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magnifico tratado sobre a grande escritora campinense e sua grande e maravillhosa lírica brasileira. conseiderada a pérola da literatura descoberta pelos norteamericanos no século XXI.
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CLEIA DA ROCHA
A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO
Londrina
2012
CLEIA DA ROCHA
A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO
Dissertao apresentada ao programa de Ps Graduao em Letras da Universidade Estadual de Londrina, como requisito Parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Estudos literrios.
Orientador: Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos
Londrina 2012
Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
R672o Rocha, Cleia da.
A obscena senhora A : A de absurdo / Cleia da Rocha. Londrina, 2012. 157 f. Orientador: Volnei Edson dos Santos.
Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Letras, 2012.
Inclui bibliografia. 1. Hilst, Hilda, 1930-2004 Crtica e interpretao Teses. 2. Fico
brasileira Histria e crtica Teses. 3. Literatura Filosofia Teses. 4. Metafsica na literatura Teses. 5. Linguagem Filosofia Teses. I. Santos, Volnei Edson dos. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Letras. III. Ttulo.
CDU 82.09
CLEIA DA ROCHA
A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO
Dissertao apresentada ao programa de Ps- Graduao em Letras Estudos Literrios da Universidade Estadual de Londrina, como requisito Parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos
UEL Londrina - PR
______________________________________ Prof. Dr. Gabriel Giannatasio
UEL Londrina - PR ______________________________________
Profa. Dra. Marta Dantas UEL Londrina - PR
______________________________________ Prof. Dr. Jos Fernandes Weber
UEL Londrina - PR ______________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon UEL Londrina - PR
Londrina, 31 de agosto de 2012.
Se consegui enxergar mais longe e por que estava sobre braos de gigante. (Isaac Newton)
A todos que perto ou longe nunca deixaram de me apoiar.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos, pela pacincia e segurana que sempre me transmitiu desde nosso primeiro contato. Suas orientaes guiaram minha pesquisa e me mostraram perspectivas nunca antes pensadas, mas totalmente imprescindveis, para que eu chegasse at aqui.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao de Letras da UEL,
pelos ensinamentos ao longo dos dois anos de incurso pelo programa de Estudos Literrios.
Aos meus amigos, Srgio, Ricardo, Willian e Lus que percorreram
juntos este caminho, alguns falando e ajudando diretamente na construo de meu objeto de pesquisa, outros ouvindo pacientemente as numerosas comunicaes sobre Hilda Hilst que fiz ao longo destes dois anos, tentando iluminar o caminho rumo a esta dissertao.
A minha amiga, Sandra, que sem entender nada de Filosofia e Hilda
Hilst, tentou organizar minhas ideias sempre confusas e torn-las minimamente legveis.
A minha famlia, pela pacincia e tolerncia em todos os momentos. A meu marido, pelo o apoio e pelo carinho.
Ao CNPQ, por ter me proporcionado a oportunidade de me dedicar
exclusivamente a este trabalho.
ROCHA, Cleia da. A obscena senhora A: A de absurdo. 2012. 157 f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
RESUMO
Este trabalho pretende fazer um estudo da obra A obscena senhora D, de Hilda Hilst, focando na relao do sujeito fragmentado consigo mesmo e com suas categorias de insero no mundo, concebido por ns como: o outro, Deus, o tempo, a morte e a linguagem. Para tratar destas questes do sujeito que se colocam como questes ontolgicas, metafsicas e estticas, recorreremos s teorias de Aristteles, Heidegger e Albert Camus. Em nossa concepo a fragmentao do sujeito origina-se de uma perda da referncia transcendente, e consequentemente do afloramento da conscincia de imanncia e desamparo que provm de tal constatao. A derrelio na estrutura do eu, se propaga como uma manifestao absurda sobre as demais relaes humanas e tem na linguagem potica sua ltima parada e possibilidade de salvamento do eu, ainda que momentaneamente. Palavras-chave: Hilda Hilst. Literatura. Filosofia.
ROCHA, Cleia da. L obscene madame A: A dabsurde. 2012. 157p . Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
RSUM
Avec ce travail de recherche on propose une tude sur loeuvre A obscena senhora D de Hilda Hilst et plus specifiquement, sur la relation qui fait le sujet fragment avec soi-mme e avec ses categories dinsertion dans de monde, cest--dire avec lautre, avec Dieu, le temps, la mort et le langage. Pour rpondre cela qui se transforme la fin en questions dordre ontologique, mtaphysique et esthtiques nous nous ferons lusage de quelques penses dArtistote, Heidegger et Albert Camus. Selon notre point de vue, cette fragmentation du sujet a son origine dans la perte dun point de repre par rapport la transcendence et par consquent en arrivant une conscience de totale immanence et de dlaissement de soi. Ainsi la drliction de la conscience mme de lindividu se rpand telle quelle une manifestation absurde sur les autres rapports de lexistence humane et en trouve sa dernire demeure et possibilit de rfuge, bien que de une manire fugace dans le langage potique. Mots-cl: Hilda Hilst. Litterature. Philosophie
ROCHA, Cleia da. The obscene lady A: A of absurd. 2012. 157 f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
ABSTRACT
This work intends to study the novella A obscena senhora D, by Hilda Hilst, focusing on the relation stablished by the fragmented subject with himself and with his categories of insertion in the world, conceived by ourselves as: the other, God, time, death and language. To deal with these questions of the subject, that are given as ontological, metaphysical and aesthetic questions, we have recurred to Aristotle, Heidegger and Albert Camuss theories. In our conception, the subjects fragmentation arises from a lost of transcendental reference, and consequently from the outbreak of the consciousness of imanence and abandonment that comes from such perception. The derrelition in the selfs structure propagates as an absurd manifestation above all the other human relations, and in poetic language it finds its last stop and a possibility of salvation for the self, even if only for a moment.
Keywords: Hilda Hilst. Literature. Philosophy.
SUMRIO
1 INTRODUO ...............................................................................................9
2 REPERCUSSES CRTICAS OBRA DE HILDA HIST..............................16
3 HILDA HILST: UMA ESCRITA ENTRE FRONTEIRAS .................................31 3.1 REINTRODUO ................................................................................................37
4 AS OBSESSES METAFSICAS HILSTIANAS ........................................40 4.1 EPTETOS METAFRICOS-FILOSFICOS EM A OBSCENA SENHORA D. ...................45
4.1.1 Aristteles e a Absurda Hill...........................................................................47
4.1.2 D de Derrelio: Hill e Heidegger .................................................................59
5 A OBSCENA SENHORA A: UM MODO DE VIVNCIA ABSURDA.................72 5.1 TU NO TE MOVES DE TI: ALTERIDADE ABSURDA ...............................................82
5.2 TRONO VAZIO: IMPOSSIBILIDADE DE TRANSCENDNCIA ........................................97
5.3 O TEMPO: ESTA COISA QUE NO EXISTE MAS CRUA, VIVA............................116
5.4 PARA PODER MORRER: A MORTE NO TERRITRIO DO ABSURDO........................125
5.5 DEVANEIOS POTICOS: UMA LINGUAGEM NO VO DO SER ...................................135
CONCLUSO ...........................................................................................................149
REFERNCIAS.........................................................................................................152
9
1 INTRODUO
O objetivo de nossa dissertao apontar como ocorre a crise do
sujeito na obra A obscena senhora D, de Hilda Hilst. Tomando para isso de uma
abordagem que relaciona o universo ficcional desta obra a alguns dos conceitos da
metafsica ocidental (trabalhados por Aristteles e Heidegger) acerca da
impossibilidade de apreenso da essncia dos sujeitos. Alm disso, visa tambm
mostrar como se d a vivncia absurda deste sujeito que, ao desconstruir suas
categorias de auto concepo passa a viver um conflito existencial, modo muito bem
apontado na obra O mito de Ssifo, de Albert Camus.
A escolha por nomes como o de Aristteles (talvez mais de um
Aristteles visto sob a influncia de Heidegger) e Heidegger est ancorada
inicialmente nos elementos formais da prpria obra, j que partimos da considerao
de que os eptetos Hill e D (D de Derrelio) usados para denominar a personagem
principal desta obra guardam uma referncia aos termos hyl e derrelio, usados
comumente pelos respectivos filsofos supracitados.
A relao com o autor Albert Camus parte de uma referncia no to
direta quanto relao anterior. Ela se acrescenta com base no contedo
aparentemente absurdo do texto hilstiano. A expresso deste absurdo, to cara a
Camus, dada, em nossa concepo, por meio da limitao do alcance racional do
sujeito (personagem) em contraposio complexa irracionalidade do mundo,
aflorada aps a conscincia da derrelio.
O que tentamos entender em que medida a crise deste sujeito,
exaurido de sua concepo transcendental, se reflete nos modos como o homem
apreende e busca relacionar-se com o mundo, com o outro, com Deus, com o
tempo, com a morte e com a prpria linguagem.
Desta forma, buscaremos inicialmente a compreenso de como se
d a representao do sujeito, visto aqui como homem (categoria supervalorizada) e
como este sujeito entra em crise ao no conseguir mais uma representao que o
relacione a uma essncia suprassensvel, anteriormente dada em nossa sociedade,
principalmente por meio da genealogia divina.
