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A ESCATOLOGIA NOS MANUSCRITOS DE QUMRAN: PERSPECTIVAS SOBRE
O “FIM DO MUNDO” NA LITERATURA JUDAICO PRIMITIVA E NO
CRISTIANISMO EMERGENTE
Nathália Queiroz Mariano Cruz1
RESUMO
Cunhado no séc. XIX a partir de um sistema teológico que identificou na palavra
grega τέλος (télos) uma designação recorrente na Septuaginta para se referir a eventos que
presumiam o fim dos tempos, o termo escatologia está associado a uma categoria de
observação da perspectiva da fenomenologia da religião. O contraste entre os conceitos
cíclico e linear do tempo tem se referido, na escatologia, à ênfase que as tradições judaico-
cristãs e greco-romanas dão a ele. A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto no séc. XX
tem reforçado nosso conhecimento sobre a presença da escatologia na literatura judaico
primitiva e nos escritos que influenciaram substancialmente o cristianismo emergente, nos
permitindo elucidar a preocupação com a escatologia na tradição judaico-cristã. No intuito de
discutirmos a relação que a tradição escatológica de Qumran tem com o judaísmo palestino e
a literatura apocalíptica da Septuaginta, faremos uma análise comparativa entre textos
sectários de Qumran, tais como A Regra da Comunidade, o Documento de Damasco e o Rolo
da Guerra, os quais nos fornecem informações em crenças sectárias sobre o fim dos tempos; e
fontes judaicas oficiais, como o Massehet Sanhedrin e a Torah.
PALAVRAS-CHAVE
Escatologia. Judaísmo Primitivo. Literatura apocalíptica. Septuaginta. Exegese
Desde que o tema da escatologia passou a ter amplo espaço de debate nos
Manuscritos do Mar Morto em meados dos anos 80, tem-se promovido uma efetiva análise
comparativa entre essa documentação e demais textos do judaísmo primitivo e do cristianismo
emergente do século I E.C2. A tendência que se verifica em boa parte da historiografia
bíblica3 tem por princípio algumas evidências sobre a crença no pós-morte que se encontra
tanto em textos da tradição judaica primitiva, quanto na Septuaginta. Uma vez que a
descoberta dos pergaminhos do Mar Morto na Caverna 4Q4 reforçou a intenção escatológica
de alguns preceitos bíblicos, os debates sobre a crença no fim dos tempos foram reafirmados e
os Manuscritos de Qumran foram inseridos na categoria de uma narrativa para/pré-bíblica que 1 Doutoranda pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES. Email: taiaqueiroz@hotmail.com 2 As nomenclaturas a.E.C (antes da Era Comum) e E.C (Era Comum) são utilizadas como correspondentes para
A.C (antes de Cristo) e D.C (depois de Cristo), uma vez que não se verifica, no calendário judaico e na
historiografia judaica, a referência cronológica a Jesus Cristo. 3 Cf. DAVIES, P. Death, Ressurrection, and Life After Death in the Qumran Scrolls. In. AVERY-PECK, A. J;
NEUSNER, J. (eds.). Death, Life-After-Death, Ressurrection e the World-to-Come in the Judaism of Antiquity.
Leiden/Boston/köln: Brill, 1999; NICKLESBURG, G. W. E. Ressurrection, Immortality, and Eternal Life in
Interstamental Judaism and Early Christianity. Cambridge: Harvard University Press, 2006. 4 Caverna 4 de Qumran, umas das cavernas encontradas no deserto da Judéia que continham os pergaminhos do
Mar Morto.
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comporta, no interior de seus preceitos, o conceito cíclico de tempo, e por isso escatológico.
Todavia, a literatura de Qumran exibe não só uma escatologia multifacetada, como tem uma
natureza exegética diferente das demais narrativas judaicas ou cristãs primitivas, não podendo
ser analisada na mesma esfera de um cânone.
