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MARIO FERREIRA PIRAGIBE
MANIPULACcedilOtildeES
ENTENDIMENTOS E USOS DA PRESENCcedilA E DA SUBJETIVIDADE DO
ATOR EM PRAacuteTICAS CONTEMPORAcircNEAS
DE TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO NO BRASIL
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-
graduaccedilatildeo em Artes Cecircncias da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO
como parte dos requisitos para obtenccedilatildeo do
tiacutetulo de doutor em Artes Cecircnicas
Linha de pesquisa Processos e meacutetodos de
construccedilatildeo cecircnica
Orientaccedilatildeo Professor Dr Joseacute Da Costa Filho
Rio de Janeiro
20112
2
3
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo em primeiro lugar ao constante perseverante apoio de minha famiacutelia que
foi um fator determinante para o alcance desta etapa de minha formaccedilatildeo Principalmente aos
meus filhos Pedro e Clarice inspiraccedilatildeo e estiacutemulo mesmo que a nossa separaccedilatildeo no momento
tenha proporccedilotildees continentais
Agrave UNIRIO minha casa e berccedilo dos meus pensamentos sobre teatro de animaccedilatildeo
Lugar que me proporcionou interlocuccedilotildees necessaacuterias e ricas feita com colegas e professores
que gostaria muito especialmente de agradecer e homenagear Em especial agradeccedilo a meu
orientador Joseacute da Costa Filho cuja disposiccedilatildeo para adentrar no universo dos bonecos e
infinita paciecircncia me suportaram e garantiram a existecircncia deste trabalho como ora se
apresenta
Agradeccedilo aos meus companheiros do teatro de animaccedilatildeo artistas produtores colegas
de companhias e organizadores de festivais que permitiram o aprofundamento e tornaram
relevantes as indagaccedilotildees que aqui abordo Em especial agradeccedilo agrave Cia PeQuod ndash Teatro de
Animaccedilatildeo a meu diretor e amigo Miguel Vellinho pelo apoio e creacutedito mas tambeacutem
agradeccedilo aos companheiros Marcio Nascimento Marcio Newlands Liliane Xavier Marise
Nogueira Mara Cristina Rego Barros Carlos Alberto Nunes Marcos Nicolaiewski Mona
Vilardo e Renato Machado Somos muito bons juntos
Agradeccedilo tambeacutem ao amigo e companheiro de reflexatildeo sobre bonecos e animaccedilatildeo
Paulo Balardim Obrigado por dividir as duacutevidas e discordacircncias
Agradeccedilo em especial ao professor Doutor Valmor Nini Beltrame Pelo carinho pela
presenccedila pelo incentivo mas principalmente pelo fantaacutestico trabalho que realiza em favor da
reflexatildeo e do estudo acerco do teatro de animaccedilatildeo dentro da universidade ampliando os
espaccedilos para reflexatildeo e disponibilizando a produccedilatildeo e a troca de pesquisa em teatro de
animaccedilatildeo Sua importacircncia eacute inestimaacutevel e precisa ser constantemente louvada
Agradeccedilo em especial agrave Universidade Federal de Uberlacircndia meu novo lar e o espaccedilo
onde pude ter a chance de concluir e conduzir este trabalho Entre todas as pessoas que me
ajudaram e tornaram este momento possiacutevel sobressaem-se os amigos e companheiros
Narciso Telles e Paulo Ricardo Meriacutesio juntamente com a excelente equipe com a qual
ambos me permitiram trabalhar Mara Leal Fernando Aleixo Mariene Perobeli Ana Maria
Carneiro Vilma Campos Luiz Leite Rose Gonccedilalves Luiz Humberto Arantes Paulina Caon
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Kalassa Lemos Maria de Maria Getuacutelio Goacutees Dirce Helena de Carvalho Ana Carolina
Mundim Irley Machado Maria do Socorro Calixto e Renata Meira Agrave UFU seus professores
e funcionaacuterios meu carinho e eterno agradecimento
Agrave Valeacuteria Gianechini meu amor e promessa de eterno companheirismo Obrigado
pelo incentivo pela presenccedila e pelo amor que espero poder retribuir sempre do modo como
merece
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ldquoO marionetista deve ter em si tanto o tipo de ator positivo (aquele
que interpreta encontrar a si para trazer elementos de si mesmo em
sua personagem para projetar-se em sua personagem) e do tipo de
ator negativo (que interpreta para desaparecer para penetrar em outra
personalidade para buscar uma evasatildeo para criar aleacutem de si mesmo
para enriquecer-se na substacircncia de seu papel) Nesse sentido o
marionetista pode ser o ator ideal Ele atua para encontrar-se num
circuito que vai dele para o boneco e retorna do boneco a ele Ele
oferece a personagem a si mesmordquo
(GERVAIS apud BENSKY 2000)
ldquoPode ser perfeitamente possiacutevel que a metaacutefora do boneco esteja
mais presente no humano de que o fenocircmeno do boneco no teatro
humano Uma questatildeo fascinante surge dessa sugestatildeo seraacute que a
metaacutefora emerge da observaccedilatildeo do boneco ou seraacute que o boneco eacute
uma consequecircncia do reconhecimento dessa metaacutefora Ou para
apresentar a questatildeo de outa maneira a sensaccedilatildeo de que as pessoas e
os bonecos se parecem por terem sido criados e controlados por forccedilas
superiores surge da observaccedilatildeo de que o boneco eacute de fato criado e
controlado dessa forma ou a praacutetica de criar e controlar bonecos surge
da observaccedilatildeo de que as pessoas satildeo criadas e controladas dessa
formardquo
(TILLIS 1992)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ndash UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ARTES CEcircNICAS
TESE DE DOUTORADO EM TEATRO
PIRAGIBE Mario Ferreira Manipulaccedilotildees entendimentos e usos da presenccedila e da
subjetividade do ator em praacuteticas contemporacircneas de teatro de animaccedilatildeo no Brasil Rio de
Janeiro 2011 397f + 1 DVD
Resumo
Esta tese se propotildee a investigar as transformaccedilotildees percebidas nas poeacuteticas cecircnicas do
que se convencionou chamar teatro de animaccedilatildeo ou de formas animadas agrave luz dos modos de
apresentaccedilatildeo e trabalho do ator operador compreendendo o recurso do ator agrave vista como uma
recorrecircncia nas praacuteticas das companhias de teatro de animaccedilatildeo brasileiras contemporacircneas
mais propensas a empreender investigaccedilotildees sobre a linguagem
Partindo de indagaccedilotildees acerca da especificidade do teatro de animaccedilatildeo como gecircnero
apartado do panorama geral da arte teatral o estudo considera as transformaccedilotildees recentes
percebidas nas praacuteticas de animaccedilatildeo como demonstraccedilotildees de um movimento de indefiniccedilatildeo
das fronteiras entre as modalidades de apresentaccedilatildeo em teatro Dessa forma o estudo se potildee a
indagar acerca das funccedilotildees e entendimentos do ator sobre a cena animada no que diz respeito
agrave sua contribuiccedilatildeo para a mobilidade dos conceitos em animaccedilatildeo mas tambeacutem naquilo que
toca aos motivadores temaacutetico-dramatuacutergicos que a sua presenccedila suscita e sobre as questotildees
de treinamento e teacutecnica que identificam eou afastam o seu trabalho da atuaccedilatildeo teatral
7
Abstract
The present thesis proposes to undertake an investigation about the transformations
perceived over the scenic poetics on the so-called animation theatre or animated forms
theatre taken from the deployments and works of the actor operator It also takes under
consideration the use of the operator on sight as a recurrence on the recent practices seen in
investigative puppetry companies works
Posing a general wonder about if puppetry can be seen as a specific and unique genre
in the scope of the theatrical arts this study considers the recent tranformations perceived
over the puppetry practices as examples to a movement towards the indefinition of the
frontiers that separate the different configurations on theatrical performance Therefore the
study investigates the actoracutes roles and understandings over the animated set as to consider
his contributions to animationsacute conceptual transformations but also on the thematic and
dramaturgic motivators raised by his presence and also over aspects of training and technic
that identify andor deviates the work of the actor in puppetry with the theatrical acting
Reacutesumeacute
Cette thegravese est destineacutee agrave entraicircner une investigation des transformations perccedilus sur
les poeacutetiques de scegravene dans le soi-disant theacuteacirctre dacuteanimation ou theacuteacirctre des formes animeacutees agrave
partir des modes de preacutesentation e emploi de lacuteacteur operateur Cette eacutetude comprend aussi le
recours de lacuteacteur met sur la visage du public comme une recurrence dans les pratiques des
companies breacutesiliennes contemporaines dans le theacuteacirctre dacuteanimations qui font des
investigations de language
Le travail part de lacuteenquecircte sua si le theacuteacirctre de marionnettes peut ecirctre compris comme
un comme un genre distinct du panorama geacuteneacuteral de lart theacuteacirctral leacutetude considegravere les reacutecents
changements dans les pratiques dacuteanimation comme deacutemonstrations dun mouvement qui
brouille les frontiegraveres entre les modes de preacutesentation dans le theacuteacirctre Ainsi leacutetude vise agrave
renseigner sur les fonctions et les compreacutehensions de lacteur sur la scegravene animeacutee agrave leacutegard de
leur contribution agrave la mobiliteacute des concepts dans lanimation mais aussi agrave lacuteeacutegard de la
motivation des theacutematiques et dramaturgies qui sa preacutesence soulegraveve et sur les questions de
technique et de formation qui permettent didentifier ou non le travail de lacuteacteur dans le
theacuteacirctre dacuteanimation et dans le theacuteacirctre dacuteacteurs
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LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
FIGURA 1 - Compagnie Philippe Genty La fin des terres helliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 25
FIGURA 2 - Compagnie Philippe Genty Boliloc p 25
FIGURA 3 - Pia Fraus Primeiras rosas (As margens da alegria) p 26
FIGURA 4 - Pia Fraus Primeiras rosas (O cavalo que bebia cerveja) p 26
FIGURA 5 - Robert Wilson The CIVIL warS helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 28
FIGURA 6 - Tadeusz Kantor The dead class helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 28
FIGURA 7 - Impeacuterio das meias verdades (ariz Fernanda Torres) p 29
FIGURA 8 - Terra em tracircnsito (atriz Fabiana Giugli) p 29
FIGURA 9 - Theacuteacirctre sur le fil Oiseau Vole p 34
FIGURA 10 - Phillip Huber no Festival de Teatro de Bonecos de Canela 2010 p 34
FIGURA 11 - Taffy (Phillip Huber) p 34
FIGURA 12 - PeQuod Peer Gynt ndash desvio de foco p 37
FIGURA 13 - PeQuod Peer Gynt ndash Festa de casamento p 37
FIGURA 14 - PeQuod Peer Gynt ndash Personagem Aslak p 37
FIGURA 15 - PeQuod Peer Gynt ndash A Noiva p 37
FIGURA 16 - Teatro Ventoforte Histoacuteria de Lenccedilos e ventos p 41
FIGURA 17 - Teatro Ventoforte A histoacuteria de um barquinho p 41
FIGURA 18 - Contadores de Estoacuterias O bode e a onccedila (1971) p 45
FIGURA 19 - Contadores de Estoacuterias Pas-de-deux (1982) p 45
FIGURA 20 - Teatro Giramundo Giz p 47
FIGURA 21 - Teatro Giramundo Giz p 47
FIGURA 22 - Teatro Giramundo Giz p 47
FIGURA 23 - XPTO Coquetel Clown (peixes) p 49
FIGURA 24 - XPTO Coquetel Clown (futebol) p 49
FIGURA 25 - Pia Fraus Gigantes do ar (1998) p 49
FIGURA 26 - Pia Fraus Bichos do Brasil (2001) p 49
FIGURA 27 - Wayang purwa sombras javanesas p 54
FIGURA 28 - Wayang golek boneco javanecircs de vara p 54
FIGURA 29 - Sombra indiana p 55
FIGURA 30 - Karagoumlz personagem de sombra turco p 55
9
FIGURA 31 - Mamulengos do nordeste brasileiro cena do degolado p 56
FIGURA 32 - Punch o bebecirc e Judy p 56
FIGURA 33 - Grupo Sobrevento O Theatro de brinquedo (1993) p 73
FIGURA 34 - Grupo Sobrevento Um conto de Hoffman (1998) p 73
FIGURA 35 - Muumlmmenchanz p 75
FIGURA 36 - Muumlmmenchanz p 75
FIGURA 37 - Bonecos de luva chineses da proviacutencia de Fujian p 82
FIGURA 38 - Pulcinella e Salvatore Gatto p 82
FIGURA 39 - Duas diferentes pegas para bonecos de luva p 82
FIGURA 40 - Munganga Teatro Terceira Margem p 85
FIGURA 41 - Munganga Teatro Terceira Margem p 85
FIGURA 42 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Manequim p 87
FIGURA 43 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Manequim p 87
FIGURA 44 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Gaiola p 87
FIGURA 45 - Cie Petits Miracles Les puces savantes p 92
FIGURA 46 - Steve Hansen (USA) Punch and Judy helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 97
FIGURA 47 - Cia Teatro Lumbra Saci Pererecirc a lenda da meia noite p 97
FIGURA 48 - Cia Navegante Teatro de Marionetes Musicircus p 97
FIGURA 49 - Bunraku visatildeo do palco de bonecos mais o espaccedilo do narrador e do
instrumentista
p 99
FIGURA 50 - Bunraku manipuladores p 99
FIGURA 51 - Mestre Zeacute de Vina p 99
FIGURA 52 - Mestre Zeacute Lopes p 100
FIGURA 53 - Bonecos feitos por Mestre Zeacute Lopes p 100
FIGURA 54 - Operador oculto Sesame Street (atriz Kathrin Mullen) helliphelliphellip p 109
FIGURA 55 - Operador aparente PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo Sangue Bom p 109
FIGURA 56 - Cia Teatro Lumbra Saci visto detraacutes da tela p 112
FIGURA 57 - Cia Truks E se as histoacuterias fossem diferentes p 112
FIGURA 58a - Manipulaccedilatildeo oculta inferior p 121
FIGURA 58b - Manipulaccedilatildeo oculta superior p 121
FIGURA 58c - Formas de manipulaccedilatildeo p 122
FIGURA 58d - Formas de manipulaccedilatildeo p 122
FIGURA 59a - Marionete ldquoagrave la planchetterdquo italiana p 124
10
FIGURA 59b - Marionete ldquoagrave la planchetterdquo p 124
FIGURA 60 - Teatro de bonecos Alemanha seacuteculo XVIII p 124
FIGURA 61 - Don Quixote destroacutei o teatro de bonecos helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 124
FIGURA 62 - Cia Truks Vovocirc p 127
FIGURA 63 - Morpheus Teatro Peacutes descalccedilos p 127
FIGURA 64 - Morpheus teatro O princiacutepio do espanto p 127
FIGURA 65 - Contadores de Estoacuterias Mansamente p 132
FIGURA 66 - Contadores de Estoacuterias Maturando Detalhe de manipulaccedilatildeo p 132
FIGURA 67 - Contadores de Estoacuterias Em concerto p 132
FIGURA 68 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo p 134
FIGURA 69 - Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo Muchas manos p 134
FIGURA 70 - Cia Truks Big Bang helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 134
FIGURA 71 - Catibrum Homem voa Neutralidade e expressividade p 137
FIGURA 72 - PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no Inferno p 137
FIGURA 73a - Catibrum Homem voa Forma e potecircncia de movimento p 137
FIGURA 73b - Catibrum Homem voa Forma e potecircncia de movimento p 137
FIGURA 74 - Punch and Judy ilustraccedilatildeo p 141
FIGURA 75 - Kasperle boneco de luva p 141
FIGURA 76 - Mamulengo Riso do Povo Mestre Zeacute de Vina Passagem de danccedila p 141
FIGURA 77 - Janeiro-Vai-Janeiro-Vem Mestre Zeacute Lopes p 143
FIGURA 78 - Esquema de S Eisenstein aplicaccedilatildeo de conflito por meio de
alteraccedilatildeo focal
p 153
FIGURA 79 - Foco alteraccedilatildeo de tema e ecircnfase na imagem por meio de distorccedilatildeo
focal
p 153
FIGURA 80 - Foco como emulaccedilatildeo do olhar p 155
FIGURA 81 - Atenccedilatildeo do operador sobre o boneco como orientaccedilatildeo focal p 155
FIGURA 82 - Convergecircncia focal entre ator e boneco p 155
FIGURA 83 - Focalizaccedilatildeo por contracenaccedilatildeo p 155
FIGURA 84 - Divisatildeo de foco por expressatildeo p 155
FIGURA 85 - Deslocamento e foco em trabalhos com materiais p 157
FIGURA 86 - Centro de focalizaccedilatildeo impliacutecito p 157
FIGURA 87 - O boneco como indicativo da personagem p 164
FIGURA 88 - Ceacuterbero PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no
Inferno
p 177
11
FIGURA 89 - Don Doro Hyaky Puppet Theatre helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 177
FIGURA 90 - Malabarista de fio p 181
FIGURA 91 - Maneacute Gostoso p 181
FIGURA 92 - Sobrevento Cadecirc meu heroacutei p 189
FIGURA 93 - Sobrevento Cadecirc meu heroacutei p 189
FIGURA 94 - Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto (ator JoatildeoArauacutejo) p 193
FIGURA 95 - Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto (ator JoatildeoArauacutejo) p 193
FIGURA 96 - Tabola Rassa (Espanha) El Avaro p 197
FIGURA 97 - Gats O patinho feio p 197
FIGURA 98 - Grupo Sobrevento Beckett (Ato sem palavras 1) p 199
FIGURA 99 - Grupo Sobrevento Beckett (O impromptu de Ohio) p 199
FIGURA 100 - Animasonho Bonecrocircnicas p 199
FIGURA 101 - Compagnie Philippe Genty Voyageurs Immobilles helliphelliphelliphelliphellip p 207
12
LISTA DE VIacuteDEOS
VIacuteDEO 1 - Impeacuterio das meias verdades
VIacuteDEO 2 - Teatro Hugo e Inecircs Cuentos Pequentildeos cena Baby blue
VIacuteDEO 3 - Teatro Hugo e Inecircs Cuentos Pequentildeos (joelho)
VIacuteDEO 4 - Masterclass Neville Tranter
VIacuteDEO 5 - Muppet Show Mahnah mahnah
VIacuteDEO 6 - Stuffes Puppets Nightclub (The old puppeteer)
VIacuteDEO 7 - Muumlmmenchanz tubo e bola
VIacuteDEO 8 - Teatro Munganga 20 anos
VIacuteDEO 9 - Lampiatildeo vai ao inferno buscar Maria Bonita (trabalho do conclusatildeo da
disciplina Teatro de Formas Animadas apresentada por Alba Valeacuteria Letiacutecia
Mariano e Nataacutelia Oliveira)
VIacuteDEO 10 - Ilka Schoumlnbein Metamorphosen
VIacuteDEO 11 - Frank Paris Amazing marionettes
VIacuteDEO 12 - String Pierrot at the Paul Daniels TV show
VIacuteDEO 13 - Cie Phillipe Genty La fin des terres
13
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO p 14
2 TEATRO DE BONECOS TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO p 21
21 Somos ainda marionetistas Uma provocaccedilatildeo p 21
22 Visotildees de um panorama p 38
23 Transformaccedilotildees p 46
231 O que eacute (e o que passou a ser) o boneco teatral p 53
232 Que formas e funccedilotildees podem ser atribuiacutedas ao artista de animaccedilatildeo p 93
2321 A questatildeo terminoloacutegica p 93
2322 Dois mirantes para o ator de animaccedilatildeo p 108
3 ATOR E OBJETO TOPOGRAFIA DE UM CAMPO DE BATALHA p 120
31 O foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituais p 151
32 Quem manda em quem Soberanias da cena de animaccedilatildeo p 162
321 Primeiro campo de batalha o sujeito da cena p 174
322 Segundo campo de batalha o lugar do teatro p 180
323 Terceiro campo de batalha a potecircncia metafoacuterica p 190
4 CONCLUSOtildeES p 208
5 REFEREcircNCIAS p 215
ANEXO A Rumo a uma esteacutetica do boneco (traduccedilatildeo do livro de Steve
Tillis)
p 224
ANEXO B Entrevista com Beto Andreetta (Cia Pia Fraus) p 375
ANEXO C Entrevista com Catin Nardi (Cia Navegante de Teatro de
Bonecos)
p 389
ANEXO D Entrevista com Alexandre Faacutevero (CiaTeatro Lumbra) p 394
ANEXO E DVD ndash trechos de viacutedeos mencionados na tese de acordo com
a Lista de Viacutedeos
14
1 INTRODUCcedilAtildeO
As alteraccedilotildees de escala a fusatildeo de meios ndash atores vivos junto
com atores com maacutescaras junto com bonecos ndash nos ajuda a
mover-nos por diferentes niacuteveis de realidade
Julie Taymor
A proposta de trabalho que esta pesquisa encerra diz respeito aos usos e configuraccedilotildees
do corpo humano dentro daquilo que se entende como a cena contemporacircnea do teatro de
animaccedilatildeo no Brasil A pesquisa c-se como um desdobramento direto quase obrigatoacuterio de
questotildees abordadas em minha dissertaccedilatildeo de mestrado aleacutem de indagaccedilotildees e vontades que me
acompanham desde aproximadamente quinze anos tanto no campo da pesquisa acadecircmica
quanto da praacutetica artiacutestica Trata-se da tentativa de pensar o teatro de animaccedilatildeo (bonecos
objetos sombras) identificando-a sob a forma de uma linguagem teatral que vem sendo
continuamente acessada por investigaccedilotildees recentes nos campos da encenaccedilatildeo da dramaturgia
e da interpretaccedilatildeo teatrais Isto equivale dizer que o teatro entendido a partir de uma
perspectiva mais ampla vem se sentindo mais e mais impelido a dialogar com as tradiccedilotildees de
formas e procedimentos do teatro de bonecos em busca de recursos e efeitos para
investigaccedilotildees modernas mas tambeacutem para transformar as formas e procedimentos
tradicionais dos teatros de bonecos a ponto de ampliar as possibilidades de entender e praticar
o teatro de animaccedilatildeo dos dias de hoje Eacute curioso notar o fato de que segundo pesquisadores
como Henryk Jurkowski (1991 1995) Bill Baird e Paul McPharlin (1969) o teatro de
bonecos ocidental era em finais do seacuteculo XIX considerada uma modalidade espetacular
divorciada do contexto da arte teatral ateacute que a partir de Ubu Rei de Alfred Jarry das peccedilas
provocativas de autores como Murice Maeterlink Federico Garcia Lorca e Michel de
Ghelderode e dos louvores de Gordon Craig e Vsevolod Meyerhold ao boneco como sendo
um modelo para o ator da modernidade o caminho integrativo entre o teatro e a arte da
marionete tornou-se contiacutenuo e inexoraacutevel Nos primeiros anos do seacuteculo XXI jaacute eacute possiacutevel
afirmar que num certo sentido essa aproximaccedilatildeo resultou em transformaccedilotildees e temas de
investigaccedilatildeo para as linguagens espetaculares tais que tratar em separado os teatros com e sem
bonecos resulta para se dizer o miacutenimo num trabalho delicado de escolha de palavras Outro
provaacutevel equiacutevoco de julgamento resulta da tentativa de se entender tal processo integrativo
como linear e direcionado Ocorre que o acompanhamento de investigaccedilotildees e resultados
artiacutesticos empreendidos por artistas e companhias atuais (tanto aquelas que se declaram
identificadas com a linguagem da de animaccedilatildeo quanto aquelas que se entendem mais
15
aproximadas do que seria tratado simplesmente como teatro ou teatro de atores1 ou teatro
vivo) sugere que o estudo das especificidades linguiacutesticas da arte da animaccedilatildeo de formas a
situa como sendo resistente agrave sua classificaccedilatildeo como uma modalidade espetacular autocircnoma
com foacutermulas e teacutecnicas especiacuteficas mas que aponta para a percepccedilatildeo de um acervo teacutecnico-
linguiacutestico incorporado e dedicado ao fazer e ao entender da arte teatral num sentido mais
amplo
Neste ponto algumas explicaccedilotildees fazem-se necessaacuterias O termo teatro de animaccedilatildeo
ou teatro de formas animadas foi criado com o intuito de dar conta da ampliaccedilatildeo de
possibilidades esteacuteticas e teacutecnicas surgidas para o teatro de bonecos a partir dos primeiros
anos do seacuteculo XX Ambos os termos foram bastante bem acolhidos por pensadores e artistas
brasileiros mas natildeo haacute um consenso de orientaccedilatildeo terminoloacutegica em outros idiomas como
nos exemplos theacuteacirctre de marionnettes em francecircs e puppetry em inglecircs2 O que faz a ideacuteia
de animaccedilatildeo parecer terminologicamente mais adequada e abrangente no que se refere a
experiecircncias de linguagem mais recentes eacute o fato de o termo animaccedilatildeo referir-se diretamente
a um verbo (animar) ao inveacutes de a um substantivo (boneco forma) Assim pode-se identificar
o traccedilo distintivo da linguagem em questatildeo como sendo uma determinada praacutetica ou postura
do sobrepara a cena que pode ou natildeo apresentar fisicamente um objeto ao inveacutes do fato da
presenccedila de um boneco um material ou um objeto que faria as vezes de uma personagem
teatral Algumas das questotildees sobre as quais o estudo se debruccedila eacute a de que o teatro de
animaccedilatildeo pode prescindir do uso de objetos inanimados ou bonecos construiacutedos para a cena e
de que o teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo incorporou diversas das questotildees que animam a
discussatildeo acerca do espetaacuteculo e da dramaturgia de nosso tempo entre elas aquelas que potildeem
em crise as noccedilotildees de accedilatildeo e personagem como constituintes inapelaacuteveis do evento teatral
A consideraacutevel ampliaccedilatildeo das formas de modelar animar inserir e fazer significar
bonecos e objetos sobre a cena teatral expandiram ateacute limites extremos o entendimento do que
seria o boneco teatral Deste modo formas antropomoacuterficas reduzidas grandes cabeccedilas
1 Eis um conceito que parece impreciso ou equivocado e com o qual tive que lidar durante a pesquisa que
resultou em minha dissertaccedilatildeo de mestrado O termo teatro de atores revelou certa eficaacutecia apenas para criar a
ideacuteia de oposiccedilatildeo ou diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao teatro de bonecos O emprego do termo torna-se um tanto
problemaacutetico na medida em que a reflexatildeo provoca a percepccedilatildeo de que tal diferenciaccedilatildeo tende a desaparecer nas
praacuteticas contemporacircneas O termo teatro de atores vem sendo no entanto amplamente empregado por autores
empenhados em refletir acerca de teatro de formas animadas como eacute o caso de Jurkowski (1995 p24) Plassard
(1995 p15) e Nina Dimitrova (apud BELTRAME 2001 p117) Reflexotildees mais recentes me fazem perceber
que o ideal seria a aboliccedilatildeo do termo complementar para referir-se ao teatro num contexto mais amplo mas
perde-se assim a capacidade de evidenciar durante uma argumentaccedilatildeo elementos contrastantes existentes entre
tipos de teatro que empregam animaccedilatildeo e outros que aplicam maior ecircnfase sobre o trabalho do ator 2 Embora deva-se reconhecer o emprego no caso do francecircs de termos como theacuteacirctre dacuteanimation e theacuteacirctre des
formes animeacutes
16
objetos de uso quotidiano transformados para a cena ou natildeo composiccedilotildees de objetos de
corpos humanos ou mesmo fragmentos de corpos humanos especificamente utilizados
adquirem estatuto de mateacuteria animaacutevel A essa heterogeneidade de formas e materiais alia-se
a colaboraccedilatildeo voluntaacuteria e especiacutefica de algueacutem que insere em contexto espetacular essas
formas num ato relacional natildeo obrigatoriamente manipulativo de transformaccedilatildeo dos
significados originais do material utilizado para o interior de uma cena teatral Este seria o
animador o ator-manipulador ou simplesmente o ator
Esta tese encerra ateacute certo ponto uma discussatildeo que envolve o entendimento da
funccedilatildeo e da definiccedilatildeo desse ator encarregado e preparado (ou natildeo) para apresentar o boneco
ou objeto num contexto teatral O termo manipulaccedilatildeo que se encontra com certo destaque no
tiacutetulo cumpre uma provocaccedilatildeo acerca do entendimento do ato de apresentar o boneco teatral
(manipular) e do artista encarregado dessa funccedilatildeo (manipulador) Em minha dissertaccedilatildeo de
mestrado realizei uma discussatildeo aprofundada do termo e da ideacuteia de manipulaccedilatildeo
(PIRAGIBE 2007 pp 35-51) que resultaram na percepccedilatildeo de que um entendimento
meramente etimoloacutegico do termo para o contexto contemporacircneo do teatro de animaccedilatildeo pode
conduzir a uma seacuterie de equiacutevocos tanto de leitura quanto de metodologia para o trabalho
praacutetico A compreensatildeo ndash inciada na pesquisa da dissertaccedilatildeo e ampliada neste estudo ndash do ato
de apresentaccedilatildeo da forma animada como sendo uma dinacircmica relacional natildeo hierarquizada
entre ator e objeto adiciona uma provocaccedilatildeo extra ao emprego do termo manipulaccedilatildeo que se
encontra exatamente no entendimento de que o boneco se mostra em cena como resultado de
uma dinacircmica que torna indefinidas as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo entre ator e
forma
A crescente participaccedilatildeo do ator sobre a cena do teatro de animaccedilatildeo natildeo apenas sob a
forma da exposiccedilatildeo do seu trabalho manipulativo mas tambeacutem por meio da incorporaccedilatildeo agrave
cena de recursos expressivos proacuteprios que natildeo passam obrigatoacuteria e exclusivamente pela
tarefa manipulativa de fazer atuar o objeto impotildee agrave cena de animaccedilatildeo dinacircmicas de
funcionamento e leitura que natildeo correspondem mais agraves concepccedilotildees tradicionais do teatro de
bonecos entendido como modalidade espetacular especiacutefica e divorciada do restante da arte
teatral
A observaccedilatildeo das programaccedilotildees de festivais dedicados ao teatro de animaccedilatildeo e das
experiecircncias das companhias mais inquietas do atual panorama relacionado a essa linguagem
no Brasil revela um processo iniciado em meados da deacutecada de 1970 e que vem desde entatildeo
se radicalizando no sentido de expor o ator encarregado da operaccedilatildeo das formas num
movimento que explora os limites da linguagem e apresenta problemas verificaacuteveis tanto no
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campo da teoria do teatro de animaccedilatildeo quanto para o estabelecimento de princiacutepios praacuteticos
de treinamento de artistas e construccedilatildeo cecircnico-dramatuacutergicas O ator posto agrave mostra no teatro
de bonecos aciona questotildees que se refletem tanto na construccedilatildeo da narrativa espetacular
quanto na definiccedilatildeo do que eacute e onde estaacute o boneco teatral
Enfrentar o problema da consideraccedilatildeo das funccedilotildees e efeitos do ator sobre a atual cena
do teatro de animaccedilatildeo eacute um trabalho que impede o estudioso de entender essa linguagem
teatral como algo que natildeo seja extremamente permeaacutevel agraves combinaccedilotildees de expressotildees
artiacutesticas e se afirme de fato como um mecanismo de produccedilatildeo do heterogecircneo Dessa forma
a animaccedilatildeo se apresenta como sendo um gecircnero criacutetico que se compotildee da sua proacutepria
ausecircncia Se recorrermos agrave compreensatildeo de que mesmo as mais estabilizadas modalidades de
apresentaccedilatildeo com bonecos e formas natildeo hierarquiza de maneira precisa modos de significaccedilatildeo
narrativos escultoacutericos e espetaculares podemos talvez estar muito perto de nos indagar se
animaccedilatildeo seria de fato uma modalidade espetacular ou apenas um recurso um dispositivo
linguiacutestico ou uma ferramenta de integraccedilatildeo de vontades expressivas diacutespares em meio aos jaacute
tatildeo imprecisos domiacutenios da arte teatral
Essa primeira indagaccedilatildeo ainda que levante questotildees diversas e complicadas
estabelece um ambiente fundamental para uma consideraccedilatildeo mais atenta do papel
desempenhado pelo ator na atual cena animada uma vez que seraacute sob os auspiacutecios das
heterogenias acionadas pela animaccedilatildeo que poderemos compreender que funccedilotildees e
competecircncias satildeo exercidas em sua apresentaccedilatildeo mas sobretudo indagar de maneira pode o
ator relacionar-se com o boneco de modo a fazecirc-lo atuar ou ainda fazer parte de sua
constituiccedilatildeo fiacutesico-performativa
Ainda que exista clareza quanto ao fato de o ator posto agrave mostra se constituir no
problema a ser abordado pelos estudos da animaccedilatildeo na contemporaneidade natildeo haacute evidecircncias
nem densidade de reflexatildeo que escapem agrave consideraccedilatildeo apressada de que a exposiccedilatildeo do
artista se constitui no principal traccedilo distintivo das atuais indagaccedilotildees artiacutesticas apresentadas
pelo panorama da animaccedilatildeo A hipoacutetese com a qual escolho trabalhar lida com a investigaccedilatildeo
das transformaccedilotildees que o animador posto agrave mostra propicia agrave forma animada indicando uma
nova dinacircmica de estruturaccedilatildeo do boneco e natildeo apenas a exposiccedilatildeo do ator como sendo o
foco investigativo do ambiente brasileiro de animaccedilatildeo na atualidade
Indago tambeacutem se natildeo haveria e quais seriam os desafios teacutecnico-terminoloacutegicos a
serem empregados e aprofundados para os artistas interessados em lidar com as possibilidades
transdisciplinares da cena desdobrada do teatro de animaccedilatildeo que dispotildee uma narratividade
composta e modos muacuteltiplos e simultacircneos de figuraccedilatildeo dos seus sujeitos e conduccedilatildeo da sua
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accedilatildeo Natildeo parece que o artista de animaccedilatildeo posto agrave vista do puacuteblico revele nessa accedilatildeo
aspectos especiacuteficos de sua lida afirmando assim sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao ator de teatro Eacute
possiacutevel que sua apresentaccedilatildeo acabe por solicitar recursos de atuaccedilatildeo de modo mesmo a que
as suas competecircncias especiacuteficas revelem menos um trabalho a favor de um gecircnero teatral
especiacutefico e mais uma condiccedilatildeo atual de teatro que se desdobra em multi e
transdisciplinaridades
De um modo mais amplo pretendo que algumas dessas minhas indagaccedilotildees e lacunas
de pensamento me conduzam a empreender um estudo mais aprofundado acerca das relaccedilotildees
que o teatro contemporacircneo propotildee entre objeto e ator entre animado e inanimado e entre o
ator e a cena de animaccedilatildeo Busco assim entender as motivaccedilotildees e modos de transposiccedilatildeo
cecircnica da animaccedilatildeo entendida como linguagem Pretendo buscar entender quais limites o atual
teatro de animaccedilatildeo tem traccedilado para si mesmo de modo a entender-se como modalidade
teatral especiacutefica Mas o faccedilo suportado ndash provocado diria melhor ndash pela hipoacutetese de que a
separaccedilatildeo outrora tatildeo clara entre teatro de bonecos e teatro de atores tende a dissipar-se nas
praacuteticas nos interesses e nas motivaccedilotildees de companhias e artistas do nosso tempo clamando
assim por novas concepccedilotildees teorias e terminologia que decircem conta do que vem sendo de fato
tentado e apresentado sobretudo no que diz respeito ao panorama brasileiro do teatro de
animaccedilatildeo
Dentro de uma perspectiva mais objetiva o trabalho se encontra dividido em dois
capiacutetulos com percursos distintos e complementares O primeiro capiacutetulo parte de um estudo
das transformaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo verificado a partir da deacutecada de 1970 ateacute hoje
tendo como provocaccedilatildeo a queixa recorrente entre alguns praticantes e estudiosos do teatro de
animaccedilatildeo de que os bonecos teriam desaparecido do teatro de bonecos cedendo espaccedilo a
apresentaccedilotildees vaidosas de artistas despreparados para lidar com a linguagem Essa
provocaccedilatildeo me conduz a lanccedilar alguns olhares pontuais sobre parte do percurso histoacuterico do
teatro de animaccedilatildeo dentro do periacuteodo mencionado para em seguida buscar aplicar um novo
olhar sobre conceitos que precisam ser reavaliados frente agraves recentes transformaccedilotildees tais
como boneco teatro de bonecos e manipulador
O segundo capiacutetulo se debruccedila de modo um pouco mais detido sobre as relaccedilotildees
possiacuteveis entre objeto e ator que a cena mais recente do teatro de animaccedilatildeo tecircm suscitado A
partir de um determinado momento busco traccedilar o que resolvi chamar de campos de batalha
que seriam os lugares da praacutetica e do entendimento postas em questatildeo em meio aos jogos de
ocultaccedilatildeo e aparecimento tanto da forma quanto do ator em cena Esse capiacutetulo levanta as
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possibilidades de significaccedilatildeo e discurso que emergem desse jogo e busca lidar com alguns
conceitos teacutecnico-conceituais que movimentam tal dinacircmica
Optou-se neste trabalho por natildeo lidar com um estudo de caso especiacutefico mas lanccedilar
matildeo de exemplos variados de espetaacuteculos e companhias que tem ocupado certa centralidade
no panorama nacional da animaccedilatildeo ao longo das uacuteltimas quatro deacutecadas Ainda que se
entenda que esta eacute uma escolha arriscada e pode conduzir a recortes imprecisos ou a
pretensotildees generalizantes entendo que um estudo das funccedilotildees e configuraccedilotildees do ator sobre a
cena brasileira de animaccedilatildeo precisa se dar agrave luz das reverberaccedilotildees sentidas em trabalhos em
diferentes companhias e que natildeo eacute possiacutevel compreender a dinacircmica de influecircncias e
tendecircncias por meio de mergulhos ndash mais densos de fato ndash em micropoeacuteticas grupais A
confianccedila de que essa tentativa pode resultar bem decorre da experiecircncia acumulada ao longo
de mais de quinze anos me dedicando como estudante do teatro de animaccedilatildeo no Brasil e como
artista integrante de algumas companhias dedicadas agrave linguagem ao longo desse tempo De
qualquer forma algumas companhias seratildeo mencionadas com frequecircncia ao longo do
trabalho e isso se deve agrave importacircncia agrave longevidade e a capacidade que essas iniciativas
artiacutesticas tiveram de agregar interesse e apresentar discussotildees sobre a linguagem com
capacidade de reverberaccedilatildeo Algumas dessas companhias satildeo o Grupo Ventoforte os
Contadores de Estoacuterias o Grupo Giramundo o XPTO a Pia Fraus a Cia Truks o Grupo
Sobrevento a PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo a Caixa do Elefante a Cia Teatro Lumbra o
Teatro Munganga e o Morfeus Teatro Satildeo citados tambeacutem alguns artistas e companhias
estrangeiros escolhidos natildeo apenas por se constituiacuterem em exemplos eloquentes para os
pensamentos desenvolvidos mas tambeacutem por apresentarem alguma presenccedila no Brasil como
participantes constantes de festivais de temporadas ou simplesmente como referecircncias
recorrentes em discussotildees Satildeo alguns desses grupos e artistas a Cie Phillipe Genty (Franccedila)
o Teatro Hugo e Inecircs (Peru Seacutervia) Stuffed Puppets (Holanda) o Muppet Show (EUA) o
Muumlmmenchanz (Suiacuteccedila) El Chonchoacuten (Argentina) Taacutebola Rassa (Espanha) e a performer
alematilde Ilka Schoumlnbein
Ao longo dos capiacutetulos estatildeo dispostas fotografias e ilustraccedilotildees que possuem o
objetivo de exemplificar e ampliar as discussotildees contidas nos capiacutetulos natildeo apenas para situar
o leitor acerca das formas e espetaacuteculos mencionados mas como maneira de inserir uma
segunda voz de discussatildeo sobre o tema tratado Optou-se por natildeo empreender anaacutelises
iconograacuteficas aprofundadas justamente com o intuito de oferecer ao leitor um panorama
amplo e relacionado de referecircncias visuais que podem por vezes desdobrar uma discussatildeo
que o texto encaminhe sob um ponto de vista mais limitado Juntamente com as imagens
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seguem tambeacutem alguns registros em viacutedeo que desempenham de maneira enriquecida a
funccedilatildeo ilustrativas das imagens mas que servem tambeacutem para demonstrar uma parcela
importante do processo de pesquisa empreendido feito a partir do emprego da tecnologia de
acesso via Internet a materiais audiovisuais que se constitui em uma fonte valiosiacutessima de
dados e natildeo pode ser ignorada pelo pesquisador
Por fim eacute importante que se mencione que as discussotildees conduzidas dentro deste
trabalho se datildeo em diaacutelogo com trecircs profissionais e pesquisadores fundamentais para a
construccedilatildeo do meu pensamento dos quais concordo e discordo alternadamente agraves vezes com
maior ou menor veemecircncia mas que satildeo contribuiccedilotildees inestimaacuteveis ao pensamento
desenvolvido ao ponto de poder afirmar que esta tese natildeo eacute senatildeo uma tentativa de diaacutelogo
com eles
Primeiramente menciono o professor doutor Valmor Beltrame cuja tese acerca da
pedagogia do ator manipulador e as reflexotildees sobre princiacutepios formativos para o animador e a
noccedilatildeo de marionetizaccedilatildeo do ator foram fundamentais e tambeacutem o professor mestre Paulo
Balardim que apresenta discussotildees profundas sobre formaccedilatildeo do ator em animaccedilatildeo e
princiacutepios de atuaccedilatildeo com o boneco
Mas eacute a partir do escrito do pesquisador e artista de animaccedilatildeo norte americano Steve
Tillis que encontrei maior reverberaccedilatildeo acerca das impressotildees que colhi por praacutetica e
observaccedilatildeo Esta tese se apoia em grande parte sobre as discussotildees por ele apresentadas no
livro Toward an aesthetic of the puppet puppetry as a thetrical art (Rumo a uma esteacutetica do
boneco animaccedilatildeo como arte teatral) por vezes elaborando discordacircncias e reflexotildees
buscando compreender as suas formulaccedilotildees no panorama do teatro brasileiro e ateacute mesmo
construindo percursos argumentativos apoiados em sua metodologia
Por isso a traduccedilatildeo do livro citado que segue em anexo agrave tese eacute mais do que a
tentativa de disponibilizar uma obra ao leitor em portuguecircs ou identificar com mais clareza
uma fonte A traduccedilatildeo do livro eacute a caracterizaccedilatildeo deste trabalho sob a forma de um diaacutelogo O
discurso de Tillis se apoacuteia no incocircmodo de perceber a perda de validade de certos preceitos
teoacutericos e praacuteticos do teatro de bonecos vistos diante das recentes ampliaccedilotildees de
possibilidades apresentadas agrave linguagem Seu iacutempeto por propor alteraccedilotildees na terminologia e
na consideraccedilatildeo de certos lugares comuns relativos agrave arte da animaccedilatildeo faz dele um
interlocutor uacutenico para as minhas indagaccedilotildees
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2 TEATRO DE BONECOS TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO
21 Somos ainda marionetistas Uma provocaccedilatildeo
No ano de 1984 foi publicado na revista Mamulengo editada pela Associaccedilatildeo
Brasileira de Teatro de Bonecos um texto curto do entatildeo Secretaacuterio Geral da UNIMA (Uniatildeo
Internacional da Marionete) Jacques Feacutelix (1923 ndash 2006) intitulado ldquoSomos ainda
marionetistasrdquo (1984) um texto curto e incisivo sob a forma de uma lamentaccedilatildeo ndash se natildeo de
uma queixa ndash abordando uma alegada tendecircncia de desaparecimento dos bonecos nos teatros
de bonecos A brevidade do texto e sua importacircncia para este estudo justificam que este seja
aqui transcrito em sua iacutentegra
Participando como espectador por meses e semanas em Festivais de
Marionetes haacute muitos anos tenho sido fortemente atingido por uma certa
evoluccedilatildeo na apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos chamados de marionetes Digo
bem ldquochamados de marionetesrdquo porque elas desaparecem mais e mais de
nossas cenas Agora eacute muito frequente que jaacute natildeo se nos apresente um teatro
de marionetes mas sim um teatro de atores com objetos maacutescaras e algumas
marionetes ou simplesmente um puacutenico boneco com atores
Assistimos pois a espetaacuteculos hiacutebridos onde o boneco tem apenas um
pequeno espaccedilo e constantemente eacute apenas uma figuraccedilatildeo E o puacuteblico ndash
Pois bem os que decidiram por este gecircnero de espetaacuteculo assistem a uma
peccedila de teatro e nem sempre um bom teatro O espectador assim frustrado se
faz entatildeo esta pergunta
- Por que as marionetes desaparecem no momento em que se reclama
sobre ela todas as coisas Complexo de marionetista que lamenta natildeo ser
tratado de comediante Ou simplesmente que o marionetista da deacutecada de
[19]80 natildeo eacute mais um verdadeiro manipulador um verdadeiro animador ou
natildeo tem mais imaginaccedilatildeo
Penso que todos devemos refletir a respeito eacute importante sobretudo
se natildeo queremos que nossa arte desapareccedila de novo completamente como
uma raccedila desapareceu pouco a pouco do globo
O ecircxito nem sempre estaacute proporcional com a grandeza do dispositivo
cecircnico O puacuteblico ama tambeacutem os pequenos teatrinhos pensem no enorme
ecircxito alcanccedilado por Waschinski Roser Hubert e Boerwinkel Acendamos
pois nossa imaginaccedilatildeo retornemos ao manipulador e voltemos a criar juntos
o verdadeiro teatro de marionetes para a maior alegria de nosso puacuteblico que
as reclama (FEacuteLIX 1984)
A escolha de um texto de Jacques Feacutelix para ser o provocador inicial desta reflexatildeo natildeo se daacute
por acaso Aleacutem de haver sido secretaacuterio geral da UNIMA Feacutelix eacute considerado figura
fundamental no processo de vitalizaccedilatildeo e modernizaccedilatildeo das artes da marionete ao longo
seacuteculo XX tanto no que diz respeito ao seu trabalho artiacutestico junto agrave Compagnie des Petits
Comeacutediens de Chiffons (Companhia dos Pequenos Atores de Trapos) quanto no vigor da sua
reflexatildeo e atuaccedilatildeo poliacutetica para a consideraccedilatildeo do teatro de bonecos dentro do panorama das
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artes cecircnicas de seu tempo Portanto iniciar uma discussatildeo a partir de uma reflexatildeo de
Jacques Feacutelix eacute tratar de um pensamento vindo de algueacutem profundamente engajado no
movimento do teatro de animaccedilatildeo e interessado em sua modernizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo Apoacutes essa
breve advertecircncia seguimos com o raciociacutenio
Segundo Feacutelix a cena de teatro de marionetes do seu tempo renegava cada vez mais a
apresentaccedilatildeo do boneco para apresentar ldquoum teatro de atores com objetos maacutescaras e
algumas marionetes ou simplesmente um uacutenico boneco com atoresrdquo(ibid)
Feacutelix temia que o manuseio de diferentes meios expressivos sempre mediados por
uma participaccedilatildeo efetiva do ator no teatro de marionetes o precipitasse rumo a uma
tendecircncia de crescente hibridizaccedilatildeo e perda de contato com os seus principais elementos
distintivos Isto poderia assim de acordo com Feacutelix conduzir a arte do boneco por uma trilha
de descaracterizaccedilatildeo e subsequente extinccedilatildeo De modo semelhante o historiador e teoacuterico
Henryk Jurkowski se indaga se o tempo em que o ator ou o performer participa de maneira
cada vez mais proeminente em relaccedilatildeo com o boneco natildeo ldquoseraacute o fim do teatro de marionetes
enquanto gecircnero teatral propriamente ditordquo (2000 p 157) Jurkowski menciona um desgaste
nas formas tradicionais de teatro de bonecos e indica a inserccedilatildeo bem sucedida de
procedimentos de teatro de marionetes em diferentes ldquoformas de um teatro poacutes-modernordquo
Tanto Feacutelix quanto Jurkowski tributam a forja da cena heterogecircnea e desvirtuada cada um ao
seu modo a transformaccedilotildees percebidas nas relaccedilotildees do artista de animaccedilatildeo com a cena e com
o boneco Feacutelix acusa a reduccedilatildeo da presenccedila da marionete em espetaacuteculos supostamente
dedicados a ela como resultado de provaacuteveis alteraccedilotildees em interesses e competecircncias por
parte dos marionetistas aos quais indaga se perderam o orgulho pela arte e pretendem
transformar-se em comediantes se perderam o contato com a tradiccedilatildeo e a capacidade teacutecnica
necessaacuteria ao seu bom desenvolvimento ou se simplesmente lhes falta imaginaccedilatildeo
O texto deixa bastante claro que sendo o marionetista (o artista que apresenta o
boneco) a vontade que impulsiona e daacute agrave arte da marionete a sua qualidade e caracteriacutesticas
particulares eacute nas criaccedilotildees e iniciativas desses artistas que o teatro de bonecos encontra sua
forccedila de permanecircncia bem como seus impulsos de transformaccedilatildeo Para Feacutelix em que pese o
tom admoestatoacuterio de seu artigo o esforccedilo que o marionetista deve empreender no sentido de
manter vivo o teatro de bonecos se encontra intimamente relacionado ao esforccedilo de
aprimoramento de sua capacidade teacutecnica ferramenta imprescindiacutevel para a afirmaccedilatildeo do
ldquoverdadeiro teatro de marionetesrdquo (ibid)
A defesa de Feacutelix por uma determinada maneira de se apresentar o boneco como
sendo aquilo que caracteriza o teatro de bonecos ldquocomo este deveria serrdquo natildeo eacute difiacutecil notar
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repousa sobre dois elementos bastante especiacuteficos e relacionados a tradiccedilatildeo e a teacutecnica A
decadecircncia teacutecnica dos artistas de teatro de bonecos somada a descuidos com as formas e
temas tradicionais e caracteriacutesticos ao gecircnero seriam os principais fatores a incitarem um
desejo de degeneraccedilatildeo nos criadores contemporacircneos que misturam bonecos com outros
materiais expressivos tais como maacutescaras objetos e atores substituindo assim o teatro de
bonecos por um hiacutebrido que como tal natildeo corresponde agraves expectativas do puacuteblico que acorre
aos teatros para assistirem a bonecos magistralmente manipulados
Outro resultado funesto desse processo de hibridizaccedilatildeo do teatro de bonecos seria a
interferecircncia crescente do ator resultado das vaidades negligecircncias teacutecnicas e falhas criativas
dos marionetistas de hoje Assim o desaparecimento do teatro de bonecos temido por Feacutelix e
indagado por Jurkowski seria resultado do descaso por parte de criadores com as formas e os
recursos de determinadas tradiccedilotildees de teatro de bonecos Assim sendo o interesse em
cruzamentos de linguagens e em mediaccedilotildees com outras competecircncias e materiais expressivos
retira de sua arte um tipo de identidade que reside sobre o domiacutenio de certo apanhado de
competecircncias (de construccedilatildeo de manipulaccedilatildeo de apresentaccedilatildeo) que daria a um determinado
entendimento do que seria teatro de bonecos uma clara qualidade distintiva
Este primeiro momento do trabalho se propotildee a usar o texto de Feacutelix como uma
provocaccedilatildeo e partir da hipoacutetese de que a arte da marionete se sustenta e caminha tal qual o
faz o boneco sob o impulso do artista de animaccedilatildeo discutir os entendimentos de termos e
procedimentos do atual teatro de animaccedilatildeo Parte tambeacutem do entendimento de que satildeo as
capacidades as vontades discursivas e os acordos criados em cena durante o ato da
apresentaccedilatildeo pelo artista que conduzem manteacutem e transformam o que pode ser considerado
teatro de bonecos bem como as manifestaccedilotildees decorrentes de suas mudanccedilas de postura
Tambeacutem pretendo me afastar do que defende Feacutelix no sentido de acreditar que as
transformaccedilotildees na arte do boneco propostas pela dinacircmica das diferentes posturas assumidas
pelo artista animador sobretudo a partir do que vem sendo observado no panorama do teatro
de animaccedilatildeo dos uacuteltimos quarenta anos natildeo o encaminha para a degeneraccedilatildeo e a extinccedilatildeo
mas o vitaliza o insere ainda mais no panorama geral das artes cecircnicas e explora
potencialidades existentes na linguagem que ao contraacuterio de descaracterizaacute-la refaz com
novo vigor os laccedilos existentes com os seus fundamentos
O artista de animaccedilatildeo exortado a ser o defensor de uma tradiccedilatildeo de formas e temas
subordinada diretamente ao domiacutenio teacutecnico e agrave observacircncia daquilo que poderia ser chamado
de teatro de bonecos se reposiciona diante do boneco e do seu teatro As transformaccedilotildees
observadas em seus modos de interferecircncia sobre a construccedilatildeo da cena de animaccedilatildeo
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operaram de modo mais pronunciado no sentido de dar maior visibilidade agraves possibilidades
transdisciplinares inerentes ao teatro de bonecos e persistentes em seu percurso atraveacutes do
tempo Eacute mais recente no entanto as inuacutemeras formas resultantes de arranjos
multireferenciais que vecircm provocando transformaccedilotildees sobre a natureza do teatro de bonecos
e tambeacutem na maneira como este se posiciona diante do panorama mais geral das artes cecircnicas
Percebe-se tanto nas praacuteticas de algumas companhias quanto no olhar de programadores e
curadores de festivas e eventos dedicados ao teatro de animaccedilatildeo ndash ao teatro de formas
animadas ndash a atenccedilatildeo para espetaacuteculos que se posicionam de maneira um tanto problemaacutetica
no que diz respeito agrave especificidade da linguagem Um dos exemplos mais eloquentes do que
se apresenta estaacute no trabalho da companhia do artista de animaccedilatildeo encenador e coreoacutegrafo
francecircs Philippe Genty cujos espetaacuteculos ocupam verdadeiramente uma ldquozona de
indefiniccedilatildeordquo entre a danccedila o teatro a animaccedilatildeo de formas e as artes circenses (Figuras 1 e 2)
Em recente espetaacuteculo da companhia de teatro de animaccedilatildeo Pia Fraus chamado Primeiras
Rosas contos de Guimaratildees Rosa foram apresentados com o emprego de bonecos objetos
sombras materiais brutos e recursos de viacutedeo (Figuras 3 e 4) A crescente presenccedila da
animaccedilatildeo de formas em propostas de encenaccedilatildeo interessadas em produzir um campo muacuteltiplo
de possibilidades de expressatildeo ou antes a crescente consideraccedilatildeo da animaccedilatildeo de formas
como ponto de encontro de uma expressividade muacuteltipla cria para uma determinada vontade
de compreensatildeo e classificaccedilatildeo um problema decorrente da dissoluccedilatildeo das fronteiras entre as
linguagens de expressatildeo artiacutestica que a animaccedilatildeo parece conseguir operar em diversas
experiecircncias Atuar como um ldquooperador de tracircnsitosrdquo entre manifestaccedilotildees de expressividade
cecircnicas plaacutesticas e sonoras situa a modalidade espetacular teatro de animaccedilatildeo ao menos
aparentemente num lugar de absoluta indefiniccedilatildeo sem que seus limites e fundamentos
possam ser identificados de modo a dar a ver um campo expressivo claro e codificado Some-
se a isso o fato de inuacutemeras manifestaccedilotildees em teatro de bonecos encontrarem-se solidamente
apoiadas em tradiccedilotildees de formas e de temas com procedimentos e caracteriacutesticas praticados e
transmitidos com rigor
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Figura 1 Compagnie Philippe Genty La fin des terres
Fonte (httpleighgillamwordpresscom20100412phillipe-genty)
Foto Pascal Franccedilois
Figura 2 Compagnie Philippe Genty Boliloc
Fonte (httpwwwdancetalkcoilp=340)
Foto Pascal Franccedilois
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Figura 3 Pia Fraus Primeiras Rosas (As margens da alegria)
Fonte (httpwwwflickrcomphotosfabianosouza3972110212inphotostream)
Foto Fabiano Souza
Figura 4 Pia Fraus Primeiras Rosas (O cavalo que bebia cerveja)
Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)
Foto Carlos Lagoeiro
As figuras minuacutesculas operadas sobre uma mesa satildeo filmadas em tempo real e tecircm suas imagens
projetadas em angulaccedilotildees e composiccedilotildees diferentes em uma tela ao fundo do palco
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Parece assim que se estaacute diante de um problema ou de um equiacutevoco taxonocircmico e uma
soluccedilatildeo a ser considerada para tal impasse seria a proposiccedilatildeo de outro entendimento da
animaccedilatildeo e do emprego da forma animada Pois se entendemos o teatro de animaccedilatildeo como
algo que opera tanto em manifestaccedilotildees de riacutegida codificaccedilatildeo quanto em praacuteticas de
transdisciplinaridade artiacutestica e se entendemos que nesse segundo caso essa operaccedilatildeo
funciona em favor da indeterminaccedilatildeo de uma linguagem expressiva que seja especiacutefica ou
dominante sobre a cena talvez isto sugira um deslocamento que pode ter transformado um
gecircnero que se supunha uma manifestaccedilatildeo autocircnoma (e marginal) das artes teatrais num
conjunto de teacutecnicas dispositivos esteacuteticos e operaccedilotildees integradoras que passaria a poder ser
incorporado ao instrumental posto agrave disposiccedilatildeo da encenaccedilatildeo contemporacircnea Isto pode natildeo
ser complicado de considerar se pensarmos nos objetos projeccedilotildees e corpos estaacuteticos usados
em encenaccedilotildees de Robert Wilson e Richard Foreman nos manequins de Tadeusz Kantor e
ateacute mesmo nos bonecos e cenas de mutilaccedilatildeo feitas por Gerald Thomas em espetaacuteculos como
The flash and crash days (1992) Impeacuterio das meias verdades (1993) (Figura 7 Video 1) em
que a atriz Fernanda Torres aparece com sua cabeccedila sobre uma mesa como se fizesse parte de
um assado parcialmente devorado na versatildeo de Quarteto de Heiner Muller com Ney
Latorraca e Edy Botelho e Terra em TracircnsitoQueen Liar (2007) no qual a atriz Fabiana
Giugli contracena com um boneco de luva representando o pescoccedilo e a cabeccedila de um cisne
projetada para fora de uma das paredes do cenaacuterio (Figura 8)
Cariad Astles recorda e comenta um famoso vaticiacutenio de Henryk Jurkowski
Parece portanto que o conceito do termo ldquoteatro de bonecosrdquo foi alargado
de tal forma que a noccedilatildeo de interdisciplinaridade jaacute eacute inerente a ele Henryk
Jurkowski sugeriu em seu livro Metamorfose que a arte do teatro de bonecos
estaria possivelmente se tornando obsoleta em sua utilizaccedilatildeo no teatro vivo e
na relaccedilatildeo com outras formas artiacutesticas e que certamente o corpo do boneco
tornou-se diferente (ASTLES 2008 p54)
Para Jurkowski a anexaccedilatildeo do teatro de bonecos por parte do que ele chama de ldquoteatro
vivordquo eacute um caminho para a obsolescecircncia Astles jaacute entende esse teatro agrave luz dos cruzamentos
expressivos que propicia
A suposiccedilatildeo de uma dupla consideraccedilatildeo do teatro de bonecos como modalidade
espetacular autocircnoma e como linguagem incorporada ao teatro contemporacircneo eacute uma das
indagaccedilotildees que assombra este trabalho tendo como ponto de vista a consideraccedilatildeo da
animaccedilatildeo como ferramenta operativa de conjunccedilotildees transdisciplinares O estudo de cenas e
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Figura 5 Robert Wilson The CIVIL warS
Fonte (http123nonstopcompicturesRobert_Wilson_and_the_Civil_Wars)
Foto New Yorker Films
Figura 6 Tadeusz Kantor The dead class
Fonte (httpperfectionofperplexionwordpresscom20101102nyunnom-15)
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Figura 7 Impeacuterio das meias verdades (atriz Fernanda Torres)
Fonte (httpwwwfotologcombrleo221052164848)
Viacutedeo com esta cena disponiacutevel em lthttpvimeocom11676144gt (Viacutedeo 1)
Figura 8 Terra em tracircnsito (atriz Fabiana Giugli)
Fonte (httpgersonstevesbloguolcombrarch2006-10-01_2006-10-31html)
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procedimentos artiacutesticos de companhias dedicadas ao teatro de animaccedilatildeo em atividade no
Brasil pretende demonstrar como a animaccedilatildeo pode estar presente em procedimentos de
encenaccedilatildeoainda que natildeo se possa reconhecer de imediato dois de seus elementos nucleares o
boneco e o manipulador Uma vez que o atual teatro de animaccedilatildeo natildeo anima apenas bonecos
mas outros elementos constitutivos da cena teatral tais como o espaccedilo a luz objetos e
materiais variados o enredo a accedilatildeo os atores ndash e partes de atores ndash decorre desse acreacutescimo
de possibilidades de formas animaacuteveis uma ampliaccedilatildeo consideraacutevel nos diferentes
procedimentos de manipulaccedilatildeo Pois seraacute exatamente no ato de manipular e nas maneiras
como esse ato ndash e essa postura relacional com a mateacuteria da cena ndash integra heterogeneidades
que se fundaraacute a vocaccedilatildeo interdisciplinar do teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo tendo como
local de articulaccedilatildeo um tipo de artista que participa do evento espetacular com a sua presenccedila
com o seu potencial expressivo e com a sua subjetividade do mesmo modo como participa
com suas habilidades manipulativas
Este trabalho se potildee a investigar o entendimento de que as principais transformaccedilotildees
verificadas na arte da animaccedilatildeo brasileira das uacuteltimas quatro deacutecadas natildeo apenas entendem o
artista de animaccedilatildeo como dinamizador dos questionamentos presentes em procedimentos
investigativos da linguagem da animaccedilatildeo mas tambeacutem aproveitaram suas diferentes maneiras
de participaccedilatildeo como um provocador de temas para o atual teatro de formas animadas Da
mesma forma o trabalho buscaraacute natildeo perder a atenccedilatildeo sobre a potecircncia de significaccedilatildeo da
forma animada a partir da compreensatildeo de que as recentes transformaccedilotildees verificadas no
entendimento e na apresentaccedilatildeo da mesma captam e transfiguram o ator e seu corpo ateacute um
modo de percepccedilatildeo que transforma atores em objetos no entendimento da audiecircncia
Como esforccedilo inicial recuo dez anos antes da missiva de Feacutelix a uma ediccedilatildeo anterior
da mesma revista Mamulengo do ano de 1974 A revista apresenta dois artigos que merecem
alguma atenccedilatildeo Natildeo apenas por seus conteuacutedos mas pelo fato de haverem sido publicados
naquela que era a publicaccedilatildeo brasileira mais importante em teatro de animaccedilatildeo da eacutepoca
editada e chancelada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos mas tambeacutem pela
maneira como esses artigos faziam reverberar o panorama momentacircneo do teatro de bonecos
no Brasil
O primeiro dos artigos mencionados foi escrito pelo escultor e artista de animaccedilatildeo
sueco Michael Meschke que em um texto com um teor aberto de criacutetica poliacutetica defende a
livre experimentaccedilatildeo em teatro de bonecos como meio de conferir agrave proacutepria linguagem mais
projeccedilatildeo e reputaccedilatildeo Meschke exorta seus leitores especializados a aprofundarem a discussatildeo
objetivando a definiccedilatildeo seacuteria de uma esteacutetica para a arte do boneco Tal discussatildeo seria
31
importante para a derrubada de preconceitos nos campos da criaccedilatildeo da teacutecnica e da proacutepria
consideraccedilatildeo dos fundamentos da linguagem Juntamente a essa necessidade Meschke evoca
o espiacuterito criador e o desejo de comunicaccedilatildeo do artista como elemento de fundamental
importacircncia para os percursos de compreensatildeo e transformaccedilatildeo da arte da animaccedilatildeo Em suas
palavras
A forma deve estar subordinada ao exato ideal que um artista deseja
comunicar ao seu semelhante E aprofundando mais a esteacutetica em puppetry3
acaba significando eacutetica exemplificada pela nossa escolha de repertoacuterio
(MESCHKE 1974 p 7)
Ou seja para Meschke a vontade de expressatildeo do artista de animaccedilatildeo ainda que natildeo seja
exatamente um componente da definiccedilatildeo do que seria o teatro de bonecos natildeo pode ser
tolhido por cacircnones esteacuteticos riacutegidos que carecem ser reavaliados De fato seriam esses
desejos e seus meios de satisfaccedilatildeo que lanccedilariam as bases para se pensar o teatro de bonecos
em termos mais precisos ou ateacute mesmo renovados
E se aquele era de fato o ldquotempo de se erguer uma laacutepide sobre a confusa filosofia
titiriteira de falsas definiccedilotildees e presunccedilotildees de exclusividaderdquo (id p8) Meschke natildeo evita a
polecircmica ao montar uma lista de permissotildees muitas das quais evocando as praacuteticas que
despertaram o desgosto de Feacutelix
Portanto estabeleccedilamos que natildeo eacute crime
misturar bonecos com atores vivos
usar bonecos muito grandes ou muito pequenos
misturar bonecos com maacutescaras com danccedila oacutepera drama cinema
music-hall muacutesica pop etc
reduzir bonecos a atores de tamanho menor para efeito de perspectiva
gostar de Punch amp Judy de Kasper de Guignol ou qualquer nome
tenham
mostrar ou natildeo mostrar o manipulador e sua teacutecnica durante o
espetaacuteculo
trabalhar meses para atingir a perfeiccedilatildeo esteacutetica de um boneco ou usar
um foacutesforo como boneco (id p10)
O que haacute de mais interessante no texto de Meschke eacute o seu caraacuteter inclusivo Natildeo se trata de
uma condenaccedilatildeo das formas tradicionais de teatro de bonecos para em seu lugar exaltar a livre
experimentaccedilatildeo e a reforma do boneco teatral A insistecircncia na constituiccedilatildeo de uma esteacutetica
3 A traduccedilatildeo do artigo de Meschke natildeo assinada prefere manter em inglecircs o termo puppetry que possui
transposiccedilatildeo complicada para o portuguecircs Pode-se entender puppetry de maneira mais ampla como sendo a
arte do boneco em diversas de suas feiccedilotildees incluindo o trabalho de modelagem e construccedilatildeo ateacute aspectos de
treinamento dramaturgia e apresentaccedilatildeo sem deixar de lado os contextos tradicionais de onde emergem as
diversas manifestaccedilotildees dessa linguagem espetacular Uma traduccedilatildeo simples para o portuguecircs seria teatro de
bonecos (natildeo se usam termos bonecaria ou bonecada) devido o variado escopo de aproximaccedilotildees e funccedilotildees que
o termo sugere No entanto cabe aqui a duacutevida quanto agrave eficaacutecia do termo motivada pela incerteza se as
manifestaccedilotildees artiacutesticas do tipo de boneco por ele evocado seriam de fato restritas ao teatro
32
para o teatro de bonecos tem como finalidade principal encontrar os princiacutepios que regem as
manifestaccedilotildees entendidas de uma forma ou de outra como tal propondo uma reflexatildeo acerca
de fundamentos que definam e harmonizem suas variadas formas
Seguindo adiante na mesma ediccedilatildeo de Mamulengo deparamo-nos com outro texto uacutetil
para o entendimento do contexto que suscitou a referida carta de Feacutelix Trata-se de uma
reflexatildeo sobre experimentaccedilotildees da companhia francesa Theacuteacirctre sur le fil feita por Charles
Monastier acerca do uso da manipulaccedilatildeo de bonecos e objetos em cena com manipuladores agrave
vista O texto de Monastier eacute proacutedigo em apontamentos e reflexotildees acerca de modos e
implicaccedilotildees do emprego do animador agrave vista sendo que duas das questotildees apontadas parecem
ser especialmente caras ao tipo de reflexatildeo que tento encadear no momento A primeira
questatildeo eacute uma informaccedilatildeo que apesar de apresentar acuidade questionaacutevel natildeo deixa de
apontar para questotildees importantes Monastier sugere uma data aproximada para a expansatildeo do
emprego do animador agrave vista em praacuteticas na Europa quando em 1974 declara que ldquohaacute mais
de quinze anos ele [o boneco] natildeo evolui mais em campo fechadordquo (MONASTIER 1974
p13) Assim de acordo com Monastier desde finais da deacutecada de 1950 pelo menos jaacute se
viam iniciativas artiacutestica em teatro de bonecos nas quais o boneco se apresentava fora da
estrutura do castelet4 levando o artista de manipulaccedilatildeo a aparecer diante do puacuteblico Essa
dataccedilatildeo eacute de certa maneira corroborada por Jurkowski que situa na mesma deacutecada de 1950 o
iniacutecio da ldquoruptura do teatro de bonecos com sua poeacutetica tradicionalrdquo (JURKOWSKI 2000
p56) Essa dataccedilatildeo parece ndash e de fato eacute ndash bastante questionaacutevel sobretudo se a apoiarmos
exclusivamente sobre o advento do manipulador agrave vista Eacute possiacutevel que o momento indicado
por Monastier e Jurkowski tenha de fato visto o surgimento de um conjunto de fatores dos
quais a exposiccedilatildeo do manipulador pode ser tanto causa como consequecircncia que levou
algumas companhias e artistas a fazer um teatro de bonecos capaz de indagar com maior
virulecircncia as concepccedilotildees e os meios de criaccedilatildeo e produccedilatildeo anteriores No entanto o mero
emprego do operador de bonecos agrave vista do puacuteblico eacute tatildeo antigo quanto o proacuteprio teatro de
bonecos seja no ocidente ou no oriente
Mais adiante em seu artigo Monastier menciona o modo como a plateia percebe o
boneco operado por artistas postos a vista
Agrave confissatildeo do homem que age corresponde a confissatildeo da materialidade do
boneco ele eacute um objeto e essencialmente mateacuteria bruta inerte isolada Sua
significaccedilatildeo nasce da intenccedilatildeo e do gesto do manipulador Havendo um
homem haveraacute certamente um objeto (idem)
4 A casinha ou aparato de ocultaccedilatildeo e apoio para cenaacuterios empregado mais usualmente para bonecos de luva No
Brasil pode adquirir os nomes de empanada ou tolda
33
Se isso eacute verdade entatildeo a apariccedilatildeo do ator operador5 de bonecos sobre a cena parece se dar
com a forccedila de um balde de aacutegua fria sobre as expectativas da plateia de maravilhar-se com a
impressatildeo de vida que se confere a figuras moacuteveis De fato se retornarmos agraves queixas de
Feacutelix podemos perceber que o que se propotildee aqui eacute uma alteraccedilatildeo na maneira como bonecos
satildeo percebidos em cena No teatro de bonecos acerca do qual Monastier discorre deixamos de
nos encantar com a impressatildeo de vida projetada sobre objetos para encantarmo-nos com outra
coisa ou natildeo nos encantarmos em absoluto No entanto eacute possiacutevel mesmo que haja potecircncias
a serem explicadas a respeito da exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo de objeto do boneco teatral
O trabalho do Theacuteacirctre sur le Fil companhia mencionada por Monastier e fundada por
ele e sua mulher Colette Monastier notabilizou-se como pode ser verificado em uma
passagem pelo Brasil no ano de 1973 pelo emprego de figuras bidimensionais apoiadas sobre
dois fios presos em paralelo atravessando a frente do palco e como os atores manipulando as
formas agrave vista do puacuteblico (Figura 9) Eacute claro que a percepccedilatildeo do caraacuteter de objeto nos
elementos trabalhados pelo Theacuteacirctre sur le Fil encontram-se mais em evidecircncia sobretudo se
percebidos em conjunto com o artista No entanto natildeo parece que o emprego do operador
aparente usado em meio a um processo de realce do caraacuteter de objeto do boneco perca em
validade se nos dispusermos a buscaacute-lo em trabalhos nos quais as formas dos bonecos se
aproximam das de figuras vivas encontradas na natureza Um exemplo que se afasta bastante
dos materiais e formas do Theacuteacirctre sur le Fil e por isso mesmo interessante eacute o trabalho do
artista de bonecos de fios Phillip Huber6(Figura 10) que em geral se apresenta de peacute sobre o
palco desprovido de cenaacuterio (mas iluminado de modo a enfatizar o boneco) e faz com que
variados tipos de cabareacute apresentem seus nuacutemeros individuais apoiados diretamente sobre o
chatildeo do palco Um de seus personagens mais populares eacute o do cachorrinho Taffy que
Curioso notar o quanto a exibiccedilatildeo do manipulador para os casos ateacute entatildeo abordados eacute
capaz de produzir uma percepccedilatildeo em movimento uma maneira de entender o boneco em
conjunccedilatildeo com diversos outros elementos que por vezes podem ateacute mesmo deixar de lado o
5 A escolha pouco usual do termo operador em lugar de termos mais usuais como manipulador animador
marionetista ou bonequeiro para designar o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco se daacute em primerio
lugar por empreacutestimo a Steve Tillis (1992) e se daacute a partir da necessidade de um emprego terminoloacutegico que
desse conta de identificar o tipo de artista abordado em meio a um questionamento acerca da pertinecircncia das
palavras mais usadas para identifica-lo Natildeo se trata de uma nova proposta de definiccedilatildeo e sim de um ldquotermo de
passagemrdquo que pudesse dar conta da funccedilatildeo abordada em meio a um exerciacutecio de discussatildeo de uma
terminologia em revisatildeo 6 O espetaacuteculo Huber Marionetes foi assistido em 2006 no teatro SESI da Av Paulista como parte das atraccedilotildees
do Festival SESI Bonecos do Brasil e do Mundo daquele ano
34
Figura 9 Theacuteacirctre sur le fil Oiseau Vole
Fonte (AMARAL Ana Maria Teatro de formas animadas Satildeo Paulo Edusp 1993 (Texto amp Arte 2) P148
Foto Monastier
Figura 10 Phillip Huber no Festival de Teatro de Bonecos de
Canela 2010
Fonte
(httpwwwipernitycomdoccaroani|RCA3Boff3D162r[vi
ew]=1)
Foto Carlos Roani
Figura 11 Taffy (Phillip Huber)
Fonte
(httpwwwpuppetrymuseumorgIPM-
exhibit12html)
35
proacuteprio boneco e que propotildee uma leitura desse sujeito da cena de modo a natildeo o estabilizar
numa forma ou num lugar cecircnico
Essa mesma percepccedilatildeo dinacircmica pode ser provocada por espetaacuteculos de companhias
que praticam o que se convencionou chamar de manipulaccedilatildeo direta7 por exemplo Peer Gynt
da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo nas quais os movimentos dos bonecos imitam de modo
intencional e com certo apuro o gesto humano Os manipuladores postos agrave vista do puacuteblico
tendem a criar uma narratividade dividida na qual a histoacuteria dos bonecos se soma agrave accedilatildeo dos
manipuladores de modo a produzir uma narrativa composta Essa mesma narrativa pode por
meio da qualidade da accedilatildeo dos atores que operam os bonecos fazer esses niacuteveis coincidirem
eventualmente A inevitaacutevel identificaccedilatildeo por parte do puacuteblico da personagem representado
pelo boneco com os manipuladores sobretudo aquele responsaacutevel pela vocalizaccedilatildeo da
personagem contribuem para tornar ainda mais complicada a tentativa de se entender a
personagem como uma forma cecircnica individualizada (Figura 12) Para o espectador entatildeo as
personagens mostradas na montagem transitam entre as diferentes possibilidades apresentadas
pela encenaccedilatildeo ndash ator boneco combinaccedilotildees entre atores bonecos e demais objetos de cena ndash
e a sua proacutepria imaginaccedilatildeo liberada que estaacute pela vertiginosa gama de modos de
entendimento A montagem em questatildeo se relaciona com a temaacutetica do boneco tornado coisa
diante da presenccedila do operador agrave mostra pois que lida com certa alternacircncia de usos de alguns
dos bonecos da peccedila ndash sobretudo aqueles que representam o protagonista do poema ibseniano
ndash entre a sugestatildeo de vida apresentada por meio de uma manipulaccedilatildeo esmerada e certa
qualidade indicativa como quando pousa inerte agrave frente ou sobre um dos ombros do ator que
o vocaliza para autorizaacute-lo a falar em seu nome De fato o Peer Gynt da PeQuod atende de
modo mais completo agraves indicaccedilotildees de Monastier quando ativa poeticamente determinados
objetos ao combinaacute-los aos atores para criar elementos percebidos como objetos compostos e
natildeo como atores caracterizados Assim ocorre com os convidados da festa de casamento
cujas cabeccedilas satildeo sacos de pano sem expressotildees faciais (Figura 13) assim ocorre com a noiva
abandonada montada de um grande veacuteu que pende do alto do teatro recobrindo a atriz que daacute
a entrever sua nudez por meio das camadas de renda franzida (Figura 15) assim ocorre com o
belicoso personagem Aslak um roupatildeo de lutador de boxe vestido por um ator posicionado
constantemente de costas para a plateia (Figura 14)
7 Esta seria uma forma de manipulaccedilatildeo de bonecos antropomoacuterficos em escala reduzida sem o emprego de varas
ou fios com os manipuladores podendo ser ateacute trecircs por boneco posicionados atraacutes dos bonecos Geralmente eacute
