, métodos e técnicas,
e apesar de serem pouco exploradas também fazem parte da construção desses
saberes.
Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade
e do corpo na transmissão dos conhecimentos. (Carta da Transdisciplinaridade. Artigo 11. 1994)
Essa percepção de educação como espaço para vivência de sensibilidades e
a construção do conhecimento como processo de renovação de espaços, lugares,
saberes, experiências e sociabilidades permitiu a instituição de um pensamento
enraizado, incorporado pela totalidade das experiências de vida individuais e sociais,
nas quais se situa essa experiência de formação. Conclui-se, portanto, que essa
experiência está implicada na existência dos aprendentes em comunhão direta com
suas emoções, sentimentos, conhecimentos, percepções e pensamentos.
271
As monografias resultaram, portanto, de um exercício cognitivo de operar um
pensamento implicado na totalidade das existências e experiências dos aprendentes
em suas relações com o mundo vivido, no qual se incluem a natureza e a cultura. E
por serem construídas dentro dessa implicação existencial, apresentaram traços
etnopoéticos (FITCHE,19987). Esses traços expressaram a tentativa de comunhão
entre os saberes oriundos do pensamento selvagem e do pensamento científico,
com vista à elaboração de uma linguagem imbuída de uma estética poética e
antropológica, que de certa maneira inspirou a construção desse trabalho.
O Conhecimento Comunicado: a defesa
O processo de preparação da defesa foi marcado por muita expectativa e
ansiedade. Os aprendentes temiam ser reprovados. Então, houve uma correria por
computadores para a preparação da apresentação em Powerpoint. Além disso,
muitos tiveram que contratar serviços de terceiros, pois não sabiam manusear esse
programa. Apesar das dificuldades com a tecnologia, todos fizeram suas
apresentações nesse programa. Foi feita uma aula de preparação para a defesa, na
qual eles foram orientados quanto ao tempo, postura e respeito junto à banca
examinadora e ao público.
As defesas das monografias dos aprendentes foram realizadas em três dias,
envolvendo os três turnos. Chegou o momento de eles comunicarem os resultados
de seus trabalhos e defendê-los publicamente. Sob o ponto de vista pedagógico,
nada mais podia ser feito. Essa etapa era unicamente deles, que teriam que
apresentar seus trabalhos em 15 minutos. Curiosamente, todos cumpriram com o
tempo. Para eles, tudo tinha que ser feito de acordo com as normas da
Universidade. Então cada um tomava conta do tempo do outro. Explicitarei apenas
alguns trechos e fatos importantes das defesas34, pois minha memória não
conseguiu fixar todas.
A primeira defesa foi a da aprendente chamada Rosi. Essa aprendente
apresentou nervosismo, como todos, antes de ser chamada para a banca. Olhou
para mim e disse: “então, professora, como me sairei? Será que conseguirei 34
Infelizmente, as defesas não puderam ser colocadas aqui, pois não foram transcritas. O gravador
que as continha foi roubado antes destas serem copiadas para o computador. Então mostrarei
apenas alguns flashs da memória dessas defesas, explicitando as mais marcantes.
272
defender?” Disse a ela que a monografia era fruto de um trabalho feito por ela,
portanto, ela teria todas as condições de falar sobre isso, mais do que qualquer
pessoa. Assim compomos a banca.
A defesa de Rosi: sabedoria
Inicialmente, Rosi olhou para todos, fixou o olhar na Banca e nos seus
parentes presentes e começou a falar em Tukano. A Banca foi pega de surpresa.
Mas se manteve em silêncio. A aprendente falava com uma voz calma e tranquila.