De modo que nos parece mais oportuno, portanto, partir de uma análise sobre a
escatologia presente nos Manuscritos de Qumran e nos textos bíblicos respeitando a condição
exegética destes, nos ocupamos, em um primeiro momento, em discutir a presença de uma
exegese bíblica genérica nos Manuscritos de Qumran tomando a figura do escriba como ponto
central para a definição e a emancipação dessa exegese e da pluralidade de características que
se encontram nos preceitos dos pergaminhos, inclusive nas evidências que apontam para uma
interpretação escatológica. Por fim, faremos uma análise - no que diz respeito ao caráter
escatológico - dos pergaminhos da Regra da Comunidade, do Documento de Damasco e do
Rolo da Guerra em associação aos cânones bíblicos da Torah, da Mishnah e da Septuaginta,
com via a elucidar a emancipação da narrativa canônica oficial frente aos escritos judaicos do
Mar Morto que, embora influentes sobre o cânon, foram descartados no processo de
editoração da Mitsvah judaica.
A exegese de Qumran
O início da década de 90 marcou uma polêmica nos estudos acerca dos
Manuscritos de Qumran com o amplo reconhecimento de que o termo bíblico é anacrônico
para se referir aos pergaminhos, uma vez que os textos autorizados enquanto bíblicos já
estavam estabelecidos e gozavam de uma transmissão estável no período do Segundo Templo
(BROOKE, 2009: 2-3), enquanto que durante o período da atividade literária de Qumran (III
a.E.C – I E.C) não havia, entre a comunidade, a definição sequer de algum cânone da
escritura. No entanto, conforme enfatizou Johann Maier, é provável que no período do
Segundo Templo a maioria dos judeus atribuíam variados níveis de autoridade para diferentes
partes de livros que viriam a ser estabelecidos como autoridade, e que também o termo Torah
tinha uma referência mais ampla do que apenas os cinco primeiros livros de Moshe (MAIER,
1996: 108-129).
A atividade literária de Qumran, assim como das outras comunidades judaicas do
período pré 70, vivia um processo que não é o da aceitação do cânone, tal como se verifica no
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pós 70, mas antes o da transmissão e interpretação dos textos de autoridade ou reconhecidos
como sagrados, tornando-se cada vez mais problemática a distinção entre texto e
interpretação. Tal processo acentua, como já discutido em outros trabalhos, a antecedência da
exegese ao cânon e a preocupação prematura das narrativas sacro-literárias judaicas em
estabelecer uma linguagem sistêmica que possibilitasse a interpretação de variados textos
sagrados, mas não ainda reconhecidos como legítimos. Neste sentido, negar a aplicação do
termo textos bíblicos para o que se refere à produção literária de Qumran parece não encontrar
argumentos razoáveis diante da afirmativa de que as comunidades de Qumran não viveram o
processo de definição do cânone, uma vez que para se chegar a tal definição foi necessário a
implementação de categorias interpretativas do texto, reconhecendo-se a necessidade da
exegese.
Alguns estudiosos, à exemplo de Philip Davies (2003: 149), pontuam que a
melhor maneira de entender as interpretações implícitas da literatura para-bíblica é através de
lentes rabínicas hagadáticas e halakhaicas, sugerindo-se assim que a exegese implícita nestes
textos é derivada de composições autoritárias anteriores que acabam por se tornar a forma
dominante de interpretação. Todavia, tal característica não é modelar dentro da tradição
judaica, uma vez que a interpretação implícita vai sendo suplantada por uma interpretação
explícita que, conforme indicou George Brooke, merece comparações com textos rabínicos
pela autoridade interpretativa que gradualmente vai surgindo nestes textos (BROOKE, 2009:
5). Neste sentido, entende-se que o Midrash, nos Manuscritos de Qumran, atua como uma
exegese na qual uma passagem comprovada na Escritura desempenha um papel, uma
operação que enfatiza, no interior da narrativa, a importância de algum preceito.