praticada sobre um balcatildeo Mas exemplos haacute como o de alguns espetaacuteculos do Grupo Contadores de Estoacuterias
nos quais os bonecos satildeo operados diretamente sobre o chatildeo do palco
36
Provocar a percepccedilatildeo do boneco como objeto pode assim estimular uma ampliaccedilatildeo de
possibilidades de leitura abrir ao puacuteblico a chance de participar de sua construccedilatildeo por meio
de escolhas particulares Ou como apresenta Monastier
Para noacutes natildeo se trata tanto de narrar uma histoacuteria a partir de elementos preacute-
construiacutedos como de oferecer propostas de animaccedilatildeo de figuraccedilatildeo de
situaccedilatildeo ldquosem nada que pese ou que se exibardquo As sugestotildees permanecem
em suspenso [] Trata-se de em vez de apresentar uma coisa acabada
propor o sorriso inacabado de Buda cabe a cada um completaacute-lo se quiser
com suas proacuteprias riquezas (idem)
O objeto visto como coisa aliado agrave visibilidade do artista que o opera ou ldquoque lhe daacute
significadordquo permite entatildeo que se apresentem enredos e sujeitos ainda por serem
completados insere lacunas que retiram a linearidade da apresentaccedilatildeo teatral e transforma a
figuraccedilatildeo dos sujeitos da narrativa em propostas e aleacutem disso propotildee uma percepccedilatildeo do ator
como sendo o objeto ou parte do objeto que atua Mas de que maneira isso ocorre
Prosseguimos investigando as transformaccedilotildees na arte do boneco tendo como ponto de
partida o problema apontado por Feacutelix Creio que neste momento para poder compreender
melhor os motivos que suscitaram a existecircncia do nosso ponto de partida argumentativo seraacute
importante antes de nos debruccedilarmos sobre os problemas e as transformaccedilotildees conceituais das
noccedilotildees de boneco teatral e teatro de bonecos olhar de relance para o panorama do teatro de
bonecos brasileiro agrave eacutepoca da admoestaccedilatildeo de Feacutelix de modo a buscar entender quais seriam
as manifestaccedilotildees e materiais que estariam sendo considerados ou desconsiderados como
teatros de bonecos e bonecos teatrais
37
Figura 12 PeQuod Peer Gynt ndash Desvio de foco (atores Maria Rego Barros Mario Piragibe e Marcio
Newlands)
Fonte DVD Peer Gynt (2006)
A divergecircncia de foco do ator que vai do boneco em direccedilatildeo ao puacuteblico durante a fala produz uma
duplicaccedilatildeo da percepccedilatildeo da personagem
Figura 13 PeQuod Peer Gynt ndash Festa de
casamento (atores Miona Vilardo Marcio
Nascimento Marcio Newlands e Liliane Xavier)
Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)
Figura 14 PeQuod Peer Gynt ndash Aslak (atores
Mario Piragibe Maria Rego Barros Liliane Xavier e
Marcio Newlands)
Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)
Figura 15 PeQuod Peer Gynt ndash A Noiva (atriz Maria Rego Barros)
Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)
38
22 Visotildees de um panorama
O ano de 1974 ano de publicaccedilatildeo dos artigos de Monastier e Meshke insere no
repertoacuterio teatral brasileiro uma montagem que lidou com absolutamente todos os pontos
centrais de argumentaccedilatildeo dos dois artigos mencionados E que de fato possui para o teatro de
animaccedilatildeo e para o teatro infantil feitos no Brasil uma importacircncia que extrapola em muito o
atendimento agraves demandas poeacuteticas apresentadas
A estreacuteia de Histoacuteria de Lenccedilos e ventos em maio daquele ano foi ldquoum divisor de
aacuteguas no teatro infantil feito no Rio de Janeiro e tambeacutem no paiacutesrdquo (VELLINHO 2009 p31)
A peccedila foi a primeira de um grupo teatral receacutem-formado dirigido por Ilo Krugli apoacutes um
retorno traumaacutetico do Chile quando o trabalho com uma companhia em Santiago foi
brutalmente interrompido pelo golpe pinochetista O retorno do argentino Krugli ao Brasil
onde jaacute possuiacutea um trabalho em artes e educaccedilatildeo consolidado foi marcado pelo trauma do
golpe e pelo encontro com uma realidade local igualmente violenta
Voltando do Chile com a sensaccedilatildeo do drama vivido a destruiccedilatildeo de sonhos
e de vidas um ator de meu grupo de teatro em Santiago que se chamava
Manos que quer dizer matildeos e irmatildeos um ator havia morrido e tambeacutem
tinham morrido os sonhos e ateacute um presidente eleito pelo voto direto do
povo [] Aqui voltando eu natildeo tinha grupo natildeo tinha nada Meu trabalho
com o grupo que tinha criado uma escola ndash o NAC ndash tinha acabado meu
trabalho de bonecos que era o Teatro de Ilo e Pedro8 tinha acabado soacute tinha
algumas poucas pessoas em volta que eram alunos ou companheiros de
aventura de vida e de vivecircncias como o Beto Coimbra o Caiacuteque [Botkay]
a Siacutelvia Aderne E assim em doze dias nasce explosivamente para levar a
um festival no Paranaacute o espetaacuteculo E nasce o grupo9
A maneira explosiva como o espetaacuteculo eacute montado combinado ao emprego de uma
esteacutetica artesanal e de ecircnfase sobre o trabalho das matildeos aplicada por Krugli em experiecircncias
anteriores como A histoacuteria de um barquinho de 1972 faz de Histoacuteria de Lenccedilos e ventos um
espetaacuteculo que prima pela invenccedilatildeo criando personagens com pedaccedilos de papel lenccedilos e
outros objetos livremente manuseados pelos atores
A histoacuteria trata de um pequeno lenccedilo azul de nome Azulzinha que levado pelo Vento
da Noite acaba prisioneira do Rei Metal Mau em sua fortaleza na Cidade Medieval Outro
personagem um pedaccedilo de jornal chamado Papel empreende uma jornada para resgatar
Azulzinha passando por perigos e ateacute mesmo a sua proacutepria imolaccedilatildeo ateacute retornar com o
lencinho ao quintal onde a histoacuteria comeccedilou
8 Ilo se refere aqui ao grupo que formou em parceria com o artista plaacutestico e ator argentino Pedro Turon
Dominguez chamado Teatro Ilo e Pedro 9 Programa do evento 10 anos de Ventoforte p 34
39
Esse enredo aparentemente simples mas que eacute repleto de citaccedilotildees e provocaccedilotildees ao
ambiente poliacutetico do momento10
eacute encenado com grande liberdade discursiva na qual os
atores empunham os objetos para atribuir-lhes falas e accedilotildees apresentam canccedilotildees e transitam
entre personagens e narradores de modo a apresentarem uma poeacutetica que se afasta de
qualquer expectativa mais usual para a apreciaccedilatildeo de teatro de bonecos de modo a propor ao
objeto em cena um estatuto surpreendente
Um dos (diversos) momentos do espetaacuteculo onde esse estatuto era exercido com
grande clareza era o momento em que se construiacutea o dragatildeo que levaria Papel agrave Cidade
Medieval para o confronto final com o rei Metal Mau Os lenccedilos aprisionados pelas forccedilas do
vilatildeo eram libertados pelos atores e com eles formava-se um dragatildeo com os panos e os atores
que os empunhavam ajudados por parte da plateia chamada a participar desse momento11
A construccedilatildeo de elementos momentaneamente criadas a partir de objetos disponiacuteveis
muitos deles industrializados que se refuncionalizam dentro do espetaacuteculo mediante a
necessidade da narrativa recriam a percepccedilatildeo do objeto que apesar de afirmar a sua
materialidade em seus aspectos intriacutensecos e em sua polivalecircncia semacircntica se abre em
diversas possibilidades de significaccedilatildeo produzindo assim para o espectador um novo estado
de surpresa que natildeo se relaciona mais com o espanto de uma aparecircncia de vida imaginada
Ainda ao tratar com os materiais como trata Krugli lanccedila questotildees interessantes sobre o
conceito de boneco teatral de modo a clarear ao leitor de certa forma um pouco da intenccedilatildeo
de Feacutelix na carta cuja menccedilatildeo abre este trabalho ao lamentar-se da ausecircncia de bonecos no
teatro de bonecos Parece que de certa forma o que Feacutelix chama de boneco natildeo eacute exatamente
a mesma coisa que chamaria Krugli ou mesmo Monastier
Malgrado a necessidade praacutetica de montar o espetaacuteculo em pouco tempo e com poucos
recursos disponiacuteveis a opccedilatildeo de Krugli pelo investimento em uma poeacutetica de despojamento e
sugestatildeo em oposiccedilatildeo ao emprego de recursos mais notadamente figurativos natildeo se encontra
apenas condicionada a esses fatores sendo tambeacutem a expressatildeo de uma vontade esteacutetica
Provas do que se afirma estatildeo no fato de que diversos dos recursos referentes agrave composiccedilatildeo
das personagens e do manuseio de materiais empregados em Lenccedilos e ventos jaacute se
encontravam em um espetaacuteculo anterior A histoacuteria de um barquinho (VELLINHO 2009 p
34) Outro elemento que trata do uso dos lenccedilos e papeacuteis como uma escolha esteacutetica e natildeo
10
Uma anaacutelise detalhada de passagens e declaraccedilotildees que explicam o teor poliacutetico da peccedila pode ser encontrada
em VELLINHO 2008 pp 72-89 11
Uma descriccedilatildeo mais detalhada desse momento da peccedila encontra-se em VELLINHO 2009 pp84-5
40
apenas uma soluccedilatildeo praacutetica encontra-se justamente no iniacutecio da peccedila Vellinho descreve esse
momento nos seguintes termos
Na verdade haacute um outro espetaacuteculo de bonecos que deveria ser
apresentado Jaacute havia uma histoacuteria pronta para ser contada Poreacutem Manuel e
Manuela protagonistas dessa histoacuteria depois de danccedilas perseguiccedilotildees e gags
tiacutepicas do tradicional teatro de bonecos decidem encerrar-se em uma mala
[] finalizando bruscamente o evento teatral O motivo dado pelos dois
bonecos eacute o de que eles descobriram que haacute atores de verdade que iratildeo
compartilhar o espetaacuteculo com eles Diante disso a dupla indignada resolve
abortar a apresentaccedilatildeo trancando-se na mala (VELLINHO 2009 p 48)
Apoacutes a recusa dos bonecos em participar do espetaacuteculo os atores passam a se indagar o que
fazer e comeccedilam a retirar lenccediloacuteis e papeacuteis de lugares diferentes do espaccedilo de representaccedilatildeo
ldquocomo um jogo maacutegicordquo (KRUGLI 2000) e assim a linguagem da peccedila se estabelece diante
do puacuteblico afirmando os materiais empregados como elementos potentes para a representaccedilatildeo
em curso Ainda ao apresentar os lenccedilos em substituiccedilatildeo aos bonecos de luva que compotildeem
seu iniacutecio a peccedila dota esses materiais de um estatuto que os diferencia de partes de cenaacuterio
figurino ou mesmo de adereccedilos Os lenccedilos representam personagens da trama contada
aproximando-se assim muito mais do boneco teatral ndash ou de partes de bonecos teatrais ndash do
que de elementos indicativos empunhados pelos atores
Assim Histoacuteria de Lenccedilos e ventos empresta bastante clareza ao tipo de indagaccedilatildeo que
venho fazendo a respeito do suposto desaparecimento dos bonecos do teatro de bonecos natildeo
apenas devido ao evidente diaacutelogo que estabelece com os artigos de Meschke e Monastier ndash e
de certa forma de Feacutelix ndash mas tambeacutem pelo efeito que o espetaacuteculo causa no panorama do
teatro no Brasil adquirindo grande popularidade e fazendo escola em meio a outros artistas
interessados tanto em teatro para crianccedilas como em teatro de bonecos Miguel Vellinho
menciona as diversas criacuteticas favoraacuteveis ao espetaacuteculo aleacutem de haver conseguido dois feitos
dignos de nota O primeiro sendo a publicaccedilatildeo de um texto dedicado agrave peccedila pelo criacutetico Yan
Michalski que sendo ele o responsaacutevel pelo material dedicado a teatro para adultos do Jornal
do Brasil dimensiona a raridade do gesto sobretudo se levarmos em conta a proverbial
tendecircncia a se considerar o teatro para crianccedilas como uma vertente inferior da arte teatral12
A
segunda conquista foi uma recomendaccedilatildeo (em ldquocaraacuteter extraordinaacuteriordquo) ao espetaacuteculo por
parte da ACCT ndash Associaccedilatildeo Carioca de Criacuteticos de Teatro devido agrave sua excelecircncia e
competecircncia
12
Em seu livro O Teatro sob pressatildeo Michalski aponta Histoacuteria de Lenccedilos e ventos como sendo ldquouma pequena
obra primardquo em meio a uma temporada teatral (1974) onde ldquoo melhor forma os cenaacuteriosrdquo (MICHALSKI 1989
p 60-1)
41
Figura 16 Teatro Ventoforte Histoacuteria de lenccedilos e ventos (ator Ilo Krugli)
Fonte (CEDOCFunarte apud VELLINHO 2008)
Figura 17 TeatroVontoforte A histoacuteria de um barquinho Personagens Pingo I e Aranha
Fonte Programa Ventoforte 10 anos
As personagens dos espetaacuteculos do Ventoforte satildeo construiacutedos a partir de materiais brutos como papel tecidos
e objetos (tais como o guarda-chuva da Figura 16) A presenccedila dos atores eacute importante na configuraccedilatildeo das
personagens como se vecirc na Figura 17 em que as matildeos dos atores satildeo ou compotildeem as formas animadas
42
Os espetaacuteculos seguintes do grupo Ventoforte como De Metade do Caminho ao Paiacutes do
Uacuteltimo Ciacuterculo e As quatro chaves acompanharam os mesmos impulsos esteacuteticos expressos
em Lenccedilos e ventos Quando parte da companhia mudou-se do Rio de Janeiro para Satildeo Paulo
alguns integrantes remanescentes montaram o grupo Hombuacute que com espetaacuteculos como A
gaiola de Avatsiuacute e Fala palhaccedilo permaneceram montando espetaacuteculos com convivecircncias
entre bonecos atores e objetos
Deve-se nesse ponto deixar claro que Histoacuteria de Lenccedilos e ventos serve para esta
pesquisa como um ponto de localizaccedilatildeo de uma experiecircncia bem-sucedida e de ampla
repercussatildeo no panorama brasileiro de teatro de animaccedilatildeo capaz de despertar outras
iniciativas e provocar discussotildees acerca das possibilidades de emprego do boneco teatral
Seria precipitado e leviano buscar na peccedila algo como um marco histoacuterico para o emprego de
teacutecnicas e linguagens e ateacute mesmo redutor buscar reconhecer o valor da peccedila a partir de uma
perspectiva de desbravamento ou ineditismo O que suscitou no trabalho do Ventoforte o seu
poder de levantamento de questotildees e modelamento parcial do panorama do teatro para
crianccedilas e do teatro de bonecos feito no Brasil foi a qualidade de suas ideias e de sua poeacutetica
cecircnica capazes de dialogar em niacutevel direto com movimentos artiacutesticos e poliacuteticos em
processo dentro e fora do paiacutes ao mesmo tempo em que apresentavam de modo eficiente
alternativas para a forma de dispor sobre a cena o artista de animaccedilatildeo e o boneco teatral
Da mesma maneira eacute impreciso apontar o trabalho do Ventoforte como uma voz
solitaacuteria em meio a um panorama de todo aacuterido do teatro de bonecos feito no Brasil Um ano
antes da estreacuteia de Lenccedilos e ventos em 1973 eacute fundada a Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de
Bonecos ndash ABTB criada segundo nos conta Humberto Braga por um desejo maior de
integraccedilatildeo entre artistas e companhias brasileiras notada apoacutes experiecircncias colhidas pelas trecircs
ediccedilotildees anuais sucessivas do Festival de Marionetes e Fantoches do Rio de Janeiro (1966 a
1968) organizadas por Clorys Daly e Claacuteudio Ferreira (BRAGA 2007 p 253 amp 2009 p113
MAMULENGO 1973 p 11-3) Da criaccedilatildeo da associaccedilatildeo decorreu no mesmo ano a
primeira ediccedilatildeo da revista Mamulengo dedicada a informes da ABTB a divulgar material das
companhias brasileiras em atividade e a publicar artigos reflexivos e informativos de artistas
brasileiros e estrangeiros Em seu segundo ano de publicaccedilatildeo no terceiro nuacutemero a revista jaacute
trazia os artigos anteriormente referidos neste capiacutetulo O movimento criado pela associaccedilatildeo
conduziu a um esforccedilo que culminou anos depois no estabelecimento de um circuito de
festivais dedicados agrave linguagem no paiacutes e provocou em 1976 a criaccedilatildeo de um setor de teatro
de bonecos no antigo Serviccedilo Nacional de Teatro ndash SNT
43
Entre as companhias que se destacaram ao longo desse periacuteodo eacute importante
mencionar duas natildeo apenas porque continuam em atividade mas pelo fato de apresentarem
trabalhos de destaque e que de certa forma semelhantes ao Ventoforte serviram de
influecircncia para geraccedilotildees posteriores O Teatro Giramundo criado em 1970 em Belo
Horizonte por Aacutelvaro Apocalypse Terezinha Veloso e Maria do Carmo Martins com um
trabalho voltado para o apuro escultoacuterico e a chegada ao Brasil em 1972 do casal Marcos
Caetano e Raquel Ribas apoacutes fundarem em Nova York onde faziam seus estudos em danccedila e
artes visuais o Grupo Contadores de Estoacuterias com espetaacuteculos-eventos nos quais misturavam
bonecos gigantes atores muacutesicos e materiais variados Com a estreacuteia de Mansamente em
1980 os Contadores de Estoacuterias datildeo uma guinada na carreira do grupo mudando o tom dos
espetaacuteculos para eventos mais intimistas e desenvolvendo uma linguagem bastante proacutepria
em manipulaccedilatildeo direta Esse momento tambeacutem marca a mudanccedila do casal para a cidade de
Paraty ao sul do estado do Rio de Janeiro sediando-se desde entatildeo no Teatro Espaccedilo
Dos exemplos mencionados pode-se perceber uma maior familiaridade entre as
poeacuteticas cecircnicas do casal Ribas e de Ilo Krugli uma vez que a julgar pelos percursos
descritos pelas companhias a partir da anaacutelise de seus repertoacuterios os usos de bonecos e
objetos acompanham em ambos os casos um desejo de ampliaccedilatildeo de possibilidades luacutedicas e
figurativas sobre a cena teatral Ou seja muito mais um desejo de se lidar com alternativas de
representaccedilatildeo teatral do que de identificar-se com tradiccedilotildees de temas e teacutecnicas relativas ao
que se poderia chamar de teatro de bonecos ou de animaccedilatildeo Perguntado sobre as diferenccedilas
de linguagem entre os Contadores de Estoacuterias e o Giramundo Marcos Ribas responde
O Giramundo eacute um grupo de teatro de bonecos Eles manipulam realmente
muito bem se especializaram nisso Jaacute os nossos bonecos satildeo o que satildeo
porque precisavam ser (RIBAS amp RIBAS 2009 p 30)
Tanto no que diz respeito agrave relutacircncia em identificar o seu trabalho com o teatro de bonecos
quando ao apontamento do fato de que os bonecos do grupo satildeo feitos com o tino de atender a
uma certa necessidade poeacutetica Marcos Caetano aponta para um desejo de expressividade
teatral que suplanta aquele que se encerra na dedicaccedilatildeo agrave linguagem do boneco Mas que natildeo
deve contudo ser entendido como um movimento de rejeiccedilatildeo agrave linguagem da animaccedilatildeo seu
legado e suas formas Ilo declara em uma entrevista concedida em 1984
Todo esse meu situar na procura do teatro de bonecos foi muito importante
como processo Foi atraveacutes dele que descobri o meu caminho para o teatro
para a linguagem dramaacutetica Pois tudo que estaacute ligado ao boneco direta ou
indiretamente estaacute vinculado agrave toda uma tradiccedilatildeo artesanal de teatro que eacute a
matildeo do homem que expressa fazendo o boneco os gestos E isto eacute rico eacute
importante Que as pessoas se expressem com bonecos ou sem eles
(KRUGLI 1984 p13)
44
Ainda que os diferentes percursos evidenciem uma distacircncia entre os desejos artiacutesticos
que movem Krugli e o casal Ribas o entendimento de que haacute um desejo de expressatildeo que
antecede agrave vontade de se lidar com bonecos e objetos os define menos como artistas de teatro
de bonecos e mais como artistas de teatro para quem a animaccedilatildeo eacute uma alternativa expressiva
instigante e presente mas natildeo obrigatoacuteria
Quando Vellinho reconhece na esteacutetica de Lenccedilos e ventos relaccedilotildees do trabalho de
Krugli com ldquopressupostos de Brecht e Grotowski que era naquele periacuteodo a voz
instauradora de uma nova ordem do fazer teatralrdquo (VELLINHO op cit p20) busca apontar
para o fato de que Krugli antes de ser um artista de animaccedilatildeo era um artista de teatro atento
agraves questotildees que mobilizavam os impulsos transformadores do teatro de seu tempo Natildeo se
pode contudo ignorar as origens de Krugli ndash e de Rachel Ribas ndash no que diz respeito a sua
formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo em artes visuais o que nas deacutecadas de 1960 e 1970 encontrava uma
interface mais ampla com os movimentos de contracultura sobretudo no que diz respeito ao
questionamento do emprego de suportes estaacuteveis para as diferentes linguagens artiacutesticas
As influecircncias tanto de Ilo Krugli como de Marcos Caetano e Rachel Ribas sobre o
panorama do teatro de animaccedilatildeo no Brasil natildeo seratildeo vistas de imediato nos anos que se
seguiram agrave estreacuteia de Historia de Lenccedilos e ventos que ainda dependeraacute de uma estrutura de
circulaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos de animaccedilatildeo pelo Brasil o que iraacute acontecer
vagarosamente ao longo da deacutecada de 1970 mas com ligeiro crescimento ao longo da deacutecada
de 1980 Aleacutem disso as experiecircncias transmitidas por essas companhias seratildeo somadas agraves de
companhias norte americanas e europeias que visitaratildeo o paiacutes em meio ao processo de
consolidaccedilatildeo da rede de festivais e mostras dedicadas ao teatro de animaccedilatildeo
Confiante de que o contexto histoacuterico no qual se publica o artigo de Feacutelix esteja
suficientemente explicado ao menos a ponto de justificar o prosseguimento de uma anaacutelise
mais conceitual passemos pois a buscar entender alguns problemas teacutecnico-terminoloacutegicos
que as novas vontades mobilizadoras dos produtores de teatro de animaccedilatildeo trouxeram agrave tona
Primeiramente buscaremos entender o problema conceitual enfrentado pela manifestaccedilatildeo
teatral para em seguida buscar novas indagaccedilotildees para a compreensatildeo do que poderia ser
considerado boneco teatral
45
Figura 18 Contadores de Estoacuterias O bode e a onccedila (1971)
Fonte (httpwwwecparatyorgbr)
Figura 19 Contadores de Estoacuterias Pas-de-deux (1982)
Fonte (httpwwwecparatyorgbr)
46
23 Transformaccedilotildees
Haacute duas caracteriacutesticas ou eventos que parecem figurar entre os principais veiacuteculos
das transformaccedilotildees pelas quais passaram as artes do boneco desde as percepccedilotildees de
Jurkowski e Monastier presentes na queixa de Feacutelix e nas praacuteticas de Ilo Krugli no teatro do
casal Ribas e ateacute mesmo em alguns momentos do percurso do Giramundo Estas seriam as
questotildees do ldquodesaparecimento do boneco do teatro de bonecosrdquo sendo substituiacutedos por outras
formas e recursos de expressatildeo e do crescente emprego do operador agrave vista Se analisadas por
um determinado acircngulo pode parecer mesmo que essas duas caracteriacutesticas absorvem-se
mutuamente chegando a reduzirem-se a uma questatildeo uacutenica Satildeo poucas as vezes raras ateacute
em que uma praacutetica de diversificaccedilatildeo das formas e materiais animados natildeo eacute acompanhada
pelo emprego do artista de manipulaccedilatildeo agraves vistas do puacuteblico O espetaacuteculo Giz do Teatro
Giramundo apresenta bonecos em diversos tamanhos usualmente maiores que os
manipuladores que usam o espaccedilo do palco vazio sem aparatos de ocultaccedilatildeo de
manipuladores Muitos desses bonecos entram em cena apoiados em estruturas assemelhadas
a varais ou araras de figurino com ganchos e apoios para fios que os sustentam datildeo
operatividade agraves suas articulaccedilotildees (Figura 20) A maneira como se ocupa o espaccedilo da cena eacute
imposta pelas dimensotildees e estruturas manipulativas dos bonecos que solicita a exibiccedilatildeo do
operador13
Essa necessidade indissociavelmente teacutecnica e esteacutetica se impotildee de maneira
semelhante quando se emprega por exemplo objetos retirados diretamente do quotidiano
para serem inseridos em cena como elementos animaacuteveis ou formatos variados de construccedilatildeo
e operaccedilatildeo de formas animadas dentro de um mesmo espetaacuteculo
Ainda assim natildeo parece claro que o operador agrave vista seja indissociaacutevel agrave sensaccedilatildeo de
desaparecimento do boneco da cena de animaccedilatildeo e creio que as duas questotildees devam ser
tratadas separadamente
Jurkowski entende que juntamente com o emprego do manipulador agrave vista o teatro de
bonecos ocidental feito a partir da deacutecada de 1950 experimentou aquilo que ele chama de
ldquodiversidade dos meios de expressatildeordquo (JURKOWSKI 2000 p68) e seu exemplo mais
eloquente acerca dessa diversidade eacute a montagem feita em 1976 de Don Quixote dirigida por
Jan Krofta Na descriccedilatildeo da cena do flagelo do personagem central Jurkowski conta como a
encenaccedilatildeo combinava a accedilatildeo de atores com bonecos de diversos tamanhos e modos de
13
O espetaacuteculo Giz de fato pode ser considerado uma das experiecircncias mais ousadas do Giramundo que
mesmo sendo notabilizado pelo experimentalismo no desenho da cena e nos esforccedilos escultoacutericos nem sempre
excedeu os limites do palco montado para apresentaccedilatildeo e operaccedilatildeo de boneco com operadores ocultos
47
Figura 20 Teatro Giramundo Giz
Fonte (httpwwwgiramundoorgteatro
gizhtml)
Figura 21 Teatro Giramundo Giz
Fonte (httpwwwgiramundoorgteatro
gizhtml)
Figura 22 Teatro Giramundo Giz
Fonte (httpwwwflickrcomphotoslilianep2764016965inphotostream)
Foto Liliane Pelegrini
48
operaccedilatildeo e ainda objetos No Brasil encontramos bons exemplos de combinaccedilotildees de meios
expressivos em animaccedilatildeo nos jaacute mencionados trabalhos do Ventoforte mas haacute exemplos mais
recentes como as formas inusitadas de vestir e manipular que Osvaldo Gabrieli desenha para
trabalhos do grupo XPTO como por exemplo Coquetel Clown (1989) que emprega formas
que satildeo vestidas pelos atores podendo cobrir todo o seu corpo parte dele ou mesmo se dar
sobre a forma de apliques nas cabeccedilas ou membros Podemos mencionar tambeacutem as
experiecircncias com bonecos inflaacuteveis e artes circenses praticadas pela companhia Pia Fraus em
espetaacuteculos como Gigantes de ar (1998) e Bichos do Brasil (2001) Os inflaacuteveis trabalhados
pela Pia Fraus assumem formas e dimensotildees diferentes podendo ser maiores ou menores eu
seus manipuladores Mesmo as formas menores como as cobras de Bichos do Brasil (Figura
26) satildeo manipuladas agraves vistas e desprovidas de estruturas de apoio e controle agrave distacircncia
como varas ou fios Essa mesma companhia Pia Fraus no espetaacuteculo realizado em 2009
chamado Primeiras Rosas alterna momentos onde se empregam sombras animaccedilatildeo de
objetos bonecos de manipulaccedilatildeo direta e efeitos com viacutedeo Cabe notar que no exemplo de
Primeiras Rosas diferentemente do que ocorre na descriccedilatildeo de Jurkowski para o Quixote de
Krofta satildeo criados momentos especiacuteficos nos quais determinadas linguagens de animaccedilatildeo
satildeo trabalhadas O diretor da companhia Pia Fraus Beto Andreetta convidou outros trecircs
diretores ligados ao teatro de animaccedilatildeo solicitando que montassem cada um usando seus
estilos e competecircncias um quadro para o espetaacuteculo a partir de contos do livro Primeiras
Estoacuterias do escritor Joatildeo Guimaratildees Rosa14
O espetaacuteculo se organizou na disposiccedilatildeo
sucessiva das cenas trabalhadas em estilos e modos bastante diferentes entre si separadas por
uma espeacutecie de entreato montado por Wanderley Piras que sugeria a travessia de vales e rios
feitos por um boi um vaqueiro e seu cavalo com bonecos de manipulaccedilatildeo direta operados
sobre balcotildees moacuteveis com manipuladores agrave vista
As escolhas de Andreetta na disposiccedilatildeo dos discursos espetaculares em Primeiras
Rosas ampliam de certa forma as possibilidades descritivas do que Jurkowski aponta como
ldquovariedade de meios de expressatildeordquo Se por um lado pode-se argumentar (ainda que com
pequena chance de sucesso) que Primeiras Rosas dispotildee em sucessatildeo quadros
intrinsecamente homogecircneos e limitados em formas expressivas um pouco aos moldes do
teatro de variedades ao passo que o exemplo de Krofta dispotildee em simultaneidade suas
14
Assim consistiu a divisatildeo dos referidos quadros do espetaacuteculo 1 As margens da alegria direccedilatildeo de Alexandre
Faacutevero (Cia Teatro Lumbra) 2 A terceira margem do rio direccedilatildeo de Miguel Vellinho (PeQuod ndash Teatro de
Animaccedilatildeo) 3 O cavalo que bebia cerveja direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro (Teatro Muganga)
49
Figura 23 XPTO Coquetel Clown
(peixes)
Fonte (httpwwwxptobrasilcom)
Foto Beto Speeden
Figura 24 XPTO Coquetel Clown (futebol)
Fonte (httpwwwxptobrasilcom)
Foto Beto Speeden
Figura 25 Pia Fraus Gigantes do ar (1998)
Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)
Foto Gil Grossi
Figura 26 Pia Fraus Bichos do Brasil (2001) Na foto Beto Andreetta (agrave esquerda) e Beto Lima
(abaixado)
Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)
Foto Paquito
50
possibilidades expressivas construindo assim uma cena mais radicalmente heterogecircnea por
outro pode-se perceber o quanto a dinacircmica de sucessatildeo de cenas estilisticamente muito
diferentes entre si promove cortes evidentes na dinacircmica perceptiva do espectador O
espetaacuteculo por certa quantidade de vezes se refaz retorna a um alegado princiacutepio despista a
expectativa da plateia desfaz-se para se refazer com outra configuraccedilatildeo Eacute nesse caso a
amplitude de possibilidades figurativas existente no teatro de animaccedilatildeo o que permite com
que o transporte de um momento a outro do espetaacuteculo se decirc com a intensidade com que
ocorre Ao cabo do primeiro quadro feito com sombras projetadas sobre uma rotunda branca
que cobre todo o fundo do teatro verticais e diaacutefanas inicia-se o segundo montado com
pequenos bonecos de manipulaccedilatildeo direta de materiais e traccedilos rudes num transporte abrupto
e produtor de estranheza
Eacute curioso notar com que desenvoltura o teatro de animaccedilatildeo abriga uma ampla gama de
possibilidades figurativas e meios de expressatildeo e produccedilatildeo que aumentam em variedade de
acordo com a ampliaccedilatildeo das possibilidades teacutecnicas e tecnoloacutegicas ao alcance dos artistas
Podemos assim supor que a disposiccedilatildeo de se apresentar materiais e elementos diferentes sobre
a cena de animaccedilatildeo conduza agrave sensaccedilatildeo jaacute mencionada de ausecircncia do boneco do teatro de
bonecos e que tal praacutetica talvez natildeo seja provocada ao menos num plano conceitual pelo
emprego do animador agrave vista De fato o ator que opera bonecos numa cena que dispotildee
variados recursos e formas de animaccedilatildeo uma vez posto agrave vista do puacuteblico consegue transitar
com mais conforto e eficiecircncia entre as diferentes maneiras de inserir as formas animaacuteveis na
cena O ator se encontra assim integrado ao heterogecircneo da cena ou como forma de buscar
terminologia mais adequada o ator amplia com sua presenccedila esse caraacuteter de
heterogeneidade
Da mesma maneira uma cena que se proponha a investigar num contexto de teatro de
animaccedilatildeo certa amplitude de possibilidades de figuraccedilatildeo e teatralidade dificilmente ignoraria
o potencial teatral da figura do ator em meio agraves demais formas apresentadas explorando essa
presenccedila natildeo apenas do ponto de vista do teatro mas da proacutepria animaccedilatildeo de formas Mas
ainda haacute outras questotildees a serem levantadas
Quando em Lenccedilos e ventos os bonecos Manuel e Manuela se recusam a participar da
peccedila obrigam os atores a trabalharem com os materiais disponiacuteveis Assim o elenco recorre a
composiccedilotildees sugestivas provisoacuterias apoiadas por narraccedilotildees e canccedilotildees feitas entre objetos
materiais e atores Natildeo parece que este caso diga respeito a um emprego alternativo de
elementos para inseri-los numa determinada linguagem que descreve um percurso inusitado
de heterogeneizaccedilatildeo dos seus meios Ou seja natildeo se trata de usar a linguagem da animaccedilatildeo
51
num processo de substituiccedilatildeo do boneco teatral por outra coisa Parece mais que isso
estarmos diante de um exemplo de aproveitamento de uma linguagem expressiva capaz em
seus fundamentos de abrigar o heterogecircneo de modo a alterar o estatuto perceptivo dos
materiais em jogo para que estes assim se aproximem para o observador como sendo aquilo
que pode ser visto e entendido como boneco teatral Se isso for verdade e se essa verdade for
capaz de ser observada em outras tantas manifestaccedilotildees o boneco natildeo estaria sumindo do
teatro de bonecos mas reformulando-se ampliando seu estatuto e permeabilizando-se de
modo a incorporar formas materiais e combinaccedilotildees diversas
Em um artigo de 2008 a professora britacircnica Carad Astles trata de como o teatro de
animaccedilatildeo contemporacircneo eacute entendido como sendo uma linguagem vocacionada agrave
transdisciplinaridade e de como esse atravessamento de competecircncias e meios de expressatildeo
provoca uma atitude de migraccedilatildeo da animaccedilatildeo anteriormente vista sob a perspectiva do
exerciacutecio do controle sobre um boneco ou forma que representa uma personagem dramaacutetica
ateacute uma postura dedicada agrave cena teatral como um todo e que dessa forma constroacutei um
discurso pautado pela visualidade pelo manuseio de materiais e pela transitoriedade das
formas manipulaacuteveis Astles se reporta a essa postura atual como contribuinte para um
movimento de ldquoperda do corpo do bonecordquo (ASTLES 2008 p 55) tornando penoso o
trabalho de localizaccedilatildeo do boneco no teatro de bonecos
Ao inveacutes disso o corpo do boneco tem sido substituiacutedo por um corpo
multiplamente articulado criado a partir de diferentes fontes que geram seu
proacuteprio significado Com isso quero dizer que a figura unificada do boneco
tem sido substituiacuteda em muitos casos por sombras projeccedilotildees e tecnologia
multimiacutedia por objetos por mateacuteria e por accedilatildeo cecircnica animada que criam
sua proacutepria percepccedilatildeo do ldquocorpo do bonecordquo (idem p 53)15
Malgrado a percepccedilatildeo de que as transformaccedilotildees verificadas no teatro de animaccedilatildeo das uacuteltimas
deacutecadas acompanham um crescimento significativo de uma determinada qualidade de
presenccedila do ator operador de bonecos sobre a cena parece nesse momento precipitado
categorizar esse recurso para muito aleacutem de algo que apenas aconteceu com certa constacircncia
Imaginar o manipulador agrave vista como sendo um recurso provocador um articulador conceitual
importante ou mesmo algo que investe contra um sentido de pureza do teatro de bonecos natildeo
15
Astles emprega como um dos principais exemplos ao que o seu artigo apresenta o trabalho da companhia
inglesa Improbable Theatre que iraacute apresentar grandes semelhanccedilas com o que se tem falado acerca das poeacuteticas
do Ventoforte e do Teacuteacirctre sur le fil nos termos que se seguem ldquoOs bonecos e as criaccedilotildees animadas que eles
usam em seus espetaacuteculos frequentemente satildeo construiacutedos a partir de material bruto no palco agrave vista do puacuteblico
Portanto os bonecos satildeo vistos como corpos temporaacuterios que podem ser feitos e destruiacutedos em segundos como
parte do que existe agrave sua volta O Improbable trabalha muito com improvisaccedilatildeo buscando criar teatro a cada
segundo no palco Um espetaacuteculo antigo do Improbable chamado 70 Hill Lane usava fita adesiva e objetos para
narrar a histoacuteriardquo (idem p 57)
52
deve se dar senatildeo agrave luz de algumas outras questotildees tatildeo ou mais fundamentais para o
entendimento daquilo que o teatro de animaccedilatildeo em sua heterogeneidade e descontinuidade
pode ou aspira ser
Precisamos no entanto iniciar essa verificaccedilatildeo formulando uma primeira pergunta
que diz respeito agrave concepccedilatildeo de boneco teatral e agraves suas provaacuteveis transformaccedilotildees verificadas
ao longo das uacuteltimas deacutecadas e experiecircncias
53
231 O que eacute (e o que passou a ser) o boneco teatral
Buscar responder a essa pergunta eacute tambeacutem esforccedilar-se por buscar algumas bases
conceituais de um elemento da cena teatral para o qual jamais houve a proposiccedilatildeo de uma
esteacutetica que fosse unacircnime ou suficientemente abrangente O boneco estaacute atrelado ao longo de
sua histoacuteria a formatos e estruturas tradicionais tatildeo vibrantes quanto descontiacutenuas Suas
formas seus modos de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo as naturezas e configuraccedilotildees dos
espetaacuteculos a ele consagrados satildeo tantos tatildeo variados e diferentes entre si que mesmo uma
apreciaccedilatildeo pouco cuidadosa seria suficiente para por em seacuterias questotildees a existecircncia de uma
maneira de fazer ou apresentar que pudesse se arrogar como sendo ldquoteatro de bonecos
propriamente ditordquo Pois entatildeo vejamos entre os diferentes teatros de bonecos eacute possiacutevel
encontrar estreitas relaccedilotildees temaacuteticas com escrituras sagradas e com rituais religiosos como eacute
o caso das sombras indianas dos bonecos javaneses e tambeacutem de bonecos e descriccedilotildees de
apresentaccedilotildees recolhidos por Paul McPharlin (1969) acerca de comunidades nativas da
Ameacuterica do Norte e de fetiches da naccedilatildeo inuit mas tambeacutem apresentaccedilotildees apoiadas sobre a
burla chegando a limites de violecircncia e licenciosidade como ocorre com o Punch and Judy
da Inglaterra o Karagoumlz turco e ateacute mesmo ndash ainda que se atribuam a ele origens religiosas
(SANTOS 1979) ndash o Mamulengo do nordeste do Brasil
Bonecos podem ser construiacutedos de modo a buscar assemelhar-se agrave forma humana em
detalhes com membros articulados e detalhes esculturais como tambeacutem trazer a simplicidade
da sugestatildeo podendo ser feitos de pedaccedilos de materiais diversos por imitaccedilotildees anatocircmicas
incompletas ou ateacute mesmo por objetos ou combinaccedilotildees entre objetos encontrados
aleatoriamente Seus meios de manipulaccedilatildeo podem buscar uma delicada simulaccedilatildeo do
comportamento humano como se vecirc geralmente em alguns bonecos de fio representar de
maneira altamente estilizada movimentos vigorosamente beacutelicos ou sensuais como se daacute de
maneira geral com bonecos de luva ou ateacute mesmo encontrarem-se hieraticamente imoacuteveis ou
com grandes limitaccedilotildees de movimento de modo a indicar uma presenccedila sobre cena
complementada por uma narrativa pontual uma trilha caracteriacutestica uma situaccedilatildeo especiacutefica
se tanto
Haacute bonecos que se apresentam para multidotildees e bonecos que se apresentam para
pouquiacutessimas pessoas Haacute bonecos que tentar ludibriar a ilusatildeo do espectador com a perfeiccedilatildeo
de suas formas ou com a surpresa de seu jogo e bonecos que se afirmam objetos desde o
primeiro momento em que aparecem Haacute velhos bonecos realiacutesticos e novos bonecos de
54
Figura 27 Wayang purwa sombras javanesas (na imagem Srikandi mulher confiante e Sumbadra mulher
submissa)
Fonte (Puppetry International no 9 Strafford UNIMA-US 2001 p10)
Figura 28 Wayang golek boneco javanecircs de vara
Fonte AMARAL 1993 p86
55
Figura 29 Sombra indiana
Fonte (httpwwwpuppetryindiaorg)
Figura 30 Karagoumlz personagem de sombra turco
Fonte (AMARAL 1993 p76)
56
Figura 31 Mamulengos do nordeste brasileiro cena do degolado (bonecos de Mestre Luiz da Serra)
Fonte Revista Mamulengo no 9 Belo Horizonte ABTBSNT 1980 Capa
Foto Tuacutelio Feliciano
Figura 32 Punch o bebecirc e Judy
Fonte httpbopressminiaturebookscom
57
formas abstratas Mas os opostos tambeacutem existem Sempre existiram Haacute bonecos esculpidos
com apuro e bonecos que satildeo tocos de madeira grosseiramente pintados Bonecos mudos e
bonecos falantes Haacute bonecos Sempre houve bonecos feitos e apresentados das mais
diferentes maneiras e suas tradiccedilotildees histoacutericas e locais natildeo apontam para qualquer tipo de
desenvolvimento contiacutenuo e unacircnime em termos de formas ou temas num movimento que se
suporia evolutivo ou degenerativo
Por isso causa algum espanto a exortaccedilatildeo ao resgate do que seria ldquoo verdadeiro teatro
de bonecosrdquo pois que essa ldquoverdaderdquo sugerida natildeo iraacute aderir a um gecircnero espetacular
estritamente codificado e identificado mas sim a uma seacuterie descontiacutenua e agraves vezes
contraditoacuteria de elementos espetaculares encontrados em uma infinidade de manifestaccedilotildees de
natureza teatral explodida em tempo e espaccedilo atravessando culturas (e por elas atravessada) e
se manifestando com as mais variadas formas e temaacuteticas A imensa variedade de
manifestaccedilotildees do teatro de bonecos daacute a ver que qualquer busca por algum tipo de pureza do
gecircnero natildeo se daacute senatildeo como decorrecircncia de ignoracircncia ou daquela vontade hierarquizante
proacutepria de quem considera a existecircncia de culturas superiores e inferiores
O problema teoacuterico do estabelecimento de uma esteacutetica ao mesmo tempo coesa e
abrangente que se apresenta diante da atestaccedilatildeo da grande variedade de formas do teatro de
animaccedilatildeo eacute fruto dos estudos de Tillis (1992) e Plassard (1991 1992) aleacutem de constituir-se
na pergunta (o que eacute o boneco teatral) para cuja resposta pretende-se apontar caminhos neste
momento do trabalho
Um primeiro momento dessa articulaccedilatildeo considera a apreciaccedilatildeo que Yvonne Jean faz
acerca das marionetes de fio da Antueacuterpia (1955) Seu estudo eacute cronologicamente anterior a
diversas reflexotildees e experimentaccedilotildees com o boneco teatral que norteiam o pensamento que
aqui se articula e constitui-se mesmo num exemplo claro da hierarquizaccedilatildeo e da segregaccedilatildeo
mencionadas e que se exprime na maneira como Jean qualifica os bonecos da referida
proviacutencia belga
Quais as razotildees que justificam um estudo pormenorizado dos teatrinhos de
bonecos da Beacutelgica ()
1ordm) Porque satildeo verdadeiras marionetes
2ordm) Porque satildeo marionetes genuinamente populares
3ordm) Porque satildeo marionetes obedecendo a uma tradiccedilatildeo autecircntica
Quer dizer que podem ser escolhidas como siacutembolos da marionete popular
tradicional (JEAN 1955 p 10)
Seria por demais demorado e digressivo comentar os problemas contidos na pretensatildeo de se
identificar o ldquogenuinamente popularrdquo ou mesmo a ldquotradiccedilatildeo autecircnticardquo Atenhamo-nos pois agrave
perseguiccedilatildeo daquilo que Jean iraacute identificar como ldquoverdadeira marioneterdquo Ao inveacutes de
58
apontar elementos de forma de estrutura de modo de operaccedilatildeo ou de gecircnero de apresentaccedilatildeo
sua definiccedilatildeo da ldquoverdadeira marioneterdquo se baseia na negaccedilatildeo do boneco teatral como sendo
ldquofiguras bastardas a meio caminho entre o ator de carne e osso e o boneco de cerardquo (idem)
Assim Jean investe contra um tipo de teatro de bonecos que se ocupa em demasia em imitar o
teatro feito com atores ignorando caracteriacutesticas que seriam especiacuteficas do teatro de bonecos
Para Jean o boneco teatral tem seus proacuteprios recursos expressivos compreendidos em parte
por meio das diferenccedilas inconciliaacuteveis que tem com o homem a quem sua forma muitas vezes
alude Curiosamente esse argumento em muito se assemelha com um texto bastante conhecido
de Meyerhod no qual satildeo contrapostos dois diferentes teatros de bonecos no primeiro se
buscava reproduzir com os bonecos o comportamento humano em todos os seus detalhes e no
segundo seu diretor percebeu haver mais encanto e expressividade no gesto do boneco que o
dava a entender como algo diferente do ser humano (MEYERHOLD 1991 p27) O texto do
encenador russo eacute de fato uma exortaccedilatildeo aos atores de seu tempo no sentido de buscarem
superar em suas apresentaccedilotildees a mera reproduccedilatildeo da vida em cena e a busca da simples
reproduccedilatildeo das determinaccedilotildees da dramaturgia e da encenaccedilatildeo postulando para o ofiacutecio do
ator uma autonomia da ordem da criaccedilatildeo artiacutestica Ainda assim possui a perspicaacutecia suficiente
para perceber que mesmo em seu primeiro exemplo natildeo haacute marionete que suceda em imitar a
figura humana sem transparecer suas limitaccedilotildees e peculiaridades de forma e natureza Em sua
descriccedilatildeo Meyerhold aponta que o desejo de imitar o comportamento humano eacute tal que o
diretor do seu primeiro teatro acaba por banir as marionetes e trabalhar com atores
Meyerhold num texto em que a princiacutepio poderia ser entendido como a corroboraccedilatildeo do
argumento de Jean simplesmente joga por terra sua definiccedilatildeo da ldquoverdadeira marioneterdquo pela
percepccedilatildeo de que natildeo haacute marionete cuja apresentaccedilatildeo natildeo seja inapelavelmente caracterizada
pelas peculiaridades que a distinguem do ator vivo Assim sendo usando o mesmo argumento
empregado por Jean toda marionete eacute verdadeira mesmo que busque (sempre em vatildeo)
parecer um ator de carne e osso
Jurkowski identifica o boneco como sendo o ldquoprincipal elemento distintivo do teatro
de bonecosrdquo (2000 p 68) Uma aproximaccedilatildeo inversa da afirmaccedilatildeo de Jurkowski conduziria
entatildeo ao reconhecimento de que teatro de bonecos seria aquele no qual o elemento central da
cena eacute o boneco teatral Jurkowski indica tambeacutem que o emprego da ldquoanimaccedilatildeo agrave vistardquo seria
algo que contraria e empana as convenccedilotildees tradicionais desse teatro De acordo com o
professor polonecircs o crescente emprego do animador aparente observado ao longo das uacuteltimas
deacutecadas propotildee novas caracteriacutesticas para o gecircnero mas sobretudo para o estatuto do boneco
teatral que tem alterada a forma como eacute percebido por parte da plateia pois este tem sido
59
alijado ndash ou ao menos sofrido incocircmoda interferecircncia ndash da sua condiccedilatildeo baacutesica de
representaccedilatildeo de uma personagem dramaacutetica (JURKOWSKI 2000 p68)
Em lugar de se concentrar no boneco enquanto personagem virtual trata-se
agora de privilegiar as relaccedilotildees que existem entre os signos dos personagens
e as forccedilas que os animam Eu afirmava em 1978 as relaccedilotildees vibrantes entre
o boneco e as fontes fiacutesicas de sua energia motora conduzem a mudanccedilas
importantes na percepccedilatildeo do boneco Num dado momento o equiliacutebrio da
dependecircncia entre o boneco e suas forccedilas motrizes mostrou-se mais duraacutevel
que os elementos desse equiliacutebrio (Jurkowski 2000)
Salta aos olhos na apreciaccedilatildeo de Jurkowski uma determinada leitura do que seria o
boneco teatral no sentido em que este busca distinguir com clareza o boneco das ldquofontes
fiacutesicas de sua energia motorardquo ou seja do ator que o opera Tillis discute ndash e refuta ndash diversas
definiccedilotildees de boneco teatral entre as quais algumas definiccedilotildees de Jurkowski das quais chama
a sua atenccedilatildeo a defesa do professor polonecircs de que ldquoo teatro de bonecos natildeo pode incorporar
qualquer parte do ator vivo ao bonecordquo (TILLIS 1992 p 26) Portanto segundo a apreciaccedilatildeo
que Tillis faz da descriccedilatildeo de Jurkowski o boneco seria um elemento teatral diferente e
exterior ao corpo do artista que o opera cuja finalidade eacute representar virtualmente uma
personagem dramaacutetica Jurkowski ainda menciona que o estatuto do boneco teatral se
encontra em mudanccedila desde as tensotildees relacionais recentemente estabelecidas por seus
encontros em cena com os atores agrave mostra e outras formas de expressatildeo mas ainda ele parece
defender que o estatuto proacuteprio da forma animada permanece inalterado e que o que ocorre
com o boneco eacute que ele passa a se relacionar sobre a cena com outros recursos que desafiam a
estrutura natildeo do boneco mas da cena de teatro de bonecos Ora se recuperarmos a afirmaccedilatildeo
vista por dois acircngulos que identifica o boneco como sendo o ldquoprincipal elemento distintivo
do teatro de bonecosrdquo natildeo parece cabiacutevel que a cena do teatro de bonecos se reestruture sem
que o seu elemento de definiccedilatildeo sofra por sua vez profundas transformaccedilotildees
No estudo empreendido por Steve Tillis em Toward an aesthetics for the puppet
(Rumo a uma esteacutetica do boneco 1992) o artista de animaccedilatildeo e pesquisador norte americano
realiza uma investigaccedilatildeo cuidadosa em torno de definiccedilotildees consagradas do boneco teatral de
modo a submetecirc-las a exemplos reais de diversas de suas manifestaccedilotildees Com isso apontou a
necessidade da articulaccedilatildeo de uma definiccedilatildeo que fosse a mais abrangente e vaacutelida possiacutevel
diante das inuacutemeras configuraccedilotildees do boneco O esforccedilo que se seguiu localizou trecircs
conjuntos de possibilidades significativas (que Tillis nomeia de sistemas de signos) que
estariam em processo na estrutura de qualquer boneco teatral sendo eles os sistemas de
forma movimento e fala Cabe aqui comentar que para Tillis tais sistemas apresentam-se em
todos os bonecos como se fossem qualidades expressivas e como tais dispotildeem diante do
60
espectador forccedilas de significaccedilatildeo mesmo quando essas natildeo estatildeo efetivamente presentes
Nesse caso um boneco imoacutevel ou de movimentos altamente limitados apresenta certa
qualidade e quantidade de signos de movimento O mesmo ocorre no que diz respeito agrave
atribuiccedilatildeo ndash ou natildeo ndash da fala ao boneco e das maneiras como isso se daacute bem como aos graus
de detalhamento e de esquematismo das formas e materiais de que se compotildee o boneco
Usemos como exemplo os animais inflaacuteveis usados pela companhia Pia Fraus no
espetaacuteculo Bichos do Brasil As suas formas ainda que maleaacuteveis devido agrave sua composiccedilatildeo
de plaacutestico moldaacutevel e ar apresentam possibilidades de movimentaccedilatildeo muito limitadas isso
quando haacute alguma A manipulaccedilatildeo agrave mostra das formas inflaacuteveis com os atores segurando
diretamente os corpos dos animais (Figura 26) sem fios bastotildees ou estruturas de funccedilatildeo
semelhante serve como sugestatildeo de movimento para os animais mostrados pelo espetaacuteculo
(cobras onccedilas e outros animais) e tal sugestatildeo se soma ao que se pode depreender da
percepccedilatildeo dos animais representados por suas formas
Para Tillis bonecos satildeo elementos teatrais e como tais podem ser compostos por
inuacutemeros materiais e combinaccedilotildees de outros elementos Assim rejeita veementemente a
defesa de Jurkowski de que o boneco precisa constituir-se inteiramente de mateacuteria inanimada
de modo a que nenhuma parte do corpo do artista possa ser incorporada agrave sua estrutura (idem
p 25) Essa noccedilatildeo professada por Jurkowski aliaacutes conduz a um trecho inusitado no qual o
historiador polonecircs potildee em questatildeo se o boneco de luva poderia ou natildeo ser considerado um
boneco O argumento eacute curioso a ponto de merecer transcriccedilatildeo como apresentado por Tillis
[] num ensaio acerca da histoacuteria do teatro de bonecos Jurkowski comenta
que ldquoo boneco de luva e o boneco de sombra situam-se fora da arte dos
bonecosrdquo (1967 [1965] 26) Ele natildeo chega a articular a sua objeccedilatildeo ao
boneco de sombra mas em outra passagem parafraseia o estudioso alematildeo
do princiacutepio do seacuteculo XX Fritz Eichler para o efeito de que ldquoo boneco de
luva natildeo deve ser considerado lsquopuramentersquo boneco pois eacute de fato a matildeo do
marionetista que eacute a sua alma O boneco de luva seria entatildeo um
lsquoprolongamentorsquo do ator [e deveria ser considerado] um prolongamento do
teatro de miacutemicardquo (1998 [1979] 21-22)
O argumento de Eichler como eacute apresentado por Jurkowski se apoacuteia na
ideacuteia de que a matildeo viva do operador no interior do boneco eacute o verdadeiro
foco da atenccedilatildeo da plateacuteia e que o que se percebe como sendo o boneco de
luva natildeo passa de uma fantasia para essa matildeo a figura natildeo estaacute ldquoseparada do
corpo de seu manipuladorrdquo e natildeo obedece agraves ldquosuas proacuteprias leis mecacircnicasrdquo
(1998 [1979] 22) Dessa forma Punch de fato natildeo eacute um boneco nem
mesmo nesse caso o seria Kermit que tambeacutem eacute pouco mais que a matildeo
vestida de seu operador Como seria possiacutevel resolver se bonecos de luva e
todos os outros bonecos apoiados na matildeo do operador satildeo ou natildeo satildeo
bonecos de fato (TILLIS 1992 p106 traduccedilatildeo minha)
61
De fato Tillis se apoiaraacute grandemente numa noccedilatildeo apresentada pelo artista russo
manipulador virtuoso Serguei Obrastzov que trata de como o boneco se estrutura por meio
da produccedilatildeo da impressatildeo da presenccedila de um corpo autocircnomo que causa na plateia Embora
se possa perceber no boneco de luva ndash ou em qualquer outro tipo de boneco ndash partes do corpo
do manipulador a lhe compor a estrutura fiacutesica o que sobreveacutem a essa evidecircncia eacute a
percepccedilatildeo apoiada fortemente na imaginaccedilatildeo de que aquele se trata de um corpo
independente em forma e desejo do homem que o opera Isso pode ser percebido nas cenas
curtas desenvolvidas pelo casal servo-peruano Hugo Suarez e Ines Pasic o Teatro Hugo e
Ines Na cena chamada Baby blue do espetaacuteculo Cuentos pequentildeos de 1990 Ines apresenta
um boneco que se trata de sua matildeo voltada com os dedos em direccedilatildeo ao chatildeo com olhos e
nariz encaixados no alto de seu punho e enfiada numa roupa azul de crianccedila (Video 2) A
atriz apresenta ao boneco uma bola com a qual entre entusiasmado e receoso potildee-se a
brincar Como hesitava em chutaacute-la Ines puxa a crianccedila pelo braccedilo (um de seus dedos saindo
pela manga da veste infantil) para encorajaacute-la A reaccedilatildeo do boneco eacute de medo e certa
indignaccedilatildeo Ergue os olhos em direccedilatildeo agrave atriz (uma dobra caracteriacutestica do punho posiciona os
olhos de modo a inclinarem-se para cima) como se dissesse ldquonatildeo faccedila mais issordquo Mesmo
diante da evidecircncia inapelaacutevel de que o boneco eacute feito de uma parte do corpo da atriz pois
que tal evidecircncia se acompanhava de claras limitaccedilotildees de movimento por parte da atriz para
manter a estrutura fiacutesica do bebecirc a sua forma o seu movimento e as reaccedilotildees que apresentava
produziam sobre a cena uma nova presenccedila Uma presenccedila diferente daquela criada
exclusivamente pela atriz solitaacuteria sobre o palco
Outro momento desse mesmo espetaacuteculo mostra Hugo apresentando um artista de rua
com nariz de palhaccedilo que toca um violatildeo por trocados (Video 3) O artista eacute feito do joelho do
ator com um nariz de palhaccedilo indicando as feiccedilotildees vestido com uma camisa e usando as
proacuteprias matildeos do ator para tocar seu pequeno violatildeo Num determinado momento o ator
posicionado atraacutes do joelho-palhaccedilo rouba a feacuteria usando a mesma matildeo empregada para tocar
o violatildeo num golpe que nos faz vecirc-la como pertencente ao ator e natildeo ao boneco Assim se faz
um arranjo alternado e impreciso a partir do qual natildeo haacute clareza acerca dos limites corporais
do boneco ndash e do ator Os bonecos de Hugo e Inecircs ndash assumamos que assim podemos chama-
los ndash natildeo apenas satildeo feitos de partes dos corpos dos atores mas assumem em suas
apresentaccedilotildees algo como um duplo pertencimento ou uma corporalidade transitoacuteria que
arrasta os corpos dos atores para dentro do que entendemos como sendo as formas dos
bonecos
62
Tillis iraacute buscar uma definiccedilatildeo para o boneco teatral que seja abrangente a ponto de
compreender suas mais variadas manifestaccedilotildees e formas Para tanto iraacute natildeo apenas buscar
ampliar seu campo de visatildeo em termos das diversas tradiccedilotildees e formatos mas conduziraacute sua
indagaccedilatildeo para a percepccedilatildeo do puacuteblico de modo a considerar boneco teatral natildeo aquilo que
se enquadra dentro dos limites das definiccedilotildees dos estudiosos mas aquilo que compreende ser
percebido pelo espectador como boneco
Em seguida por meio de um exerciacutecio de comparaccedilatildeo entre as definiccedilotildees de boneco
teatral encontradas em obras de estudiosos como Charles Magnin Bill Baird Paul McPharlin
e Henryk Jurkowski seguido por tentativas de submissatildeo dessas definiccedilotildees a exemplos
bastante variados de espetaacuteculos considerados teatros de bonecos Tillis articula uma
definiccedilatildeo preliminar na qual as qualidades perceptivas do puacuteblico ocupam centralidade
Ao juntarmos todas as nossas soluccedilotildees o caminho torna-se livre afinal para
respondermos a pergunta apresentada no iniacutecio deste capiacutetulo quando as
pessoas mencionam o boneco teatral estatildeo se referindo a elementos que satildeo
reconhecidos por uma plateacuteia como sendo objetos aos quais satildeo conferidos
forma movimento e frequentemente fala de uma maneira tal que a plateacuteia
os imagina como possuidores de uma vida (TILLIS 1992 p 28 ndash traduccedilatildeo
minha)
Claramente natildeo se trata de uma definiccedilatildeo simples tampouco acabada ou unacircnime No
entanto essa definiccedilatildeo alcanccedila um tipo de propriedade que nos permite pensar o boneco de
forma bastante abrangente e funcional tanto no que diz respeito agraves diversas manifestaccedilotildees do
boneco teatral nas suas relaccedilotildees com culturas tradicionais as mais diversas e distantes e das
possibilidades formais e performativas apresentadas por esse elemento teatral na perspectiva
das transformaccedilotildees de seus pressupostos conceituais para as artes verificados a partir dos
postulados das vanguardas modernistas e ainda em curso
Para Tillis o boneco teatral eacute em princiacutepio algo que pode ser percebido pela plateia
como sendo um objeto Essa construccedilatildeo apoiada como estaacute na percepccedilatildeo do espectador se daacute
de modo a diferenciar-se de uma outra definiccedilatildeo apresentada por Jurkowski na qual o
boneco seria de fato um objeto obrigatoriamente inanimado e como jaacute pudemos perceber
inteiramente exterior ao corpo do artista que o opera O deslocamento perceptivo que Tillis
propotildee o faz encontrar bonecos feitos em formatos e materiais mais diversos e variados
trazendo para dentro do seu campo de visatildeo elementos combinados natildeo apenas entre
materiais e recursos plaacutesticos mas abrindo a possiblidade de reconhecer-se o ator operador
como parte perceptiacutevel do boneco inserida por forccedila da sua capacidade de produccedilatildeo de
estiacutemulos sensiacuteveis na apresentaccedilatildeo
63
Dizer que algo eacute percebido como um objeto natildeo eacute dizer pouco No caso de Tillis fica
evidente que o termo eacute empregado com a finalidade principal de produzir uma distinccedilatildeo do
boneco em relaccedilatildeo ao que seria visto e entendido como a integridade um corpo vivo humano
ou animal Mas aleacutem disso o constante emprego de ferramentas semioloacutegicas para tratar das
definiccedilotildees leituras e explicaccedilotildees para o boneco teatral praticado por Tillis16
natildeo permite que
um esforccedilo analiacutetico que se proponha a dialogar com a sua obra se satisfaccedila em entender que
tal percepccedilatildeo se apresenta apenas como paracircmetro distintivo entre a percepccedilatildeo do boneco e a
do ator (do indiviacuteduo) vivente
Ocorre que a percepccedilatildeo do boneco como objeto (natildeo nos esqueccedilamos de que a mesma
expressatildeo eacute usada por Charles Monastier em seu artigo sobre o manipulador agrave vista) aponta
para possibilidades de entendimento a partir das quais essa percepccedilatildeo pode adquirir estatutos
os mais variados Uma maneira interessante de pensarmos o mecanismo da percepccedilatildeo do
boneco estaacute no manuseio de alguns dos fundamentos da semioacutetica de Charles Peirce que
postula que a percepccedilatildeo de um determinado objeto eacute o resultado de uma seacuterie de processos do
pensamento nos quais o que sobreveacutem natildeo depende apenas das caracteriacutesticas intriacutensecas do
objeto mas tambeacutem das suas condiccedilotildees de apreensatildeo
O boneco teatral visto como objeto emerge sobre nossa percepccedilatildeo a partir daquilo que
de forma inexoraacutevel ainda que por vezes elusiva ele natildeo eacute (ou seja um corpo vivo iacutentegro)
A apresentaccedilatildeo do boneco evolui sobre uma dinacircmica de emissatildeo de estiacutemulos perceptivos
ambiacuteguos haacute elementos que podem estar em sua movimentaccedilatildeo em sua relaccedilatildeo com a trama
do espetaacuteculo em sua forma de acordo com as caracteriacutesticas particulares desses elementos
que enviem ao espectador dados que o predisponham a imaginaacute-lo como tendo vida no
sentido direto em que a sua apresentaccedilatildeo produz a impressatildeo de uma presenccedila sobre a cena
Ao mesmo tempo satildeo dispostos pelo boneco em jogo elementos de significaccedilatildeo apontando no
sentido contraacuterio Elementos da forma da movimentaccedilatildeo da fala dos materiais constitutivos
que podem de acordo com as caracteriacutesticas particulares desses elementos reforccedilar o caraacuteter
de objeto inanimado do boneco
16
Natildeo se pode deixar de comentar que a escolha de termos e chaves de estudo apoiadas na semiologia por parte
de Tillis ocorre de modo a que o seu estudo se estabeleccedila em diaacutelogo frontal com as proposiccedilotildees de Henryk
Jurkowski numa dinacircmica quase constante de contradiccedilatildeo ao que propotildee o estudioso polonecircs Isto natildeo equivale
a dizer tudo uma vez que autores como Otakar Zich Jiri Veltruski e Petr Bogatyrev que servem de referecircncias
para ambos Jurkowski e Tillis jaacute haviam em um momento anterior utilizado a marionete como objeto de estudo
ou exemplo em seus escritos semioloacutegicos (GUINSBURG 1978)
64
Haacute a disposiccedilatildeo para consulta na Internet uma demonstraccedilatildeo de manipulaccedilatildeo indicada
como sendo uma masterclass do artista australiano Neville Tranter17
(Video 4) na qual um
dos alunos faz um exerciacutecio com um boneco chamado Zeno operado com uma das matildeos
dentro da cabeccedila para movimentaacute-la juntamente com a boca e a outra matildeo segurando uma
das matildeos do boneco de aproximadamente um metro de altura sentado em seu colo em
posiccedilatildeo semelhante agrave dos tradicionais bonecos usados em apresentaccedilotildees de ventriloquismo
Nessa demonstraccedilatildeo o aluno busca parodiar uma cena famosa do repertoacuterio do Muppet Show
de Jim Henson envolvendo uma muacutesica que ficou conhecida como Mahnah mahnah18
(Video
5) Durante a apresentaccedilatildeo o artista procurava executar a canccedilatildeo como se essa fosse um dueto
entre ele e o boneco e para isso operava alteraccedilotildees em seu timbre vocal buscava mover a
boca mais discretamente quando queria que acreditaacutessemos que era a vez do boneco cantar e
mais importante movimentava o boneco de forma caracteriacutestica aplicando sobre ele reaccedilotildees
e comportamentos que produziam uma forte impressatildeo de diferenccedila entre o corpo ndash e a
personalidade ndash do boneco e o seu Esse recurso sobrepunha-se agrave forte impressatildeo causada pela
evidente accedilatildeo do artista sobre o boneco sobre o dado aparente de que se o boneco se movia
o fazia por meio da intervenccedilatildeo de seu operador Num determinado momento o ator erra a
canccedilatildeo interrompe para comeccedilar de novo e na sequecircncia comete o mesmo erro Quando o
boneco abaixa a cabeccedila e cobre o rosto com a matildeo em sinal de desaprovaccedilatildeo a inevitaacutevel
percepccedilatildeo da matildeo do artista segurando a matildeo do boneco que executa o gesto de criacutetica
amplifica por meio da ambiguidade dos gestos sobrepostos tanto a surpresa quanto a
comicidade Ao fim da apresentaccedilatildeo o artista desvencilha-se delicadamente do boneco
deixando-o pousado sobre o banco Essa accedilatildeo simples e inevitaacutevel acaba por produzir uma
evidecircncia poderosa daquilo que vem sendo comentado acerca da percepccedilatildeo de objeto que se
tem do boneco A visatildeo do boneco Zeno sua cabeccedila inerte e seu corpo agora evidentemente
vazio sob a camisa combina o entendimento daquilo que a plateia sempre soube em
conjunccedilatildeo a um tipo de incocircmodo produzido pelo reconhecimento de uma potecircncia de vida
atribuiacuteda agravequela forma semidisforme
Haacute uma passagem do repertoacuterio da companhia Stuffed Puppets de Tranter especial
para este raciociacutenio O espetaacuteculo eacute The Nightclub de 1993 (Video 6) O cantor de cabareacute
Anthony apresenta em dueto com o mesmo Zeno do exemplo anterior a canccedilatildeo The old
17
Viacutedeo disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=eyLCIVdQR9Egt Consulta mais recente feita em
27022011 Neville Tranter eacute um artista de animaccedilatildeo australiano radicado na Holanda onde fundou e dirige a
companhia Stuffed Puppets 18
Duas versotildees dessa cena no Muppet Show tambeacutem estatildeo disponiacuteveis on line em
lthttpwwwyoutubecomwatchv=NA90IlymdZ4gt e lthttpwwwyoutubecomwatchv=Dx5v1z6L6Fwgt
Consulta mais recente feita em 27022011
65
puppeteer (o velho marionetista) No estilo musical proacuteprio do cabareacute alematildeo Anthony canta
a histoacuteria de um marionetista famoso e reconhecido juntamente com seu boneco Enquanto
canta eacute pontuado por intervenccedilotildees de Zeno (operado e vocalizado pelo proacuteprio ator) que
participa com especial ecircnfase no refratildeo tocado num ritmo ternaacuterio alegre e que tem as
seguintes palavras
Now Iacutem lying in the attic
In a dusty leather case
And Iacutem waiting for my partner
For his loving friendly face19
Zeno nessa parte da muacutesica que estaacute como que embalado no colo pelo cantor
Anthony canta como se fosse o boneco descrito na canccedilatildeo A segunda estrofe fala de como o
velho marionetista envelheceu perdeu prestiacutegio e acabou morrendo miseraacutevel e esquecido
Quando Anthony indica a deixa para o refratildeo Zeno natildeo consegue cantar aleacutem do primeiro
verso baixando a cabeccedila e assumindo uma postura que remete muito mais agrave imobilidade de
um objeto do que a uma contenccedilatildeo de sofrimento humano No entanto a imagem eacute clara e
intensa Enquanto vemos Anthony buscar retomar a canccedilatildeo dizendo alto palavras do refratildeo
como que exortando Zeno a retomar a apresentaccedilatildeo este encontra-se inapelavelmente
reconduzido agrave ineacutercia inanimizado pela dor
Esse uacuteltimo exemplo guarda uma peculiaridade poderosa acerca da ambiguidade
perceptiva do boneco A ineacutercia assumida por Zeno ao fim da canccedilatildeo funde o entendimento
de sua condiccedilatildeo de objeto com uma comunicaccedilatildeo tatildeo eficiente quanto sensiacutevel de um
sentimento pleno de humanidade Nada em toda a cena foi capaz de produzir sobre o
espectador um estiacutemulo imaginativo de autonomia existencial para aquele boneco do que o
momento em que provavelmente por escolha ele se entrega ao obliacutevio
Pois que eacute justamente a partir da percepccedilatildeo do boneco como objeto desprovido de
autonomia e voliccedilatildeo que se produz uma ruptura em sua estrutura perceptiva por meio da qual
somos capazes de perceber a sua qualidade de objeto inanimado (sua forma suas diferenccedilas
em relaccedilatildeo a um corpo vivo os indicativos de sua condiccedilatildeo original de ineacutercia) mas tambeacutem
nos permitimos perceber o boneco em termos daquilo que ele representa dentro (e para aleacutem)
do contexto da sua apresentaccedilatildeo (seria mais simples ou apenas redutor recorrermos ao termo
personagem dramaacutetica)
19
Traduccedilatildeo Agora estou guardado no poratildeo numa caixa de couro empoeirada Estou esperando por meu
companheiro por seu rosto amoroso e amigaacutevel Cena disponiacutevel em
lthttpwwwyoutubecomwatchv=7HcpBz8N8ZIgt Consulta mais recente feita em 27022011
66
Tillis iraacute usar o termo ldquovida imaginadardquo (1991 p 28) para buscar descrever o modo
como o puacuteblico se voluntaria a perceber o boneco sob a forma de uma presenccedila autocircnoma em
meio a uma dinacircmica perceptiva que alterna ilusatildeo e desilusatildeo Tillis tambeacutem menciona um
termo empregado por Coleridge para explicar a sua poesia de que esta encaminha o leitor a
empreender uma ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do descreacuteditordquo20
(apud Tillis 1992 p 47) A
indicaccedilatildeo de accedilatildeo voluntaacuteria que o termo imaginada dota o primeiro termo em conjunccedilatildeo
com o empreacutestimo que toma da expressatildeo do poeta inglecircs para buscar explicar o fasciacutenio
exercido pelo boneco teatral sobre seu puacuteblico ajudam a compreender o quanto Tillis estaacute
interessado em perceber essa ldquovidardquo do boneco posto em jogo na cena como algo conferido
em grande conta pela disposiccedilatildeo do espectador De qualquer forma natildeo se pode ignorar em
vista dos esforccedilos teoacuterico-terminoloacutegicos de Tillis o quanto a emprego de termos como vida e
alma para explicar a apresentaccedilatildeo do boneco constiuti-se num verdadeiro problema
Primeiramente porque a imensa maioria das apresentaccedilotildees com bonecos claramente natildeo tecircm
como objetivo e efeito primordiais a produccedilatildeo de uma ilusatildeo acabada de vida autocircnoma e em
segundo lugar porque ainda haacute que se determinar e concordar nos meios da praacutetica e do
estudo do teatro de animaccedilatildeo um termo que possa compensar o apelo a forccedila metafoacuterica e a
validade referencial de vida e alma
O semioacutelogo Tcheco Otakar Zich entende os modos de percepccedilatildeo do boneco em cena
como alternados o que equivale dizer que o entendimento do boneco enquanto objeto e a
imaginaccedilatildeo de uma presenccedila autocircnoma natildeo satildeo sensaccedilotildees que acometem o espectador
simultaneamente mas uma de cada vez momento a momento (apud TILLIS p 54) A leitura
de Zich pode ser e seraacute mais comentada adiante mas a sua mera apresentaccedilatildeo jaacute se presta a
reforccedilar o entendimento da percepccedilatildeo do boneco em cena a partir de uma dinacircmica de
construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo da aceitaccedilatildeo de sua autonomia o que parece claro demanda
esforccedilo e engajamento por parte do espectador Marco Souza complementa a ideacuteia da seguinte
maneira
Eacute possiacutevel considerar [] o ldquocaraacuteter ilusoacuterio-realrdquo do teatro de animaccedilatildeo
como a estabilidade de uma presenccedila cecircnica na qual concreto e abstrato
limites e referecircncias satildeo rompidos e rearticulados em uma dimensatildeo
simboacutelica onde se instaura uma percepccedilatildeo diferenciada em que jaacute natildeo haacute
mais uma distinccedilatildeo absoluta entre sujeito e objeto (SOUZA 2005 p26)
Souza aborda o teatro de animaccedilatildeo como uma manifestaccedilatildeo cultural na qual se percebe o
exerciacutecio de dotaccedilatildeo de significados abstratos a elementos concretos Nesse sentido a
impressatildeo de autonomia do boneco que o seu jogo cecircnico pode vir a produzir natildeo se daacute de
20
No original ldquowilling suspension of disbeliefrdquo
67
outra forma senatildeo por meio de uma conjunccedilatildeo de elementos dentre os quais ato de projeccedilatildeo
realizado pelo espectador eacute fundamental
Por isso eacute delicado e virtualmente problemaacutetico o entendimento de que se busca a
produccedilatildeo de uma ilusatildeo de vida por meio do jogo do boneco O emprego excessivo do termo
associado a outros tais como alma e magia21
precisam ser cuidadosamente verificados pois
ainda que forneccedilam metaacuteforas eficientes podem causar seacuterios problemas de entendimento
uma vez que se insinuem para dentro da pedagogia e da teoria do teatro de animaccedilatildeo
Se natildeo vejamos dentre as modalidades mais conhecidas de teatro de animaccedilatildeo
poucas satildeo aquelas que natildeo reforccedilam em seus meios de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo certa
estilizaccedilatildeo na forma e no movimento do boneco Desde o bunraku ateacute o mamulengo passando
pelas experiecircncias abstracionistas dos baleacutes triaacutedicos de Oskar Schlemmer dos experimentos
de Depero e Prampolini22
junto ao Teatro dei Piccoli dos heroacuteis populares da luvas de feira na
Europa ateacute mesmo no emprego de animatrocircnicos23
parece claro que o desejo expresso pelos
artistas que depuram suas teacutecnicas de construccedilatildeo e manipulaccedilatildeo natildeo passa ou passa distante
de uma necessidade de iludir a plateia no sentido de natildeo estar diante de uma forma animada
mas diante de um ser vivo Se o desejo fosse o de transmitir impressatildeo incontestaacutevel de vida
melhor seria que se trabalhasse diretamente com atores Grande parte do encanto do teatro de
animaccedilatildeo reside na produccedilatildeo dessa percepccedilatildeo turbada e descontiacutenua entre aceitaccedilatildeo e
negaccedilatildeo que conduz o espectador a uma experiecircncia especiacutefica de desvendamento constante
da forma
Mas se parece cabiacutevel defender que a noccedilatildeo de vida natildeo eacute aquela que norteia a
qualidade especiacutefica da apresentaccedilatildeo do boneco restam duas questotildees A primeira eacute seria
entatildeo a noccedilatildeo de vida algo que mereccedila ser abolida do entendimento do boneco teatral E a
segunda se a impressatildeo de vida natildeo explica com precisatildeo suficiente o que vemos no jogo do
boneco que noccedilotildees e termos viriam em sua substituiccedilatildeo e por quecirc
Giorgio Agamben chama a atenccedilatildeo para a separaccedilatildeo semacircntica empregada pelos
gregos antigos que definia dois diferentes conceitos de vida (2002 pp9-20) O termo zoeacute se
referia a uma qualidade geneacuterica de vivente como em oposiccedilatildeo ao que eacute morto e a palavra
biacuteos designava um tipo de vida qualificada capaz de definir o ser vivente a partir de suas
21
Estudos apoiados em apreciaccedilotildees eminentemente etimoloacutegicas de termos como animaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo
acabam por contornar o esforccedilo de se renovar o olhar sobre as praacuteticas e efeitos do teatro de animaccedilatildeo e suas
transformaccedilotildees optando por ater-se em definiccedilotildees que permitem pouca ampliaccedilatildeo ou questionamento 22
A colaboraccedilatildeo entre o tradicional marionetista Romano Vitorio Podrecca e os futuristas Fortunato Depero e
Enrico Prampolini eacute abordada em (LISTA 1993) e (JURKOWSKI 1991) 23