Apesar de não entender sua língua, em alguns momentos sentia que suas palavras
eram dirigidas a mim, às vezes à banca, pois ela direcionava o olhar a nós. Foram
cinco minutos de discurso. Depois ela disse: “bom dia a todos, à banca. Bem, o tema
da minha pesquisa foi Dificuldade da Leitura e da Escrita...” Assim, ela apresentou
seu trabalho. Os membros da banca fizeram alguns questionamentos quanto à
relação dela com a pesquisa, sobre como foram esses períodos de estágio e
investigação na escola e quais as maiores dificuldades encontradas por ela dentro
da escola relacionada ao seu tema. Rosi respondeu a todos com muita firmeza e
clareza. Todas as respostas da banca foram respondidas e então encerrou-se a
defesa com o trabalho aprovado.
Ao término da defesa, fui até Rosi e perguntei sobre o porquê de ela ter falado
em língua tukano e se poderia me dizer o que falou. Rosi me olhou nos olhos e
disse: “o que eu tinha que falar não era para senhora e nem para banca, era para os
meus parentes. Obrigada professora, por tudo.” Fiquei um pouco decepcionada com
a resposta, mas entendia perfeitamente o porquê desse não-dito e ao mesmo tempo
dito. Em todas as outras defesas, esse procedimento de falar primeiro na língua
materna foi mantido.
A Defesa de Franssi: desabafo
A defesa de Franssi foi sem dúvida a mais inquietante, pois seu discurso na
língua Piratapuia foi extremamente forte. Pela forma como ela se expressou, com
rosto sério e ao mesmo tempo raivoso, deu a atender que se tratava de um
desabafo. Ela olhava para todos e apontava o dedo para nós, com olhos vermelhos
e lacrimosos. Parecia nos acusar de algo, mas ao mesmo tempo fazia gestos com
273
as mãos que indicaria, talvez, certo respeito, pois o tom de sua voz às vezes parecia
dizer algo respeitoso. Como de Rosi, seu discurso durou cinco minutos. Então ela
partiu para sua apresentação: bom dia a todos, aos membros da banca, o tema da
minha monografia é...
Franssi seguiu o ritual de defesa, respondendo as questões da banca. A
monografia foi aprovada e Franssi sumiu. Só soube notícias dela um ano depois, na
Colação de Grau.
A defesa de Sol: vitória
A defesa de Sol foi a mais esperada por mim, pois dada as suas dificuldades
iniciais e os avanços que teve ao longo desta experiência de formação, além de sua
história de vida, ela representou as conquistas desse processo formativo. Sol iniciou
seu discurso falando em Português:
Boa tarde a todos, aos professores da banca. Bem, eu nasci falando português, eu aprendi a falar o Tukano, mas hoje sei falar muito pouco. Mesmo assim cumprimentarei a todos na língua Tukana. Para mim esse momento é uma vitória, nunca imaginei chegar aqui... O tema da minha pesquisa é: dificuldade de aprendizagem do aluno indígena na escola de branco, os objetivos foram...
Sol apresentou a monografia com muita segurança. Fez reflexões críticas ao
modelo da escola atual, que não apareceu da mesma maneira que no trabalho
escrito. Utilizou-se de uma linguagem acadêmica, com palavras bem apropriadas e,
sem apresentar nenhum nervosismo, avaliou os dados da pesquisas com críticas
apoiadas em teóricos. Ela fez ressalvas quanto à escola indígena e às propostas
curriculares, bem como a respeito da necessidade de ter de fato uma escola bilíngue
e intercultural. O processo de comunicação de Sol superou todas as expectativas
previstas em relação a esse momento. Inclusive ela mesma afirmou: “professora,
agora eu falo como uma professora-pesquisadora, falo com domìnio...” A defesa de
Sol foi muito aplaudida pelos colegas e participantes. Ela foi aprovada pela banca
com louvor.
Defesa de Ludi: o conhecimento indígena.
274
Como os outros colegas falantes da língua Tukano, Ludi iniciou sua
apresentação falando nessa língua. Em seguida cumprimentou a banca e passou a
falar da importância do conhecimento indígena para escola. Apresentou dados
concretos sobre o conhecimento matemático. Mostrou instrumentos para que todos
pudessem ver o uso da matemática pelos índios. Afirmou que a escola de índio tinha
que fazer um currículo concreto, que os alunos pudessem perceber a importância do
conhecimento indígena, garantindo a permanência dos mesmos para as gerações
futuras.