Embora o modo de representao da condio humana tenha
variado no decorrer do tempo, ela guarda uma profunda relao com as categorias
apresentadas por Aristteles, na antiguidade grega: o homem aquele que preso a
10
uma forma perecvel e mutvel faz parte de uma matria incognoscvel e eterna,
chamada posteriormente por outros pensadores de essncia humana, por exemplo.
O homem no decorrer de sua histria tem se pensado como manifestao de uma
essncia originada de um ato puro e imutvel. Aristteles chamou esta essncia de
primeiro movimento, os religiosos, de Deus.
Este arqutipo de ser humano derivado da concepo aristotlica
corrobora a escolha pelo termo metafsica, para explicar justamente as relaes
desta paradoxal composio do humano. O termo, embora tenha outro modo de
leitura, conforme enfatiza Heidegger, foi empregado pela filosofia e pelo senso
comum, como a forma de pensamento que relaciona categorias para alm da fsica.
Assim, quando se fala em metafsica, sempre pensamos em questes relacionadas
condio humana em sua esfera suprassensvel (como Deus, a imortalidade, etc.),
ou seja, para alm do cotidiano explicvel. Retoma-se, assim, nossa prpria
concepo do que seja o humano, como aquele que sendo fsico e, portanto, mortal
e limitado, s se completa na sua relao com o suprassensvel, ou seja, em funo
de seu destino eterno, de sua imortalidade.
A questo para ns pensarmos como este sujeito, desprovido da
possibilidade de ligao com o transcendente, consciente de seu abandono e
desamparo, assume-se como conscincia fragmentada e absurda.
Por questes metodolgicas, o primeiro captulo de nossa anlise
apontar os momentos mais marcantes da trajetria de Hilda Hilst e sua difcil
relao com a crtica literria brasileira. Pretendemos, na medida do possvel,
apontar as possveis razes para a ausncia de uma crtica acadmica relevante
acerca da obra de Hilst at a dcada de 90. Veremos que a obra de Hilst convive
com quatro momentos marcantes da crtica literria no Brasil: a crtica do rodap; a
crtica estruturalista; a crtica sociolgica e a crtica ps-estruturalista. Sendo que sua
obra receber a ateno da primeira e da ltima dessas correntes. Desta forma,
podemos dizer que h com relao obra de Hilst, uma lacuna crtica no que diz
respeito aos trabalhos da crtica de vertente estruturalista e sociolgica.
No segundo captulo, Hilda Hilst: uma escrita entre fronteiras,
apresentamos a natureza interdiscursiva do trabalho literrio de Hilda Hilst, bem
como a possvel relao que a obra e a prpria autora desenvolve com o discurso
filosfico. Esta escrita feita entre fronteiras uma das marcas autorais da escritora
campinense, sendo esta, segundo alguns crticos, a razo da sua escrita hermtica.
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Em nosso captulo intitulado Obsesses metafsicas hilstianas,
buscamos pensar o possvel dilogo que a obra de Hilda Hilst estabelece com
alguns discursos filosficos. Em nossa concepo, este modo de anlise
influenciado pela prpria estrutura do texto hilstiano, rico em proposies metafsicas
e que encontram no campo da Filosofia um terreno frtil para suas discusses. Em
Hilda Hilst, a razo especulativa mostra seus limites, pois as indagaes metafsicas
no encontram as respostas na tradio do pensamento conceitual, mas sim no
terreno das divagaes potica-existenciais do eu absurdo.
Em A obscena senhora D, temos uma personagem que no cessa
de tentar entender as questes-limites de sua condio humana. Mas segundo
Cavalcanti (2010, p.192), toda a srie de perguntas que a personagem faz pode ser
resumida na questo essencial: Quem Hill?. Nesta obra, a tentativa de
responder esta angustiante dvida do sujeito se efetiva por meio do dilogo com a
filosofia de Aristteles e Heidegger. Por meio dos eptetos Hill e Senhora D, Hilst
estabelece uma possvel ligao com o discurso filosfico, relacionando os nomes
da personagem central, respectivamente aos termos hyl (Aristteles) e derrelio
(Heidegger).
A personagem Hill em dado momento da narrativa assume a
nomeao de Senhora D. Esta mudana no nome representa a prpria
transformao que ocorre no interior deste sujeito, pois se o indivduo enquanto Hill
guarda ainda uma esperana de transcendncia, representada pela crena em um
Deus poderoso e numa alma imortal, ao assumir-se como derrelio ele abdica de
qualquer certeza transcendente.
Hill, durante um grande perodo de sua vida, compartilha da viso
metafsica dos demais sujeitos: ela acredita que possvel chegar matria
essencial da vida. Em dado momento, no entanto, a personagem perscrutando
racionalmente sua condio conscientiza-se da falncia das explicaes metafsicas
em dar sentido para a sua existncia.
Hill, que desde sempre fora um sujeito angustiado, ao tornar-se
consciente de que a esperana em um Deus ou numa alma imortal trata-se de uma
construo do prprio sujeito humano - amedrontado diante de sua eterna condio
de abandono e desamparo no mundo assume, ento, sua condio de abandono
(derrelio), metaforicamente colocada sobre o D de Senhora D, nome pelo qual seu
marido passa a cham-la.
12
Assumir-se como sujeito da derrelio1(geworfenheit) tornar-se
consciente da impossibilidade de qualquer unidade. Assim, todas as categorias com
as quais o sujeito se relaciona, assumem tambm a condio de realidade
estilhaada. Para Hill, constatar a derrelio (desamparo) de sua vida assumir-se
como um estranho diante de si, do outro e das demais categorias que compem o
universo humano.
No captulo, A obscena senhora A: um modo de vivncia absurda,
apontamos as consequncias imediatas da derrelio na vida do sujeito Hill. Para
este sujeito, tudo que at a conscientizao do desamparo era visto como realidade
autntica assume agora o carter de encenao. O mundo um cenrio que
desaba. Este divrcio com o mundo, efetivado pela personagem, condiz com os
apontamentos acerca do absurdo, feitos por Albert Camus, em O mito de Ssifo.
A postura que o sujeito da derrelio assume diante da vida refora
uma singularidade e um estranhamento do eu, que no podendo se explicar
racionalmente, assume-se como o sujeito absurdo.
O sujeito absurdo se difere da maioria dos homens, chamados
sujeitos cotidianos2. Enquanto os homens cotidianos esto empenhados em tarefas
do dia a dia, como o trabalho, a educao dos filhos, o sucesso financeiro e
amoroso, e esto crentes de que a explicao para tudo se coloca na figura de um
Deus, de um filsofo existencialista ou da fsica quntica; o homem absurdo, por
sua vez, no acredita que se possa chegar verdade por nenhum meio, sendo
mesmo, desnecessrio este empenho para a posteridade. Ele no projeta sua
esperana nem na manh seguinte, nem em outra vida. Este sujeito s conhece a
1 A palavra Geworfenheit de origem alem, como veremos mais adiante pode ser traduzida como
estar-lanado, desamparo, abandono e derrelio. Tendo em vista o dilogo entre a obra de Hilst e de Heidegger optamos frequentemente por traduzir esta palavra como derrelio. Assim, a expresso sujeito da derrelio que ser amplamente usado neste trabalho, deve ser lida como a condio de abandono que habita o interior do homem desde que ele vem ao mundo. Ao afirmarmos que o homem sujeito da derrelio no queremos dizer que ele desampara, mas sim, que ele por meio da conscincia de sua condio assume o desamparo dado pelo mundo.
2 Muitas vezes no decorrer deste trabalho recorreremos s expresses sujeitos absurdos e sujeitos cotidianos para diferenciar, respectivamente, o homem que assume a irracionalidade do mundo e o homem que continua preso aos conceitos da tradio. Tais expresses, ainda que modificadas, so oriundas das definies feitas por Camus, em O mito de Ssifo, visando esta mesma diferenciao. O autor argelino usa frequentemente as expresses: homem absurdo, heri absurdo contrapondo-as expresso homem cotidiano: Ele diz: Antes de encontrar o absurdo o homem cotidiano vive com metas, uma preocupao com o futuro ou a justificao (no importa em relao a quem ou a qu), [...] o homem absurdo compreende que estava ligado at aqui ao postulado de liberdade em cuja iluso vivia. Em certo sentido, isto era uma trava. Na medida em que imaginava uma meta para sua vida, ele se conformava com as exigncias da meta a ser atingida e se tornava escravo de sua liberdade. (CAMUS, 2009, p.68-69).
13
verdade de seu corpo e das emoes mais efmeras, e no tem nenhuma pretenso
que no seja a manuteno de sua vida sem a vaidade do eterno.
Como esclarece Albert Camus, a conscincia absurda surge
inevitavelmente da experincia cotidiana, no entanto a partir do momento em que se
d conta da iluso que o cerca, este homem absurdo se afasta do outro. Na medida
em que os muros do absurdo desabam, constri-se tambm uma fronteira entre
este sujeito consciente e os demais sujeitos. O heri absurdo torna-se um estranho,
vivendo como um estrangeiro na realidade social da maioria. Um homem que sequer
conhece a si mesmo no pode ter interesse em conhecer o outro.
Desta forma, o homem absurdo se d conta de que um ser
limitado a sua prpria conscincia e, neste sentido, totalmente verdadeira a frase
do personagem Axelrod: mesmo que o trem se mova, tu no te moves de ti.