Este trabalho emprega a sugestatildeo feita por Tillis e respeita o uso observado por artistas brasileiros que define
como sendo animatrocircnico o boneco operado diretamente por um ou mais operadores por meio eletrocircnico e
remoto diferindo do autocircmato cuja construccedilatildeo jaacute encerra uma sequecircncia de movimentos preacute estabelecida
68
posturas atividades e mecanismos de relaccedilatildeo Agamben parte dessas definiccedilotildees de vida para
encadear um pensamento da poliacutetica contemporacircnea no qual avalia as consequecircncias e
dinacircmicas da politizaccedilatildeo daquilo que ele chama de ldquovida nuardquo24
Neste ponto do trabalho
busco-me valer de aspectos mais imediatos de consideraccedilatildeo de tais conceitos no intento de
emprega-los como ferramentas para o entendimento da impressatildeo de vida que a apresentaccedilatildeo
do boneco eacute capaz de produzir Assim sendo pode-se dizer a respeito do boneco ao menos
em primeira apreciaccedilatildeo que eacute incapaz de possuir uma vida a partir do que se entende pelo
primeiro termo (zoeacute) mesmo que em diversas ocasiotildees o comportamento que assume durante
a apresentaccedilatildeo se restrinja a oferecer agrave audiecircncia sinais que conduzam apenas ao
entendimento ndash agrave imaginaccedilatildeo ndash da existecircncia de uma vida autocircnoma25
em situaccedilotildees
extremamente simples das quais o encanto da apresentaccedilatildeo decorre exclusivamente de
observaacute-lo desempenhar uma uacutenica atividade tal como andar acenar ou danccedilar A vida que se
atribui ao boneco em meio agrave sua apresentaccedilatildeo decorre exclusivamente do caraacuteter teatral que
essa comporta natildeo podendo ser vida sem estar forccedilosamente atrelada ao contexto teatral no
qual se insere e que eacute capaz de conjurar em sua apresentaccedilatildeo26
e sem contar com a
indulgecircncia da imaginaccedilatildeo de quem o assiste Parece-nos assim que o problema do emprego
do termo vida associado agrave percepccedilatildeo do boneco decorre do entendimento da existecircncia de um
elemento capaz de transmitir certa qualidade de vida sem no entanto possuiacute-la em seu aspecto
mais fundamental Para o boneco a vida seraacute sempre teatral cecircnica ficcional e imaginada
Como poderemos verificar mais adiante grande parte do interesse que se extrai da
apresentaccedilatildeo do boneco decorre justamente da sua capacidade de transmitir certa qualidade de
vida que natildeo tem como suporte uma autonomia ontoloacutegica de fato
Por isso mesmo a tentativa de resposta que se monta para a primeira pergunta
formulada eacute delicada e complicada Evidentemente a impressatildeo causada pelas apresentaccedilotildees
de quase todos os bonecos ndash ateacute mesmo alguns cujas formas e movimentaccedilotildees satildeo estilizadas
em grande conta ndash faz o puacuteblico tomar o boneco em algum grau como algo possuidor de
24
Agamben emprega em Homo Sacer o poder soberano e a vida nua um excurso argumentativo no qual parte
das concepccedilotildees de vida mencionada e da recuperaccedilatildeo de uma figura do direito romano antigo ndash o homo sacer ndash
para empreender uma leitura proacutepria da biopoliacutetica foucaultiana de modo a identificar o campo de concentraccedilatildeo
nazista como sendo o paradigma politico da modernidade 25
Quando Jurkowski compara as diferentes relaccedilotildees com a dramaturgia entre bonecos e atores vivos evoca o
fato de que o ldquoo ator necessita apoiar-se em um mundo de ficccedilatildeo enquanto que o boneco pode contentar-se em
copiar a vidardquo (op citp 3) Assim o pesquisador polonecircs introduz a capacidade do boneco de conjurar
teatralidade agrave sua accedilatildeo 26
Aqui nos reportamos agrave capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade que possui a apresentaccedilatildeo do boneco Tal
capacidade seraacute suficientemente abordada ao longo desta tese mas por hora basta-nos entender que qualquer
accedilatildeo executada com razoaacutevel sucesso por um boneco eacute capaz de por si conter elementos de reconhecida
teatralidade e dramaticidade
69
certa vida Se entendemos os bonecos ndash quaisquer bonecos natildeo importa suas formas e
dinacircmicas em cena ndash como representaccedilotildees do ser humano em variados graus de detalhamento
e tipificaccedilatildeo eis que a vida como uma das prerrogativas fundamentais da humanidade estaacute
em jogo E como foi mencionado anteriormente ideacuteias tais como vida e alma emprestam natildeo
se pode negar metaacuteforas eficientes para descrever o tipo de relaccedilatildeo que se estabelece entre
espectador e boneco no decurso de uma apresentaccedilatildeo bem sucedida em animaccedilatildeo A
complexidade da questatildeo se daacute na exata medida em que natildeo podemos nos aproximar dela com
a radicalidade de quem se potildee a propor o abandono de uma noccedilatildeo empregada desde haacute muito
como se a sua longevidade natildeo fosse indicativo de potecircncia e clareza comunicativa Afinal
quem haveria de negar que um boneco que se pareccedila razoavelmente com uma pessoa
apresentado com maestria parece vivo A questatildeo eacute que se o boneco parece vivo ele de fato
natildeo estaacute (pelo simples fato de parecer) e que mesmo essa semelhanccedila de vida natildeo ocorre
sem a indulgecircncia da plateia que por seu lado o compreende dentro de uma dinacircmica
perceptiva que confronta a imaginaccedilatildeo de vida com a atestaccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de inegaacutevel
falta de autodeterminaccedilatildeo Assim sendo como poderemos entender a ponto de nomear a
totalidade dessa dinacircmica de percepccedilatildeo Certamente natildeo parece que a melhor escolha seja
considerar um de seus aspectos como sendo a totalidade da experiecircncia de percepccedilatildeo Assim
nos lanccedilamos ao exerciacutecio de incerteza que eacute a tentativa de dar conta da segunda questatildeo
Ao assistirmos ao jogo que o aluno de Neville Tranter realiza com o boneco Zeno
cantando a canccedilatildeo dos Muppets salta aos olhos as dinacircmicas de dissociaccedilatildeo corporal
empreendidas pelo artista nesse processo Satildeo empregados nesse exerciacutecio alguns recursos
teacutecnicos de direcionamento de atenccedilatildeo que tecircm como objetivo imprimir a percepccedilatildeo de uma
separaccedilatildeo corporal e volitiva entre manipulador agrave mostra e boneco Quando o manipulador
volta o rosto para o lado oposto onde se encontra o boneco este o olha dando a impressatildeo de
que seu movimento natildeo eacute guiado mas que implica em certa subversatildeo ao padratildeo esperado de
controle do manipulador sobre o boneco Muito da dinacircmica da apresentaccedilatildeo do ventriacuteloquo
por exemplo estaacute baseada no jogo cocircmico da subversatildeo e da discordacircncia entre o boneco e
seu operador e a forjada rebeldia do boneco eacute a maior fonte de comicidade do ato A
animaccedilatildeo estaacute constantemente lidando com a construccedilatildeo de corpos rebeldes que se ocupam
em afirmar diferenccedilas de natureza estrutural e volitiva em relaccedilatildeo ao(s) corpo(s) que os
operam Claro pode-se argumentar que o sucesso das apresentaccedilotildees dessas personagens que
postulam autonomia em relaccedilatildeo aos seus movimentadores eacute tambeacutem a construccedilatildeo de uma
alteridade que aponta no final das contas para uma impressatildeo de vida Tal impressatildeo pode
70
ocorrer em diversas ocasiotildees mas sempre como resultado da produccedilatildeo de uma diferenccedila
fiacutesica da percepccedilatildeo de um outro corpo
Balardim (2004 p 93) chama de dissociaccedilatildeo de movimentos a competecircncia teacutecnica
que permite ao artista de animaccedilatildeo comportar-se de modo a simular uma divisatildeo corporal que
apresente estruturas e vontades distintas Voltando nossas atenccedilotildees para as apresentaccedilotildees do
duo Hugo Suarez e Ines Pasic ainda que os olhos dos espectadores natildeo consigam ser
ludibriados a ponto de perder de vista o fato de que os personagens satildeo construiacutedos a partir do
joelho e das matildeos dos artistas natildeo resta duacutevida de que suas cenas constroacuteem corpos diferentes
aos deles proacuteprios corpos que interagem e dialogam com os seus operadores-atores de uma
maneira tal que conduz o espectador a reconhecer na cena o surgimento de outra presenccedila e
que essa presenccedila conteacutem certa qualidade
Muito do que se conhece em termos de preceitos teacutecnicos aplicaacuteveis sobre diversas
modalidades de teatro de animaccedilatildeo lida com a produccedilatildeo uma presenccedila corporificada por meio
do boneco ou do objeto Ou seja diversos dos princiacutepios universais de trabalho e treinamento
do operador de bonecos relaciona-se diretamente com a capacidade de dar forma ao
personagem animado e de afirmar o corpo que se cria a partir daiacute como algo diferente do
corpo de seu manipulador em sua integridade Vejamos brevemente algo sobre as noccedilotildees de
eixo e foco27
Quando se menciona eixo em diferentes processos de treinamento e formaccedilatildeo
do manipulador de bonecos de diversos estilos trata-se de determinar a integridade estrutural
o centro de articulaccedilatildeo e a loacutegica de locomoccedilatildeo do boneco Nesse processo trata-se de
construir um corpo para o boneco que possa postular a si mesmo a capacidade de transmitir
autonomia Trata-se segundo Balardim de posicionar o boneco ou objeto de modo a dar a
entender a accedilatildeo de forccedilas gravitacionais sobre ele sendo esta ldquoa marca de toda forma vivardquo
(p 103) Beltrame complementa a ideacuteia chamando atenccedilatildeo para o fato de que a forma mal
conduzida em termos de manutenccedilatildeo de seu eixo ldquoevidencia que ela estaacute sendo manipuladardquo
(2009 p 293) Um manipulador de bonecos de luva por exemplo precisa fazer com que o
seu personagem se instado a virar para o lado oposto para onde se encontrava direcionado o
faccedila girando sobre o eixo da suposta espinha dorsal do boneco em vez de fazecirc-lo a partir da
conveniecircncia de movimento do corpo do operador ou seja de sua proacutepria coluna Se assim
fosse o que deveria ser uma virada a ser executada sobre o eixo do proacuteprio boneco
transforma-se num salto em giro de grande amplitude para um boneco em escala reduzida
pois que ao girar a partir da proacutepria coluna o operador conduziria o braccedilo para um ponto
27
Haacute um capiacutetulo deste trabalho dedicado agrave pedagogia e agrave teacutecnica do artista de animaccedilatildeo Os conceitos
apontados aqui seratildeo abordados mais amiuacutede nesse momento
71
bastante distante daquele onde deveria se originar o movimento do boneco Produzir a
impressatildeo de integridade de forma e locomoccedilatildeo ao boneco eacute importante para causar a
impressatildeo de dissociaccedilatildeo corporal a qual nos referiacuteamos Quanto ao foco conceito que ainda
renderaacute discussotildees ao longo deste trabalho pode-se dizer por enquanto que se refere
diretamente ao controle da atenccedilatildeo que se dedica ao boneco e ao modo como o espectador o
percebe Aperfeiccediloar num boneco a sua qualidade focal equivale a deixar claro ao espectador
em que parte do espaccedilo repousa a sua atenccedilatildeo Podemos afirmar que as principais etapas do
direcionamento focal do boneco no sentido de produzir nele uma impressatildeo de autonomia
seriam na ordem definiccedilatildeo do foco quando eacute possiacutevel identificar com clareza onde estaacute a
atenccedilatildeo e o interesse do boneco conferindo assim a aparecircncia de uma vontade expressa por
meio da conduccedilatildeo da atenccedilatildeo e divergecircncia quando eacute dado perceber que o boneco natildeo
direciona sua atenccedilatildeo agraves mesmas coisas que seu manipulador e o faz inclusive obedecendo a
um ritmo interno que natildeo eacute o mesmo de seu operador
Outra questatildeo a ser considerada que pode vir a complementar a escolha da noccedilatildeo de
presenccedila agrave de vida estaacute ligada ao poder de teatralizaccedilatildeo que possui a apresentaccedilatildeo do boneco
Eruli menciona o boneco como sendo um corpo fundamentalmente teatral dependente da
cena para existir (ERULLI 1991 pp 7-8) Dessa afirmaccedilatildeo decorre tambeacutem a questatildeo que
determina o jogo do boneco como sendo um recurso de irresistiacutevel capacidade de conjuraccedilatildeo
de teatralidade Onde quer que o boneco se apresente da maneira que o fizer transformaraacute
seu entorno imediato em cena posto que sua dinacircmica de apresentaccedilatildeo dinamiza
caracteriacutesticas de evidente espetacularidade associadas a tensotildees entre realidade e irrealidade
crenccedila e descrenccedila presenccedila e alusatildeo que apontam para um claro caraacuteter de dramaticidade
Quando Tillis em busca de explicaccedilotildees para o duradouro apelo que o boneco exerce sobre
plateias em diversos lugares e eacutepocas verifica os parentescos atribuiacutedos ao boneco teatral
com imagens religiosas e brinquedos infantis A base argumentativa que estabelece para
refutar veementemente as teses de ascendecircncia ou descendecircncia do boneco teatral com as
imagens de culto e as bonecas de crianccedilas se encontra apoiada na afirmaccedilatildeo do historiador
norte americano Paul McPharlin de que ldquoquando os bonecos se tornam vivos em seus teatros
o encanto arrebatador que exercem eacute da ordem do teatro e do teatro apenasrdquo (McPHARLIN
apud TILLIS 1991 p 47 traduccedilatildeo minha) Nesse como em diversos outros casos de uso da
forma animadas com finalidades que natildeo sejam evidentemente teatrais o que se percebe natildeo eacute
o emprego de formas aparentadas do boneco teatral em eventos de naturezas diversas e sim o
uso de um recurso teatral para outras finalidades
72
O boneco teatral seja ele construiacutedo para a cena ou adaptado a partir de combinaccedilotildees
de materiais eou objetos ldquoencontradosrdquo apenas pode ser considerado como tal quando em
meio agrave apresentaccedilatildeo teatral Isto equivale dizer que um boneco feito para a cena digamos
uma bailarina de fios posta em exposiccedilatildeo ou usada como objeto de decoraccedilatildeo pode aludir
dada a sua forma ao boneco teatral contido nela em potecircncia mas apenas o evento teatral que
seu jogo instaura no momento em que se instaura eacute capaz de tornar o objeto em boneco
teatral Erulli considera o boneco como ldquonada aleacutem de um efeito teatralrdquo (1991 p 7) e usa
essa definiccedilatildeo como complementaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que ldquopor definiccedilatildeo o corpo da
marionete natildeo existerdquo (idem) Trata-se portanto de uma corporalidade transitoacuteria cuja
presenccedila se indissocia do estabelecimento da cena teatral
Se esse entendimento eacute correto talvez seja mais preciso imaginar que o jogo do
boneco animado esteja mais relacionado agrave produccedilatildeo de certa presenccedila qualificada que exerce
determinada funccedilatildeo em meio a uma apresentaccedilatildeo teatral do que propriamente a uma
impressatildeo de vida autocircnoma pois que essa impressatildeo de autonomia natildeo estaacute apenas
dificultada pelos signos de inanimidade dispensados por meio dos sistemas de significaccedilatildeo de
forma movimento e fala ela se encontra tambeacutem condicionada em grande parte pela
subordinaccedilatildeo dessa impressatildeo ao contexto de espetacularidade teatral ao qual o boneco em
jogo se encontra inapelavelmente atrelado
A presente argumentaccedilatildeo ganha em forccedila e possibilidades na medida em que nos
afastamos das formas que remetem de modo mais evidente agrave figura humana rumo a arranjos
mais proacuteximos agrave abstraccedilatildeo ou ateacute mesmo a tipos de bonecos com limitaccedilotildees de forma e
movimento mais acentuadas Dois bons exemplos do que se sugere seriam as figuras
bidimensionais estaacuteticas empregadas na modalidade de apresentaccedilatildeo chamada teatro de
brinquedo e algumas das formas distanciadas da imagem humana empregadas em atos da
companhia alematilde Muumlmmenchanz
O teatro de brinquedo28
ou teatro de papel emprega para a sua apresentaccedilatildeo figuras
pintadas em cartatildeo ou madeira que na imensa maioria dos casos natildeo apresenta nenhuma
possibilidade de movimento aleacutem do deslocamento lateral que a faz entrar e sair de cena
cumprir deslocamentos pontuais ou ser levemente movimentada de modo a indicar a accedilatildeo de
28
Teatro de brinquedo (Toy Theatre) remonta da Europa do seacuteculo XIX e eacute uma modalidade de teatro de
animaccedilatildeo criada para ser uma diversatildeo caseira Era feito em sua maioria em papel ou cartatildeo e costumava ser
vendido em kits em bancas de teatros e casas de oacutepera Assemelha-se ao modo de apresentaccedilatildeo em retaacutebulo
segundo descrita em Cervantes e consistia em uma caixa aberta em uma das faces (e vatildeos laterais para a
movimentaccedilatildeo das figuras) com espaccedilos para afixaccedilatildeo de cenaacuterios e outros elementos de cena As personagens
natildeo apresentam articulaccedilotildees e movimentam-se lateralmente sendo ligados a fios ou tiras de papel manipuladas
por meio dos vatildeos laterais da caixa-palco O grupo Sobrevento criou dois espetaacuteculos cuja esteacutetica empregou
elementos do Toy Theatre Um conto de Hoffman (1988) e O Theatro de Brinquedo (1993)
73
Figura 33 Grupo Sobrevento O Theatro de brinquedo (1993) Na foto Marco Aurecirch Sandra Vargas Luiz
Andreacute Cherubini e Miguel Vellinho
Fonte (httpwwwsobreventocombr)
Figura 34 Grupo Sobrevento Um conto de Hoffman (1988) Na foto Sandra Vargas e Miguel Vellinho
Fonte (httpwwwsobreventocombr)
Foto Luiz Andreacute Cherubini
74
fala da personagem Em casos de alteraccedilatildeo muito evidente da atitude ou da accedilatildeo de uma ou
mais personagens a figura pode ser removida da cena para ser substituiacuteda por outra figura da
mesma personagem em atitude correspondente Neste caso apesar de estarmos claramente
lidando com uma modalidade de teatro de animaccedilatildeo natildeo haacute nada (ou quase nada) na dinacircmica
da figura que indique uma autonomia Haacute no entanto a construccedilatildeo de uma corporeidade
indicativa de um determinado ente que compotildee a estrutura da apresentaccedilatildeo teatral bem como
de uma presenccedila especiacutefica e densamente determinada pelas condiccedilotildees discursivas e formais
dessa apresentaccedilatildeo Se podemos ou natildeo chamar a figura do teatro de brinquedo de boneco
teatral eacute especulaccedilatildeo que deixamos para fazer apoacutes considerar o segundo exemplo
Um dos atos mais ceacutelebres da companhia Muumlmmenchanz apresenta uma figura que
consiste num tubo articulado que em uma de suas extremidades exibe uma grande bola de
plaacutestico alaranjado (Video 7) A forma que de fato conta com um dos integrantes da
companhia no interior do tubo evolui de acordo com a sua proacutepria estrutura realizando
deslocamentos torccedilotildees e movendo a bola Num dado momento a bola se desprende do tubo
levando este a executar uma accedilatildeo semelhante a um movimento de succcedilatildeo para atraiacute-la
novamente A partir desse momento desenvolve-se em conjunto com a plateia um jogo no
qual a bola eacute arremessada por e para o tubo que demonstra prazer com o brinquedo Aqui
vemos a forma apresentar caracteriacutesticas comportamentais reconheciacuteveis e que apesar de em
aspecto mais geral natildeo assemelhar em nada com a figura humana apresenta certas qualidades
por meio das quais certa semelhanccedila pode ser surpreendida O modo como pende para a frente
a extremidade superior do tubo dando a entender uma fonte de foco ndash um ponto a partir do
qual forma parece projetar olhar e desejo o modo como reage agrave bola e agrave plateia (agraves vezes com
ansiedade outras com certa irritaccedilatildeo) deixando revelar algo de uma personalidade Neste
caso natildeo se pode negar que a construccedilatildeo da forma daacute a entender a forja de uma espeacutecie de
animal ou de ente dotado de individualidade Mas o que pode dizer a seu proacuteprio respeito a
pouquiacutessima semelhanccedila que a forma do Muumlmmenchanz tem em relaccedilatildeo a um ser vivo
reconheciacutevel
A figura de teatro de brinquedo se apresenta como uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo do
quanto a animaccedilatildeo natildeo precisa obrigatoriamente se dedicar a qualificar o movimento de
objetos de modo a sugerir-lhes vida autocircnoma Ainda que se algo surge na percepccedilatildeo do
espectador como indicativo de alguma autonomia existencial esta se daacute invariavelmente por
meio da funccedilatildeo desempenhada pelo objeto em questatildeo no interior de uma apresentaccedilatildeo
teatral Jaacute haacute algum tempo me avizinhava da ideacuteia de que a produccedilatildeo de impressatildeo de vida
que funciona parcialmente (e discutivelmente) para alguns tipos de bonecos teatrais seria de
75
Figura 35 Muumlmmnechanz Atriz Floriana Frassetto
Fonte Revista PUCK ndash La marionnette et les autres arts ano 1 n4 Charleville-Meacuteziegraveres Institut
International de la Marionnette 1991 p 20
Figura 36 Muumlmmenchanz
Fonte (httpwwwmidioramacombrworks2009994the-best-of-mummenschanz)
76
fato numa tentativa de propor uma condiccedilatildeo que almejasse certa universalidade para a arte da
animaccedilatildeo de formas um tipo de inserccedilatildeo de um objeto dentro e um contexto teatral O que
ainda estaria para ser respondido corresponde agrave forma dessa inserccedilatildeo que eacute inegavelmente
especiacutefica e qualificada Dizer que o boneco desempenha a funccedilatildeo da personagem dramaacutetica eacute
redutivo e insuficiente posto que o teatro de animaccedilatildeo para aleacutem da presente discussatildeo
acerca dos afastamentos e desencontros do teatro com a forma dramaacutetica nem sempre esteve
preocupado em dispor tramas lineares em progressatildeo temporal conduzidas pela interaccedilatildeo
entre personagens Aleacutem disso eacute impreciso afirmar que bonecos representam sempre
entidades responsaacuteveis ainda que parcialmente pela conduccedilatildeo de uma trama espetacular
Por isso parece ao menos neste momento que o que qualifica a inserccedilatildeo do boneco no
contexto da apresentaccedilatildeo teatral eacute certa qualidade de presenccedila a mesma qualidade que insere
o boneco no contexto do espetaacuteculo teatral Trata-se de um modelo ciacuteclico de
retroalimentaccedilatildeo para o qual tanto a noccedilatildeo de presenccedila quanto a de inserccedilatildeo na cena teatral
qualificam-se uma pela outra
Mas se isso eacute verdade como lidamos com a criatura tubular do
Muumlmmenchanz Que contribuiccedilotildees ndash ou que desvios ndash essa forma lega ao raciociacutenio que se
busca levar adiante nesse momento A evoluccedilatildeo dessa forma sobre o palco seu jogo com a
bola e a coerecircncia dos seus arranjos corporais movimentos e sons claramente contribuem
para o entendimento expresso de que o jogo do boneco eacute por si instaurador de certa
qualidade teatral Mas a produccedilatildeo de sua presenccedila se apoacuteia sobre que tipo de impressatildeo
Ainda que se possa argumentar que um tubo encimado por uma bola guarda pouca
semelhanccedila com a figura humana natildeo eacute segredo que haacute bonecos considerados mais
aproximados da forma humana cujas estruturas desafiam bem mais a compreensatildeo da
anatomia do que uma forma vertical apoiada sobre o chatildeo cuja extremidade superior iniciou
como uma esfera para em seguida constituir-se na extremidade do tubo ligeiramente virado
para baixo como claro indicador de visatildeo e projeccedilatildeo de desejo A produccedilatildeo de semelhanccedila
em animaccedilatildeo se daacute na exata conjunccedilatildeo dos sistemas listados por Tillis de forma movimento
e fala Um boneco de luva pode perfeitamente ser uma meia com ou sem elementos no topo
dispostos agrave guisa de olhos e ainda assim imprimir com bastante clareza a ideacuteia de uma figura
aproximada do humano
O problema que o tubo do Muumlmmnechanz traz para o desenvolvimento deste
raciociacutenio eacute que de fato natildeo haacute forma animada que natildeo remeta de um jeito ou de outro agrave
lembranccedila de um ente vivo autocircnomo Sejam bonecos de luva objetos apresentados como
ideacuteias abstratas como a solidatildeo ou a morte (uma vez que satildeo presentificaccedilotildees de tais ideacuteias)
77
cartotildees pintados deslizando lateralmente em um palco de teatro de brinquedo um bastatildeo na
matildeo de um ator que faz um barquinho ou mesmo um grande corte de tecido movido por
diversas pessoas de modo a revelar certo tipo de comportamento Todos esses elementos
afirmam em seu caraacuteter de forma animada alguma semelhanccedila de vida aleacutem de um
antropomorfismo peculiar que assalta a percepccedilatildeo do espectador no momento em que este
percebe no objeto alguma coerecircncia fiacutesica e a simulaccedilatildeo da projeccedilatildeo do desejo
Seguindo entatildeo creio ser possiacutevel avanccedilar no esforccedilo de definiccedilatildeo iniciado com a
tentativa de Tillis agrave qual me permito inserir alguns pensamentos O boneco teatral passa a ser
um elemento teatral percebido pela plateia como algo diferente da integridade de um corpo
vivo e que por meio dos sistemas de signos da forma do movimento e da fala integra-se a
um contexto espetacular na funccedilatildeo de produtor de um tipo de presenccedila fundamentalmente
teatral
Neste ponto deparamo-nos com outra questatildeo Que pode parecer de importacircncia
menor mas cuja consideraccedilatildeo aponta rumos claros para reflexatildeo e treinamento acerca do
teatro de animaccedilatildeo Essa questatildeo eacute a da terminologia e da traduccedilatildeo dos termos Pois perseguir
a definiccedilatildeo de boneco teatral proposta por Tillis esbarra num complicador terminoloacutegico que
precisa ser ao menos esclarecido
Quando se busca como estamos neste momento fazendo uma definiccedilatildeo para o boneco
teatral que seja ampla e funcional recorrendo a fontes escritas em diversos idiomas surgem
divergecircncias que se estendem para aleacutem da escolha vocabular Tillis busca em sua pesquisa
estabelecer novas indagaccedilotildees e paracircmetros para a reformulaccedilatildeo ndash ou a formulaccedilatildeo enfim ndash de
uma esteacutetica para o boneco teatral Ocorre que Tillis iraacute empregar recursos e usos de seu
idioma o inglecircs para definir termos e por conseguinte as definiccedilotildees as quais esses termos se
atrelam Consideremos portanto o termo em inglecircs puppet cuja traduccedilatildeo mais usual e mais
proacutexima do que seria preciso em portuguecircs seria boneco ou boneco teatral Quando Tillis
inicia seu esforccedilo de reconhecimento de uma definiccedilatildeo eficiente a essa palavra recorre
inicialmente a uma verificaccedilatildeo de etimologia e apoiando-se numa definiccedilatildeo fornecida por
Paul McPharlin
Puppet [Boneco] deriva de pupa termo em latim para ldquomeninardquo ou
ldquobonecardquo ou ldquopequena criaturardquo A partiacutecula ndashet a torna um diminutivo uma
pequena criatura pequena A palavra marionnette de origem italiana-
francesa [que significa] ldquopequena pequena Mariardquo natildeo difere do inglecircs
puppet em seu significado baacutesico ainda que possua um final em duplo
diminutivo (apud TILLIS 1992 p 16 Traduccedilatildeo minha)
78
A aproximaccedilatildeo geneacutetica entre os termos puppet e marionnette notada por McPharlin
natildeo parece se repetir na palavra boneco escolhida para expressar a figura em portuguecircs que
deriva da boneca recreativa29
e como foi visto anteriormente a comparaccedilatildeo entre o boneco
teatral e a boneca infantil evoca questotildees que natildeo satildeo interessantes a este estudo
Mas o que parece ser particularmente digno de atenccedilatildeo no emprego das postulaccedilotildees de
Tillis em um estudo realizado em liacutengua portuguesa diz respeito a como o autor aplica o
termo puppet para qualificar objetos de teatro de animaccedilatildeo para os quais ao menos no Brasil
vem-se buscando ao longo dos uacuteltimos anos outros mecanismos descritivos
Ana Maria Amaral apresenta o termo teatro de formas animadas (AMARAL 1993) e
menciona o Congresso da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos realizado em Ouro
Preto em 1979 quando se decidiu convencionar boneco como sendo o termo geneacuterico para
definir o objeto animado que represente a figura de um homem ou animal De fato esse termo
vem a ser cunhado dessa forma para que se possa em primeiro lugar abarcar termos
empregados para estruturas especiacuteficas de bonecos como quando se usa marionete para falar
do boneco operado por meio de fios ou fantoche como referecircncia ao boneco de luva A
escolha dos termos geneacutericos surge como reconhecimento da infinidade de possibilidades de
forma e mecacircnicas de movimentaccedilatildeo presentes ao boneco teatral e que um esforccedilo de
categorizaccedilatildeo que busque isolar e nomear todas essas possibilidades eacute natildeo apenas infinito
mas desprovido de um sentido Para este estudo eacute mais valiosa a compreensatildeo de que o termo
boneco vai identificar um esforccedilo figurativo de reproduccedilatildeo da imagem do homem ou do
animal que se daacute em reconhecimento ao fato de que a linguagem teatral em questatildeo vinha jaacute
haacute algum tempo relacionando-se com poeacuteticas e vontades artiacutesticas para as quais a figuraccedilatildeo
da forma humana ou animal natildeo era mais uma questatildeo Amaral responde a essa percepccedilatildeo da
ampliaccedilatildeo das possibilidades figurativas do teatro de bonecos em uma reflexatildeo na qual se
aproxima do termo forma animada Motivada por esse reconhecimento de ampliaccedilotildees e
integraccedilotildees da linguagem do teatro de bonecos mas tambeacutem impulsionada por discussotildees
semelhantes conduzidas em outros paiacuteses e idiomas30
e do termo performing object usado
pelo artista e antropoacutelogo norte americano Frank Proschan em um estudo sobre a semioacutetica de
objetos em apresentaccedilotildees rituais e sociedade (apud AMARAL 1997 pp 25-6)
29
Definiccedilatildeo fornecida pelo Dicionaacuterio Michaelis Online em lthttpmichaelisuolcombrmodernoportuguesgt
Acesso em 22 de abril de 2011 30
Amaral menciona um coloacutequio realizado em 1985 na Itaacutelia onde se discutiu o emprego do termo figura e suas
variantes grafo-terminoloacutegicas em diversos idiomas como meio identificar esse teatro para o qual as implicaccedilotildees
antropomoacuterficas do termo boneco jaacute natildeo davam mais conta da totalidade das manifestaccedilotildees disponiacuteveis (1993
pp 241-3)
79
Assim o pensamento mais recente acerca da linguagem da animaccedilatildeo no Brasil tem se
dado no sentido de aceitar e incorporar termos que se suponham mais abrangentes e que
escapem ao aspecto tradicionalista e figurativo existente no teatro de bonecos Foi exatamente
essa necessidade de se lidar com uma base conceitual que pudesse dar conta da amplitude de
configuraccedilotildees desdobramentos e aproximaccedilotildees do boneco teatral que Amaral propocircs o termo
forma animada empregado amplamente e aceito por estudiosos e praticantes do teatro de
animaccedilatildeo O termo compreende o que se entende de maneira mais corrente como sendo o
boneco teatral mas reconhece em outros formatos de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo princiacutepios e
efeitos comuns
Mais recentemente o termo teatro de animaccedilatildeo parece ser o preferido de parte
consideraacutevel dos artistas e pensadores dedicados agrave linguagem natildeo apenas por sua
abrangecircncia mas sobretudo por apresentar uma linguagem performativa que se define a partir
de uma qualidade de accedilatildeo ou atitude (a animaccedilatildeo) ao inveacutes da necessidade de presenccedila de um
determinado elemento (o boneco ou forma animada) Ou seja a noccedilatildeo de teatro de animaccedilatildeo
ao inveacutes de teatro de bonecos ou de formas animadas define-se por meio de certa forma de
constituiccedilatildeo da cena e das relaccedilotildees especiacuteficas que se estabelecem entre os inteacuterpretes por um
lado e o puacuteblico por outro com a potecircncia teatral e sugestiva de objetos materiais e demais
elementos sobre a cena sem que haja a necessidade de se identificar um elemento
caracteriacutestico sobre a cena que dominaria o fluxo de atenccedilatildeo e em torno de cujo esforccedilo de
operaccedilatildeo caracteriacutestica toda a cena teatral se fundaria Aqui comeccedilamos a entender em que
grau devemos estar atentos ao ato de ler o material apresentado por Tillis
Para Tillis ndash de fato para o idioma inglecircs ndash o termo puppet iraacute abrigar tranquilamente
todo objeto dramaticamente relevante em uma apresentaccedilatildeo de teatro de bonecos Aliaacutes para
o idioma inglecircs o emprego do termo animaccedilatildeo (no caso animation) supotildee algumas questotildees
de entendimento jaacute que este eacute empregado em profunda relaccedilatildeo agrave modalidade cinematograacutefica
da qual fazem parte a animaccedilatildeo em stop-motion o claymation31
o desenho animado e a
animaccedilatildeo computadorizada
Natildeo se pode querer usar o texto de Tillis como ferramenta para estabelecimento de
uma definiccedilatildeo para o boneco sem perder de vista o quanto as diferenccedilas entre os idiomas
ensejam movimentos epistemoloacutegicos quase opostos O pesquisador norte americano busca
entender tudo o que se abriga sob um termo poderosamente sinteacutetico ao passo que estudiosos
31
Teacutecnica de animaccedilatildeo em stop motion com o emprego de modelos em barro ou massa de modelar
80
e artistas brasileiros empreendem jaacute haacute mais de duas deacutecadas um esforccedilo de pesquisa no
sentido de nomear categorias abrigaacuteveis sob um ainda inexistente termo sinteacutetico consensual
Este estudo optou por empregar o termo teatro de animaccedilatildeo como categorizaccedilatildeo
geneacuterica agrave linguagem teatral da qual se ocupa mas empregaraacute o termo teatro de bonecos
sempre que estiver diante de uma noccedilatildeo anterior agraves transformaccedilotildees notadas a partir do iniacutecio
do seacuteculo XX quando estiver mencionando um autor que emprega o termo ou quando houver
referecircncias agrave abrangecircncia que o termo puppet possui para o pensamento de Tillis Como este
trecho do capiacutetulo apresenta uma reflexatildeo que se daacute a partir das postulaccedilotildees do norte
americano sempre que for empregado o termo boneco este seraacute em adesatildeo agrave amplitude de
significaccedilotildees que o termo puppet tem para Tillis
Isto posto prossigamos com as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do boneco
avaliando alguns pontos tatildeo delicados quanto recorrentes Retornemos assim agrave tentativa de
responder agrave pergunta deixada em aberto paraacutegrafos atraacutes sobre se a figura do teatro de
brinquedo poderia ser chamada de boneco teatral
A princiacutepio e sobretudo se levarmos em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo cunhada acima natildeo
deveria restar qualquer duacutevida de que a figura do teatro de brinquedo seria um boneco Essa
duacutevida aumenta claro se percebermos que no teatro de brinquedo as figuras recortadas
podem representar as personagens do drama contado mas constituir-se tambeacutem de elementos
de decoraccedilatildeo cecircnica tais como mobiliaacuterio fundos de cenografia nuvens revoadas de
paacutessaros e assim por diante Por outro lado eacute inegaacutevel a adesatildeo por parte de pensadores do
teatro de bonecos da noccedilatildeo muito bem expressa por Obrastzov de que ldquoO boneco foi criado
para ser moacutevel Apenas quando se move torna-se vivo e apenas nas caracteriacutesticas dos seus
movimentos ele adquire aquilo que chamamos comportamentordquo (apud TILLIS 1992 p 133)
Ao delicado impulso lateral concedido por vezes agraves figuras do teatro de brinquedo como
indicativo de fala ou de accedilotildees especiacuteficas podemos reconhecer muito pouco do tipo de
movimento professado por Obraztsov quando este afirma que ldquoem matildeos humanas qualquer
objeto () pode cumprir a funccedilatildeo de um objeto vivo na imaginaccedilatildeo associativa do homemrdquo
(idem p 23 traduccedilatildeo minha) Podemos tambeacutem encontrar pouca familiaridade entre esse tipo
de movimento de forte cunho indicativo e com pouca preocupaccedilatildeo mimeacutetica dos
movimentos graciosos dos bonecos de fio quando operados por exemplo por Phillip Huber
ou do vigor e virtuosismo das luvas chinesas da proviacutencia de Fujian estudadas por Roberta
Stalberg que se apresentam em lutas acrobaacuteticas (Figura 37)
A questatildeo que aqui se elabora eacute como aumentar a precisatildeo na descriccedilatildeo do boneco
por aquilo que este representa e como usar a convicccedilatildeo de que o movimento eacute um elemento
81
fundamental para tal definiccedilatildeo se estes podem variar enormemente em dinacircmica em intenccedilatildeo
e em resultado para o espectador Os bonecos para serem considerados como tais precisam
ser moacuteveis ou podem apresentar uma qualidade de movimento que natildeo se expressa em acircmbito
cineacutetico e articular Ampliemos a questatildeo a arte eacute capaz de produzir imagens que animizam
objetos e ideacuteias conferindo a elementos abstratos e inanimados uma suposta participaccedilatildeo no
desencadeamento de tramas e narrativas A chuva impede o encontro de amantes e uma
revoada de paacutessaros diz ao espectador que eacute veratildeo Um casaco eternamente pousado sobre
uma cadeira trata de uma ausecircncia que explica atitudes e conduz eventos a determinado
desfecho bem como um corvo imaginado pode pousar perto de Edgard Alan Poe para
sussurrar-lhe ldquonunca maisrdquo O teatro de animaccedilatildeo tem na consideraccedilatildeo dessas potecircncias um
de seus principais impulsionadores e tambeacutem algo que contribui para conferir um inegaacutevel
encanto aos sujeitos de seus dramas ainda que ndash mas provavelmente exatamente por que ndash
indefina seus contornos No teatro de animaccedilatildeo a humanidade natildeo surge como uma afirmaccedilatildeo
inescapaacutevel impressa na corporalidade de seus inteacuterpretes que relativiza sistematicamente os
contextos fantaacutesticos e imaginados que apresenta por outra brota como surpresa em meio aos
aacutepices estilizados do que se supunha uma escapada do humano
Talvez este momento da reflexatildeo possa ser sintetizado com o auxiacutelio de um
comentaacuterio de Veltruskyacute no qual o semioacutelogo apresenta uma escolha de palavras que merece
atenccedilatildeo
Os movimentos transmitidos pelos bonecos satildeo similares agravequeles dos seres
que representam Natildeo eacute uma questatildeo de ser uma formulaccedilatildeo mais ou menos
precisa um momento crucial da apresentaccedilatildeo do boneco estaacute em questatildeo
[] Os movimentos do boneco transmitem um significado de impulso
interno correspondente ao impulso que produz os movimentos dos seres
vivos e por contiguidade esse significado impliacutecito se reflete na proacutepria
mente do espectador tendendo assim atribuiacute-los uma vida proacutepria (apud
TILLIS p 133)
Aqui dois verbos satildeo de fundamental importacircncia transmitir e representar
Determinado a natildeo me desviar do propoacutesito de buscar entender o boneco pela forma como
este eacute percebido e natildeo pela forma como eacute feito para ser percebido sou forccedilado a reconhecer
que a transmissatildeo de um movimento em muito pode diferir da reproduccedilatildeo do mesmo Assim
tambeacutem ocorre quando confrontamos as diferenccedilas existentes entre reproduccedilatildeo e
representaccedilatildeo Se o movimento que o boneco transmite ao puacuteblico se relaciona diretamente
com a busca da compreensatildeo de um ldquoimpulso internordquo (da construccedilatildeo de uma autonomia) o
que passa a estar em jogo na apresentaccedilatildeo do boneco deixa de ser o caraacuteter de projeccedilatildeo
espacial do movimento para ser o exerciacutecio de um tipo de movimento que muito bem poderia
82
Figura 37 Bonecos de luva chineses da proviacutencia de Fujian
Fonte (httpwwwredbubblecompeopledavviart6374739-sock-puppet-of-south-fujian)
Foto davvi
A luva chinesa se notabiliza por movimentos acrobaacuteticos e vigorosos mostrando em geral cenas de lutade
danccedila e de operaccedilatildeo de objetos
Figura 38 Pulcinella e Salvatore Gatto
Fonte (httporiundinetsite)
Figura 39 Duas diferentes pegas para
bonecos de luva
Fonte Programa O Teatro do Sobrevento
83
estar caracterizado com fundamentos no conceito de accedilatildeo dramaacutetica presente nos escritos de
Constantin Stanislavski e muitos dos autores de alguma forma tocados por sua obra Ou seja
trata-se de um tipo de accedilatildeo (deslocamo-nos agora do termo anteriormente apresentado
movimento) que qualifica seu executante como partiacutecipe do intercacircmbio de desejos que
impulsionam o curso da trama Mas que qualifica o seu executante a partir do reconhecimento
de um impulso interior vital do qual suas atitudes e atividades se relacionam em decorrecircncia
direta Uma vez que esse impulso interior se caracteriza natildeo apenas por seu componente
volitivo mas como resultado da percepccedilatildeo de outras forccedilas tais como o senso criacutetico e a
capacidade afetiva passa a ser possiacutevel entender o movimento do boneco como uma
qualidade de estar em cena que lhe atribui caracteriacutesticas evocativas agrave condiccedilatildeo e ao
comportamento humanos
Isto equivale dizer que um elemento em cena poderia natildeo apresentar movimentaccedilatildeo e
nem forma assemelhadas ao ser humano mas se este estiver inserido na trama espetacular de
modo a fazer o puacuteblico entender que uma vida interior lhe produz certa vontade e que o
exerciacutecio dessa vontade potildee em movimento as accedilotildees que constituem a trama espetacular este
seria visto como um boneco
O Pulcinella executado pelo artista de bonecos de luva napolitano Salvatore Gatto
(Figura 38) eacute um objeto com forma movimento e fala que apresenta alguns aspectos de
semelhanccedila com o ser humano apesar dos claros recursos de estilizaccedilatildeo e deformaccedilatildeo
presentes nos trecircs aspectos listados32
Haacute poucas duacutevidas de que se trate de um boneco teatral
uma vez que pode ser adequadamente identificado com formas tradicionais remontando
mesmo aos finais do seacuteculo XVI na Europa As accedilotildees que executa em cena nos permite
identificar uma personagem dramaacutetica com motivaccedilotildees caracteriacutesticas fiacutesicas e
comportamentais que guardam alguma coerecircncia Nem sempre eacute capaz de nos iludir quanto a
possibilidade de possuir uma vida autocircnoma mas transmite ao puacuteblico indiacutecios de uma vida
imaginada subordinada ao contexto de sua apresentaccedilatildeo sem mencionar que seus atos de
espancamento assassinato e maquinaccedilotildees produzem consequecircncias importantes no
desenvolvimento da trama apresentada
Dada a profunda relaccedilatildeo do boneco teatral com a cena posto que sua vida imaginada
apenas pode ser atribuiacuteda em meio ao contexto teatral no qual se insere e que a apresentaccedilatildeo
de um boneco eacute suficiente para conjurar qualidades teatrais agrave apresentaccedilatildeo parece claro aqui
que o entendimento dessa vida imaginada e por conseguinte o ato de animaccedilatildeo que traz a
32
Gatto emprega um recurso de estilizaccedilatildeo vocal o swazzle Uma espeacutecie de apito rudimentar postado em geral
sob a liacutengua ou sob o palato de modo a conferir agrave voz do boneco um som esganiccedilado
84
reboque o proacuteprio entendimento de boneco teatral se encontra mais relacionada com a
participaccedilatildeo do boneco (ou do que ele representa) em uma trama espetacular do que
propriamente a sua capacidade de executar accedilotildees fiacutesicas no que diz respeito a movimento
articular e deslocamento espacial O que busca se afirmar aqui eacute que o boneco (e o ato que o
anima) se daacute na medida exata do tipo de participaccedilatildeo que este exerce sobre a cena e natildeo por
meio da observacircncia de qualidades intriacutensecas estabelecidas a priori da sua relaccedilatildeo com a
cena Se nos recordarmos dos trecircs sistemas de signos (de forma de movimento e de fala)
atribuiacutedos por Tillis como sendo inerentes ao boneco teatral cabe a atestaccedilatildeo de que natildeo se
pode localizar tais sistemas no boneco teatral senatildeo por meio de uma ampliaccedilatildeo da
compreensatildeo dos mesmo e no reconhecimento de que o boneco natildeo necessita para afirmar-se
como tal enviar agrave plateia signos claros e intensos pertencentes aos trecircs sistemas
simultaneamente Tillis admite a existecircncia de um tipo de movimento para o boneco que ele
chama de movimento impliacutecito (1992 p141) Para Tillis o movimento impliacutecito seria
extriacutenseco ao boneco e provocado por efeitos de cenografia e luz Ele exemplifica o seu
ponto com os dioramas religiosos do museu da comunidade restauracionista da cidade de Salt
Lake City nos Estados Unidos Ali um movimento de luz com alternacircncia de foco sobre
determinadas figuras estaacuteticas como estaacutetuas de cera indicaria que personagem seria o
emissor da fala apresentada no sistema de som do museu e sugeriria variaccedilotildees de expressatildeo
facial e pequenos gestuais por meio da alternacircncia de luz e sombra durante a apresentaccedilatildeo que
conta a histoacuteria do mormonismo na Ameacuterica do Norte
Ora o simples reconhecimento de que a noccedilatildeo de movimento para o boneco natildeo se
restringe a uma dinacircmica articular em conjunccedilatildeo com as demais questotildees aqui discutidas
conduzem a exemplos que parecem difiacuteceis de ser ignorados
O espetaacuteculo Terceira Margem apresentado no Rio de Janeiro em 200333
pelo grupo
de brasileiros radicados na Holanda Munganga com direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro apresentava
bonecos como peccedilas pouco articuladas sendo que algumas sequer possuiacuteam pontos de
articulaccedilatildeo (Figuras 40 e 41 Video 8) Entre elas destaca-se a peccedila uacutenica esculpida em
madeira que representava a personagem do Pai que no conto de Guimaratildees Rosa que inspirou
o espetaacuteculo decide largar a famiacutelia para viver dentro de uma canoa sendo levado pela
correnteza do Rio Satildeo Francisco Ainda que fosse apresentado como uma peccedila uacutenica natildeo
articulada e carregada no palco pelo ator a importacircncia da figura estaacutetica dentro da trama
contada a sua participaccedilatildeo na conduccedilatildeo da accedilatildeo do espetaacuteculo e da histoacuteria do conto
33
As referidas apresentaccedilotildees ocorreram em 16 e 17 de novembro de 2003 como parte das atraccedilotildees daquele ano
do festival riocenacontemporanea Essas apresentaccedilotildees constituiacuteram-se na estreia do espetaacuteculo
85
Figura 40 Munganga Teatro Terceira Margem (ator Carlos Lagoeiro)
Fonte (httpwwwmunganganl)
Foto Maarten Brinkgeve e Arijan van den Berg
Figura 40 Munganga Teatro Terceira Margem (ator Carlos Lagoeiro)
Fonte (httpwwwmunganganl)
Foto Maarten Brinkgeve e Arijan van den Berg
A apresentaccedilatildeo dos bonecos natildeo articulados sobre a cena se daacute por meio da relaccedilatildeo estabelecida pelo ator
com os mesmos
86
encenado satildeo de tal modo fundamentais que natildeo se pode escapar a atribuir agrave figura um
estatuto de personagem e por conseguinte de boneco teatral
O espetaacuteculo Isto natildeo eacute um cachimbo da companhia Truks eacute uma das poucas
incursotildees do grupo paulistano em teatro para adultos e se inspira na obra do pintor Reneacute
Magritte Haacute uma cena na qual um manequim com rodas vestido e com um par de seios agrave
mostra eacute operado alternadamente por uma atriz e um ator (Figuras 42 e 43) A cena aborda a
violecircncia contra a mulher com a atriz fazendo as vezes de um duplo para o manequim e o
ator seria algueacutem que a subjuga sexualmente com violecircncia Como a movimentaccedilatildeo conferida
agrave manequim se daacute sempre em meio a uma atitude de conduccedilatildeo da personagem apresentada por
cada um dos atores que com ela se relaciona natildeo se consegue atribuir ao seu deslocamento
um desejo autocircnomo da figura Esse movimento extriacutenseco e involuntaacuterio adere perfeitamente
agrave temaacutetica da cena fazendo da figura e da sua ineacutercia personagem central dessa passagem do
espetaacuteculo
Lidamos entatildeo com casos para os quais os signos de movimento do boneco natildeo podem
ser entendidos senatildeo em ampliaccedilatildeo agraves ideias de deslocamento e articulaccedilatildeo De fato natildeo
podemos chegar ao ponto de aferrarmos-nos a uma concepccedilatildeo de boneco teatral para a qual os
entendimentos de sua estrutura natildeo nos permitam perceber suas funccedilotildees teatrais
Tillis chega mesmo a vacilar no que diz respeito a esse modo de ver as coisas quando
ao tratar da apreciaccedilatildeo que Jurkowski faz sobre o Quixote de Joseph Krofta quando diz que
na cena em que o protagonista eacute pulverizado numa cena de espancamento entre um banco no
cenaacuterio um ator que reage agraves pancadas e um boneco de Don Quixote destruiacutedo por outros
atores que esse boneco seria natildeo mais que uma efiacutegie A aderecircncia da figura agrave personagem e
a sua importacircncia para a conduccedilatildeo da trama expressa natildeo apenas na obra de Cervantes mas
do espetaacuteculo teatral que dela faz uso natildeo nos permite lanccedilar matildeo de exigecircncias de certas
qualidades de movimento para atestar se este se trataria ou natildeo de um boneco Assim
entendemos o boneco teatral como uma figura inserida num contexto espetacular bem como
o ato de animar como sendo a estrutura relacional responsaacutevel por tal inserccedilatildeo
Tillis discute as diferenccedilas que considera existir entre o boneco teatral e o elemento
teatral que Proschan chama de performing objetct34
refutando a existecircncia de animaccedilatildeo em
diversas das ocasiotildees que constam da descriccedilatildeo de Proscham ldquobonecas de brincadeiras
infantis passando por paineacuteis e imagens acompanhadas por narrativas por peep shows e
objetos de maacutegica ateacute figurinos e adereccedilos de apresentaccedilotildees teatrais [] danccedilarinos
34
Uma traduccedilatildeo considerada satisfatoacuteria para o termo e que seraacute doravante empregada eacute objeto de
representaccedilatildeo
87
Figura 42 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo
Manequim (atriz Camila Prietto)
Fonte (httpwwwtrukscombr)
Figura 43 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo
Manequim (atriz Camila Prietto)
Fonte (httpwwwtrukscombr)
Figura 44 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Gaiola
Fonte (httpwwwtrukscombr)
A forma humana eacute evocada por semelhanccedila por movimento e por participaccedilatildeo na cena
88
mascarados devotos que carregam imagens em procissotildees e contadores de histoacuterias que
traccedilam imagens na areia ou na neverdquo (PROSCHAN apud TILLIS 1992 p78) Natildeo se pode
negar que a abrangecircncia das consideraccedilotildees de Proschan poderiam suscitar discussotildees acerca
de categorias especiais de apresentaccedilatildeo e dramatizaccedilatildeo tais como a brincadeira infantil a
procissatildeo e a marcaccedilatildeo sobre a areia ou a neve mas o argumento central empregado por Tillis
para descartar diversos exemplos do que eacute categorizado por Proschan (e pelo proacuteprio Tillis)
como sendo objeto de representaccedilatildeo eacute motivo de discordacircncia deste estudo Ao comentar uma
categoria de elemento de cena tratado por Jiri Veltruskyacute sob o termo objeto de encenaccedilatildeo35
Tillis natildeo a reconhece como possiacutevel forma animada no sentido em que a tais elementos natildeo
satildeo atribuiacutedos movimento ou fala de modo a forjar uma percepccedilatildeo de vida autocircnoma Ele
complementa o argumento afirmando que o puacuteblico natildeo consegue imaginar vida nesses
elementos vendo-os sempre e imutavelmente como os objetos que deveras satildeo (idem)
Aceitar o argumento de Tillis equivale a rebaixar a carranca que representa o Pai de Terceira
Margem e o manequim de Isto natildeo eacute um cachimbo a mobiacutelia cenograacutefica quando de fato natildeo
se pode negar que tais elementos participam da cena de modo preponderante com a mesma
intensidade com que satildeo capazes de produzir significados sobre a cena que versam acerca de
uma presenccedila que se abre agrave imaginaccedilatildeo de certa qualidade de vida Se acreditarmos que o ato
de animar estaacute invariavelmente relacionado agrave qualidade de participaccedilatildeo de um elemento sobre
a cena teatral e a importacircncia que este assume sobre a trama que a cena invoca natildeo seraacute
possiacutevel entender a forja de uma vida em cena que se decirc de outra maneira que natildeo em direta
relaccedilatildeo com as qualidades de narraccedilatildeo e figuraccedilatildeo da proacutepria cena Animar natildeo eacute dar a crer
que algo pensa e se move por si apenas eacute produzir uma participaccedilatildeo vital e integrada de um
elemento em uma cena teatral de modo a que ambos elemento e cena troquem entre si os
indiacutecios de uma presenccedila
Retornando agrave figura do teatro de brinquedo que natildeo apresenta possibilidades
articulares assemelhadas ao movimento humano com ainda menor poder de convencimento
acerca de possuir vida autocircnoma do que um boneco com mais recursos de movimentaccedilatildeo se
encontra inserido no contexto de uma trama espetacular de modo a transmitir ao seu
espectador (no que isso tem de distinto do ato ou tentativa de convencer ou iludir) a existecircncia
de uma vida interior que enseja accedilotildees capazes de impulsionar o desenvolvimento dos eventos
assistidos E eacute nesse ponto que o boneco do teatro de brinquedo se diferencia dos outros
35
Tillis recorre ao exemplo fornecido pro Veltruskyacute de uma porta e uma mesa mencionadas no Tartufo de
Moliegravere para as quais em determinados momentos da peccedila certas personagens direcionam falas e atitudes
tratando-as como iacutendices de outras personagens (op cit p 79)
89
recortes com funccedilatildeo mais notadamente cenograacutefica Ainda que natildeo se possa discordar de
certa qualidade teatral atribuiacuteda a uma cena que se compotildee a partir do entendimento de certa
essencialidade quando cada elemento contribui de maneira crucial para o estabelecimento e o
entendimento da obra nem todos esses elementos contribuem por meio da mobilizaccedilatildeo das
forccedilas que compotildeem a accedilatildeo de um espetaacuteculo teatral Um objeto em cena seraacute capaz de
mobilizar tais forccedilas por causa e resultado da evocaccedilatildeo de alguma qualidade humana que este
causa sobre a percepccedilatildeo da plateia
Retornamos assim a um dos exemplos usados anteriormente a combinaccedilatildeo tubo e bola
apresentada pelo grupo Muumlmmenchanz Sua forma natildeo remete senatildeo muito longinquamente a
uma figura humana por meio de certa postura ereta encimada por uma esfera o que poderia
tambeacutem evocar uma cabeccedila Muitos bonecos de luva conseguem perfeitamente transmitir uma
impressatildeo de antropomorfismo mais clara que a forma mencionada e ter no lugar da cabeccedila
uma esfera bastante semelhante De qualquer forma ainda que por vezes algo em sua forma
possa sugerir com um grande esforccedilo de imaginaccedilatildeo uma figura humana os acertos que
produzem tal impressatildeo satildeo provisoacuterios Natildeo leva muito tempo ateacute que a bola e o tubo
separem-se alterando para o puacuteblico a estrutura percebida do objeto ainda mais para o fim
da cena o tubo posta-se horizontalmente sobre a plataforma situada ao centro do palco unido
suas duas extremidades e assumindo a forma de um anel fechado Natildeo eacute portanto a evocaccedilatildeo
da forma humana o que produz a percepccedilatildeo desse objeto como um boneco teatral Natildeo haacute
tambeacutem nada em sua forma ou movimento que o identifique com alguma tradiccedilatildeo
reconhecida em teatro de bonecos Natildeo se parece com um boneco de luva de vara de
manipulaccedilatildeo direta de sombra Seguramente natildeo eacute uma maacutescara e creio natildeo haver argumento
que o caracterize como um figurino para o ator que o opera de dentro
Natildeo apresenta caracteriacutestica de fala a natildeo ser quando emite sons guturais na
imaginada tentativa de recuperar a bola separada do tubo
Seu movimento no entanto apresenta alguns indicativos mais claros Apresenta
direcionamento focal e dirige sua atenccedilatildeo no mais das vezes a partir do orifiacutecio superior do
tubo para pontos no espaccedilo com clareza e tensatildeo suficientes para produzir na plateia a
impressatildeo de que possui vontade e reage a estiacutemulos A extrema simplicidade do contexto no
qual se insere ndash o jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da bola pontuado pelo desejo de tecirc-la
proacuteximo a si ndash quase produz a percepccedilatildeo de que o objeto exibe sua autonomia de vida e
ldquoviverdquo independentemente do contexto mas eacute importante que natildeo nos iludamos Seraacute o
engajamento da forma num contexto ndash ainda que improvisado ndash a senha para a adesatildeo da
imaginaccedilatildeo da plateia Um boneco sem um motivo faz seus movimentos provocarem uma
90
percepccedilatildeo aleatoacuteria como um brinquedo de corda perde a capacidade de angariar atenccedilatildeo
apoacutes algumas repeticcedilotildees ou se tem seu deslocamento impedido por uma queda ou um
obstaacuteculo
Assim seja com bonecos cuja forma apresenta um desejo mais niacutetido de assemelhar-se
ao corpo humano seja com bonecos no qual a figura humana se encontra indicada por
algumas caracteriacutesticas visiacuteveis em meio a uma estrutura geral bastante estilizada ou numa
combinaccedilatildeo de elementos materiais sem a menos intenccedilatildeo inicial de evocar semelhanccedila
(mesmo porque os personagens dos dramas para bonecos podem perfeitamente natildeo serem
representaccedilotildees de seres humanos) apenas conseguiremos caracterizar um elemento numa
cena teatral como sendo um boneco se nele conseguirmos capturar qualquer qualidade
evocativa de humanidade Dessa forma passamos a abordar a existecircncia de um tipo de
semelhanccedila que ainda que natildeo seja de ordem fiacutesica pois que se faz identificaacutevel em signos de
movimento de relaccedilatildeo com a trama de emissatildeo de som ainda assim consegue operar sobre a
estrutura formal do elemento de cena suposto boneco produzindo assim para ele certa
qualidade que creio podermos dizer eacute antropomoacuterfica
Ora se somos capazes de concordar que seraacute uma qualidade de antropomorfismo o
que iraacute dar a entender um elemento em cena como um boneco teatral e se o consenso
alcanccedilado pelos fazedores e pensadores do teatro de animaccedilatildeo brasileiro foi de que seraacute
considerado boneco o elemento animado capaz de figurar um homem ou animal assim sendo
parece escapar ao seu propoacutesito a adoccedilatildeo de termos auxiliares para determinar o objeto
animaacutevel que natildeo eacute um boneco posto que o ato de animar poderaacute ser entendido como a
capacidade de conferir em algum niacutevel certa qualidade antropomoacuterfica ao elemento posto em
cena O que natildeo se pode ignorar no curso desta reflexatildeo no entanto eacute o quanto a busca de
uma terminologia mais abrangente para o objeto animado se situa na afirmaccedilatildeo de uma
ampliaccedilatildeo de possibilidades figurativas dadas ao boneco teatral e de como essa vontade
ampliadora aponta para desejos de apresentaccedilatildeo e discussatildeo do sujeito dramaacutetico que natildeo
estatildeo presentes em formatos considerados mais tradicionais do teatro de bonecos Por vezes a
produccedilatildeo de uma presenccedila qualificada sobre a cena pode se dar por meio de uma dinacircmica de
utilizaccedilatildeo de materiais cujos efeitos vatildeo e vecircm ao sabor da qualidade de seu manuseio ou do
curso da trama espetacular (como se daacute em espetaacuteculos do Ventoforte) ou pelo
estabelecimento de relaccedilotildees em cena que podem ateacute dispensar o objeto animaacutevel Em Les
91
Puces Savantes36
da companhia francesa Petits Miracles o casal de atores apresentava um ato
de pulgas amestradas sem que houvesse qualquer objeto representando os animais Os
espectadores postavam-se em torno de um picadeiro em miniatura com alguns objetos tais
como cadeiras um trapeacutezio e uma piscina Ainda que natildeo houvesse objetos para
representarem as pulgas artistas a atuaccedilatildeo do apresentador em conjunccedilatildeo com a
caracterizaccedilatildeo do espaccedilo e a disposiccedilatildeo dos truques efeitos e aspectos do relacionamento
entre o ator e as ldquopulgasrdquo provocavam no puacuteblico a imaginaccedilatildeo da presenccedila das pequenas
personagens na subordinaccedilatildeo que essa presenccedila estabelece com o contexto especiacutefico do
espetaacuteculo
Este uacuteltimo exemplo seria parece um caso claro e radical de o quanto o esforccedilo de
identificaccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo do boneco teatral ndash do objeto da figura da forma animada ndash
parece prescindir do reconhecimento de caracteriacutesticas intriacutensecas ao objeto Em substituiccedilatildeo
a isso segue-se o reconhecimento por parte do puacuteblico de meios e recursos de produccedilatildeo de
uma presenccedila qualificada sobre a cena feita em interaccedilatildeo com elementos teatrais tanto
dramatuacutergicos como plaacutestico-performativos e dos quais a dinacircmica dos atores pode ser
reconhecido como um dos mais proliacuteficos e recorrentes Essa afirmaccedilatildeo atinge mortalmente
aquela anteriormente mencionada de Jurkowski que vecirc o boneco como sendo o traccedilo
distintivo do teatro de bonecos Parece que natildeo haacute meio de aceitar a afirmaccedilatildeo de Jurkowski
sem levar em conta ao menos a existecircncia de questotildees acerca do estatuto do boneco teatral
que indeterminam seus contornos e suas diferenccedilas em relaccedilatildeo aos demais elementos da cena
teatral
A forma animada pode assim ser entendida como uma estrutura que se monta por
meio das relaccedilotildees teatrais que estabelece Dessas relaccedilotildees possiacuteveis a mais dinacircmica
recorrente e proliacutefica eacute sem sombra de duacutevida a que se estabelece com o artista que a opera
A relaccedilatildeo entre operador e objeto eacute o que na imensa maioria das vezes ditaraacute a dinacircmica
cecircnica do jogo da animaccedilatildeo pois a combinaccedilatildeo das duas entidades ndash objeto e operador ndash
impotildee a mecacircnica da estruturaccedilatildeo da forma da movimentaccedilatildeo da fala e da inserccedilatildeo da
personagem animada dentro do contexto do espetaacuteculo teatral Natildeo seria de se espantar a
afirmaccedilatildeo de que uma transformaccedilatildeo ampliaccedilatildeo ou mesmo reposicionamento conceitual do
que seria o boneco teatral ou a forma animada acarreta numa transformaccedilatildeo obrigatoacuteria na
consideraccedilatildeo na preparaccedilatildeo e no entendimento da funccedilatildeo do artista operador dentro do atual
36
A traduccedilatildeo literal para o tiacutetulo desse espetaacuteculo seria As pulgas espertas No entanto quando da sua
apresentaccedilatildeo na ediccedilatildeo de 2006 do festival SESI Bonecos do Mundo o espetaacuteculo recebeu o tiacutetulo em portuguecircs
de O circo de pulgas
92
teatro de animaccedilatildeo Natildeo eacute possiacutevel perceber uma alteraccedilatildeo na construccedilatildeo formal da
personagem animada sem que algo se altere no estatuto do artista e nas maneiras como a
integraccedilatildeo desse artista com o boneco engendra corpos Corpos esses que parecem em certas
praacuteticas mais recentes alterados em suas partes isoladas e no resultado das combinaccedilotildees que
monta tanto em termos de seus modos de estruturaccedilatildeo e relaccedilatildeo quanto na maneira como satildeo
percebidos pela plateacuteia
Assim formulamos a nossa segunda questatildeo que indaga os entendimentos as
apresentaccedilotildees e as competecircncias presumidas ao artista dedicado ao teatro de animaccedilatildeo
Figura 45 Cie Petits Miracles Les puces savantes (ator Jean-Dominique Kerignard)
Fonte (httpleminutemanaquaraycom)
93
232 Que formas e funccedilotildees podem ser atribuiacutedas ao artista de animaccedilatildeo
2321 A questatildeo terminoloacutegica
Iniciamos este momento buscando precisar um pouco mais qual seria o artista de
animaccedilatildeo que abordamos neste estudo com vistas a deixar de lado uma das diversas aacutereas de
indeterminaccedilatildeo formadas em torno dos entendimentos sobre o artista que se encarrega de lidar
com teatro de animaccedilatildeo seja a partir de uma escolha poeacutetica e profissional duradoura seja em
meio a uma experiecircncia momentacircnea Como em diversos momentos deste estudo buscaremos
partir de uma avaliaccedilatildeo da terminologia empregada
Alguns dos diversos termos empregados para descrever o artista do teatro de animaccedilatildeo
em portuguecircs satildeo bonequeiro marionetista fantocheiro titeriteiro ndash ou titereiro ndash (derivado
do castelhano) mamulengueiro (para o caso do artista dedicado a esse teatro em especial que
tambeacutem carregam as designaccedilotildees de mestre e de brincante) seguidos por outros termos que
como poderemos perceber logo adiante ocupam funccedilotildees ligeiramente distintas daquela das
primeiras palavras arroladas Satildeo os termos manipulador animador ator-manipulador ator-
animador operador Algumas outras palavras tambeacutem satildeo empregadas de modo a buscar
atender a funccedilotildees mais especiacuteficas tais como construtor e confeccionador
Ao virarmos nossa atenccedilatildeo para a primeira lista de palavras ainda que consigamos
identificar termos diretamente relacionados a formas determinadas dentro da linguagem do
teatro de animaccedilatildeo como satildeo os casos de fantocheiro37
e mamulengueiro esses termos
acabam por revelar-se por demais imprecisos para compreender a definiccedilatildeo do artista a partir
da sua funccedilatildeo de especialidade Termos tais como bonequeiro e marionetista podem ser
empregados indefinidamente para determinar o artista de teatro de bonecos no exerciacutecio da
funccedilatildeo da idealizaccedilatildeo da produccedilatildeo da construccedilatildeo dos bonecos e cenaacuterios bem como das
atividades relacionadas agrave operaccedilatildeo dos bonecos e agrave apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos
Essa indefiniccedilatildeo possui um motivo evidente pois o emprego desses termos se daacute de
modo a fazer referecircncia a uma certa qualidade de artista de teatro de animaccedilatildeo que apesar de
bastante difundido e presente em nosso imaginaacuterio como encarnaccedilatildeo mais emblemaacutetica e
tradicional desse artista natildeo estaacute presente em todas as manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo
Refiro-me aqui agravequele artista de teatro de bonecos solitaacuterio e autosuficiente senhor de todas
37
O termo fantocheiro se refere no mais das vezes ao artista dedicado ao trabalho com o fantoche termo que
em portuguecircs tende a designar o boneco de luva Fato eacute que a origem dessa palavra o termo italiano fantoccino
(no plural fantoccini) poder ser empregado para referir-se a bonecos teatrais em variadas formas e meios de
operaccedilatildeo e natildeo apenas agrave luva
94
as etapas da criaccedilatildeo apresentaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do seu trabalho O artista que se encarrega
tanto do trabalho de construccedilatildeo quanto do de apresentaccedilatildeo do seu elenco valendo-se das
dimensotildees diminutas de muitos teatros de bonecos para encerraacute-lo numa mala e ldquoganhar o
mundordquo
Tillis em referecircncia agrave terminologia em liacutengua inglesa conta uma histoacuteria sobre o
emprego da palavra puppeteer cuja traduccedilatildeo aproxima-se em forma e significaccedilatildeo da
primeira parte da nossa lista de termos (TILLIS 1992 p 30) Tillis menciona Ellen Van
Volkenburg fundadora do Chicago Little Theatre que teria se saiacutedo com o vocaacutebulo por
inspiraccedilatildeo do termo empregado para o criador de mulas e condutor de charretes tracionadas
por esse animal muleteer (em portuguecircs muleteiro) Ainda que Tillis natildeo se aprofunde nos
motivos de Volkenburg parece ao menos curioso que o termo escolhido aleacutem da sonoridade
peculiar refira-se a uma funccedilatildeo dupla ou acumulada de criar e por as mulas para trabalhar A
referecircncia a essa funccedilatildeo muacuteltipla e acumulada para Volkenburg nos diz Tillis foi
considerado adequado devido ao seu caraacuteter de maleabilidade Um termo que abrigasse a
multicompetecircncia dos artistas que acorriam ao Chicago Little Theatre durante a primeira
deacutecada do seacuteculo XX que incorporaram um perfil a uma parte dos artistas de bonecos norte
americanos ndash e natildeo apenas norte americanos ndash que perdura ateacute nossos dias
Catin Nardi fundador e diretor artiacutestico da companhia Navegante de teatro de bonecos
define o que ele chama de marionetista como sendo ldquoum misto de ator diretor e artista
plaacutesticordquo (Nardi)38
De fato a explicaccedilatildeo de Nardi acompanha o entendimento do teatro de
animaccedilatildeo como sendo um processo de combinaccedilatildeo de meios expressivos ao menos no que se
refere agrave integraccedilatildeo entre criaccedilatildeo plaacutestica e criaccedilatildeo cecircnica Nardi explica
[] acho que tem um equiliacutebrio mesmo entre esses dois universos [da
construccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo de bonecos] e satildeo dois universos inteiramente
diferentes [] porque na hora que vocecirc estaacute criando para construir
necessariamente vocecirc estaacute permanentemente pensando em cena [] Vocecirc
estaacute ali nesse universo de projeto de construccedilatildeo com uma finalidade teatral
cecircnica (Idem)
A imagem do artista de bonecos solitaacuterio e multicompetente estaacute de fato presente
com assiduidade na praacutetica e no pensamento ocidentais desde haacute muito tempo ainda que
longe de ocupar uma dominacircncia capaz de obliterar a consideraccedilatildeo de outras configuraccedilotildees
possiacuteveis para o artista de animaccedilatildeo Tillis recolhe a declaraccedilatildeo de um artista britacircnico David
Currel ldquoo marionetista eacute uma combinaccedilatildeo rara de escultor modelador pintor costureiro
eletricista carpinteiro ator escritor produtor desenhista e inventorrdquo (TILLIS apud Currel
38
Citaccedilatildeo extraiacuteda da entrevista que consta como anexo a esta tese
95
1987 p1) Entender esse tipo de artista ndash de funccedilatildeo artiacutestica ndash a partir de uma combinaccedilatildeo de
capacidades posta de modo a permitir tracircnsitos entre diferentes atividades e linguagens de
produccedilatildeo artiacutestica eacute algo que versa tanto a respeito do entendimento de um artista autocircnomo
no que toca a produccedilatildeo e gerenciamento de aspectos criativos e funcionais do evento teatral
quanto da forma como o teatro de animaccedilatildeo enseja e solicita a formaccedilatildeo de um artista que
consiga mostrar alguma operatividade multi e transdisciplinar de modo a atender as demandas
da proacutepria linguagem Cria-se assim o entendimento de um artista interessado e dedicado
ldquotanto agrave brincadeira propriamente dita quanto agrave sua preparaccedilatildeo e de seu espaccedilordquo39
Isto
permite a consideraccedilatildeo de que ldquopreparar o espaccedilo de jogordquo seria uma variaacutevel do proacuteprio
jogo Ou seja a animaccedilatildeo algo impossiacutevel de ser reduzida ao ato manipulatoacuterio do jogo de
apresentaccedilatildeo da forma diante do puacuteblico eacute algo que estaacute em operaccedilatildeo desde as suas etapas de
elaboraccedilatildeo
De fato se levarmos em consideraccedilatildeo a declaraccedilatildeo de Catim Nardi apresentada mais
acima deparamo-nos com a proposiccedilatildeo de um artista para o qual a integraccedilatildeo entre
linguagens e competecircncias eacute inerente ao proacuteprio meio de expressatildeo com o qual este lida Se
entendermos que segundo cremos estar contido nas palavras de Catim o teatro de animaccedilatildeo eacute
uma combinaccedilatildeo especiacutefica de linguagens expressivas cujo processo de criaccedilatildeo pode se dar
em provocaccedilatildeo muacutetua entre expressatildeo plaacutestica e expressatildeo cecircnica talvez seja liacutecito imaginar
o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco ou da forma animada como algueacutem capaz de
dinamizar estiacutemulos materiais e espetaculares e sobretudo de provocar um diaacutelogo
integrativo potente entre os aspectos expressivos contidos nos materiais e as qualidades
discursivas de estruturaccedilatildeo cecircnica
A discussatildeo eacute ampliada por meio daquilo que Alexandre Faacutevero fundador da Lumbra
Teatro de Animaccedilatildeo aponta como sendo as diferentes caracterizaccedilotildees do sombrista termo
por ele cunhado e desenvolvido para definir o artista dedicado agraves linguagem expressiva da
sombra de acordo com a linha de trabalho e pesquisa traccedilada por ele junto agrave Lumbra
eu posso dizer que existe o sombrista avanccedilado ou sombrista profissional
que eacute esse polivalente que eacute capaz de planejar uma obra de arte e executaacute-la
em todos os sentidos que isso possa abranger Depois tem os outros niacuteveis de
sombristas que eu considero que satildeo natildeo menores mas correspondentes ao
fazer teatral Entatildeo tem o sombrista teoacuterico que eacute o que especula que eacute o
que estuda que eacute o que busca na histoacuteria que coloca isso que traduz livros
que assiste espetaacuteculos que tem um senso criacutetico mas que no fundo no
fundo natildeo entende da mecacircnica da construccedilatildeo de um espetaacuteculo Depois a
39
Essa imagem resulta da adaptaccedilatildeo de uma frase semelhante dita pelo fundador da Companhia Caixa do
Elefante em um encontro entre a referida companhia e a PeQuod- Teatro de Animaccedilatildeo realizada em marccedilo de
2011 em Porto Alegre como parte do Projeto Rumos Itauacute Cultural A gravaccedilatildeo do debate que conteacutem a frase
consta nos anexos desta tese
96
gente pode passar para um outro tipo de sombrista que eacute um sombrista
curioso que aleacutem de pensar e se interessar ele experimenta coisas Ele pode
natildeo ganhar a vida com isso ele pode natildeo ser visto pelos outros como um
profissional mas ele experimentou ele testou ele brincou com isso Depois
tem um sombrista mais teacutecnico Ele entende o processo ele jaacute experimentou
ele consegue refletir ele tem referecircncias ele consegue criar de alguma
forma imagens complexas dentro dessa linguagem mas ele natildeo eacute capaz de
atuar Ele natildeo tem o trabalho ou talvez o interesse de se colocar em cena
em se expor como um ator da sombra E depois a gente vai ter entatildeo o
sombrista avanccedilado que eacute esse que consegue abarcar todas essas coisas E
se a gente tiver um ator que natildeo tenha algum desses aspectos do teoacuterico do