Ludi não obedeceu a sequência de seu trabalho. Falou de assuntos que não
estavam presentes na monografia. A impressão que tive foi que ele quis nos dizer
que embora a monografia represente a caminhada dele sobre a pesquisa, ela não
expressou a totalidade das coisas que queria mostrar. Parecia haver uma tensão
entre a monografia e o conhecimento indígena. Ele quis sobrepor o seu
conhecimento sobre a monografia. Como ele não conseguiu expressar isso pela
escrita, encontrou na defesa o momento para isso. Ludi deu uma aula de
matemática, de sabedoria e de mitos. No final mostrou apenas as fotografias de
suas aulas do estágio. Terminou sua apresentação dizendo que espera continuar
ensinando aos alunos que o conhecimento indígena é tão importante quanto ao
conhecimento do branco. Ele foi aprovado com a nota máxima.
A defesa de Cocah: incertezas
Cocah foi um aprendente que atravessou as jornadas com muitos problemas,
tinha dificuldades em fazer os trabalhos escritos e sempre encontrava um jeito de
entregá-los depois do prazo. Apesar disso, ele cumpria com todas as tarefas. No
entanto, algumas vezes tive que recorrer a avaliações orais, nas quais ele descrevia
as atividades propostas. Sua defesa foi cheia de dúvidas, pois ele sumiu durante o
período de orientações. Pedia para os colegas que buscassem notícias dele, mas
ninguém conseguia encontrá-lo. Chegou o último dia da defesa e ele não apareceu.
Faltava apenas um dia para eu retornar para Manaus, quando ele surgiu. Veio me
pedir desculpas por não ter conseguido cumprir com a defesa. Perguntei o que o fez
desistir. Ele me disse que não sabia organizar a escrita, não sabia fazer
apresentação no computador. Além disso, não tinha condições financeiras para
275
pagar alguém para fazer. Disse a ele que teria uma noite e uma manhã para
organizar tudo que ele tinha feito e apresentar na tarde do próximo dia, não
importava se seria no PowerPoint, numa cartolina, papel madeira ou mesmo só por
meio de suas palavras, mas ele teria que fazer sua defesa, caso contrário voltaria
para Manaus com um fracasso nas mãos. Ele me olhou e disse: “está bem,
professora, amanhã defenderei, não sei como, mas defenderei...”
Na tarde do dia seguinte, com a Banca Examinadora montada, esperamos
Cocah. Um colega chegou correndo dizendo que ele já havia terminado e que já
estava vindo. Eram 16h30 quando ele chegou, acompanhado do colega que o
ajudou nesse processo. Entregou o resumo expandido à Banca, que o leu em meia
hora. Foi dado início à defesa. Como os outros colegas, Cocah iniciou sua
apresentação falando na língua Tukano, em seguida cumprimentou a banca e
começou a falar sobre sua trajetória no estágio, de suas dificuldades em fazer os
trabalhos e o apoio que dei a ele durante esse percurso. Agradeceu-me
publicamente. Fez um discurso crítico contra o processo colonizador no Brasil e as
consequências dele para o povo indígena. Disse que sofreu com os salesianos,
apanhou por não querer falar português. Ele apresentou o trabalho no Powerpoint e,
apesar das dificuldades, conseguiu a aprovação da banca. Contudo, ele não
conseguiu Colar Grau, pois havia deixado algumas disciplinas com pendências. São
os entretempos e contratempos do sistema. Os desvios nem sempre promovem
mudanças positivas.
O dia da Consagração: a Colação de Grau.
Quase um ano depois da defesa, em setembro de 2009, os aprendentes
colaram de Grau. Cheguei três dias antes, a tempo de participar do processo de
preparação da formatura. Estavam todos animados com a preparação, apesar dos
atritos com a mestra de cerimônia da UEA – sede Manaus, enviada especialmente a
São Gabriel da Cachoeira para organizar esse evento.