Por sua condio absurda, a Senhora D isola-se do contato com o
outro, afasta-se primeiro do marido, depois dos amigos e vizinhos. Isolada em seu
vo de escada, acolhe apenas duplos - objetos e seres duplicados - que
representam sua natureza perecvel, destituda de qualquer transcendncia e
unidade. Ela habita sua masmorra-ninho, com seus peixes de papel, frutos secos e
finalmente com a Senhora P, seres que tm existncias, mas desconhecem a
procura pela essncia, que tanto atormenta o ser humano. A negao de qualquer transcendncia, exigida pela absurda
Senhora D, desenvolve-se tambm na sua relao com Deus. Observamos que na
narrao, a figura divina antes3 visualizada como um Deus transcendente, que
possibilitaria vencer a finitude do sujeito por meio da f, transforma-se num demiurgo
imperfeito e, s vezes, tirano composto da mesma matria perecvel que o humano.
Para Hill, o Deus cristo puro e justo quando sondado
racionalmente se mostra ausente, apenas um reflexo da vontade humana por luz no
poo escuro da existncia. Assim, a personagem o substituiu por um Deus que
tambm criao humana, mas que mais condizente com a condio do sujeito.
3 Em uma obra como A obscena senhora D, em que a narrao est longe de ser descrita como
linear, parece contraditrio usarmos as expresses antes e depois. Embora os fatos no estejam dispostos linearmente, possvel tentar refazer o percurso da personagem. E em se tratando de apresentar a conscientizao do desamparo e a assuno do absurdo preciso apontar que h um antes, marcado pela vivncia cotidiana da personagem e um depois, momento de ruptura total em que Hill decide ir morar no vo escada. Ela mesma diz: Agora que Ehud morreu vai ser difcil viver no vo da escada, h um ano atrs quando ele ainda vivia, quando tomei este lugar na casa, algumas palavras ainda, ele subindo as escadas Senhora D, definitivo isso de morar no vo da escada? (HILST, 2001, p. 18)
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Uma divindade chamada de Menino-porco: menino, porque est repleto de
ignorncia, e porco porque est jogado no meio da imundcie e dos dejetos do
mundo. Neste sentido, o Deus de Hill absurdo porque nega o eterno e assume-se
como criao humana.
A conscincia absurda incide, invariavelmente, sobre outras duas
categorias da condio humana, a saber, sua relao com o tempo e com a morte.
Ao repensar sua vida como construo, o homem da derrelio se d conta que, em
toda sua formao, esteve ligado ao tempo duplamente: ele forma o tempo, e o
tempo lhe forma. Para que pudesse se conhecer de fato seria necessrio
desvincular-se totalmente do tempo. O que impossvel, pois o homem s se
separa do tempo estando morto. Alm desta condio ontolgica, o tempo surge para o homem
duplamente como simulacro: o homem cotidiano acredita poder dominar o tempo,
por isso vive uma vida que sempre projeto do devir cotidiano. Por outro lado, se
faltar o tempo necessrio para suas realizaes materiais, h o tempo eterno, dado
pela possibilidade da alma imortal, vivendo no reino de Deus, ou reencarnado para
um novo ciclo. O homem absurdo se recusa tanto ao tempo das obrigaes
materiais, quanto ao tempo da vida eterna. Para ele, o tempo s existe como
experincia do corpo no agora. Por isso a personagem de Hilst conclama a vivncia
pessoal do tempo.
Esta convico do tempo como negao do eterno leva o homem
absurdo a uma diferente concepo da morte, sendo que esta se coloca para ele
como a nica possibilidade de atingir a completude, no como eu individual (j que
ele no pode vivenciar a sua morte), mas como completude da existncia humana
(fechamento do ciclo do existir). Hill afirma na narrativa: morta que estarei inteira.
Isto no quer dizer que Hill enquanto sujeito absurdo anseie pela morte, pelo
contrrio, sua condio absurda demonstra um enorme apego ao corpo e a suas
emoes primrias. Ela contempla a morte como uma continuao irracional do que
foi a vida. No h esperana na morte, pois nenhum Deus estar l apontando um
cu eterno. Tambm no h temor na morte, j que sem o juzo divino no h
condenao ou castigo. Neste sentido, a morte recoberta com a mesma
indiferena que o sujeito aplicou vida. Em sua conscincia absurda, o corpo se
recusa ao aniquilamento, no entanto, no deixa de contemplar a morte com olhos
plcidos.
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Como ltima parada deste sujeito absurdo, chegamos linguagem.
Em A obscena senhora D, o universo multifacetado, desprovido de unidade que
acomete o sujeito, est configurado na linguagem. A falta de lgica do mundo de
Hill repercute na fragmentao da narrativa, no fluxo inconstante do narrador, na
confuso temporal em que passado, presente e futuro se articulam, no mais na
exatido de um tempo cronolgico, mas no eterno agora da dvida existencial da
personagem. A linguagem, por um lado, se reveste da revolta absurda: no contato
com o outro e com Deus, o discurso incorre em xingamentos e blasfmias,
mostrando a pouca importncia que o outro e o divino assumem para a personagem;
por outro lado, a personagem reveste suas lembranas e seus questionamentos
mais ntimos de lirismo, como a mostrar que o sujeito absurdo no um ser
insensvel beleza do mundo.
Num universo privado de respostas, a Senhora D efetiva o dilogo
consigo mesma, por meio do apelo potico, mostrando, como apontou Heidegger,
que poesia e pensamento no esto to separados como querem alguns filsofos, e
que se h ainda um lugar em que o homem pode vislumbrar sua essncia, este
espao sua linguagem potica, a eterna morada do ser.
16
2 REPERCUSSES CRTICAS OBRA DE HILDA HILST
Hilda Hilst escreveu seu primeiro livro em 1950 e durante mais de 40
anos produziu uma obra numerosa, um nmero total de 32 livros espalhados em
gneros como poema, conto, crnica, novela, romance e teatro. Toda essa ampla
produo no lhe garantiu, no entanto, a simpatia do grande pblico e o aval da
crtica literria acadmica, haja vista que a autora esteve esquecida por esses dois
meios durante muito tempo, o que s mudou recentemente.
Hilda Hilst reclamava constantemente, nas entrevistas para a
imprensa, da falta de interesse da crtica por suas obras. Segundo Edson Duarte da
Costa (2010, p. 2), a autora exagerava em suas reclamaes, principalmente nos
ltimos anos, tendo em vista, que a obra de Hilst vinha recebendo a ateno de
consagrados crticos neste perodo (a partir da dcada de 90). Ele mesmo afirma,
porm que tomada no percurso geral faltou visibilidade crtica obra de Hilda Hilst.
Edson Duarte da Costa (2010) aponta que em sua pesquisa inicial
no acervo documental da autora encontrou 625 textos publicados em peridicos
brasileiros e estrangeiros sobre a obra de Hilst. Segundo ele: Este enorme nmero
de textos, no entanto, no possibilita um enquadramento mais claro da obra hilstiana
na literatura brasileira contempornea (COSTA, 2010, p. 2).
Em nossa pesquisa no mesmo acervo, observamos que a maioria
dos trabalhos publicados sobre a obra de Hilda Hilst est vinculada chamada
crtica do rodap, corrente que detinha grande prestgio na dcada de 50, quando
Hilda publica seus primeiros ttulos. Entre os anos 60 e 70, ocorre uma efetiva
diminuio dos trabalhos sobre a obra da autora campinense. Este perodo
marcado no Brasil pelo domnio da chamada crtica acadmica, representada pela
nova crtica e pela crtica sociolgica. Muitos crticos consideram que a
incompatibilidade entre o projeto destas duas vertentes e a proposta literria de
Hilda Hilst explica a lacuna crtica nestas duas dcadas.
A partir da dcada de 80, nota-se um aumento ainda tmido de
pesquisas sobre a obra da autora. E esta justamente a dcada em que se verifica
a produo das obras mais importantes e maduras de Hilst. A partir da dcada de
90, nota-se um progressivo interesse pela obra hilstiana, justamente no momento
em que a crtica acadmica cristaliza a multiplicidade dos discursos, decorrentes,
entre outras, das proposies derridianas.
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Refletindo acerca da crtica sobre a obra de Hilst, somos levados a
pensar como Edson da Costa (2010) e Alcir Pcora (2010), que esta lenta
consagrao junto crtica acadmica deveu-se divergncia entre a proposta
literria de Hilst e os valores buscados pela crtica acadmica, tanto pela proposta
estruturalista inicial da nova crtica quanto pela proposta dialtica da critica
sociolgica.
O fato que durante muito tempo a obra de Hilda Hilst foi
amplamente vista como uma extenso do mito pessoal que se formava em torno da
autora, ou ento por abordagens que caracterizavam sua obra, ora como
abordagens imersas em superficialidade, ora como tbua etrusca destinada a um
seleto grupo de leitores. Faltando a ela o empenho de pesquisas mais extensas e
profundas, com as quais autores do mesmo perodo foram brindados.
Hilda escreveu seu primeiro livro Pressgio em 1950, e tendo
publicado durante quase 50 anos sempre manteve uma relao controversa com a
crtica. A campinense respondia com severas crticas a aparente apatia dada sua
obra, principalmente pela vertente acadmica. No poupava os academicistas e os
profissionais do meio editorial do deboche nas entrevistas e em suas obras criou
uma srie de personagens para criticar por meio da caricatura tais literatos.