curioso do teacutecnico ele natildeo vai conseguir se desenvolver com uma
habilidade e uma performance adequada pelo menos hoje para trabalhar
dentro da nossa companhia Entatildeo eacute preciso ter essa soma de funccedilotildees
interesses habilidades e competecircncias para chegar num niacutevel onde eacute possiacutevel
criar uma obra de arte e se envolver em todos os aspectos (Faacutevero)40
Na declaraccedilatildeo de Faacutevero pelo menos trecircs questotildees satildeo caras agrave nossa discussatildeo A primeira
mais oacutebvia diz respeito agrave caracterizaccedilatildeo do que ele chama de ldquosombrista avanccediladordquo que se
daacute a partir da aquisiccedilatildeo de uma ldquopolivalecircnciardquo identificada natildeo apenas no tracircnsito entre
diferentes meios de expressatildeo mas na capacidade de engajar-se em todo o percurso de
criaccedilatildeo produccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de uma obra em teatro de sombras Na esteira da
caracterizaccedilatildeo da funccedilatildeo surge uma questatildeo que talvez a anteceda (ateacute mesmo no que essa
questatildeo se relaciona com o iniacutecio da presente discussatildeo) que eacute a da proacutepria necessidade que o
artista teve de cunhar um termo que definisse o artista em teatro de sombras O termo claro
estaacute se relaciona diretamente com o entendimento do teatro de sombras como sendo um meio
de expressatildeo em animaccedilatildeo que postula para si (ao menos segundo o entendimento de Faacutevero)
um conjunto de caracteriacutesticas de expressatildeo e teacutecnica que lhe sejam particulares Por fim
parece claro na declaraccedilatildeo de Faacutevero que a combinaccedilatildeo de competecircncias e possibilidades de
expressatildeo que caracterizam a polivalecircncia do ldquosombrista avanccediladordquo natildeo se restringem (ao
menos exclusivamente) agrave combinaccedilatildeo de uma discursividade plaacutestica com uma discursividade
cecircnica Nesse sentido e se podemos ampliar o entendimento expresso por Faacutevero para outras
modalidades de teatro de animaccedilatildeo (o que acreditamos ser cabiacutevel) parece mais adequado
supor que ao artista de animaccedilatildeo se supotildee uma atuaccedilatildeo transdisciplinar que natildeo se limita a um
cruzamento previsiacutevel entre a escultura e o teatro
40
Citaccedilatildeo extraiacuteda da entrevista que consta como anexo a esta tese
97
Figura 46 Steve Hansen (USA) Punch and Judy
Fonte AMARAL 1993 p 128
O marionetista como artista multicompetente e
responsaacutevel por todos os aspectos de criaccedilatildeo e
apresentaccedilatildeo
Figura 47 Cia Teatro Lumbra Saci Pererecirc a
lenda da meia noite
Fonte (httpwwwclubedasombracombr)
Foto Alexandre Faacutevero
O sombrista opera as formas e o equipamento da
apresentaccedilatildeo usando tambeacutem o seu corpo e
atuaccedilatildeo como matriz para as projeccedilotildees de sombras
Figura 48 Cia Navegante Teatro de Marionetes Musicircus (elaboraccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Catim Nardi)
Fonte (httpwwwatebemgcombr)
A elaboraccedilatildeo da apresentaccedilatildeo de um boneco se inicia jaacute nos processos de modelagem e definiccedilatildeo da
estrutura articular
98
No entanto natildeo se pode fechar os olhos para as manifestaccedilotildees de teatro de animaccedilatildeo
em que se divide e especializa funccedilotildees agraves vezes com grande detalhamento e sofisticaccedilatildeo O
exemplo mais evidente do que se afirma eacute sem duacutevida o bunraku (Figuras 50 e 51) A
separaccedilatildeo das suas funccedilotildees que obedece agrave estrita hierarquia natildeo se daacute apenas entre a equipe
encarregada da produccedilatildeo plaacutestica e os especialistas em apresentaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Haacute
divisotildees claras e riacutegidas mesmo dentro desses grupos maiores Eacute notoacuteria a divisatildeo que essa
forma de teatro japonesa estabelece entre os manipuladores dos bonecos que percorrem uma
trajetoacuteria longa de acuacutemulo de capacidades teacutecnicas e prestiacutegio desde a etapa de manipulaccedilatildeo
dos peacutes ateacute a mais honrada da cabeccedila do boneco passando pela manipulaccedilatildeo do braccedilo direito
e de personagens menores capazes de serem operados por apenas um manipulador Divisatildeo
mais criacutetica e evidente das funccedilotildees de representaccedilatildeo no bunraku se daacute no isolamento do
narrador que se apresenta num lugar separado do espaccedilo de representaccedilatildeo dos bonecos e
manipuladores e encarregando-se integralmente acompanhado pelo shemizen da
apresentaccedilatildeo vocal da narrativa e das vozes de todas as personagens do drama de origem
jocircruri Mesmo entre os construtores haacute riacutegida especializaccedilatildeo de funccedilotildees que encarregam
profissionais de partes especiacuteficas dos corpos dos bonecos e elementos de cena
Companhias mais recentes e afeitas a experimentaccedilotildees com a linguagem da animaccedilatildeo
usualmente dividem as funccedilotildees entre construtores e operadores das formas e haacute muito jaacute natildeo
eacute mais novidade a funccedilatildeo do encenador para o teatro de bonecos Aliaacutes pode-se afirmar com
grande seguranccedila que as caracteriacutesticas de forte visualidade e intercomunicaccedilatildeo entre
linguagens artiacutesticas e propostas figurativas observados em diversas companhias de animaccedilatildeo
fazem desse teatro um suporte proacutedigo para o desenvolvimento e a experimentaccedilatildeo da
encenaccedilatildeo como forccedila poeticamente propositiva Haacute mamulengueiros como Zeacute de Vina que
natildeo constroem seus bonecos Ganham ou compram de artesatildeos como Zeacute Lopes que por sua
vez constroacutei e apresenta o seu mamulengo41
Para buscar entender como essa variedade de funccedilotildees pode ter acompanhado o que se
supotildeem ser as transformaccedilotildees no modo de se fazer teatro de animaccedilatildeo no Brasil ao longo das
uacuteltimas deacutecadas foi feito um breve estudo de fichas teacutecnicas de algumas companhias
brasileiras dedicadas agrave linguagem Esse levantamento teve como objetivo tentar entender se
caracteriacutesticas de divisatildeo de tarefas e de nomeaccedilatildeo dos profissionais de animaccedilatildeo ao longo do
41
Os bonecos esculpidos para o mamulengo nordestino podem circular entre mestres ser vendidos emprestados
ou herdados A professora na UnB doutora Izabela Brochado no espetaacuteculo feito como parte da sua pesquisa
sobre formas e temas do mamulengo chamado Mariecircta a sabida usa em cena um boneco que lhe foi
presenteado por Mestre Sauacuteba A professora numa tentativa de recuperaccedilatildeo da origem do mesmo calcula que
tenha passado por outras matildeos de modo a possuir mais de 80 anos desde a sua confecccedilatildeo
99
Figura 49 Bunraku visatildeo do palco de bonecos mais o espaccedilo do narrador e do insstrumentista
Fonte Programa Bunraku Teatro Tradicional de Bonecos do Japatildeo
Foto Hisao Kawahara e Seisuke Miyake
Da esquerda para a direita vecirc-se os manipuladores (o mestre se veste de branco com a cabeccedila descoberta)
o gidayu (narrador) e o shemisen
Figura 50 Bunraku divisatildeo dos manipuladores
Fonte Revista PUCK ndash La marionnette et les autres arts Ano 3 no 7 Charleville-Meacuteziegraveres Institut
International de la Marionnette 1995
Da esquerda para a direita vecirc-se omozukai operador de cabeccedila e braccedilo direito (estaacutegio final de
treinamento) o ashizukai operador de peacutes e pernas (estaacutegio inicial) e o hidanzukai operador de braccedilo
esquerdo (estaacutegio intermediaacuterio)
100
Figura 51 Mestre Zeacute de Vina
Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil 2008
Foto Seacutergio Schnaider
Figura 52 Mestre Zeacute Lopes
Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil 2008
Foto Seacutergio Schnaider
Figura 53 Bonecos feitos por Mestre Zeacute Lopes
Fonte Curso de Teatro IARTEUFU
Foto Mario Piragibe
Personagens Praxeacutedio Caboclo de Pena e ldquoEspetorrdquo Peinha (alto) Pisa pilatildeo (mecanismo ao centro)
Violeiro Cobra Chibana e Velha (baixo)
101
tempo poderiam apontar para alteraccedilotildees no modo de entender e fazer teatro de animaccedilatildeo por
parte da companhias
Uma breve apreciaccedilatildeo de fichas teacutecnicas de espetaacuteculos das companhias Catibrum
Contadores de Estoacuterias Grupo Sobrevento e PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo revelaram maior
incidecircncia de diferenccedilas entre as equipes de confecccedilatildeo de bonecos e os elencos de atores
manipuladores do que convergecircncias ainda que essas existam parcialmente Dos grupos
verificados o que apresentou maior acuacutemulo de funccedilotildees foi a Catibrum de Belo Horizonte
que em seus primeiros espetaacuteculos (O dragatildeo que queria ver o mar ndash 1995 Andanccedilas ndash 1996)
discrimina funccedilotildees na ficha teacutecnica sem criar dissociaccedilotildees entre o elenco e a equipe de
confecccedilatildeo42
Em espetaacuteculos mais recentes a Catibrum pratica alternadamente a grafia de
equipes separadas a indicaccedilatildeo de que a confecccedilatildeo esteve a cargo do ldquoelencordquo e em seu
espetaacuteculo mais recente D Joatildeo inventa o Brasil de 2010 ndash num movimento bastante diverso
da praacutetica habitual da companhia as equipes estatildeo dividas com riqueza de especializaccedilatildeo
chegando a indicar responsaacuteveis pelos projetos dos bonecos pela criaccedilatildeo dos mecanismos
pela confecccedilatildeo pelo fabrico dos coletes de manipulaccedilatildeo ainda discriminando um elenco com
componentes que natildeo integram obrigatoriamente nenhuma das equipes encarregadas do
processo de construccedilatildeo dos bonecos e de suas mecacircnicas de movimentaccedilatildeo Cabe indicar
tambeacutem que a Catibrum dentre as companhias cujas fichas teacutecnicas foram estudadas eacute a
uacutenica que dedica uma entrada de sua lista de componentes ao elenco de bonecos
Os exemplos de maior separaccedilatildeo entre as equipes de apresentaccedilatildeo e construccedilatildeo foram
verificados em alguns espetaacuteculos do grupo Sobrevento como O Theatro de brinquedo de
1993 e Cadecirc meu heroacutei de 1998 Esses espetaacuteculos contaram com artistas especialmente
designados para a construccedilatildeo dos bonecos a serem usados na cena43
Em muitos casos no
Sobrevento a equipe de confecccedilatildeo eacute indicada de maneira elusiva ou sob forma resumida (O
Grupo) ou sob indicaccedilotildees ainda sutis tais como os indicativos de realizaccedilatildeo e concepccedilatildeo
(casos dos espetaacuteculos Bonecos Aqui Submundo e O anjo e princesa)
De modo mais geral o que se verificou nos casos estudados eacute a tendecircncia agrave divisatildeo
entre as equipes de construccedilatildeo de bonecos e de apresentaccedilatildeo mas tambeacutem se verifica a
incidecircncia de membros atuando em ambas a equipes criando trecircs diferentes qualidades de
envolvimento trabalho de acordo com a combinaccedilatildeo das duas funccedilotildees em questatildeo a do
42
A ficha teacutecnica do primeiro espetaacuteculo aponta apenas a equipe de confecccedilatildeo sem indicar os nomes do artistas
de manipulaccedilatildeo a do segundo indica os atores manipuladores (discriminados sobre a entrada elenco) sem no
entanto dedicar espaccedilo a indicar os confeccionadores dos bonecos 43
No primeiro caso a tarefa de desenhar as figuras do teatro de brinquedo foi de Gilson Motta e no segundo a
construccedilatildeo de bonecos de luva inspirados na modalidade chinesa foi do Mestre de mamulengo Sauacuteba
102
construtor e a do artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco permitindo ainda que alguns
elementos acumulem as duas funccedilotildees Frequentemente esses membros polivalentes satildeo
componentes fundadores ou tradicionais das companhias de teatro de animaccedilatildeo Natildeo eacute raro
que os diretores das companhias (isto foi verificado nos quatro exemplos levantados)
assumam em alguns trabalhos uma funccedilatildeo na equipe de construccedilatildeo
Esse raacutepido levantamento da divisatildeo de tarefas nas companhias de teatro de animaccedilatildeo
jaacute eacute suficiente para indicar o quanto a terminologia que se ocupa desses artistas eacute vaga O
levantamento natildeo daacute conta ndash e nem a isso se propotildee ndash de listar as especializaccedilotildees
contemporacircneas do trabalho no teatro de animaccedilatildeo mas buscar chamar atenccedilatildeo para a
ausecircncia no pensamento acerca do teatro de animaccedilatildeo de uma nomenclatura que decirc conta
das etapas de produccedilatildeo e apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo Isso talvez dificulte um pouco o trabalho
de pesquisa acerca das transformaccedilotildees da percepccedilatildeo e da funccedilatildeo do ator sobre a cena de
animaccedilatildeo Talvez permita ao pesquisador agir com menos cautela na proposiccedilatildeo de novas
terminologias (o que natildeo eacute a intenccedilatildeo deste trabalho) ou ainda auxilia-o a ter clareza da
verdadeira simplicidade escondida por traacutes da dificuldade em se conferir termos e descriccedilotildees
especiacuteficas a uma linguagem teatral que vem desde os iniacutecios do seacuteculo XX percorrendo um
trajeto rumo a uma crescente indissociaccedilatildeo do panorama mais geral do teatro
Se pensarmos no artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco em cena e sobretudo
para a funccedilatildeo que este desempenha o levantamento de fichas teacutecnicas do Grupo Sobrevento
pode revelar certas peculiaridades aleacutem de ensejar feacutertil discussatildeo Notaacutevel pela disposiccedilatildeo
em explorar diferentes formatos e estruturas de bonecos e formas animadas ao longo de seu
percurso o Sobrevento faz questatildeo nas listagens descritivas de seus espetaacuteculos de indicar
que propostas de animaccedilatildeo foram empregadas e combinadas em cada ocasiatildeo Isto desenha
um claro painel dos interesses de exploraccedilatildeo da variedade do teatro de animaccedilatildeo por parte da
companhia aleacutem de dimensionar o desafio aos quais seus membros se impotildeem O maior deles
eacute claramente o do desenvolvimento de competecircncias manipulativas que sejam satisfatoacuterias
diante da variedade de modos e teacutecnicas abordados Esse desafio eacute acompanhado pelo da
identificaccedilatildeo e reflexatildeo acerca da funccedilatildeo do inteacuterprete vivo sobre a cena de animaccedilatildeo
Percebe-se que a cada peccedila o grupo elege um termo para nomear o artista apresentador da
forma animada e que o termo escolhido iraacute buscar relacionar-se com a modalidade de
animaccedilatildeo empregada
Por exemplo nos espetaacuteculos Beckett e O Theatro de brinquedo os componentes do
elenco estatildeo identificados na ficha teacutecnica como interpretaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Em ambos os
espetaacuteculos haacute alternacircncia de manipulaccedilatildeo agrave vista (no caso de Beckett manipulaccedilatildeo direta
103
sobre balcatildeo e em O Theatro de brinquedo uma variaccedilatildeo em escala ampliada da
manipulaccedilatildeo de figuras bidimensionais pintadas sobre cartatildeo) e atuaccedilatildeo realizada pelos
mesmos artistas encarregados pela operaccedilatildeo dos bonecos44
A ficha teacutecnica do espetaacuteculo
Cadecirc meu heroacutei Identifica os inteacuterpretes apenas sob a entrada manipulaccedilatildeo Isto se deve ao
fato de o espetaacuteculo empregar na maior parte do tempo a manipulaccedilatildeo de bonecos de luva
assemelhado aos da tradiccedilatildeo chinesa da proviacutencia de Jiang com operadores ocultos Ainda
que a peccedila apresente um epiacutelogo no qual os manipuladores saem detraacutes do aparato
cenograacutefico este se constitui num curto momento com fins de arremate conciliatoacuterio natildeo
podendo ser entendido como algo que descaracterize a escolha do grupo pelo emprego do
animador oculto para esse espetaacuteculo
Uma escolha como a feita pelo Sobrevento conduz a um tipo de indagaccedilatildeo semelhante
ao do momento anterior deste trabalho em que foi abordado o objeto animaacutevel Se
reconhecermos que aquilo a que se convencionou chamar teatro de animaccedilatildeo se monta sobre
uma unidade instaacutevel um ajuntamento complexo de formas e procedimentos que abriga
manifestaccedilotildees tatildeo distintas e discrepantes entre si chega um momento no trabalho de anaacutelise
em que uma escolha se faz necessaacuteria Esta se situaria entre a busca dos traccedilos distintivos
universais capazes de dar a reconhecer o teatro de animaccedilatildeo como modalidade ndash ou
linguagem ndash teatral e o entendimento de que se estaacute diante de uma coleccedilatildeo inconciliaacutevel que
natildeo oferece ao pesquisador uma oportunidade de estudo consistente que natildeo se faccedila senatildeo por
meio da separaccedilatildeo e do entendimento de cada manifestaccedilatildeo do que se convencionou chamar
teatro de animaccedilatildeo como se cada uma fosse uma modalidade espetacular sem relaccedilatildeo com as
demais
Esse problema estaacute presente no estudo dos dois elementos centrais da apresentaccedilatildeo em
animaccedilatildeo que satildeo o objeto animado e o artista operador As indagaccedilotildees que levam a
considerar o emprego e o significado de termos como boneco forma animada figura entre
outros satildeo afinal de natureza semelhante agravequelas que se deteacutem sobre se termos como
manipulador animador e operador satildeo apenas sinocircnimos ou se conteacutem significados proacuteprios
e se constituem em separaccedilotildees no entendimento e na praacutetica da apresentaccedilatildeo do boneco em
cena
De qualquer forma ainda que se reconheccedilam na busca pelas caracteriacutesticas geneacutericas
do teatro de animaccedilatildeo algo de redutor devido agrave proacutepria natureza desse esforccedilo natildeo parece a
44
O espetaacuteculo Beckett apresenta trecircs peccedilas curtas de Samuel Beckett sendo que apenas em O impromptu de
Ohio os atores se potildee em cena apartados da funccedilatildeo de operaccedilatildeo de bonecos que desempenham no dois
momentos anteriores Ato sem palavras e Ato sem palavras II
104
melhor escolha renunciar agraves caracteriacutesticas universais e buscar compreender a animaccedilatildeo como
uma linguagem teatral compreendida sob o vieacutes da variedade Primeiramente porque uma
tentativa de separar os tipos de animaccedilatildeo em formatos independentes redundaria em um
fracasso justificado por sua imensa diversidade e pelo constante cruzamento entre modos de
operaccedilatildeo e de construccedilatildeo cecircnico-dramatuacutergica verificado natildeo apenas nas vontades artiacutesticas
mais agrave vanguarda mas tambeacutem ndash e talvez sobretudo ndash nas invenccedilotildees e transformaccedilotildees que
podemos verificar nas suas manifestaccedilotildees associadas a tradiccedilotildees populares Em seguida e a
reboque do primeiro motivo devido agraves similitudes linguiacutesticas que nos satildeo dadas a perceber
pela proacutepria dinacircmica de intercacircmbios estabelecida entre as modalidades de teatro de
animaccedilatildeo Isto aliaacutes no leva a pensar nos caminhos percorridos pela animaccedilatildeo de formas ateacute
o ponto atual em que ao menos de acordo com as provocaccedilotildees colhidas no iniacutecio deste
trabalho cresce a dificuldade em se reconhecer distinccedilotildees claras entre forma e operador tanto
no que diz respeito a uma divisatildeo de funccedilotildees entre esses dois elementos sobre a cena quanto
no que tange aos seus proacuteprios limites fiacutesicos e sensiacuteveis
Portanto ainda que se reconheccedila que o artista de animaccedilatildeo ramifica-se em diversas
funccedilotildees que podem ou natildeo ser acumuladas pelo mesmo indiviacuteduo fica claro aqui que o
objeto do nosso estudo para este momento eacute aquele artista que se ocupa da apresentaccedilatildeo do
espetaacuteculo de animaccedilatildeo operando bonecos e formas animadas ou mesmo estabelecendo tipos
de relaccedilatildeo com a cena que natildeo supotildeem o ato manipulativo
Por esse motivo mesmo este trabalho acabou elegendo o termo operador para
designar o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco ou forma animada tanto aquele cuja
formaccedilatildeo e disposiccedilatildeo se concentra apenas no trabalho de apresentaccedilatildeo quanto ao artista de
competecircncias combinadas em situaccedilatildeo performativa Essa escolha se daacute com a consciecircncia de
que o termo conteacutem certa carga de impessoalidade e pouca relaccedilatildeo com o trabalho criador
artiacutestico mas se mostra eficiente ao evitar a carga de significaccedilatildeo existente em termos mais
consagrados de modo a permitir maior clareza no curso de raciociacutenio que emprenndo a partir
deste momento
Em um trabalho anterior apresentei o entendimento de que operador e forma
constituem sobre a cena uma estrutura muacuteltipla natildeo-complementar um organismo
performativo combinado (PIRAGIBE 2007) que desempenharia sobre a cena a funccedilatildeo do
ator O entendimento dessa funccedilatildeo tem por base algumas definiccedilotildees apresentadas por Patrice
Pavis (1998 2008) e Anne Ubersfeld (2005)45
O caraacuteter notadamente semioloacutegico das
45
Essa aproximaccedilatildeo do ator como funccedilatildeo tambeacutem se encontra apoiada na loacutegica empregada por Michel Foucault
ao tratar de autoria em uma aula inaugural chamada ldquoO que eacute um autorrdquo (2002)
105
anaacutelises desses autores aponta para o entendimento do ator como sendo uma funccedilatildeo
desempenhada sobre a cena teatral que apresenta relaccedilatildeo ativa no desenvolvimento da accedilatildeo
espetacular ao mesmo tempo em que articula com sua apresentaccedilatildeo as separaccedilotildees e
aproximaccedilotildees entre vida objetiva e vida imaginada Esse olhar que desobriga o entendimento
do ator como sendo um indiviacuteduo aponta para a proposiccedilatildeo de atores vistos como estruturas
corporais combinadas corpos parciais virtualidades e objetos Ainda a articulaccedilatildeo operada
pelo ator entre vida objetiva e vida imaginada (entre personagem e personalidade)
mencionada por Pavis como sendo um traccedilo fundamental da definiccedilatildeo de ator fornece a senha
para o entendimento de um ator de corpo desdobrado Claro as diversas maneiras de
relacionar forma animada e operador (oculto ou aparente) natildeo permitem que o
desdobramento corporal mencionado ocorra de modo dispor de maneira estrita e linear
funccedilotildees e elementos O objeto natildeo representa sempre a personagem de ficccedilatildeo nem o operador
faz obrigatoriamente agraves vezes do artista narrador nem mesmo essas ideacuteias podem ser
separadas com precisatildeo entre os componentes da estrutura performativa O que importa aqui eacute
a proacutepria dinacircmica de cisatildeo e combinaccedilatildeo corporal capaz de conduzir a plateia a percepccedilotildees
de ambiguidade simultacircnea o que Jurkowski chama de ldquoefeito de opalizaccedilatildeordquo (2000 pp35-
6)
Outra dualidade interessante verificada no teatro de animaccedilatildeo e que o entendimento
desse organismo combinado evoca eacute aquela que distingue a estrutura de origem do
movimento fonte criadora volitiva e autocircnoma da accedilatildeo do boneco de outro corpo cuja
percepccedilatildeo impressatildeo de autonomia e sentido cecircnico satildeo conferidos por influecircncia da vontade
e criaccedilatildeo deste primeiro Mais uma vez eacute necessaacuterio mencionar que nem sempre eacute possiacutevel
reconhecer com clareza os limites e separaccedilotildees entre esses corpos (admitindo que haja
separaccedilotildees e limites) Um exemplo oacutebvio eacute o do operador oculto que daacute a ver ao puacuteblico
apenas o boneco mas podemos mencionar mais uma vez as combinaccedilotildees corporais do Teatro
Hugo e Inecircs que usa os corpos dos operadores para construir seus bonecos e o trabalho de
Oichi Okamoto agrave frente do Don Doro Hyaki Puppet Theatre que operava um boneco em
tamanho real enquanto usava uma maacutescara com o intento de produzir sobre o espectador a
incerteza sobre qual seria o boneco qual o operador
Portanto ao postarmos nosso olhar sobre aquele que se encarrega da apresentaccedilatildeo no
teatro de animaccedilatildeo o que encontramos de fato eacute um artista diante de uma seacuterie de desafios em
termos de formaccedilatildeo e acuacutemulo de competecircncias dados os atravessamentos linguiacutesticos
possibilitados pela animaccedilatildeo contemporacircnea que ao considerar mais e mais a sua pluralidade
liguiacutestica as combinaccedilotildees materiais e a performance corporal do operador solicita a esse um
106
maior preparo mas que tambeacutem precisa ser entendido agrave luz da impressatildeo que sua
apresentaccedilatildeo produz sobre a plateia Parece que natildeo basta buscar entender o artista que se
apresenta em um contexto de teatro de animaccedilatildeo como um acumulador de competecircncias
pensaacute-lo a partir da uma capacitaccedilatildeo formal uma vez que esta natildeo se daacute com outro fito que
natildeo o de produzir certa variedade e qualidade de efeitos sobre a cena E se tais efeitos satildeo o
que de fato caracteriza a linguagem da animaccedilatildeo e identifica suas formas tradicionais e
transformaccedilotildees natildeo se pode ignorar a variedade de meios disponiacuteveis para alcanccedilaacute-los
Esse levantamento panoracircmico e um tanto apressado das fichas teacutecnicas jaacute eacute suficiente
para mostrar termos como manipulador animador e ator-manipulador sendo empregados
juntamente com generalizaccedilotildees tais como o mero emprego do termo elenco que parece
adequar-se a espetaacuteculos que lidam com o artista agraves vistas do puacuteblico na mesma medida em
que solicitam desse elenco competecircncias que natildeo se limitam agrave manipulaccedilatildeo de formas Assim
vemos companhias que buscam nomear seus artistas de apresentaccedilatildeo de modo a construir para
eles um campo de atuaccedilatildeo especiacutefico juntamente com companhias que exercitam alguma
aproximaccedilatildeo ao menos terminoloacutegica da funccedilatildeo do operador de formas com a do ator O
termo elenco eacute usado pela Pia Fraus que regularmente combina elementos de teatro de
animaccedilatildeo danccedila e teacutecnicas circenses Neste caso a escolha terminoloacutegica acompanha a
intenccedilatildeo por parte da companhia de produzir um ambiente espetacular multidisciplinar para o
qual a participaccedilatildeo do inteacuterprete natildeo revela uma competecircncia especiacutefica mas se daacute de um
modo ampliado e por vezes natildeo especializado46
Tillis opta por encerrar discussatildeo
46
Haacute que se reconhecer o caso especiacutefico da companhia Pia Fraus no que esta apresenta em termos de estrutura
empresarial Observa-se uma grande circulaccedilatildeo de elencos para os espetaacuteculos da companhia que lida com uma
estrutura capaz de apresentar o mesmo espetaacuteculo simultaneamente em lugares diferentes devido ao emprego de
diversos elencos Na entrevista que segue como anexo a esta tese o diretor Beto Andreetta fala de como a
companhia se empenha em determinar uma marca esteacutetica que seja independente da presenccedila em cena de
determinados artistas ldquoOnde eu natildeo estou a Pia Fraus estaacute igual [] Entatildeo despersonalisou eacute um modelo de
grupo Natildeo eacute muito usual no Brasil geralmente eacute mais personalizado A gente virou quase uma marca assim
quase um modo de fazer teatrordquo (ANDREETTA 2010) Isto se deve em grande parte agrave centralidade que os
objetos exercem em diversos dos espetaacuteculos da companhia e da dinacircmica de encenaccedilatildeo e operaccedilatildeo dos mesmo
que natildeo requer grande periacutecia Diversas companhias de teatro de animaccedilatildeo no Brasil acompanharam a tendecircncia
verificada no panorama brasileiro do teatro de grupos a partir da deacutecada de 1990 e se constituiacuteram como
coletivos suportados pela presenccedila e pela poeacutetica de um encenador que conferiam identidade a esses
ajuntamentos variaacuteveis de atores Como a Pia Fraus a companhia XPTO apresenta dinacircmica semelhante
funcionado em torno do esforccedilo criativo e das qualidades gregaacuterias do encenador Osvaldo Gabrieli Em ambos
os casos as identidades dos espetaacuteculos repousam bem mais sobre os objetos e a configuraccedilatildeo plaacutestica da cena do
que propriamente por meio da presenccedila de inteacuterpretes especiacuteficos No caso da Cia Lumbra dedicada ao teatro de
sombras eacute inegaacutevel a centralidade criativa de Alexandre Faacutevero ainda que este declare preocupaccedilatildeo e atenccedilatildeo
para a formaccedilatildeo de artistas competentes o suficiente para integrar os elencos de seus espetaacuteculos (FAacuteVERO
2011) Outro caso eacute o da Cia PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo que tal qual as mencionadas eacute criada e sustentada
em torno dos desejos artiacutesticos de seu diretor Miguel Vellinho mas que se vecirc diante de dificuldades quando
necessita substituir membros dos elencos de seu repertoacuterio pois que esses processos requerem um curva larga de
aprendizado especiacutefico nos modos manipulativos e a preocupaccedilatildeo com a queda de qualidade nos trabalhos eacute
verdadeira e constante
107
terminoloacutegica acerca do artista de apresentaccedilatildeo no teatro de animaccedilatildeo com a escolha do termo
operador para isolar a funccedilatildeo e diferenciaacute-la da evocaccedilatildeo agrave multicompetecircncia contida em
marionetista Este trabalho tem considerado tal opccedilatildeo apesar de entender que o termo eacute
redutor no que diz respeito agraves possibilidades teacutecnicas e poeacuteticas disponiacuteveis a esse artista que
trata de uma noccedilatildeo imprecisa de sua funccedilatildeo e atuaccedilatildeo
O emprego do termo generalizante elenco por parte natildeo apenas da Pia Fraus mas de
outras companhias como a PeQuod a Catibrum em fase mais recente e mesmo o emprego da
especificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e atuaccedilatildeo por parte do Grupo Sobrevento parece indicar ou
melhor reconhecer alguma semelhanccedila existente entre o trabalho do animador de bonecos e
formas e o trabalho do ator Se eacute possiacutevel reconhecer o crescente emprego de termos
generalizantes (elenco) ou de terminologias combinadas (ator-manipulador) para definir esse
artista natildeo se pode negar o quanto o emprego desses termos reconhece uma aproximaccedilatildeo
entre o operador de formas animadas e o ator de teatro Essa aproximaccedilatildeo embora bastante
evidente no ambiente multidisciplinar de aproveitamento contemporacircneo do operador posto agrave
mostra parece se dar nas diversas manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo
108
2322 Dois mirantes para o ator de animaccedilatildeo
Uma discussatildeo acerca dos entendimentos do artista de animaccedilatildeo como sendo um ator
jaacute se encontra presente nas vontades terminoloacutegicas recentes que cunha funccedilotildees tais como
ator manipulador ou ator bonequeiro O que se pretende nesse momento eacute verificar as
aproximaccedilotildees perceptivas e operativas dessas funccedilotildees de modo independente e anterior agraves
terminologias cunhadas para dar conta dos ambientes de multicompetecircncia contemporacircnea E
esta tentativa parte da consideraccedilatildeo de dois diferentes pontos de vista para a questatildeo Dois
locais de observaccedilatildeo que consideram respectivamente a funccedilatildeo e a presenccedila do artista sobre
a cena durante o proacuteprio ato da apresentaccedilatildeo e um entendimento do artista que se faz por
meio das competecircncias teacutecnico-linguiacutesticas que o qualificam para o exerciacutecio de suas
prerrogativas artiacutesticas e profissionais47
Esses dois lugares de observaccedilatildeo fornecem dados
para a postulaccedilatildeo de uma anaacutelise de caracteriacutesticas de atuaccedilatildeo presentes ou natildeo no trabalho do
operador de formas animadas
O primeiro desses mirantes eacute aquele do simples reconhecimento da presenccedila e da
influecircncia do artista sobre a cena Esse reconhecimento constroacutei o entendimento de que um
artista que participe de uma cena em teatro de animaccedilatildeo esteja ele oculto ou natildeo aos olhos do
puacuteblico desempenhando ou natildeo uma personagem em particular participando em maior ou
menor grau da operaccedilatildeo da forma preocupado mais ou menos com a apresentaccedilatildeo da
personagem ou com princiacutepios de operaccedilatildeo das formas possuindo formaccedilatildeo especiacutefica ou
natildeo estaraacute invariavelmente acionando em seu desempenho caracteriacutesticas proacuteprias de
atuaccedilatildeo
Para compreendermos melhor o que se afirma proponho que imaginemos trecircs
possibilidades distintas de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo na primeira delas vemos um boneco de
luva sendo mostrado do topo de uma empanada por um artista que o controla e eacute responsaacutevel
por sua vocalizaccedilatildeo O boneco tem uma voz que lhe eacute caracteriacutestica e volta e meia se refere
jocosamente agrave figura escondida atraacutes dos panos como algueacutem desagradaacutevel a quem este tem
que se submeter embora vez ou outra diga fazer o contraacuterio O segundo caso mostra trecircs
manipuladores atraacutes de um boneco de corpo inteiro que executa accedilotildees sobre um balcatildeo A
cena eacute silenciosa e cada um dos artistas ocupa-se exclusivamente de uma parte da anatomia do
47
Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado (PIRAGIBE 2007) proponho a compreensatildeo de um organismo
performativo combinado entre operador e forma como sendo a estrutura que desempenharia no teatro de
animaccedilatildeo a funccedilatildeo do ator teatral A discussatildeo posta aqui ainda que apresente uma seacuterie de pontos comuns
reporta-se ao ator como indiviacuteduo que desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica sobre a cena teatral capaz de produzir
certa qualidade de impressatildeo diante do espectador e como repositoacuterio de caracteriacutesticas e competecircncias
performativas
109
Figura 54 Operador oculto Sesame Street (atriz Kathrin Mullen)
Fonte Revista Puppetry International no 10 Strafford UNIMA-US 2001 p 12
Os olhos atentos ao monitor permitem ao artista operador verificar os efeitos do seu desempenho em
trabalhos para cinema e televisatildeo
Figura 55 Operador aparente PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo Sangue Bom (atores da esquerda para a
direita Marise Nogueira Liliane Xavier Marcio Nascimento e Marcio Newlands)
Fonte (wwwsesibonecoscombr)
Foto Seacutergio Schnaider
Destaque para a expressatildeo da atriz ao centro (Liliane Xavier) que acompanha as reaccedilotildees esperadas para
a personagem animada Ainda que nem sempre seja desejaacutevel agrave cena o envolvimento da expressatildeo facial do
ator operador esta indica o esforccedilo de atuaccedilatildeo realizado de modo a impulsionar as reaccedilotildees no boneco
110
boneco Nenhum deles estabelece qualquer relaccedilatildeo direta com a cena fazendo o possiacutevel
para que suas participaccedilotildees sejam discretas o suficiente para natildeo desviar a atenccedilatildeo do puacuteblico
do boneco Por fim imaginemos um artista que dispotildee detraacutes de uma tela uma sequecircncia de
objetos projetados por um foco luminoso enquanto outro conta uma histoacuteria Desses objetos
muitos desempenham uma funccedilatildeo que poderiacuteamos entender como mais aparentada da
cenografia tal como silhuetas de paisagens transparecircncias com fundos de cenas mas tambeacutem
formas que caracterizam as personagens do conto que eacute narrado simultaneamente pelo outro
O primeiro dos casos apresenta um ator que natildeo se mostra em cena posto que estaacute
oculto atraacutes de uma empanada mas que se encontra engajado numa apresentaccedilatildeo cujos
recursos expressivos encontram-se divididos entre os atributos formais a potecircncia de
movimentaccedilatildeo e a teatralidade conjurada pelo boneco com a operaccedilatildeo o entendimento da
cena e do jogo com o puacuteblico e a voz desse ator A personagem que se apresenta natildeo eacute uma
construccedilatildeo nem o resultado de qualquer dos dois em particular mas o substrato do
acionamento de propriedades sensiacuteveis desse artista em sua relaccedilatildeo com a cena com os
espectadores e com o boneco (em seus aspectos simboacutelicos e materiais) O segundo caso
apresenta um esforccedilo manipulativo dividido entre trecircs operadores que por estarem agrave vista do
puacuteblico comportam-se de modo a direcionar a atenccedilatildeo do mesmo no sentido desejaacutevel aos
propoacutesitos da cena em questatildeo Sua participaccedilatildeo encaminha por mais discreta que seja
determinada leitura da personagem e da situaccedilatildeo da cena e a sua irrefutaacutevel visibilidade por
parte dos espectadores faz desse artista um componente inapelaacutevel da cena em exibiccedilatildeo Em
ambos os casos ainda que certas diferenccedilas possam ser percebidas natildeo se pode negar a
participaccedilatildeo desses artistas na construccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo das personagens bem como o
fato de que a exposiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo de suas interferecircncias eacute determinante na percepccedilatildeo das
cenas Esses artistas atuam isso natildeo se pode negar mas o fazem de modo a projetar
expressividade seja por esforccedilo solitaacuterio ou na conjunccedilatildeo com o trabalho de outros de modo
a complementar e qualificar a apresentaccedilatildeo do boneco Trata-se de um ator que natildeo usa a
forma para expressar-se mas que combina o seu esforccedilo com o de outros atores mais o
boneco no sentido de produzir uma apresentaccedilatildeo composicional O terceiro caso eacute mais
complexo uma vez que natildeo se pode entender na dinacircmica de troca ou de operaccedilatildeo de lacircminas
ou de silhuetas um esforccedilo solitaacuterio ou combinado de apresentaccedilatildeo de uma personagem
dramaacutetica Nossa compreensatildeo se constroacutei nesse caso por meio do reconhecimento de uma
atividade presente nos dois exemplos anteriormente mencionados mas ainda natildeo comentadas
e que talvez forneccedila dados mais soacutelidos para o entendimento das aproximaccedilotildees entre o ator e
o operador de formas animadas A participaccedilatildeo imediata e presencial de um operador de
111
formas que dispotildee personagens e encadeia diretamente os dados de uma determinada
narrativa o qualifica como uma espeacutecie de narrador que deve harmonizar a sua dinacircmica de
disposiccedilatildeo de quadros e figuras com a narrativa verbal mencionada A exibiccedilatildeo de uma figura
que desempenhe uma personagem na trama narrada o poraacute de imediato no mesmo patamar de
atuaccedilatildeo que os exemplos anteriores mas a disposiccedilatildeo de quadros e elementos fixos ou moacuteveis
que auxiliam a contar ou comentam a histoacuteria do narrador podem de acordo com a
complexidade dos elementos e o grau de interaccedilatildeo destes com a histoacuteria aproximar ou afastar
a sua participaccedilatildeo do que podemos entender como atuaccedilatildeo De qualquer forma eacute possiacutevel
identificar algumas caracteriacutesticas de narrador em seu desempenho o que podemos considerar
como algo que apresenta caracteriacutesticas claras de atuaccedilatildeo
Assim sendo ainda que natildeo possamos reconhecer certas qualidade especiacuteficas do
operador de formas em relaccedilatildeo ao ator natildeo se pode negar o reconhecimento certos pontos
comuns sobretudo no que diz respeito agrave qualidade de atuaccedilatildeo dos seus trabalhos e que se
ampliam agraves vista da audiecircncia que tenderaacute invariavelmente a entender como ator toda
presenccedila e participaccedilatildeo operativa sobre a cena
Esse modo de reconhecimento eacute semelhante agravequele que determina como boneco teatral
todo objeto visto pela plateia como tal natildeo importa se esta conteacutem caracteriacutesticas estruturais
que o identifiquem como boneco ou se obedece a descriccedilotildees preacutevias cunhadas por estudiosos
Os sentidos da plateia satildeo a chave de determinaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo chave essa que
amplia o seu alcance na consideraccedilatildeo dos modos de ocultaccedilatildeo do operador mas que retorna agrave
primeira proposiccedilatildeo na simples atestaccedilatildeo de que o operador se faz presente na forma que
opera
A outra aproximaccedilatildeo que norteia a discussatildeo acerca das caracteriacutesticas de atuaccedilatildeo
perceptiacuteveis no trabalho do artista de animaccedilatildeo se daacute pelo ponto de vista da formaccedilatildeo Esse
mirante eacute aquele que identifica um percurso formativo especiacutefico na constituiccedilatildeo do qual satildeo
elencados princiacutepios de treinamento e competecircncias operativas que satildeo particulares ao artista
de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo de modo a reconhecer princiacutepios que sejam comuns
aparentados ou totalmente especiacuteficos
A aproximaccedilatildeo formativa natildeo rivaliza com a aproximaccedilatildeo perceptiva natildeo satildeo de fato
leituras excludentes e ambas possuem legitimidade cada uma a seu modo No entanto a
aproximaccedilatildeo formativa impotildee a estudiosos e praticantes mais desafios e questotildees do que a
outra pois se situa no exato ponto de formulaccedilatildeo das questotildees praacuteticas mais delicadas quando
tratamos do campo ampliado do teatro de animaccedilatildeo que busca princiacutepios de entendimento e
112
Figura 56 Cia Teatro Lumbra Saci visto detraacutes da tela
Fonte (httpwwwclubedasombracombr)
Figura 57 Cia Truks E se as histoacuterias fossem diferentes (ator Henrique Sitchin)
Fonte (httpwwwtrukscombr)
As imagens projetadas satildeo produzidas de modo diferente do teatro de sombras (projeccedilatildeo de filmagem da
mesa de trabalho do ator) ainda que se perceba uma personagem operada em sobra sobre a tela No
entantoeacute possiacutevel reconhecer na atividade de manipulaccedilatildeo das imagens sobre a mesa qualidades de
atuaccedilatildeo de relaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo de discurso espetacular
113
criaccedilatildeo que sejam comuns agraves suas inuacutemeras manifestaccedilotildees ao mesmo tempo em que se
reconhece como campo de operaccedilotildees de transdisciplinaridade artiacutestica
Beltrame trata em sua tese de doutorado de questotildees relacionadas com aspectos
formativos do artista de formas animadas no Brasil Inicia apontando para o problema da
escassez de percursos formativos consistentes e consagrados para o artista de animaccedilatildeo no
Brasil resultando no entendimento de que a formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo se daacute no mais
das vezes dentro do de companhias por autodidatismo ou por meio de oficinas curtas que se
propotildeem a cobrir num curto espaccedilo de tempo uma gama ampla de competecircncias especiacuteficas
e complexas envolvendo aspectos de apresentaccedilatildeo e construccedilatildeo (BELTRAME 2001)
Beltrame complementa
Os cursos ou oficinas que se propotildeem a ensinar ldquoum pouco de tudordquo acabam
oferecendo um tipo de formaccedilatildeo rudimentar com pouca consistecircncia
Ensinando quase nada consolidam a visatildeo de que a profissatildeo do artista de
ator bonequeiro eacute pouco codificada e tem uma diversidade na definiccedilatildeo dos
postos podendo ser praticada por qualquer pessoa que tenha aprendido
alguns conhecimentos baacutesicos A passagem por um desses cursos jaacute permite
autoproclamar-se ldquoartistardquo (BOURDIEU 1996 p257) (BELTRAME 2001
p 49-50)
A necessidade que Beltrame identifica em se dar mais alternativas e consistecircncia agrave
formaccedilatildeo do artista de formas animadas no Brasil estaacute diretamente relacionada com a
preocupaccedilatildeo exposta na passagem citada expressa pelo professor da UDESC com a
qualidade dos trabalhos em animaccedilatildeo que se apresentam pelo Brasil e como muitas vezes a
linguagem eacute representada para puacuteblicos diversos muitos dos quais com poucas referecircncias
por meio de grupos de artistas pouco capacitados que se aproximam da linguagem com pouca
disposiccedilatildeo investigativa e apuro de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo quase ausentes A isto se
acrescentam as participaccedilotildees pontuais de bonecos em espetaacuteculos teatrais na sua imensa
maioria destinada ao puacuteblico infantil que se datildeo sem qualquer atenccedilatildeo a princiacutepios baacutesicos de
construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo do boneco teatral
A informalidade com que se trata questotildees de preparo e formaccedilatildeo dos artistas de
animaccedilatildeo o isolamento e a circunscriccedilatildeo do desenvolvimento de alguns trabalho a grupos
fechados natildeo raro pequenos nuacutecleos familiares e a ausecircncia de uma criacutetica e de uma esteacutetica
mais desenvolvida que busquem normalizar as praacuteticas e os pensamentos acerca do teatro de
animaccedilatildeo no Brasil ainda datildeo a ver uma linguagem pouco codificada e sujeita a ser
compreendida como fruto de uma artesania apressada e praacutetica de artistas pouco preparados48
48
Eacute fundamental que se mencione apesar da atualidade das declaraccedilotildees feitas que o panorama analisado por
Beltrame no ano de 2001 foi consideravelmente alterado desde entatildeo em grande parte por interferecircncia do
114
Natildeo se pode ignorar no entanto o quanto as iniciativas amadoras contribuem para a
sustentaccedilatildeo e o desenvolvimento da linguagem figurando sobretudo como ponto de partida
para o engajamento de profissionais em busca de consolidaccedilatildeo profissional e
aperfeiccediloamento Tambeacutem natildeo se pode ignorar que as estruturas nucleares de produccedilatildeo e
criaccedilatildeo em animaccedilatildeo satildeo mecanismos de garantia da variedade de formas e manifestaccedilotildees do
teatro de animaccedilatildeo que poderia sofrer algum tipo de abalo com a normalizaccedilatildeo e
sistematizaccedilatildeo dos pensamentos e praacuteticas envolvidas com a linguagem Natildeo se pode ignorar
tambeacutem o fato de que algumas das companhias mais inquietas e influentes do panorama
brasileiro atual (Catibrum Giramundo Contadores de Estoacuterias e Sobrevento para citar os
casos mais ceacutelebres) se originaram de nuacutecleos familiares ou se apoiam em algum niacutevel nessa
estrutura
Outra questatildeo bastante delicada eacute a da atribuiccedilatildeo de qualidade artiacutestica a trabalhos que
apresentam maior ou menor apuro teacutecnico Deve-se partir do entendimento de que a pesquisa
e o treinamento sistemaacuteticos podem dar a reconhecer iniciativas artiacutesticas cuidadosas seacuterias e
consolidadas por praacutetica e reflexatildeo mas natildeo eacute capaz de atribuir de modo inapelaacutevel a uma
apresentaccedilatildeo atributos de excelecircncia artiacutestica servindo mais como uma credencial de
intenccedilotildees do que a garantia de uma capacidade de agradar por subjetiva que esta uacuteltima se
configura Natildeo deixemos de lado tambeacutem que a defesa de que uma manifestaccedilatildeo artiacutestica
consolide seu espaccedilo em meio a um determinado panorama cultural e mercadoloacutegico
pressupotildee a criaccedilatildeo e a oferta de obras em quantidade e variedade mostrando diferentes
estaacutegios de apropriaccedilatildeo da linguagem e de intenccedilotildees artiacutesticas
Sendo assim faz-se necessaacuterio estimular o desenvolvimento da formaccedilatildeo do artista de
animaccedilatildeo e refinar a discussatildeo acerca da linguagem em acircmbito acadecircmico mas sem deixar de
reconhecer como parcela obrigatoacuteria desses estudos a variedade de manifestaccedilotildees da
linguagem e o empirismo dos processos autodidatas Um estudo que se proponha seacuterio no
sentido do levantamento de princiacutepios de formaccedilatildeo e treinamento para o artista de animaccedilatildeo
proacuteprio Beltrame Nota-se no ano de 2011 em comparaccedilatildeo com o quadro da deacutecada anterior a proliferaccedilatildeo de
cursos e profissionais de animaccedilatildeo figurando como professores e pesquisadores poacutes-graduados dentro de
instituiccedilotildees de ensino superior como satildeo os casos do professor doutor Valmor Beltrame e do professor
doutorando Paulo Balardim na UDESC da professora doutora Izabela Brochado na UnB da professora doutora
Adriana Schneider Alcure na UFRJ do professor mestre Miguel Vellinho na UNIRIO do professor mestre
Taacutecito Borralho na Universidade Federal do Maranhatildeo dentre outros Nota-se tambeacutem a criaccedilatildeo e a
consolidaccedilatildeo de festivais nacionais importantes dedicados agrave linguagem como satildeo os casos do FITB Festival
Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte produzido pela Cia Catibrum do SESI Bonecos do Brasil
e do Mundo e do Festival de Formas Animadas de Jaraguaacute do Sul promovido pela SCAR e pela UDESC que
comporta tambeacutem um seminaacuterio de estudos sobre teatro de formas animadas e que ensejou a criaccedilatildeo e
publicaccedilatildeo da revista Moacutein-moacutein de estudo de teatro de formas animadas
115
deve levar em consideraccedilatildeo o que se levanta por meio dos processos intuitivos de artistas
populares e das foacutermulas bem-sucedidas de formatos anteriores
Balardim conduz uma reflexatildeo que contrapotildee proposiccedilotildees dos estudiosos Dominique
Houdart e Franccedilois Lazaro49
naquilo que estes defendem acerca da necessidade da instituiccedilatildeo
de uma ldquogramaacuteticardquo para o trabalho em animaccedilatildeo Segundo Balardim ao passo que Lazaro
defende a instituiccedilatildeo de uma gramaacutetica traccedilada a partir da percepccedilatildeo Houdart chama a
atenccedilatildeo para um esforccedilo de codificaccedilatildeo teacutecnica e linguiacutestica que ultrapasse os limites de
manifestaccedilotildees consagradas por um olhar eurocecircntrico no sentido de buscar princiacutepios que
compreendam as diversas formas da animaccedilatildeo
Balardim tambeacutem diz que esses olhares natildeo se excluem mas reconhece que a simples
confrontaccedilatildeo das opiniotildees de Lazaro e Houdart datildeo luz a duas questotildees importantes sendo a
primeira o fato de que natildeo existe um meacutetodo formativo reconhecido para artistas de animaccedilatildeo
que contemple a variedade das suas manifestaccedilotildees e a segunda sendo justamente a dimensatildeo
do esforccedilo de generalizaccedilatildeo necessaacuterio para se cunhar um coacutedigo com tal abrangecircncia
Jaacute foi mencionado neste trabalho o quanto alguns formatos de animaccedilatildeo requerem um
processo de treinamento especiacutefico e longo sedimentando a compreensatildeo de que essa
formaccedilatildeo mais geneacuterica guardaria profundas relaccedilotildees com o levantamento dos ldquoprinciacutepios que
retornamrdquo da Antropologia Teatral Eacute licito neste ponto questionar se tal esforccedilo poderia de
fato contribuir para a organizaccedilatildeo de percursos formativos ou se ganharia contornos
geneacutericos em demasia para apontar com clareza procedimentos operativos
A necessidade de se lidar com princiacutepios de formaccedilatildeo mais amplos em suas aplicaccedilotildees
jaacute lanccedilou artistas e professores ao desafio de produzir relaccedilotildees apoiadas nas suas proacuteprias
experiecircncias Com vistas a entender elementos geneacutericos e especiacuteficos na atual compreensatildeo
dos processos de formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo no Brasil e de localizar como esses
processos situam as capacidades de atuaccedilatildeo dentro do trabalho do artista de aniaccedilatildeo passo
agora a tratar de duas dessas listagens pensadas feitas aplicadas e publicadas por brasileiros
a saber Paulo Balardim e Valmor Beltrame50
Primeiramente disporei lado a lado as duas listas organizadas apenas com os tiacutetulos
dos princiacutepios arrolados por ambos51
49
Colhida em Blog Intercacircmbio Caixa do Elefante e PeQuod lthttpwwwceartudescbr
ppgtpublicacoes_moinmoinhtmlgt Consulta feita em 20082011 50
Essas listagens encontram-se respetivamente em BALARDIM 2004 e BELTRAME 2009 51
Reconheccedilo que o estudo comparativo entre as duas listagens em relaccedilatildeo com praacuteticas de aula e processos
formativos de companhias enseja um estudo bem mais amplo e detalhado Parte desses esforccedilos estaacute sendo
ensaiada no trabalho de coordenaccedilatildeo de alunos bolsistas em Iniciaccedilatildeo Artiacutestica (bolsa PINAUFU) de
levantamento comparaccedilatildeo e criacutetica de princiacutepios formativos para o artista de animaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do
116
BALARDIM BELTRAME
Efeito retoacuterico
Decupagem de movimentos
Dissociaccedilatildeo de movimentos
Movimento eacute frase
Partitura de gestos e accedilotildees
Economia de meios
A teacutecnica do ator Subtexto
Neutralidade
Neutralidade
Eixos (interno e externo) Eixo do boneco e sua manutenccedilatildeo
Controle atencional Olhar como indicador da accedilatildeo
Desvio e foco de atenccedilatildeo Relaccedilatildeo frontal
Teacutecnica indutiva Foco
Triangulaccedilatildeo
Reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas
Respiraccedilatildeo do boneco
Contraste e intensidade
Hipertactibilidade
A comparaccedilatildeo e a criacutetica desses levantamentos de princiacutepios seria tatildeo interessante e
uacutetil a uma discussatildeo da formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo quanto densa e demorada O que
empreendo neste momento eacute um breve apontamento e explicaccedilatildeo de toacutepicos selecionados com
vistas a perceber qualidades de atuaccedilatildeo no trabalho do artista de animaccedilatildeo sob a perspectiva
da abrangecircncia que norteia a construccedilatildeo das listas
As listas se encontram dispostas de modo a aproximar conceitos e princiacutepios que
sejam de alguma maneira aparentados Assim sendo ainda que natildeo corresponda agrave disposiccedilatildeo
original dos dois autores o termo neutralidade por exemplo encontra-se disposto na mesma
linha em ambas as tabelas ainda que refiram-se nas explicaccedilotildees de cada autor a conceitos
com algumas (poucas) diferenccedilas52
Ainda foram agrupados princiacutepios que segundo se
entendeu guardam maiores semelhanccedilas entre si (mesmo que em diversos casos perceba-se a
apresentaccedilatildeo de princiacutepios cujos conceitos satildeo muito proacuteximos ou desdobramentos de um
princiacutepio em dois ou mais na verificaccedilatildeo de uma lista para outra) Nesse estudo foram
deixados em destaque quatro princiacutepios ou dois grupos de princiacutepios aparentados53
O
curriacuteculo da disciplina que ministro no Curso de Teatro da UFU chamado Toacutepicos Especiais em Teacutecnicas
Artiacutesticas ndash Teatro de Formas Animadas e na estruturaccedilatildeo da metodologia do grupo de estudos sobre
expressividade com sombras corporais conduzido em parceria com a companhia teatral Trupe de Truotildees de
Uberlacircndia MG O que faccedilo aqui eacute levantar alguns aspectos que considero mais relevantes agrave indagaccedilatildeo que
conduz este momento do trabalho 52
A questatildeo da neutralidade para o artista de animaccedilatildeo eacute comentada em maior profundidade no capiacutetulo seguinte
desta tese no subtiacutetulo ldquoO foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituaisrdquo 53
Compreendo que outros princiacutepios que natildeo foram destacados seriam uacuteteis ao ponto de discussatildeo apresentado
tais como efeito retoacuterico ou partitura de gestos e accedilotildees Mas atenho-me aos escolhidos pelo bem de uma clareza
de comunicaccedilatildeo de fluecircncia de leitura e por consideraacute-los suficientes para o ponto que aqui se apresenta
117
primeiro grupo diz respeito agrave linha que dispotildee respectivamente a teacutecnica do ator na listagem
de Balardim e subtexto na de Beltrame Os princiacutepios expostos aderem na simples menccedilatildeo
dos termos que os nomeia a defesa da existecircncia de profundas semelhanccedilas teacutecnicas entre a
atuaccedilatildeo e a operaccedilatildeo de formas e bonecos seja na atestaccedilatildeo direta feita por Balardim do
emprego de uma teacutecnica de atuaccedilatildeo54
quanto no acionamento feito por Beltrame de um termo
que nomeia um princiacutepio capital para o estudo da atuaccedilatildeo realista sendo ldquouma criaccedilatildeo interna
do atorrdquo (BELTRAME 2009 p 293) Curiosamente as definiccedilotildees contextuais dos termos
apresentados por Beltrame e Balardim acabam justamente por apontar questotildees especiacuteficas do
trabalho com animaccedilatildeo como o entendimento expresso por Balardim de que a atuaccedilatildeo com o
objeto eacute o resultado de um esforccedilo de projeccedilatildeo de expressividade que combina a accedilatildeo direta
do ator com a avaliaccedilatildeo dos efeitos expressivos que a apresentaccedilatildeo da forma animada produz
sobre a percepccedilatildeo do puacuteblico que percebe a atuaccedilatildeo por meio da maneira como o ator faz o
boneco representar ou melhor atua junto com o boneco Para Beltrame o trabalho com o
subtexto estaacute diretamente relacionado agrave potecircncia discursiva do gestual do boneco que eacute capaz
de suplantar em constacircncia e relevacircncia o seu discurso verbal Eacute verdade que o mesmo pode
ser dito acerca da expressividade do ator vivo mas natildeo se pode negar que a boneco ou forma
animada se constitui numa caso especial posto que a sua discursividade gestual natildeo emana
apenas da reproduccedilatildeo do gestual humano mas das suas possibilidades especiacuteficas de
deslocamento e articulaccedilatildeo Nesse sentido entendemos a existecircncia de uma discursividade
gestual que eacute especiacutefica e proacutepria ao boneco teatral fazendo do subtexto como apresentado
por Beltrame em seu contexto particular uma caracteriacutestica que afirma a especificidade da
linguagem da animaccedilatildeo
A dupla seguinte de princiacutepios relacionados a respiraccedilatildeo do boneco na lista de
Berltrame e reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas na relaccedilatildeo de Balardim tratam de recursos e
atenccedilotildees que contribuem para causar impressatildeo de autonomia ontoloacutegica do boneco em
relaccedilatildeo ao artista que o opera A discussatildeo de Balardim eacute ampliaacutevel a variados recursos de
produccedilatildeo de impressatildeo de vida independente ao boneco ao passo que Beltrame encontra na
respiraccedilatildeo o elemento principal que iraacute nortear essa atenccedilatildeo A discussatildeo de Beltrame
identifica de modo claro a reproduccedilatildeo do movimento da respiraccedilatildeo como um recurso
fundamental para a jaacute mencionada transferecircncia de expressividade que pauta a atuaccedilatildeo com o
boneco pois que emoccedilotildees podem ser atribuiacutedas a uma determinada personagem por meio do
ritmo e da intensidade com que esta parece respirar (BELTRAME 2009 p 294) mas se
54
ldquoAo desejar que o puacuteblico creia haver vida onde natildeo haacute o ator-manipulador passa a representar com o seu
corpo a vida do objeto inanimadordquo (BALARDIM 2004 p84)
118
refere tambeacutem agrave respiraccedilatildeo como um recurso de integraccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo do boneco e a
atuaccedilatildeo do operador Ainda que natildeo se trate de um exerciacutecio de imaginaccedilatildeo muito exigente
aquele que parte da afirmaccedilatildeo de que haacute diversos bonecos objetos e formas que natildeo imitam
em suas apresentaccedilotildees a respiraccedilatildeo humana por meio de uma constante ritmada e sutil
ampliaccedilatildeo e recolhimento da provaacutevel caixa toraacutexica pode-se perfeitamente entender essa
respiraccedilatildeo como indicativo geneacuterico para toda sutil aplicaccedilatildeo de tensatildeo e alteraccedilatildeo de estado
no objeto de modo a fazer supor nele a presenccedila de uma vitalidade proacutepria O percurso de
Balardim escolhe abordar a questatildeo da reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas ndash das quais o ato
de respirar figura entre as principais ndash a partir do entendimento de que a impressatildeo de vida
autocircnoma natildeo se produz por meio de qualquer movimento mas de um movimento
qualificado capaz de auxiliar a uma percepccedilatildeo caracteriacutestica da forma animada
O movimento do objeto animado deve ser portador de uma intenccedilatildeo (desejo
accedilatildeo) consciecircncia (um olhar que segue um movimento) ou um miacutenimo de
vida bioloacutegica (respiraccedilatildeo) O movimento associado agrave vida eacute imperativo
(BALARDIM 2004 p 105)
Em que pese o questionamento feito por este estudo acerca do movimento e da sua devida
conceitualizaccedilatildeo para o teatro de animaccedilatildeo salta aos olhos no trecho de Balardim a
participaccedilatildeo do artista de operaccedilatildeo de formas como uma forccedila autocircnoma criativa e disponiacutevel
ao jogo relacional com o boneco e com a cena
Esse exerciacutecio de anaacutelise por curto que possa parecer se presta a esclarecer que o
acionamento de propriedades de atuaccedilatildeo por parte de artistas de animaccedilatildeo natildeo eacute acidental
circunstancial ou mesmo uma invenccedilatildeo das recentes derrubadas de barreiras entre
modalidades espetaculares Trata-se de um recurso presente e inalienaacutevel ao trabalho e agrave
apreciaccedilatildeo do jogo do artista de animaccedilatildeo
Por outro lado o reconhecimento da existecircncia de princiacutepios e recurso que satildeo
especiacuteficos da linguagem ndash e das linguagens ndash de animaccedilatildeo nos modos de percepccedilatildeo e nos
percursos formativos desses artistas o identificam natildeo como um ator mas como um tipo
determinado de ator capaz de acionar competecircncias de atuaccedilatildeo em atendimento agraves demandas
de uma cena composta e plural Cariad Astles avalia essa demanda sob a perspectiva de que
o teatro de bonecos tem sido visto mais como uma aptidatildeo extra no curriacuteculo
do ator do que como um campo do bonequeiro especialista e o que eacute visto
como teatro de bonecos na cena eacute cada vez menos definido (ASTLES 2008
p 54)
A leitura mais precisa seria aquela que se faz a partir do entendimento de que o artista
desse teatro de animaccedilatildeo que sobrepotildee linguagens e busca acompanhar as tendecircncias de
pluralidade de meios das artes do seu tempo natildeo amplia seu cabedal de competecircncias e
119
funccedilotildees nem adquire um parentesco mais aproximado com o ator teatral como resultado de
uma transformaccedilatildeo no seu estatuto fundamental mas sim tem essas caracteriacutesticas
intemporais tornadas mais visiacuteveis por obra das transformaccedilotildees verificadas na cena de
animaccedilatildeo
Isto equivale dizer que mesmo que natildeo seja possiacutevel perceber um padratildeo de
comportamento e formaccedilatildeo do artista de apresentaccedilatildeo do teatro de animaccedilatildeo (manipulador
animador ou operador) natildeo se pode negar a existecircncia de qualidades e competecircncias de
atuaccedilatildeo no exerciacutecio de sua funccedilatildeo natildeo importa o quanto essa funccedilatildeo possa estar ou natildeo
adequada a paracircmetros de excelecircncia em desempenho
Se no iniacutecio do seacuteculo XX foi percebida no teatro ocidental a proliferaccedilatildeo de meacutetodos
de treinamento e escolas de formaccedilatildeo para atores bem como de teorias sobre o ator que
fizeram conviver entendimentos variados sobre a sua funccedilatildeo e formaccedilatildeo descrevendo um
percurso de ampliaccedilatildeo na quantidade e variedade de propostas daquilo que se entende como
sendo o ator teatral parece um tanto deslocada a ideacuteia de que o artista de animaccedilatildeo seria uma
outra espeacutecie de artista a partir do argumento de que este lidaria com alguns princiacutepios de
formaccedilatildeo e treinamento diferenciados
Reconhecer o artista de animaccedilatildeo como ator eacute sobretudo atentar para a sua
capacidade de produccedilatildeo de presenccedila e sentido sobre a cena teatral e reconhecer o caraacuteter de
atuaccedilatildeo em sua apresentaccedilatildeo ainda que esta ocorra em favor de conferir relevacircncia cecircnica a
outros elementos
Talvez agora possamos nos reaproximar da questatildeo que abriu este capiacutetulo com
clareza ampliada Quanto agrave pergunta de Jacques Feacutelix sobre se somos ainda marionetistas
parece claro que essa resposta jamais deixaraacute de ser afirmativa ainda que necessite ser
verificada agrave luz das transformaccedilotildees percebidas no proacuteprio estatuto da marionete e por
conseguinte da cena de animaccedilatildeo Parece que mesmo marionetistas somos atores por sempre
havermos sido e como tal afirmamos essa funccedilatildeo no sentido em que construiacutemos uma
apresentaccedilatildeo feita em diaacutelogo com o material Natildeo no sentido de comunicar por meio do
material mas comunicar juntamente com ele As transformaccedilotildees sofridas no estatuto da forma
animada e da cena de animaccedilatildeo exigem do artista que o apresenta a busca por novas formas
de relaccedilatildeo com o objeto natildeo para que este possa assumir novas funccedilotildees mas como resposta a
uma demanda encaminhada pelo proacuteprio material e suas possibilidades expressivas
120
3 ATOR E OBJETO TOPOGRAFIA DE UM CAMPO DE BATALHA
Nosso teatro de bonecos pode ter cenaacuterio figurino e
iluminaccedilatildeo
Ou natildeo
Pode ter teacutecnicos e direccedilatildeo
Ou natildeo
Como o teatro de atores
Ao contraacuterio do teatro de atores poreacutem pode natildeo ter atores
Ou natildeo
Grupo Sobrevento55
Passemos a partir deste momento a analisar questotildees relativas agraves tensotildees e
transformaccedilotildees percebidas nos tipos de relaccedilotildees que podem existir em cena entre o artista de
animaccedilatildeo e o boneco A arte da animaccedilatildeo com suas inserccedilotildees diversas nos contextos teatrais
mais variados sempre permitiu que se estabelecessem diferentes acordos relacionais entre
operador e objeto Tais acordos tem seus fundamentos e resultados cecircnicos apoiados nos
modos como esses dois elementos satildeo dados a perceber e dividem a atenccedilatildeo do puacuteblico sobre
a cena Uma maneira bastante objetiva de organizar os diferentes modos de apresentaccedilatildeo
conjunta de ator e marionete pode se dar sob o pretexto de uma ilustraccedilatildeo que conduza a uma
discussatildeo mais pormenorizada Portanto comecemos imaginando que haacute dois grandes grupos
de modos de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo um onde o manipulador se encontra oculto das vistas
da plateacuteia e outro no qual o puacuteblico pode seja por impositivos teacutecnicos ou escolhas artiacutesticas
apreciar o trabalho do manipulador e incorporar essa percepccedilatildeo agrave totalidade do espetaacuteculo
Tal divisatildeo isso precisa ficar claro eacute arbitraacuteria circunstancial e natildeo eacute acompanhada por
outras chaves taxonocircmicas empregadas para o estudo do teatro de animaccedilatildeo tais como
formas materiais modos de operaccedilatildeo movimentaccedilatildeo e qualidades discursivas Sua escolha eacute
mais uma ferramenta argumentativa do que propriamente uma tentativa de classificaccedilatildeo
Como ponto de entrada para o estudo das possibilidades relacionais entre manipulador e
objeto a escolha por esta divisatildeo se daacute na esperanccedila de construir um raciociacutenio que a
desmonte ndash a classificaccedilatildeo ndash de dentro para fora mostrando suas inconsistecircncias e
impossibilidades mas montando um percurso reflexivo consistente no caminho
Pode-se supor portanto que um manipulador atraacutes de um pano ou de qualquer outra
estrutura de ocultaccedilatildeo estaacute trabalhando com a intenccedilatildeo de permitir ao boneco assumir a
centralidade da cena anulando aos sentidos da audiecircncia a sua participaccedilatildeo e contribuindo
assim para que se instaure mais facilmente uma impressatildeo de vida autocircnoma para o boneco
Ainda que seja comum a compreensatildeo de que a tendecircncia da ocultaccedilatildeo do manipulador por
55
Programa O teatro do Sobrevento
121
Figura 58a Manipulaccedilatildeo oculta inferior com bonecos de luva e de vara
Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009
Ilustraccedilotildees Marcel Violette
Figura 58b Manipulaccedilatildeo oculta superior com boneco de tringle (bengala) + fio e com boneco de fio
Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009
Ilustraccedilotildees Marcel Violette
122
Figura 58c Formas de manipulaccedilatildeo teatro negro fantoche com cabeccedila boneco habitaacutevel e manipulaccedilatildeo
com os peacutes africana
Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009
Ilustraccedilotildees Marcel Violette
Figura 58d Formas de manipulaccedilatildeo boneco sobre balcatildeo e manipulaccedilatildeo direta boneco sobre balcatildeo com
varas bonecos de ventriacuteloquo de boca articulada com gatilho e sem gatilho
Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009
Ilustraccedilotildees Marcel Violette
123
traacutes de empanadas janelas e panos se identifica com as mais remotas tradiccedilotildees do teatro de
bonecos tal recurso nunca se configurou de fato num elemento unificador da performance
com teatro de bonecos anterior agraves uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX56
(Aliaacutes recordemo-nos
que de acordo com Steve Tillis natildeo haacute um traccedilo teacutecnico ou estiliacutestico capaz de normalizar o
que se compreende por teatro de bonecos) Se decidirmos ampliar nosso olhar para aleacutem de
formas consagradas na Europa em periacuteodos posteriores aos iniacutecios do seacuteculo XVII (e
precisamos fazecirc-lo pelo bem de um entendimento mais amplo) eacute possiacutevel mencionar agrave guisa
de uma raacutepida ilustraccedilatildeo os chamados marionetes de prancha (ou agrave la planchette) (Figuras
60a e 60b) que executavam alguns movimentos simples por meio de um fio preso agrave perna do
manipulador que precisava ter as matildeos livres para tocar o instrumento que produziria a
muacutesica que embalaria o quadro ou que guiaria a danccedila dos bonecos presos a uma pequena
prancha de madeira tendo o referido fio atravessado em seu corpo de modo a produzir sua
movimentaccedilatildeo Tillis nos oferece uma descriccedilatildeo de teatros de sombras javaneses e tailandeses
nos quais natildeo apenas eacute permitido ao puacuteblico posicionar-se na parte posterior da tela de
projeccedilatildeo como em alguns casos os proacuteprios bonecossilhuetas57
satildeo manipulados diante da
tela de sombras dando a ver consequumlentemente os seus operadores Haacute ainda outro tipo de
exemplo que nos eacute uacutetil no sentido em que nos ajuda a compreender como certos processos de
apresentaccedilatildeo dos bonecos em cena satildeo capazes de ampliar a proacutepria noccedilatildeo de animaccedilatildeo
Trata-se de entender que a interpretaccedilatildeo vocal seja esta por meio de atribuiccedilatildeo direta de uma
voz ao personagem representado pelo boneco seja pela apresentaccedilatildeo de uma narrativa para a
qual os bonecos servem de ilustraccedilatildeo ou comentaacuterio se configura num modo de identificaccedilatildeo
do boneco como partiacutecipe ativo da cena teatral Assim sendo eacute possiacutevel recorrer a pelo
menos dois outros exemplos que seriam o do bunraku que dispotildee o narrador num espaccedilo
especiacutefico do edifiacutecio teatral de modo a que a apreciaccedilatildeo de sua recitaccedilatildeo da narrativa jocircruri
acompanhada pelo shamisen possa ser combinada agrave das accedilotildees dos bonecos A famosa
passagem de Don Quixote58
(Figura 62) na qual o Cavaleiro da Triste Figura investe contra
uma apresentaccedilatildeo de bonecos descreve um retaacutebulo um tipo de apresentaccedilatildeo na qual
56
Se quisermos compreender a aproximaccedilatildeo de alguns elementos chave das vanguardas artiacutesticas europeacuteias
desse periacuteodo como um evento importante para o desencadeamento de transformaccedilotildees e intercacircmbios que se
percebem ainda hoje na linguagem da animaccedilatildeo de formas 57
Tais elementos satildeo em geral feitos e manuseados de modo a que o que se apresenta para o puacuteblico natildeo eacute ao
menos em uma primeira apreciaccedilatildeo o objeto mas sua projeccedilatildeo em sombra sobre uma tela Haacute discussotildees sobre
se o objeto manuseado entre a fonte de luz e a tela poderia ser considerado um boneco jaacute que o que se apresenta
eacute transformado pela influecircncia da luz e da superfiacutecie de projeccedilatildeo Nos casos descritos por Tillis a discussatildeo se
adensa uma vez que o posicionamento do puacuteblico por todos os lados da tela permite que se aprecie tambeacutem a
apresentaccedilatildeo do objeto manipulado e natildeo apenas da sua sombra projetada 58
Segunda Parte capiacutetulos XXV e XXVI (SAAVEDRA 2005 pp330-59)
124
pequenas figuras com movimentos limitados (algo semelhantes agraves figuras bidimensionais do
teatro de brinquedo)
Figura 59a Marionete ldquoagrave la planchetterdquo
italiana
Fonte BOEHN 1972 p 57
Gravura de J Dumont 1739
Figura 59b Marionete ldquoagrave la planchetterdquo
Fonte BOEHN 1972 p 58
Gravura francesa anocircnima aprox 1800
Figura 60 Teatro de bonecos Alemanha seacuteculo XVIII
Fonte BOEHN 1972 p 60
Figura 61 Don Quixote destroacutei o teatro
de bonecos
Fonte BOEHN 1972 p 63
Gravura de uma ediccedilatildeo francesa do livro
seacuteculo XVIII
125
satildeo apresentados dentro de uma caixa decorada com uma das faces abertas enquanto um
narrador posicionado diante do puacuteblico conta (ou canta) a histoacuteria para a qual os quadros
moacuteveis feitos pelos bonecos servem de ilustraccedilatildeo
Deve estar claro que o recurso da ocultaccedilatildeo do operador de bonecos natildeo pode ser
entendido como indicativo de praacuteticas superadas de arraigamento a valores retroacutegrados ou
mesmo como algo que impeccedila o desenvolvimento e a apresentaccedilatildeo de relaccedilotildees interessantes
entre ator e boneco De fato a ocultaccedilatildeo do ator ndash por diversos motivos ndash natildeo impede a sua
participaccedilatildeo na cena
Paulo Balardim tem algo a dizer a esse respeito
Agraves vezes o perceptiacutevel natildeo eacute visto mas sentido de outra forma Da mesma forma
o ator-manipulador oculto muitas vezes passa a ser mais percebido do que o
proacuteprio objeto visiacutevel mesmo encoberto pela escuridatildeo tapadeiras negras ou uma
tela de sombras O que ocorre eacute que natildeo basta para neantizar a proacutepria presenccedila
ocultar-se visualmente (BALARDIM 2004 p89)
Balardim prossegue referindo-se agrave importacircncia do trabalho de neutralizaccedilatildeo da expressividade
do operador de bonecos como fundamento importante para a sua formaccedilatildeo59
Com isto define
esse modo de aparecer mesmo estando oculto como sendo o resultado de uma imprecisatildeo