É importante ressaltar, no entanto, que mesmo quando definida a autoridade de
alguns escritos perante outros, essa não atua como um padrão para se verificar, ao longo de
todos os pergaminhos, um tipo dominante de exegese. Os sistemas de classificação das
formas literárias exegéticas de Qumran ou do Segundo Templo diferem entre si abrangendo
quatro principais categorias: a dos textos bíblicos reescritos; a da paráfrase exegética; a dos
comentários e a da exegese ontológica (SAUKKOMEN, 2009: 64). Essas formas literárias de
exegese resultam de um complexo desenvolvimento histórico e literário e são, muitas vezes,
vistas como vestígios de diferentes atitudes para com os textos sagrados. Os textos reescritos
e parafrásicos, os quais se enquadram a maioria dos pergaminhos, estão associados
diretamente ao desenvolvimento do texto bíblico, fazendo com que a demarcação de todas as
formas variáveis em um texto sagrado seja algo difícil de se distinguir. Um bom exemplo da
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exegese reescrita e parafrásica nos é dado por Flávio Josefo. Segundo informa o historiador,
ao final do Segundo Templo os textos bíblicos reescritos não pretendiam substituir o texto
sagrado, mas apenas complementar a fonte e a base da escrita (JOSEFO. Contra Apião, 1.2).
Os textos reescritos e parafrásicos obedecem a duas principais características: são
constituídos de narrativas que parafraseiam um texto de estatuto e autoridade religiosa; e
incluem material editorial adicional, redacional ou interpretativo, entrelaçando-os ao texto
base. A primeira seção do pergaminho 4Q252 exemplifica bem a cumprimento destes
critérios:
Noé chegou ao final de seus quatrocentos e oitenta anos, e Deus disse:
“Meu espírito não habitará sempre com o homem, a idade deles
deverá ser determinada em cento e vinte anos, até vir as águas do
dilúvio”. E as águas do dilúvio vieram sobre a terra, no ano seiscentos
da vida de Noé, no segundo mês, em um domingo, o dezessete.
Naquele dia todas as fontes do grande abismo foram abertas e as
janelas do céu se abriram. E a chuva caiu sobre a Terra por quarenta
dias e quarenta noites, até o vigésimo sexto dia do terceiro mês, numa
quinta-feira. As águas prevaleceram sobre a terra por cento e
cinquenta dias até o décimo quarto dia do sétimo mês, numa terça-
feira.
(MAN. QUMRAN, 4Q252, Frag. 1 Col. 1)
Neste fragmento o recurso parafrásico é utilizado de forma que, após a citação literal do
evento do dilúvio (Bereshit, 9.24-25), segue-se uma interpretação que inclui, em sua técnica
exegética, os fatores de identificação, de cálculo cronológico e de alusão. A técnica, que é
observada em uma variedade de pergaminhos (4Q252. Frag 2. Col. 1-3), não é restrita à
Qumran, podendo se verificar a mesma também em interpretações hagadáticas e halhakhaicas
da Mishnah e da Guemarah. No entanto, é possível uma associação enfática da exegese de
Qumran com a literatura sectária e escriba.
De acordo com Jonathan Norton, supõe-se facilmente que os escribas são os
responsáveis pelo conteúdo literário do Mar Morto e da literatura sectária pela imagem
clássica5 que se conferiu a estes durante os séculos III – I a.E.C, período no qual os membros
responsáveis por compor a literatura exegética aparecem sempre atuando como copiadores
dos escritos bíblicos e trabalhando em seus scriptorium (NORTON, 2009: 135). Todavia, a
consciência que se estabeleceu, nas últimas décadas, da extensão textual e da variedade
5 Cf. DE VAUX, R. Ancient Israel: Social Institutions. Lansing: McGraw-Hill, 1965; STEGEMANN, H. The
library of Qumran: On the Essenes, Qumran, John the Baptist, and Jesus. Gran Rapids/Leiden: Brill, 1998.
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literária dos corpora bíblicos e não bíblicos de Qumran, tem levado a uma aceitação de que
nem todos os pergaminhos do final do Segundo Templo encontrados nas cavernas do Mar
Morto tiveram origem em Qumran. Tal perspectiva não só retira os escribas de sua imagem
clássica, como leva a crer que os escribas de Qumran tinham uma capacidade de treinamento
superior àqueles das demais comunidades judaicas, uma vez que a quantidade de pergaminhos
e a recorrência de cópias destes indicam escritas muito precisas e similares.