Nos ltimos anos de sua vida, Hilst v suas obras recebendo o
interesse das instituies acadmicas com o qual sempre sonhou. A UNICAMP, por
exemplo, adquire seu acervo literrio. O mercado editorial, por sua vez, reconhece o
valor do conjunto de sua obra. Em 2001, ela assina contrato com a Editora Globo
para a reedio de suas obras completas, que foram prefaciadas pelo renomado
crtico Alcir Pcora. Mas parece que para Hilda Hilst o to buscado reconhecimento
vem tarde. Em entrevista a uma revista de circulao nacional, ela afirma
desoladamente: quando vem to tarde como veio, a gente no sente muita alegria
mais. (DESTRI; DINIZ, 2010, p. 55).
Enquanto produzia sua numerosa obra Hilda Hilst conviveu com
diversos momentos da crtica literria brasileira. A autora viu nascer a crtica
acadmica, acompanhou seu fortalecimento e suas mudanas. O incio da
produo da autora se d na dcada de 50, um momento de grande efervescncia
literria no Brasil. Segundo Flora Sssekind:
18
Os anos 40 e 50 esto marcados no Brasil pelo triunfo da crtica de Rodap. O que significa dizer: por uma crtica ligada fundamentalmente no-especializao da maior parte dos que se dedicam a ela, na sua quase totalidade bacharis; ao meio em que exercida, isto , o jornal - o que lhe traz, quando nada, trs caractersticas formais bem ntidas: a oscilao entre crnica e o noticirio puro e simples, o cultivo da eloqncia, j que se tratava de convencer rpido leitores e antagonistas, e a adaptao s exigncias (entretenimento, redundncia e leitura fcil) e ao ritmo industrial da imprensa -; a uma publicidade, uma difuso bastante grande (o que explica, de um lado, a quantidade de polmicas e, de outro, o fato de alguns crticos se julgarem os verdadeiros diretores da conscincia de seu pblico, como costumava dizer lvaro Lins) e, por fim, a um dilogo estreito com, mercado, com o movimento editorial contemporneo. (SSSEKIND, 1993, p.15).
Esta crtica de vis impressionista passa a ser combatida a partir da
dcada de 40 por um grupo de crticos ligados ao meio acadmico, entre eles,
destaca-se a figura de Afrnio Coutinho. Autor de uma campanha contra a crtica de
rodap, ele foi o grande defensor da crtica acadmica. Inspirado no modelo
estruturalista e no New Criticism, Afrnio Coutinho procurou atribuir ao papel da
crtica uma valorao mais prxima do cientfico, longe dos arroubos do
pessoalismo e biografismos comuns na crtica praticada por intelectuais da
poca, como lvaro Lins, por exemplo.
Outro importante representante da crtica acadmica foi Antonio
Candido que, ao contrrio de Afrnio Coutinho, no acreditava ser a especializao
acadmica um aspecto fundamental para a crtica literria, mas sim sua insero
dentro de um projeto maior, que seria a sociedade e a cultura brasileira. Embora
dissidentes em muitos aspectos, a crtica destes dois autores ser determinante
para a histria da crtica literria acadmica aps 1950. Segundo Flora Sssekind,
por meio desta nova crtica:
Ampliam se, pois as reas de domnio e o prestgio do crtico universitrio. Da o interesse em examinar as opes intelectuais de duas figuras verdadeiramente paradigmticas no campo dos estudos literrios no Brasil: Afrnio e Antonio Candido. Ou melhor: A crtica que se quer apenas esttica do primeiro e o jogo dialtico, a metodologia dos contrrios do segundo. Duas linhas de fora que marcariam o pensamento crtico brasileiro subseqente. Seja na busca incessante de atualizao metodolgica, seja na tentativa de constituio de uma perspectiva crtico-dialtica da anlise literria. (SSSEKIND, 1993, p.14).
19
No entanto, se na teoria se promulgava o nascimento de uma nova
crtica que combatia o impressionismo e o autodidatismo, podemos notar que a
crtica obra inicial de Hilst foi feita longe dos parmetros de Coutinho, de Candido,
enfim, desta crtica acadmica. Embora a crtica de rodap perdesse espao
continuamente, a anlise da obra hilstiana realizada neste perodo, ainda est
associada ao tratamento anedtico-biogrfico em geral concedido literatura na
imprensa (SSSEKIND, 1993, p.17), pelos intelectuais das letras.
Os primeiros livros de Hilst so recebidos, ora de forma elogiosa por
intelectuais amigos que apontam para uma obra potica em amadurecimento
(COSTA, 2010, p. 9), ora de forma negativa por intelectuais que atribuem ao texto as
marcas da superficialidade que julgam visualizar na personalidade de Hilst. Um bom
exemplo desta ltima crtica apontado por Luisa Destri e Cristiano Diniz. Segundo
eles, na ocasio do lanamento do terceiro livro de Hilda Hilst, Balada do festival, foi
publicada uma crtica no jornal O Estado de So Paulo que tratava o livro no como
um projeto literrio, mas sim como arroubos juvenis de uma moa elitista e ftil:
A moa elegante, loura, que acende um cigarro, sorri e pede um cocktail, tem todo aspecto de um precioso ornamento de crnica mundana. Vai falar do ltimo espetculo, da ltima fita, do ltimo escndalo, do ltimo Festival de Cinema. Vai contar a sua ltima faanha no tnis, ou seu ltimo encontro na boite e seu ltimo passeio de automvel pela praia. Oh! Frvola Juventude! A voz imprevistamente grave diz coisas imprevistamente tristes! (apud DESTRI; DINIZ, 2010, p. 35).
A mesma postura pessoalista mantida com relao a outro livro
da autora, Roteiro do Silncio. Segundo os pesquisadores Luisa Destri e
Cristiano Diniz, o crtico Luis Martins ao analisar o posicionamento do eu lrico
hilstiano, fala: s no gostei, francamente, foi da passagem de um poema, alis
excelente, em que Hilda Hilst declara que queria ser boi. Ah! No, Hilda! Por favor!
Voc est muito bem assim mesmo, como mulher. (MARTINS apud DESTRI; DINIZ,
2010, p. 35). A crtica a princpio elogiosa e at contendo certo bom humor no
deixa, no entanto, de praticar o biografismo. O crtico esquece-se de que quem fala
o eu-lrico e no a bela mulher Hilda Hilst.
Esta abordagem crtica era comum at mesmo entre autoras que,
como Hilda Hilst, sentiam o peso de serem mulheres e escritoras numa sociedade
patriarcal. A prpria Lygia Fagundes Telles, escritora e companheira de Hilda Hilst
20
na escola de Direito do Largo de So Francisco, ao falar sobre a obra de Hilst na
Folha da Manh, antes de tecer uma crtica ao texto, prende-se descrio da
beleza da autora: Ela [Hilda] no quer que se fale nela, no seu ar vago e doce, nos
seus gestos espaados e mansos, no seu todo de canarinho belga. (TELLES apud
DESTRI; DINIZ, 2010, p. 35). Ou seja, parece que nos primeiros anos a obra de Hilst
ainda padecia sob as vises da crtica autobiogrfica. Uma crtica to presa a uma
tradio clssica que, em se tratando de uma obra que j mostrava suas
singularidades, tinha que se contentar com o exame da mulher Hilda Hilst.
Segundo Edson Costa (2010, p. 8), Muitas destas matrias
jornalsticas citadas so assinadas por crticos conhecidos. Basta lembrarmos que
os primeiros livros de Hilda Hilst foram tratados de forma elogiosa por autores como
Sergio Buarque de Holanda, Sergio Milliet, Jorge de Sena, entre outros, que
souberam demarcar seus valores formais. No entanto, estas crticas tratavam-se na
maioria das vezes de apenas notas, tmidas resenhas e poucos textos mais
ensasticos (COSTA, 2010, p. 8). Havia ainda as crticas negativas, que viam a obra
como reflexo de um sentimentalismo, sem apuro formal, exemplo da feita por Lygia
Fagundes Telles na Folha da Manh, em 1959.
Ao pesquisar o trabalho crtico desenvolvido em torno da obra de
Hilst nos anos 60, notamos que a maioria das anlises se resumiu a notas ou
abordagens superficiais efetivadas nos jornais de circulao da poca, como os
enfocados por Edson da Costa (2010, p. 8), em sua pesquisa, ou seja, embora estas
crticas fossem feitas por intelectuais e escritores, representavam uma crtica feita
fora das instituies acadmicas. Logo, nos parece que a repercusso da obra da
autora para a crtica acadmica nascente de ento foi nula.
Entre 1960 e 1966, Hilda Hilst publica os livros Trova de amor para
um amado senhor, Ode fragmentria, Sete cantos do poeta para o anjo. Embora o
ltimo livro tenha sido agraciado com o prmio PEN de So Paulo, o conjunto da
obra de Hilda Hilst ainda sofre com o desinteresse da crtica acadmica nesta
dcada.
Na dcada de 60, enquanto a autora insiste em formas lricas
arcaicas (baladas, cantares) pouco conhecidas no territrio brasileiro, a crtica
acadmica tenta reconstruir um sistema literrio nacional, enfocado nos aspectos
de continuidade e tradio. J em 1957, Formao da literatura brasileira, de
Antonio Candido, busca estabelecer as bases do que seria uma tendncia nacional
21
da crtica, transformada mais tarde numa abordagem, ora sociolgica, ora dialtica,
que se perpetuaria e faria muitos discpulos.