teacutecnica A passagem natildeo permite ignorar no entanto que da mesma forma como um
manipulador oculto pode ser percebido pela plateacuteia por meio de imprecisotildees de postura e
teacutecnica manipulativa este pode ser dado a ver por meio de escolhas poeacuteticas Eacute um recurso
usual em algumas companhias como por exemplo a Truks e a Morpheus Teatro60
(Figuras 63
e 64) o estabelecimento de um diaacutelogo entre o boneco e os seus manipuladores muitas vezes
o proacuteprio ator ou atriz que vocaliza a personagem No espetaacuteculo para crianccedilas Peacutes descalccedilos
da Morpheus Teatro os personagens principais satildeo duas crianccedilas que brincam numa caixa de
areia Florecircncia e Rodolfo representadas por bonecos Esses bonecos interagem com os atores
em momentos como o da entrada do menino Rodolfo que vem carregado no colo por uma
atriz que dialoga com ele assumindo a personagem da sua matildee (o boneco eacute vocalizado por
outro ator) mas haacute outra maneira de interaccedilatildeo que aborda diretamente a manipulaccedilatildeo dos
59
Em um encontro entre as companhias PeQuod e Caixa do Elefante realizado entre os dias 7 e 13 de marccedilo de
2011 em Porto Alegre como parte do projeto Itauacute Cultural Balardim declarou estar revendo tal consideraccedilatildeo
preferindo no momento aproximar-se da questatildeo da neutralidade a partir do conceito de foco como este eacute
empregado para descrever propriedade teacutecnicas do manipulador Mais a esse respeito ainda seraacute dito neste
capiacutetulo 60
Esta segunda foi criada a partir de um desdobramento da Truks quando o ator Joatildeo Arauacutejo comeccedilou a
trabalhar em 2002 num um projeto solo que posteriormente tonou-se o espetaacuteculo O princiacutepio do espanto
Atualmente a companhia conta com outros integrantes que anteriormente foram da Truks como eacute o caso de
Verocircnica Gerchman
126
bonecos quando os bonecos se reportam aos operadores diretamente solicitando objetos e
fazendo comentaacuterios
Os efeitos de metateatralidade possiacuteveis com esse recurso satildeo diversos como ocorre
na cena final de Filme Noir da companhia PeQuod em que o personagem Detetive percebe
os manipuladores que o seguram e luta em vatildeo para livrar-se das matildeos que o conteacutem e o
movimentam Outro espetaacuteculo que apresenta um momento semelhante eacute O princiacutepio do
espanto que constroacutei uma sequumlecircncia tocante da descoberta do operador por parte do boneco
(Figura 65) Desta forma nos encaminhamos tambeacutem para a percepccedilatildeo de posturas em cena e
procedimentos de
atuaccedilatildeo suplantam os aparatos teacutecnico-cenograacuteficos no que toca a sua participaccedilatildeo na cena
O trabalho do manipulador a movimentaccedilatildeo do boneco a vocalizaccedilatildeo o uso do espaccedilo dos
ritmos e da representaccedilatildeo das personagens e situaccedilotildees faz com que este se insinue sobre a
cena fazendo do boneco um meio de percepccedilatildeo de sua presenccedila O manipulador se faz
presente na accedilatildeo do boneco e essa presenccedila eacute parte indissociaacutevel da apresentaccedilatildeo
Isto natildeo quer dizer entretanto que o boneco eacute pouco mais que um canal de expressatildeo
para o ator que o apresenta Natildeo eacute correto entender que a interpretaccedilatildeo do manipulador se daacute
de modo a usar o boneco como um apoio ou trampolim para a sua expressatildeo Felisberto
Sabino da Costa declara que ldquono teatro de animaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo que se estabelece com a
plateacuteia eacute intermediada pelo objeto ao passo que no teatro de ator natildeo haacute tal elemento de
intermediaccedilatildeordquo (COSTA 2001 p12) e Joseacute Parente escreveu que ldquoo que diferencia o ator do
ator-manipulador ou ator-bonequeiro eacute que enquanto o primeiro encarna ele mesmo o
personagem o segundo utiliza algum elemento material externo a ele (maacutescara boneco ou
objeto) para se expressarrdquo (PARENTE 2005 p113) Aliaacutes a noccedilatildeo apresentada por Sabino
da Costa qualificando o boneco em apresentaccedilatildeo como ldquoobjeto interpostordquo seraacute mencionada
em obras posteriores como por exemplo no cuidadosos trabalho feito por Marco Souza
(2005) no qual discute as relaccedilotildees entre corpos de atores e bonecos no teatro de animaccedilatildeo
pensando a partir do teatro Kuruma Ningyo do Japatildeo Mesmo tendo em vista o amplo alcance
do trabalho de Souza e a densidade das questotildees que apresenta eacute preciso olhar com certa
cautela a questatildeo da aceitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de boneco teatral como objeto interposto entre ator e
puacuteblico
Natildeo eacute possiacutevel compreender todas as trocas formais e semacircnticas passiacuteveis de serem
estabelecidas entre objeto e ator se a forma animada for tratada como um canal por meio da
qual a apresentaccedilatildeo do ator adquire certas qualidades Esta seria claramente numa atitude de
hierarquizaccedilatildeo das capacidades expressivas e de estabelecimento de uma escala de valores
127
Figura 62 Cia Truks Vovocirc
Fonte (httpwwwtrukscombr)
Bonecos dirigindo-se aos atores que os operam
Figura 63 Morpheus Teatro Peacutes descalccedilos
Fonte (httpwwwflickrcomphotoszzzanotti
5607762523)
Foto Mariana Zanotti de Oliveira
Figura 64 Morpheus teatro O princiacutepio do espanto A descoberta do manipulador (ator Joatildeo Arauacutejo)
Fonte httpwwwflickrcomphotoseneas999573230847
Foto Eneas Lopes
128
estaacutetica no que se refere agrave apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo O boneco (objeto material forma)
possui uma seacuterie de qualidades formais cineacuteticas e simboacutelicas que postulam para si uma
importacircncia incontestaacutevel sobre a composiccedilatildeo da representaccedilatildeo Tillis se apoacuteia em estudiosos
como Otakar Zich Petr Bogatyrev e Henryk Jurkowski para dinamizar essas qualidades no
interior de trecircs sistemas de signos (forma movimento e fala) Eacute preciso perceber que sem
recuperar o discurso ultrapassado de sacralizaccedilatildeo do boneco e de atribuiccedilatildeo obrigatoacuteria de
propriedades maacutegicas agrave sua apresentaccedilatildeo o valor de sua presenccedila em cena se faz na
conjunccedilatildeo dos seus dois fundamentos performativos Ainda natildeo se pode em nenhum
momento desse tipo de estudo ceder agrave tentaccedilatildeo da generalizaccedilatildeo e fechar os olhos agrave
desconcertante variedade de modos de apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo nas quais as
relaccedilotildees entre objeto e ator podem conferir importacircncias variaacuteveis entre ambos com
dinacircmicas e trocas que podem se realizar no interior de uma mesma apresentaccedilatildeo
Manipulador e boneco fazem parte de uma estrutura performativa combinada e
instaacutevel sobre a qual se funda a linguagem e a teacutecnica do teatro de animaccedilatildeo Por ser instaacutevel
essa combinaccedilatildeo de componentes significantes sobre a cena pode se dar de diversas maneiras
mesmo dentro de uma mesma apresentaccedilatildeo ou espetaacuteculo As dinacircmicas dessas relaccedilotildees satildeo
guiadas pela administraccedilatildeo das tensotildees expressivas existentes entre esses dois componentes
da performance de animaccedilatildeo ator e forma
Creio que um bom exemplo do que se afirma pode ser verificado no trabalho do Grupo
Contadores de Estoacuterias mais especificamente na linha de atuaccedilatildeo que adotaram a partir do
iniacutecio dos anos 1980 Os Contadores de Estoacuterias iniciaram seus trabalhos com espetaacuteculos
feitos para a rua nos quais eram dispostos sobre a cena diversos elementos de caracterizaccedilatildeo
de personagens como cabeccedilas gigantes figuras de danccedilas dramaacuteticas brasileiras uso de
materiais diversos e narrativa fortemente pontuada pela muacutesica Classificado pelo grupo como
ldquoextravaganza em praccedila puacuteblicardquo61
o tipo de espetaacuteculo que caracteriza a primeira deacutecada de
existecircncia dos Contadores de Estoacuterias difere em muito da linha trabalho inaugurada com
Mansamente de 1980 A peccedila eacute composta por quadros independentes embora tematicamente
relacionados ndash flagrantes da vida interiorana do Brasil ndash sem palavras e com um tipo de
animaccedilatildeo que foi descrita da seguinte maneira pelo entatildeo criacutetico de teatro do Jornal do Brasil
Yan Michalski
A ousadia maior [do espetaacuteculo] fica por conta da concepccedilatildeo dos bonecos e
da teacutecnica de sua manipulaccedilatildeo As figuras tecircm o tamanho aproximado das
bonecas de crianccedilas consequumlentemente o cenaacuterio eacute construiacutedo de objetos
61
Programa do espetaacuteculo Museu Rodin Vivo apresentado no SESC Ipiranga SP entre 7 e 9 de julho de 1995
129
que parecem brinquedos A manipulaccedilatildeo prescinde de quaisquer recursos
de intermediaccedilatildeo como linhas fios ou paus Os dois manipuladores
tambeacutem responsaacuteveis pela criaccedilatildeo dos bonecos Raquel e Marcos Caetano
Ribas vestidos de malha e capuz negros movimentam os pequeninos
atores diretamente com as matildeos esculpindo praticamente as suas atitudes
corporais e os seus deslocamentos no espaccedilo (MICHALSKI 1980)
Diferentemente de outras companhias que lidam com manipulaccedilatildeo direta e anterior de
bonecos de corpo inteiro como a companhia PeQuod o grupo Sobrevento a companhia
Truks a Catibrum e tambeacutem (em alguns espetaacuteculos) o grupo Giramundo natildeo haacute em parte
consideraacutevel do trabalho dos Contadores de Estoacuterias o uso de um balcatildeo ou aparato sobre o
palco Os bonecos satildeo operados sobre o chatildeo com os manipuladores postados atraacutes dos
mesmos A ausecircncia desse palco suplementar no qual o balcatildeo para manipulaccedilatildeo direta se
transforma acaba por ampliar a visibilidade do ator-manipulador para o puacuteblico Ainda que
cobertos com roupas e maacutescaras pretas a manipulaccedilatildeo sobre o chatildeo praticada por Marcos e
Raquel Ribas aproxima bastante os corpos de manipuladores e bonecos Tal se daacute pela
ausecircncia da cobertura parcial que um balcatildeo ou palco elevado pode propiciar aleacutem de exigir
que o manipulador assuma posturas que podem interferir na apresentaccedilatildeo e no deslocamento
do boneco Em uma entrevista concedida no ano de 2009 Marcos explica a forma e a eficaacutecia
do procedimento de concessatildeo de ecircnfase ao boneco que emprega
No nosso espetaacuteculo a gente se veste de preto mas o fundo eacute azul Eu natildeo tento
me esconder porque se eu tentar vou aparecer o tempo todo natildeo tem jeito Entatildeo
prefiro que vocecirc se acostume com a minha presenccedila e preste atenccedilatildeo na histoacuteria
(2009)
Mas seraacute possiacutevel ao espectador ldquoacostumar-serdquo em meio agrave apreciaccedilatildeo da
representaccedilatildeo teatral agrave presenccedila do ator-manipulador que impulsiona o boneco e o supera em
iacutempeto e dimensotildees Talvez seja impossiacutevel para quem assiste ignorar absolutamente a
presenccedila do ator-manipulador aparente o que dificulta o entendimento de que tal presenccedila
natildeo seja capaz de
interferir negativamente na percepccedilatildeo da trama que o espetaacuteculo apresenta A esse respeito
Marcos Ribas e Yan Michalski parecem concordar pois a apreciaccedilatildeo que o criacutetico fez de
Mansamente produziu a seguinte percepccedilatildeo
Aos poucos a matildeo do manipulador em primeiro plano e do seu corpo por traacutes do
boneco se vai diluindo na mente do espectador embora nunca se pretenda
camuflaacute-la e o boneco vai adquirindo uma estranha vida autocircnoma como se
130
recebesse dos dedos que cada vez mais imperceptivelmente o movimentam uma
injeccedilatildeo de humanidade (1980)
O comentaacuterio de Michalski deixa claros alguns elementos que satildeo fundamentais para o
entendimento de como se percebe o ator operador de forma animada posto agrave vista do puacuteblico
no caso mencionado O primeiro destes a ser comentado eacute a impossibilidade da criaccedilatildeo de
uma impressatildeo de total desaparecimento por parte do manipulador e portanto a aceitaccedilatildeo do
espectador de sua presenccedila ainda que esta natildeo se decirc de modo a impedir o acompanhamento
da trama representada pelas accedilotildees dos bonecos outra questatildeo eacute a de que tal qualidade de
direcionamento da atenccedilatildeo natildeo se daacute de outra maneira que natildeo por meio de uma construccedilatildeo
gradual da aceitaccedilatildeo do espaccedilo ocupado pelo manipulador dentro da cena na qual a percepccedilatildeo
do espectador participa de uma suave negociaccedilatildeo acerca da conduccedilatildeo da sua atenccedilatildeo Essa
negociaccedilatildeo se estabelece inapelavelmente entre o espectador o manipulador e o boneco A
aceitaccedilatildeo de tais produtos da cena nos permite pensar com clareza que essa negociaccedilatildeo eacute
guiada por uma maneira especiacutefica do ator-manipulador se comportar em cena tanto no trato
com o boneco quanto na consideraccedilatildeo do puacuteblico Portanto trata-se do emprego de uma
determinada postura teacutecnica que daacute a ver uma maneira de o manipulador relacionar-se com o
boneco em cena
Jurkowski emprega o termo opalizaccedilatildeo para tratar da caracteriacutestica da apresentaccedilatildeo do
boneco por meio da qual o puacuteblico o percebe simultaneamente como mateacuteria inerte e como
sugestatildeo de vida ou seja ldquoalternacircncia entre o caraacuteter e a materialidade da figurardquo
(JURKOWSKI 2001 p35) O termo se refere agrave percepccedilatildeo simultacircnea de muacuteltiplos feixes de
luz incidindo sobre um mineral multifacetado ou seja a apresentaccedilatildeo do boneco encaminha
ao espectador
simultaneamente percepccedilotildees distintas e por vezes antagocircnicas de autonomia e
impressatildeo de vida Jurkowski elabora e aprofunda essa noccedilatildeo em diversos de seus textos
como o que se segue62
Haacute todavia algo mais ndash o efeito que decidi chamar ldquoopalizaccedilatildeordquo Quando o
movimento domina completamente um objeto sentimos que o personagem
nasce e se apresenta em cena Quando eacute a natureza do objeto o que a domina
continuamos a ver o objeto O objeto permanece sendo o objeto e a
personagem ao mesmo tempo Agraves vezes no entanto essa unidade se rompe
62
Vamos encontrar na reflexatildeo de George Didi-Huberman uma imagem semelhante ldquoA obra eacute um cristal mas
todo cristal se move sob o olhar que ele suscita Ora esse movimento natildeo eacute outro senatildeo o de uma cisatildeo sempre
reconduzida a danccedila do cristal em que cada faceta inelutavelmente contrasta com a outrardquo (DIDI-
HUBERMAN 2005 p 118)
131
por um curto espaccedilo para ser recuperada apoacutes um instante Isto eacute a que me
refiro como sendo ldquoopalizaccedilatildeordquo (JURKOWSKI 1990[1988] p53)63
Haacute o que se discutir acerca do modo como Jurkowski subordina impressatildeo de vida e
ldquodomiacutenio do movimentordquo na apresentaccedilatildeo da forma animada Ainda assim natildeo resta duacutevida
que reside exatamente nessa dupla percepccedilatildeo uma das mais fundamentais qualidades da
apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo E assim podemos nos referir agrave participaccedilatildeo do ator operador da
forma como um indicativo duplo de ineacutercia e vida para o objeto animado A percepccedilatildeo da sua
influecircncia sobre o boneco seja por meio da visatildeo da sua atuaccedilatildeo ou por meio de indiacutecios mais
sutis (intencionais ou acidentais) entendidos em meio aos aparatos de apoio e ocultaccedilatildeo
apontam para a dependecircncia do boneco por meio da simples revelaccedilatildeo da estrutura que o
opera mas tambeacutem resta sobre a cena como sendo a forccedila vital ndash o eacutelan ndash emprestada ao
boneco natildeo apenas por meio da movimentaccedilatildeo conferida pelas accedilotildees da operaccedilatildeo mas
tambeacutem pelo que eacute indicado e projetado ao boneco por meio da proacutepria presenccedila (vista ou
subentendida) do ator operador pela troca que se estabelece entre dois elementos distintos em
cena com o intento de constituir um ou mais corpos teatrais
Pode-se assim dizer que os modos de dar a ver em cena o boneco e o manipulador
encontram-se apoiados por estruturas sutis de estabelecimento de relaccedilotildees e conduccedilatildeo de
expressividade de ambos ainda que natildeo estejam suportados por estruturas teacutecnico-
cenograacuteficas de ocultaccedilatildeo do ator operador A companhia argentina Taller de Tiacuteteres
Triaacutengulo (do diretor Carlos Martinez) em um espetaacuteculo chamado Muchas Manos64
usava
uma empanada para bonecos de luva como mecanismo de ocultaccedilatildeo do elenco A escolha por
construir seus bonecos a partir de luvas (a peccedila de vestuaacuterio) que poderiam ser vestidas pelos
dois atores ou enchidas e operadas por meio de varas em diversas posiccedilotildees dispunha
variadas interpretaccedilotildees para a percepccedilatildeo do formato da matildeo humana que ocorria de
representar tanto o manipulador quanto os bonecos que compunham o espetaacuteculo e ainda em
jogos de enganos nas vezes em que o puacuteblico era logrado a entender o boneco-luva como
sendo um determinado personagem que posteriormente se mostrava como sendo a matildeo do
ator e vice e versa Ainda ocultando os manipuladores (durante grande parte do espetaacuteculo)
por traacutes da empanada o espetaacuteculo usava a forma da matildeo humana como uma senha para
63
Tillis vai empregar o termo ldquovisatildeo duplardquo(1992 p64) preferindo este ao de Jurkowski por consideraacute-lo
menos barroco Mas sobretudoo tendo em vista contrapor-se agrave proposiccedilatildeo de Otakar Zich na qual a percepccedilatildeo
do boneco se daacute em alternacircncia entre objeto e vida ao inveacutes da percepccedilatildeo composta e simultacircnea que as
terminologias de Tillis e Jurkowski sugerem 64
O espetaacuteculo foi assistido por mim no ano de 1994 no Festival Internacional de Teatro de Animaccedilatildeo realizado
no SESC Ipiranga SP
132
Figura 65 Contadores de Estoacuterias Mansamente
Fonte (httpwwwecparatyorgbr)
Foto Luciana Serra
Figura 66 Contadores de Estoacuterias
Maturando
Fonte
(httpwwwecparatyorgbr)
Foto JB
Figura 67 Contadores de Estoacuterias Em concerto
Fonte (httpwwwecparatyorgbr)
Foto Luciana Serra
133
indicar a presenccedila em cena dos manipuladores e ainda considerar a sua interferecircncia na trama
da peccedila
Dispositivos teacutecnico-cenograacuteficos de ocultaccedilatildeo da figura do ator que opera o boneco
haacute inuacutemeros que podem variar de acordo com a forma o tamanho e o modo de apresentaccedilatildeo
dos bonecos mas que tambeacutem podem estar relacionado a questotildees de uso do espaccedilo
disponiacutevel ou consagrado agrave representaccedilatildeo e tambeacutem a diferentes modos de apresentaccedilatildeo da
trama e de disposiccedilatildeo da dramaturgia Ainda podemos perceber que recursos de ocultaccedilatildeo
podem ser de natureza teacutecnico-cenograacutefica como eacute o caso de empanadas palcos paineacuteis
fossos fundos falsos vestuaacuterio e recursos de iluminaccedilatildeo mas tambeacutem podem ser de natureza
procedimental-performativa do trabalho do operador que compreende o trabalho de
suavizaccedilatildeo de reaccedilotildees faciais e corporais contenccedilatildeo gestual direcionamento da atenccedilatildeo do
manipulador na direccedilatildeo do boneco e outras posturas relacionadas Cabe dizer como
complemento obrigatoacuterio ao comentaacuterio feito agrave citaccedilatildeo de Paulo Balardim e ao entendimento
dos casos dos Contadores de Estoacuterias e do Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo que nenhum
dispositivo teacutecnico-cenograacutefico seraacute bem sucedido em suavizar a participaccedilatildeo do ator-
manipulador sobre a cena se natildeo for acompanhado adequadamente por um
dispositivo procedimental-performativo Natildeo se pode relutar em acreditar que as estruturas
teacutecnico-cenograacuteficas de ocultaccedilatildeo do manipulador servem como reforccedilos para os coacutedigos
relacionais de troca de ecircnfase cecircnica natildeo seus fatores de determinaccedilatildeo Talvez seja mesmo
possiacutevel acreditar que o emprego de panos e empanadas seja mais motivado por escolhas de
natureza teacutecnico-logiacutesticas do que por decisotildees esteacuteticas e narrativas da cena Os efeitos que
essas escolhas produzem sobre o modo de percepccedilatildeo da cena no entanto seguem um
caminho bastante diverso
A procura pela base teacutecnico-conceitual de definiccedilatildeo ou regecircncia do dispositivo
procedimental mencionado conduziu a um fundamento teacutecnico apresentado com ligeiras
distinccedilotildees tanto por Balardim quanto Beltrame identificado sob o termo neutralidade Trata-
se de um fundamento teacutecnico por meio do qual o ator se permite conferir expressividade ao
boneco ou forma animada partindo obrigatoriamente de uma atitude de atenuaccedilatildeo dos efeitos
da proacutepria presenccedila
134
Figura 68 Cia Truks Isto natildeo eacute um
cachimbo
Fonte (httpwwwtrukscombr)
Ator oculto pela proacutepria estrutura da forma
animada que incorpora os seus braccedilos
Figura 69 Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo Muchas manos
Fonte (httpwwwtriangulo-titerescomar)
Figura 70 Cia Truks Big Bang
Fonte (httpwwwtrukscombr)
Boneco feito com saco plaacutestico O material eacute feito boneco pelo modo de operaccedilatildeo e pela relaccedilatildeo
estabelecida na cena com os atores operadores
135
sobre a cena Beltrame o trata como sendo a ldquopredisposiccedilatildeo do ator-animador para estar a
serviccedilo da forma animada tornar-se lsquoinvisiacutevelrsquo em cena atenuar sua presenccedila para valorizar a
do bonecordquo (BELTRAME 2009 p 294) e Balardim iraacute buscar referecircncias nos estudos da
psicologia para tratar a neutralizaccedilatildeo como um processo de despersonalizaccedilatildeo do inteacuterprete
por meio da supressatildeo de um comportamento que revele impulsos personalizantes (2004
pp88-9) De qualquer forma parte-se do entendimento de que ldquoeliminar caretas suspiros
olhares e economizar gestosrdquo seriam fundamentais ao ator operador de formas animadas para
que a afirmaccedilatildeo de sua presenccedila natildeo finde por obliterar a do boneco
O princiacutepio que rege a exortaccedilatildeo da neutralidade como atributo fundamental a uma
apresentaccedilatildeo bem sucedida em teatro de animaccedilatildeo eacute clara a presenccedila do inteacuterprete vivo seria
mais atraente do que a do boneco que luta para transmitir impressotildees de autonomia em meio a
uma forma que transparece a sua ineacutercia primordial a uma movimentaccedilatildeo que oscila entre a
imobilidade e o maquinal e uma voz que ainda que a ele atribuiacuteda natildeo eacute emitida pelo
boneco Lehman ainda que natildeo esteja tratando das diferenccedilas perceptivas entre a figura do
ator e a do boneco define de modo oportuno a potecircncia de significaccedilatildeo do corpo vivo em
cena
O corpo vivo eacute uma complexa rede de pulsotildees intensidades pontos de
energia e fluxos na qual processos sensoacuterio-motores coexistem com
lembranccedilas corporais acumuladas codificaccedilotildees e choques (LEHMAN 2007
p332)
Balardim estaacute justamente tratando das ldquolembranccedilas corporaisrdquo mencionadas por Lehman ao
mencionar que os gestos humanos satildeo resultados de anguacutestias e processos internos produtores
de experiecircncias afetivas Essa leitura encaminha o entendimento do gestual do ator vivo como
resultado ao menos parcial de um histoacuterico afetivo particular que adquire operatividade
cecircnica em negociaccedilatildeo direta com os termos de constituiccedilatildeo da narrativa espetacular
(dramaturgia composiccedilatildeo de personagem contracenaccedilatildeo encenaccedilatildeo) Isto equivale dizer que
o corpo do ator e seu comportamento dispotildeem diante do espectador caracteriacutesticas de
discursividade que antecedem e aderem ao proacuteprio discurso espetacular A combinaccedilatildeo dessas
duas instacircncias discursivas ndash o contexto da apresentaccedilatildeo teatral e a(s) narrativa(s) pessoal(is)
que transparecem por meio de caracteriacutesticas comportamentais dos atores ndash adensa e amplia
em possibilidades a leitura do espetaacuteculo tecendo personagens e situaccedilotildees que se comunicam
por meio de esquemas comportamentais compostos tambeacutem por reaccedilotildees furtivas
microexpressotildees e gestos involuntaacuterios cuja sutil expressividade pode tanto corroborar
quanto por em duacutevida ou ateacute mesmo negar uma construccedilatildeo dentro da narrativa espetacular
136
Natildeo cabe a discussatildeo da intencionalidade do gesto neste caso posto que tratamos ao mesmo
tempo de expressotildees de subjetividade que podem apresentar um grau de sutileza tal que
escapa ndash ou adere ndash a um processo consciente de construccedilatildeo cecircnica e sobretudo daquilo que
natildeo importa se intencional ou acidental atinge a percepccedilatildeo da plateia de modo a permitir uma
leitura do espetaacuteculo em perspectivas variadas mas vale mencionar que eacute possiacutevel que a
inserccedilatildeo inconsciente ou pouco refletida da expressividade do ator sobre a cena pode produzir
divergecircncias de leitura pouco desejaacuteveis
No boneco o gestual eacute resultado do impulso que o ator lhe confere Sua natureza
particular eacute oacutebvio dizer natildeo permite o envio de elementos de preacute discursividade por meio do
gestual pois que tais elementos no boneco advecircm exclusivamente de caracteriacutesticas de forma
podendo ser relacionados com estrutura e traccedilos fisionocircmicos os materiais de que eacute feito65
e
tambeacutem a potecircncia de movimento contida em seu formato66
(suas possibilidades de
movimentaccedilatildeo e pontos de articulaccedilatildeo) Essas caracteriacutesticas apesar de possuiacuterem vasta
potecircncia de significaccedilatildeo natildeo portam os elementos de memoacuteria pessoal e de autonomia
subjetiva transmitidos por meio do gesto de modo a serem combinadas aos elementos da
narrativa espetacular Um exemplo eloquente para a relaccedilatildeo entre forma e potecircncia de
movimento estaacute no espetaacuteculo da Cia Catibrum Homem Voa montada a partir do livro de
histoacuteria em quadrinhos Santocirc e os pais da aviaccedilatildeo de Joatildeo Spacca Os bonecos da histoacuteria
que trata da vida e das realizaccedilotildees e Alberto Santos Dumont foram feitos de modo a
reproduzir as ilustraccedilotildees do autor desenhista replicando a escolha de que alguns personagens
tem seus corpos combinados a maacutequinas e mecanismos (canhatildeo mola locomotiva balatildeo) de
acordo com os seus significados dentro da histoacuteria contada (Figuras 72 74a e 74b)
Assim sendo aquilo que o boneco porventura apresentar de gestualidade suplementar
ou involuntaacuteria natildeo ocorreraacute como transbordamento de uma subjetividade proacutepria mas como
revelaccedilatildeo da subjetividade do ator e muitas vezes como resultado de imprecisotildees
manipulativas Cabe aqui ressaltar que este estudo natildeo se propotildee a identificar ou advogar a
favou ou contra o apuro no desenvolvimento das teacutecnicas manipulativas tampouco exortar o
emprego deste ou daquele procedimento como mais ou menos desejaacuteveis para o
comportamento e a formaccedilatildeo do artista de teatro de animaccedilatildeo Reconhece isso sim que tudo
65
Haacute uma clara diferenccedila entre o emprego e a comunicaccedilatildeo de um material Bom exemplo disso estaacute na peccedila ldquoA
chegada de Lampiatildeo no Infernordquo da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo em que bonecos foram feitos em laacutetex mas
moldados e pintados de modo a darem a impressatildeo de serem bonecos de barro feitos no estilo do Mestre
Vitalino (Figura 73) 66
Aqui trata-se de forma ao falar de potecircncia de movimento Um boneco eacute capaz de transmitir ao puacuteblico certa
expectativa sobre o seu movimento apenas pela exposiccedilatildeo de sua forma Isto ocorre de modo bastante claro com
o boneco de luva mas pode ocorrer com praticamente todas as modalidades de bonecos ou formas animadas A
subversatildeo dessa expectativa trata exatamente de sua construccedilatildeo em um primeiro momento
137
Figura 71 Cia Catibrum Homem voa Neutralidade e expressividade
Fonte (httpwwwcatibrumcombr)
O ator agrave esquerda (Amaury Borges) reage ao personagem com a expressatildeo facial ao passo que o ator ao
centro (Lelo Silva) esforccedila-se para manter-se ldquoneutrordquo Natildeo eacute raro uma postura de neutralidade forccedilada
produzir mais divergecircncias de leitura da cena do que o envolvimento expressivo
Figura 72 PeQuod ndash Teatro de
Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no
inferno
Foto Simone Rodrigues
Bonecos em tecido e laacutetex imitando a
modelagem em barro de Mestre Vitalino
Figura 73b Cia Catibrum Homem voa Forma e potecircncia
de movimento
Fonte (httpwwwcatibrumcombr)
Figura 73b Cia Catibrum
Homem voa Forma e
potecircncia de movimento
Fonte
(httpwwwcatibrumcombr)
138
o que se mostra sobre a cena natildeo importa a sua motivaccedilatildeo ou origem eacute um componente
inalienaacutevel da mesma e a partir desse reconhecimento busca entender quais qualidades e
relaccedilotildees se estabelecem Foi escolhido conduzir este raciociacutenio a partir da consideraccedilatildeo de
algo entendido como um princiacutepio teacutecnico-pedagoacutegico (a neutralidade) com vistas investigar
sua validade e seus limites e na tentativa de assim justificar seu emprego ou apontar
alternativas teacutecnico-conceituais viaacuteveis
A neutralidade eacute tratada tanto por Beltrame como por Balardim como um
comportamento a ser cultivado pelo ator operador de formas animadas que possibilite ao
boneco ou objeto exercer a sua potencialidade expressiva sem que esta seja empanada pela
expressividade e poder de atraccedilatildeo que satildeo intriacutensecos agrave apresentaccedilatildeo do corpo vivo do ator
Mais que isso a neutralidade seria o estado original a partir do qual o ator permitiria que a
atuaccedilatildeo realizada junto com o boneco se fizesse de modo a encaminhar caracteriacutesticas de
atuaccedilatildeo resultantes de um diaacutelogo eficiente entre a potecircncia de accedilatildeo e expressatildeo do ator e os
elementos de significaccedilatildeo contidos na forma do boneco e naquilo que ele representa em cena
Balardim complementa a sua visatildeo acerca da neutralidade de uma forma que nos
serviraacute de partida para o aprofundamento de algumas questotildees
A neutralidade talvez seja a palavra-chave para uma boa manipulaccedilatildeo pois
ela eacute a base de todo um mecanismo psicoloacutegico acionado pelo ator-
manipulador que iraacute sobrecair sobre o puacuteblico A verdadeira neutralidade
implica ldquoestar neutrordquo e estar neutro eacute uma espeacutecie de natildeo-ser Estar neutro
eacute esvaziar-se de qualquer coisa que possa ser ao mesmo tempo em que o
objeto eacute Pois o objeto sendo eacute ele que assumiraacute toda a importacircncia no
momento em que eacute o foco da atenccedilatildeo Estar neutro neste momento eacute
concordar que nada mais importa aleacutem daquele objeto naquele momento
Neutralizar-se significa anular-se eliminar qualquer resquiacutecio da proacutepria
personalidade e do proacuteprio corpo para deixar que o objeto-personagem
imponha sua vontade sobre o corpo vencido do ator-manipulador
(BALARDIM 2004 p 89)
Parece ser neste ponto que a neutralidade tanto como chave analiacutetica quanto como
ferramenta teacutecnica deixa de servir a uma clara compreensatildeo e praacutetica das possibilidades
expressivas no teatro de animaccedilatildeo A anulaccedilatildeo da expressividade do ator operador sobre a
cena de animaccedilatildeo eacute vatilde como tentativa pouco feacutertil como opccedilatildeo poeacutetica e quase ausente
(mesmo sob a forma de tentativa) da cena contemporacircnea
Este estudo apresenta juntamente com a investigaccedilatildeo das possibilidades poeacuteticas do
animador aparente um questionamento um tanto agudo dos procedimentos de ocultaccedilatildeo do
ator-manipulador trata-se de um questionamento que supera a indagaccedilatildeo se a neutralizaccedilatildeo
da expressividade do ator que manipula o boneco pode ser entendida da forma como eacute
apresentada como um recurso teacutecnico de fato fundamental para uma percepccedilatildeo adequada da
139
apresentaccedilatildeo da forma animada e da cena teatral que a compreende O que indago aqui eacute se eacute
possiacutevel de fato lidar com a noccedilatildeo de neutralizaccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo do ator tanto no que esta se
refere a um componente da teoria do teatro de animaccedilatildeo quanto no sentido de uma proposiccedilatildeo
teacutecnico-pedagoacutegica67
Ainda assim nos dois autores mencionados se percebe que a adesatildeo agrave noccedilatildeo de
neutralidade natildeo eacute incondicional sequer desprovida de suporte em experiecircncia e reflexatildeo
Valmor Beltrame reconhece o campo delicado sobre o qual o termo repousa
Este princiacutepio [da neutralidade] tem gerado muitas controveacutersias porque eacute difiacutecil
conceber a ideacuteia de presenccedila neutra na cena uma vez que tudo o que estaacute no palco
adquire significado A ldquoneutralidaderdquo eacute aqui concebida como predisposiccedilatildeo do
ator-animador para estar a serviccedilo da forma animada tornar-se ldquoinvisiacutevelrdquo em
cena atenuar sua presenccedila para valorizar a do boneco (BELTRAME 2008 p36)
Poderiacuteamos para efeito desta reflexatildeo ampliar a declaraccedilatildeo de Beltrame e dizer que tudo o
que estaacute no palco bem como tudo aquilo cuja atuaccedilatildeo provoca uma reverberaccedilatildeo expressiva
que alcanccedila o que se pode perceber sobre o palco adquire significado A afirmaccedilatildeo proposta
tem em vista trazer agrave tona a percepccedilatildeo de que a accedilatildeo de um animador oculto das vistas do
puacuteblico por um aparato teacutecnico-cenograacutefico ao manipular uma forma animada projeta sua
presenccedila sobre a performance do boneco que traz em sua dinacircmica elementos combinados do
boneco e do ator-manipulador Ainda a afirmaccedilatildeo abre-se de forma provocativa no sentido de
sugerir que a produccedilatildeo de estiacutemulos sensiacuteveis sobre o palco (efeitos de luz de som de contra
regragem) natildeo podem se furtar a evidenciar a accedilatildeo de um indiviacuteduo posicionado fora do
campo de percepccedilatildeo imediato do espectador e que pode ser entendido como um trabalho de
animaccedilatildeo uma vez que a sua funccedilatildeo produza efeitos sobre a cena que se mostrem como tendo
certo tipo de participaccedilatildeo na narrativa espetacular numa interaccedilatildeo direta entre a
intencionalidade do operador e as possibilidades expressivas especiacuteficas dos materiais e
recursos empregados Logo a busca do estado neutral entendida a partir de uma pretensatildeo de
ldquonatildeo-serrdquo em cena esbarra a princiacutepio no proacuteprio boneco cuja apresentaccedilatildeo combina
elementos da forma e do ator
67
Haacute um comentaacuterio que merece ser feito ainda que natildeo valha como ressalva ao que se afirma A acorrida de
artistas com formaccedilatildeo preacutevia em teatro a companhias de teatro de animaccedilatildeo bem como o recente crescimento de
disciplinas e profissionais de animaccedilatildeo em cursos de formaccedilatildeo de atores vem apresentando aos processos de
formaccedilatildeo e treinamento especial atenccedilatildeo ao processo de transferecircncia de expressividade e suavizaccedilatildeo da
impressatildeo causada em cena pelo ator operador A estrateacutegia formativa de ressaltar a necessidade de uma postura
mais ldquoneutrardquo a artistas e artistas em formaccedilatildeo acostumados a diferentes gerenciamentos do seu potencial
expressivo eacute o que tem sido identificado no processo de pesquisa que resultou neste trabalho como sendo
neutralidade como provocador pedagoacutegico
140
Eacute claro que o resultado obtido ainda que revele o operador tanto em presenccedila quanto
em participaccedilatildeo pode conduzir a criaccedilatildeo de outras presenccedilas teatrais Steve Tillis aborda ao
longo de sua proposta de reformulaccedilatildeo conceitual para o boneco dramaacutetico (TILLIS 1992)
diversas questotildees relativas ao jogo relacional entre o animador e o boneco Uma dessas
passagens eacute aquela em que Tillis trata da liberdade de expressatildeo que o boneco propicia ao
artista quando se trata de trabalhar com a saacutetira e a criacutetica dos costumes e da poliacutetica A
apresentaccedilatildeo da questatildeo revela um aspecto no miacutenimo curioso da construccedilatildeo relacional que se
daacute entre manipulador e boneco
O teatro de bonecos tambeacutem oferece ao artista a licenccedila do boneco para agir e
falar com uma liberdade impressionante O boneco natildeo sendo uma pessoa viva
natildeo pode assumir a responsabilidade por suas accedilotildees mas tais accedilotildees e palavras natildeo
pertencem diretamente ao artista de teatro de bonecos e assim ele nem ela
parecem possuir responsabilidade sobre o boneco (TILLIS 1992 p33)
Tillis ainda nos apresenta ainda um exemplo em tom fabulesco recolhido por Petr
Bogatyrev de um marionetista que intimado por ter feito ataques poliacuteticos entendidos como
subversivos em sua apresentaccedilatildeo vai a juiacutezo com o heroacutei Kasparek em sua matildeo para
argumentar que a culpa natildeo eacute dele mas do boneco Satildeo comuns tambeacutem relatos de
espectadores que sendo alvos de pilheacuteria por parte dos bonecos em brincadeiras de
mamulengo direcionam sua fuacuteria na direccedilatildeo do boneco-personagem e natildeo do mestre
mamulengueiro
Se dermos creacutedito ao relato de Bogatyrev e ainda assim relevarmos o fato de que eacute
possiacutevel que o marionetista da passagem estivesse argumentando apenas com ironia torna-se
plausiacutevel a consideraccedilatildeo de que em cena boneco e manipulador se constituem numa estrutura
combinada que natildeo exclui nem isola nenhum dos dois mas que encaminha a percepccedilatildeo de
uma presenccedila que ainda que reconheccedila sua participaccedilatildeo difere da do operador O exemplo
extraiacutedo do mamulengo reforccedila o entendimento de que o boneco por si soacute natildeo eacute capaz de
tornar-se alvo do ressentimento da viacutetima de zombaria inanimado que eacute mas tampouco o
mamulengueiro pode ser solitariamente imputado das provocaccedilotildees ditas do alto da empanada
Izabela Brochado relata casos de provocaccedilotildees feitas em meio a funccedilatildeo do mamulengo nas
quais a ira do espectador troccedilado projeta-se inteiramente sobre o boneco e natildeo sobre o
brincante por meio de xingamentos respostas e tentativas de agressatildeo Tambeacutem relata sobre
casos de excitaccedilatildeo sexual do puacuteblico masculino diante da danccedila das Quiteacuterias (BROCHADO
2007)
141
Figura 74 Punch and Judy ilustraccedilatildeo
Fonte (httpbabylonbaroquewordpresscom
categorypunch-judy)
Figura 75 Kasperle boneco de luva
Fonte BOEHN 1972 p145
Punch Kasperle Kasparek Petruchka Guignol Heroacuteis populares sob a forma de bonecos com licenccedila
para acusar autoridades e usar de violecircncia com seus indefectiacuteveis bastotildees
Figura 76 Mamulengo Riso do Povo Mestre Zeacute de Vina Passagem de danccedila
Fonte (httpaltaculturawordpresscom20100707mamulengo-riso-do-povo)
142
Aquilo que Tillis identifica como sendo a licenccedila concedida pelo boneco ao
manipulador para dizer verdades delicadas criticar os costumes ou agir com excesso de
violecircncia e licenciosidade natildeo parece tambeacutem apresentar a forma animada como sendo um
simples veiacuteculo ou suporte para a expressatildeo do ator-manipulador O boneco natildeo pode ser
entendido apenas como um canal de expressatildeo do ator ainda que o artista que o opera creia
nisso Sem argumentarmos acerca de qualidades de forma de movimentaccedilatildeo fala e inserccedilatildeo
na accedilatildeo teatral que satildeo exclusivos de cada tipo de forma animada eacute possiacutevel entender a
licenccedila como um fator de transformaccedilatildeo da capacidade de expressatildeo e articulaccedilatildeo temaacutetica do
artista de animaccedilatildeo Quem fala nesse caso ndash e para afirmar isto natildeo preciso citar a potecircncia
do boneco como ativador de processos inconscientes o
que seria certamente tanto vaacutelido como rico para discussatildeo ndash natildeo eacute o operador apoiado no
boneco e sim a combinaccedilatildeo de permissotildees impulsos improvisacionais e acolhimentos
estabelecidos entre o boneco e o artista vivo
Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado parti da tentativa de definir o que cumpriria a
funccedilatildeo de ator no teatro de animaccedilatildeo para chegar ao entendimento da existecircncia de um ente
performativo dinacircmico resultante da combinaccedilatildeo da forma-boneco com o ator-manipulador
Um dos meus pontos de partida foi o entendimento de que a tentativa de se criar uma
correlaccedilatildeo direta de funccedilotildees identificando o manipulador com o inteacuterprete e o boneco com a
personagem se mostra uma maneira um tanto apressada e portanto imprecisa de exercitar a
percepccedilatildeo de manifestaccedilotildees
performativas do teatro de animaccedilatildeo num contexto mais amplo da arte teatral68
Levando-se
em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo conduzida ateacute agora neste capiacutetulo creio que natildeo seja um
problema lidar com a afirmaccedilatildeo de que desde suas origens o teatro apresentado com bonecos
e formas animadas dispotildee uma personagem criticamente desdobrada em transito constante
entre a identificaccedilatildeo com a ficccedilatildeo na qual se insere e seu rompimento por meio da burla do
comentaacuterio e da proacutepria condiccedilatildeo de objeto do boneco Isto pode ser percebido por exemplo
em situaccedilotildees nas quais o animador lanccedila matildeo de um recurso cocircmico proacuteprio da forma ou do
movimento especiacutefico do boneco muitas vezes rompendo com o proacuteprio fluxo da trama
apresentada Devido a sua estrutura de criaccedilatildeo livre muitos exemplos desse tipo podem ser
verificados em brincadeiras de mamulengo como o caso do personagem Janeiro69
(Figura
68
Pode-se indagar se o exerciacutecio de relacionar manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo com a de outras formas de
apresentaccedilatildeo teatral seria algo de fato necessaacuterio mas este trabalho pretende demonstrar que o uso desta
ferramenta para o entendimento de alguns processos teacutecnicos e criativos do teatro de animaccedilatildeo natildeo eacute de todo
despreziacutevel 69
Outro nome para esse boneco muito usado pelo Mestre Zeacute de Vina eacute Janeiro-vai-janeiro-vem
143
78) um negro que se abisma com tudo o que vecirc e demonstra essa disposiccedilatildeo erguendo o
pescoccedilo especialmente construiacutedo para ser estendido ateacute aleacutem do limite maacuteximo de altura da
empanada De acordo com a receptividade que obteacutem do puacuteblico o improviso do mestre
mamulengueiro pode inventar justificativas para repetir tantas vezes quanto julgar eficiente o
recurso de erguer o pescoccedilo de Janeiro Outro exemplo pode ser percebido em um dos textos
recolhidos por Hermilo Borba Filho em sua pesquisa sobre o Mamulengo (1987) Na peccedila As
aventuras de uma viuacuteva alucinada recolhida do mestre Ginu num determinado momento a
personagem Viuacuteva retruca que natildeo aceita o convite feito a ela pelo Professor Tiridaacute devido a
sua condiccedilatildeo de viuacuteva A fala recolhida sugere um efeito de manipulaccedilatildeo que a acompanha
Natildeo quero natildeo cumpadre De jeito nenhum Olhe o dedinho dizendo que natildeo Taacute
vendo Natildeo quero natildeo (Idem p108)
Figura 77 Janeiro-Vai-Janeiro-Vem Mestre Zeacute Lopes
Foto Mario Piragibe
144
O trecho em que a Viuacuteva chama a atenccedilatildeo para o ldquodedinhordquo muito provavelmente foi
dito acompanhado por um movimento caracteriacutestico e cocircmico do braccedilo do boneco Chance haacute
tambeacutem
de que esse movimento seja especiacutefico e proacuteprio do boneco em questatildeo A repeticcedilatildeo da
negativa eacute de fato desnecessaacuteria para o entendimento da passagem (a fala em questatildeo eacute
complementar a uma fala anterior na qual a personagem jaacute explicita sua disposiccedilatildeo) e essa
ecircnfase pode ser entendida como a repeticcedilatildeo do efeito cecircnico especiacutefico provavelmente um
modo inusitado e cocircmico de mover o braccedilo do boneco em sinal de negativa
Esse tipo de comportamento pode ser entendido como resultado de um movimento de
separaccedilatildeo entre manipulador e boneco pois que o mestre mamulengueiro faz uso do boneco
em uma dimensatildeo eminentemente material produzindo assim um comentaacuterio jocoso sobre a
condiccedilatildeo de inanimado do boneco de modo a apresentar uma piada de metalinguagem Se nos
reportarmos agraves noccedilotildees de opalizaccedilatildeo defendida por Jurkowski e de visatildeo-dupla apresentada
por Tillis temos aqui uma passagem atraente e estimulante provocada justamente pela
simultaneidade de percepccedilatildeo do boneco em cena como objeto e como imaginaccedilatildeo de vida
autocircnoma
Podemos localizar nesse comportamento alguma semelhanccedila com o recurso dos
comediantes populares que a professora Neyde Veneziano chama de desdobramento (2004)
Esse recurso eacute um modo de transitar entre a interpretaccedilatildeo da personagem e a assunccedilatildeo da
personalidade do ator diante do puacuteblico como parte de um ldquopactordquo de reconhecimento e
comunicaccedilatildeo direta por meio do qual as ilusotildees da ficccedilatildeo teatral satildeo estranhadas ou
deslocadas para permitir um encontro direto entre o puacuteblico e seu ator preferido bem como
para inserir um comentaacuterio xistoso ou explicaccedilatildeo agrave accedilatildeo em curso O procedimento eacute
relativamente simples e bastante conhecido o ator suspende momentaneamente o curso da
accedilatildeo para fazer um comentaacuterio como que deixando de lado a personagem e agindo como ele
mesmo
Como arte com origens e formas notadamente populares o teatro de bonecos
apresenta em diversas das suas manifestaccedilotildees o emprego desses apartes comentaacuterios xistes
metalinguiacutesticos suspensotildees de accedilatildeo e intervenccedilotildees improvisadas Esses momentos satildeo
exemplos claros de aproveitamento do efeito de opalizaccedilatildeo ou visatildeo-dupla ainda que uma
noccedilatildeo natildeo seja redutiacutevel agrave outra No caso do teatro de animaccedilatildeo pode-se imaginar uma
modalidade de desdobramento que leva em consideraccedilatildeo a composiccedilatildeo ator e objeto
ampliando o entendimento dos limites corporais do binocircmio personagem-inteacuterprete e
propiciando dessa forma certa variedade de combinaccedilotildees
145
Quando o mestre de mamulengos deseja endereccedilar-se diretamente agrave plateia como ele
mesmo e natildeo por meio de um de seus personagens (para indicar uma pausa o fim da funccedilatildeo
ou para dar um aviso que natildeo se relacione diretamente com a brincadeira) este raramente se
desloca de traacutes da empanada para dar-se a ver mas passa a falar com uma voz despida das
caracteriacutesticas estilizadas de seus personagens e muitas vezes ainda exibe o boneco no vatildeo
da janela que se move caracteristicamente acompanhando o ritmo da fala do artista
Diferentemente do efeito de opalizaccedilatildeo o desdobramento supotildee uma disposiccedilatildeo
alternada entre personagem e inteacuterprete70
numa alternacircncia cadenciada de centralidades Ora
a personagem do drama estaacute mais agrave vista ora a personagem elaborada a partir da suposta
personalidade do inteacuterprete se mostra mais claramente Ainda que essa dinacircmica alternada
deixe resiacuteduos das duas fontes discursivas uma na outra natildeo se trata aqui de criar uma
percepccedilatildeo simultacircnea mas de se lidar com trocas ritmadas com finalidades cocircmicas
Para a animaccedilatildeo o desdobramento eacute intencional e posterior agrave opalizaccedilatildeo posto que
esse efeito eacute considerado intriacutenseco agrave proacutepria natureza da apresentaccedilatildeo da forma animada e se
realiza em acircmbito corporal dando a perceber os espaccedilos ocupados por forma e operador
Quando em Cuentos Pequenotildes Hugo Suarez retira o proacuteprio braccedilo de dentro da
camisa usada para compor a forma do palhaccedilo violonista feito a partir do seu proacuteprio joelho
juntamente com a clareza de comunicaccedilatildeo que daacute a entender a transferecircncia do controle do
braccedilo da personagem para o operador produz-se um efeito cocircmico que decorre justamente da
fraacutegil determinaccedilatildeo acerca desse controle Esse mesmo braccedilo usaraacute o violatildeo tocado pela
personagem para golpeaacute-lo e fazer o ator aproveitar-se da feacuteria conquistada pelo boneco feito
a partir do joelho do ator e de um nariz de palhaccedilo Sempre perceberemos a personagem feita
pelo joelho de Hugo em uma disposiccedilatildeo simultacircnea de objeto e vida mas tambeacutem por meio
de uma dinacircmica de trocas por meio da qual seu corpo se rearranjaraacute em combinaccedilotildees
constantes ora expandindo o corpo do animador ora da personagem e sempre identificando
aacutereas de controle comum ou indeterminado
Por isso a busca por se definir uma hierarquia estaacutevel entre manipulador e boneco em
termos de relevacircncia para a cena e expressividade seria se natildeo uma impossibilidade um
grande problema O presente estudo que tem como ponto de atenccedilatildeo os entendimentos e usos
da presenccedila e da subjetividade do ator-manipulador em praacuteticas contemporacircneas de teatro de
animaccedilatildeo no Brasil parte da aceitaccedilatildeo dessa estrutura como algo que se daacute como uma
70
Natildeo se pode ignorar aqui que a maneira como essa dualidade se expressa suscita algum questionamento pois
que natildeo se pode considerar sem ressalvas que um ator em cena possa de fato apresentar-se despido de qualquer
forma de composiccedilatildeo teatral mesmo que se apresente como sendo ldquoele mesmordquo
146
combinaccedilatildeo tensa para localizar aspectos e efeitos construiacutedos na radicalidade das
possibilidades de estabelecimento desse ente relacional Para que isso ocorra faz-se necessaacuteria
buscar aplicar um olhar renovado sobre aspectos de fundamentais da linguagem da animaccedilatildeo
como o que ora se apresenta da possibilidade de exclusatildeo da influecircncia do animador sobre a
apresentaccedilatildeo do boneco
Uma argumentaccedilatildeo que busco construir eacute a de que o proacuteprio ato de manipular
entendido como uma accedilatildeo do ator que implica ou natildeo na movimentaccedilatildeo do boneco que serve
para conferir ao objeto participaccedilatildeo relevante em um contexto de espetaacuteculo teatral por meio
da produccedilatildeo de uma presenccedila qualificada elaborar ou potildee em questatildeo o jogo da animaccedilatildeo
como sendo algo que se estabelece em diaacutelogo com a presenccedila do operador Afinal o aparato
que retirar a capacidade de o puacuteblico perceber o manipulador com perfeiccedilatildeo teacutecnica criando a
ilusatildeo completa de que o boneco se move e entra na cena totalmente por sua conta seraacute
tambeacutem um dispositivo teatral ndash teacutecnico ou dramatuacutergico ndash que natildeo conseguiraacute escapar ao
tema da ausecircncia do manipulador Desta forma teremos uma qualidade de presenccedila construiacuteda
diante de uma impressatildeo de ausecircncia O boneco em suas caracteriacutesticas de forma de
movimento de apresentaccedilatildeo de fala e de inserccedilatildeo no espetaacuteculo teatral trata inapelavelmente
de sua condiccedilatildeo de objeto e por conseguinte da existecircncia de um operador
Assim podemos concluir que a opccedilatildeo por usar um aparato de ocultaccedilatildeo dos atores-
manipuladores das vistas do puacuteblico natildeo eacute nem pode ser uma tentativa de criaccedilatildeo de uma
ilusatildeo de vida autocircnoma dos bonecos ndash ao menos natildeo uma tentativa cuidadosamente
considerada ndash da mesma forma que a exibiccedilatildeo do manipulador durante a apresentaccedilatildeo natildeo
pode ser seriamente subordinada a uma exibiccedilatildeo de periacutecia que conduziraacute a plateacuteia a perder
totalmente a impressatildeo de sua presenccedila
Aqui retomamos agraves ressalvas anteriormente feitas agrave noccedilatildeo de neutralidade como
desaparecimento e modo de o operador ldquonatildeo-serrdquo em cena Jaacute tratamos da impossibilidade
desse desaparecimento e de como da percepccedilatildeo de caracteriacutesticas do operador adveacutem
elementos que compotildeem a apresentaccedilatildeo da forma animada Tratamos tambeacutem desse efeito
intriacutenseco agrave animaccedilatildeo que eacute o conceito de opalizaccedilatildeo desenvolvido por Henryk Jurkowski
para o qual a percepccedilatildeo dupla e simultacircnea do boneco como objeto inerte e vida autocircnoma
pressupotildee a percepccedilatildeo da participaccedilatildeo do operador mesmo oculto
Ainda que possa a princiacutepio surtir algum efeito praacutetico preocupa em termos de clareza
e eficiecircncia o emprego da neutralidade como termo e como procedimento com vistas a
fornecer paracircmetros teacutecnicos que chamem a atenccedilatildeo de artistas em treinamento para uma
dosagem eficiente da expressividade do ator que se potildee a representar juntamente com a forma
147
animada Faz-se necessaacuterio para a compreensatildeo a comunicaccedilatildeo e o treinamento de uma
postura consciente acerca das atenccedilotildees necessaacuterias para a operaccedilatildeo de trocas vivas entre ator e
forma animada um fundamento teacutermino-procedimental que decirc conta justamente dessas
atenccedilotildees
Parece que a noccedilatildeo que se busca deve abordar com certa clareza a dinacircmica de
alternacircncias de ecircnfase de atenccedilatildeo entre manipulador e boneco ao longo da representaccedilatildeo
Tanto oculto atraacutes da empanada ou posto agrave vista do espectador o manipulador exerce certo
controle sobre o andamento da alternacircncia do foco que se move dele para o objeto Assim
entendemos a janela da empanada menos como esconderijo e mais como moldura por meio
da qual os estiacutemulos natildeo satildeo segregados mas ordenados de modo a encaminhar as escolhas e
ecircnfases que compotildeem narrativa espetacular Essa condiccedilatildeo atenta para alguns pontos
importantes e que de certa forma jaacute foram abordados os recursos de ocultaccedilatildeo satildeo tanto de
natureza teacutecnico-cenograacutefica (empanadas janelas figurino) como procedimental-
performativa mas estaacute claro que a eficaacutecia do primeiro recurso quando empregado encontra-
se inapelavelmente subordinado ao modo de emprego do segundo Esse segundo tipo de
recurso (o que envolve o comportamento do ator) permite um transito livre de aplicaccedilatildeo de
recursos e de gradaccedilatildeo de desdobramento presente nos diferentes modos de disposiccedilatildeo
corporal de ator e forma animada Outro ponto eacute a evidente limitaccedilatildeo do controle que mesmo
o mais dotado dos inteacuterpretes tem sobre a percepccedilatildeo da plateacuteia A por vezes incocircmoda mas
sempre estimulante certeza que natildeo se pode mandar na vontade do espectador e que a atenccedilatildeo
sobre as ecircnfases e focos sobre a cena podem ser sugestotildees de encaminhamento da atenccedilatildeo
mas jamais imposiccedilotildees
Outro ponto que merece atenccedilatildeo no que toca ao entendimento dos usos da ocultaccedilatildeo
do ator eacute a tentativa de se estabilizar dentro do possiacutevel a identidade visual ou a unidade
figurativa de um determinado espetaacuteculo de animaccedilatildeo A visatildeo do corpo do operador aqui natildeo
se daacute em prol do estabelecimento de uma ilusatildeo de vida autocircnoma mas de uma unidade
esteacutetica que pretende entregar ao espectador uma proposta artiacutestica que se pretenda
razoavelmente iacutentegra Um mundo habitado por pessoas com cabeccedila de madeira e corpos de
xita estampada estaria assim apresentado de maneira irregular se fosse constantemente
aborrecido pela intervenccedilatildeo de criaturas de carne e osso Outro belo exemplo seria o
espetaacuteculo Filme Noir da PeQuod no qual se buscava recriar a atmosfera dos filmes de
detetive em preto-e-branco Para isso os bonecos foram pintados e vestidos em escala de
cinza e toda a iluminaccedilatildeo foi pensada e feita de modo a natildeo escapar agrave palheta proposta O
diretor da montagem Miguel Vellinho menciona o emprego de filtros sobre os refletores de
148
modo a impedir a projeccedilatildeo do brilho amarelado proacuteprio dos filamentos das lacircmpadas
(VELLINHO 2005) Vellinho comenta entatildeo o encaminhamento das escolhas relativas agrave
caracterizaccedilatildeo dos atores na peccedila
Durante uma etapa do processo de montagem apresentamos um esboccedilo do
que seria o espetaacuteculo Foi aiacute que eu percebi que a cena natildeo imprimia o que
eu almejava justamente por estarem presentes os rosados rostos dos
manipuladores os vaacuterios tons castanhos de seus cabelos e uma infinita
variaccedilatildeo de cores que esmaeciam a proposta inicial Pela primeira vez fomos
obrigados a esconder matildeos e rostos dos manipuladores a fim de apagar
aquela invasatildeo de cores Necessariamente a cor teve que ser a preta por sua
absorccedilatildeo de luz e neutralidade absoluta (idem pp183-4)
E assim Filme Noir apresenta atores operadores de formas animadas vestidos
inteiramente de preto e parcialmente ocultos pela iluminaccedilatildeo recortada de Renato Machado
mais pelo bem de uma escolha de encaminhamento da narrativa esteacutetica do que pela
necessidade de permitir ao boneco expressar-se sem a competiccedilatildeo com a expressividade
inerente agrave presenccedila do ator humano ou mesmo por uma tentativa de criar a ilusatildeo de vida
autocircnoma
Cabe portanto buscar compreender que princiacutepio mais preciso e abrangente
substituiria a noccedilatildeo de neutralidade tanto para a compreensatildeo quanto para o lanccedilamento de
bases procedimentais para o artista de animaccedilatildeo Balardim e Beltrame parecem fornecer
indicativos bastante valiosos para essa perseguiccedilatildeo nas proacuteprias definiccedilotildees que elaboram
sobre a neutralidade Ainda dentro de uma perspectiva de anulaccedilatildeo da expressividade do ator
Balardim em dado momento menciona que a neutralidade consiste em ldquoabrir uma porta de
comunicaccedilatildeo com o inanimadordquo (2004 p88) estabelecendo uma qualidade oacutetima de atenccedilatildeo
do ator para com a forma que anima Nesse momento ele estaacute justamente tratando do
gerenciamento de atenccedilatildeo necessaacuterio ao ator operador de formas necessaacuterio para que esse
possa conjugar caracteriacutesticas e esforccedilos de modo obter o maacuteximo de rendimento da estrutura
conjugada que eacute criada juntamente com o boneco A partir dessa atenccedilatildeo o ator adquire maior
autonomia expressiva e amplia a consciecircncia acerca das possibilidades significativas que a
atuaccedilatildeo conjunta do organismo performativo composto permite Ou seja comunicar-se com a
forma natildeo consiste aqui num processo mistificado de se estabelecer um contato sutil com
vibraccedilotildees vitais encerradas dentro do objeto inanimado mas compreender quais novas
possibilidades de comunicaccedilatildeo de ritmo e de expressividade satildeo abertas a partir da
constituiccedilatildeo de um corpo rearranjado para onde nesse corpo a atenccedilatildeo ndash do ator e do puacuteblico
ndash converge e como se deve portar para que o foco dessa atenccedilatildeo esteja claro e pronto para
149
estabelecer o tipo de comunicaccedilatildeo desejada Beltrame parece acompanhar essa leitura ao
mencionar que na neutralidade abre-se a possibilidade de ldquover aleacutem do aparente olhar mais
profundamente e ver a possibilidade do movimento o lsquovir a serrsquo contido em cada objeto ou
bonecordquo (BELTRAME 2005 p294)
Noutra passagem Balardim defende o trabalho sobre a neutralidade como indicativo de
uma apresentaccedilatildeo cuidada em animaccedilatildeo afirmando que ldquotanto mais ela estaraacute presente quanto
mais atenccedilatildeo (a-tensatildeo relaxamento) do puacuteblico o objeto-personagem puder captarrdquo (idem
p90) Neste trabalho jaacute se falou ndash e ainda se falaraacute ndash das experiecircncias em animaccedilatildeo nas quais
a atenccedilatildeo da plateia natildeo repousa exclusivamente sobre a forma animada natildeo apenas pelas
impossibilidades jaacute mencionadas mas sobretudo pelas escolhas poeacuteticas que as norteiam
Portanto natildeo cabe aqui determo-nos sobre a criacutetica da definiccedilatildeo de um teatro de animaccedilatildeo no
qual a atenccedilatildeo recai toda sobre o ldquoobjeto-personagemrdquo71
mas atentar para o fato de que o
principal objetivo perseguido por meio do recurso da neutralidade eacute o de captar a atenccedilatildeo do
puacuteblico ainda que ao combinar a noccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave de relaxamento Balardim esteja
evocando uma qualidade na clareza comunicativa da apresentaccedilatildeo do boneco com a qual este
trabalho em diversas passagens e de diversas formas natildeo compactua Beltrame menciona que
na neutralidade exercita-se a ldquoconsciecircncia de estar em cenardquo o que natildeo pode ser entendido de
outra maneira que natildeo a percepccedilatildeo exata dos efeitos produzidos pelas accedilotildees realizadas em
cena e por conseguinte a busca por uma disposiccedilatildeo eficiente das atenccedilotildees e dos focos
Eacute inegaacutevel neste ponto a importacircncia dos pensamentos de Balardim e Beltrame para o
percurso reflexivo aqui empreendido que parte da contribuiccedilatildeo de ambos no sentido de uma
sistematizaccedilatildeo dos estudos teacutecnicos do teatro de animaccedilatildeo feito no Brasil jaacute devidamente
apresentado em um contexto ampliado de possibilidades poeacutetico-operativas Os escritos de
ambos adquirem sua importacircncia no sentido exato em que apontam para a exortaccedilatildeo de uma
apropriaccedilatildeo consciente e responsaacutevel de um cabedal teacutecnico que permita ao artista de
animaccedilatildeo a devida exploraccedilatildeo das possibilidades da linguagem e lanccedilam bases
imprescindiacuteveis para um modelo pedagoacutegico em animaccedilatildeo moderno e comprometido com a
investigaccedilatildeo artiacutestica
Mesmo com as ressalvas apontadas parece que esses exerciacutecios de definiccedilatildeo de
neutralidade encaminham para a consciecircncia de que o controle da expressividade do ator
71
Sabemos que mesmo essa criacutetica apresenta seus enganos Se pensarmos numa concepccedilatildeo ampliada de forma
animada que inclui as corporalidades combinadas e ateacute mesmo a potecircncia de marionetizaccedilatildeo do corpo humano
em alguns contextos espetaculares imaginar o ldquoobjeto-personagemrdquo mencionado por Balardim a partir de uma
concepccedilatildeo estaacutetica de boneco teatral formalmente definido e exterior ao corpo do operador pode ser um
equiacutevoco
150
operador de formas sobre a cena se daacute ndash ou resulta ndash como um mecanismo de orientaccedilatildeo das
ecircnfases que iratildeo conferir certa qualidade agrave narrativa espetacular Deixa assim de ser uma
busca pela anulaccedilatildeo para tornar-se um gerenciamento de expressividades que opera como
focalizador um guia das possiacuteveis leituras de uma cena em trecircs dimensotildees que dispotildee planos
narrativos concomitantes e enreda os sentidos do espectador em meio a uma variedade
desnorteante de combinaccedilotildees expressivas
Haacute de fato um fundamento teacutecnico-reflexivo presente nos levantamentos jaacute
mencionados de Balardim e Beltrame que parece aproximar-se do presente encaminhamento
da reflexatildeo mas que pode suscitar diferentes leituras e aplicaccedilotildees Curiosamente todas nos
servem ainda que precisem ser devidamente isoladas consideradas e comparadas
151
21 O Foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituais
A compreensatildeo usual do que seria o foco se estende por uma quantidade razoaacutevel de
elementos e eventos Em oacutetica o foco pode ser tanto o ponto para o qual converge um ou mais
feixes de luz quanto o ponto a partir do qual um feixe de luz diverge em direccedilatildeo e variedade
Ainda pode ser entendido como o proacuteprio feixe colimado compreendendo assim seus pontos
de origem e convergecircncia O foco de luz teatral relaciona-se obviamente com o refletor
luminoso de onde se origina o feixe mas parece ser livre de equiacutevocos a afirmaccedilatildeo de que sua
forma e funccedilatildeo se exercem em relaccedilatildeo ao seu ponto de chegada ou seja a aacuterea da cena a ser
iluminada oferecida no mais das vezes agrave percepccedilatildeo visual do espectador contribuindo assim
de maneira importante para o esquema de sugestatildeo da orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo que participa da
poeacutetica da encenaccedilatildeo
Para a teacutecnica fotograacutefica o foco pode ser entendido tanto como sendo o processo de
escolha da composiccedilatildeo do quadro que tende a selecionar temas por efeitos de centralizaccedilatildeo
ou distanciamento quanto o recurso por meio do qual ao realccedilar ou ampliar a nitidez da
percepccedilatildeo dos contornos de um dado elemento este se oferece agrave percepccedilatildeo visual com maior
ou menor dificuldade Curioso notar que ao tratarmos de qualidades visuais natildeo
abandonamos em momento nenhum a dinacircmica de convergecircncia e divergecircncia de feixes
luminosos A relaccedilatildeo do foco com a visatildeo nos faz entender que este se situa no centro de uma
dinacircmica perceptiva que lida com o direcionamento do olhar Trata-se de uma dinacircmica de
seleccedilatildeo que propotildee a organizaccedilatildeo de um discurso visual e ergue uma instacircncia intermediaacuteria
entre o objeto percebido e o observador deformando e refazendo o objeto no processo
Susan Sontag consegue exprimir com clareza o efeito perceptivo da seletividade
fotograacutefica
Atraveacutes da fotografia o mundo se torna uma seacuterie de partiacuteculas livres natildeo
relacionadas entre si e a histoacuteria passado e presente satildeo um conjunto de
anedotas e faits divers A cacircmera torna a realidade atocircmica manuseaacutevel e
opaca Eacute uma visatildeo do mundo que nega a inter-relaccedilatildeo e a continuidade mas
confere a cada momento o caraacuteter de misteacuterio (SONTAG apud BERGER
2003 p54)
Essa seletividade tem a capacidade de refundar o sensiacutevel ou ao menos propor o
estabelecimento de novas aproximaccedilotildees com ele Eacute uma fonte de narratividade o foco por ser
a partir dele e em relaccedilatildeo a ele que os elementos da percepccedilatildeo iratildeo se organizar de modo a
orientar uma leitura
152
O teatro como se sabe natildeo possui a mesma eficaacutecia (ou vontade) da fotografia no que
diz respeito ao isolamento dos elementos que compotildeem o discurso do que se apresenta De
fato eacute da natureza mesmo da arte teatral a disposiccedilatildeo simultacircnea de elementos de diferentes
sistemas de significaccedilatildeo (atores discurso dramatuacutergico efeitos iluminoteacutecnicos sonoros
accedilotildees simultacircneas microreaccedilotildees contaminaccedilatildeo de informaccedilotildees vindas de fora da aacuterea de
representaccedilatildeo entre outros) que ora propotildeem leituras resultantes das combinaccedilotildees
estabelecidas ora simplesmente restam como ruiacutedos que significam isoladamente e ateacute
mesmo propotildeem combinaccedilotildees inusitadas Assim sendo o foco no teatro cumpre uma funccedilatildeo
muito mais de sugerir a conduccedilatildeo da atenccedilatildeo do espectador do que propriamente produzir um
ponto de vista segregado e atomizado apontado por Sontag como sendo proacuteprio da fotografia
Pavis apresenta a questatildeo da focalizaccedilatildeo como sendo um recurso empregado pelo
autor de conferir maior visibilidade e impacto de um determinado tema em meio agrave sequecircncia
de eventos que constitui a accedilatildeo dramaacutetica (1998 pp208-9) Sem mencionar exemplos Pavis
atribui um caraacuteter notadamente eacutepico ao recurso Acompanhar o raciociacutenio do professor
francecircs identifica o recurso como uma teacutecnica de seleccedilatildeo de informaccedilotildees em meio a diversas
disponiacuteveis como quem conduz uma lanterna em meio a um quadro direcionando nosso
olhar para aquilo que interessa ser mostrado Determinadas aacutereas destacam-se pela
centralidade que ocupam na aacuterea iluminada e ainda que algo possa restar na completa
obscuridade seraacute possiacutevel enxergar muito do que estaacute em torno do centro da atenccedilatildeo sugerida
e muito ainda poderaacute ser visto por efeitos de rebatimento luminoso Ainda e sem abandonar a
analogia proposta Pavis reconhece tambeacutem a focalizaccedilatildeo a partir da consideraccedilatildeo de quem
segura e conduz a lanterna Um claro recurso de revelaccedilatildeo de um
componente de subjetividade na construccedilatildeo do discurso dramaacutetico Seguindo aleacutem e
considerando uma determinada perspectiva de criaccedilatildeo em teatro pode-se empregar a mesma
loacutegica para se identificar a poeacutetica da encenaccedilatildeo como algo que insere (sobrepotildee talvez seja
mais adequado) um ou mais pontos de focalizaccedilatildeo sobre a sequecircncia de eventos dispostos
diante do espectador
O foco organiza e provoca a percepccedilatildeo Estaacute presente tanto na instacircncia interna de
organizaccedilatildeo do discurso na sua produccedilatildeo mesmo quanto na instacircncia externa aquela que se
funda na percepccedilatildeo do espectador Haacute uma passagem ceacutelebre na obra reflexiva de Sergei
Eisenstein na qual eacute demonstrada como a alteraccedilatildeo da angulaccedilatildeo da cacircmera na captaccedilatildeo da
imagem de um objeto (no caso uma maacutescara) eacute capaz de produzir sensaccedilotildees diversas de
estatismo e movimento (2002 pp5760) (Figura 79)
153
Figura 78 Esquema de Serguei Eisenstein aplicaccedilatildeo de conflito por meio de alteraccedilatildeo focal
Fonte EISENSTEIN 2002 p 57
Figura 79 Foco alteraccedilatildeo de tema e ecircnfase na imagem por meio de distorccedilatildeo focal
Fonte (httpwwwzhpcombrdicasfoco-ou-a-falta-de-na-composicao-fotografica)
Foto Henrique Pimentel
154
Para se pensar a funccedilatildeo do foco no teatro de animaccedilatildeo deve-se em primeiro lugar
entender os processos teacutecnico-linguiacutesticos de emprego que lidam com modos e efeitos do
direcionamento da atenccedilatildeo e como a ativaccedilatildeo consciente e rigorosa dos efeitos de focalizaccedilatildeo
ordena o discurso da cena e permite a criaccedilatildeo da sensaccedilatildeo de autonomia imaginada e relaccedilatildeo
do objeto com o contexto espetacular Mas natildeo se pode perder de vista sobretudo ao lidarmos
com as vontades percebidas em empreendimentos artiacutesticos das uacuteltimas cinco deacutecadas
questotildees relativas agrave transposiccedilatildeo da questatildeo teacutecnica para o campo temaacutetico onde o teatro de
animaccedilatildeo indaga a sua proacutepria especificidade formal e lida com a questatildeo da focalizaccedilatildeo em
uma dinacircmica de alternacircncias e indefiniccedilotildees propositais produzindo focos elusivos
distorcidos e muacuteltiplos acompanhando de certa maneira natildeo apenas as vontades que
produzem um discurso menos formalizado mas tambeacutem a reorganizaccedilatildeo dos limites fiacutesicos
do boneco teatral Para que tal se decirc o percurso reflexivo deveraacute ser cuidadoso e detido
Vamos a ele
Em teatro de animaccedilatildeo existe uma compreensatildeo da noccedilatildeo de foco expressa por meio
de um princiacutepio teacutecnico recorrente em salas de ensaio Seria grosso modo a capacidade que o
ator que opera o boneco desenvolve de fazecirc-lo mostrar possibilidades de percepccedilatildeo e
sensibilidade Beltrame deixa clara essa noccedilatildeo ao afirmar que ldquoa noccedilatildeo de foco pode ser
exemplificada em momentos em que o boneco projeta o seu olhar para o objeto ou
personagem com que contracenardquo (2009 p292) Esta seria uma qualidade importante para a
dinacircmica perceptiva do boneco teatral uma vez que dirigir-se com precisatildeo espacial ao seu
interlocutor ou indicar acuradamente a percepccedilatildeo de elementos que lhe chamam a atenccedilatildeo
produz um efeito que contribui para a imaginaccedilatildeo de autonomia da forma animada ao
produzir o entendimento do objeto como possuidor de uma capacidade de percepccedilatildeo criando
dessa forma uma potecircncia de relaccedilatildeo
Em treinamentos e ensaios eacute recorrente a associaccedilatildeo do direcionamento focal com a
emulaccedilatildeo do olhar Mas Beltrame amplia a questatildeo ao tratar o olhar como recurso de
exemplificaccedilatildeo do foco ao inveacutes de sugerir uma relaccedilatildeo obrigatoacuteria entre focalizaccedilatildeo e
emulaccedilatildeo da visatildeo A variedade de formas materiais e dinacircmicas de movimentaccedilatildeo
apresentadas pelos elementos presentes no teatro de animaccedilatildeo fazem questionar a relaccedilatildeo
obrigatoacuteria entre focalizaccedilatildeo e olhar jaacute que certos bonecos simplesmente natildeo possuem olhos
nem se pode fazer uma correlaccedilatildeo direta entre a sua estrutura fiacutesica e um corpo humano ou
animal Pode-se buscar entatildeo para explicar a noccedilatildeo de foco a aproximaccedilatildeo com conceitos
tais como emulaccedilatildeo de percepccedilatildeo e imaginaccedilatildeo de projeccedilatildeo de interesse Quando Beltrame
mais adiante menciona o preceito corrente de que ldquoo boneco olha com a cabeccedila inteirardquo
155
Figura 80 Foco como emulaccedilatildeo do olhar
(Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto)
Foto Karim Sauro
Figura 81 Atenccedilatildeo do operador sobre o boneco como
orientaccedilatildeo focal (Cia Truks Vovocirc)
Fonte (httpwwwtrukscombr)
Figura 82 Convergecircncia focal entre ator e
boneco (PeQuod Peer Gynt ndash ensaio)
Foto Mario Piragibe
Figura 83 Focalizaccedilatildeo por contracenaccedilatildeo (El
Chonchoacuten Juan Romeo amp Julieta Maria ator Carlos
Pintildeeiro)
Fonte httpwwwsalta21comEl-Chonchon-
buenisimo-Destacadoshtml
Figuras 84a e 84b Divisatildeo de foco por expressatildeo (detalhes das Figuras 56 e 72)
156
(idem p 293 grifo meu) trata de como a impressatildeo do direcionamento focal se daacute em
movimentaccedilotildees que comprometem toda a estrutura da forma animada e natildeo por meio apenas
de uma conduccedilatildeo discreta e isolada do centro de percepccedilatildeo Isto contribui para o
entendimento de que o olhar ainda que possa ser uma referecircncia uacutetil na compreensatildeo e
execuccedilatildeo do direcionamento focal no boneco natildeo daacute conta do que seria o foco tanto em
