View
216
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
Nota
Esta série, intitulada Poemas obsessivos, foi
publicada inicialmente na rede social Instagram;
separada em dez partes e com seis poemas cada
uma. Aqui estão publicados apenas metade, ou
seja, trinta dos sessenta poemas que haviam sido
compartilhados. As partes sobre gatos e sobre
Fortaleza ficaram completamente de fora desta
edição. Alguns poemas sofreram uma leve
modificação.
M.
*
tenho predileção por poemas
que atravessam a paisagem
o quintal na casa da minha avó
era um poema todo escrito de melancolia
as paredes cinzas
quase cobertas com lodo
seu quarto era algo tão solitário
quanto a sua ausência
a cama sempre arrumada
tudo no lugar
como se ninguém dormisse ali há anos
porém, não havia poeira
mas havia sombras
o corredor me acompanhava até a cozinha
junto com um sentimento
tão preenchido de amor e quentura
que às vezes eu achava ser mormaço
seu rosário atravessa o tempo
que atravessa meu corpo
que atravessa a tristeza
que atravessa a certeza
de que esse poema me atravessa
mas permanece
*
acordar com um poema
saltando das pálpebras
me faz perder o sono
e escrever um poema
é devorar o tempo
por causa dos sonhos
todo dia usar o poema
como remédio para sobreviver
ao cotidiano
*
eu queria escrever um poema
que te atingisse em cheio
e te fizesse sentir uma fisgada
no peito
eu queria escrever um poema
que falasse através do silêncio
e ainda assim fizesse um estardalhaço
eu queria escrever um poema
que pulasse
do
a
b
i
s
m
o
*
algum poema poderia salvar o mundo (?)
algum poema te faria feliz (?)
algum poema descreveria a grandiosidade da vida
(?)
algum poema seria importante (?)
algum poema passaria despercebido (?)
algum poema poderia tirar seu fôlego (?)
*
é preciso cair 290 vezes
correr de olhos fechados
e guardar água gelada
na boca
para ter certeza
que um poema
será escrito
mas antes disso
correr o perigo
do poema escapar
e só se conseguir
um joelho esfolado
e as bochechas frias
*
talvez não seja normal
escutar sua voz quando você nem está
e provavelmente
acordar de sobressalto
por causa do seu toque
pode parecer loucura
contemplar seu olhar em uma fotografia e
jurar que você me observa de volta, também
enquanto sinto seu perfume no ar
e os lábios se movem no ímpeto de te beijar
fico na vontade
sorrio e você me devolve
talvez seja a sonolência
a mesma que você possui
e me envolve
*
eu me lembro do primeiro poema que escrevi, tão
bobo e puro feito o primeiro amor
eu me lembro da primeira vez que me afoguei no
mar e senti a água salgada invadir minhas narinas
e me sufocar
eu me lembro do dia em que minha avó faleceu e do
quanto a dor era insuportável
eu me lembro da primeira vez que adotei um gato
de rua e prometi amá-lo para sempre
eu me lembro do dia em que pari meu filho e a dor
foi uma ferramenta para trazê-lo a esse mundo
imundo
eu me lembro de minha embriaguez exagerada e o
vômito grudado em meus cabelos
eu me lembro da sensação reconfortante de chorar
intensamente até cair no sono depois de brigarmos
eu me lembro de ter desistido inúmeras vezes de
mim mesma
eu me lembro de não querer mais acordar diante de
tanto horror
eu me lembro do dia em que caí de cara no
calçamento e quebrei um dente
eu me lembro também da reação da minha mãe que
me encorajou a levantar e continuar correndo
apesar do sangue e da dor
*
a saudade é muito mais que a ausência da sua
presença
é a sua presença indestrutível em meu ser
porém tão líquida e impossível de tocar
que escorre entre os meus dedos
mas permanece em meu coração
*
ninguém mais poderá dizer
que livros são bobagens
algo que amplia seu olhar
que modifica seu pensamento
que altera seu comportamento
em nenhum instante pode ser
considerado como supérfluo
alguns livros já transformaram
o meu ser tantas vezes
que eu carrego em mim
todos os sonhos do mundo
*
respira, respira, respira
enquanto sua vaga existência
assombra a si mesmo
direito ao grito
quem tem?
a fome? a moça?
a vida lhe assusta a aparência?
que moça ingênua
consome o cotidiano
com alegria infantil
estampada em sua face opaca
esse tipo de moça
“dorme até o nunca”
e acaba sem cintilar
é uma estrela cadente
*
até os dentes caírem
leva muito tempo para entender
que o seu lar é você.
a estrutura não foi
de seu planejamento
e é preciso resistir
à crueldade da sociedade
para se amar de verdade
e ocupar esse lar
que é seu próprio corpo
mesmo que torto
com manchas
e gordurinhas
seu corpo é a sua casinha!