Em via de regra, podemos afirmar que a obra nascente de Hilst
conviveu com trs tendncias crticas: a crtica do rodap; a nova crtica e a crtica
sociolgica. Sendo que, por motivos que s podemos sugerir, esta obra permaneceu
um objeto estranho s duas ltimas esferas. Opinio compartilhada por Edson
Costa, que afirma que embora a autora tenha tido uma grande repercusso,
principalmente na crtica da imprensa, O que a escritora no teve foi uma crtica
acadmica regular. Nenhum crtico acadmico, nestes anos todos [1960-1990] se
debruou sobre sua obra e escreveu textos de maior alcance sobre ela. (COSTA,
2010, p. 5).
difcil explicar por que a obra de Hilst foi praticamente ignorada por
estas correntes da crtica que por muitos anos resumiram a prpria concepo de
crtica nacional. Ao pensar na nova crtica, aquela praticada por Afrnio Coutinho,
podemos presumir que talvez a ela coubesse o papel de dar a obra hilstiana o seu
valor intrnseco, ou seja, notar a elaborao formal que ela naturalmente possui, e
que a crtica de hoje tem visto. No entanto, talvez uma das dificuldades que este
modelo crtico enfrentou foi o carter interdiscursivo da obra de Hilst. O texto
hilstiano costumeiramente se apropria dos discursos de outros campos do
conhecimento. Das pginas dos livros de Hilst saltam nomes como Plotino, Freud,
Marx, Lou Salom, Tausk, J, Lzaro, etc.. A intertextualidade com a filosofia,
psicanlise, sociologia, tornaria uma anlise no condicionada por influncias
extraliterrias (COUTINHO apud SSSEKIND, 1993, p. 22), simplista demais. Hilda
Hilst no um dos autores escolhidos de Coutinho para compor seus primeiros
compndios e nos volumes mais atualizados de A Literatura no Brasil, a autora
citada apenas superficialmente.
Opondo-se ao projeto de Afrnio Coutinho, encontramos Antonio
Candido, que num primeiro momento buscou efetivar a histria de um sistema de
literatura autenticamente nacional, e posteriormente, por meio de sua proposio
dialtica buscou conciliar o intrnseco e o extrnseco na anlise da obra literria. A
teoria crtica de Antonio Candido, embora detenha-se no papel do texto enquanto
projeto que pode ser visto sobre uma hermenutica, atribui tambm, uma enorme
importncia s questes externas, que o autor acreditava extremamente
determinantes do sentido da obra. Candido v a obra como depositria de um
22
conjunto de bens simblicos vinculados a um projeto de literatura nacional,
baseados no enquadramento dentro de uma tradio precedente. A obra de Hilda
Hilst no converge em ponto algum para um projeto anterior de literatura nacional.
Por suas mltiplas referncias externas, a obra da campinense no se pode filiar aos
ideais buscados pela crtica de ento.
Para explicar este divrcio entre a produo de Hilda Hilst e a crtica
dialtica, podemos pensar na polmica sobre a retirada de Gregrio de Matos do
cnone literrio nacional. Antonio Candido por questes de uma ortodoxia
metodolgica retira Gregrio de Matos, nosso maior poeta barroco, do projeto
nacional de literatura, expresso em Formao da literatura no Brasil. Tal
procedimento nos autoriza a pensar que a indiferena crtica obra de Hilda Hilst
bastante justificada, levando em conta que a autora campinense, assim como o
poeta barroco no pode ser integrada a um sistema de obras ligadas por um
denominador comum, que permitem reconhecer notas dominantes de uma fase.
(CANDIDO, 1981, p. 23). Segundo Costa (2010, p. 5), esta seria uma das razes
pela qual a obra hilstiana foi afastada do interesse acadmico, dominado por esta
vertente da crtica. Faltaria uma adequao desta autora a um projeto de literatura
nacional, e segundo o prprio Candido, a respeito de sua concepo crtica, o eixo
do trabalho interpretativo descobrir a coerncia das produes literrias, seja a
interna, das obras, seja a externa, de uma fase, corrente ou grupo. (CANDIDO,
1981, p. 38).
O silncio crtico dado ao gnero lrico, no qual a autora iniciou sua
produo tambm pode ser aplicado obra teatral, desenvolvida a partir de 1967.
Entre os anos de 1967 e 1969, a autora escreve nove peas de teatro. Com exceo
da pea O verdugo, que foi publicada aps receber o prmio Anchieta, o restante de
sua produo teatral permaneceu indita at 2002, quando saem em obra completa
pela Editora Globo. Deste modo, assim como a poesia de Hilda Hilst, seu teatro
passou despercebido pela crtica at bem recentemente. Uma das razes
amplamente difundidas pelos crticos que suas peas ignoram os aspectos da
tradio teatral brasileira, marcadamente um teatro com nfase na ao. O texto
hilstiano traz para o palco personagens lricos e densos, que se sentem mais
confortveis refletindo e poetizando do que agindo.
Em 1969, aps incursionar pelo teatro, Hilda volta a escrever poesia
e tambm d seus primeiros passos pela fico com o conto Unicrnio. No ano
23
seguinte publica a obra narrativa Fluxo-floema, mostrando desde ento a
profundidade metafsica de sua fico j antecipada no gnero lrico e o trabalho
formal inovador tendo como base a linguagem fragmentada que ser a marca de
suas obras posteriores. Esta obra aponta para o amadurecimento da autora.
Segundo Edson da Costa:
A recepo de Fluxo-floema assenta o reconhecimento da importncia da obra da escritora. A partir de ento, aparecerem alguns textos fundamentais para o entendimento do trabalho de Hilst e tambm um excesso de textos, publicados em jornais e revistas, que alm de se restringirem mera repetio superficial de opinies alheias, reforam o mito da escritora genial e incompreendida, revestindo, muitas vezes, a obra da autora com uma aura de impenetrabilidade, como se ela fosse s para iniciados. (COSTA, 2010, p.1).
Conforme aponta Costa, a partir da publicao de Fluxo-floema
que Hilda Hilst conquistar a simpatia de alguns crticos, que atestaro a qualidade
de seu trabalho. No entanto, a maioria dos trabalhos segue repetindo os mitos e os
estigmas atribudos sua obra nos anos anteriores.
A partir de Fluxo-floema, Hilda se dedica tanto escrita ficcional,
quanto lrica, publicando em 1970 as obras ficcionais Qads, Fices, Tu no te
moves de ti; em poesia publica Jbilo noviciado e paixo, Da morte. Odes mnimas.
A partir da dcada de 70, lentamente a obra de Hilda Hilst passa a ser objeto de
interesse de um pequeno nmero de crticos, que realizam artigos ou resenhas mais
aprofundadas sobre os aspectos de sua obra.
No entanto, para a maioria da crtica, principalmente aquela parte da
crtica acadmica que produz suas teses e dissertaes, ou para os crticos literrios
de renome nacional, autores dos tratados e manuais literrios, ela continua um
objeto tabu. Obviamente que h boas excees como a que deve ser feita a Anatol
Rosenfeld que, ao prefaciar a obra Fluxo-Floema, j chama ateno para as
qualidades literrias de Hilda Hilst, condensadas sobre a forma narrativa:
apenas por convenincia que os textos do presente volume foram chamados de "fico" ou "prosa narrativa". Para Hegel o gnero pico-narrativo o mais objetivo. A ele se contrape, dialeticamente, a anttese subjetiva do gnero lrico, sendo o dramtico a sntese, visto reunir, segundo Hegel, a objetividade pica e a subjetividade lrica. Semelhante diferenciao perde o sentido em face dos textos em prosa de Hilda Hilst, j que neles todos os gneros se fundem.
24
Eles so picos no seu fluxo narrativo que s vezes parece ter a objetividade de um protocolo, de um registro de fala jorrando, associativa, e transcrita do gravador; mas so, ao mesmo tempo, nas cinco partes Fluxo, Osmo, O Unicrnio, Lzaro e Floema manifestao subjetiva, expressiva, torturada, amorosa, venenosa, cida, humorstica e licenciosa de um Eu lrico que extravasa avassaladoramente os seus "adentros", clamando com "garganta agnica", do "limbo do lamento", tateando e sangrando, em busca de transcendncia transfigurao. (ROSENFELD apud HILST, 1970, p.16).
Devem ainda ser lembrados os crticos como Renata Pallotini, Lo
Gilson Ribeiro e Nelly Novaes Coelho que tambm escrevem sobre sua obra.
Podemos dizer que de certa maneira esses crticos so os pioneiros ao trazer a
crtica de Hilst, at ento feita, sobretudo, nos jornais e de forma displicente, para o
territrio do consagrado mundo acadmico, do qual eles participam.