termos conceituais quanto praacuteticos (ainda por que ao menos nesse caso o entendimento
separado entre conceito teoacuterico-reflexivo e fundamento praacutetico eacute falsa)
De toda maneira em casos como por exemplo na jaacute mencionada combinaccedilatildeo de tubo
articulado e bola do Muumlmmenchanz um direcionamento focal preciso eacute capaz de conduzir a
plateia a imaginar uma relaccedilatildeo eficiente entre a estrutura da forma animada e um corpo
iacutentegro e autocircnomo
Na disciplina optativa ministrada por mim no segundo semestre de 2010 para os
cursos de bacharelado e licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Uberlacircndia foi
trabalhado um exerciacutecio no qual os alunos deveriam propor accedilotildees sobre pedaccedilos de tecidos
roupas velhas e pedaccedilos de papel amassado de modo a que estes pudessem ser entendidos
como formas animadas A questatildeo principal apresentada agrave turma era como e quando a peccedila de
material trabalhada deixava de ser apenas um retalho ou pedaccedilo de jornal e cedia espaccedilo para
a imaginaccedilatildeo de uma determinada presenccedila O que se percebeu foi que a identificaccedilatildeo de um
centro de percepccedilatildeo72
eacute fundamental para produzir a imaginaccedilatildeo de presenccedila e autonomia que
traccedila a linha entre apenas pano e pano usado como boneco Ainda que seja curioso perceber
que muitos alunos acabaram optando por moldar em seus materiais formas que se
assemelhassem a partes de corpos (pernas cabeccedilas narizes) uma operaccedilatildeo atenta ao
direcionamento focal da forma animada permitia que se imaginasse integridade corporal em
formas esquemaacuteticas parciais em objetos com pouca semelhanccedila com a forma humana
(Video 9) ou que evitavam a reproduccedilatildeo reconheciacutevel de membros ou traccedilos de feiccedilatildeo
Assim sendo eacute possiacutevel entender o foco como um componente teacutecnico-conceitual que
atua na emulaccedilatildeo da autonomia da forma animada mas natildeo se pode perder de vista a sua
importacircncia para a ordenaccedilatildeo do discurso espetacular em teatro de animaccedilatildeo De fato essas
duas funccedilotildees ndash emulaccedilatildeo de autonomia e ordenaccedilatildeo de discurso cecircnico ndash estatildeo imbricadas por
meio da noccedilatildeo anteriormente mencionada de como a percepccedilatildeo da forma animada se daacute
forccedilosamente a partir da instauraccedilatildeo de uma teatralidade
72
Por centro de percepccedilatildeo identifico o ponto na estrutura do boneco que reage e se direciona ao que se pretende
fazer a forma perceber e assim orientar a sua loacutegica de movimentaccedilatildeo
157
Figura 85a 85b 85c 85d Deslocamento e foco em trabalhos com materiais Aula Teatro de Formas
animadas (IARTE-UFU) Alunos Victor Rodrigues Viniacutecius Fonseca Gabriela Martins e Ana Claacuteudia
Zumpano
Foto Mario Piragibe
Figura 86 Centro de focalizaccedilatildeo impliacutecito Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo
Fonte (httpwwwtrukscombr)
158
Beltrame menciona um princiacutepio teacutecnico-conceitual nomeado ldquoolhar como indicador
da accedilatildeordquo (idem) que parece apresentar com clareza a integraccedilatildeo entre a emulaccedilatildeo da
autonomia e a ordenaccedilatildeo do discurso da cena O princiacutepio trata de como o direcionamento
focal do boneco orienta
o espectador a dar-se conta dos dados e elementos que satildeo fundamentais para o
acompanhamento desejado da cena apresentada Aqui o direcionamento do foco do boneco
estaacute contribuindo conjuntamente para a percepccedilatildeo da autonomia do boneco e para o
ordenamento das ecircnfases da cena apresentada
Balardim em sua relaccedilatildeo de preceitos teacutecnicos para o ator de animaccedilatildeo natildeo relaciona
o foco em seu rol de princiacutepios mas trata da noccedilatildeo em uma perspectiva especiacutefica que parte
da concepccedilatildeo do que ele chama de ldquocontrole atencionalrdquo (2004 pp98-100) Sua preocupaccedilatildeo
maior repousa na conduccedilatildeo da atenccedilatildeo do puacuteblico e ainda que defenda o quanto o rigor no
endereccedilamento dos pontos focais da cena contribui para ldquoorientar o olhar do puacuteblico em
direccedilatildeo ao que precisa ver [a forma animada] para encontrar o que quer verrdquo (idem p100
grifos do autor) Balardim parece entender o esforccedilo de imprimir a forma animada como
sendo uma presenccedila qualificada dissociada do esforccedilo de ordenaccedilatildeo dos assuntos e ecircnfases da
cena na qual ela se insere A convicccedilatildeo expressa neste trabalho de que o boneco pelas
qualidades de convocaccedilatildeo de teatralidade existentes na sua apresentaccedilatildeo provoca uma relaccedilatildeo
de indissociabilidade entre concepccedilotildees e recursos de ordenamento do discurso cecircnico e de
emulaccedilatildeo de autonomia e presenccedila
A esse respeito pode ser mencionado um procedimento natildeo tratado por Belatrame e
Balardim que lida com o foco em casos de apresentaccedilatildeo de bonecos com atores operadores agrave
mostra Trata-se do direcionamento do olhar do animador durante a atuaccedilatildeo com o boneco
Percebe-se que quando o olhar do ator se encontra claramente direcionado sobre o boneco que
opera se produz na percepccedilatildeo do espectador um efeito eficiente de transferecircncia de atenccedilatildeo
que contribui para a imaginaccedilatildeo de autonomia e atenccedilatildeo detida sobre as accedilotildees do boneco
(Figura 82) Isto vale mesmo para bonecos operados agrave vista por mais de um ator Ocorre uma
orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo que parte do ator em direccedilatildeo ao boneco e em seguida a partir do
boneco na direccedilatildeo de seu foco Se por acaso a atenccedilatildeo do ator desviar-se diretamente para o
foco final do boneco e ali pousar cria-se por forccedila desse direcionamento uma divisatildeo de
atenccedilatildeo que produz um efeito que tende a fazer com que boneco e ator dividam a centralidade
da atenccedilatildeo por efeito do foco comum e em casos extremos excluir o boneco do quadro de
atenccedilatildeo Ainda se a atenccedilatildeo do ator diverge em uma direccedilatildeo diversa do foco do boneco no
mais das vezes produzir-se-aacute uma ecircnfase em contraponto uma tensatildeo divergente que tende a
159
aplicar uma forccedila de atraccedilatildeo por instantes mais poderosa do que a do foco dirigido pelo
boneco Deve-se atentar no entanto que tais efeitos satildeo obtidos mais por forccedila da dinacircmica
de divergecircncia e convergecircncia da atenccedilatildeo do que propriamente como comprovaccedilatildeo da
atratividade superior do ator vivo em relaccedilatildeo ao boneco originalmente inerte Esse jogo de
divergecircncias e convergecircncias da atenccedilatildeo aponta para as diversas possibilidades de uso da
focalizaccedilatildeo com operador agrave vista partindo e multiplicando pontos de vista Natildeo eacute a intenccedilatildeo
deste estudo condenar os procedimentos de divergecircncia mas mais que isso perceber o quanto
de possibilidades de significaccedilatildeo estes permitem
Em termos objetivos a noccedilatildeo de foco como recurso de operaccedilatildeo por meio do qual se
emula no boneco um centro sensorial Os diversos empregos e noccedilotildees do foco para o teatro de
animaccedilatildeo aqui apresentados lidam com diferentes origens do direcionamento focal (o foco do
boneco o foco do ator o foco do espectador o foco da cena) e pontos de chegada no
miacutenimo avizinhados se natildeo idecircnticos Curioso notar que o destino final do foco no teatro de
animaccedilatildeo natildeo seja exatamente a forma animada mas os componentes discursivos da cena que
ela instaura no modo como se dispotildeem diante do espectador Essa disposiccedilatildeo natildeo significa
em momento algum a obrigatoriedade da instauraccedilatildeo de um discurso linear mas permite
simultaneidade e divergecircncia uma vez que a cena de animaccedilatildeo eacute suportada na percepccedilatildeo do
espectador pelo escoramento muacutetuo da autonomia da forma e da integridade da cena
Ainda podemos perceber que a aceitaccedilatildeo do princiacutepio do foco parece desalojar do
nosso campo de consideraccedilotildees a neutralidade como norteador para reflexatildeo e treinamento
Poderiacuteamos insistir na jaacute mencionada incapacidade de desaparecimento do ator na cena de
animaccedilatildeo mas parece-nos mais conveniente a consideraccedilatildeo de que a seleccedilatildeo perceptiva
operada por meio de recursos de focalizaccedilatildeo natildeo apenas reconhece os elementos perifeacutericos
ao centro focal mas contribui para a sua manutenccedilatildeo Ou seja a focalizaccedilatildeo natildeo ocorre por
meio da supressatildeo de elementos da cena mas pelo encaminhamento de signos que faz o
espectador reconhecer o status ocupado por cada um deles dentro da cena e o direcionamento
da atenccedilatildeo que aponta para seus nuacutecleos focais Isto equivale dizer que o natildeo ignoramos o que
eacute perifeacuterico mas usamos a percepccedilatildeo desses elementos como guia para o direcionamento da
atenccedilatildeo Eugecircnio Barba menciona algumas figuras do teatro oriental nas quais os atores se
encarregam de interpretar a ausecircncia Descreve os casos em que se emprega uma refinada
teacutecnica corporal para transmitir a impressatildeo de exterioridade agrave cena e desaparecimento da
personagem
[] o waki o ator secundaacuterio no Nocirc que frequumlemente expressa seu proacuteprio
natildeo-ser Ele coloca em accedilatildeo uma complexa teacutecnica corporal extracotidiana
160
para expressar-se a si mesmo mas chama atenccedilatildeo para a sua habilidade em
satildeo se expressar [] O kokken homem vestido de preto que auxilia o ator
principal no Nocirc e Kabuki eacute tambeacutem chamado a ldquorepresentar sua ausecircnciardquo
Sua presenccedila que expressa ou representa nada [] (BARBA amp
SAVARESE 1995 p10)
A descriccedilatildeo de Barba daacute a entender com razoaacutevel clareza que natildeo se trata nesses casos de
empregar uma teacutecnica para natildeo fazer-se notar mas sim dar-se a ver como algo exterior agrave accedilatildeo
dramaacutetica O esforccedilo dos artistas aqui natildeo repousa sobre o proacuteprio desaparecimento mas
sobre o direcionamento de atenccedilatildeo desejado seguindo coacutedigos estritos de comportamento
cecircnicos compreendidos por artistas e puacuteblico
Eacute por isso que se propotildee o entendimento de que seria mais preciso do ponto de vista
conceitual e mais funcional do ponto de vista da praacutetica que a noccedilatildeo de neutralizaccedilatildeo fosse
substituiacuteda pela de focalizaccedilatildeo Deixariacuteamos assim de incorrer em equiacutevocos de reflexatildeo e
treinamento e voltariacuteamos nossos olhos para possibilidades teacutecnico-conceituais que
considerassem a cena de animaccedilatildeo a partir da sua variedade de recursos figurativos e
possibilidades discursivas O foco tambeacutem resta como conceito rico que permite entender e
visualizar a integraccedilatildeo entre boneco e accedilatildeo teatral definindo-se como a produccedilatildeo de uma
sensibilidade dentro da cena de animaccedilatildeo que sustentaraacute ao mesmo tempo a imaginaccedilatildeo de
autonomia da forma animada e a integridade da cena teatral
Pelo cumprimento das funccedilotildees aqui mencionadas podemos eleger o foco como sendo
o principal fundamento teacutecnico-reflexivo a nortear o entendimento e o preparo do ator de
apresentaccedilatildeo em formas animadas A atenccedilatildeo ao foco eacute o que permite realizar a apresentaccedilatildeo
da forma animada e a construccedilatildeo da cena que esta instaura mesmo em meio a uma cena de
animaccedilatildeo que opta por dispensar a linearidade do discurso e de uma forma animada que tem
seus contornos tornados indecisos por efeito das relaccedilotildees ambiacuteguas e provisoacuterias que
estabelece com materiais e corpos de atores O alcance e a presenccedila desse preceito sobre a
cena animada tambeacutem pode nos ajudar a pensar acerca de uma das principais caracteriacutesticas
do recurso do animador aparente que apesar de ser facilmente percebida durante a
experiecircncia praacutetica tem a sua definiccedilatildeo dificultada por palavras e argumentos que insistem
em esconder-se Quando Jurkowski comenta uma montagem de Don Quijote dirigida por
Josef Kofta em 1977 refere-se ao emprego do animador aparente como operando sobre a cena
ldquodiferentes meios de expressatildeordquo (JURKOWSKI 1990 p64) que dispunham
simultaneamente variados meios de figuraccedilatildeo de personagens e situaccedilotildees (personagens
representados por bonecos e atores ao mesmo tempo objetos simbolizando personagens
diferentes tipos de bonecos representando o mesmo personagem recursos sonoros indicando a
161
presenccedila e a accedilatildeo de um determinado personagem) A cena se tornava assim segundo
Jurkowski num conjunto de ldquoaacutetomos cecircnicosrdquo dispostos ao mesmo tempo O ator aparente
natildeo era apenas o elemento capaz de estabelecer e evidenciar tais diferenccedilas Sua visibilidade
bem como sua possibilidade de interferecircncia ativa era o elemento capaz de operar dar
sentido e por conseguinte constituir uma cena com essa combinaccedilatildeo de diferentes traccedilos
O tracircnsito do ator em meio agraves formas de materiais traccedilos e escalas variadas eacute o
elemento capaz de impor agrave cena um ordenamento discursivo que natildeo se daacute apenas por
recursos de direcionamento do olhar mas de interaccedilatildeo operaccedilatildeo e narraccedilatildeo Sua influecircncia
natildeo ordena o discurso da cena num sentido da implementaccedilatildeo de uma sequecircncia loacutegica nem
do estabelecimento de conexotildees racionais entre eventos e figuras mas de uma aproximaccedilatildeo
criada por meio da relaccedilatildeo que dinamiza a percepccedilatildeo e a interconexatildeo dos elementos da cena
heterogecircnea O ator dessa forma opera como um catalisador de elementos que satildeo dessa
maneira oferecidos agrave percepccedilatildeo em uma potecircncia de significaccedilatildeo ampliada
Por isso a opccedilatildeo pelo ator operador de formas posto agrave vista tambeacutem abre a
possibilidade para uma cena na qual a heterogeneidade formal e narrativa caracteriacutesticas do
teatro de animaccedilatildeo se apresente em evidecircncia radical O artista de animaccedilatildeo aparente natildeo
opera apenas o boneco opera a organizaccedilatildeo espacial temporal e formal do espetaacuteculo num
tipo de desdobramento que lhe confere certo status de narrador ou construtor da realidade
apresentada Nas palavras de Didier Plassard
Alternadamente narrador e personagem sobrepondo-se agrave accedilatildeo e deslizando nela o
ator torna-se o lugar de uma dissociaccedilatildeo entre os diferentes planos da
representaccedilatildeo ao mesmo tempo em que sua forma pode fazer desaparecer os
inteacuterpretes de seu drama (PLASSARD 1995 p19)
Estamos diante da tarefa de nos debruccedilarmos sobre aspectos relacionais de dois
elementos que possuem uma carga teatral poderosa ator e marionete A combinaccedilatildeo entre
esses elementos nunca produz sobre a cena acomodaccedilotildees ou unidades pelo contraacuterio Eacute da
constante fricccedilatildeo entre seus potenciais expressivos que surge uma das dimensotildees mais
encantadoras e diversas da arte teatral dimensatildeo esta que adere de maneira inapelaacutevel sobre
teorias e praacuteticas para o ator e para a cena de nosso tempo
162
32 Quem manda em quem Soberanias da cena de animaccedilatildeo
Vocecirc natildeo o movimenta vocecirc o deixa mover-se essa eacute a
arte
E G Craig
Jaacute foi comentado neste trabalho o fato de que em termos gerais natildeo se pode
estabelecer uma hierarquia estaacutevel para determinar a relevacircncia que ator e boneco exercem
sobre a cena um em relaccedilatildeo ao outro sobretudo nas ocasiotildees em que o ator operador da
forma se apresenta agraves vistas do puacuteblico A dificuldade de se precisar qual desses dois ocuparia
a centralidade do ato artiacutestico no que diz respeito a seus processos criativos e a seus modos
de recepccedilatildeo podem ser explicados pela combinaccedilatildeo de alguns argumentos Em primeiro lugar
podemos (sempre para quase todas as questotildees de entendimento acerca da arte em questatildeo)
evocar a grande diversidade de processos efeitos e manifestaccedilotildees relacionadas ao teatro de
animaccedilatildeo Podemos perceber que a maneira como se trabalha e se percebe a integraccedilatildeo entre
animador e boneco varia bastante entre formatos tais como o teatro de sombras indiano que
dispotildee seus espectadores dos dois lados da tela de projeccedilatildeo pondo seus operadores agrave mostra a
manipulaccedilatildeo de ateacute trecircs operadores por boneco do bunraku que isola e revela o narrador
vocalizador e que ainda que apresente a maioria dos seus operadores trajados em coberturas
negras exibe o operador mais experiente em branco e com a cabeccedila descoberta o uso da
empanada para bonecos de luva como nas apresentaccedilotildees do Punch and Judy onde se joga
constantemente por meio de chistes e jogos verbais com a existecircncia do manipulador e que
usualmente apresenta outro artista diante da empanada para provocar dinacircmicas de integraccedilatildeo
com o puacuteblico (essas caracteriacutesticas satildeo encontradas tambeacutem com muita forccedila no
mamulengo) ou as apresentaccedilotildees de narrativas ilustradas como se verifica em apresentaccedilotildees
nas quais satildeo contadas histoacuterias pontuadas pelo emprego de objetos e o jaacute mencionado
formato de retaacutebulo descrito por Cervantes na famosa passagem de Don Quixote
Em todos os exemplos mencionados se verifica que a apresentaccedilatildeo do boneco se daacute
em relaccedilatildeo ao ator que o opera de uma maneira que suplanta a funccedilatildeo da movimentaccedilatildeo O
suposto problema apresentado a partir do fato de que o operador natildeo pode distanciar-se do
boneco para operaacute-lo faz do ator uma espeacutecie de apecircndice obrigatoacuterio continuaccedilatildeo ou
duplicaccedilatildeo corporal Mas essa percepccedilatildeo conjunta se daacute bem menos pela proximidade fiacutesica
do que pelo fato de que a apresentaccedilatildeo do boneco teatral pressupotildee tambeacutem uma atuaccedilatildeo
desdobrada na qual recursos expressivos satildeo trocados entre operador e forma animada
163
produzindo aproximaccedilotildees (no engajamento na accedilatildeo da cena na funccedilatildeo de transmissatildeo de um
sujeito teatral) e diferenccedilas (de forma de corpo de origem da voz)
Alcanccedilamos assim outro argumento interessante e que pode ser verificado Ator e
marionete se constituem numa unidade que se constroacutei e desconstroacutei constantemente diante da
plateacuteia num arranjo fundamentalmente tenso Haacute de fato como jaacute mencionamos uma
dinacircmica de percepccedilatildeo muacuteltipla e simultacircnea na apresentaccedilatildeo do boneco que Jurkowski
chama de efeito de opalizaccedilatildeo mas tambeacutem eacute verdade que em cena operador e boneco
podem alternadamente e de acordo com particularidades da apresentaccedilatildeo chamar para si a
centralidade da accedilatildeo mais significativa da cena
As trocas e diaacutelogos entre operadores e bonecos observados em alguns momentos da
Cia Truks (o espetaacuteculo Vovocirc por exemplo) integra na accedilatildeo direta da cena os atores
operadores para em seguida fazecirc-los retornar ao segundo plano de atenccedilatildeo (tendo o boneco
ocupando o centro da zona focal) Satildeo dinacircmicas de perguntas reaccedilotildees e piadas nas quais por
um instante os manipuladores interagem em contra-cena com o boneco provocando breves
alteraccedilotildees no status cecircnico do operador Jaacute em Peer Gynt da cia PeQuod em momentos
como o que o ator descreve as condiccedilotildees de seu banimento segurando sem cuidados
manipulativos o boneco da personagem central apenas para indicar representa aquela
personagem lida-se com um status cecircnico para o ator que alcanccedila o limite do alijamento do
boneco da condiccedilatildeo de forma animada para mostraacute-lo apenas como iacutendice da personagem
teatral Em dado momento boneco eacute acomodado no joelho do ator que se abaixa para
prosseguir com a cena operando-o agrave vista A dinacircmica de status de cena aqui opera outras
variaccedilotildees sobre a percepccedilatildeo de ator e boneco que se desdobram em torno de uma mesma
personagem produzindo variaccedilotildees de possibilidades diferentes das do primeiro exemplo
Ana Maria Amaral apresenta sua versatildeo acerca da questatildeo de poderes entre
manipulador e boneco em um contexto mais tradicional de apresentaccedilatildeo e usa para tal o
verbo servir73
No teatro o ator cria o personagem cria a imagem do seu personagem No teatro
de bonecos a imagem do personagem jaacute vem pronta e o ator-manipulador apenas
serve o bonecordquo (AMARAL 1993 p73)
Para Amaral a questatildeo natildeo reserva surpresas e ainda que possa estar se referindo a um
modo mais tradicional de apresentaccedilatildeo com o boneco (o que talvez natildeo seja o caso) evoca
73
ldquoNo teatro o ator cria o personagem cria a imagem do seu personagem No teatro de bonecos a imagem do
personagem jaacute vem pronta e o ator-manipulador apenas serve o bonecordquo (AMARAL 1993 p73) A escolha de
palavras nessa passagem eacute fundamental para o entendimento que nesta obra a autora entende como resolvida a
questatildeo de dominaccedilotildees em se tratando do teatro de bonecos tradicional
164
Figura 87a 87b 87c 87d O boneco como indicativo da personagem PeQuod Peer Gynt
Fotos Simone Rodrigues
165
uma distribuiccedilatildeo de tarefas simples e direta harmoniosa A personagem assim pode ser
reduzida agrave sua imagem restando ao manipulador no que toca agrave construccedilatildeo da personagem
serviacute-la
Ana Maria Amaral evoca no texto duas possiacuteveis significaccedilotildees para a noccedilatildeo de servir
e assim permite que natildeo se perca de vista certa relaccedilatildeo de servidatildeo do ator para com o boneco
teatral No entanto amplia a leitura do termo com a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo empregando o
verbo em alusatildeo ao serviccedilo do garccedilon que atende ao cliente mas que tambeacutem apresenta e
dispotildee diante dele o prato solicitado Para Amaral o ator natildeo serve ao boneco ele serve o
boneco no sentido de apresentar oferecer agrave percepccedilatildeo Agrave primeira vista pode parecer que esta
leitura se posiciona de maneira bastante clara acerca de conferir a centralidade da cena ao
boneco que seria tambeacutem o sustentaacuteculo da ilusatildeo cecircnica e o portador das informaccedilotildees
referentes agrave personagem dramaacutetica No entanto parece que a escolha de palavras feita por
Amaral remete a uma dinacircmica de insurgecircncia como um motim de serviccedilais Aquele que
serve o manipulador tambeacutem entrega aos sentidos ndash em sacrifiacutecio em refeiccedilatildeo ndash do puacuteblico
o boneco que apenas consegue afirmar seu poder de dominar as atenccedilotildees mediante a entrega
de seu controle a outro Dessa maneira evolui o jogo de poder sobre a cena de animaccedilatildeo
concessatildeo como estrateacutegia de dominaccedilatildeo e traiccedilatildeo ao outro como meio para entronizaacute-lo
Tillis recolhe e comenta de Jurkowski uma aproximaccedilatildeo mais criacutetica da questatildeo da
servidatildeo entre ator e boneco Usando como exemplos as apresentaccedilotildees em formato de
retaacutebulo (como no teatro de Mestre Pedro descrito por Cervantes em Don Quixote) e dos
intermediaacuterios entre boneco e plateia (como ocorre no Petrushka no Punch and Judy e no
mamulengo) (TILLIS 1992 pp 69-70) Para Jurkowski em apresentaccedilotildees nas quais a forma
animada se apresenta como suporte ou ilustraccedilatildeo para uma narraccedilatildeo verifica-se uma situaccedilatildeo
de servidatildeo do boneco em relaccedilatildeo ao ator narrador mas quando o ator eacute um intermediaacuterio
entre o boneco protagonista e o puacuteblico esse status de serviccedilo estaria invertido
Pode-se argumentar que os casos usados como exemplo natildeo se constituem em relaccedilotildees
claras entre boneco e ator operador uma vez que natildeo se verifica uma relaccedilatildeo manipulativa
clara entre artista e forma Mas se retornarmos ao capiacutetulo anterior no qual foi observado que
a atuaccedilatildeo do trabalho do animador consiste em inserir o objeto dento do contexto de
representaccedilatildeo teatral podemos sim localizar qualidades de interaccedilatildeo passiacuteveis de se
estabelecer para este estudo ao menos uma relaccedilatildeo entre forma e operador
Ainda assim cabe a observaccedilatildeo da questatildeo da servidatildeo em situaccedilotildees de relaccedilatildeo
manipulativa mais evidente Busquemos novamente a passagem de Peer Gynt da PeQuod
descrito anteriormente Ao iniacutecio da cena da descriccedilatildeo do banimento pode-se afirmar que a
166
funccedilatildeo de iacutendice da personagem cumprido pelo boneco caracteriza um estatuto de serviccedilo nos
termos apresentados por Jurkowski do boneco para o ator Mas no momento seguinte quando
o boneco eacute acomodado no joelho do ator que passa a operaacute-lo de modo a oferece-lo ao centro
focal da cena o estatuto se inverte
Se entendemos o fenocircmeno da apresentaccedilatildeo do boneco teatral numa dinacircmica de
percepccedilatildeo simultacircnea a dinacircmica de dominacircncias da centralidade focal eacute alternada De fato eacute
fundamental o estabelecimento da primeira circunstacircncia para que a dinacircmica de dominacircncias
adquira o seu ritmo e a sua significacircncia
Observa-se sobretudo em manifestaccedilotildees mais recentes de teatro de animaccedilatildeo uma
intermitecircncia na maneira como se percebe o boneco uma vez que haacute tambeacutem uma dinacircmica
de arranjos provisoacuterios no ato de formaacute-lo e apresenta-lo Como jaacute foi mencionado a proacutepria
sugestatildeo de vida imaginada de sua apresentaccedilatildeo a sua presenccedila qualificada se apoacuteia sobre
uma significaccedilatildeo dupla opalizada Ocorre que em manifestaccedilotildees mais recentes os temas e as
configuraccedilotildees sensiacuteveis do boneco teatral adicionaram a essa percepccedilatildeo jaacute ambiacutegua de sua
apresentaccedilatildeo uma dinacircmica de usurpaccedilotildees e dominacircncias tanto da atenccedilatildeo do espectador
quanto da capacidade propositiva que guia a criaccedilatildeo em cena Este momento do trabalho se
dedica a analisar de dentro a relaccedilatildeo entre manipulador e forma animada em meio agraves
transformaccedilotildees de estrutura fiacutesica do boneco e das escolhas temaacuteticas nas manifestaccedilotildees
contemporacircneas de teatro de animaccedilatildeo tendo como provocador da discussatildeo a sugestatildeo de
que o equiliacutebrio tenso existente entre animador e boneco eacute o resultado de uma dinacircmica de
poderes que atuam nas duas maneiras de abordar a relaccedilatildeo que se daacute sobre a cena entre ator e
objeto o aspecto da constituiccedilatildeo da apresentaccedilatildeo e o da percepccedilatildeo da mesma
Sobre o primeiro desses aspectos o que se trata eacute justamente a tentativa do
entendimento dos poderes que atuam nos modos como o ato da animaccedilatildeo se daacute ou seja quais
poderes se potildeem em causa durante o ato manipulativo que centraliza uma apresentaccedilatildeo com
bonecos Ou seja qual eacute o conjunto de forccedilas que define e localiza o exerciacutecio do controle no
ato de animar
Parece quase evidente a afirmaccedilatildeo de que o operador exerce um tipo de poder
inapelaacutevel sobre o boneco teatral uma vez que seraacute a partir da accedilatildeo do manipulador sobre o
boneco que este poderaacute exercer sua prerrogativa de participaccedilatildeo qualificada sobre a cena
Assim seria muito simples entender que o controle exercido pelo operador sobre a forma eacute
uma espeacutecie de ato subordinativo no qual se vecirc claramente a aplicaccedilatildeo de uma vontade sobre
um objeto exercido em sentido uacutenico e de modo indefensaacutevel No entanto a natureza da
forma animada e em um sentido mais amplo da cena teatral com seus aspectos constitutivos
167
particulares e suas condiccedilotildees de estabelecimento complexificam essa atribuiccedilatildeo de controle e
subverte fluxos de dominacircncias aparentemente estaacuteveis
Busquemos entatildeo uma ferramenta que pareccedila uacutetil para o entendimento do controle
como sendo um fluxo de poderes que mostre tambeacutem algumas concepccedilotildees que possam ser
verificadas em meio ao jogo da animaccedilatildeo ainda que isto natildeo sirva para fazer mais que um
exerciacutecio reflexivo ou buscar metaacuteforas ricas para tratar de teatro de bonecos agrave luz de outros
saberes A ferramenta escolhida eacute uma seacuterie de concepccedilotildees acerca do poder e do ordenamento
juriacutedico ocidental apresentado por Michel Foucault (1998-II) e tambeacutem desdobramentos
feitos por Giorgio Agamben de algumas questotildees apresentadas pelo mesmo Foucault acerca
de soberania e de mecanismos de poder (2002 2005) Desse esforccedilo decorre uma tentativa de
localizar caracteriacutesticas de dominacircncia que possam dar a ver a estrutura relacional que
sustenta o ente performativo combinado ator-boneco mas tambeacutem vislumbrar os possiacuteveis
reflexos que o controle no jogo da animaccedilatildeo (seus entendimentos e mecanismos) visto como
uma economia de poderes produz na condiccedilatildeo e no comportamento humano
Primeiramente nos debruccedilamos sobre o tipo de relaccedilatildeo apontado por Foucault
exercido entre o poder monaacuterquico e o ordenamento juriacutedico de onde emanava a autoridade
do rei e ao qual ele se submetia Foucault aponta que ldquoeacute a pedido do poder real em seu
proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificaccedilatildeo que o edifiacutecio juriacutedico de nossas
sociedades foi elaboradordquo (2008-II p 180) Dessa forma esse ordenamento montado em
torno da autoridade do rei tambeacutem funciona como instacircncia limitadora na medida exata em
que determina as condiccedilotildees do exerciacutecio de sua autoridade O limite era assim um
componente fundamental para estabelecer o estatuto por meio do qual o poder do rei era
reconhecido Agrave condiccedilatildeo de exerciacutecio do poder real dos sistemas sobre o qual seu poder se
permitia reconhecer Foucault daacute o nome de soberania
Se entendermos por soberania um sistema de legitimaccedilatildeo de poder que natildeo emana de
uma fonte uacutenica e estaacutevel mas que necessita de um sistema de outorga que confere aos
proacuteprios suacuteditos uma parcela desse poder sob a forma do reconhecimento da autoridade entatildeo
talvez seja possiacutevel imaginar que para o nosso caso a proacutepria concepccedilatildeo de controle natildeo se
possa desenhar de outra forma senatildeo como um feixe de linhas bidirecionais das quais emana
para os dois lados forccedilas de controle e forccedilas de permissatildeo
O poder do operador de bonecos eacute subordinado a um sistema de forccedilas de controle que
satildeo exercidos em sentido contraacuterio pois se vecirc limitado simultaneamente e como dupla
manifestaccedilatildeo de um mesmo fenocircmeno pelas condiccedilotildees de apresentaccedilatildeo da forma animada e
168
pelo esforccedilo de instauraccedilatildeo da cena teatral o que muitas vezes pode se dar apenas pelo modo
de apresentaccedilatildeo da forma animada
O conhecimento e o respeito agrave estrutura do boneco e da cena na qual este se insere eacute
fundamental para que se estabeleccedila o ato de animaccedilatildeo Natildeo basta ao operador movimentar um
boneco ou forma para que este adquira significaccedilatildeo teatral Faz-se necessaacuterio que essa
operaccedilatildeo se decirc em relaccedilatildeo aos atributos do boneco e da cena Em muitos casos o
estabelecimento dessa relaccedilatildeo natildeo se daacute sem a apropriaccedilatildeo de competecircncias teacutecnico-
perceptivas que parte obrigatoriamente do entendimento e do respeito agraves naturezas
especiacuteficas tanto da forma quanto da cena
Por exemplo bonecos de fios em geral possuem uma qualidade de movimentaccedilatildeo que
exige do seu operador mais respeito agrave sua estrutura do que a imposiccedilatildeo de um desejo de
movimentaacute-lo Dependendo da extensatildeo do fio do peso do boneco e da natureza do
movimento (em geral giros e torccedilotildees) seraacute necessaacuterio ao operador provocar o movimento
pouco antes do momento em que este deveraacute ser percebido pela plateia Isto ocorre por forccedila
do tempo necessaacuterio para que o estiacutemulo atravesse o fio e impulsione a parte do corpo do
boneco a ser movimentada Bonecos de fio tambeacutem podem apresentar dificuldades no que
toca ao teacutermino de certo gestual Pode-se determinar com a forccedila exercida sobre o fio o
momento em que certos movimentos (em geral de trajetoacuteria pendular) satildeo iniciados mas
dependeraacute da accedilatildeo da gravidade do peso e das relaccedilotildees de atrito exercidas no proacuteprio boneco
o momento em que o movimento cessaraacute Assim a accedilatildeo do operador transita entre o exerciacutecio
de uma vontade a obediecircncia agrave natureza proacutepria do boneco e nunca nos esqueccedilamos das
demandas especiacuteficas da cena na qual se insere a apresentaccedilatildeo do boneco
Pode-se comeccedilar a imaginar que a atribuiccedilatildeo de poderes para a cena de animaccedilatildeo se daacute
em alternacircncias entre a capacidade de movimentaccedilatildeo do operador e os impositivos de forma e
movimento contidos no boneco A cena teatral como lugar de instauraccedilatildeo dessa dinacircmica de
dominacircncias e como resultado obrigatoacuterio dela passa a ser o objetivo e a condiccedilatildeo de
atribuiccedilatildeo dos poderes que emanam do operador e do boneco posto que fora dela (da cena)
ambos perdem forccedilosamente as caracteriacutesticas que os definem
Giorgio Agamben apresenta a questatildeo da soberania como algo que se assenta sobre
um paradoxo posto no entendimento da exceccedilatildeo como um componente inapelaacutevel da norma
juriacutedica Pois uma vez que para Agamben ldquoo soberano estaacute ao mesmo tempo dentro e fora
do ordenamento juriacutedicordquo (p 23) passa a ser da natureza da soberania destacar-se do
ordenamento que a compreende para criar um espaccedilo de definiccedilatildeo das exceccedilotildees bem como
169
para abrigar por meio de uma ldquoexclusatildeo inclusivardquo aquilo que estaacute fora (ou que eacute banido) da
norma
Para nosso estudo o paradoxo da soberania encontra logo de saiacuteda diaacutelogos possiacuteveis
com o jaacute mencionado efeito de opalizaccedilatildeo mas mais talvez por sua composiccedilatildeo paradoxal do
que por dar a ver aspectos internos do controle no ato da animaccedilatildeo Ainda assim talvez seja
possiacutevel reconhecer uma dinacircmica de inclusotildees e exclusotildees no endereccedilamento de
expressividade feito na direccedilatildeo do boneco por parte do ator operador Nesse sentido o controle
pode ser entendido a partir do ato de transferecircncia de expressividade naquilo em que retira
relevacircncia cecircnica do ator operador para dar ao espectador algo que o exclui mas que
apresenta evidentes elementos de atuaccedilatildeo que se datildeo por meio da accedilatildeo do animador
Compreender que manipular eacute representar juntamente com a forma faz da diferenccedila fiacutesico-
formal notaacutevel entre ator e objeto algo que natildeo se daacute a ver senatildeo em simultaneidade com a
percepccedilatildeo de um organismo performativo que os compreende obrigatoriamente
O ator operador de formas animadas assim se encontra nesse entre-espaccedilos de
produzir uma apresentaccedilatildeo que lhe eacute fisicamente exterior mas por meio de uma dinacircmica
operativa que o compreende natildeo apenas do ponto de vista de sua funccedilatildeo de operador mas por
meio da expressividade e da subjetividade que constroem e datildeo a ver a atuaccedilatildeo Por sua vez a
forma animada exerce na proacutepria dualidade de objeto inerte e vida imaginada a sua potecircncia
expressiva Nenhum dos dois sintetiza a estrutura de apresentaccedilatildeo tampouco se encontra em
condiccedilotildees de se por totalmente alheio a esta sob a pena de suspensatildeo do proacuteprio estatuto da
teatralidade sob o qual se fundam os termos da sua atuaccedilatildeo em relaccedilatildeo
Assim se nossa ferramenta analiacutetica foi escolhida e empregada com razoaacutevel eficaacutecia
podemos passar a entender o controle o jogo de forccedilas que tem lugar na produccedilatildeo da
apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo como um fluxo de dominacircncias em duas direccedilotildees sendo que a
subordinaccedilatildeo a um fluxo legitima a dominacircncia em sentido oposto e vice e versa Vimos
tambeacutem que os dois elementos do organismo performativo combinado ator e forma
encontram-se simultaneamente dentro e fora deste produzindo uma estrutura expressivamente
potente por sua fragilidade
Uma apresentaccedilatildeo com bonecos dispotildee diante do espectador um tecido dinacircmico e um
tanto complexo de dominacircncias nas quais tanto ator quanto objeto satildeo ao mesmo tempo e a
seu proacuteprio modo soberanos e subordinados O ator operador personifica o domiacutenio da
vontade sobre a mateacuteria do animado sobre o inanimado determinando com suas matildeos os
movimentos do boneco Ao boneco compete ao menos em primeira apreciaccedilatildeo um domiacutenio
170
inapelaacutevel do espaccedilo instaurado a partir da cena teatral no qual estaacute inserido e do qual eacute
criador e mantenedor por efeito de sua apresentaccedilatildeo
A percepccedilatildeo dessas dominacircncias exercidas por meio de trocas alternacircncias e
subversotildees na cena de animaccedilatildeo chama atenccedilatildeo para uma das precauccedilotildees metodoloacutegicas
acerca da consideraccedilatildeo do poder apontadas por Foucault a terceira delas
O poder deve ser analisado como algo que circula ou melhor como algo que
soacute funciona em cadeia Nunca estaacute localizado aqui ou ali nunca estaacute nas
matildeos de alguns nunca eacute apropriado como uma riqueza ou um bem O poder
funciona e se exerce em rede Nas suas malhas os indiviacuteduos natildeo soacute
circulam mas estatildeo sempre em posiccedilatildeo de exercer este poder e de sofrer sua
accedilatildeo nunca satildeo o alvo inerte ou consentido do poder satildeo sempre centros de
transmissatildeo Em outros termos o poder natildeo se aplica aos indiviacuteduos passa
por eles (2002 p 183)
Acreditar que a dinacircmica de dominaccedilotildees na relaccedilatildeo da construccedilatildeo da apresentaccedilatildeo da forma
animada se processa tal como Foucault projeta para outras circunstacircncias em rede pode ser
capaz de desarmar concepccedilotildees estaacuteticas acerca dos modos pelos quais os poderes satildeo trocados
na cena de animaccedilatildeo Isto equivale a compreender com mais clareza o quanto o boneco pode
ser coautor da sua apresentaccedilatildeo e tambeacutem como as trocas de dominacircncias entre ator e forma
natildeo devem ser vistas apenas pelo vieacutes do embate e da usurpaccedilatildeo mas como exerciacutecios
variados de um mesmo poder Ainda o entendimento de um poder que atravessa os
indiviacuteduos ou os elementos constitutivos da apresentaccedilatildeo ao inveacutes de deles emanar em
sentidos limitados pode apontar para uma variaccedilatildeo da capacidade de produzir significados na
apresentaccedilatildeo da forma animada que se diferencia substancialmente da metaacutefora recorrente do
controle determinista exercido pelo puxador de fios sobre o indiviacuteduo aprisionado por
circunstacircncias superiores a ele74
Com um objetivo comum a constituiccedilatildeo da cena teatral boneco e manipulador se
encontram ligados numa noccedilatildeo de controle que compreende poderes comuns e que natildeo
precisa um foco claro de emanaccedilatildeo Entretanto natildeo se pode dizer que a teia que os conecta
assume a forma de uma colaboraccedilatildeo
Como jaacute foi mencionado haacute um movimento revoltoso no interior da estrutura
combinada entre ator e boneco no ato da apresentaccedilatildeo que produz uma dinacircmica perceptiva
peculiar Nunca pacificada a dinacircmica expressiva da cena de animaccedilatildeo apresenta um
paradoxo no efeito de opalizaccedilatildeo e produz em diversas das experiecircncias mais recentes uma
alternacircncia proposital de relevacircncia cecircnica indo do ator ao boneco e a ele retornando Isto se
caracteriza sob a forma de uma alternacircncia de usurpaccedilotildees e de acordos instaacuteveis Essa
74
Essa questatildeo seraacute vista mais de perto no subcapiacutetulo que trata das potecircncias metafoacutericas do boneco
171
dinacircmica se potildee a favor de uma cena que favorece o jogo de esconder empreendido por
boneco e manipulador ao mesmo tempo em que eacute por esse jogo alimentada
Exemplos do que se afirma satildeo os muitos espetaacuteculos teatrais que fazem conviver
performances de atores e bonecos os quais demandam do ator um rendimento que o faccedila
valer-se natildeo apenas de sua capacidade de tornar o boneco cenicamente expressivo mas que
use a sua proacutepria expressatildeo (e as suas proacuteprias expressotildees) em favor da cena Em diversos
desses casos quando eacute dado ao espectador presenciar a accedilatildeo dos bonecos simultaneamente agrave
accedilatildeo dos atores que os movimentam os espetaacuteculos satildeo formados por combinaccedilotildees de mais
de um niacutevel de ficccedilatildeo criando relaccedilotildees mais complexas de encadeamento dramatuacutergico
moldando e recombinando discursos simultacircneos para os quais a implosatildeo de uma instacircncia
ficcional natildeo resulta na suspensatildeo da apresentaccedilatildeo mas apenas num golpe teatral que ainda
que discuta o instituto da ilusatildeo teatral natildeo suspende o discurso espetacular Esses niacuteveis de
ficccedilatildeo ndash a accedilatildeo dos bonecos a accedilatildeo dos manipuladores ndash podem de fato apresentar-se em
planos distintos apesar de simultacircneos da mesma maneira como podem combinar-se em
interaccedilotildees que podem se processar de diversas maneiras
A Cia Truks de teatro de bonecos se vale em diversos de seus espetaacuteculos da
expressatildeo facial dos manipuladores para fazer comentaacuterios acerca da accedilatildeo dos bonecos
assentindo incentivando ou reprovando suas atitudes Essas expressotildees podem ser
endereccediladas apenas agrave plateacuteia ou ao boneco numa espeacutecie de diaacutelogo silencioso O jaacute
mencionado espetaacuteculo Cuentos Pequentildeos da companhia servo-peruana Hugo e Inecircs
apresenta bonecos montados com combinaccedilotildees de roupas e adereccedilos com partes do corpo do
ator em cena criando esquetes cocircmicos nos quais esses personagens contracenam com o
proacuteprio animador O efeito cocircmico eacute amplificado pela percepccedilatildeo do duplo envolvimento do
ator nos pequenos conflitos mostrados como eacute o caso da cena que mostra um muacutesico de rua
feito a partir do joelho dobrado do ator com um nariz de palhaccedilo preso a ele O personagem se
potildee a tocar um pequeno violatildeo e recebe alguns trocados em retribuiccedilatildeo mas eacute secretamente
roubado pelo proacuteprio animador A cena resulta em grande parte devido ao jogo de integraccedilatildeo
e dissociaccedilatildeo corporal entre manipulador e forma animada uma vez que o par de matildeos que
executa a peccedila ao violatildeo e gesticula de espanto ao perceber que foi roubado eacute o mesmo que
subtrai a feacuteria do chapeacuteu posto diante do personagem-artista de rua
Em Peer Gynt da companhia PeQuod haacute vaacuterios momentos em que atores suspendem
a accedilatildeo de manipular os bonecos para assumirem eles mesmos as vezes da personagem
representada pelo boneco Para casos como o descrito o manipulador enfraquece
deliberadamente a importacircncia do boneco como representante da personagem para tomar a
172
sua frente ainda que a totalidade do espetaacuteculo e certos laccedilos de semelhanccedila (de
caracterizaccedilatildeo de gestual de discurso) permitem agrave plateacuteia natildeo desfazer o elo que torna ator e
boneco partes indissociaacuteveis do conjunto performativo encarregado de mostrar a personagem
Neste ponto ocorre o entrelaccedilamento dos aspectos de percepccedilatildeo da accedilatildeo dos poderes
sobre a cena de animaccedilatildeo O primeiro jaacute abordado foi o aspecto constitutivo da apresentaccedilatildeo
em animaccedilatildeo Passamos agora a nos debruccedilar sobre o aspecto de percepccedilatildeo da cena ou seja
quais forccedilas satildeo postas em jogo de modo a dar maior ou menor centralidade da cena para o
boneco ou para o ator que o opera e que campos essa dinacircmica perceptiva se revela mais
significativa
Neste momento do estudo a noccedilatildeo de soberania sobre a cena de animaccedilatildeo passa a ser
considerada como a capacidade de angariar a atenccedilatildeo do espectador bem como de sustentar e
conduzir as caracteriacutesticas esteacuteticas e discursivas sobre as quais se assenta a cena teatral
Para este caso percebe-se de fato a apresentaccedilatildeo da forma animada sob a forma de
uma disputa constante que se estabelece entre duas forccedilas produtoras de sentido revelada e
dinamizada por efeitos de focalizaccedilatildeo Considerando essa alternacircncia focal por meio da
percepccedilatildeo de uma disputa posta em questatildeo ainda por que a potecircncia produtora de sentido da
percepccedilatildeo sobreposta de ator e forma animada se daacute sem acomodaccedilotildees ou harmonizaccedilotildees
passo a buscar entender essa alternacircncia de centralidade focal e desdobramento corporal da
forma animada entre ator e objeto por meio da tentativa de identificar o que seria um certo
exerciacutecio de poder ou soberania na cena de animaccedilatildeo
As dinacircmicas de apresentaccedilatildeo dessa soberania parecem poder ser percebidas atuando
sobre trecircs diferentes campos de problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre ator e forma ou em
obediecircncia ao rumo terminoloacutegico que essa discussatildeo vem assumindo trecircs diferentes campos
de batalha que poderiam tambeacutem ser tidos como lugares a partir dos quais se produzem
entendimentos e acordos procedimentais para a percepccedilatildeo da relevacircncia cecircnica do emprego da
animaccedilatildeo e da determinaccedilatildeo dos recursos teacutecnico-linguiacutesticos que estabelecem essa
percepccedilatildeo
O primeiro desses lugares eacute aquele onde se determina que estruturas estaacuteveis ou
combinadas representam sujeitos na cena teatral Quais formas e procedimentos constroem e
datildeo a ver algo como uma personagem dramaacutetica na combinaccedilatildeo entre ator e boneco e como
esses dois elementos organizam a dinacircmica de percepccedilatildeo dessas estruturas de discurso a partir
de uma corporalidade desdobrada O segundo campo eacute o lugar onde se trata da interferecircncia
maior ou menor que cada um desses corpos exerce alternadamente sobre a construccedilatildeo da
cena teatral Ou seja como animador e boneco conduzem o espectador no sentido de
173
estabelecer um acircmbito discursivo especiacutefico que contribua em maior ou menor grau para a
instauraccedilatildeo de certa teatralidade Sobre quais bases essa cena se estabelece e como o corpo de
sobreposiccedilotildees instaura uma narrativa teatral especiacutefica de modo a lidar com um tipo de
representaccedilatildeo que se apoacuteia num caraacuteter de heterogeneidade O terceiro campo eacute o que trata
das potecircncias semacircnticas do corpo desdobrado em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees e concepccedilotildees do
sujeito na contemporaneidade Quais metaacuteforas de poder e comportamento essa estrutura
indica e como a sua dinacircmica dialoga com percepccedilotildees atuais acerca de indiviacuteduo sociedade
poder e dominacircncias
Os trecircs campos de disputa de soberania satildeo interdependentes e simultacircneos A
apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo ativa essas trecircs modalidades de disputa que ocorrem
sempre uma a reboque da outra ainda que por vezes apenas uma ou duas delas possam ser
mais claramente percebidas
Se no primeiro capiacutetulo chegamos ao entendimento de que o principal agente da
apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo eacute de fato o boneco ou a forma animada cuja estrutura
percebida desdobrou-se para atrair elementos heterogecircneos ao ponto de incorporar o proacuteprio
ator operador (oculto ou posto agrave vista) nesse momento repomos em jogo essa consideraccedilatildeo
para olhar mais de perto os limites e integraccedilotildees percebidos entre ator e forma animada A
combinaccedilatildeo que se vecirc em cena entre ator e boneco ergue uma estrutura que por dinacircmica e
multiforme que eacute constitui-se no repositoacuterio de tensotildees e disputas que caracteriza o
espetaacuteculo de animaccedilatildeo Outros agentes seratildeo admitidos e teratildeo suas importacircncias
reconhecidas oportunamente mas por hora dediquemo-nos a explicar os campos ndash ou os
tabuleiros tablados ndash de disputa de poder e exerciacutecio de soberania na cena de animaccedilatildeo
174
321 Primeiro campo de batalha o sujeito da cena
De modo geral e um tanto simplificador eacute possiacutevel entender que a forma animada em
cena representa uma personagem dramaacutetica75
O aparato que oculta a visatildeo do manipulador ao
puacuteblico contribui com a funccedilatildeo de oferecer ao espectador o boneco como sendo o que haacute de
sensiacutevel na personagem ou seja a sua integridade A voz que sai de traacutes da empanada pode
ser facilmente atribuiacuteda ao personagem cuja aparecircncia eacute representada pelo boneco A
aceitaccedilatildeo de uma convenccedilatildeo teatral simples permite que se reconheccedila a voz do animador
como pertencente ao boneco que realiza a movimentaccedilatildeo caracteriacutestica agrave pontuaccedilatildeo do ritmo
e das ecircnfases da fala Ou seja numa peccedila de teatro de animaccedilatildeo natildeo resta duacutevida de que o
boneco eacute o que representa a personagem do drama cabendo ao manipulador permitir ao
boneco apresentar-se como tal sem interferecircncias que comprometam a ilusatildeo teatral A loacutegica
parece perfeita mas se pensarmos que basta ao manipulador uma pequena manifestaccedilatildeo de
auto desvelamento tanto intencional como resultado de imperiacutecia para que o entendimento ndash
e tambeacutem a estrutura ndash da personagem que se vecirc sobre a cena se desfaccedila ou ganhe em
complexidade ndash e talvez em interesse Jaacute falamos sobre a impossibilidade do desaparecimento
do ator operador ainda que oculto agora talvez seja vaacutelido tratar um pouco dos resultados
oferecidos por essa impossibilidade
A identificaccedilatildeo de uma personagem dramaacutetica (ainda estamos falando da personagem
dramaacutetica) com o ator que a interpreta eacute isto bem sabemos realizaacutevel em diversos niacuteveis de
aproximaccedilatildeo que pode ir desde a busca pela indiscernibilidade entre personagem e inteacuterprete
(de eficaacutecia discutiacutevel) ateacute o emprego intencional de mecanismos de dissociaccedilatildeo como a
criacutetica ou a narraccedilatildeo Em grande parte dessas praacuteticas interpretativas o que se observa eacute a
busca por um encaixe nunca perfeito de uma personagem sobre um inteacuterprete Eacute bem sabido
que diversas iniciativas artiacutesticas mais recentes tanto no campo da encenaccedilatildeo quanto da
dramaturgia tecircm levado a estaacutegios bem mais criacuteticos a relaccedilatildeo entre inteacuterprete e personagem
conduzindo por vezes agrave elipse ou esvaziamento de uma dessas duas estruturas Basta recordar
a duplicaccedilatildeo das personagens Ela entre Fernanda Torres e Fernanda Montenegro em The
75
Pode-se fazer acerca dessa afirmaccedilatildeo uma espeacutecie de objeccedilatildeo ciricular Ou seja a capacidade de conjuraccedilatildeo
de teatralidade da apresentaccedilatildeo do boneco (mateacuteria discutida neste trabalho em mais de um momento) contribuiu
para que as histoacuterias de suas manifestaccedilotildees se contassem sem reportar uma relaccedilatildeo de proximidade com a do
desenvolvimento de um acervo dramatuacutergico especiacutefico e sobretudo com matrizes textuais que mantivessem
caracteriacutesticas proacuteprias da forma dramaacutetica Por outro lado essa capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade
mencionada potildee em jogo elementos do drama como forma que parecem ser inescapaacuteveis (accedilatildeo em tempo
presente accedilatildeo que se revela em trocas interpessoais tensatildeo entre forccedilas) Daiacute decorre que a apresentaccedilatildeo do
boneco teatral natildeo precisa estar apoiada em um texto dramaacutetico apesar de ndash ou em parte por que ndash a sua
apresentaccedilatildeo por si conteacutem evidentes elementos de dramaticidade
175
Flash and Crash Days de Gerald Thomas ou mesmo aludir agrave escrita de Valeacutere Novarina que
em textos como O animal que habita o tempo ou Diante da Palavra escreve num fluxo
discursivo contiacutenuo lidando com a dinacircmica textual e o vocabulaacuterio de modo a afastar-se o
suficiente da escritura dramatuacutergica consagrada para que se perca de vista a presenccedila de falas
de sujeitos falantes e de accedilatildeo dramaacutetica
Com o teatro de animaccedilatildeo o que ocorre eacute que a as accedilotildees de desvelamento do
manipulador que podem muitas vezes ocorrer a partir da mera atestaccedilatildeo de que natildeo haacute de sua
parte a possibilidade de um alheamento absoluto da accedilatildeo do espetaacuteculo abrem espaccedilo para
que o meio de expressatildeo da personagem dramaacutetica seja uma estrutura criticamente
desdobrada que pode muitas vezes ao mesmo tempo produzir pulverizaccedilotildees da personagem
como quando separa voz e corpo ou accedilatildeo e forma como criar reverberaccedilotildees de figuras
duplicadas ou desdobradas em diferentes possibilidades simultacircneas
Em Terceira Margem adaptaccedilatildeo do grupo Munganga (direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro) ao
conto A terceira margem do rio de Guimaratildees Rosa a encenaccedilatildeo usava figuras estaacuteticas algo
semelhantes agraves carrancas de barcos do rio Satildeo Francisco para representar alguns dos
personagens do conto principalmente o do Pai aquele que decide viver sobre uma canoa
sendo levado pelo rio O estatismo das esculturas de madeira carregadas pelo ator em algumas
situaccedilotildees duplicava para o espectador a percepccedilatildeo dessas personagens que entendiam tanto a
forma e a presenccedila dos objetos esculpidos como algumas reaccedilotildees e falas do elenco como
vestiacutegios a serem combinados para produzir a percepccedilatildeo de uma estrutura participante da accedilatildeo
do conto Em espetaacuteculos como O Velho da Horta da Cia PeQuod Homem Voa da Cia
Catibrum e grande parte do repertoacuterio da Cia Truks a leitura que o puacuteblico faz da personagem
eacute uma combinaccedilatildeo da forma e dos movimentos do boneco com as falas e reaccedilotildees dos atores
que os operam e vocalizam O olhar do espectador oscila sem traumas entre o boneco e a
expressatildeo dos atores produzindo com essa combinaccedilatildeo um entendimento da personagem
Essa dinacircmica que por vezes pulveriza e por outras duplica e faz reverberar a
personagem produz um determinado nuacutemero de aacutereas de atrito e campos de disputa entre
boneco e ator que satildeo perceptiacuteveis tanto nos processos de construccedilatildeo do espetaacuteculo quanto
nos modos como as personagens satildeo recebidas pela audiecircncia
Quando aqui se defende a animaccedilatildeo como um estatuto relacional estabelecido entre
ator-manipulador e boneco o se que pretende afirmar eacute que haacute uma maneira sutil de proceder
no contato que se daacute entre os dois que produz efeitos claramente perceptiacuteveis e que nem
sempre podem ser obtidos por emprego de teacutecnicas evidentes Na questatildeo de dominacircncia que
trata da conduccedilatildeo da personagem pode-se notar que reside em pequenos ajustes
176
procedimentais e que natildeo se relacionam apenas com procedimentos claros muito menos no
emprego da forccedila sugestiva de recursos teacutecnicos como iluminaccedilatildeo e sonoplastia para que a
cena de Em Concerto dos Contadores de Estoacuterias na qual se mostra uma jovem iacutendia
banhando-se tenha como tema central o banho da jovem ao inveacutes de algueacutem que movimenta
um boneco Existe a construccedilatildeo de um estado de atuaccedilatildeo em relaccedilatildeo que cria por forccedila de sua
dinacircmica particular separaccedilatildeo e indiscernibilidade entre os sujeitos mostrados por boneco e
ator que se oferecem agrave percepccedilatildeo num fluxo de alternacircncias contiacutenuas Em discussatildeo
conduzida num intercacircmbio entre as companhias PeQuod e Caixa do Elefante chegou-se a
definir o trabalho do ator em formas animadas a partir da proposiccedilatildeo de ldquodizer com ele [o
boneco]rdquo76
Em A chegada de Lampiatildeo no Inferno da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo a figura
miacutetica do catildeo de trecircs cabeccedilas Ceacuterbero guardiatildeo da porta do inferno eacute feito pela integraccedilatildeo
corporal de trecircs atores cada um manipulando uma das cabeccedilas do catildeo (Figura 89) O efeito eacute
anti ilusionista posto que os atores satildeo postos agrave mostra sendo possiacutevel inclusive e apesar da
dinacircmica de deslocamento integrado que empregam discerniacute-los individualmente Mas a
personagem que jaacute se notabiliza pela forma composta das trecircs cabeccedilas se percebe tambeacutem
pelas expressotildees dos atores e por sua corporalidade combinadas pelos trecircs atores e pela
integraccedilatildeo entre corpo humano e boneco
No exemplo jaacute mencionado do Don Doro Hyaki Puppet Theatre (Figura 90) o efeito
da combinaccedilatildeo entre ator e boneco alterna a percepccedilatildeo em separado do guerreiro banido e da
amante que o segue para o exiacutelio com o de um fardo uniforme representando em si o estatuto
do banimento O ator Oichi Okamoto atua com uma maacutescara e um boneco em tamanho
natural que representa em princiacutepio uma mulher (a amante do fragmento de drama Nocirc
abordado no espetaacuteculo) Seu modo de operar a boneca metaforiza por meio do ato de
manipulaccedilatildeo a conduccedilatildeo feita pelo homem agrave mulher no contexto histoacuterico-social especiacutefico
Mas o ator e bailarino japonecircs se vale da dificuldade de distinccedilatildeo entre os corpos para
produzir um golpe cecircnico significativo Proacuteximo ao final do espetaacuteculo as maacutescaras satildeo
retiradas de modo a mostrar que num determinado momento da accedilatildeo os papeacuteis se inverteram
Diferentemente do arranjo do iniacutecio do espetaacuteculo no momento da retirada das maacutescaras
pode-se ver que quem estava desempenhando a mulher era Okamoto e que a maacutescara do
guerreiro estava no boneco Quando a troca se deu natildeo se sabe Sem mencionar as pertinentes
76
Postagem de 9 de marccedilo de 2011 do blog Intercacircmbio PeQuod e Caixa do Elefante
(httpcaixadoelefantepequod2011blogspotcom) como parte das atividades propostas pelo Programa Rumos
Itauacute Cultural
177
Figura 88 Ceacuterbero PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no Inferno
Foto Simone Rodrigues
Figura 89 Don Doro Hyaky Puppet Theatre
Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2008
178
implicaccedilotildees de criacutetica comportamental suscitadas por esse efeito o que a periacutecia corporal e
manipulativa de Okamoto nos aponta eacute a possibilidade de se criar um efeito eficiente de
indiscernibilidade entre operador e forma por meio de uma dinacircmica integrativa de atuaccedilatildeo
Ainda que se possa argumentar que a apresentaccedilatildeo de Okamoto possa ser resultado de uma
aplicaccedilatildeo rigorosa de recursos teacutecnicos e trabalho corporal objetivo sem que haja a
necessidade de construir uma relaccedilatildeo especiacutefica entre ator e objetos no interior do ato
performativo esta resta como uma demonstraccedilatildeo de rompimento hieraacuterquico e funcional entre
ator e forma animada na qual natildeo eacute possiacutevel reconhece-los por meio de posturas ocupaccedilotildees e
atitudes De fato o que Okamoto faz eacute em grande parte fazer com que seu corpo associado
aos apecircndices de vestimenta e mascaramento ndash e na proacutepria incapacidade de perceber onde
comeccedila o seu corpo e o do boneco ndash seja tratado como parte ou todo de uma forma animada
O corpo do ator operador de formas posto agrave vista natildeo estaacute de todo livre da atuaccedilatildeo de forccedilas
de manipulaccedilatildeo
Outro exemplo que pode nos ajudar estaacute em um dos viacutedeos para Internet da seacuterie
Metamorphosen idealizado e executado pela performer marionetista e encenadora alematilde Ilka
Schoumlnbein77
(Video 10) Nele a artista que produziu seus materiais a partir de moldes de seu
proacuteprio corpo mostra em um camarim de teatro uma crianccedila crescida e deformada (ou uma
anatilde) sentada no colo de uma mulher de postura hieraacutetica com o rosto coberto por uma espeacutecie
de maacutescara neutra feito de modo rude a ponto de revelar mesmo de longe uma tez bastante
irregular A meninaanatilde usa um velho vestido amarelado e puiacutedo O modo como se posta no
colo da figura estaacutetica e enlutada sugere dependecircncia ou incapacidade Ao som de uma
cantiga em que uma voz infantil canta acompanhada por um acordeatildeo ou realejo a figura
infantilizada faz evoluccedilotildees entre o luacutedico e o grotesco sem que a mulher que a sustenta esboce
qualq uer reaccedilatildeo Ateacute que num determinado momento um meneio de cabeccedila feito pela
mulher vestida de preto eacute acompanhado por uma reaccedilatildeo de repreensatildeo e medo da menina que
solicita e recebe um afago no encontro dos dois rostos
Pouco tempo de observaccedilatildeo nos permite perceber que a atriz veste a maacutescara em seu
rosto e opera a cabeccedila da menina com uma das matildeos Grande parte do que nos faz ver seus
corpos como sendo distintos estaacute no tom e na cobertura da roupa Os peacutes que balanccedilam sem
tocar o chatildeo satildeo atribuiacutedos agrave menina mas Schoumlnbein se vale dos complementos corporais e
das roupas para produzir a sensaccedilatildeo de duas presenccedilas distintas Aqui tambeacutem natildeo se percebe
uma relaccedilatildeo clara entre operador e boneco embora se possa admitir que haacute uma posiccedilatildeo que
77
Viacutedeo disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=wU_tSc51_ksampfeature=relatedgt
179
define um estatuto hieraacuterquico e uma situaccedilatildeo de controle entre as duas figuras da cena Ainda
que se possa argumentar que a impressatildeo das presenccedilas sobre a cena estatildeo solidamente
apoiadas sobre o aparato construiacutedo e nos jogos de dissimulaccedilatildeo do corpo da artista natildeo se
pode negar que a percepccedilatildeo dos sujeitos da cena realizam-se em plenitude no ato e na
potecircncia de relaccedilatildeo entre ambos
O sujeito da cena no teatro de animaccedilatildeo eacute por aquilo que se oferece agrave percepccedilatildeo do
espectador o resultado de uma seacuterie de acordos (e subversotildees) bastante sutis eminentemente
relacional Essa presenccedila qualificada surge portanto subordinada agraves relaccedilotildees que com ela se
estabelece em um fluxo do que determino como sendo disputas e eacute isso o que a define e
molda como fenocircmeno da cena teatral A atribuiccedilatildeo do sujeito da cena sobre uma estrutura
corporal estaacutevel sucumbe ante a variedade de combinaccedilotildees de forma e de forccedilas de atenccedilatildeo e
relaccedilatildeo que podem envolver natildeo apenas boneco e ator mas qualquer recurso produtor de
sentido sobre a cena teatral
180
322 Segundo campo de batalha o lugar do teatro
Natildeo podemos jamais aplicar os mesmos padrotildees ao ser
humano e ao boneco O boneco natildeo pode nunca viver a
menos que represente O homem natildeo jamais representar a
menos que viva
Alexandre Bakshi
Tillis resgata uma noccedilatildeo apresentada pelo artista de animaccedilatildeo norte americano Basil
Milovsorof de que o boneco seria possuidor de uma ldquoteatralidade inatardquo (1992 p 65 67) e a
emprega para discutir bonecos cujas apresentaccedilotildees satildeo de tal maneira esquemaacuteticas e simples
que seria difiacutecil reconhecer nelas qualidades de apresentaccedilatildeo teatral Seriam bonecos feitos
para executar uma accedilatildeo determinada como jogar malabares evoluir em barras agraves quais estatildeo
presos ou movimentar seus corpos de modo a sugerir uma danccedila78
Tillis acompanha
Milovsorof no entendimento de que toda apresentaccedilatildeo com boneco encerra devido agrave presenccedila
do boneco um caraacuteter inapelaacutevel de teatralidade que se daacute por meio de uma relaccedilatildeo que esta
estabelece com alguns elementos da forma dramaacutetica
Em todos os casos a tentativa envolve a representaccedilatildeo de uma ilusatildeo
Assim mesmo se o contexto da representaccedilatildeo envolve um malabarista vivo
em oposiccedilatildeo ao teatro a pretensa vida do boneco malabarista se daacute em uma
personagem de um malabarista vivo Ainda que seja apenas um ldquoobjetordquo
seus signos abstratos nesse caso os movimentos caracteriacutesticos do
malabarismo levam a plateia a imaginar que este possui a ldquovidardquo de um
malabarista Essa pretensatildeo cria ao menos um tipo rudimentar de drama ldquoa
apresentaccedilatildeo de um malabaristardquo (TILLIS 1992 p 68 traduccedilatildeo minha)
No momento em que faz essa afirmaccedilatildeo Tillis estaacute num esforccedilo de reconhecer a existecircncia do
efeito de ldquovisatildeo-duplardquo uma variante da opalescecircncia jurkowskiana em toda apresentaccedilatildeo
com bonecos79
e parece apoiar sua argumentaccedilatildeo sobre um caraacuteter de representaccedilatildeo que
conferiria a esse ldquofaz-de-contardquo certo estatuto ficcional ou em suas palavras ldquode uma ilusatildeordquo
Jurkowski amplia a discussatildeo acerca da teatralidade inata da forma animada ao
justificar a descontinuidade de uma produccedilatildeo literaacuteria para a cena de bonecos devido ao fato
de que este natildeo precisa se apoiar numa escrita dramatuacutergica convencional para produzir uma
situaccedilatildeo teatral uma vez que ldquocriar vida com o auxiacutelio de marionetes toca de uma certa
maneira a ficccedilatildeordquo (1991 p3)
78
Bons exemplos de manifestaccedilotildees mais recentes dessa forma de apresentaccedilatildeo satildeo os artistas de bonecos de fios
norte americanos Frank Paris (1914-1984) (Video 11) e Philip Huber (Figura 10) Apresentaccedilotildees sob a forma de
espetaacuteculos de variedades com bonecos geralmente executando nuacutemeros de canto e danccedila Acerca de Paris haacute
um viacutedeo de uma de suas performances em lthttpwwwyoutubecomwatchv=rJ0u6sfuO-Yampfeature=relatedgt
Huber tem viacutedeos e imagens de seus trabalhos postados no website lthttpwwwhubermaironetescomgt 79
Cabe aqui a recordaccedilatildeo de que Tillis natildeo emprega em seu estudo termos ampliados como forma animada
preferindo ao inveacutes disso propor uma ampliaccedilatildeo da definiccedilatildeo da palavra puppet para compreender outros
arranjos e consideraccedilotildees
181
Figura 90 Malabarista de fio
Fonte (Puppetry International no 9
Strafford UNIMA-US 2001 p44)
Figura 91 Maneacute Gostoso
Fonte (httpwwwartesolorgbr)
Esse boneco comum como brinquedo popular faz evoluccedilotildees
sobre os bastotildees como se fosse um ginasta ou acrobata
182
Podemos ampliar essa discussatildeo com a ajuda dos conceitos de opalizaccedilatildeo de
Jurkowski e de visatildeo-dupla de Tillis ao afirmar que uma apresentaccedilatildeo com formas animadas
eacute capaz de conjurar teatralidade por meio de recursos que tocam necessariamente a tensatildeo da
percepccedilatildeo simultacircnea do boneco como objeto inerte e como vida imaginada Essa capacidade
jaacute foi comentada em nosso primeiro capiacutetulo e pode nesse momento ter sua apreciaccedilatildeo
ampliada por meio da consideraccedilatildeo de que a simultaneidade perceptiva da forma opalizada do
boneco produz mesmo quando a apresentaccedilatildeo se limita a reproduccedilatildeo de uma danccedila uma
dinacircmica perceptiva criacutetica que guarda algumas caracteriacutesticas de dramaticidade das quais a
mais importante eacute a disposiccedilatildeo de um embate tenso e direto entre as duas instacircncias de
ontologia dispostas simultaneamente pela apresentaccedilatildeo do boneco Essa questatildeo eacute capaz de
ser ampliada de modo consideraacutevel se entendermos a forma do boneco com algo possuidor de
uma discursividade peculiar e potente
O antagonismo dramaacutetico nesse caso migra para o interior de forccedilas em embate postas
em jogo ndash e realizadas em grande parte nos sentidos do espectador ndash nas contradiccedilotildees
dispostas pela aparecircncia de autonomia que a apresentaccedilatildeo do boneco teatral faz sugerir Pode-
se afirmar que ao ator vivo faz-se necessaacuteria certa quantidade de condiccedilotildees e caracteriacutesticas
para que a sua atuaccedilatildeo possa ser entendida como espetacular ao boneco basta apresentar o
misteacuterio e a maravilha do encadeamento de passos ou a impressatildeo de deter sua atenccedilatildeo sobre
algo
Entendemos assim que o teatro de animaccedilatildeo possui uma capacidade inata de conjurar
certa espetacularidade segregando tempo e espaccedilo de modo a instaurar a partir da
apresentaccedilatildeo do boneco a cena teatral De fato essa teatralidade inata pode ser tambeacutem
bastante afetada pela mobilidade relacional e pelas dinacircmicas focais que se verificam entre
ator e objeto Variaccedilotildees dessas relaccedilotildees possiacuteveis podem afetar a percepccedilatildeo do espaccedilo o
entendimento da trama exposta o sentido de representaccedilatildeo e os focos de narratividade do
espetaacuteculo Passemos agora a explorar algumas das maneiras pelas quais o teatro de bonecos
explora recursos especiacuteficos de teatralidade e como a dinacircmica relacional do ator pode
dinamizar e refletir-se sobre a constituiccedilatildeo e percepccedilatildeo desses recursos
Steve Tillis encaminha uma reflexatildeo acerca da capacidade que o boneco possui de
evocar e dar corpo a realidades fantaacutesticas Dentre os autores que menciona chama atenccedilatildeo
um fragmento de texto de Michael Malkin no qual se apresenta um conceito caro ao teatro de
animaccedilatildeo
O teatro de bonecos desempenhou um papel vital no desenvolvimento do que
pode ser considerado o conceito dramaacutetico de impossiacutevel plausiacutevel [Este] eacute o elo
183
entre o mundo real e o reino da pura fantasia Eacute nesse sentido que o que o teatro
de bonecos representa um conceito teatral baacutesico representa a imaginaccedilatildeo
dramaacutetica em uma de suas formas mais fluidas (MALKIN apud TILLIS 1998
p37)
A ideacuteia apresentada por Malkin de ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo eacute um recurso valioso para
dar credibilidade a accedilotildees executadas por bonecos tanto as mais realistas quanto as mais
fantaacutesticas e tambeacutem eacute empregado em algumas linguagens fiacutesicas de expressatildeo como a
miacutemica Trata-se a princiacutepio de simular subordinaccedilotildees de natureza fiacutesica atuando sobre corpos
sobre as quais elas natildeo se aplicam A aplicaccedilatildeo desse princiacutepio domina grande parte dos
processos de educaccedilatildeo treinamento e ensaio de atores-manipuladores que precisam lidar
como o boneco como se este estivesse sujeito por exemplo agrave lei da gravidade Para fazer um
boneco saltar por exemplo a simples retirada de seus peacutes do chatildeo e a sua movimentaccedilatildeo ateacute o
ponto de chegada natildeo satildeo suficientes para deixar sobre a plateacuteia a impressatildeo de que o que
assistiram foi um salto Faz-se necessaacuterio que o corpo do boneco se aproxime do chatildeo com
uma dobra dos joelhos dando a impressatildeo de que eacute necessaacuterio tomar impulso que a
decolagem acompanhe o esticamento de pernas e tronco mediado pelo movimento de braccedilos
caracteriacutestico da mediaccedilatildeo de equiliacutebrio que fazemos para saltar e finalmente aterrissar com
os peacutes adiante do corpo seguido por nova dobra dos joelhos e aprumo final do corpo O
boneco manipulado natildeo estaacute submetido agrave gravidade como o corpo humano estaacute mas imitar
essa subordinaccedilatildeo com o boneco garante natildeo apenas a inteligibilidade de suas accedilotildees mas
sobretudo uma qualidade de atenccedilatildeo dispensada pelo espectador que segundo Tillis eacute uma
das causas principais pela atraccedilatildeo especial que a apresentaccedilatildeo com bonecos exerce sobre a
plateacuteia Quanto mais simples e limitado em movimentos eacute o boneco como eacute o caso da luva a
aplicaccedilatildeo desse princiacutepio acompanha a produccedilatildeo de efeitos de grande comicidade Mas o
conceito de impossiacutevel plausiacutevel natildeo se aplica apenas agrave mimetizaccedilatildeo de atitudes realiacutesticas Eacute
quando tratamos de situaccedilotildees de fato fantaacutesticas quando as atitudes do boneco extrapolam os
limites do corpo humano eacute que se obtecircm as impressotildees mais intensas sobre a plateacuteia Nesses
casos o impossiacutevel plausiacutevel consiste na aplicaccedilatildeo de alguns procedimentos de subordinaccedilatildeo agrave
fiacutesica que ainda que natildeo bastem para identificar como humanamente possiacutevel que um homem
voe ou que seja atingido por um cofre sem perder a vida imprimam na atitude corporal do
boneco um certo envolvimento com o evento fantaacutestico Eacute preciso afinal tomar impulso e
erguer os braccedilos antes de levantar vocirco
O espetaacuteculo Sangue Bom da Cia PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo apresenta alguns bons
exemplos de aplicaccedilatildeo do impossiacutevel plausiacutevel sobretudo nas passagens abertamente
184
inspirada em desenhos animados Num dado momento o Caccedilador tenta aprisionar o Vampiro
jogando uma rede sobre ele Desastradamente o Caccedilador acaba prendendo a si mesmo e na
tentativa de livra-se daacute alguns passos para traacutes saindo assim de cima do balcatildeo que lhe faz as
vezes de chatildeo Sem saber que perdeu o apoio paira suspenso no ar por alguns instantes ateacute
que se daacute conta de que natildeo haacute chatildeo sob seus peacutes Essa situaccedilatildeo impossiacutevel eacute seguida por um
movimento intencionalmente realizado pelos manipuladores do boneco que representa o
Caccedilador de fazer o tronco do boneco ultrapassar seus braccedilos que seguem como que erguidos
devido a observacircncia do fato de que em uma queda estendida os braccedilos por serem mais leves