A formatura foi feita no pátio da própria Universidade. O espaço foi decorado
com artefatos indígenas. O culto ecumênico foi também na Universidade, realizado
numa sala especial. O culto foi feito por um pastor, um padre e um pajé. No final da
cerimônia, o pajé fez o ritual da pajelança, abençoando os formados e os
autorizando a seguir em frente. Em seguida, eles se dirigiram para o pátio,
276
orientados pela mestra de cerimônia. O ritual da formatura contou com a presença
da então reitora, professora Marilene Corrêa da Silva Freitas, e do prefeito da
cidade, Pedro Garcia. Os formandos prestaram juramento nas quatro línguas oficiais
do município: Português, Baniwa, Tukano e Nheengatu. Com diploma nas mãos, os
aprendentes finalmente foram consagrados à profissão de Professores. A sexta
jornada termina em festa. O baile de formatura teve danças, comidas, bebidas e
muita alegria.
Ilustração 4 - Culto Ecumênico: ritual de pajelança. Set/2009
Fonte: Arquivo Pessoal
277
Ilustração 5 - Culto Ecumênico: o Pajé, o Padre e o Pastor. Set/2009
Fonte: Arquivo Pessoal
Ilustração 6 - A Formatura. Set/2009
Fonte: Arquivo Pessoal
278
Ilustração 7 - Recebendo o Grau. Set/2009
Fonte: Arquivo Pessoal
Ilustração 8 - O Baile de Formatura. Set/2009
Fonte: Arquivo Pessoal
279
A última jornada dessa experiência de formação representou para mim uma
sensação de dever cumprido. Foram dois anos de estudos, de reflexões, de conflitos
e também de compartilhas. Ao longo desse período, experienciamos, os alunos e
eu, um acordo pedagógico sincero, fundado pelo diálogo entre a natureza e a cultura
e pela implicação das dimensões existenciais dos aprendentes no processo de
construção de conhecimento. Essa compreensão permitiu também o encontro
dialógico entre o pensamento sensível e o pensamento científico (LÉVI-STRAUSS).
A sala de aula foi um entre-lugar que possibilitou não apenas esse encontro,
como também provocou transformações do e no pensamento e, consequentemente,
produziu um conhecimento nutrido de imaginação, de sensibilidade, intuição e
estética. Apesar de vivermos um tempo cronometrado, marcado pela
irreversibilidade, foi possível a experiência do tempo existencial, mítico e circular. Em
que pese as contradições, inerentes a todo sistema complexo, os conflitos, as
incompreensões, pode-se afirmar, nesse fim de jornada, que aprendemos ao longo
de dois anos produzir uma prática de formação instruída pelos operadores da
complexidade e da transdisciplinaridade.
Ilustração 9 - O Baile de Formatura. Set/2009
Fonte: Arquivo Pessoal
281
QUADRO 10
A MATRIZ DE EXPLORAÇÃO EPISTEMOLÓGICA E METODOLOGICA
COMPLEXIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE
PENSAMENTO SENSÍVEL E PENSAMENTO CIENTÍFICO
DIMENSÕES CONCEITOS PRINCÍPIOS E SABERES NECESSÁRIOS METODOLOGIA
BIO
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Aprendizagem Temporalidades Sentido Memória Imaginário Mito Sensibilidade Intuição Emoção Terceiro Instruído
Incerteza
Dialógico
Respeito à lógica
dos viventes
Imprevisibilidade
Recursividade
Níveis de
realidade
Desordem
Reorganização
Hologramático
Circularidades
Irreversibilidade
Ordem
Riscos
Autogestão
Ontonomia
Autonomia
Ética
Estética
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IVER
Educar o pensamento Educar para a compreensão Educar para o sentido Ensinar a condição humana Educar para complexidade Mitopoesia Etnopoesia Disciplinas Interdisciplinas Transdisciplinas Transculturali- dade Sagrado Profano
1. Experiência do Sentir-
Pensar - Oficina do Pensamento: o mito como experiência do sentido – Leitura de Mitos e reflexão 2. Experiência do Conhecer-
imaginar - Oficina do Conhecimento: o mito como experiência do vivido – Origem do Fogo e sobre como se faz fogo. 3. Experiência do Cria-sentir - Oficina de Criação: recriando mitos. 4. Experiência da Escrita: a
etnografia e a escrita da realidade
- Escrevendo sobre a escola e diagnosticando os seus problemas.