*
meu corpo vai caindo
conto os segundos
e confesso que no trajeto da queda
a cabeça pesa mais que todo o resto
os problemas vão me corroendo
a angústia continua me sugando
catorze segundos
saiu o coração pela boca
e parou
diante da complexidade
de existir
*
seu líquido invade meu corpo
como uma correnteza
o líquido vai se transformando
em grande onda
tsunami
que arrebenta-se em mares
inunda florestas
e proclama liberdade
*
um corpo cria cai e quebra
um corpo sob um corpo sobre um corpo é só um corpo
exposto vigiado estudado analisado corrompido petrificado
“um corpo é um corpo” mas nem sempre autorizado a mostrar-se como corpo
quebra cai um corpo no chão, exposto
*
quando te senti navegando
em alto-mar – meu próprio corpo
rebelei-me em redemoinho
e tu
ao perceber que a embarcação
afundava
procurou botes
mas já era tarde
tu já estava mergulhado
em (minha) profundidade
perdendo o fôlego
e engolindo
a minha saliva-espuma
*
suas lágrimas vêm e vão
em ondas
espumantes
na margem da sua órbita
e desfazem
suas expressões
como na beira-mar
*
a respiração
descontrolada
misturando-se
ao descompasso
do coração
quase a morrer
nesse mar
de perdição
*
um copo quebrado
habita o chão da cozinha
junto com o vinho
espalhado e escorrendo
como se fosse um rio calmo
que se une ao mar
vermelho de sangue
a mulher ali
estática
o homem a observá-la
cava dentro de si mesmo
uma cova rasa
*
virar-se de costas
e perceber
que dentes, facas e garfos
estão cravados
em você
virar-se de costas
e partir
como se as traições
decepções e mentiras
não estivessem
sendo carregadas
em suas próprias costas
feito uma mochila
*
vez em quando
preciso me recolher em uma trincheira
para impedir que alguns acontecimentos
não me sangrem por inteira
faço-me de fuzileira
esboço uma estratégia
e habito nesse abrigo
que só serve aos combatentes
*
paredes atravessam
a minha rotina como labirintos
esbarro de cara em muitas delas
deixo o instante que corrói
a tinta do meu quarto
e esqueço de atingir o que é
voraz
*
a casa
o quintal
(onde havia um cachorro de sorriso engraçado e
fácil)
o quarto de minha mãe
(onde agora choro no escuro)
a cozinha
(onde passei todas as manhãs de minha infância,
reparando no zelo de minha mãe e o esmero com
que ela preparava a nossa comida)
a sala
(dando boas-vindas aos objetos)
o meu quarto
(agora vazio e sem significado)
o quarto do meu irmão
(onde meu filho agora dorme)
a varanda
(toda claridade e cheia com os meus gatos)
a escada
(onde caí várias vezes e aprendi a chorar em
silêncio)
*
férias de julho
subíamos no pé de goiaba (?)
não lembro se era goiaba ou...
porém recordo-me da algazarra
no quintal enorme
do suor forte
escorrendo pelo corpo
recordo-me das estórias
mal-assombradas
dos passos pela casa
e o converseiro nervoso
pela noite
lembro-me da reza forçada
e das bengaladas
que estralavam nos ossos...
*
no entardecer do horário
mais temido e admirado – ocaso
pendo o pescoço para o lado
os olhos reviram
em tentativas fracassadas
de fuga [de busca (?)]
um delírio
me prende a atenção
meu estado é líquido
vermelho-amargo
que tinge todo o céu
e invade os teus olhos
incendiários
*
abrir os olhos
e preparar-se
para colidir com
tempos traiçoeiros
uma pausa breve
diante do assombro
de existir
depois disso
alcançar o êxtase
de se tornar
a mulher que você
sempre quis ser
*
é preciso que haja intervenção
para que a sua “receita de mulher”
não se torne uma forma padrão
para me significar
pelo contrário,
só me faz sufocar
deveria eu criar alternativas
depois de despejar
a minha selvageria
pois ostentar certezas
não elimina a fraqueza
nem as derrotas
dessa batalha
e se rasgo minha pele
com dentes afiados
para caber dentro da imensidão
em que me tornei
é porque transbordei
retirar fiapos da minha pele
que restam entre os meus dentes
me incomodam
mas é um momento necessário
para o esvaziamento
da imundície que antes me habitava
limpo a sujeira de mim mesma
e a devoro
*
sangue que escorre:
entre as pernas por dentro das veias se esvai do peito
encharca o chão de concreto e te faz lamber os beiços
será que também te faz lembrar
que eu sou eu sou
eu sou
mulher-humana não-objeto mais que bunda e peito não sou produto
de consumição não estou à venda
nem à vontade com essa forma de você utilizar sua “expressão”
que me come com os olhos e me fere com as mãos
sobre a autora
Mikaelly Andrade (10 de março de 1990) é natural
de Quixeramobim (CE). É poeta e contista. Publicou seu primeiro livro, Descompasso, de forma
independente. Além de Descompasso, a autora tem em seu portfólio a participação na Antologia de contos Literatura BR (Editora Moinhos, 2016) e Coletânea de contos Sesc (2017), o zine Alguns versos pervertidos e outros indecorosos (Independente, 2016) e colaborações em publicações literárias. A poeta também criou o
projeto literário Escritoras Cearenses (@escritorasce) e organizou a Antologia de poemas eróticos – Escritoras cearenses. Poemas obsessivos é o seu segundo livro.
© Mika Andrade, 2017
Projeto Gráfico, Capa e Diagramação
Mika Andrade
Revisão
Renata Arruda
1ª edição. Fortaleza. 2017
Nesta edição, respeitou-se o novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Andrade, Mika
Descompasso | Mika Andrade
I. Poesia II. Poesia brasileira
[2017]
Todos os direitos reservados à
Mika Andrade.
Contato:
Email: mikaescreve@gmail.com
Instagram: @miklandrade
www.mikaandrade.wordpress.com
Recommended