A quantidade exacerbada de cópias do Rolo de Isaías encontrada em Qumran,
conduziu à hipótese de que os escribas tinham uma prática literária profissionalizada e que
dispunham de acesso a uma biblioteca, na qual lhes era permitido comparar as várias cópias
para fazerem versões similares e mais próximas o possível daquela primeira. Dessa forma,
supõe-se não somente que os escribas de Qumran dispunham de mecanismos e instituições
para assegurar a prática que exerciam, como foram envolvidos profissionalmente na recolha e
preservação dos manuscritos que foram copiados de um texto autoritário (NORTON, 2009:
136), fator que aproxima a prática literária do escriba de Qumran, de um exegeta. Vale
lembrar, no entanto, que definir um escriba judeu no Segundo Templo é um exercício de
difícil comprovação pela falta de distinção, na maior parte das comunidades judaicas, entre
um escriba e um copista, isto é, um exegeta e um mero técnico; e pela quase incapacidade que
temos em medir o alcance das tarefas responsáveis pelo escriba dentro das comunidades.
Assim, parece-nos mais razoável observar, em primeiro plano, a existência de uma exegese
bíblica genérica em Qumran e situar o escriba como um profissional responsável pela prática
literária de Qumran, visto que a distinção entre o copista e o escriba, ainda que existente
dentro da hierarquia literária de Qumran, não encontra muitos suportes nas fontes exceto
quando comparada à atividade literária de Jerusalém, que apresenta uma produção vasta e faz
uma distinção precisa entre aqueles que reproduziam mecanicamente o texto e aqueles que
trabalhavam como exegetas habilmente envolvidos na elaboração e reformulação do texto
ancestral sagrado, que era transmitido através de cópias e de adaptações.
Apenas por meio da análise comparativa entre duas comunidades que
desenvolveram uma prática literária relevante, é que podemos pensar a função do escriba de
Qumran por meios mais precisos do que àqueles dispostos na análise genérica do escriba, que
indica que até o início do período romano o ofício do escriba foi amplamente distribuído para
além dos círculos sacerdotais e que o título de escriba foi estendido para designar uma
variedade de profissionais que atuavam em atividades que iam além da composição e
transmissão de obras literárias (NORTON, 2009: 154). É na aproximação entre a atividade
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literária com a reprodução do texto sagrado que o escriba pode ser compreendido como um
exegeta e como parte substancial de um processo que alargou a produção do texto sagrado e
gerou, consequentemente, uma maior autonomia interpretativa dos escribas frente ao texto.
A Escatologia nos Manuscritos de Qumran
Algumas das características mais intrigantes sobre a tradição sectária de Qumran
estão associadas aos componentes escatológicos que se encontram na interpretação dos
preceitos das Escrituras. Quando novas publicações da caverna 4 (4QMMT) vieram à tona nas
décadas finais do século XX, o tema da escatologia foi reforçado por meio de evidências que
tratavam sobre a experiência contemporânea de Qumran, a revelação e, especialmente, pela
definição de que a Escritura atuou como o ponto de partida para as percepções sobre o fim do
mundo entre a comunidade do Mar Morto. A partir de tal constatação, evidenciou-se, como
lembra Albert Hogeterp, a importância do estudo comparativo entre os diferentes textos de
Qumran com outras fontes bíblicas que apresentam qualquer evidência escatológica de origem
Escritural. Inciativa que conferiu à escatologia de Qumran um domínio de importância tão
relevante e influente à sociedade do Mar Morto, como qualquer outra interpretação bíblica.