5. Experiência dos Conceitos
- Diálogo teórico com a realidade.
6. Experiência da Docência
- A escrita da prática e os fundamentos da docência
7. A Bricolagem
- A junção das experiências e o conhecimento construído.
AP
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Ensino Identidades Linguagens Diversidade Interculturalidade Conhecimento instruído Ciência Sabedorias Bricolagem Razão História Territórios existenciais Entre-lugares Entre-tempos
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Complexidade Sistemas vivos Autorganização Autopoiése Estruturas dissipativas Corporeidade Lugar Tempos Línguas
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282
Quando aceitei ser professora da disciplina Prática da Pesquisa Pedagógica
não imaginava que esta seria acompanhada de outra: Estágio Supervisionado.
Também não imaginava que este seria desdobrado em quatro períodos. Uma vez
aceito o desafio, teria que assumi-lo até o final do curso, pois isso evitaria mudanças
nas orientações metodológicas, visto que cada professor tem uma compreensão
teórica e metodológica da pesquisa em educação, que podem ser convergentes ou
contrárias. Dessa forma, os aprendentes não sofreriam os impactos provocados por
mudanças de professores. Seriam dois anos de acompanhamento sistemático a São
Gabriel da Cachoeira. Contudo, aceitei o desafio, mesmo não tendo uma formação
pedagógica especializada, não sou pedagoga.
Sou professora, formadora de professores e também pesquisadora. Venho,
ao longo de dez anos, dedicando-me ao estudo e à pesquisa relacionada à
formação de professores. Vivo constantemente em contato com o mundo da escola,
professores, pedagogos, alunos, comunidade escolar. Reconheço as dificuldades
desse mundo, seus conflitos, problemas e dilemas. Acredito que esse lugar precisa
urgentemente ser re-encantado, refundado em termos políticos, sociais e culturais,
pois, nas condições em que se encontra, será fadado a ser um campo de formação
de (des)humanidades, desprovido de valores éticos, estéticos e morais.
Criada como lugar de ensino e de formação de pessoas, a escola é hoje, em
larga medida, marcada por um mundo de violência, de conflitos, desigualdades,
preconceitos e discriminação e por uma grave crise no ensino e na aprendizagem,
em que se explicitam o desinteresse dos aprendentes e a desmotivação de
professores. Esse desencantamento educacional está implicado no próprio
desencantamento do mundo. A crise na escola é uma dimensão hologramática da
crise da sociedade com seus problemas de ordens ambientais, culturais, políticas,
econômicas e sociais. A escola é, portanto, a representação desse mundo em crise.
No que se refere aos aspectos da docência, ainda observa-se a falta de
preparo dos professores frente às novas exigências do ensino e aos problemas
socioeducacionais da escola. Aliado a esses problemas crônicos da escola, os
professores ainda têm que lidar com a falta de valorização profissional, com os
baixos salários que os obrigam a cumprir uma tripla jornada de trabalho.
É preciso ainda considerar que, nesse quadro complexo dos problemas
educacionais, nos quais as responsabilidades têm recaído muito fortemente sobre
os professores, vimos a perda da identidade docência e da sua importância na
283
formação dos aprendentes. O professor convive cotidianamente com a falta de
respeito dos aprendentes, reflexo da perda de sua autoridade de outrora.