Aps 1980, Hilda Hilst alterna a sua produo entre a prosa e a
poesia. Seus textos em prosa continuam trazendo a marca da inovao formal, a
mistura dos gneros e as indagaes metafsicas, que j estavam presentes em
Fluxo-floema. Se sua prosa extremamente moderna, por outro lado, os motivos de
sua poesia so relacionados tradio de uma lrica medieval. No teatro, alm de O
Verdugo, As aves da noite e O rato no muro tambm so encenados. Devido
carga dramtica, outros textos em prosa so adaptados para o teatro. No ano de
1982, a autora passa a participar do programa artista residente da Unicamp e lana
A obscena senhora D, nosso objeto de anlise nesta dissertao. Nesta dcada, a
autora recebe vrios prmios nacionais, incluindo o Jabuti. Esta premiao, que no
resultar na consagrao perante os leitores, mostra, no entanto, que a autora
conquistou o reconhecimento de pelo menos uma parte da crtica literria.
Entre as razes para a mudana desta postura em relao obra
hilstiana, podemos apontar o enfraquecimento da crtica de vis social, ou at
mesmo dialtica que imperava na academia. Nomes como Antonio Candido, Alfredo
Bosi, Roberto Schwarz, continuam sendo referncias em termos de crtica, no
entanto, a eles se soma a viso dos herdeiros do desconstrucionismo derridiano
como, por exemplo, Haroldo de Campos, Silviano Santiago, Costa Lima. Embora
estes autores no estejam necessariamente preocupados com a particularidade da
obra de Hilda Hilst, eles so os formadores de opinio no meio acadmico, e sero
eles que, por meio de um projeto de ruptura com a tradio histrica literria,
25
permitiro que autores sem ptria e sem data possam ser revistos e constituir um
novo cnone nacional.
Na dcada de 90, com a publicao de O Caderno Rosa de Lory
Lamb, a autora d incio a sua obra obscena, na qual se ajuntam Contos d escrnio,
Textos grotescos, Cartas de um sedutor e Buflicas. A publicao destas obras
divide a crtica que se formava em torno da obra da autora. Alguns se calam, outros
acreditam que a qualidade da obra de Hilst est ameaada por estas publicaes.
H ainda aqueles que acreditam que tais publicaes no afetam em nada o valor
da obra de Hilst, pelo contrrio, a autora Eliane Robert Moraes, por exemplo,
destaca nesta tetralogia a desconstruo da histria moral que aproximaria Hilda
Hilst de outros autores da literatura maldita.
Posteriormente dcada de 90, Hilda segue produzindo suas
fices e poesias sem o recurso da obscenidade explcita, mostrando que a
incurso pelo erotismo no contaminou sua produo literria. O nmero de
trabalhos que se debruam sobre a obra de Hilst continua crescendo, mostrando
que a polmica em torno das obras erticas longe de prejudicar sua aceitao junto
crtica acadmica, parece ter contribudo para que mais olhares tomassem sua
obra como objeto de anlise.
Podemos pensar que a mudana da crtica com relao obra de
Hilst no se deve somente ao amadurecimento da obra da autora, mas a prpria
mudana nos paradigmas de anlise crtica. A autora inicia sua produo num
momento em que a crtica transitava entre um pessoalismo, baseado no gosto
clssico, e a insurgncia da crtica acadmica, delineada de um lado pela nova
crtica, de outro pela crtica sociolgica. Sendo que a ltima dominou o cenrio
nacional por muitos anos, e seu projeto de anlise opunha-se claramente
manifestao esttica empregada por Hilst. Isso explica em certa medida o
desinteresse da crtica pela obra da autora at a dcada de 90.
Segundo Cavalcanti (2010, p. 166), a anlise da recepo da obra
hilstiana permite que se estabeleam as bases de um novo paradigma no s da
crtica como da prpria literatura brasileira:
26
O estudo da narrativa hilstiana ajuda a compreender o processo desencadeado por transformaes na literatura brasileira a partir das dcadas de 70 e 80 do sculo passado. Os paradigmas literrios propostos a partir de ento trouxeram um profundo questionamento do cnone. O discurso coeso e universalizante foi deslocado por outro, plural e descentralizado, situado historicamente e consciente das diferenas como valor. A escrita das dcadas finais do sculo XX se enriqueceu com o processo de reflexo terica desse perodo, fruto do Desconstrutivismo, da Nova Histria, dos Estudos Culturais e Ps-Coloniais, do Multiculturalismo e de tantos outros movimentos tericos desse perodo. A proposio mais radical do pensamento finissecular foi a tentativa de desconstruo do sujeito, cujo pretenso universalismo passou a ser percebido como mscara do eurocentrismo, extenso a outras literaturas de reflexes desenvolvidas por parmetros institudos a partir do cnone europeu. Tanto a arte quanto a filosofia desmistificaram a supervalorizao de um sistema de dominao e a identidade entre ele e universalismo, ao mesmo tempo em que denunciavam a proposta de apolitizao contida em seus termos.
Este processo de reviso do cnone de que fala Cavalcanti inicia-se
a partir da dcada de 70, quando comeam a serem traduzidos no Brasil, textos
como os do filsofo francs Jaques Derrida, que retomam alguns aspectos da teoria
estruturalista, mas longe do aspecto cientificista desta corrente anterior. Segundo
Jonathan Culler (1999, p. 122), a desconstruo mais simplesmente definida
como uma crtica das oposies hierrquicas que estruturaram o pensamento
ocidental [...]. Deste modo, os estudos derridianos possibilitam o questionamento
dos discursos tradicionais da historiografia literria. Acerca da importncia do
pensador para a crtica literria brasileira, Eneida Maria de Souza salienta que:
Resta ainda assinalar que as leituras de natureza estruturalista feitas pelos tericos da dcada de 1970 no Brasil - e cito principalmente Affonso Romano de SantAnna, Costa Lima, Silviano Santiago e Haroldo de Campos - provocaram a diferena de abordagem dos textos nacionais, da releitura do modernismo brasileiro, da reviso da historiografia literria, da revoluo na anlise da linguagem da poesia e da narrativa, posio esta que se desvincula do pensamento uspiano, por muito tempo centrado na crtica sociolgica e na criao de uma tradio nacionalista e fundacional de cultura. (SOUZA, 2010, p. 16).
O desconstrucionismo alm da prpria definio de nacionalidade
permitiu que a crtica repensasse a prpria definio de histria. Assim, a literatura
que estava at ento submetida ao panorama tradicional da diacronia, pode ser vista
sob a perspectiva de um estudo sincrnico, conforme enfoca Haroldo de Campos
(1969, p. 214), "A potica sincrnica procura agir crtica e retificadoramente sobre as
27
coisas julgadas da potica diacrnica." Ou seja, o crtico pensa num aporte dialtico
para a arte, que no preconize somente a abordagem histrica, mas sim uma
abordagem esttico-criativa. Assim, valores como continuidade e tradio
passam a ser revistos.
Esta nova abordagem crtica favoreceu a obra de Hilst, primeiro
porque sua poesia trabalha com um contedo de aporte sincrnico, pois embora
pratique modelos medievais como os cantares, as baladas, a poesia satrica, ela o
faz num presente, que opera no por uma linearidade, mas por saltos. Acerca disto
Alcir Pcora nos fala:
Essa imitao antiga jamais se pratica com purismo arqueolgico, mas, bem ao contrrio, se submete mediao de fenmenos literrios decisivos do sculo XX: a imagtica sublime de Rilke, o fluxo de conscincia de Joyce, a cena minimalista de Beckett, o sensacionismo de Pessoa, apenas para referir a quadra de escritores internacionais mais facilmente reconhecvel por seus escritos, ao lado de Becker e Bataille. (PCORA, 2010, p.11).
A obra de Hilda Hilst resulta num processo de desconstruo, pois
ao mesmo tempo em que dialoga com uma tradio literria, recuperando autores,
desconstri-os por inseri-los num construto formal totalmente inovador, brindando
assim seus textos com aportes sincrnicos. Deste modo, parece que a obra de Hilst
se aproxima mais de um projeto de operao sincrnica, ao modo de Haroldo de
Campos, do que uma vontade de insero dentro de uma tradio nacional, ao estilo
de Formao da literatura brasileira de Candido. Conforme Pcora (2010, p. 9), a
distncia que sua obra mantm dos valores modernistas predominantes no Brasil, e
ainda mais em So Paulo, sobretudo no que toca questo do contedo nacional
da literatura, que simplesmente no se pe para ela foi uma das razes da no
valorao da obra hilstiana dentro do cenrio nacional, at um momento recente.
Ao se repensar a juno histrica do texto, pensa-se tambm em
seu papel de mimeses. Deste modo, muito mais que um texto que descreva o
mundo, as obras devem inovar e repensar o prprio papel do fazer literrio,
enquanto construo que desconstri o mundo. Desta forma, outro aspecto da obra
de Hilda Hilst que pode ser contemplado por esta crtica herdeira do
desconstrucionismo a dimenso metalingustica de sua obra. Segundo Pcora
(2010, p. 12), o fluxo em Hilda surpreendentemente dialgico, ou mesmo teatral,
28
sem deixar de se referir ao prprio texto que est produzindo, isto , de denunciar-se
como linguagem e como linguagem sobre linguagem.