Assim, a importância do estudo comparativo da presença escatológica em
diferentes textos de Qumran, lançam luz às ideias introdutórias sobre a crença no fim dos
tempos presente nos pergaminhos com outras literaturas judaicas do período do Segundo
Templo, nos permitindo compreender a preocupação com a escatologia na tradição tardia e a
associação das ideias de Qumran com o cristianismo emergente (HOGERTERP, 2009: 7). A
influência entre a tradição do Mar Morto com as primeiras comunidades cristãs acaba gerando
um conflito entre os estudiosos sobre a forma com que a questão histórica da escatologia e a
mensagem terrena de Jesus são interpretadas. Conforme argumenta Albert Hogeterp, a
associação entre esses dois polos acaba conferindo à escatologia discussões que são próprias
do messianismo, não sendo possível apartar, entre o final do século I a.E.C e o século I E.C, o
discurso profético da figura de Jesus com a intenção messiânica de muitas das comunidades
judaicas antigas (HOGETERP, 2009: 7). Quando Werner Kümmel primeiramente observou,
em sua obra Promise and Fulfiment: The Eschatological Message of Jesus, que a coexistência
do reino de Deus com uma realidade presente e um futuro eminente nos ditos de Jesus não
expressa um acidente histórico, mas antes exprime a ideia de que a presença terrena de Jesus
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inaugurou o final dos tempos, a maioria dos estudiosos se sentiram inclinados a encarar o
messianismo a partir da figura profética que Jesus exerceu no cristianismo emergente
(KÜMMEL, 1961: 141-155).
No entanto, conforme tem sido apontado por Eugene Ulrich, os manuscritos
bíblicos de Qumran não contém evidência de alteração da Escritura à favor dos interesses de
uma ideologia sectária, levando a crer que as variantes teológicas que ocorrem no textos
sacros de Qumran não são de caráter apenas sectário, mas demonstram também os impulsos e
perspectivas judaicas presentes no judaísmo do fim do século I a.E.C como um todo para as
comunidades judaicas da Palestina (ULRICH, 1999: 112-119). Assim, os temas do
messianismo e da escatologia parecem não demonstrar uma particularidade de Qumran, mas
antes atributos bíblicos comum às interpretações das Escrituras que estavam sendo feitas
àquele período. E tampouco o caráter sectário dos textos bíblicos de Qumram parece exercer
influência direta sobre a figura profética de Jesus, visto que a interpretação dos sagrados
escritos não esta associada diretamente aos interesses da parcela sectária de Qumran, atuando
muito mais como uma prática teológica de interpretação; e que a relevante evidência de
escritos bíblicos em Qumran não necessariamente está associada às influências que o tema da
escatologia exerceu em muitos textos sagrados e no cristianismo emergente, mas retrata um
cenário mais fiel do fluxo e da variedade de escritos sagrados que estavam circulando ao final
do Segundo Templo.
As várias passagens na Escritura que trazem expressões relacionadas ao futuro
têm servido como ponto de partida para textos judaicos de tradição escatológica. Neste
sentido, a bíblia, ou a Escritura, exerce função primordial no desenvolvimento de uma
escatologia própria de Qumran na medida em que ela atuou como um ponto de partida para as
interpretações escatológicas dos escritos bíblicos. Interpretações estas que não somente
fundamentaram a crença no fim dos tempos e criaram uma intenção profética, como elevaram
o estatuto dos escritos de Qumran à condição de sagrados, uma vez que as interpretações eram
advindas diretamente da Escritura, e não de outras fontes secundárias. Uma condição que
reforça a implementação de uma exegese estruturada nos pergaminhos de Qumran e que
indica a profissionalização do exegeta frente à figura do copista. No pergaminho Comentário
em Gênesis (4Q252) a expressão o futuro aparece com o mesmo significado disposto em
trechos do Bereshit (49:1) e de Jubileus (45:14), e em Devarim a expressão fim dos tempos é
citada duas vezes para fazer referência às bênçãos e maldições relacionadas à Aliança
(Devarim, 4:30; 31:29).