Com efeito, a perda da identidade profissional, a falta de valorização
profissional e salarial, sem contar as cobranças em níveis micro e macrossociais,
nos levam a questionar: como formar pessoas diante dessa realidade posta? Qual o
papel da Universidade nesse processo de mudanças socioeducacionais? Como
formar professores preparados para atuar nessa nova realidade? Quais os saberes
necessários à formação de professores que sejam capazes de ressignificar o ensino
e a aprendizagem escolar? Afinal de contas, o que é preciso ser feito? Mudar a
realidade do ensino ou ensinar para novas realidades? Não me resta dúvida, é
preciso mudar a realidade da escola, mas é preciso também mudar a realidade do
ensino em suas múltiplas dimensões: sociais, culturais, políticas, cognitivas e
afetivas.
Essas observações primeiras são necessárias para que se compreenda o
porquê da minha escolha em desenvolver um projeto de formação de professores
implicado nos operadores da complexidade e da transdisplinaridade. Acredito que o
modelo de ciência que orienta os cursos de licenciaturas precisa ser revisto, pois se
apresenta muito distante do mundo da escola. Epistemologicamente esse modelo é
fruto de um paradigma pautado na racionalidade técnica, que se preocupa em
formar um técnico especializado em aplicar regras, métodos e a instruir
conhecimento científico.
Notoriamente, esse esquema cognitivo ou essa tecnologia educativa não se
sustenta quando inserida na realidade social. Sua aplicação é falha, pois as
dimensões da realidade são múltiplas, dinâmicas e contingenciais que estão e vão
além das regras do método, por isso mesmo são incertas e arriscadas. O professor
não é preparado para agir diante dessas flutuações, pois o método que o formou
reduziu a realidade a fragmentos especializados, separou o sujeito do objeto, a vida
social da vida acadêmica, o mundo vivido do mundo escolar, a natureza da cultura, o
afeto da razão. Enfim, a formação de professores está longe da dinâmica da vida
social e, apesar de estar implicada nela, os professores ainda sentem dificuldades
em conviver dialogicamente com os dois mundos: o mundo da instrução e o mundo
social, que é dinâmico e possui múltiplas dimensões.
Dar-se conta desse processo torna o meu papel, como professora e
formadora, mais desafiador, pois é preciso romper com esse modelo e promover
284
novos caminhos, estratégias, capazes de dar conta de uma prática de formação
sustentável, dialógica, solidária aos problemas da escola. Quando aceitei o desafio
de ministrar esse curso, sabia que tinha que assumir um comportamento
transgressor às normas e às regras das disciplinas. Recebi um manual de
orientação didática que definia as estratégias pedagógicas a serem trabalhadas com
os aprendentes, nas quais se incluem o modelo de projeto de pesquisa da Prática da
Pesquisa Pedagógica e o modelo de relatório do Estágio Supervisionado.
Como não podia ser diferente, o manual não conseguiu ser aplicado àquele
contexto. E por não conhecer o contexto, resolvi abrir mão do manual e inseri uma
perspectiva de formação implicada na complexidade e na transdisciplinaridade. Em
outros termos, resolvi inserir o contexto na experiência e a experiência no contexto.
O resultado foi uma experiência contextualizada a partir da realidade ecológica,
cultural e social dos aprendentes. Ou seja, uma experiência implicada na existência,
no mundo vivido, nas cosmologias ancestrais dos aprendentes indígenas.
Minha aposta foi criar, ao longo dessa experiência de formação, uma matriz
de exploração epistemológica e metodológica aplicada à formação de professores
orientada pelos operadores da complexidade e da transdisciplinaridade. Esse
processo, como vimos, durou dois anos. Entre acertos e fracassos, consegui
instaurar uma prática formativa inspirada nesses operadores. Mas somente agora,
ao término das seis jornadas, posso, de fato, mostrar as possibilidades de
construção dessa matriz, e ver se a partir dela se possa, de fato, criar processos
formativos mais solidários, contextuais, complexos, que garantam a sustentabilidade
cognitiva, afetiva e cultural da escola, para que esta possa, enfim, cumprir com sua
função social e que o professor consiga cumprir com seu ofício de mestre.
Como vimos, essa experiência de formação foi desenvolvida por meio de
implicações pertinentes ao próprio sistema formativo: cultura, existência e natureza.