Outras teorias derivadas de outros campos do conhecimento, que
chegam ao Brasil aps a dcada de 70, tambm possibilitam a descoberta da obra
hilstiana pelo seu vis mais evidente, que a intertextualidade de discursos. Entre
elas podemos citar a psicanlise lacaniana, a antropologia, a filosofia, a semiologia,
anlise do discurso, os estudos culturais (crtica feminista), embora estas teorias
demorem a fazer escola no Brasil, devido ao momento histrico e poltico pelo qual o
pas passava. Aps a abertura poltica, elas apontam como consequncia imediata a
valorizao de literaturas mpares como as de Hilda Hilst, textos que no podiam ser
filiados noo cannica e por isso mesmo, no podiam ser tidos como objetos de
uma crtica mais ortodoxa como a acadmica, segundo Cavalcanti:
O esvaziamento de referncias importantes, como nao e identidade, ajudou a corroer a viso tradicional. Os grupos minoritrios, de carter tnico ou social, conseguiram romper a muralha criada por uma leitura de mundo que refletia no a riqueza de vozes da humanidade, mas a hegemonia de uma voz: a das formas imperiais do poder nas quais se podia ver a construo de diversos modelos culturais: pai, marido, deus, linguagem, literatura, entre tantos outros. A ao de grupos excludos dos cdigos at ento vigentes acabou por pulverizar qualquer tendncia ideolgica dominante. Por outro lado, o questionamento atingiu camadas internas da literatura: a noo de autoria, os processos de leitura e circulao de textos, os paradigmas da crtica, o pblico, a axiologia esttica, as fronteiras entre os gneros, os critrios de formao do cnone etc. (CAVALCANTI, 2010, p.166-167).
Este novo domnio crtico no se fez sem conflito para uma vertente
mais tradicional da crtica, e at por alguns daqueles que proclamavam a validade
do discurso desconstrucionista. Segundo Souza (2002, p. 68), muitos crticos
consideram que preciso um controle interdisciplinaridade desenfreada que
coloca em risco a manuteno da identidade das disciplinas e a prioridade do
discurso literrio. Para Souza esta crtica ignora os atuais processos de valorizao
literria e cultural, nos quais so inseridos critrios que ultrapassam o campo
particular de cada discurso (SOUZA, 2002, p. 70).
Leyla Perrone-Moiss (1993, p. 29), pensando sobre o papel da
crtica na modernidade, afirma que sobraram a ela dois caminhos: um o da crtica
cientfica proveniente da semiologia, aquela que descreve os textos; a outra da
29
escritura, que prope no apenas decifrar, mas ler por meio de um novo ciframento.
Perrone-Moiss continua e mostra que, apesar destas abordagens serem as que
melhor definem a crtica, h ainda um terceiro discurso, mas que no chega a se
constituir um caminho:
Entre esses dois polos, situam-se os discursos ancorados nas cincias humanas. Esses discursos utilizam a linguagem como instrumento de conhecimento e, como tal, no pertencem mais a uma rea especificamente literria, tendendo a ser anexados s diferentes cincias sobre as quais se apoiam, como aplicaes dessas cincias a um domnio particular da atividade humana. (PERRONE-MOISS, 1993, p. 29).
A posio de Leila Perrone-Moiss representa o pensamento de
uma das correntes da crtica atual; aquela que v nas contribuies das outras
cincias humanas no s uma positividade, mas tambm um risco para o objeto
literrio, caso esses discursos se orientem para um certo saber situado para alm
do texto (PERRONE-MOISS, 1993, p. 29).
Esta obrigao imposta por esta corrente crtica de dosar literrio X
no-literrio, atormenta, muitas vezes, aquele que pretende efetivar uma crtica
comparativa, como o nosso caso: como falar de niilismo, sem falar de filosofia, ou
como falar de Lacan, ignorando a psicanlise? E, em que medida possvel fazer
crtica literria pura ao analisar uma obra como a de Hilst que flerta com outros
campos do conhecimento? O fato que a obra de Hilst, assim como uma srie de
obras da dita contemporaneidade, traz em seu interior este apelo interdiscursivo,
dado claramente pelo recurso da intertextualidade. certamente por esta razo, que
muitos pesquisadores, guiados pelo prprio texto hilstiano acabam optando por uma
anlise que reflete sobre este seu carter de dilogo, fato atestado por inmeras
dissertaes e teses apresentadas sobre a autora. A maioria delas busca efetivar
este percurso intertextual referenciando suas leituras das obras da autora, por meio
da psicanlise, da antropologia, da semiologia, da anlise do discurso e da filosofia.
Essas novas abordagens explicam, como j dissemos, o aumento na
demanda de interessados pela obra hilstiana, verificado a partir da dcada de 90.
Contrapondo aos parcos trabalhos consistentes da dcada de 60, 70 e 80 sobre a
autora, hoje se verifica um grande nmero de teses e dissertaes, abordando no
mais a mulher Hilda, mas a obra em seus diversos aspectos.
30
Alcir Pcora afirma que neste momento, por exemplo, segundo o
levantamento de Cristiano Diniz j so 46 as dissertaes de mestrado
apresentadas sobre ela, inclusive uma na Corua (PCORA, 2010, p. 8). Em
recente consulta ao banco de teses da CAPES, constatamos que atualmente 52 o
total de trabalhos acadmicos j finalizados, observamos tambm um crescimento
gradual a partir do ano 2000.
De certa forma, podemos afirmar que a crtica acadmica hilstiana
d seus primeiros passos se comparada de autores (Clarice Lispector e Lygia
Fagundes Telles, por exemplo, publicam sua obra apenas 7 anos antes de Hilda
Hilst) que iniciaram sua produo quase no mesmo perodo que Hilda Hilst. Prova
disto que a maioria dos trabalhos sobre a autora, ainda se encontram em suportes
como a internet e peridicos extremamente importantes para os pesquisadores, mas
ainda sem o reconhecimento tradicional do livro. Segundo Snia Purceno:
Por ora, no que diz respeito a livros, so pouqussimos os dedicados exclusivamente obra profcua de Hilda Hilst. As fontes para abord-la, entretanto, no so poucas. Um dos maiores entraves para o pesquisador justamente selecionar e agrupar matrias jornalsticas, ensaios e trabalhos acadmicos consistentes, entre os tantos que se encontram dispersos pelo Brasil, a respeito de diferentes aspectos de sua obra. (PURCENO, 2010, p. 107).
31
3 HILDA HILST: UMA ESCRITA ENTRE FRONTEIRAS
Como dissemos, a obra de Hilst rica tanto na dinmica entre os
gneros, quanto no trnsito entre os discursos. A densidade metafsica dos temas
abordados pela obra da autora campinense, variadas vezes tem suscitado nos
crticos a tentao de descobrir ali um vis filosfico mesclado criao literria.
Os textos de Hilda Hilst tocam de uma forma catica e
devastadora, no mago de questes recorrentes da experincia humana, como a
mostrar que nada est de fato resolvido. A autora no busca responder as
aspiraes dos leitores, busca antes resolver seus prprios questionamentos. Ela
no pode expressar suas dvidas em linguagem coerente, porque no h coerncia
na busca do incognoscvel. Isso, durante muito tempo, contribuiu para que os seus
textos fossem considerados tbuas etruscas. Alguns crticos consideram que a
escolha por temas metafsicos somados erudio o que d obra de Hilst sua
dimenso enigmtica. Lo Gilson Ribeiro, na apresentao de Fices (1977, p.
IX), afirma justamente este carter hermtico da obra de Hilst:
Hilda Hilst carrega involuntariamente um estigma: o de nunca talvez vir a ser popular, agradvel, acessvel. Ela que ambiciona tanto ser discutida, focalizada, continuar por uma espcie de condenao intrnseca incompreensvel para a maioria. Porque ela em portugus retratou um Malone agonizante no atoleiro da dvida e das dimenses diminutas de quem no tem antenas para captar o que h ou no h depois da Morte. E porque ela escreveu, em portugus, o equivalente a um Finnegan's Wake de Joyce ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotmico. E poucos tero a imaginao recriadora, a profundeza de propsitos e o mesmo af mstico que ela para embrenhar-se nessa "selva oscura" da alma e do humano estar no mundo.
Ribeiro compara a linguagem de Hilst a de Beckett e de Joyce,
autores tambm tidos como difceis. Na mesma apresentao (1977, p. XI), o
crtico ressalta a influncia kierkegaardiana e afirma a prospeco filosfica sobre o
Tempo, a Morte, o Amor, o Medo, o Horror, a Busca, vista na obra de Hilst, e que
segundo ele, s lhe acrescentam em valor. Ele finaliza sua anlise mostrando seu
positivismo no futuro: O espanto diante da criao de Hilda Hilst crescer medida
que as geraes futuras consigam apreender a grandeza imune ao efmero desta
vivncia escrita, deste arame esticado sobre o abismo da prosa resplandecente
32
deste maior escritor vivo em lngua portuguesa. (RIBEIRO apud HILST, 1977, p.
XII).
Hilda Hilst afirmava, constantemente, em suas entrevistas ser uma
leitora de obras filosficas e fazia questo de mostrar que detinha o domnio de tais
discursos em suas obras. Quando era perguntada sobre o seu cnone de formao
sempre acrescentava a gama de seus escritores preferidos, vrios filsofos clssicos
e modernos. Em uma entrevista ao ser questionada sobre suas preferenciais de
leitura, a autora afirma:
O que e quem a senhora tem relido? Os assuntos variam. Vo do sobrenatural fsica quntica, que absolutamente sobrenatural! Tenho certeza de que a matria da alma ainda ser explicada pela fsica quntica. Leio Joyce, Bataille, dicionrios do sobrenatural, agora comecei a ler o Tratado do Desespero, de Kierkegaard. (HILST apud REVISTA E, 2002).