que o tronco caem por uacuteltimo
Tillis natildeo demora a afirmar que o impossiacutevel plausiacutevel natildeo eacute um conceito exclusivo da
animaccedilatildeo apesar de ser um princiacutepio essencial para sua estruturaccedilatildeo teacutecnica e uma das
pedras fundamentais da linguagem que usa o fantaacutestico como um de seus temas centrais e
que emprega de grande apuro teacutecnico e esforccedilo de atenccedilatildeo para representar a vida mais
corriqueira Natildeo eacute de se admirar portanto que para o teatro de animaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma
ilusatildeo seja algo tatildeo central para a linguagem e um campo onde se trafega entre combinaccedilotildees
complexas pois que a simples instauraccedilatildeo de uma impressatildeo de autonomia eacute suportada e
atravessada por diversas forccedilas de instabilizaccedilatildeo o resultado de uma elaboraccedilatildeo da qual
participam diversas forccedilas concorrentes
O impossiacutevel plausiacutevel eacute um recurso por meio do qual o teatro de animaccedilatildeo dispotildee
diante do espectador uma realidade espetacular posta em destaque Amplia assim a percepccedilatildeo
simultacircnea da visatildeo-dupla na accedilatildeo do boneco teatral para o ambiente ampliado dos provaacuteveis
limites da encenaccedilatildeo com seus coacutedigos e sua combinaccedilatildeo mais sofisticada de elementos de
teatralidade Vemos dessa maneira essa percepccedilatildeo opalizada figurar tambeacutem em recursos de
ordem de encenaccedilatildeo e dramaturgia
A obra de Roger-Daniel Bensky acerca da dramaturgia francesa para marionetes
(1969) aponta a existecircncia de duas correntes temaacuteticas dominantes em espetaacuteculos com
bonecos a fantasia (feeacuterie) e a caricatura social Ambos os casos lidam de modo bastante
pronunciado com a suplantaccedilatildeo de limites da realidade seja por meio da superaccedilatildeo de seus
limites ou pela deformaccedilatildeo constituindo-se em terreno vaacutelido para o emprego de um
elemento teatral cuja percepccedilatildeo se desdobra entre a evocaccedilatildeo agrave vida e o pertencimento ao
mundo dos objetos A apresentaccedilatildeo com o boneco segrega um espaccedilo que se afirma
eminentemente teatral na medida exata em que transforma os signos de realidade que busca
representar para dentro de um acircmbito de inescapaacutevel simbolismo Em obra mais recente o
mesmo Bensky aponta
185
Contudo podemos dizer de maneira geral que por oposiccedilatildeo a uma
representaccedilatildeo realista ou ldquofisioplaacutesticardquo da natureza o siacutembolo comporta
uma representaccedilatildeo ldquoideoplaacutesticardquo do real O siacutembolo exprime a realidade por
meio de uma transfiguraccedilatildeo do ser em signo A marionete devido a sua
plasticidade e sua capacidade transformadora enquadra-se claramente dentro
de tais criteacuterios Podemos assim formular uma primeira lei esteacutetica o teatro
de bonecos permite uma representaccedilatildeo simboacutelica da realidade (BENSKY
2000 p 28 ndash traduccedilatildeo minha)
Curioso eacute notar que essa realidade alterada destacada simboacutelica natildeo se instaura se
natildeo por meio de uma dinacircmica de visatildeo-dupla ou seja da percepccedilatildeo simultacircnea de
plausibilidade e impossibilidade Uma realidade posta em crise desde seu interior pelas
forccedilas que a constituem Os mesmos fundamentos que datildeo forma ao esse domiacutenio
ldquoideoplaacutesticordquo mencionado por Bensky satildeo aqueles que o revelam como uma impossibilidade
ou quem sabe como uma realidade circunscrita pelos limites da representaccedilatildeo teatral
Haacute nessa dinacircmica de crenccedila e descrenccedila um elemento central apontado por Bensky e
Balardim que eacute absolutamente impossiacutevel de ser ignorado O fundamento primordial dos
campos de batalha aqui arrolados que eacute a percepccedilatildeo do espectador Natildeo seraacute possiacutevel
prosseguir na avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees de segregaccedilatildeo do real na dinacircmica relacional entre ator
e boneco sem inserir na questatildeo a disponibilidade agrave percepccedilatildeo do puacuteblico
Segundo Bensky ldquodevido a sua irrealidade primitiva a marionete poderaacute apenas
adquirir o poder de evocar o real graccedilas a uma cumplicidade ativa por parte do espectadorrdquo
(idem p36) Ou seja a potecircncia significativa da forma animada natildeo se realiza por forccedila
exclusiva das instacircncias produtoras do espetaacuteculo e depende que o seu puacuteblico aceite o jogo
proposto Cabe ao artista ndash e agrave forma ndash lanccedilar matildeo de recursos de atraccedilatildeo e esperar poder
sugerir uma cumplicidade criativa
Balardim aponta a existecircncia de uma predisposiccedilatildeo ao jogo que parte do espectador
mas ressalta que essa predisposiccedilatildeo deve ser incentivada por recursos de induccedilatildeo e
direcionamento da atenccedilatildeo presentes nos modos e qualidades de operaccedilatildeo da forma animada
Se imaginarmos que tais recursos de incentivo agrave predisposiccedilatildeo do espectador repousam
evidentemente sobre caracteriacutesticas de periacutecia manipulativa mas tambeacutem sobre modos de
conduccedilatildeo da narrativa espetacular (dos quais alguma periacutecia manipulativa faz parte mas que
pode variar em termos de direcionamento de atributos teacutecnicos de acordo com caracteriacutesticas
do espetaacuteculo e da maneira como a forma animada nele se insere) estamos levando em
consideraccedilatildeo que o trabalho de instauraccedilatildeo de realidade segregada especiacutefica em determinado
espetaacuteculo de animaccedilatildeo requer do ator a accedilatildeo de qualidades manipulativas natildeo apenas da
forma animada mas de todos os elementos que compotildeem a cena Mas o que isto equivaleria a
186
dizer a essa altura da reflexatildeo Que o ator em teatro de animaccedilatildeo dispensa sensibilidade e
teacutecnica manipulativa a todos (ou quase todos) os componentes da representaccedilatildeo ou que a
cena de animaccedilatildeo seria aquela em que todos os componentes da representaccedilatildeo conteacutem de
certa forma alguma qualidade de forma animada
Mas em que niacutevel a participaccedilatildeo do ator-manipulador pode vir a interferir na conduccedilatildeo
dessa narrativa ideoplaacutestica da cena de animaccedilatildeo e de que maneiras a sua participaccedilatildeo
qualifica a segregaccedilatildeo do real que se opera Ora fica claro desde jaacute que a percepccedilatildeo do ator
por parte da plateacuteia necessariamente impotildee caracteriacutesticas agrave narrativa espetacular que
forccedilosamente o incorpora agrave sua estrutura Por exemplo um manipulador que interfira na accedilatildeo
da cena de bonecos por efeito de uma imperiacutecia tem grande possibilidade de deformar a accedilatildeo
dramaacutetica de maneira indesejaacutevel alterando tambeacutem o modo como a plateacuteia percebe e aceita o
espetaacuteculo O efeito provocado por uma interferecircncia mal calculada pode vir a se refletir de
diversas formas sobre o jogo de crenccedila e descrenccedila que se estabelece entre a plateia e a cena
Os arranjos relacionais que se estabelecem em cena entre manipulador e boneco
assumem grande influecircncia sobre o modo de recepccedilatildeo do espetaacuteculo Assim sendo um
espetaacuteculo que lide com a ocultaccedilatildeo dos manipuladores e opte por natildeo envolvecirc-los na trama
central da peccedila tende a lidar com a conduccedilatildeo de uma narrativa com alguma estabilidade ainda
que a jaacute comentada inevitabilidade na consideraccedilatildeo da presenccedila do ator operador mesmo
oculto encaminhe a percepccedilatildeo do espectador a entender as accedilotildees de bonecos e atores como
sendo distintas e simultacircneas Uma vez posto agrave mostra como ocorre com espetaacuteculos de
manipulaccedilatildeo direta ou em espetaacuteculos que apresentam uma combinaccedilatildeo de participaccedilotildees de
atores e bonecos o ator passa a integrar a cena de modo a poder assumir outras possibilidades
de interaccedilatildeo com a accedilatildeo espetacular e com as formas animadas No espetaacuteculo Sangue Bom
da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo na qual ainda que natildeo se perceba uma interaccedilatildeo entre
manipulador e boneco que sugira uma dinacircmica de contracenaccedilatildeo haacute no figurino e na atitude
dos manipuladores a montagem de um dinacircmica relacional que se daacute entre os personagens
representados pelos bonecos e a sugestatildeo de que os manipuladores formam uma equipe de
estivadores medievais vestidos em trapos que agem como serviccedilais sinistros da accedilatildeo da peccedila
O espetaacuteculo natildeo faz dialogarem ou relacionarem-se diretamente atores e bonecos mas a
disposiccedilatildeo simultacircnea das accedilotildees de bonecos e atores operadores eacute fundamental para
caracteriacutesticas do espetaacuteculo no que diz respeito a questotildees de ritmo tensotildees apresentaccedilatildeo de
personagens e recursos de comicidade
Diversas possibilidades de relaccedilatildeo se abrem a partir do partido cecircnico do animador
aparente O que se pode perceber no entanto eacute que a opccedilatildeo por tal partido cecircnico torna mais
187
agudas as questotildees de soberania mencionadas neste capiacutetulo que precisam ser vistas com
atenccedilatildeo uma vez que alteram consideravelmente a maneira como se percebe a cena de
animaccedilatildeo e assim demandam atitudes calculadas no sentido de preservar as ecircnfases
pretendidas ao espetaacuteculo
O Grupo Sobrevento possui um espetaacuteculo para crianccedilas chamado Cadecirc meu heroacutei
Nele se usa um texto do argentino Horacio Tignanelli e eacute apresentado com bonecos de luva
aproximados aos da teacutecnica de luva chinesa80
A histoacuteria de como a Princesa Colherzinha de
Mel busca se livrar das garras de seu algoz e apaixonado Baratildeo recorrendo ateacute mesmo agrave
Internet para contratar heroacuteis de encomenda eacute mostrada sobre uma grande estrutura de
empanadas combinadas que descreve as ameias e janelas do castelo do vilatildeo O espetaacuteculo
lida com os atores operadores ocultos atraacutes da estrutura cenograacutefica e natildeo se estabelece
qualquer tensatildeo de identidade entre boneco e operador ateacute o final do espetaacuteculo quando a
Princesa finalmente se sensibiliza aos apelos amorosos do Baratildeo Assim que selam seu
compromisso os dois bonecos entatildeo se comprometem a promover o encontro entre duas
pessoas que vivem sob eles e que tambeacutem demonstram certa amargura solitaacuteria Saem entatildeo
detraacutes das empanadas os bonecos com os manipuladores que os vestem Luiz Andreacute
Cherubini e Sandra Vargas O diaacutelogo que se segue passa a confundir os limites entre
manipulador e boneco natildeo se pode mais ter total clareza de qual das partes emite a fala
proferida alternadamente pelos dois atores pois que boneco e manipulador confundem-se no
exato momento em que a apariccedilatildeo dos dois atores tambeacutem produz um desmonte do conto de
aprisionamento da donzela Passamos assim a ter uma apresentaccedilatildeo que prima por um
encontro mais proacuteximo entre atores e puacuteblico deixando o conto de fadas no longiacutenquo de uma
lembranccedila ou sugestatildeo Se direcionarmos a atenccedilatildeo aos bonecos animados permitimos que
estes habitem um espaccedilo agrave parte de uma ficccedilatildeo envolvente e maravilhosa mas parece que dar
a cena ao ator eacute tambeacutem transformaacute-la no caso do teatro de animaccedilatildeo num espaccedilo de
dissociaccedilatildeo ficcional uma encruzilhada de possibilidades de envolvimento que exacerba o
caraacuteter luacutedico e o pacto com a plateacuteia para o estabelecimento da verdade da cena Eacute claro que
a cena de animaccedilatildeo natildeo pode se dar ao luxo de fundar sua ficccedilatildeo numa ou noutra
prerrogativas Seu efeito final eacute o resultado do fluxo incessante de dominaccedilotildees e partilhas
produzido pela dinacircmica do organismo performativo combinado
80
Os atores da companhia fizeram um treinamento da referida teacutecnica com o mestre chinecircs Yang Feng A luva
chinesa difere da luva ocidental entre outras coisas em detalhes de sua empunhadura que permite ao boneco
movimentos de giro e salto mais facilmente A luva chinesa eacute conhecida por sua dinacircmica e leveza e por ser
especializada para realizar cenas de lutas e danccedilas acrobaacuteticas aleacutem de permitir ao menos nas matildeos de grandes
mestres como Yang Feng realizar movimentos extremamente especializados e raros para esse tipo de boneco
como o manuseio de pequenos objetos e malabarismos
188
Outro exemplo que serve a esta reflexatildeo eacute o jaacute citado espetaacuteculo Homem Voa da
Companhia Catibrum de teatro de bonecos de Belo Horizonte A montagem emprega
preferencialmente a manipulaccedilatildeo direta sobre balcatildeo em combinaccedilatildeo com projeccedilotildees e
sombras Diferentemente de exemplos anteriormente mencionados nos quais haacute momentos
pontuais de diaacutelogo entre atores operadores e bonecos ou do Sangue Bom da PeQuod em que
a visibilidade dos atores acompanha uma tentativa proposital de incorporaccedilatildeo agrave ambiecircncia do
espetaacuteculo Homem Voa lida com os operadores agrave mostra a partir de uma clara adesatildeo da
neutralidade como estrateacutegia de conduccedilatildeo focal do espetaacuteculo e empregando uma orientaccedilatildeo
procedimental clara sobre a busca por esse efeito que se verifica pelas posturas impassiacuteveis e
atentas dos atores em vestes escuras e com os rostos descobertos e olhos voltados para os
bonecos Curioso eacute notar que ainda que do ponto de vista da orientaccedilatildeo focal o modo de
apresentaccedilatildeo dos atores em Homem Voa encaminhe a
189
atenccedilatildeo do puacuteblico para a accedilatildeo eleita pela encenaccedilatildeo como sendo central esta pode se
caracterizar como uma atitude de renuacutencia agrave participaccedilatildeo no espetaacuteculo Jaacute foi comentado
neste trabalho que tudo aquilo que faz parte do campo perceptiacutevel do espetaacuteculo teatral se
encontra inapelavelmente incorporado a ele Nesse sentido as escolhas de interaccedilatildeo entre ator
e forma natildeo devem ignorar o fato de que nenhum desses elementos eacute capaz de se alijar da
constituiccedilatildeo do espetaacuteculo num fluxo incessante de produccedilatildeo de relaccedilatildeo e sentido Abrir matildeo
dessa prerrogativa eacute cedecirc-la a outrem
Figura 92 Sobrevento Cadecirc meu heroacutei(atores Sandra Vargas e Luiz Andreacute Cherubini)
Fonte (httpwwwsobreventocombrfichatec_heroihtm)
Figura 93 Sobrevento Cadecirc meu heroacutei
Fonte (httpwwwsobreventocombr)
190
323 Terceiro campo de batalha a potecircncia metafoacuterica
A ideacuteia de que bonecos satildeo criaturas inanimadas controladas
por seres humanos eacute incorreta e a posiccedilatildeo eacute exatamente o
oposto o artista estaacute agrave mercecirc de seus bonecos
Walter Wilkinson
O terceiro dos campos de batalha das relaccedilotildees entre ator e objeto na cena de animaccedilatildeo
eacute talvez o mais vasto e delicado de ser abordado Primeiramente porque a potecircncia de
significaccedilatildeo do boneco ndash do ato da animaccedilatildeo e das condiccedilotildees de animador e animado ndash resulta
em mateacuteria que se assenta nas origens da expressividade com a forma animada antecedendo
em tempo e relevacircncia agraves discussotildees teacutecnico-esteacuteticas que vinham sendo conduzidas ateacute o
momento O poder do teatro de animaccedilatildeo de metaforizar o humano em suas condiccedilotildees
existenciais nas formas que assumem as suas relaccedilotildees nas ligaccedilotildees que este estabelece
coletivamente e no modo como elabora aquilo que lhe eacute inapreensiacutevel talvez seja o motivo
fundamental da existecircncia e longevidade de uma manifestaccedilatildeo artiacutestica que se encarrega de
promover uma imaginaccedilatildeo de vida em algo que se percebe primordialmente como um objeto
Em segundo lugar porque a jaacute mencionada variedade de manifestaccedilotildees em teatro de animaccedilatildeo
produz desdobrando-se em tempo e espaccedilo inuacutemeras leituras da condiccedilatildeo individual do ser
humano assumindo feiccedilotildees antagocircnicas entre si e assentando-se sobre diversas concepccedilotildees e
filosofias
Finalmente a tentativa de entender o quanto os arranjos perceptivos que se
estabelecem entre ator e forma sobre a cena dialogam com concepccedilotildees correntes acerca da
condiccedilatildeo do homem na contemporaneidade e das relaccedilotildees que este estabelece consigo e com
o coletivo lida com um esforccedilo de entendimento de um presente imediato cuja extrema
proximidade o torna esquivo ao olhar dificultando seu entendimento tambeacutem pelo fato de em
diversas ocasiotildees produzir sentidos que se relacionam de maneira nem sempre harmoniosa
entre as suas condiccedilotildees de produccedilatildeo e os seus modos de recepccedilatildeo
Quando pensamos nas formas mais recentes de exploraccedilatildeo cecircnica a partir das relaccedilotildees
possiacuteveis entre ator e forma animada uma figura se sobressai Sobretudo com o emprego do
aproveitamento da expressividade do operador aparente verificamos que os temas para
espetaacuteculos de animaccedilatildeo se desenvolvem apoiados em grande parte sobre recursos de
metateatralidade dos quais podemos considerar como situaccedilatildeo mais comum aquela que
mostra o boneco que adquire consciecircncia dos fios que o susteacutem e variaccedilotildees do mesmo tema
de acordo com diferentes estruturas de bonecos e modos de abordagem
191
O final de Filme Noir da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo mostra uma luta tragicocircmica
entre a personagem central da trama ndash o Detetive ndash e seus manipuladores O espanto
produzido pela revelaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo de boneco e o consequente esforccedilo para libertar-se
das matildeos dos operadores termina com a afirmaccedilatildeo da condiccedilatildeo de objeto do boneco Deixado
inerte sobre uma prateleira as reflexotildees da voz em off que ateacute pouco antes eram atribuiacutedas a
ele selam a ruptura entre o discurso e a forma da personagem na alegaccedilatildeo de que ldquonatildeo passa
de uma voz gravadardquo81
Haacute uma apresentaccedilatildeo com um boneco que representa um pierrocirc operado por fios
atribuiacuteda ao artista de animaccedilatildeo e encenador francecircs Philippe Genty82
apresentada no
programa televisivo do maacutegico britacircnico Paul Daniels83
(Video 12) no qual apoacutes realizar
alguns volteios e caminhadas o boneco percebe a presenccedila do operador e vai aos poucos se
dando conta do cordame que o sustenta e que o movimenta Tal tomada de consciecircncia eacute
seguida por um movimento de cobrir o rosto com o braccedilo e movimentar a cabeccedila indicativo
de choro Em seguida o boneco passa a retirar as cordas nas quais se prende perdendo
sucessivamente o movimento de cada articulaccedilatildeo que solta do fio Ainda que vaacute aos poucos
empilhando-se sobre si mesmo perdendo ao mesmo tempo a capacidade de mover-se e a de
produzir imaginaccedilatildeo de vida o boneco segue em seu intento ateacute que reste sobre o chatildeo de
modo a natildeo permitir a distinccedilatildeo de suas partes corporais Apoacutes o uacuteltimo fio ser retirado a matildeo
do boneco pousa sobre o chatildeo e vira-se indicando sua morte Quando o foco luminoso se abre
o operador natildeo estaacute mais sobre o palco apenas o que antes foi o pierrocirc amontoado
Outro espetaacuteculo que merece menccedilatildeo eacute O princiacutepio do espanto (2002) da Morpheus
Teatro de bonecos O ato realizado com um boneco de manipulaccedilatildeo direta eacute conduzido por
apenas um ator (Joatildeo Arauacutejo) e traz como curiosidade ao fato de se haver desenvolvido uma
pega para a sua boca na parte posterior da cabeccedila do boneco deixando os dois braccedilos livres
para a operaccedilatildeo de um boneco que usualmente requer trecircs condutores O espetaacuteculo eacute
inspirado ndash a ponto de ser citado na apresentaccedilatildeo e figurar no tiacutetulo do espetaacuteculo ndash num
trecho inicial das Elegias de Duiacuteno de Rainer Maria Rilke
Quem se eu gritasse
Entre as legiotildees de Anjos me ouviria
E mesmo se inesperadamente um deles me acolhesse ao coraccedilatildeo
Eu sucumbiria perante sua existecircncia mais forte
81
A referida sequecircncia se encontra descrita e melhor comentada em PIRAGIBE 2007 pp 73-84 82
Atribuiccedilatildeo natildeo confirmada 83
Disponiacutevel na Internet em lthttpwwwyoutubecomwatchv=SphHaiW7fzggt Haacute de fato poucas referecircncias
acerca do viacutedeo sem data ou mesmo uma informaccedilatildeo clara se o operador se trataria de fato de Philippe Genty
Paul Daniels conduziu um programa de maacutegica e variedades exibido pela rede de televisatildeo britacircnica BBC entre
os anos de 1979 e 1994 chamado The Paul Daniels Magic Show
192
Pois o belo natildeo eacute senatildeo o princiacutepio do espanto
Que mal conseguimos suportar
E ainda assim o admiramos pois
Sereno deixa de nos destruir84
O trecho de Rilke eacute tratado de maneira ambiacutegua no espetaacuteculo uma vez que se percebe certa
subversatildeo do entendimento oacutebvio do controle do ator sobre o boneco A partir do momento
em que o boneco manipulado pelo ator entra em cena o vemos criar uma seacuterie de accedilotildees
envolvendo objetos que os cercam inclusive uma relaccedilatildeo comicamente narciacutesica com um
quadro numa moldura que depois eacute dado a ver tratar-se de um espelho O trecho final do
espetaacuteculo aborda o reconhecimento por parte do boneco da presenccedila e da accedilatildeo do operador
conduzindo-o do espanto a uma tentativa violenta de libertaccedilatildeo e culminando em aceitaccedilatildeo e
o reconhecimento por parte do boneco de que sua existecircncia eacute algo forjado O espetaacuteculo
termina com o boneco reagindo de modo a aceitar a morte em conjunto com o ator O uacuteltimo
movimento da peccedila de apagar uma vela eacute executado por ambos e ambos desaparecem
Tanto o boneco movido pelo ator quanto o ator que subordina seu ldquosentido de serrdquo no boneco
que anima
A potecircncia de significaccedilatildeo e envolvimento contida em cenas como as descritas diz
respeito exatamente ao modo como eacute possiacutevel reconhecer alguns aspectos da condiccedilatildeo
humana ou pelo menos de como certas correntes de pensamento abordam questotildees da
condiccedilatildeo humana como algo duramente subordinado a forccedilas que lhe suplantam e das quais
muitas vezes natildeo se tem consciecircncia Aqui o operador natildeo representa o humano que passa a
ser mostrado por meio do estado e do comportamento do boneco Ator e boneco natildeo se
mostram como forccedilas integradas e interdependentes mas como entes separados que ocupam
posiccedilotildees muito definidas em uma cadeia de hierarquia e subordinaccedilatildeo A forccedila controladora
se encontra exterior ao que eacute controlado mas impondo a esse um tipo de dominacircncia para a
qual a tentativa de libertaccedilatildeo equivale agrave renuncia agrave existecircncia A atitude do boneco de romper
com seus fios pode ser entendida tanto como uma afirmaccedilatildeo da liberdade ainda que agrave custa
da proacutepria vida ou uma discussatildeo sobre a inconsciecircncia da humanidade acerca de seus
proacuteprios mecanismos de existecircncia levando-a a investir agraves cegas contra aquilo que a sustenta
De qualquer forma a cena do pierrocirc de fios versa indiscutivelmente sobre uma condiccedilatildeo
humana de subordinaccedilatildeo quase irrecorriacutevel apresentando boneco e operador como indicativos
da fragilidade do arbiacutetrio humano e de forccedilas de determinaccedilatildeo que podem ser de natureza
divina ataacutevica ou social
84
Citaccedilatildeo retirada do programa do espetaacuteculo
193
Figura 94 Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto ator JoatildeoArauacutejo
Fonte (httpwwwmorpheusteatrocombr)
Foto Henrique Sitchin
Figura 95 Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto ator JoatildeoArauacutejo
Fonte (httpwwwmorpheusteatrocombr)
Foto Henrique Sitchin
194
O retrato da vida humana como presa de forccedilas de determinaccedilatildeo contra as quais natildeo
se pode investir animou quase toda a tragediografia grega e estaacute presente em diversos temas
da criaccedilatildeo dramatuacutergica muitas vezes transfigurada sob a forma das relaccedilotildees do homem com
o poder como se vecirc constantemente o indiviacuteduo apresentado por Shakespeare como sendo um
ldquojoguete do destinordquo (Ricardo III Henrique VI McBeth Medida por Medida dentre outras)
mas tambeacutem sob o jugo da complexidade e dos preconceitos das estruturas sociais o que
aparece em diversas obras da literatura romacircntica (Madame Bovary A dama das cameacutelias)
ou mesmo por uma combinaccedilatildeo pouco tolerante de atavismo e regras sociais como estaacute
retratado por Garcia Lorca em obras como Yerma e Bodas de Sangue
Eacute inegaacutevel entatildeo que essa visatildeo da marionete como metaacutefora do homem preso a
determinismos de variadas origens natildeo apenas se mostra em arranjos simples de estruturaccedilatildeo
da cena de animaccedilatildeo como tem claras relaccedilotildees com temas do teatro e da literatura expostos
em algumas obras de qualidade e vigor significativos No entanto natildeo parece que o teatro de
animaccedilatildeo contemporacircneo se satisfaccedila em apenas empregar efeitos de metateatralidade de
relaccedilatildeo entre operador e forma para tratar de um indiviacuteduo aprisionado por cordas de controle
inexoraacutevel Parece isso sim que o recurso ao humor e agrave ironia para tratar da questatildeo da
subordinaccedilatildeo os jogos de indiscernibilidade da origem do controle e a crescente cooptaccedilatildeo do
corpo do ator para dentro da cena de animaccedilatildeo em arranjos de composiccedilatildeo corporal e de
objetificaccedilatildeo do corpo do ator apresenta novas possibilidades de disposiccedilatildeo relacional entre
ator e boneco aleacutem de trazer agrave baila uma discussatildeo menos fatalista e simplificada das relaccedilotildees
do homem com as forccedilas de determinaccedilatildeo
Tillis aponta que as metaacuteforas mais usuais na apresentaccedilatildeo com a forma animada satildeo
aquelas relacionadas a criaccedilatildeo e controle (p 160) Para isso inicia a sua verificaccedilatildeo com os
jogos teatrais observados mesmo no objeto ritual e no brinquedo infantil De fato essas duas
circunstacircncias de emprego da figura assemelhada agrave forma animada (tornada boneco por meio
da sua capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade) lidam cada uma a seu modo com a
apresentaccedilatildeo de um estatuto que determina uma dinacircmica de controle Seja por meio da
ineacutercia que solicita uma atuaccedilatildeo de autoridade e cuidado maternal pelo estatismo hieraacutetico
que suplanta a humanidade e sugere reverecircncia ou outras relaccedilotildees possiacuteveis De fato parece
ser liacutecito supor que a relaccedilatildeo entre objeto e indiviacuteduo nos contextos de jogo ou ritual apenas
sugerem as relaccedilotildees de controle e criaccedilatildeo quando adquire nela mesma alguma caracteriacutestica
teatral seja por meio de componentes espetaculares de evocaccedilatildeo de certa visualidade
sugestiva ou por meio do estabelecimento de uma tensatildeo relacional destacada ao menos em
parte da realidade imediata para repor em jogo identidades e situaccedilotildees
195
A potecircncia metafoacuterica da relaccedilatildeo entre operador e forma torna-se de acordo com a
construccedilatildeo da reflexatildeo deste trabalho num campo de batalha na medida direta em que essa
relaccedilatildeo ao inveacutes de abandonar os temas nucleares de criaccedilatildeo e controle apontados por Tillis
vale-se das variaccedilotildees integrativas entre ator e forma das transformaccedilotildees na consideraccedilatildeo do
boneco teatral e na ampliaccedilatildeo de possibilidades de atuaccedilatildeo do ator operador para ampliar as
formas de abordagem dos temas nucleares com a construccedilatildeo de discursos ambiacuteguos criacuteticos
e mesmo subversivos
Se nos reportarmos a jaacute mencionada Filme Noir da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo
podemos perceber que mesmo apoacutes a mal sucedida tentativa do boneco Detetive de libertar-se
de seus manipuladores sendo posto inerte sobre uma prateleira a voz em off atribuiacuteda agrave
personagem natildeo cessa O texto dito desmonta o fatalismo da accedilatildeo anterior de modo a natildeo ser
mais possiacutevel entender a voz como componente de uma construccedilatildeo estaacutevel de personagem
Por uma convenccedilatildeo qualquer esta voz deve parecer que estaacute na minha
cabeccedila que satildeo os pensamentos de algueacutem Os meus pensamentos Este foco
de luz assim tambeacutem daacute esta impressatildeo E vocecirc aiacute na cadeira acredita nisso
Ei isso eacute uma voz gravada Soacute isso Eacute soacute uma voz gravada85
Nesse sentido o uso da ironia desfaz tanto o aspecto traacutegico da sujeiccedilatildeo do boneco mas
tambeacutem contribui para produzir uma duacutevida acerca da proacutepria integridade da personagem que
passa a ser visto ironicamente como uma combinaccedilatildeo acidental de elementos
O uso da ironia aqui produz natildeo apenas uma espeacutecie de desmontagem subversiva da
condiccedilatildeo traacutegica da sujeiccedilatildeo mas tambeacutem aponta para algo que seraacute fundamental para a
discussatildeo de questotildees mais recentes em animaccedilatildeo que anima tambeacutem grande parte da criaccedilatildeo
teatral sobretudo no que diz respeitos a novas concepccedilotildees de dramaturgia e personagem O
retorno cocircmico agrave questatildeo do controle refaz e adensa o proacuteprio mecanismo desse controle
detonando feixes em direccedilotildees opostas e produzindo com isso sujeitos sem contornos
definidos espalhados entre corpos A produccedilatildeo espanhola El Avaro do grupo Taacutebola Rassa
(Figura 97) possui um momento que explica bem o que se afirma Trata-se de uma
interpretaccedilatildeo do Avarento de Molieacutere feito com boneco criados a partir de torneiras e peccedilas
de hidraacuteulica manipulados sobre balcatildeo com o ator operador segurando a torneira que faz as
vezes de cabeccedila da personagem com uma das matildeos e usando a outra como matildeo da proacutepria
personagem Na passagem em que Harpagatildeo sofre de deliacuterios paranoicos de que estariam
atraacutes de sua fortuna o boneco se daacute conta da presenccedila do ator operador o que amplia o seu
85
VELLINHO Miguel Filme noir Mimeo A narraccedilatildeo do texto apresentada em off durante as apresentaccedilotildees
do espetaacuteculo Filme noir eacute feita pelo ator Renato Peres
196
desespero pois passa a supor a existecircncia de um monstro querendo roubar-lhe Apoacutes mais um
tempo o boneco vira-se para o ator e faz um jogo de verificaccedilotildees do qual decorre o
entendimento de que a sua voz eacute emitida pelo operador Em seguida o boneco acalma-se e diz
ldquoEste natildeo eacute um monstro este sou eurdquo
O exemplo de El Avaro apresenta tambeacutem uma questatildeo que foi mencionada em outros
momentos deste trabalho que eacute o emprego de partes do corpo do manipulador para compor a
forma do boneco nesse caso o compartilhamento da terminaccedilatildeo de um dos braccedilos e da matildeo
Esse uso natildeo eacute exclusivo da montagem em questatildeo O espetaacuteculo O patinho feio da
companhia catarinense Gats (Figura 98) apresenta as aves do conto de Andersen combinando
os braccedilos das atrizes a complementos de seu figurino podendo ser mangas bufantes ou
sacolas plaacutesticas Jaacute foram citados outros empregos semelhantes em trabalhos de Hugo e Inecircs
Ilka Schoumlnbein e tantos outros sem mencionar a objeccedilatildeo formulada por Tillis acerca da
proposta de desconsideraccedilatildeo da luva como boneco teatral por Jurkowski devido ao fato de
esta ser de fato uma matildeo adereccedilada
A combinaccedilatildeo de partes do corpo do ator operador agrave estrutura visiacutevel do boneco
amplia a problemaacutetica da discernibilidade entre os dois tornando ainda mais esquiva agrave
percepccedilatildeo a sujeiccedilatildeo do boneco pelo ato de controle uma vez que amplia a ambiguidade
corporal da personagem mostrada pelo ente combinado A visagem de uma relaccedilatildeo de
sujeiccedilatildeo se perde em meio a um jogo de atuaccedilatildeo compartilhada na qual natildeo se consegue mais
perceber a forma do boneco como algo independente ao corpo do ator
De fato esse recurso faz um pouco mais que dissipar impressotildees de subordinaccedilatildeo ele
atrai o corpo do ator (ao menos as partes envolvidas) para o interior do que se pode considerar
como sendo a forma animada Transforma o braccedilo em boneco (ou em uma parte dele) faz o
que eacute percebido invadir o terreno daquilo que eacute mecanismo interno de produccedilatildeo da
apresentaccedilatildeo na exata medida em que nos mostra um braccedilo manipulando a si proacuteprio na
relaccedilatildeo que este estabelece com o a personagem que o boneco representa
Esse tipo de efeito traz ator e marionete para uma espeacutecie de terreno comum de
atuaccedilatildeo Ainda que se perceba com muita forccedila o quanto a relaccedilatildeo de manipulaccedilatildeo produz
significados e divide estaacutegios semacircnticos dentro do espetaacuteculo86
percebe-se na realizaccedilatildeo de
que atores postos agrave vista passam a integrar o campo visiacutevel do espetaacuteculo uma tentativa de
86
Como por exemplo em Sangue Bom da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo em que mesmo que se perceba
alguns jogos de integraccedilatildeo entre operadores e bonecos estaacute dada com clareza a separaccedilatildeo dos diferentes estaacutegios
do espetaacuteculo do qual cada um dos grupos participa Homem Voa da Cia Catibrum aplica certa ecircnfase nessa
separaccedilatildeo investindo numa atitude de neutralidade que se revela pouco eficaz como tal devido agrave postura
197
Figura 96 Tabola Rassa (Espanha) El Avaro (atores Asier Saenz e Olivier Benoit)
Fonte (httpwwwtabolarassacom)
Figura 97 Gats O patinho feio
Fonte (Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2008)
excessivamente alheada dos atores operadores de formas Aqui mais que no primeiro exemplo a decalagem
entre os ldquoestaacutegiosrdquo da representaccedilatildeo
198
estilizaccedilatildeo da participaccedilatildeo dos atores o que desnaturaliza seus comportamentos levando-os
assim a serem entendidos como figuras de naturezas natildeo muito afastadas dos bonecos que
operam
Podemos para este momento mencionar uma boa quantidade de exemplos eficazes os
chapeacuteus de abas largas usados pelos atores do Sobrevento em Beckett (Figuras 99 e 100) e em
O princiacutepio do espanto os andrajos que cobrem os corpos de operadores em Sangue Bom e
ateacute mesmo a singeleza dos oacuteculos escuros vestidos pela dupla de manipuladores do Grupo
Animasonho em Bonecrocircnicas87
(Figura 101) Mas essa desnaturalizaccedilatildeo pode estar presente
em esforccedilos de comportamento neutro como ocorre em peccedilas como O patinho feio da Gats e
Homem voa da companhia Catibrum mas parece que essa consideraccedilatildeo adquire feiccedilotildees de
maior radicalidade efeitos de confusatildeo do corpo do ator com o objeto
O espetaacuteculo La fin des terres da companhia Philippe Genty (Video 13) mostra num
determinado momento uma bailarina que move casas em miniatura de um ponto a outro do
palco Retira alguma delas de uma elevaccedilatildeo que daacute ao espectador a impressatildeo de ser um
morro feito de uma forraccedilatildeo qualquer coberto por um tecido azul Apoacutes todas as casas serem
retiradas dessa pequena elevaccedilatildeo sobre o palco num determinado momento e com uma
movimentaccedilatildeo precisa mostra-se ao puacuteblico que de fato aquela elevaccedilatildeo era composta por
um grupo de bailarinos posicionados de modo a conferir a impressatildeo caracteriacutestica A
primeira cena de Peer Gynt da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo eacute toda feita de modo a dar a
centralidade da cena para a relaccedilatildeo dos bonecos (o protagonista Peer Gynt e sua matildee de
nome Aase) ainda que apresente atores operadores agrave mostra Em um determinado momento
quando a personagem da matildee anuncia que natildeo permitiraacute que Peer Gynt arruiacutene a festa de
casamento da filha do latifundiaacuterio local a atriz vocalizadora da personagem Aase eacute iccedilada
pelo ator vocalizador de Peer Gynt88
por meio de um sistema de cabos e roldanas Percebe-se
uma clara alteraccedilatildeo na forma da cena que deixa apresentar as personagens por meio dos
bonecos para lidar com representaccedilotildees dos atores mas cabe ressaltar que no iccedilamento da atriz
que passa a apresentar a personagem sem o jogo direto com o boneco parece que se dota os
atores com certa qualidade marionete antes de dar-lhes a centralidade da cena
Curioso notar que por variados mecanismos percebe-se em diversas manifestaccedilotildees
um movimento de cooptaccedilatildeo do ator para dentro de um entendimento deste como forma
87
O grupo gauacutecho Animasonho foi criado em 1984 pelos gecircmeos Tiaraju e Ubiratan Carlos Gomes
Bonecrocircnicas eacute uma sucessatildeo de quadros variados com bonecos de luva e manipulaccedilatildeo direta e estaacute no
repertoacuterio da companhia desde a sua fundaccedilatildeo Apoacutes a morte de Tiaraju Ubiratan tem apresentado o espetaacuteculo
sendo acompanhado pelo artista de animaccedilatildeo Carlos (Cacaacute) Senna 88
Essa distinccedilatildeo se faz necessaacuteria devido ao fato de que no espetaacuteculo em questatildeo os bonecos satildeo operados por
mais de um ator
199
Figura 98 Grupo Sobrevento Beckett (Ato
sem palavras 1)
Fonte (httpwwwsobreventocombr)
Figura 99 Grupo Sobrevento Beckett (O impromptu de
Ohio)
Fonte (httpwwwsobreventocombr)
Figura 100 Animasonho Bonecrocircnicas (atores Cacaacute Senna e Ubiratan Carlos Gomes)
Fonte (Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2010)
Foto Seacutergio Schnaider
200
animada Esse movimento de cooptaccedilatildeo contribui para estabelecer entre ator e boneco um
estatuto relacional mais aproximado a um estado de equivalecircncia do que da sujeiccedilatildeo de um
pelo outro
Quando Valmor Beltrame identifica em parte do movimento teatral ocidental a partir
de fins do seacuteculo XIX a tendecircncia que ele identificaraacute como marionetizaccedilatildeo do ator (2005)
estaacute de fato apontando para o modo como alguns pensadores e realizadores de teatro usaram o
boneco como modelo para propor uma reforma no modo de atuaccedilatildeo que dominava os palcos
da Europa nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX
Se pensarmos nos estilos de representaccedilatildeo dos atores europeus sobretudo aqueles que
dominaram os teatros neoclaacutessico e romacircntico89
eacute possiacutevel perceber ateacute mesmo por meio das
criacuteticas feitas aos seus estilos de representaccedilatildeo por precursores da encenaccedilatildeo tais como
Edward Gordon Craig e Constantin Stanislavski e pelo historiador e criacutetico teatral italiano
Silvio DacuteAmico90
a dominacircncia de um modo de representar que se valia de recursos
declamatoacuterios e lugares comuns de gestual e expressatildeo e que tambeacutem permitia que o ator
intrometesse sua personalidade no modo de apresentaccedilatildeo da personagem que era eivada de
apartes comentaacuterios interpelaccedilotildees ao puacuteblico repeticcedilotildees e preparaccedilotildees de grandes passagens
da peccedila O primeiro momento da era dos encenadores veio a ser tambeacutem aquele que clamou
por um ator que subordinasse seu trabalho em favor de uma proposta de espetaacuteculo unificado
e que dispensasse com maior cuidado sua atenccedilatildeo agrave apresentaccedilatildeo da personagem e agraves
determinaccedilotildees do encenador em detrimento agrave exibiccedilatildeo de dotes virtuosiacutesticos e demais
recursos que interrompessem a unidade da experiecircncia do espetaacuteculo
Natildeo por acaso muitos pensadores e encenadores desse periacuteodo viram no ensaio de
1810 de Heinrich Von Kleist intitulado ldquoSobre o teatro de marionetesrdquo uma provocaccedilatildeo que
permitiu a elaboraccedilatildeo de uma utopia para ator dos tempos modernos Entre outras tantas
questotildees Kleist aponta como vantagem do boneco de fios em relaccedilatildeo ao bailarino humano o
fato de o primeiro natildeo possuir afetaccedilatildeo o que em grande parte pode ser entendida como uma
insinuaccedilatildeo das vontades e caracteriacutesticas do corpo que se apresenta sobre os resultados da
mesma91
Ao indicar a accedilatildeo do manipulador e a forccedila da gravidade como os responsaacuteveis pela
produccedilatildeo de um movimento repleto de uma qualidade esteacutetica que ele identifica sob a noccedilatildeo
89
Faz-se necessaacuterio deixar claro aqui que tais estilos satildeo mencionados com o intuito de referir-se aos modos de
representaccedilatildeo de ator dominantes em seus respectivos periacuteodos e lugares de florescimento mais do que evocar
os pressupostos esteacuteticos e ideoloacutegicos de suas origens liacutetero-dramatuacutergicas 90
Beti Rabetti empreende uma anaacutelise clara da atualccedilatildeo criacutetica de D`Amico e de suas impressotildees acerca dos
atores de seu tempo no artigo Eleonora Duse por Silvio DacuteAmico a interpretaccedilatildeo que se esconde in Folhetim
no 20 Rio de Janeiro Teatro do Pequeno Gesto jul-dez 2004 pp 22-33 91
ldquoPois a afetaccedilatildeo aparece como o senhor sabe quando a alma (vis motrix) encontra-se em qualquer outro ponto
que natildeo seja o centro de gravidade do movimentordquo (KLEIST 2005 p20)
201
de graccedila Kleist sugere a produccedilatildeo de um corpo artiacutestico atravessado de tal forma pelo que o
cerca que sua apresentaccedilatildeo adquire uma essencialidade que tende ao divino A movimentaccedilatildeo
do boneco seria assim uma danccedila que exprime o universo ao inveacutes de um desejo pessoal de
expressatildeo e exibiccedilatildeo Para muitos dos autores encenadores que pensaram o teatro provocados
por Kleist92
a encenaccedilatildeo poderia ser entendida como essa totalidade que unifica e media os
diferentes componentes da cena teatral inclusive o trabalho do ator
A vontade que impulsionava nos primeiros anos do seacuteculo XX criadores em teatro a
obter maior domiacutenio sobre os resultados de seus processos suportada grandemente pelo
desejo de uma afirmaccedilatildeo artiacutestica da obra teatral se valia igualmente de uma leitura do
boneco feita a partir de uma determinada noccedilatildeo de controle Isto se apresentava no contexto
de um embate claro acerca de qual funccedilatildeo seria central para a apresentaccedilatildeo teatral se a
instacircncia de criaccedilatildeo momentacircnea e da relaccedilatildeo direta com a audiecircncia ndash a atuaccedilatildeo ou a da
criaccedilatildeo da apresentaccedilatildeo com pretensotildees de totalidade normalizada de modo a conservar e
repetir seus valores discursivos ndash a autoria do texto e da encenaccedilatildeo Helga Finter trata dessa
questatildeo a partir da construccedilatildeo de uma imagem eficiente para a cena normalizada
A cena como maacutequina de escrever superdimensionada cujo teclado possui
fios de arame postados diante dos olhos do autor-encenador encaminham
seus pensamentos que se organizam no espaccedilo eis uma utopia de teatro que
o futuro reserva Esse desejo de escritura dentro do espaccedilo se manifestaraacute
primeiramente atraveacutes de uma nova ideacuteia de corpo do ator Deste modo o
ator biomecanicizado taylorizado distanciado povoaraacute os projetos de um
novo teatro de Craig a Meyerhold dos futuristas a Brecht (FINTER 1991
p 25 ndash traduccedilatildeo minha)
A discussatildeo acerca da adoccedilatildeo da marionete como modelo pedagoacutegico para o ator de
um teatro em transformaccedilatildeo encontra apoio em outras questotildees que natildeo apenas a de uma
determinada leitura do efeito de controle A discussatildeo que Meyerhold levanta acerca do
ldquoTeatro de feirardquo93
assim o atesta Mas salta aos olhos o quanto a ideacuteia do boneco eacute
empregada para sugerir controle ndash do artista sobre seu corpo e seus recursos expressivos mas
principalmente da instacircncia criadora da unidade artiacutestica do espetaacuteculo teatral sobre os
elementos dispostos em cena Finter chega a mencionar os usos de corpos marionetizados em
performances poliacuteticas de estados totalitaacuterios (paradas e comiacutecios nazi-fascistas e stalinistas)
como aacutepice sombrio da apropriaccedilatildeo e desfiguraccedilatildeo espetacularizante do corpo humano (idem
p26) Seria possiacutevel aqui identificar um tipo de pensamento que associa o boneco ao uso do
92
Beltrame menciona em seu trabalho Maurice Maeterlink Alfred Jarry e Vsevolod Meyerhold Mas seria
possiacutevel adicionar a essa lista os nomes de Federico Garcia Lorca Michel de Ghelderode e Oskar Schlemmer 93
Mencionada no primeiro capiacutetulo desta tese (p 28)
202
corpo em espetaacuteculo como massa a serviccedilo de um poder que o desfigura e o reorganiza em
brasotildees frases e siacutembolos
Ocorre que se por um lado eacute liacutecito pensar ndash e empregar ndash o boneco como modelo de
reformulaccedilatildeo do comportamento do ator ndash e do indiviacuteduo ndash a partir do entendimento de um
controle normalizador disciplinar e unidirecional natildeo se pode ignorar outras potecircncias de
significaccedilatildeo e atuaccedilatildeo do boneco teatral que satildeo de fato regidas pela ambiguidade e pela
subversatildeo
Tillis alcanccedila uma questatildeo fundamental apresentada pelo teatro de animaccedilatildeo ao
comentar uma produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste para a Sinfonia Claacutessica
de Sergei Prokofieff Para essa apresentaccedilatildeo o puacuteblico se depara com uma caixa de cena em
estilo rococoacute postada dentro do palco e diante dela uma plateia vestida agrave moda do seacuteculo
XVII silenciosamente postada de costas para o puacuteblico e tambeacutem uma orquestra igualmente
virada em direccedilatildeo agrave abertura da cena Reproduzo aqui a citaccedilatildeo que Tillis extrai da descriccedilatildeo
feita pelo diretor da companhia Peter Moacutelnar Gaacutel
Num palco de corte em estilo rococoacute (o palco dentro do palco) os bonecos
apresentam uma comeacutedia italiana tradicional com riacutegido convencionalismo
O teacutedio artificial e cortecircs eacute entretanto quebrado repetidas vezes pelas
apariccedilotildees [do boneco] de um gato no palco dentro do palco Ante essa visatildeo
um cachorrinho de madame mimado [pertencente a um ldquoespectadorrdquo e
presumivelmente vivo agrave sua proacutepria maneira] se enfurece e comeccedila uma luta
Os dois animais perseguindo-se vatildeo gradualmente destruindo esse mundo de
arte forjado Varas de luz satildeo quebradas as pernas do palco caem
instrumentos satildeo destruiacutedos de modo a revelar seus componentes mecacircnicos
no fosso da orquestra ateacute um espectador com uma peruca branca [que
imaginaacutevamos ser vivo] eacute abatido de modo a revelar que natildeo eacute senatildeo uma
casca oca devorada por cupins um boneco vazio (Gaacutel apud TILLIS 1992
p 165)
Tillis pauta seu comentaacuterio acerca da apresentaccedilatildeo da companhia de Budapeste pelo efeito
que esta produz em termos de desfazer as certezas do puacuteblico entre o que seria real Esse
golpe de certa forma investe muito mais em apresentar certa incerteza acerca da proacutepria
natureza da realidade do que tratar de questotildees de dominaccedilatildeo e controle A questatildeo do
controle se chega a ser em algum momento apresentado pela apresentaccedilatildeo apenas se daacute para
ser em seguida destruiacuteda por um ataque irocircnico e desnorteante que investe sobre uma
consideraccedilatildeo da realidade como algo transitoacuterio se natildeo enganoso
Por isso e por outras questotildees o boneco deixa de ser uma metaacutefora integral para o
comportamento fanaacutetico ou subordinado uma vez que haacute diversos elementos que
caracterizam a sua apresentaccedilatildeo (expressatildeo fixa gestualidade caracteriacutestica revelaccedilatildeo dos
203
meios de manipulaccedilatildeo teatralidade inerente) que tematizam a natureza da realidade e que satildeo
capazes de questionar seus meios de controle mesmo enquanto estes se exercem sobre ele
Nesse sentido pode ser possiacutevel desdobrar a dualidade da opalizaccedilatildeo jurkowskiana ndash objeto
inerte vida imaginada ndash a partir da suposiccedilatildeo de uma loacutegica de controle ndash sou comandado
comando94
e que se desdobra em real ndash irreal
Eis que assim o boneco entendido como corpo subordinado controlado traraacute como
resultado da sua proacutepria dinacircmica de apresentaccedilatildeo o democircnio transgressor dos chistes
licenciosos em praccedila puacuteblica da inversatildeo dos valores de morte e sexo da violecircncia cocircmica e
da suplantaccedilatildeo dos limites da mortalidade Pois que o boneco natildeo eacute capaz de transmitir a
subordinaccedilatildeo a uma dominaccedilatildeo sem deixar em resiacuteduo a impressatildeo de uma dominaccedilatildeo
efetuada em sentido contraacuterio ou ateacute mesmo a apreensibilidade de um fluxo estaacutevel de
dominaccedilatildeo
O boneco opaliza o proacuteprio fluxo de dominacircncias na produccedilatildeo de indeterminaccedilotildees de
controle O boneco se impotildee ao operador para que ambos sejam o que podem ser em cena
Natildeo haacute hierarquias visiacuteveis nem passiacuteveis de suportar uma reflexatildeo mais detida
Retorno aqui ao artigo de Helga Finter quando este trata da tendecircncia agrave maquinizaccedilatildeo
dos corpos de atores e bailarinos verificada a partir dos anos 1970 mas o faz partindo de um
olhar que a diferencia das apropriaccedilotildees em prol dos discursos totalitaristas Finter defende que
a mecanizaccedilatildeo dos corpos no teatro da poacutes-modernidade (seu estudo se encontra centrado nos
trabalhos dos encenadores Robert Wilson e Richard Foreman) se opotildee agrave dominaccedilatildeo totalitaacuteria
no sentido em que o espetaacuteculo outorga ao espectador uma liberdade de leitura que desmonta
os impositivos dos discursos de dominaccedilatildeo
A partir das accedilotildees fornecidas o espectador cria um espaccedilo que dobra a cena
que ele tem diante dos olhos ele a transforma construindo outra cena da
percepccedilatildeo onde o teatro acontece sem ser um lugar preciso O teatro propotildee
assim uma dioacuteptrica que interroga a faculdade do olhar que ouve e a de
ouvir com os olhos (FINTER 1991 pp 26-7)
Supor que o comportamento maquiacutenico dos corpos de atores e bailarinos nos espetaacuteculos de
Wilson e Foreman mencionados por Finter se relaciona de alguma forma com um aspecto de
marionetizaccedilatildeo eacute tambeacutem propor um entendimento desse efeitoprocesso de modo diferente
complementar talvez ao que Beltrame identifica como sendo a marionetizaccedilatildeo do ator Se
para o teatro da virada do seacuteculo XX havia importacircncia em associar o ator agrave marionete com
94
Jaacute foi mencionada a questatildeo da construccedilatildeo de uma impressatildeo de autonomia como sendo um preceito
linguiacutestico importante ao teatro de animaccedilatildeo Natildeo haacute de fato como inserir uma forma animada em uma cena
teatral sem conferir-lhe certa capacidade de transgressatildeo
204
vistas a propor uma atitude de atuaccedilatildeo onde se percebe maior subordinaccedilatildeo a outras instacircncias
de constituiccedilatildeo da cena a partir de certo momento mais aproximado agrave virada do seacuteculo XXI e
aleacutem pode-se supor que a noccedilatildeo de marionetizaccedilatildeo ou mesmo de objetualizaccedilatildeo do ator eacute
algo que versa sobre a representaccedilatildeo de uma identidade em movimento sobre uma abertura
perceptiva que natildeo eacute manipulada por efeito de uma dominaccedilatildeo mas que se oferece a
manipulaccedilotildees variadas ndash com os sentidos do espectador desempenhando um papel
fundamental ndash com vistas a ampliar-se a pluralizar-se a opalizar-se
Retornando aos exemplos da atriz iccedilada em Peer Gynt e aos bailarinos transformados
em morro de Philippe Genty mas tambeacutem lembrando dos bonecos fundidos aos corpos dos
atores no trabalho de Hugo Suarez e Inecircs Pasic e de Histoacuteria de lenccedilos e ventos com seus
tecidos papeacuteis atores e formas combinadas eis que a cena de animaccedilatildeo natildeo se esquiva em
transformar em marionete o que nela estiver Todo corpo toda mateacuteria posta em cena num
contexto de animaccedilatildeo eacute marionetizado (tornado marionete) por um efeito de estranhamento
que desloca a coisa da sua leitura habitual para em seguida confrontar essa leitura com novos
sentidos que satildeo adquiridos no contexto da apresentaccedilatildeo Parece natildeo haver potecircncia de
significaccedilatildeo em animaccedilatildeo que natildeo lide com a ambiguidade ontoloacutegica posta na percepccedilatildeo
simultacircnea de objeto inerte e vida imaginada
O pensamento de uma cena de animaccedilatildeo composta por diversos elementos
marionetizados em detrimento agrave identificaccedilatildeo de um boneco ou forma animada definida em
limites formais e potecircncia de significaccedilatildeo nos leva novamente ao iniacutecio deste trabalho
quando se discutia o suposto desaparecimento dos bonecos no teatro de bonecos Se o estatuto
do boneco teatral se alterou a ponto de abrigar virtualmente tudo o que se apresenta sobre a
cena em termos de potecircncia metafoacuterica a cena de animaccedilatildeo torna mais agudos os seus
caracteres vitalistas
A professora Cariad Astles trata de como o teatro de animaccedilatildeo afirmou-se
transdisciplinar a partir daquilo que ela chama de ldquoperda do corpo do bonecordquo (2008) Nesse
processo a crescente visibilidade do ator operador faz aderir a sua percepccedilatildeo o entendimento
desse boneco cujo corpo perdeu-se
Com esse crescimento da visibilidade do bonequeiro os significados no
teatro de bonecos passaram a se relacionar com a ideacuteia de criaccedilatildeo e
transformaccedilatildeo no palco mais do que com a ficccedilatildeo dos bonecos enquanto
personagens [] No entanto o aspecto mais importante de ser observado
natildeo eacute de ver o bonequeiro como animador mas de vecirc-lo como um entre
vaacuterios corpos animados Sem duacutevida mais do que estar no comando o
bonequeiro com frequecircncia parece ser dominado e estar agrave mercecirc dos corpos
animados agrave sua volta (idem 2008 p56)
205
Essa equivalecircncia no modo de se perceber o corpo do ator sobre a cena de animaccedilatildeo faz com
que Astles mencione as teorias animistas que atribui certa qualidade de vida a tudo o que nos
cerca Essa teoria vai ao encontro tambeacutem com a consideraccedilatildeo do lugar do homem no
mundo agrave luz das mais recentes posturas de conservacionismo ambiental e sustentabilidade
planetaacuteria para as quais o ser humano eacute apenas parte de uma cadeia de relaccedilotildees vitais
deixando de ser visto num lugar de dominaccedilatildeo sobre a natureza criada para servi-lo
Uma demonstraccedilatildeo do focirclego dessa temaacutetica para as artes contemporacircneas estaacute na
obra de James Cameron de 2009 o filme Avatar que apresenta a fantasia de um ecossistema
utoacutepico o planeta Pandora no qual suas formas de vida se conectam em encaixes neurais por
meio dos quais se acessa uma espeacutecie de consciecircncia compartilhada O nome do planeta eacute
sugestivo pois evoca algo ndash a caixa de Pandora ndash que deve permanecer encerrado em si
mesmo e para o que qualquer interferecircncia externa pode ser desastrosa Tambeacutem remete no
que se refere ao tema da interdependecircncia entre as coisas a um poder que natildeo se exerce na
separaccedilatildeo das individualidades mas na afirmaccedilatildeo do conjunto e na inexistecircncia de um poder
estaacutevel
Mas a discussatildeo mais interessante que o filme reserva agrave condiccedilatildeo atual do teatro de
animaccedilatildeo estaacute num dos seus mecanismos de maior efeito visual apresentada sob a forma dos
corpos clonados dos habitantes do referido planeta que satildeo habitados pelas consciecircncias dos
exploradores humanos por meio de um aparato tecnoloacutegico de controle O recurso atrai a
atenccedilatildeo ainda por que apresenta mecanismos de controle de corpos virtualizados que se datildeo
paralelamente na trama do filme e no seu proacuteprio processo de feitura na qual os atores
representavam juntamente com versotildees de seus corpos feitos em computaccedilatildeo graacutefica O
processo foi convenientemente incorporado agraves estrateacutegias de divulgaccedilatildeo do filme e
amplamente explorado pela imprensa em mateacuterias de bastidores A operaccedilatildeo da imagem
virtualizada tanto por teacutecnicos de efeitos visuais quanto pelos proacuteprios atores e o
detalhamento das personagens em computaccedilatildeo graacutefica (para as quais se pocircde atribuir sutilezas
de expressotildees faciais ainda natildeo vistas nesse tipo de animaccedilatildeo) chamam atenccedilatildeo para uma
qualidade de desdobramento corporal que apresenta algumas semelhanccedilas com o recurso
explorado pela ficccedilatildeo Pode-se dizer assim que natildeo satildeo apenas as personagens do filme que se
desdobram fisicamente em seus ldquoavataresrdquo isto tambeacutem ocorre com os atores
Neste ponto reencontramo-nos com a reflexatildeo de Astles acerca das novas formas de
constituiccedilatildeo corporal do boneco teatral no ponto em que esta indica a grande incidecircncia de
criaccedilatildeo e exploraccedilatildeo e corpos hiacutebridos resultados de combinaccedilotildees de materiais de
complementos corporais de intervenccedilotildees do corpo do animador sobre o objeto e vice-e-versa
206
Como jaacute foi mencionado neste trabalho tambeacutem Astles chama a atenccedilatildeo para a disposiccedilatildeo do
debate acerca de identidades que se apreende a partir do emprego desse recurso Para Astles a
heterogeneidade no emprego de materiais e formas para apresentar o boneco natildeo se presta
apenas para ldquotestar entendimentos culturais do corpo humanordquo (idem p 60) mas remete
especialmente ao entendimentos atuais de corpo e identidade como algo inseparaacutevel agrave
equipagem e agraves teacutecnicas de ornamento que se verificam e prosperam nos dias de hoje As
teacutecnicas de transformaccedilatildeo corporal com objetivos esteacuteticos e emblemaacuteticos (cirurgias
tatuagens percings implantes) assim como os dispositivos tecnoloacutegicos de comunicaccedilatildeo
(computadores chips telefones moacuteveis multifuncionais meacutetodos de operaccedilatildeo remota)
ampliam o alcance da percepccedilatildeo e da visibilidade do indiviacuteduo permitindo ateacute
desdobramentos virtuais e auto-ficcionalizaccedilotildees que podem ocorrer em ambientes de jogo e
vida virtual95
ou ateacute mesmo em redes sociais online Assim o boneco perde um corpo
apreensiacutevel e estaacutevel na medida em que joga com leituras possiacuteveis de uma corporalidade
individual cada vez mais composta e projetada Astles complementa essa ideacuteia da seguinte
maneira
O corpo do boneco pode ser visto como emblemaacutetico da mortalidade
vulneraacutevel e destrutiacutevel mas intrinsecamente ligado ao universo da mateacuteria e
das memoacuterias duradouras que restam nas coisas Nesse tipo de teatro o
boneco perdeu todos os vestiacutegios de si mesmo enquanto personagem ou
como algo completo O corpo do boneco transformou-se em identificaccedilatildeo
(idem)
Quando se comenta ao longo deste trabalho que se operou uma mudanccedila de estatuto no que
se pode considerar o boneco teatral natildeo se pode ignorar o quanto essa possiacutevel mudanccedila eacute
capaz de repor em jogo os modos como o boneco metaforiza o humano em diversas de suas
condiccedilotildees existenciais No campo de batalha das potecircncias significativas as cordas (ou
bastotildees luvas feixes de luz discursos e demais atribuiccedilotildees possiacuteveis) perdem o caraacuteter de
amarra controladora para tornar-se cada vez mais outro tipo de viacutenculo No jogo da
representaccedilatildeo conjunta e natildeo-harmocircnica dos corpos desdobrados boneco e ator satildeo
componentes de uma estrutura ideogramaacutetica elementos autocircnomos que se combinam para a
produccedilatildeo de uma leitura diversa e ampliada (EISENSTEIN 2002 p 35) que diz em
conjunccedilatildeo mas que se recusa a produzir um uniacutessono
95
Exemplos disso satildeo ambientes de experiecircncia virtual como o Second Life ltwwwsecondlifecomgt e jogos
MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-Palying Game ndash Jogo de interpretaccedilatildeo de personagens online e em
massa) tais como World of Warcraft da empresa Blizzard Entertainment
207
Figura 101 Compagnie Philippe Genty Voyageurs Immobilles
Fonte (httpwwwscenewebfr201006philippe-genty-en-tournee-avec-voyageurs-immobiles)
Foto Pascal Franccedilois
208
4 CONCLUSOtildeES
O palco apesar de contar com a figura humana inteira em cena
tem a mais complexa de todas as tarefas a de transcender o
corpo
Gerald Thomas
Estivemos ao longo do uacuteltimo capiacutetulo tratando da questatildeo de criaccedilatildeo e da
apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo como sendo decorrecircncia das possibilidades relacionais e
de significaccedilatildeo entre o boneco ou forma animada e o artista que atua com ela (seja por meio
de uma accedilatildeo de controle ou pelo estabelecimento de um ato relacional) A dinacircmica e a
capacidade de estabelecimento de um tipo de tensatildeo produtora de efeitos opalizantes entre
esses dois agentes da cena de animaccedilatildeo componentes daquilo que este trabalho escolheu
chamar de organismo performativo combinado deflagra uma seacuterie de embates revelando em
seus processos de constituiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo algo que resolvemos tratar como sendo campos
de batalha ou seja espaccedilos de disputa ou fendas de visibilidade da ambiguidade estrutural do
boneco em animaccedilatildeo que revelam os atritos entre ator e objeto e fazem desses atritos pontos
de interesse do observador e de exploraccedilatildeo das possibilidades expressivas e de significaccedilatildeo da
linguagem teatral da animaccedilatildeo
Este momento do trabalho tem por objetivo buscar uma loacutegica integradora capaz de
relacionar os principais apontamentos produzidos no decurso das duas reflexotildees que o
compotildeem Eacute sobretudo o momento de se buscar a confirmaccedilatildeo da colaboraccedilatildeo reflexiva que
sempre julguei existir entre o esforccedilo de entender as funccedilotildees e as configuraccedilotildees do artista de
animaccedilatildeo no panorama atual do teatro brasileiro e a compreensatildeo dos embates relacionais
entre ator e forma que moldaram a configuraccedilatildeo da linguagem da animaccedilatildeo como esta vem
sendo percebida e praticada
Portanto sobrepondo-se ao trabalho de separaccedilatildeo e identificaccedilatildeo daquelas que
podemos chamar de as conclusotildees possiacuteveis a este percurso reflexivo urge que estas sejam
ampliadas e adensadas num exerciacutecio de estabelecimento de conexotildees e relaccedilotildees notaacuteveis
entre os dois percursos Desnecessaacuterio apontar que parte desse trabalho teve iniacutecio na proacutepria
labuta argumentativa enfrentada no interior dos dois capiacutetulos centrais da tese
Se haacute de fato um ponto de partida eficiente para o esforccedilo que agora se empreende
este parece ser com alguma seguranccedila a discussatildeo sobre o alegado desaparecimento do
boneco do teatro de animaccedilatildeo em favor de uma participaccedilatildeo crescente de um operador de
formas cada vez mais consciente das qualidades de atuaccedilatildeo que aciona e que de acordo com
as criacuteticas de Feacutelix e Jurkowski se apresenta mais propenso a dispensar o boneco em favor de
209
uma atuaccedilatildeo centrada no ator De fato o crescente aproveitamento dos recursos expressivos
do ator de animaccedilatildeo em cena que vem sendo apontado como caracteriacutestica importante das
investigaccedilotildees teacutecnico-linguiacutesticas do teatro de animaccedilatildeo brasileiro desde meados da deacutecada de
1970 (remontando a um pouco antes em paiacuteses da Europa e nos Estado Unidos) parece surgir
como um desejo de criaccedilatildeo de uma cena de animaccedilatildeo com possibilidades de expressatildeo
ampliadas O que se verifica eacute que a presenccedila e a expressividade do ator no teatro de
animaccedilatildeo desempenha uma funccedilatildeo importante nesse processo de criaccedilatildeo de uma cena mais
surpreendente e heterogecircnea Pode-se dizer do ator sobre a cena de animaccedilatildeo
apressadamente que este eacute um elemento de cataacutelise capaz de transformar a disposiccedilatildeo
heterogecircnea do moderno teatro de animaccedilatildeo numa composiccedilatildeo espetacular harmocircnica e
inteligiacutevel Pode-se ateacute mesmo negligenciar a reflexatildeo acerca do que seriam de fato essa
harmonia e inteligibilidade e acerca da necessidade da existecircncia de um agente desses
atributos para a produccedilatildeo de sentido em um espetaacuteculo teatral posto que essa suposiccedilatildeo se faz
problemaacutetica sob diversos outros aspectos Seguimos entatildeo com a evidecircncia de que a
exposiccedilatildeo do ator operador de formas pode ser entendida muito mais como um mecanismo de
provocaccedilatildeo de tensotildees e de cisotildees perceptivas do que propriamente como um agente a favor
de uma percepccedilatildeo harmonizada O ator posto agrave vista natildeo torna os corpos iacutentegros ele
participa de uma dinacircmica perceptiva de separaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo Isto se mostra nos corpos
compartilhados do Teatro Hugo e Inecircs na alternacircncia de modos de apresentaccedilatildeo das
personagens da PeQuod na atenccedilatildeo que o ator operador deposita sobre o boneco de modo a
conduzir o olhar da plateia Dessa afirmaccedilatildeo podemos com alguma seguranccedila discordar de
Tillis quando este propotildee que ldquosob os signos apresentados pelo ator a audiecircncia natildeo consegue
deixar de ver uma pessoa vivardquo (TILLIS 1992 p82) Talvez a plateia natildeo consiga deixar de
reconhecer alguns elementos da vitalidade inerente ao ator vivo mas creio jaacute termos
evidecircncia suficiente para declarar que essa percepccedilatildeo de vida ainda que inevitaacutevel em certos
aspectos natildeo eacute capaz de negar a produccedilatildeo de uma percepccedilatildeo em sentido contraacuterio que
estranha o corpo do ator em cena e lhe confere caracteriacutesticas de objeto Deste entendimento
decorre que o ator tanto em sua qualidade de propulsor da atividade manipulativa da
animaccedilatildeo quanto nas impressotildees que a sua exibiccedilatildeo sobre a cena de animaccedilatildeo produz eacute
tragado para dentro daquilo que o puacuteblico iraacute entender com forma animada Se eacute possiacutevel
reconhecer a exposiccedilatildeo qualificada do ator operador como traccedilo marcante nas experiecircncias
recentes em teatro de animaccedilatildeo esta natildeo se daacute no sentido do entendimento exclusivo de uma
valorizaccedilatildeo do trabalho do ator sobre uma cena heterogecircnea (ainda que essa questatildeo apresente
a sua importacircncia) mas sobretudo no sentido do entendimento de que o desejo de afirmar a
210
animaccedilatildeo a partir de um desejo de construccedilatildeo de heterogeneidades impocircs alteraccedilotildees ao
estatuto de percepccedilatildeo e entendimento da forma animada de modo a integrar em sua estrutura
o corpo a accedilatildeo e a subjetividade do ator que (tambeacutem) a opera
Ao lado desse entendimento encontra-se tambeacutem a aceitaccedilatildeo do efeito de opalizaccedilatildeo
(nos termos de Jurkowski) ou de visatildeo-dupla (nos termos de Tillis) como sendo o elemento
central de explicaccedilatildeo da dinacircmica perceptiva da forma animada A percepccedilatildeo do boneco em
apresentaccedilatildeo como sendo um objeto inerte e ao mesmo tempo vida que se imagina produz
uma percepccedilatildeo dinacircmica resultante do embate do envio de estiacutemulos que mesmo
contraditoacuterios sustentam a apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo O operador exposto amplifica a
percepccedilatildeo da ambiguidade ontoloacutegica do boneco posto que a imaginaccedilatildeo da autonomia eacute
sistematicamente perturbada pela visatildeo da origem do movimento
Contudo essa visibilidade amplifica tambeacutem o entendimento do ator como parte da
estrutura da forma animada Da vida imaginada ao objeto que emerge da dinacircmica relacional
entre forma e operador resulta tambeacutem alguma objetualizaccedilatildeo do ator que pode se dar por
meio dos recursos de focalizaccedilatildeo que por vezes concedem ao boneco a centralidade da cena
obrigando o ator a dosar a sua expressividade por meio da divisatildeo da expressividade entre
ator e forma que faz do ator parte da expressatildeo de uma subjetividade ficcional por meio do
compartilhamento de partes do corpo com a forma animada indefinindo limites e
estabelecendo desdobramentos corporais ou mesmo por meio do emprego de recursos de
narraccedilatildeo que posicionam o ator num lugar claramente exterior ao centro da accedilatildeo de onde
controla ou eacute controlado pela exposiccedilatildeo verbal da histoacuteria que a peccedila conta
Mas podemos tambeacutem nos deparar com recursos mais radicais de objetualizaccedilatildeo do
ator na cena de animaccedilatildeo que eacute quando este se comporta ou eacute levado pelas circunstancias da
cena a comportar-se como objeto Comentamos o exemplo da atriz que eacute iccedilada durante Peer
Gynt da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo mas podemos recorrer a uma grande variedade de
exemplos similares como os jogos de ilusionismo de Phillip Genty que datildeo a impressatildeo de
transformar bailarinos em silhuetas em Fin des Terres as coberturas proteacuteticas de Ilka
Schoumlnbein que restringem os movimentos da atriz de modo a forccedilar uma movimentaccedilatildeo
maquinal e os grandes objetos de vestir existentes em Coquetel Clown da XPTO que produz
sobre a cena corpos expandidos e multicoloridos
Parece entatildeo que o ator seu corpo e sua potecircncia expressiva se torna material para
construccedilatildeo de bonecos Essa consideraccedilatildeo enriquece a cena e as possibilidades de
entendimento das dinacircmicas de animaccedilatildeo Vejamos agora como tratar da expressividade do
ator com sendo material de criaccedilatildeo de formas animadas jaacute foi dito a respeito da importacircncia
211
do movimento para o ato de animar e tambeacutem de como natildeo se pode restringir o entendimento
desse movimento a deslocamentos e atividades articulares Optou-se por ampliar o conceito
apresentado por Tillis de movimento impliacutecito de modo a supor que a participaccedilatildeo qualificada
em uma trama espetacular eacute por si soacute produtora e reveladora de um impulso participante da
narrativa espetacular Ampliamos agora um pouco mais esse entendimento ao propor que a
dinacircmica de direcionamentos focais contidas na apresentaccedilatildeo do ator (e tambeacutem em recursos
teacutecnicos como os de som e de luz) pode determinar certa qualidade de movimento agrave forma
como tambeacutem qualifica essa forma em sua relaccedilatildeo com a trama espetacular Se recordarmos
do exemplo da cena com o manequim em Isto natildeo eacute um cachimbo da Cia Truks pode-se
perceber que a qualidade de inserccedilatildeo do objeto na cena natildeo se daacute apenas por meio de
produccedilatildeo de deslocamentos giros e ativaccedilotildees articulares mas tambeacutem em acordos relacionais
sutis como a busca por uma troca de olhares e quando se busca produzir um espelhamento de
atitudes entre o objeto e a atriz
O entendimento de que o ato de animar natildeo se relaciona obrigatoriamente com a
produccedilatildeo de um deslocamento ou de uma atividade articular natildeo apenas amplia a variedade
das possiacuteveis configuraccedilotildees do boneco teatral como tambeacutem amplia os entendimentos do ato
de animar ateacute possibilidades mais sutis e variadas de jogos relacionais entre ator e objeto Eacute
exatamente por esse motivo que este trabalho reconhece no operador de formas qualidades
operativas proacuteprias da atuaccedilatildeo e no princiacutepio do foco o elemento teacutecnico-conceitual
fundamental a partir do qual se desdobram e se desenvolvem as possibilidades para a
fundaccedilatildeo de uma gramaacutetica ampla e precisa do trabalho do ator de animaccedilatildeo em ambientes
multidisciplinares
Dentre os diversos entendimentos e usos da focalizaccedilatildeo arrolados neste trabalho
aquele que se define por meio da sugestatildeo de direcionamento da atenccedilatildeo do espectador como
produccedilatildeo das ecircnfases que organizam a narrativa da cena iraacute se relacionar com um princiacutepio
tambeacutem considerado fundamental quando se trata de atuaccedilatildeo em animaccedilatildeo que eacute a noccedilatildeo de
transferecircncia de expressividade O ator emprega recursos de expressividade proacutepria para
produzir uma apresentaccedilatildeo que ainda que natildeo busque (e natildeo consiga) em todas as ocasiotildees
transferir integralmente a sua expressividade para a apresentaccedilatildeo do boneco tampouco o faz
solicitando para si mesmo a centralidade da accedilatildeo Esse conceito que ajuda a definir a funccedilatildeo
do artista de animaccedilatildeo ressalta tambeacutem o caraacuteter de atuaccedilatildeo da sua atividade O
reconhecimento de competecircncias e funccedilotildees de atuaccedilatildeo no artista de operaccedilatildeo de formas
animadas parece estar corroborado no levantamento de princiacutepios pedagoacutegicos de escolas
212
dedicadas agrave linguagem da animaccedilatildeo feito por Beltrame (2001)96
dentre os quais figura com
destaque a preocupaccedilatildeo com uma formaccedilatildeo que contemple aspectos do trabalho do ator
Ainda em referecircncia ao trabalho de Beltrame a formulaccedilatildeo de que ldquoteatro de
animaccedilatildeo eacute teatrordquo (idem p 192) empresta agrave reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo do artista de
animaccedilatildeo o entendimento de que este natildeo participa de uma modalidade espetacular separada e
altamente especiacutefica mas sim de uma arte teatral que como tal lida com princiacutepios e efeitos
comuns A afirmaccedilatildeo se relaciona intensamente com outro apontamento do qual se extrai que
ldquoo teatro de bonecos natildeo pode estar confinado em si mesmo como linguagem artiacutesticardquo (idem
p 193) Ao lado de corroborar a natureza eminentemente teatral do teatro de animaccedilatildeo essa
uacuteltima afirmaccedilatildeo lida tambeacutem com a sua vocaccedilatildeo integradora De fato posto que a linguagem