São essas dimensões que vão dar à formação seu caráter bioantropológico. Por isso
mesmo, pode-se denominar esse percurso como bioantropoformativo, visto que
representa os caminhos percorridos pelos aprendentes para tornarem-se
professores.
A dimensão da natureza representa os estados biológicos e fisiológicos dos
aprendentes e suas relações com a idade, tempo, corporeidade e meio ambiente. A
dimensão cultural representa as diferentes linguagens, saberes, conhecimentos,
sabedoria, bem como suas relações com o homem, com a diversidade, com os
285
fenômenos da sociedade e com as outras culturas. A dimensão existencial diz
respeito às individualidades e especificidades dos aprendentes e suas formas de
estar, sentir e pensar o mundo e a si mesmos. Por ela expressamos sentimentos,
emoções, intencionalidades, desejos, imaginários e damos sentido à vida. As três
dimensões não devem ser vistas de forma fragmentada, pois elas representam a
totalidade da condição humana no tempo, na história, na cultura e na natureza. São
sistemas complexos, logo, carregam em si desordem, ordem, integração e
reorganização, como sistemas abertos sofrem a ação da flecha do tempo, portanto,
funcionam longe do equilíbrio e caminham para direção do incerto, do imprevisível,
improvável e irreversível.
Essas dimensões também são responsáveis pela construção de um
conhecimento implicado na totalidade da vida. Vale ressaltar que o conhecimento
construído pelos aprendentes ao longo das seis jornadas infletiram diretamente na
produção desta tese. As jornadas dos aprendentes contam a trajetória da tese, que
conta a trajetória dos aprendentes. Elas representam, portanto, os lugares pelos os
quais a tese passou, que, por sua vez, revela esses lugares a partir de suas
dimensões.
O Projeto Canoeiro foi uma estratégia cognitiva que permitiu a realização
dessa experiência, inspirada pelos princípios da incerteza e o do imprevisível e
influenciada pelos quatro pilares da educação: aprender a ser, conhecer, fazer e
conviver. De certo que esses pilares são constructos de um pensamento de
religação, seja do homem com a natureza, do sagrado com o profano, da natureza
com a cultura, do sujeito com o objeto, da razão com a emoção, do mito com a
ciência, bem como do próprio conhecimento: disciplinar, interdisciplinar,
multidisciplinar e transdisciplinar.
A religação é uma atitude da complexidade e esta é uma atitude
transdisciplinar. Ambas põem em evidência o papel da intuição, do imaginário, do
simbólico e da sensibilidade na compreensão do mundo presente. Elas buscam
instaurar a unidade do conhecimento, a sua consiliência, como nos lembra Wilson
(1999). Foi a partir dessa compreensão que foi possível estabelecer o diálogo entre
o pensamento sensível e o pensamento científico. Nesse caso, a etnografia,
proposta metodológica da tese, foi o meio pelo qual esses operadores puderam se
comunicar.
286
A escrita etnográfica dos aprendentes explicitou os contornos estéticos,
sensíveis, teóricos e metodológicos de seus pensamentos sobre a realidade
observada, vivida e sentida. Daí a afirmação de que suas escritas são composições
etnopoéticas, pois de fato, eles fizeram uma etnologia sem abrir mão de suas
dimensões existenciais e sem perder de vista as dimensões científicas. Eles não
excluíram suas visões de mundo, suas impressões, sentimentos, seus problemas
diante da realidade. A poesia, entendida como uma forma de assimilação do mundo
na linguagem expressou a correspondência verbal dos aprendentes entre a
linguagem oral e a linguagem científica, no qual se busca, por meio da escrita, uma
linguagem criativa e em favor do conhecimento (FITCHE, 1987).