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Ao passo que Devarim desempenha um papel de destaque na composição
escatológica do século I E.C, dada a recorrência de expressões relacionadas à crença no fim
dos tempos e à inauguração de um futuro vindouro, é possível observar em escritos sagrados
variados a convicção de uma vida após a morte. 4QMMT (Col. 12-23) apresenta essa ideia e o
Mas. Sanhedrin (10.1) indica que a convicção rabínica primitiva sobre a ressureição dos
mortos está prescrita na Lei. Josefo também atribui a crença na ressurreição a uma
interpretação farisaica sobre a Lei (Antiguidades Judaicas, 2.163; 18.14) e a referência a Jesus
em disputa com os saduceus na vida após a morte (Marcos 12;26; Lucas 20:37) sugere este
tema era amplamente compartilhado no judaísmo palestino pré-70. Todavia, é um exercício
de quase impossibilidade datar a inauguração de uma convicção escatológica em Qumran,
uma vez que somente dois textos do período pré-Qumran, isto é, o período que abrange as
composições literárias de Qumran que antecedem a qualquer cronologia de assentamento da
comunidade de Qumrn, chegaram aos nossos domínios.
Enoque (1:5) e Jubileus (4:17-19; 1:27-28, 29c; 23:14-31; 5:1-19) abordam o tema
da escatologia e datam do período pré Qumran, mas não nos permitem observar a evolução de
uma primeira convicção escatológica para aquelas que se afloraram entre os textos sectários.
Neste sentido, podemos apenas aferir que a escatologia em Qumran é um tema muito mais
primitivo do que leva a crer a historiografia tradicional, que aponta a estreita relação entre o
surgimento de uma doutrina escatológica a favor dos interesses de grupos sectários. Mesmo
entre os textos não-sectários e para-bíblicos é possível observar uma variedade de evidências
que apontam para a uma escatologia em Qumran que parece anteceder aos interesses políticos
e religiosos da comunidade. Em 4Q390 (Frags. 1 e 2) são apresentadas as circunstâncias que
levaram ao cativeiro de Israel e à devastação da terra santa, além da ênfase no período pós-
exílio, fator que leva alguns estudiosos a crerem que as lutas contra os domínios opressores
somadas aos abusos do sacerdócio de Jerusalém podem atuar como a primeira indicação
datável sobre a preocupação escatológica que se aflorou em Qumran (HOGETERP, 2009:
37). Igualmente, Pseudo-Daniel (4Q243-244; 4Q245) e Pseudo-Ezequiel (4Q385c; 4Q386;
4Q388) abordam claramente a crença no fim dos tempos e 4Q Terra Renovada apresenta ao
longo de todo o seu conteúdo uma preocupação com o destino final de Israel no mundo que,
conforme indicado nos pergaminhos, será definido pela vitória da terra santa sobre o mal.
A forte indicação de uma preocupação escatológica também em escritos não-
sectários, não impossibilita, contudo, que estes textos tenham tido relevante aceitação entre a
parcela sectária de Qumran, ainda que não tratem de interesses políticos e religiosos em
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específico. O tema da escatologia, presente na maioria dos escritos sagrados antigos e
perpassando as diferentes literaturas de Qumran, indica, antes, uma preocupação natural e
primitiva com os conceitos de tempo terreno e tempo celestial. Ora, tal preocupação é tão
evidente que é possível se encontrar em uma mesma caverna, a exemplo da 4Q, a presença de
documentos de origem jerusalemita que também enfatizam a crença no pós-morte, junto à
textos polêmicos que discutem o desvirtuosismo do sacerdócio do Templo (HOGETERP,
2009: 43). Neste sentido, pensar o a escatologia em Qumran a partir de uma perspectiva do
sectarismo e do não-sectarismo, assim como associar o tema o pós-morte no cristianismo
emergente como uma influência direta das comunidades judaicas antigas apartadas do
sacerdócio do Templo, não encontra muita razão quando elencados os dados dispostos na
fonte. O tema da escatologia em Qumran, assim como em outras comunidades, não parecem
ser produtos diretos de quaisquer interesses políticos ou religiosos, mas antes expressam uma
necessidade natural de pensar o pós- vida a partir de hipóteses possíveis. O que faz da
escatologia, em termos judaicos antigos, um paradigma multifacetado para a fenomenologia
da religião.
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