do teatro de animaccedilatildeo se estrutura sobre uma composiccedilatildeo de recursos expressivos que
transitam do teatral ao escultoacuterico aceitando em meio a essa dinacircmica tornar-se um local de
interseccedilatildeo entre diversas outras linguagens expressivas como a danccedila a muacutesica a pintura e as
artes em miacutedias digitais Curioso eacute notar que essa maneira de definir algo que seria demasiado
especiacutefico da linguagem da animaccedilatildeo toca de maneira bastante direta uma compreensatildeo que
se tem a respeito da arte do teatro partindo-se das suas caracteriacutesticas gregaacuterias e associativas
O artista de animaccedilatildeo por meio do direcionamento focal que resulta na transferecircncia
de expressividade encontra o seu especiacutefico na disposiccedilatildeo de ser entendido como objeto
Assim sendo o ator de animaccedilatildeo eacute aquele que se presta a um tipo de operaccedilatildeo manipulativa
seja ela feita por interferecircncia da sua proacutepria dinacircmica de atuaccedilatildeo pelas contribuiccedilotildees da
dinacircmica relacional estabelecida com o objeto ou pela maneira como este se insere em uma
determinada poeacutetica de encenaccedilatildeo
Aqui torna-se inescapaacutevel a consideraccedilatildeo da animaccedilatildeo a como algo desdobrado em si
para em seguida indagarmo-nos acerca da real existecircncia desse desdobramento O teatro de
animaccedilatildeo se caracteriza na sua variedade na sua irresistiacutevel aproximaccedilatildeo com outras
manifestaccedilotildees artiacutesticas na posiccedilatildeo que marca como ponto de encontro de expressividades
combinadas na faacutecil adesatildeo que assume a um ambiente de multidisciplinaridade e de
derrubada de fronteiras artiacutesticas como uma modalidade espetacular especiacutefica e ao mesmo
tempo como uma linguagem que se afirma num movimento de desaparecimento em meio agraves
alternativas expressivas que opera Ou seja o seu especiacutefico eacute o desaparecimento a
indefiniccedilatildeo E isto se afirma com a total consciecircncia de que o panorama atual do teatro de
96
Beltrame realiza para a pesquisa que resulta em sua tese de doutorado estudos relacionados agrave Eacutecole
Supeacuterieure Nationale des Arts de la Marionnette (Charleville-Meacuteziegraveres Franccedila) e da Escuela de Titiriteros del
Teatro General San Martin (Buenos Aires Argentina) aleacutem do levantamento de 18 instituiccedilotildees dedicadas agrave
formaccedilatildeo de profissionais de teatro de animaccedilatildeo em diversos paiacuteses
213
animaccedilatildeo natildeo exclui formatos severamente codificados com traccedilos temas e teacutecnicas
definidos e claros
Assim o teatro de animaccedilatildeo se entende como sendo um gecircnero teatral definido uma
manifestaccedilatildeo espetacular entendida no modo de dar agrave cena elementos que satildeo percebidos
como objetos mas que se escolhe imaginar como sendo agentes autocircnomos e independentes
de uma trama espetacular e ao mesmo tempo uma linguagem ou um conjunto de dispositivos
linguiacutesticos capaz de operar arranjos transdisciplinares sobre a cena teatral A discussatildeo se
estende ateacute o ponto em que se reconhece qualidades teatrais em todas as manifestaccedilotildees do
boneco como este eacute definido neste trabalho de modo a supor que mesmo as modalidades mais
tradicionais e codificadas do teatro de animaccedilatildeo (ou de bonecos) seriam a princiacutepio teatro
para as quais os recursos linguiacutesticos da animaccedilatildeo assumiriam alguma hegemonia em meio
aos recursos de constituiccedilatildeo da cena
Parece que essa percepccedilatildeo do teatro de animaccedilatildeo como uma linguagem sem aderecircncia
obrigatoacuteria a um estilo ou a um formato espetacular adquire maior radicalidade nas
experiecircncias de encenaccedilatildeo verificadas a partir da segunda metade do seacuteculo XX
desencadeando um movimento de matildeo dupla no qual natildeo se consegue ver ndash porque de fato
natildeo haacute ndash uma lideranccedila em termos de vontade artiacutestica ao passo que encenadores buscaram
acionar mais e mais elementos e dispositivos linguiacutesticos caros (por desejo ou coincidecircncia)
ao teatro de animaccedilatildeo muitos artistas de teatro de bonecos se imbuiacuteram de um desejo de
integraccedilatildeo de possibilidades expressivas forccedilando os limites da linguagem ateacute um ldquoponto de
encontrordquo de possibilidades expressivas O ambiente geral de questionamento acerca dos
limites entre as artes torna esse um movimento sem liacuteder ou ponto de partida Cada vez mais o
teatro de animaccedilatildeo eacute teatro posto que a proacutepria tendecircncia ao desaparecimento em meio aos
cruzamentos linguiacutesticos que se verifica nas suas caracteriacutesticas estruturais natildeo lhe eacute
exclusiva ou melhor derruba a rigidez dos formatos consagrados para mostra-lo sobre toda
cena em que se pretender acionar qualquer dos seus princiacutepios de linguagem
E assim reafirma-se o emprego do termo teatro de animaccedilatildeo em detrimento a outras
terminologias que subordinam a linguagem agrave presenccedila de um objeto especiacutefico O estatuto
ampliado do boneco teatral (ou da forma animada) que aqui se defende eacute aquele que entende
essa forma como resultado obrigatoacuterio do ato relacional estabelecido entre ator e objeto Essa
leitura permite o vislumbre de um boneco feito de materiais reagrupaacuteveis de combinaccedilotildees
transitoacuterias e de corpos criados a partir de conduccedilotildees de atenccedilatildeo (como no caso das jaacute
mencionadas Puces savantes) Da mesma maneira permite o entendimento de um ator
tornado objeto por meio de uma dinacircmica perceptiva que integra corpos e funccedilotildees O ator de
214
animaccedilatildeo passa assim a ser um ator de teatro marcado por uma multicorporalidade que o
permite desdobrar-se desaparecer e tornar-se objeto tudo isso como meio e resultado do ato
de animar
No que diz respeito ao ator no teatro de animaccedilatildeo parece justo afirmar tratar-se de um
artista diante de uma evidente demanda de atuaccedilatildeo que se caracteriza e se amplia em dois
sentidos complementares O primeiro deles eacute aquele que lida com a linguagem da animaccedilatildeo
entendida como definida e especiacutefica Parte do princiacutepio teacutecnico-conceitual da projeccedilatildeo de
expressividade e lida com capacidades de direcionamento focal apenas para citar os preceitos
mais abordados neste trabalho o segundo sentido eacute inalienaacutevel ao primeiro e trata justamente
da dinacircmica de interfaces artiacutesticas que define a linguagem da animaccedilatildeo e que entende o
artista de animaccedilatildeo como sendo um algueacutem instado a promover encontros entre linguagens e
competecircncias teacutecnico-artiacutesticas Nesse sentido o que se observa dentro das companhias eacute uma
demanda por artistas capazes de trabalhar natildeo apenas no entendimento da estrutura da cena
que lhe permita conduzir o fluxo de atenccedilotildees de modo consciente e dominado mas tambeacutem
de artistas capazes de operar com propriedade e autonomia os cruzamentos linguiacutesticos
solicitados pela proacutepria cena de animaccedilatildeo
Tratar do animador posto agrave vista no teatro de animaccedilatildeo do momento atual eacute tratar de
maneira obrigatoacuteria dos desafios teacutecnicos e dramatuacutergicos impostos a um artista disposto a
dominar e conduzir os fluxos de atenccedilatildeo com autonomia e criatividade num processo de
produccedilatildeo de indefiniccedilotildees formais e expressivas entre operador e forma
215
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Propostas metodoloacutegicas para o trabalho do ator 2005 Tese (Doutorado em Teatro) ndash
Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Arte (CLA) Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro
BELTRAME Valmor Animar o inanimado a formaccedilatildeo profissional no teatro de
bonecos 2001 Tese (Doutorado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes Cecircnicas (CAC)
Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP) Satildeo Paulo
CASTRO Kelly Elias de O ator no teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo trajetoacuterias rumo
agrave criaccedilatildeo da cena 2009 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes
Cecircnicas (CAC) Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP)
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do teatro de animaccedilatildeo 2001 Tese (Doutorado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes
Cecircnicas (CAC) Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP)
Satildeo Paulo
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Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Artes (CLA) Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro
VIEIRA Miguel Vellinho Ilo Krugli e a construccedilatildeo de um novo espaccedilo poeacutetico para o
teatro infantil no Brasil 2008 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teatro) ndash Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Artes (CLA) Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro
222
Entevistas
KRUGLI Ilo Entrevista com Ilo Krugli especial para a Revista Mamulengo entrevista
[maio de 1984] Mamulengo Revista da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos ano 11
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RIBAS Marcos Caetano amp RIBAS Rachel ldquoNatildeo quero bater papo aqui forardquo entrevista [24
de outubro de 2009] Satildeo Paulo Suplemento de saacutebado do Jornal Brasil Econocircmico pp 27-
32 Entrevista concedida a Phydia de Athayde
VARGAS Sandra amp VELLINHO Miguel Sobrevento mudando os rumos do teatro de
animaccedilatildeo entrevista Folhetim n8 Rio de Janeiro set-dez de 2000 pp 60-92 Entrevista
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Programas de espetaacuteculos eventos e portfoacutelios
Programa do evento 10 Anos de Ventoforte 1984
Programa do espetaacuteculo Museu Rodin Vivo Satildeo Paulo SESC Ipiranga julho de 1995
Programa do espetaacuteculo Em Concerto Paraty Contadores de Estoacuterias 1998
O Teatro do Sobrevento Satildeo Paulo Grupo Sobrevento 2004
Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009
Bunraku Teatro tradicional de Bonecos do Japatildeo Fundaccedilatildeo JapatildeoSociedade Cultura
Artiacutestica 2002
Webites e Weblogs
A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos lthttpwwwcaixadoelefantecombrgt
Catibrum Teatro de Bonecos lthttpwwwcatibrumcombrgt
CBTIJ ndash Centro Brasileiro de Teatro para a Infacircncia e Juventude lt httpwwwcbtijorgbrgt
Clube da sombra Cia Teatro Lumbra lthttpwwwclubedasombracombrgt
Cia Truks Teatro de Bonecos lthttpwwwtrukscombrgt
Giramundo Teatro de Bonecos lthttpgiramundoorggt
Grupo Contadores de Estoacuterias lthttpwwwecparatyorgbrindexhtmgt
223
Grupo Sobrevento lthttpwwwsobreventocombrgt
Morpheus Teatro lthttpwwwmorpheusteatrocombrgt
Intercacircmbio PeQuod e Caixa do Elefante 2001 lthttpcaixadoelefantepequod2011
blogspotcomgt
IPM ndash International Puppetry Museum lthttppuppetrymuseumorggt
Pequod ndash Teatro de Animaccedilatildeo ltwwwpequodcombrgt
XPTO Brasil lthttpwwwxptobrasilcomgt
Viacutedeos
GRUPO CONTADORES DE ESTOacuteRIAS TEATRO ESPACcedilO Grupo Contadores de
estoacuterias O teatro de bonecos de Paraty [Filme-viacutedeo] Realizaccedilatildeo Grupo Contadores de
Estoacuterias e Teatro Espaccedilo Paraty Espaccedilo Cultural Paraty 2009 1 disco DVDNTSC 104
min Color Son
RIBEIRO Mariacutelia Andreacutes SILVA Fernando Pedro da TAVARES Mariana Giramundo
Um histoacuteria de tiacuteteres e marionetes [Filme-viacutedeo] Coordenaccedilatildeo de projeto de Mariacutelia
Andreacutes Ribeiro e Fernando Pedro da Silva direccedilatildeo e roteiro de Mariana Tavares Belo
Horizonte CArte sd 1 cassete VHSNSTC 25 min Color Son
Peer Gynt Cia PeQuod de Teatro de animaccedilatildeo (110 min) 2006 DVD
Enciclopeacutedias e dicionaacuterios
JURKOWSKI Henryk amp FOUC Thieri (orgs) Encyclopeacutedie mondiale des arts de la
marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009
PAVIS Patrice Diccionario del teatro dramaturgia estetica e semiologia (1ordf edicioacuten)
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224
ANEXO A
RUMO A UMA
ESTEacuteTICA DO
BONECO
O BONECO COMO ARTE TEATRAL
Steve Tillis
Traduccedilatildeo de Mario Ferreira Piragibe
225
Ao meu avocirc materno Jacob Gelfland
226
SUMAacuteRIO
Prefaacutecio p 225
Introduccedilatildeo p 226
PARTE I DEFININDO E EXPLICANDO O BONECO
1 Definiccedilotildees consagradas p 237
2 Explicaccedilotildees consagradas p 250
3 Uma nova base para definiccedilatildeo e explicaccedilatildeo p 277
PARTE II DESCREVENDO O BONECO
4 Descriccedilotildees consagradas p 301
5 Uma nova base para descriccedilatildeo p 323
CODA ndash Metaacutefora e o boneco
p 363
227
PREFAacuteCIO
Eu natildeo me envolvi com bonecos por meio de um interesse de infacircncia e sim devido a
haver me empregado no Dr Edison Traveling Medicine Show (Show itinerante de medicina
do Dr Edison) uma trupe vagabunda com qual eu me lancei na estrada muitos anos atraacutes
Aquele show parou de viajar desde aquela eacutepoca mas meu envolvimento com os bonecos
prosseguiu por muitos anos como ator e agora ao que parece como estudioso Em todos
esses anos contraiacute diversas diacutevidas as quais natildeo terei como pagar inteiramente mas que
reconheccedilo de bom grado
Toby Grace o saudoso Ray Nelson Bob Brown Ken Moses e Bart P Roccoberton
Jr diretores de respeitaacuteveis companhias itinerantes me ensinaram quase tudo o que sei sobre
apresentaccedilotildees com bonecos sem as suas ajudas eu sequer teria iniciado este estudo Bob
Brown foi tambeacutem amaacutevel a ponto de me permitir acesso agrave sua biblioteca pessoal Cheryl
Koehler e Carol Wolfe experientes artistas de teatro de bonecos se dispuseram a discutir
muitas das ideacuteias aqui apresentadas
Karl Toepfer David Kahn e Ethel Walker professors da San Jose State University
ensinaram-me muito do que sei acerca de escrita acadecircmicasem as suas ajudas eu natildeo teria
como completar este estudo Karl Toepfer tambeacutem me auxiliou como orientador e foi o
Virgiacutelio do meu Dante no mundo arcano da teoria literaacuteria e dramaacutetica
Lou Furman da Washington State University e Doris Grubidge da Universidade de
Wisconsin Oshkohs forneceu criacuteticas valiosas e encorajamento vital Eu tambeacutem recebi
apoio de Henryk Jurkowski o principal estudioso em teatro de bonecos no mundo O leitor
logo notaraacute que eu discordo do professor Jurkowski em uma seacuterie de questotildees Quando tive a
ocasiatildeo de alertaacute-lo sobre dessas discordacircncias ele gentilmente respondeu ldquoAh mas somos
estudiosos Eacute nossa funccedilatildeo discordarrdquo Natildeo importa quais questotildees nos separem minha visatildeo
acerca de teatro de bonecos teria permanecido empobrecida natildeo fosse o estiacutemulo concedido
por aprender e discordar do professor Jurkowski
Marilyn Brownstein Maureen Melino Kellie Cardone Ruyh Adkins e Susan Baker
todos da Greenwood Press trabalharam com afinco sobre meus manuscritos amassados sem
a assistecircncia dessas pessoas e de seus diversos colaboradores eu natildeo teria sido capaz de
oferecer ao leitor um livro apreciaacutevel
Finalmente eacute com o maior prazer que eu aproveito esta oportunidade para agradecer a
minha mulher Adrienne Baker por seu apoio generoso concedidos de todas as maneiras e por
228
sua feacute inabalaacutevel que que eu poderia algum dia ter algo de uacutetil a dizer E tambeacutem gostaria de
agradecer ao nosso filho Sam Tillis por ter tido a dececircncia de tirar sonecas bastante regulares
e extensas
Apenas eu sou o responsaacutevel por toda e qualquer bobagem que o leitor encontrar neste
livro
229
INTRODUCcedilAtildeO
Bonecos tecircm sido usados em apresentaccedilotildees teatrais por todo o mundo e desde tempos
remotos Cada continente habitado ostenta sua proacutepria tradiccedilatildeo de bonecos sejam elas
associadas a culturas tribais ou citadinas a civilizaccedilotildees desenvolvidas ou com ambas Mas
apesar de sua ubiquumlidade o boneco tem recebido pouca atenccedilatildeo em estudos de teoria teatral
Este livro iraacute se dedicar a problemas fundamentais em teatro de bonecos com o
intento de estabelecer uma base teoacuterica e um vocabulaacuterio descritivo para uma esteacutetica geral do
boneco A amplitude de tais problemas e a aproximaccedilatildeo a ser utilizada em tal abordagem seraacute
explicada mais adiante nesta introduccedilatildeo mas seraacute melhor comeccedilarmos com algumas
evidecircncias da vasta amplitude de apresentaccedilotildees com bonecos
Na Nigeacuteria membros da tribo Ibabio ajuntam-se durante o dia ao ar livre numa aacuterea
arenosa Diante deles estatildeo lenccediloacuteis costurados um no outro e pendurados em trilhos de
madeira acima desse mural de lenccediloacuteis estatildeo figuras de um peacute de altura de homens e mulheres
cada uma construiacuteda a partir de alguns pedaccedilos de madeira esculpida e pintada As figuras
parecem mover-se e falar por si mesmas de fato satildeo movidas por meio de conjuntos de
varas e as suas vozes satildeo distorcidas e artificiais Mostram cenas cocircmicas e licenciosas de
ldquoeventos pontuais da cultura tribal [incluindo] cenas da vida domeacutestica assim como uma
quantidade de referecircncias satiacutericas dos sistemas dominantes dos governos tribal e colonialrdquo
(Malkin 1977 64-65 ver tambeacutem Proschan 1980 24 208)
Em Java aldeotildees sentam-se no frio da noite para celebrar algum evento local No
lugar da celebraccedilatildeo uma grande tela de tecido de algodatildeo branco eacute esticada em uma moldura
de madeira e detraacutes dela haacute um lampiatildeo aceso entretanto o termo ldquodetraacutesrdquo natildeo possui um
sentido real uma vez que os populares sentam-se diante de ambos os lados da tela Entre a
tela e o lampiatildeo estatildeo variadamente figuras de homens mulheres deuses animais e ateacute
mesmo exeacutercitos inteiros em marcha tais figuras satildeo cortadas e pintadas elaboradamente em
peccedilas de couro curtido de buacutefalo-da-aacutegua e variam em altura de meio peacute ateacute quatro peacutes A
maioria da plateacuteia assiste agraves sombras produzidas por essas figuras enquanto que o resto presta
atenccedilatildeo agraves proacuteprias figuras e pode perceber que tais figuras tecircm seus movimentos produzidos
por meio de varas por apenas uma pessoa que tambeacutem daacute as falas ricamente diferenciada de
personagem a personagem entretanto sem qualquer distorccedilatildeo que retire a naturalidade das
falas A muacutesica que acompanha eacute praticamente contiacutenua produzindo fundo canccedilotildees ou
alcanccedilando a frontalidade da representaccedilatildeo em intervalos da accedilatildeo As figuras apresentam uma
230
histoacuteria mitoloacutegica alternadamente cocircmica traacutegica heroacuteica a respeito de deuses a
apresentaccedilatildeo constitui-se numa parte integral da celebraccedilatildeo e duraraacute do pocircr do sol ateacute a
aurora (Brandon 1970 35-69 Ulbricht 1970 5-14)
Estes satildeo exemplos diferentes de teatro dramaacutetico a apresentaccedilatildeo nigeriana foi
presenciada no iniacutecio do seacuteculo [NT seacuteculo XX] e deriva de uma tradiccedilatildeo que de acordo com
a nossa fonte se manteacutem mas que natildeo remonta a um passado tatildeo distante a apresentaccedilatildeo
javanesa ocorreu na deacutecada de 1960 e deriva de uma tradiccedilatildeo de teatro de bonecos que
remonta talvez ao seacuteculo nono e seguramente ao seacuteculo onze (Brandon 1970 3) As
apresentaccedilotildees partilham a peculiaridade de apresentar objetos como se estivessem vivos O
termo usual para descrever tal figura eacute ldquobonecordquo
Em Londres Inglaterra um agrupamento de pessoas aproveitando o lazer no Regentacutes
Park se juntam diante de uma tenda oblonga seis peacutes de altura com uma abertura na frente
Dentro daquela abertura estatildeo figuras de seis peacutes que representam um corcunda e sua esposa
ambos feitos de tecido e madeira ambos parecendo mover-se e falar por sua proacutepria conta de
fato os movimentos e as falas lhes satildeo conferidos por um homem apenas escondido no
interior da tenda A fala da mulher eacute um falsete esganiccedilado poreacutem claro ao passo que a fala
do corcunda eacute distorcida e antinatural a esposa repete o que fala o corcunda para que assim
sejam compreendidas O corcunda iraacute em diversos momentos da apresentaccedilatildeo jogar o seu
bebecirc de uma janela matar um policial e confrontar-se com o democircnio trata-se de uma
comeacutedia (Speaight 1990 [1955] 208-18)
Em Washington D C crianccedilas de uma escola foram levadas em um ocircnibus escolar
ateacute o Kennedy Center for the Performing Arts no grande palco diante deles estatildeo partes
superdimensionadas de uma casa e um jardim e atraacutes desses dispositivos cecircnicos estatildeo trecircs
vocalizadores acompanhados pela Orquestra Sinfocircnica Nacional Um ator-cantor representa
uma crianccedila enquanto que diversas figuras satildeo apresentadas como sendo a matildee da crianccedila e
tambeacutem personagens da sua vida de fantasia A figura da matildee possui dez peacutes de altura
construiacuteda de fibras naturais e artificiais eacute movimentada por meio de mastros e varas por
meio da accedilatildeo oacutebvia de dois operadores sua voz eacute feita por uma das vocalizadoras Os
personagens fantasiosos entre os quais se incluem os nuacutemeros de um a nove satildeo feitos de
espuma de borracha satildeo manipulados visivelmente por operadores e suas falas satildeo
apresentadas pelos demais vocalizadores A fala de cada personagem eacute tatildeo natural quanto eacute
possiacutevel ser de acordo com as caracteriacutesticas da oacutepera O ponto fundamental da peccedila eacute uma
discussatildeo entre matildee e garoto e a subsequumlente fuga da crianccedila para o mundo de fantasia
231
Mais uma vez esses exemplos de teatro dramaacutetico satildeo um tanto diversos entre si A
apresentaccedilatildeo inglesa um ato de ldquoPunch and Judyrdquo feito por Percy Press Jr aconteceu em
1977 e deriva diretamente de uma tradiccedilatildeo de boneco que remonta ao seacuteculo XVII e
indiretamente de uma tradiccedilatildeo de teatro de atores que pode ser seguida ateacute a Roma Antiga
(Baird 1965 95) A apresentaccedilatildeo americana ocorreu em 1981 sob a direccedilatildeo de Bob Brown a
natildeo de corre de nenhuma tradiccedilatildeo em particular mas antes incorpora diversas praacuteticas do
teatro contemporacircneo Contudo tambeacutem compartilham a peculiaridade de apresentar as
figuras teatrais conhecidas como bonecos
No estado de Rajasthan India aldeotildees satildeo convidados agrave noite a irem ateacute os degraus do
templo local por uma casta de artistas que estendem um tecido brilhantemente colorido entre
dois postes e posicionam um lampiatildeo junto a cada lateral do pano Diante do pano estaacute
sentado um dos artistas tocando um tambor tambeacutem na frente estaacutes suspensa em uma vara
de bambu uma coleccedilatildeo de figuras cada uma com ateacute dois peacutes de altura feitas em madeira e
pano Quando chega o momento dessas figuras serem usadas satildeo soltas do bambu e assumem
accedilatildeo vigorosa seus movimentos obviamente controlados por fios que vatildeo das figuras ateacute
pessoas posicionadas acima Suas falas natildeo satildeo mais que ruiacutedos mas ruiacutedos cuidadosamente
articulados O tocador de tambor serve de tradutor clareando o que eacute apenas sugerido pelos
balbucios As figuras em accedilatildeo satildeo um palhaccedilo idiota e uma menina que se transforma num
ogre eles representam uma histoacuteria cocircmica de um amor frustrado (Baird 1965 46-55 Samar
1960 64-70)
Em Osaka Japatildeo pessoas daquela e de outras cidades visitam um salatildeo elaborado
dedicado a um estilo peculiar de teatro Sobre um palco largo estaacute uma plataforma baixa atraacutes
da qual estaacute um cenaacuterio e um fundo pintado em um dos limites da plataforma estatildeo sentados
dois homens um narrador e um instrumentista Sobre a plataforma estatildeo as figuras de um
homem e uma mulher essas figuras construiacutedas de muitas partes de madeira esculpida e
pintada estatildeo esplendidamente vestidas e adornadas com perucas e tecircm ateacute cinco peacutes de
altura Trecircs homens estatildeo visivelmente atraacutes cada uma das figuras obviamente conduzindo
seus movimentos por meio de contato direto com as matildeos e varas A fala das figuras eacute feita de
uma maneira estilizada ainda que natural pelo narrador apoiado pela execuccedilatildeo expressiva do
instrumentista o narrador e o instrumentista tambeacutem apresentam narraccedilotildees e muacutesicas mais
geneacutericas As figuras apresentam uma trama complexa que culmina no suiciacutedoo dos dois
amantes uma cortesatilde e um aprendiz (Adachi 1985 12-30)
Esses uacuteltimos exemplos satildeo os mais diacutespares entre si a apresentaccedilatildeo indiana foi
presenciada na deacutecada de 1950 e deriva de uma tradiccedilatildeo ldquocom seacuteculos de idaderdquo (Baird 1965
232
46) a apresentaccedilatildeo japonesa ocorreu em 1977 e deriva de uma tradiccedilatildeo datada do final do
seacuteculo XVI (Adachi 1985 3) Elas tambeacutem partilham a peculiaridade do boneco
Esses seis exemplos demonstram as extraordinaacuterias dimensotildees do fenocircmeno do
boneco Em cada um dos pares de exemplos apresentados encontramos diversos meios de
apresentaccedilatildeo Assim para se considerar apenas um aspecto limitado do espetaacuteculo nosso
exemplo nigeriano usa figuras tridimensionais operadas por varas ao passo que as figuras
javanesas ainda que operadas por varas natildeo satildeo tridimensionais mas planas e servem ao
propoacutesito de projetar sombras nosso exemplo inglecircs emprega figuras pequenas vestidas nas
matildeos de seus operadores enquanto que as figuras do exemplo americano satildeo na maior parte
dos casos maiores que seus operadores nosso exemplo indiano usa figuras simples operadas a
partir de um plano superior por meio de alguns poucos fios enquanto que as figuras japonesas
construiacutedas e articuladas de uma maneira tatildeo elaborada que solicitam ateacute trecircs operadores por
figura
Ainda em cada uma de nossas duplas de exemplos vemos contextos culturais de
apresentaccedilatildeo diversos Assim nossos exemplos da Nigeacuteria da Inglaterra e da Iacutendia satildeo
manifestaccedilotildees relativamente objetivas de cultura popular enquanto que os exemplos de Java
dos Estados Unidos e Japatildeo satildeo apresentaccedilotildees bem mais complexas que aspiram a ser e satildeo
entendidas como sendo arte
Esses satildeo apenas seis exemplos Inumeraacuteveis outros poderiam embora natildeo precisem
ser arrolados uma vez que os seis apresentados demonstram por si as dimensotildees do fenocircmeno
que se examina empregando diversos meios baseado na cultura popular ou em arte
sofisticada a figura teatral conhecida como boneco atravessa histoacuteria e geografia
Este livro no entanto natildeo analisaraacute o teatro de bonecos como este se manifesta em
termos geograacuteficos ou histoacutericos em nenhuma cultura em particular Estudos sobre bonecos
em muitas culturas ainda que natildeo o bastante jaacute existem e satildeo frequumlentemente bem sucedidos
em demonstrar os usos tradicionais do boneco Este livro natildeo faraacute uma relaccedilatildeo desses estudos
muito menos apresentaraacute uma histoacuteria e geografia do boneco Tais relaccedilotildees gerais tambeacutem jaacute
estatildeo disponiacuteveis mas tendem a ignorar os problemas teoacutericos relacionados agraves tentativas de
comparar e diferenciar as apresentaccedilotildees com bonecos Iremos contudo debruccedilarmo-nos
sobre o alcance vasto da atividade do boneco como uma tentativa de localizar o que haacute nela
de constante e de variaacutevel atraveacutes de todos os limites de tempo e espaccedilo
Aleacutem disso este livro natildeo iraacute analisar as praacuteticas teacutecnicas do teatro de bonecos tais
como modos de construccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Manuais dedicados agraves teacutecnicas apropriadas para
muitos embora natildeo todos dos estilos de teatro de bonecos estatildeo disponiacuteveis e satildeo
233
frequumlentemente bem sucedidos em explicar como construir e apresentar o boneco em cada
circunstacircncia Este livro natildeo iraacute listar esses manuais muito menos apresentar um guia para a
mecacircnica praacutetica do teatro de bonecos Tais listagens gerais tambeacutem estatildeo disponiacuteveis ainda
que tenham uma tendecircncia negligenciar quaisquer problemas de natureza teoacuterica Iremos no
entanto debruccedilar-nos sobre as maneiras com as quais bonecos satildeo feitos para apresentarem-
se numa tentativa de descobrir o que eacute constante e o que eacute variaacutevel nas possibilidades de
apresentaccedilatildeo com bonecos
O fenocircmeno do boneco tambeacutem existe numa variedade de contextos que satildeo
distinguiacuteveis para aleacutem dos limites de histoacuteria e da geografia e que lanccedilam matildeo de todos os
meios teacutecnicos agrave disposiccedilatildeo da arte do boneco
Este livro entretanto natildeo iraacute examinar o boneco como eacute encontrado no contexto da
religiatildeo onde serve como objeto de ritual ou de presenccedila sagrada Nem iraacute examinar o boneco
como eacute encontrado no contexto da educaccedilatildeo onde eacute encontrado como ferramenta de
aprendizado e jogo construtivo Nem finalmente iraacute examinar o boneco como o vemos no
contexto da terapia onde eacute encontrado como agente de cura e auto-exploraccedilatildeo A discussatildeo
do teatro de bonecos em qualquer desses contextos eacute tangencial ao nosso interesse imediato
que eacute o boneco no contexto do teatro onde serve primordialmente para entreter Nossa
discussatildeo pode se mostrar uacutetil para o estudo do boneco nesses outros contextos mas o estudo
de tais utilidades deveraacute ser delegado a outros
Este livro entatildeo eacute dedicado agrave observaccedilatildeo e anaacutelise transcultural da apresentaccedilatildeo do
boneco teatral ou para dizer de outra maneira dedica-se aos fundamentos da arte do boneco
como uma arte teatral Sendo assim nosso problema teoacuterico central eacute como poderemos
compreender o fenocircmeno do boneco como este se apresenta em suas vaacuterias manifestaccedilotildees
teatrais
Havendo jaacute circunscrito tatildeo severamente as limitaccedilotildees deste livro faz-se necessaacuterio
reduzir seu alcance ainda mais uma vez que as complexidades da apresentaccedilatildeo do boneco satildeo
tais que natildeo haveraacute espaccedilo para tratar de nenhum problema que natildeo decorra do proacuteprio
boneco Assim sendo problemas tais como aqueles que existem nas relaccedilotildees do boneco com
o texto da performance com a sua associaccedilatildeo agrave muacutesica com caracteriacutesticas metatextuais e
ateacute numa escala maior com o(s) artista(s) de animaccedilatildeo devem ser deixados para um estudo
futuro
Nosso problema aqui eacute o boneco em si Abordar essa questatildeo demandaraacute uma atenccedilatildeo
escrupulosa e embora tal atenccedilatildeo natildeo seja comum no que se escreve acerca do teatro de
bonecos ela natildeo eacute desconhecida de fato pode-se dizer que o tema foi abenccediloado pelo tempo
234
Uma referecircncia remota ao teatro de bonecos javanecircs pode ser encontrado na Meditaccedilatildeo de
Ardjuna composta pelo poeta da corte do Rei Airlangga (1035-1049 D C)
Haacute pessoas que choram satildeo bonecos tristes e exaltados observando-as
embora saibam que natildeo passam de pedaccedilos de couro recortado manipulados
e postos para falar Tais pessoas satildeo como os homens que sequiosos por
prazeres sensuais vivem em um mundo de ilusotildees natildeo percebem que as
alucinaccedilotildees maacutegicas que vecircem natildeo satildeo reais (citado em Brandon 1970 3)
Os elementos baacutesicos da arte do boneco elementos que satildeo constantes em todos os
exemplos apresentados anteriormente satildeo mencionados nessa passagem a figura esculpida o
movimento e a fala atribuiacutedos a essa figura e a plateacuteia que a reconhece como um instrumento
do teatro e que ainda assim participa da ilusatildeo que esta cria
Vamos olhar por um momento para os elementos relativos ao proacuteprio boneco que
tornam possiacutevel a resposta da plateacuteia O exame de tais elementos pode ser considerado um
estudo da semioacutetica do boneco um estudo dos signos por meio dos quais o boneco comunica
Como sugere a passagem acima e nossos exemplos anteriores demonstram trecircs tipos
de signos montam ou constituem o boneco signos de forma de movimento e de fala Pode-se
dizer que esses signos qualquer que seja a sua natureza especiacutefica emergem dos sistemas
siacutegnicos gerais de forma movimento e fala Os signos especiacuteficos que constituem o boneco
relacionam-se com signos que satildeo geralmente reconhecidos como signos de vida ou seja
com signos associados agrave presenccedila da vida Para dar um exemplo simples um boneco pode
possui uma boca assim como seres vivos possuem a boca pode ser feita para abrir e fechar
assim como ocorre em seres vivos e associado agrave boca pode haver a sugestatildeo da existecircncia de
fala assim como seres vivos falam Mas quando esses signos satildeo apresentados pelo boneco
deixam de significar a de fato existecircncia de vida Os signos encontram-se abstraiacutedos da vida
passando a ser apresentados por algo que natildeo possui uma vida autocircnoma
Eacute em resposta aos signos apresentados pelo boneco signos que normalmente
significam vida que a plateacuteia aceita no boneco sua suposta vida O estudo dessa relaccedilatildeo
dinacircmica entre o boneco e a sua plateacuteia pode ser considerado como um estudo da
fenomenologia do boneco o estudo do fenocircmeno da apresentaccedilatildeo do boneco como um evento
teatral
Este livro seguiraacute o exemplo do poeta da corte de Airlangga e tentaraacute cuidar do boneco
examinando como a apresentaccedilatildeo de signos abstratos criam uma ilusatildeo de vida que a plateacuteia
entende natildeo ser real e desenvolveraacute um conceito chamado visatildeo dupla o qual postula que
uma audiecircncia percebe o boneco de duas maneiras simultacircneas como um objeto apresentado
e como uma vida imaginada
235
O problema teoacuterico do boneco seraacute abordado diretamente Assim em nossa primeira
parte perguntamos como se pode definir o boneco ou o que pode ser considerado um
boneco Tambeacutem indaga como o boneco pode ser explicado ou qual eacute o fundamento da
atratividade do boneco atraveacutes de sua diversidade histoacuterica e geograacutefica Apoacutes discutir as
soluccedilotildees mais usuais dadas a esses problemas nos capiacutetulos 1 e 2 novas soluccedilotildees seratildeo
desenvolvidas e apresentadas no capiacutetulo 3 A segunda parte deste livro pergunta como o
boneco pode ser descrito ou que teoria taxonocircmica oferece um padratildeo satisfatoacuterio para
comparar e discriminar diversas apresentaccedilotildees de bonecos O capiacutetulo 4 discute as soluccedilotildees
mais conhecidas para esse problema ao passo que no capiacutetulo 5 uma nova soluccedilatildeo seraacute
desenvolvida e aplicada Como um tema recorrente para este estudo o uso do termo ldquobonecordquo
como uma metaacutefora seraacute examinado pois o poder de tal emprego metafoacuterico encontra-se
surpreendentemente iluminado pelas soluccedilotildees que conquistaremos
Este livro se destina a um puacuteblico hiacutebrido sob a premissa de que a praacutetica do boneco
pode contribuir para a formaccedilatildeo teatral enquanto que inversamente a formaccedilatildeo teatral pode
enriquecer a praacutetica do boneco Assim sendo este livro foi escrito tanto para os estudiosos do
teatro quanto para os praticantes da arte do boneco na esperanccedila de que membros de ambos
os grupos possam de suas proacuteprias perspectivas sobre a arte do boneco como arte teatral
tambeacutem foi escrito para o puacuteblico em geral pois que muitas dessas pessoas devem sentir-se
curiosas quanto a essa forma de arte ubiacutequa ainda que desdenhada Especialistas podem crer
que muito espaccedilo tem sido devotado a questotildees com as quais eles jaacute satildeo familiares
estudiosos entretanto precisam compreender que muitos leitores natildeo iratildeo encontrar tanta
familiaridade com termos como semioacutetica e fenomenologia ao passo que os praticantes Do
teatro de bonecos precisam reconhecer que muitos dos leitores teratildeo pouca informaccedilatildeo acerca
das muitas complexidades da apresentaccedilatildeo do boneco Leitores que natildeo sejam nem
estudiosos nem praticantes talvez se constitua na parte mais importante de nosso puacuteblico
pois satildeo em uacuteltima anaacutelise aqueles a quem os estudiosos se esforccedilam para iluminar e os
praticantes lutam para divertir A esses leitores devem ser disponibilizadas informaccedilotildees
detalhadas que bastem apresentadas numa maneira clara de modo a unir tanto os aspectos
praacuteticos como teoacutericos da arte do boneco
O modo geral de aproximaccedilatildeo deste livro seraacute pegando emprestados termos da
linguumliacutestica sincrocircnico no sentido daquilo que se opotildee ao que eacute diacrocircnico Uma aproximaccedilatildeo
diacrocircnica o estudo de uma mateacuteria por meio de seu desenvolvimento histoacuterico e geograacutefico
com consideraccedilatildeo aos detalhes de suas praacuteticas teacutecnicas pressupotildee que uma metodologia para
tal estudo exista Mas como veremos nenhuma teoria ou vocabulaacuterio satisfatoacuterios jaacute foram
236
criados para o boneco teatral Uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica o estudo dos princiacutepios
estruturais de uma mateacuteria busca o desenvolvimento de teoria e vocabulaacuterio necessaacuterios por
meio de uma esmerada observaccedilatildeo e anaacutelise isolamento e exploraccedilatildeo das constantes e
variaacuteveis fundamentais do boneco como estas se configuram em todas as suas manifestaccedilotildees
teatrais Assim o estudo sincrocircnico se mostra um proacutelogo valioso ainda que extenso a
qualquer estudo diacrocircnico rigoroso
Mas seria uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica apropriada ao estudo para o teatro de bonecos
Henryk Jurkowski um produtor e estudioso polonecircs que serviu com grande distinccedilatildeo como
secretaacuterio geral e presidente da UNIMA (Union Internationale de la Marionnette) tem seacuterias
duacutevidas
[Essa] aproximaccedilatildeo tem sido usada com relativa frequumlecircncia por estudiosos
contemporacircneos que discutem as caracteriacutesticas do teatro de bonecos A arte
do boneco para essas pessoas parece ser um monoacutelito sincronicamente
unificado ainda que o teatro de bonecos contemporacircneo seja uma rica e
variada totalidade servindo-se de elementos culturais de diferentes
proveniecircncias e eacutepocas (1988 [1983] 62)
De fato o ponto central do importante ensaio de Jurkowski ldquoOs sistemas siacutegnicos do
teatro de bonecosrdquo eacute o de que o boneco pode ser encontrado diversamente a serviccedilo de
ldquosistemas siacutegnicos vizinhosrdquo do ldquosistema siacutegnico do teatro viventerdquo do ldquosistema siacutegnico do
teatro de bonecosrdquo e de um teatro baseado na ldquoatomizaccedilatildeo de todos os elementos do teatro de
bonecosrdquo (1988 [1983] 68) Jurkowski argumenta que aproximaccedilotildees sincrocircnicas ignoram
essa variedade de empregos do boneco e assim inevitavelmente interpretam incorretamente
as realidades do boneco como existem em ldquoeacutepoca[s] teatra[is] concreta[s] determinada[s]
pela tradiccedilatildeo territorial e culturalrdquo (1988 [1983] 62)
Mais que isso ainda que uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica fosse viaacutevel Jurkowski sugere
que seu valor seria miacutenimo
Se toda a amplitude do teatro de bonecos for tomada como um campo de
investigaccedilatildeo cientiacutefica uma tarefa preliminar seria registrar ou listar os seus
diversos elementos Esse registro poderaacute ser da alguma utilidade como
demonstrarivos dos meios de expressatildeo do teatro de bonecos mau eu creio
que natildeo nos diraacute muito mais a respeito da arte do boneco de que aquilo que
noacutes jaacute sabemos (1988 [1983] 62)
Como eacute possiacutevel responder a tais consideraccedilotildees
Primeiramente o estudioso citado por Jurkowski com sendo o expoente mais agrave
vanguarda a da aproximaccedilatildeo sincrocircnica Petr Bogatyrev nunca conduziu nenhum estudo
sistemaacutetico acerca do boneco tampouco criou nada aleacutem de um tipo preliminar de registro ou
iacutendice sobre a arte do boneco Bogatyrev sugeriu que haveria utilidade em um esforccedilo dessa
237
natureza mas o foco de sua atenccedilatildeo natildeo estava no boneco em si mas principalmente no teatro
de bonecos como uma forma de arte folcloacuterica (ver Bogatyrev 1983 [1973])
Em segundo lugar independentemente do que Bogatyrev possa ou natildeo ter feito
empregar uma aproxima sincrocircnica ao estudo do boneco natildeo significa necessariamente
considerar o teatro de bonecos como sendo ldquomonoacutelito sincronicamente unificadordquo
Certamente muitas ou mesmo a maioria das discussotildees acerca de teatro de bonecos peca por
assumir alguma forma de teatro de bonecos como uma forma modelo ou ideal de fato
Bogatyrev pode ser condenado por essa falta Ainda assim uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica
poderia se dar com atenccedilatildeo total da diversidade diacrocircnica multicultural do boneco a ainda
assim buscar algum entendimento acerca das constantes e variaacuteveis a serem encontradas num
atravessamento dessa diversidade
Em terceiro lugar a criaccedilatildeo de um iacutendice dos ldquomeios de expressatildeordquo do teatro de
bonecos seria de uma utilidade bem maior do que Jurkowski gostaria de permitir Seria bem
provaacutevel que tal iacutendice pudesse contar a Jurkowski pouco mais do que aquilo que ele jaacute sabia
Isto natildeo seria surpreendente uma vez que Jurkowski sabe mais sobre bonecos do que
qualquer outra pessoa viva Mas tambeacutem natildeo seria surpreendente se algumas poucas pessoas
sejam elas praticantes estudiosos ou espectadores de teatro de bonecos saibam tanto quanto
ele e ainda assim encontrem valor num trabalho que encontre um sentido na diversidade
diacrocircnica do boneco
Um iacutendice dos meios de expressatildeo disponiacutevel ao boneco nos forneceraacute um vocabulaacuterio
adequado para a discussatildeo de como certos bonecos e tradiccedilotildees de bonecos criam teatro
forneceraacute as bases para o entendimento da amplitude das praacuteticas de apresentaccedilatildeo do boneco
e para comparaccedilotildees significativas entre diversas apresentaccedilotildees em teatro de bonecos Ainda
iraacute demonstrar os meios pelos quais o teatro de bonecos se constitui numa forma peculiar de
teatro uma forma que prazerosamente desafia sua audiecircncia a considerar questotildees
fundamentais sobre o que significa ser um objeto e o que significa possuir vida
E assim apesar dos receios de Jurkowski nossa aproximaccedilatildeo seraacute sincrocircnica
Entretanto devemos estar alertas ao aviso de Jurkowski contra tomar a arte do boneco como
sendo um todo monoliacutetico e tambeacutem desafiados por sua afirmaccedilatildeo de que tal aproximaccedilatildeo
talvez natildeo ensine muito
Independente de quaisquer discordacircncias que se possa ter com Jurkowski natildeo restam
duacutevidas de que ele mesmo concordaria com o fato de que o propoacutesito de nosso estudo eacute
auxiliar na compreensatildeo do fenocircmeno do boneco teatral Sergei Obrastzov indiscutivelmente
o artista de teatro de bonecos mais importante do seacuteculo XX escreveu ldquoNatildeo devemos nos
238
esquecer quantas pessoas pensam [que o teatro de bonecos] natildeo vale a pena ser levado a seacuterio
que aqueles que o estudam estatildeo perdendo o seu tempordquo (1967 [1965] 17) Este livro eacute uma
tentativa de mostrar o quanto o teatro de bonecos merece ser levado a seacuterio Pois trata-se de
uma forma uacutenica e vital de arte teatral uma forma que por sua proacutepria natureza conduz a
uma compreensatildeo renovada da humanidade como a contrutora e a destruidora dos mitos sobre
si mesma e sobre o mundo
239
- I -
DEFININDO E EXPLICANDO O BONECO
1
DEFINICcedilOtildeES CONSAGRADAS
Do que estatildeo falando as pessoas quando falam de bonecos A palavra ldquobonecordquo [NT
puppet]97
eacute imediatamente compreensiacutevel a qualquer pessoa a quem a liacutengua inglesa seja
familiar e indubitavelmente conjura uma ideacuteia definitiva na mente de todos afinal quase
todo o mundo jaacute assistiu uma vez ou outra alguma peccedila de bonecos ou jaacute ouviu o termo
boneco como metaacutefora para descrever pessoas em determinadas circunstacircncias na vida Mas
haveraacute alguma consistecircncia compartilhada entre pessoas nessas ideacuteias acerca do boneco que
surgem da observaccedilatildeo individual O fardo da definiccedilatildeo eacute o de sugerir uma ideacuteia comum
baseada na observaccedilatildeo coletiva de modo a conferir significado a uma palavra Definiccedilotildees no
entanto podem ser coisas curiosas
A palavra boneco eacute o caso em questatildeo o boneco tem estado entre noacutes por seacuteculos
incontaacuteveis e ainda permanece sem uma definiccedilatildeo que seja funcional Talvez dada a
diversidade diacrocircnica do boneco e a subsequumlente variedade de observaccedilotildees e ideacuteias dadas a
ele pelas pessoas seja de fato impossiacutevel defini-lo A R Philpott um artista de animaccedilatildeo e
autor inglecircs repara que ldquoa definiccedilatildeo perfeita esquiva-se dos teoacutericos historiadores
marionetistas dicionaristasrdquo (1969 209) veremos neste capiacutetulo o quanto a definiccedilatildeo perfeita
tem sido esquiva Ainda assim o esforccedilo para se desenvolver uma definiccedilatildeo funcional se natildeo
perfeita eacute vaacutelida pois talvez possa se descobrir afinal alguma semelhanccedila identificaacutevel nos
diferentes usos da palavra boneco
Paul McPharlin o estudioso do teatro de bonecos norte americano mais importante do
seacuteculo XX nos fornece a etimologia baacutesica da palavra na liacutengua inglesa
Puppet [Boneco] deriva de pupa termo em latim para ldquomeninardquo ou
ldquobonecardquo ou ldquopequena criaturardquo A partiacutecula ndashet a torna um diminutivo uma
pequena criatura pequena A palavra marionnette de origem italiana-
francesa [que significa] ldquopequena pequena Mariardquo natildeo difere do inglecircs
97
(NT) No original o termo usado eacute puppet Essa palavra seu significado e origem etimoloacutegica seratildeo
explorados largamente ao longo deste capiacutetulo O termo escolhido para a traduccedilatildeo eacute boneco palavra que em
portuguecircs conduz a uma variedade de interpretaccedilotildees ligeiramente diversa do seu equivalente em inglecircs A
traduccedilatildeo buscaraacute suprir com explicaccedilotildees e notas os pontos discordantes mas eacute tambeacutem importante que o leitor
esteja atento a tal diferenccedila dado o impacto conceitual que a escolha terminoloacutegica pode causar
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puppet em seu significado baacutesico ainda que possua um final em duplo
diminutivo Relativamente uma novidade para a liacutengua inglesa a palavra
apaixonou os artistas por parecer mais elegante do que o velho e simples
puppet (1949 5)
Sendo a questatildeo de elegacircncia a suma da diferenccedila reconhecida entre as duas palavras
seraacute melhor seguir o emprego contemporacircneo e permanecer com a palavra puppet [boneco]
para o fenocircmeno geral sob discussatildeo e reservar o termo marionete para um tipo particular de
boneco
Obviamente a definiccedilatildeo impliacutecita nesta etimologia eacute inadequada natildeo se pode
entretanto esperar que a etimologia explique o significado de uma palavra em seu uso integral
e atual devido a transformaccedilotildees linguumliacutesticas e praacutetica que ocorrem com o tempo As
definiccedilotildees dos dicionaacuterios para a palavra puppet satildeo ligeiramente melhores do que aquela
sugerida pela etimologia e satildeo nada menos que hilaacuterias ldquoUma figura (geralmente pequena)
representando um ser humano um brinquedo de crianccedila Uma figura humana com juntas
articuladas movidas por meio de fios ou cabos uma marioneterdquo (Oxford English Dictionary)
ldquoUma figura pequena de um ser humano que por meio de fios ou cabos eacute posta a representar
teatro de zombaria marioneterdquo (Funck and Wagnalls) Mais definiccedilotildees bastante semelhantes
agraves citadas natildeo precisam ser adicionadas
O que haacute de errado nisso Natildeo eacute a confusatildeo com o termo marionete que natildeo eacute mais
que uma digressatildeo O que haacute de errado eacute que independentemente da etimologia do termo um
boneco natildeo precisa ser pequeno muito menos ldquorepresentar uma ser humanordquo nem ser como
uma boneca de crianccedila nem ser movida ldquopor fios ou cabosrdquo e nem ldquorepresentar teatro de
zombariardquo o que quer que isso signifique
Eacute insustentaacutevel a justificativa de que tais definiccedilotildees satildeo imprecisas porque
acompanham o entendimento comum ou mal entendimento uma vez que eacute bastante frequumlente
se ouvir ou ver bonecos grandes bonecos que representam animais bonecos altamente
sofisticados e assim por diante Qualquer que seja a loacutegica por traacutes dessas definiccedilotildees
estuacutepidas elas natildeo podem ser levadas a seacuterio
McPharlin cuja etimologia apresentamos define o boneco como sendo ldquoum elemento
teatral movido por controle humanordquo (1949 1) Bill Baird um dos produtores mais influentes
do teatro de bonecos norte americano do seacuteculo XX define o boneco como ldquouma figura
inanimada posta em movimento pelo esforccedilo humano diante de uma plateacuteiardquo (1965 13) A
maioria das definiccedilotildees formuladas por estudiosos e praticantes de teatro de bonecos apenas
reapresentam os elementos impliacutecitos ou expliacutecitos nas definiccedilotildees acima portanto
trabalhemos com elas
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Essas definiccedilotildees satildeo obviamente superiores agravequelas fornecidas pela etimologia ou
pelos dicionaacuterios Observam corretamente o fato de que o boneco eacute um elemento teatral e que
existe diante de uma plateacuteia e ainda fazem uma distinccedilatildeo fundamental entre o boneco que
apresenta e a boneca com a qual uma crianccedila pode brincar solitariamente Essa boneca pode
ateacute mesmo ser usada como boneco mas parece oacutebvio que nem todas as bonecas satildeo bonecos
e inversamente nem todos os bonecos satildeo bonecas A definiccedilatildeo tambeacutem observa
corretamente que o boneco eacute algo ldquosob controle humanordquo e ldquomovido por esforccedilo humanordquo
fazendo assim uma distinccedilatildeo fundamental entre o boneco que responde a um controle
imediato e variaacutevel e o autocircmato que eacute motivado por algum dispositivo mecacircnico ou
eletrocircnico para apresentar inapelavelmente uma seacuterie de accedilotildees Igualmente um autocircmato
desse tipo pode ser usado como um boneco mas parece bastante oacutebvio que nem todo
autocircmato eacute um boneco e tambeacutem nem todo boneco eacute autocircmato Finalmente a amplitude
dessas definiccedilotildees se encaminha em direccedilatildeo ao vasto escopo de atividades que as pessoas
querem dizer quando falam do boneco
Apesar dessas vantagens as definiccedilotildees de McPharlin e Baird sofrem de trecircs problemas
seacuterios O primeiro problema existe independentemente da amplitude das definiccedilotildees e se
impotildee a partir da falha em se considerar completamente as possibilidade inerentes ao sistema
de signos de forma do boneco McPharlin escreve que o boneco eacute um ldquoelemento teatralrdquo mas
no decorrer de seu trabalho (ver McPharlin 1938 e 1949) ele aceita sem discussotildees aquilo que
Baird esclarece que a figura do boneco eacute inanimada Mas o boneco precisa de fato ser
inanimado
Alguns exemplos podem ser uacuteteis Usemos por exemplo a figura teatral de um bebecirc
trazido ao palco por um ldquopairdquo que obviamente o opera e canta-lhe uma canccedilatildeo de ninar o
bebecirc olha em torno para a plateacuteia brinca com o pai e assim por diante Sua cabeccedila eacute
esculpida em madeira e seu corpo um saco de tecido Quando ele se vira para dormir expotildee
costas nuas que natildeo eacute nada aleacutem da matildeo de seu operador (Obrastzov 1985 [1981] 84-7)
Ou entatildeo a figura de um becircbado que canta uma canccedilatildeo inebriada de tristeza e durante
todo o tempo servindo-se de um copo de vodka atraacutes do outro Sua cabeccedila eacute de tecido
recheado com uma boca que abre e fecha seu corpo eacute pouco mais que uma camisa pendurada
em espaacuteduas de madeira A matildeo que enche reiteradamente o copo entretanto ligada ao corpo
por uma manga eacute a matildeo de fato do operador (Obrastzov 1985 [1981] 115-7) Nenhum dos
elementos teatrais nesses dois exemplos eacute inteiramente inanimado uma vez que ambos
incorporam e expotildeem carne viva mesmo assim poucas pessoas negariam que se trata de
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bonecos As possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da forma natildeo se encerram com
figuras que satildeo inteiramente inanimadas
Exemplos mais radicais podem ser apresentados Tomemos por exemplo as figuras
hipoteacuteticas de dois amantes Acompanhados por ldquoSentaacutevamos sozinhos perto de um rio
murmuranterdquo de Tchaikovsky os amantes se encontram pela uacuteltima vez aproximam-se um o
outro riem e choram suspiram de tristeza abraccedilam-se e beijam-se e finalmente despedem-
se Suas cabeccedilas satildeo pouco mais que pequenas esferas de madeira e seus corpos natildeo satildeo outra
coisa que natildeo as matildeos nuas do operador dos dois personagens As esferas de madeira estatildeo
presas a um dedo de cada matildeo (Obrastzov 1985 [1981] 107-8)
E tomemos as figuras de dois combatentes sem dizer uma palavra discutem e lutam e
um eacute subjugado fazendo o outro triunfante Mas as figuras natildeo passam de matildeos humanas A
matildeo triunfante se torna um muro a matildeo vencida torna-se um punho fechado e bate contra a
parede o muro natildeo cede e a matildeo subjugada cai a matildeo triunfante fecha o punho ambas as
matildeos esticam-se palmas abertas num gesto que silenciosamente pergunta ldquoPor quecircrdquo
Haacute pouco ou nada inanimado nas figuras desses dois exemplos matildeos vivas dominam
a apresentaccedilatildeo E ainda as matildeos das maneiras como satildeo usadas podem ser consideradas
bonecos pois natildeo satildeo entendidas pelo puacutebico apenas como pares de matildeos mas tambeacutem como
sendo algo aleacutem de matildeos As possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da forma
abrangem figuras que natildeo satildeo predominantemente inanimadas e ateacute mesmo figuras que natildeo
satildeo inanimadas de modo algum
O uacuteltimo desses exemplos eacute um sketch sobre o Muro de Berlim apresentado por Burr
Tillstrom para a Convenccedilatildeo Internacional de Teatro de Bonecos de 1980 as trecircs anteriores
satildeo sketches de Obrastzov que escreve
O princiacutepio [do boneco de luva]98
consiste em apenas dois elementos a matildeo
humana e a cabeccedila do boneco [O corpo do boneco] eacute apenas um figurino
Mas dispa o boneco de luva e deixe a sua matildeo exposta com a cabeccedila do
boneco em seu dedo que o boneco permaneceraacute um boneco (1950 186)
De fato como pudemos perceber pode-se ir tatildeo longe a ponto de retirar a cabeccedila do
boneco e a matildeo humana poderaacute permanecer como um boneco Mas se eacute assim e as
possibilidades da forma do boneco podem ir a ponto de se poder abjurar qualquer uso do
98
N T Nesta passagem o termo empregado (hand puppet) seria traduzido mais literalmente por ldquoboneco de
matildeordquo e de fato como se veraacute no decorrer o livro este termo abrangeraacute praacuteticas que ampliam as possibilidades
da luva tradicional Foi escolhido o termo boneco de luva para esta passagem por trecircs motivos a saber 1 o
termo hand puppet traduz em diversos exemplos o que em portuguecircs chama de boneco de luva 2 boneco de
luva eacute uma expressatildeo mais familiar na liacutengua portuguesa para o boneco descrito na passagem 3 o trecho citado
de Obrastzov de fato menciona em termos de forma e teacutecnica o emprego de um boneco de luva
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inanimado entatildeo como poderemos considerar o ator um boneco e ainda assim compreender a
existecircncia de uma distinccedilatildeo entre ator e boneco
Obrastzov faz uma observaccedilatildeo esclarecedora a respeito de sua cena com a figura do
bebecirc ldquoMinha matildeo direita sobre a qual eu visto o boneco vive separadamente de mim com
um ritmo e uma personalidade proacuteprias [Ela] conduz um diaacutelogo silencioso comigo ou me
ignorando ao mesmo tempo vive sua vida independentementerdquo (1950 155) Essa ldquovida
separadardquo do boneco com ldquouma personalidade proacutepriardquo eacute um ponto vital Parece evidente que
quando uma plateacuteia vecirc as costas da matildeo do operador como sendo as costa do bebecirc ela
compreende que a matildeo natildeo eacute apenas uma matildeo mas mais importante como parte da figura do
bebecirc Semelhentemente quando uma plateacuteia vecirc a matildeo do operador como sendo a matildeo da
personagem representada pelo boneco ela eacute percebida natildeo apenas como uma matildeo humana
mas mais importante como sendo a matildeo da figura Em cada um desses casos a matildeo que
veste o boneco ldquovive separadamenterdquo e eacute reconhecida separadamente do ator e faz parte na
percepccedilatildeo do puacuteblico da mesma natureza do resto da figura Ou seja natildeo eacute percebida tanto
como sendo uma matildeo mas como um objeto
Este princiacutepio se estende agraves matildeos que Obrastzov usa como corpos de bonecos e agraves
matildeos que Tillstrom usa para representar corpos um muro e as ideacuteias de raiva supremacia e
anguacutestia mental Devido aos modos pelos quais as matildeos satildeo usadas nas formas desses
bonecos mesmo se ndash como ocorre com Tillstrom ndash elas satildeo o uacutenico elemento da forma e
devido aos modos pelos quais se daacute movimento e voz aos bonecos a matildeo do ator pode ser
entendida como algo ldquoseparadordquo dele mesmo Assim o ator pode ser considerado um boneco
quando este se apresenta de tal maneira que a plateacuteia eacute conduzida a entendecirc-lo natildeo apenas
como algo vivo tambeacutem em seu todo ou em parte como um objeto
Outra questatildeo surge em decorrecircncia dessa afirmaccedilatildeo como seraacute possiacutevel distinguir
entre um ator que eacute entendido como um objeto e um ator que se apresenta com uma maacutescara
ou figurino Para dar um simples exemplo o Mickey Mouse que sauacuteda os visitantes na
Disneylacircndia pode ser considerado um boneco
Essa questatildeo eacute especialmente difiacutecil de ser respondida devido o desejo de muitas
pessoas envolvidas com o boneco de anexar a maacutescara no campo do teatro de bonecos Baird
escreve
Maacutescaras estatildeo a exatamente um ou dois passos evolucionaacuterios do boneco
Quando um danccedilarino solitaacuterio mascarado comeccedilou a surgir como artista
era o comeccedilo da performance teatral e um passo de deslocamento da
maacutescara em seu processo de transformaccedilatildeo em boneco Gradualmente a
maacutescara moveu-se para cima para fora da cabeccedila e foi posta diante do
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corpo Mais tarde moveu-se mais para longe e foi feita viver por
manipulaccedilatildeo (1965 30)
As bases antropoloacutegicas para a afirmaccedilatildeo de Baird satildeo evidentemente discutiacuteveis
mas claramente demonstram sua crenccedila num relacionamento iacutentimo entre o ator mascarado ou
aparatado e o boneco
Peter Arnott o antigo artista e pesquisador inglecircs que apresentava o repertoacuterio claacutessico
com bonecos iria bem mais adiante no que se refere a essa intimidade ldquoPodemos dizer que
sempre que um ator veste uma maacutescara ndash seja literalmente como nas peccedilas gregas e romanas
ou figurativamente como quando representa um papel fortemente tipoloacutegico ndash ele estaacute
abnegando sua individualidade e fazendo de si mesmo um bonecordquo (1964 77) Uma anexaccedilatildeo
como essa certamente termina indo longe demais pois poderia transformar grande parte
daquilo que conhecemos como teatro de atores como parte do teatro de bonecos A definiccedilatildeo
de boneco pode dificilmente ser esticada a esse ponto de modo a natildeo atingir todo o resto
alijando a palavra de qualquer significado particular
Para se distinguir entre o ator subsumido no boneco e o ator vestindo uma maacutescara ou
um figurino devemos considerar a percepccedilatildeo da plateacuteia se o puacuteblico entender a maacutescara ou
figurino como nada aleacutem de uma vestimenta em um ator vivo entatildeo eacute exatamente o que isso
seraacute mas se o puacuteblico enxergar o ator em maacutescara ou figurino como uma parte do objeto
entatildeo ele deve ser reconhecido como boneco Nosso Mickey Mouse com sua fisionomia
estrutural notadamente humana certamente natildeo eacute percebido como um objeto natildeo sendo
assim um boneco mas apenas um ator numa roupa
O primeiro problema com as definiccedilotildees de McPharlin e Baird entatildeo pode ser
resolvido com o entendimento de que as possibilidades proacuteprias ao sistema de signos de
forma do boneco transcende ao inanimado O boneco eacute um ldquoobjetordquo apenas no entendimento
da plateacuteia Seraacute uacutetil quando natildeo se puder perceber explicitamente a percepccedilatildeo da plateacuteia o
emprego das aspas como modo de nos lembrar que a palavra natildeo se limita ao que eacute
inanimado mas mais que isso refere-se implicitamente agrave percepccedilatildeo da plateacuteia sobre a figura
em questatildeo
Se este primeiro problema com as definiccedilotildees existe independentemente de sua
amplitude o segundo problema se apresenta justamente por causa dessa amplitude Na
tentativa de ampliar as possibilidades daquilo que pode ser considerado boneco o conceito
termina por ser aberto demais Quando McPharlin escreve que ldquoo boneco move-se sob
controle humanordquo e Baird que ele ldquose move por esforccedilo humanordquo eles sugerem que qualquer
elemento teatral movido dessa forma passa a ser um boneco Mas seraacute isso verdadeiro
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Usemos um exemplo teoacuterico mundano uma bengala estaacute apoiada contra um painel
cenograacutefico de modo a representar uma janela num determinado momento um contra-regra
move a bengala e o painel ateacute outro local A bengala e o painel satildeo certamente ldquoelementos
teatraisrdquo e tambeacutem ldquoobjetos inanimadosrdquo com certeza foram ldquomovidos sob controle
humanordquo ou ldquomovidos por meio de esforccedilo humanordquo Ainda assim seria difiacutecil de imaginar
que algueacutem os quisesse chamar de bonecos Seria eacute claro perfeitamente possiacutevel usar
bengalas e paineacuteis como bonecos eacute possiacutevel usar isso deve ser dito qualquer coisa como um
boneco Mas claramente a bengala e o painel em questatildeo natildeo satildeo bonecos De alguma
maneira os bonecos devem distinguir-se de adereccedilos e cenaacuterios pelo fato de que nem todo o
objeto movido sobre a cena pode ser considerado boneco
Uma soluccedilatildeo para esse problema eacute vagamente sugerida pelo emprego por parte de
McPharlin da palavra teatral que poderia ser empregada para sugerir algo de natureza mais
significativa do que adereccedilos e cenaacuterio Marjorie Batchelder uma grande forccedila do teatro de
bonecos norte americano tambeacutem uma estudiosa e uma produtora natildeo se contenta com uma
simples sugestatildeo ldquoo boneco eacute um ator participando em algum tipo de apresentaccedilatildeo teatralrdquo
(1947 xv) Isto se afirma de uma maneira tal que nem a bengala nem o painel podem ser
entendidos como se estivessem atuando embora ambos participem a suas maneiras de uma
representaccedilatildeo teatral Mas a soluccedilatildeo de Batchelder embora natildeo seja uma tentativa de fazer
com que representaccedilatildeo com atores seja considerada teatro de bonecos se apresenta como um
problema semacircntico o boneco eacute certamente um ator de certa forma mas como jaacute vimos ele
dever se distinguir do ator de alguma maneira se o termo boneco possui algum significado
Batchelder faz a sua distinccedilatildeo referindo-se aos ldquomeios mecacircnicosrdquo de motivaccedilatildeo do boneco
(1947 xv) Isto no entanto tambeacutem eacute problemaacutetico bonecos de luva bem como matildeos usadas
como bonecos satildeo motivados sem o emprego de meios mecacircnicos mais que isso a confusatildeo
semacircntica entre boneco e ator persiste apesar da distinccedilatildeo Para se evitar essa confusatildeo seraacute
uacutetil examinar precisamente como o boneco pode ser percebido como um ator
Vejamos mais uma vez o uso que Baird faz do termo inanimado Essa palavra nos
compele considerar natildeo apenas a palavra em si mas tambeacutem ao seu oposto Obrastzov
escreve a respeito do ldquoprocesso por meio do qual o inanimado se torna animadordquo (1967
[1965] 19) Se o boneco eacute algo inanimado entatildeo sua significacircncia teatral natildeo se cria pelo fato
dele ser movido com tal mas por ser animado Nem a bengala nem o painel do exemplo
oferecido haacute pouco podem ser entendidos como tendo sido animados Esta soluccedilatildeo no
entanto embora seja um tanto comum apresenta certas dificuldades semacircnticas
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Iniciemos com uma dificuldade menor a palavra animaccedilatildeo tem sido empregada de
forma bastante ampla pela induacutestria cinematograacutefica significando desenhos animados
Embora haja grande similaridade entre desenhos animados e teatro de bonecos e embora
certas estilos de animaccedilatildeo de bonecos tais como ldquoClaymationrdquo possam ser criados apenas
com o emprego de teacutecnicas de desenho animado natildeo se deve negligenciar as diferenccedilas
existentes entre esses dois meios mais significantes que as suas semelhanccedilas empregando o
mesmo termo para categorizaacute-los
A dificuldade maior eacute a que animar algo quer dizer no senso literal da palavra dar-lhe
o sopro da vida Como metaacutefora isto possui grande significado para a animaccedilatildeo de bonecos
Mas fora do acircmbito metafoacuterico eacute absurdo pois eacute claro o boneco natildeo estaacute de fato vivo Como
admite Obrastzov
De fato nenhum objeto inanimado pode ser animado ndash nenhum tijolo
retalho brinquedo (ainda que mecacircnico) ou boneco teatral ndash natildeo importa
quatildeo virtuosiacutestica seja a sua movimentaccedilatildeo quando eacute manipulado pelo
marionetista Qualquer que seja a circunstancia os objetos relacionados
acima permaneceratildeo como objetos desprovidos de quaisquer aspectos
bioloacutegicos Entretanto em matildeos humanas qualquer objeto ndash o mesmo tijolo
retalho sola de sapato ou garrafa ndash pode cumprir a funccedilatildeo de um objeto vivo
na imaginaccedilatildeo associativa do homem Pode mover-se rir chorar ou declarar
seu amor (1985 [1981] 264)
A animaccedilatildeo como ela eacute natildeo se relaciona de fato com o boneco teatral antes o que se
relaciona com o boneco teatral eacute o movimento dado a um objeto de modo tal que ele possa
como diz Obrastzov ldquopreencher a funccedilatildeo de um objeto vivo na fantasia associativa do
homemrdquo ou nos termos de seus estudos ser imaginado como estando vivo Assim embora
adereccedilos e cenaacuterios possam ser movimentados em cena o movimento que se daacute ao boneco se
daacute de forma a encorajar a imaginaccedilatildeo de vida
Outras questotildees associadas surgem o boneco permaneceria boneco mesmo quando
natildeo eacute movimentado e repousa num armaacuterio ou museu Concedemos a vaacuterios objetos
desprovidos de uso o tiacutetulo de boneco mas sob qual autoridade Michael R Malkin um
produtor e estudioso norte americano informa que ldquobonecos africanos frequumlentemente
manteacutem pequena relaccedilatildeo com os conceitos ocidentais de como deve se parecer um boneco [e
assim] uma identificaccedilatildeo clara e inequiacutevoca de muitas figuras [como sendo bonecos] satildeo
geralmente complicadas de serem obtidasrdquo (1977 71)
As implicaccedilatildeo disso satildeo de grande importacircncia Pois apenas por meio da identificaccedilatildeo
de familiaridades com tradiccedilotildees particulares de teatro de bonecos que podemos identificar
certos objetos ou de modo mais geral com certas famiacutelias de objetos como sendo bonecos
Assim noacutes do ocidente podemos reconhecer certas classes de objetos como sendo dedicados
247
especialmente para serem usados como bonecos tais como bonecos de luva ou marionetes e
podemos facilmente chamar de boneco um objeto que pertenccedila a tal classe Mas uma extensa
variedade de objetos pertencentes a classes de objetos que natildeo satildeo especialmente dedicadas a
teatro de bonecos tais como matildeos humanas esferas de madeira utensiacutelios de cozinha entre
outras tecircm de fato sido usados como bonecos Decorre daiacute que a conferencia do tiacutetulo de
boneco a qualquer objeto em repouso ou mais especificamente que natildeo esteja em
performance poderaacute apenas ser sugestiva O boneco natildeo pode ser definido apenas em termos
da sua forma Mais que isso precisa ser definido como algo que natildeo um objeto ou uma classe
de objetos caracterizados por formas fiacutesicas especiacuteficas o boneco precisa ser definido assim
tendo associado a ele o sistema de signos complemetar que auxilia a plateacuteia e imaginaacute-lo vivo
Malkin entende essa necessidade Como escreveu noutro artigo ldquoo objeto animado
torna-se um boneco natildeo quando o operador assume controle total sobre ele mas no momento
infinitamente mais sutil quando o objeto parece desenvolver uma vida independenterdquo (1980
9)
O segundo problema entatildeo pode ser resolvido por meio do entendimento de que o
movimento de um elemento sobre o palco natildeo necessariamente invoca ou pretende invocar agrave
imaginaccedilatildeo da plateacuteia que este possui vida De fato seraacute uacutetil quando natildeo se provocar de
modo expliacutecito a imaginaccedilatildeo da plateacuteia o emprego de aspas como maneira e lembrar ao leitor
que a palavra natildeo busca supor que o boneco possua uma vida real mas antes provocar
implicitamente a receptividade da imaginaccedilatildeo da plateacuteia quando em contato com a figura em
questatildeo
O terceiro problema com as definiccedilotildees de McPharlin e Baird eacute a sugestatildeo de que o
movimento seja a caracteriacutestica definidora do boneco McPharlin declara categoricamente que
ldquoeacute o movimento verdadeiro ou ilusoacuterio que confere animaccedilatildeo a um bonecordquo (1938 81) O
movimento eacute claro eacute um dos trecircs sistemas de signos de cujos signos se constitui o boneco e
de acordo com McPharlin pode ser perfeitamente o mais significativo dos trecircs sistemas
referidos Segundo escreve Louis Duranty um francecircs do seacuteculo XIX ldquoo que os bonecos
fazem domina inteiramente o que dizemrdquo (citado em Veltruskyacute 1983 97)
Por outro lado o boneco durante a sua apresentaccedilatildeo pode permanecer imoacutevel por
longos periacuteodos de tempo e pode em raras ocasiotildees permanecer sem mover-se de fato
durante toda a apresentaccedilatildeo e ser algo aleacutem de uma mera figura decorativa ndash ou seja ser algo
mais que uma estaacutetua Isto se daacute porque o sistema de signos da fala tambeacutem se faz disponiacutevel
ao boneco e na ausecircncia do movimento do boneco as possibilidades especiacuteficas desse
sistema de signos em conjunccedilatildeo com o sistema de signos da forma pode permitir agrave plateacuteia
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imaginar que o boneco possui vida Os sistemas de signos de forma e fala satildeo de uma
importacircncia vital para o teatro de bonecos e ao negligenciaacute-los as definiccedilotildees de McPharlin e
Baird negligenciam alguns dos aspectos constitutivos do boneco
Henryk Jurkowski cujas duacutevidas acerca da aproximaccedilatildeo sincrocircnica foram discutidas
em nossa introduccedilatildeo oferece uma definiccedilatildeo para o teatro de bonecos que incorpora todos os
trecircs sistemas de signos disponiacuteveis ao boneco
O teatro de bonecos eacute uma arte teatral sendo que a caracteriacutestica baacutesica e
principal que o diferencia do teatro de atores sendo que os objetos que falam
e se apresentam fazem uso temporal de fontes vocais e motoras que se
encontram fora do objeto As relaccedilotildees entre o objeto (o boneco) e as fontes
de energia [os vocalizadores eou manipuladores] alteram-se
constantemente e tais variaccedilotildees satildeo de grande importacircncia semioloacutegica e
esteacutetica (1988 [1983] 79-80)
Devemos notar que esta se trata de uma definiccedilatildeo para o teatro de bonecos e natildeo do
boneco em si Ainda assim podemos certamente ver elementos essenciais a uma definiccedilatildeo do
boneco aqui o boneco eacute um objeto ao qual se daacute ldquouso temporalrdquo de ldquoenergia vocal e motorardquo
externas o que eacute de importacircncia decisiva
Ao apresentar essa definiccedilatildeo Jurkowski parece estar fazendo o mesmo tipo de
afirmaccedilatildeo sincrocircnica que desacreditou anteriormente Seja como for a sua definiccedilatildeo jaacute seria
um avanccedilo em relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees de McPharlin e Baird apenas pelo reconhecimento que
apresenta de cada um dos trecircs sistemas de signos Mas ela vai aleacutem disso Sua insistecircncia na
separaccedilatildeo e no relacionamento entre o objeto e suas ldquofontes de energiardquo prepara o caminho
para uma anaacutelise de como os sistemas de signos operam independentemente e associados Haacute
no entanto tambeacutem trecircs problemas com a definiccedilatildeo de Jurkowski
O primeiro problema eacute que ao mesmo tempo em que a definiccedilatildeo reconhece os trecircs
sistemas de signos separadamente parece sugerir que movimento e fala devem estar presentes
se quisermos aceitar um determinado objeto como sendo um boneco Jurkowski menciona o
ldquoobjeto que fala e se apresentardquo ldquoas fontes fiacutesicas das forccedilas motoras e vocaisrdquo (grifo nosso)
Aleacutem disso ao contraacuterio das afirmaccedilotildees categoacutericas de McPharlin acerca do movimento
Jurkowski faz-se categoacuterico acerca da fala Charles Magnin um historiador do teatro francecircs
do seacuteculo XIX argumenta que ldquoa separaccedilatildeo entre palavra e accedilatildeo eacute precisamente aquilo que
constitui a peccedila de bonecosrdquo (citado em Proschan 1983 20) Jurkowski refina essa discussatildeo
ldquoA possibilidade de separaccedilatildeo entre o objeto falante e a fonte fiacutesica da palavra eacute a qualidade
distintiva do bonecordquo (1988 [1983] 79)
Mas consideremos dois casos no primeiro uma danccedila narrativa eacute apresentada por
figuras inanimadas movimentadas sobre a cena em acompanhamento agrave muacutesica no segundo