Por outro lado, o despertar estético poético dos aprendentes frente ao desafio
de escrever e de construir conhecimento científico só foi possível porque
introduzimos nesta formação a experiência do vivido e do sentido, marcas de suas
existências. Lemos mitos, criamos outros, ressignificamos a vida, reconstruímos
conceitos, deciframos teorias, recolocamos no conhecimento científico sentimentos,
emoções, intuições e imaginários. Com isso os aprendentes puderam criar a escrita
de seus objetos, dando a ela uma forma monográfica de construção de um
conhecimento implicado na existência e instruído pelas experiências de vida e da
ciência. A monografia é a tradução de um conhecimento mestiço, habitado pelo mito,
pela ciência, pela razão e pela emoção.
Posso agora, ao final desse processo, afirmar que os caminhos percorridos
pelos aprendentes, foram também meus. Suas jornadas também foram minhas.
Como eles, atravessei crises, vivi contradições, conflitos, sentimentos, que
dificultaram a compreensão do objeto de pesquisa e, consequentemente, a escritura
da tese. Além disso, é necessário relembrar que a construção do objeto foi posterior
à própria experiência de formação. Ele só foi transformado em pesquisa quando da
última jornada. Foi quando percebi que podia transformar essa experiência em uma
reflexão científica.
A partir de então, tudo o que foi feito nela teve que ser recuperado,
ressignificado e traduzido para uma escrita científica. Por isso, acredito que, tal
como os aprendentes, fiz uma antropologia poética ou uma etnopoesia, visto que
representou um esforço de tradução de um conjunto de imagens, linguagens,
representações e imaginários guardados na memória em uma linguagem científica.
Nela apresento também os conflitos e as contradições vividos durante as jornadas,
287
bem como evidencio os aspectos teóricos e metodológicos empregados para o
desenvolvimento do processo de formação.
Pode-se, portanto, considerar que esse trabalho foi fruto de uma aliança
sincera entre os aprendentes (alunos e professora) com intuito de instituir uma
prática de formação implicada na totalidade da vida. Minha intencionalidade em
romper com as fronteiras disciplinares, proporcionada pelo encontro com dois
operadores cognitivos – pensamento sensível e pensamento científico – provocou
também a instauração de um processo complexo, no qual se experimentou uma
comunicação mais profunda com o mundo da existência, da cultura e natureza dos
aprendentes. Nos seus mundos, suas cosmologias e mitologias, encontrei um
campo fecundo de experimentação transdisciplinar. Com seus operadores sensíveis,
próprios à ciência do concreto, ressignifiquei a prática da pesquisa, abrindo mão de
um plano pré-estabelecido. As pesquisas foram criadas segundo os princípios do
bricoleur. Os aprendentes foram, ao longo das jornadas, coletando dados,
classificando-os, criando categorias, transformando-os em conhecimento. E ao
fazerem isso transformaram também o pensamento que por sua vez se transformou
em conhecimento.
Esse trabalho não discute a validade da construção do conhecimento feito
pelos aprendentes. Não creio que essa seja uma tarefa honesta, pois invalidá-la
significaria tornar inválida as suas próprias existências e suas tentativas de escrever
sobre elas, sobre a si mesmos. A monografia não deixa de representar uma escrita
de si. Não avaliei suas ortografias, detive-me em analisar a produção em si e a
forma que desenvolveram os conteúdos.
Apesar de ajudar os aprendentes a organizarem suas escritas seguindo as
normas técnicas, efetivamente, não pude dar conta de seus problemas ortográficos.
De qualquer forma, consegui manter os vinte nove aprendentes no curso, resultando
na produção de vinte e nove Monografias de Conclusão de Curso. Penso que essa
permanência foi fruto do acordo sincero e de uma prática de formação fundada na
experiência do sentido, vivido e imaginado. Mas essa experiência só se tornou
possível porque recorri ao universo mítico dos aprendentes e a partir dele consegui
dar significado ao processo de ensino e de aprendizagem. Com isso acredito que
uma das possibilidades de refundar a educação seria enraizá-la no mito, pois é ele
que permite a recuperação dos tempos, a experiência do sentido e o encantamento
288
do mundo. Uma formação fundada no mito é uma formação marcada pela existência
e pela qual podemos promover o re-encantamento do mundo.
289
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