Em outra entrevista, concedida jornalista Melissa Croceti (2010),
ao ser perguntada sobre suas preferncias contemporneas, Hilda enumera
escritores e filsofos-escritores:
Quais so as suas referncias em relao literatura contempornea? E quais so as suas crticas a ela? Drummond, Guimares, Becket, Bataille, Camus, Kafka, Joyce, Simone e Sartre, Ernest Becker e tantos outros que devo ter esquecido muitos. [...] atualmente leio muitas biografia, filosofia e fsica. Fao principalmente reeleituras.
Na matria da revista Cult de 1998, ao usar a palavra coisa, Hilda
Hilst imediatamente se policia com relao a este uso, recorrendo ao filsofo
Heidegger: Se bem que depois que eu li Heidegger, e releio sempre, no consigo
mais falar "coisa". Heidegger escreveu um livro enorme s para falar o que uma
coisa. Mas esse tipo de conversa voc no pode pr na revista.
Os textos de Hilst, por sua vez, sempre estabelecem possveis
ligaes com o discurso filosfico. Por meio da intertextualidade, eles suscitam no
leitor a curiosidade pelas ideias de variados pensadores, com os quais a autora
parece se relacionar de forma ntima. Isto, sem dvida, contribui para que os crticos
busquem em seus textos a marca deste trnsito pelo terreno filosfico.
33
Comumente saltam as pginas de seus livros nomes e ideias de
diversos pensadores, conforme poderemos observar a seguir.
Em uma crnica tratando de assuntos polticos a autora diz: Tem
sido mais fcil compreender Heidegger, Wittgenstein, snscrito, copta, do que
compreender explicaes de ministros e quejandos. (HILST, 1998, p.41). Este um
procedimento muito comum em suas crnicas. Hilda Hilst, frequentemente, entre um
comentrio cotidiano e outro, brindava o leitor com o nome ou a ideia de algum
filsofo. Presumindo o desconhecimento de seu pblico, colocava ao lado do nome
a palavra informe-se e abaixo uma referncia sobre o autor, semelhante ao recurso
usado em enciclopdias.
Das pginas do livro Kadosh surge o nome do filsofo clssico
Plotino: Sobre o leito um punhal. Sobre o leito os textos de Plotino. (HILST, 2001,
p.41). E o leitor, que conhecendo um pouco das ideias deste pensador, no se
demorar a identificar a influncia de seu pensamento no discurso da personagem
acerca do tempo. Em cartas de um sedutor, o prprio ttulo identifica a relao com a
filosofia de Kierkegaard. E se resta alguma dvida, de que reside ali uma influncia
do Dirio de um sedutor, ela sanada pelo personagem central Stamatius que
confirma a descoberta do leitor dizendo: Tenho meia dzia daquela obra-prima A
morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierkegaard (HILST, 2002, p. 16).
Stamatius mostra explicitamente o valor que a obra de Kierkegaard apresenta para
sua vida, destacando-a ao lado do que considera uma obra-prima. Para Cavalcanti
(2010, p.96), no h dvida: Hilda constri uma pardia do Dirio de um sedutor.
Se algumas vezes as referncias so pontuais e ligam diretamente
filsofo e tema, outras vezes, as marcas do discurso filosfico surgem por meio da
intertextualidade indireta. Por exemplo, a influncia do discurso batailliano na obra
de Hilst no pode ser apontada de forma to direta quanto de Kierkegaard e
Plotino, embora as figuras obsessivas do Deus-porco e do olho permitam a ligao
com pensador francs. Em A obscena senhora D, os eptetos Hill e D permitem a
correlao ao discurso de Aristteles e Heidegger. Tambm as ideias de Camus,
acerca do homem absurdo, se refletem na postura da personagem central, no
entanto, o texto no mostra claramente as marcas desta influncia.
Nos textos lricos de Hilst, o discurso apropriado da filosofia se
mostra tanto explicitamente, como implicitamente. Em alguns casos, a roupagem
lrica no permite a certeza de sua origem; em outros casos, a referncia fica
34
evidente, como no caso do poema Tempo-morte (nmero 4), Da morte. Odes
mnimas, em que o eu-lrico diz: Tempo-morte/ procurar-te/ estar montado sobre
um Leopardo/ E tentar ca-lo. (HILST, 2003b, p.74). A imagem, imediatamente,
remete o leitor mais atento metfora de Nietzsche.
Essas mltiplas referncias filosficas, dadas pela densidade do
texto hilstiano, muitas vezes se colocam como encruzilhada para o pesquisador,
vido por escolher um entre os muitos caminhos desta literatura de fronteira. Gisele
do Rocio Borges (2008, p.10), por exemplo, afirma esta qualidade da obra de Hilst e
tambm faz suas escolhas:
As obras de Hilst remetem o leitor atento a uma vasta gama de vertentes do pensamento filosfico, ainda que indiretamente abordadas, notadamente as de Friedriech Nietzsche, em especial no que tange morte de deus e suas conseqncias ps-modernidade. Theodor Adorno e Alexander Lowen tambm encontram-se presentes na literatura hilstiana, no contexto da interdio sexual e as limitaes do indivduo da originadas.
Esta relao entre a obra de Hilst e o discurso filosfico parece ser
to evidente, que chega a convencer a prpria Hilda Hilst, onde numa entrevista, ao
ser questionada por que nunca pensou em escrever filosofia, no hesita em
responder: "Eu escrevo filosofia em todos os meus livros. Com fundo narrativo ou
no, filosofia pura." (apud CULT, 1998).
Como j dissemos, esta mltipla possibilidade de leitura da obra de
Hilst pelo seu vis interdiscursivo, tem se mostrado muito tentadora, principalmente,
aps a dcada de 90. Em recente pesquisa, realizada em sites de busca como o
Google acadmico e no banco de dados da CAPES, encontramos uma srie de
trabalhos que efetuam um dilogo entre a obra de Hilst e outros autores, tanto
literrios quanto de outras reas do conhecimento. Em sua maior parte, eles buscam
estabelecer uma relao temtica entre Hilst e nomes como Beckett, Bataille, Lacan,
Blanchot, Foucault, Kierkegaard.
No que se refere ao dilogo com a filosofia, embora muitos trabalhos
apontem o carter filosfico do texto hilstiano, ainda so poucos os trabalhos que se
debruam especificamente sobre esta relao. Rosanne Bezerra Arajo (2009, p.19)
aponta que no estudo da obra de Hilst, em relao filosofia, foi constatada uma
lacuna.
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Em nossa pesquisa, observamos que, embora muitos trabalhos
(artigos em sua maioria) apontem que trataro dos temas metafsicos e ontolgicos
da obra hilstiana, poucos de fato levam adiante tal propsito. Entre os trabalhos que
parecem ter alcanado sucesso na tentativa de estabelecer os domnios destas
fronteiras discursivas (filosofia-literatura), destacamos aqui trs produes de grande
flego, sendo respectivamente duas teses e uma dissertao.
O primeiro trabalho destacado trata-se da tese de doutorado de
Rosanne Bezerra de Arajo (UFPE), intitulado Niilismo herico em Samuel Beckett e
Hilda Hilst: Fim e recomeo da narrativa. Este trabalho foi apresentado em 2008 e
consta do banco de dados CAPES. Nele, a autora busca fazer uma aproximao
entre a obra de Hilda Hilst, de Friedrich Nietzsche e de Samuel Beckett pelo vis do
que a autora denomina niilismo herico. Segundo Arajo, o chamado niilismo
herico na obra destes trs autores pode ser:
[...] evidenciado na resistncia contra a morte e o fim do texto literrio. Atravs da anlise do enredo, dos narradores e da linguagem dessas narrativas, possvel descobrir uma centelha de esperana para os personagens, imersos em desespero e perdidos na torrente niilista de seus pensamentos. O niilismo herico pode ser observado na persistncia e permanncia da linguagem. Embora o narrador produza um discurso problemtico e fragmentado, ele persiste nos seus pensamentos. Sabe que haver um fim, mas, mesmo assim, segue tentando, sem cessar de falar. (ARAJO, 2009, p. 6).
Ainda que destaque que sua anlise ser feita do ponto de vista do
literrio e no visando incorporar a obra de Hilst e Beckett chamada filosofia
niilista, Arajo tem como discurso de base para sua anlise a filosofia niilista de
Nietzsche. Pensando nesta relao, a autora mesma caracteriza o vis
interdiscursivo de seu trabalho, segundo ela:
A ateno voltada para como a forma literria e seu contedo esto ligados realidade e como os textos so afetados esteticamente. Com relao ao niilismo, Nietzsche o autor mais relevante para o desenvolvimento desta tese, que busca estabelecer um elo entre a decadncia filosfica e a decadncia literria. (ARAJO, 2009, p. 6).
O segundo trabalho trata-se da tese de Jos Antnio Cavalcanti
(UFRJ), intitulado Deslimites da prosa ficcional em Hilda Hilst: uma leitura de Fluxo,
Estar sendo. Ter sido, Tu no te moves de ti e A obscena senhora D, defendida em
36
2010. Em seu trabalho, o autor chama a ateno para a proximidade do pensamento
de Hilst e de Heidegger, do que ambos tm de nfase no potico como forma
inaugural de linguagem e luta contra o apagamento do ser. Ainda que Cavalcanti
eleja outros autores, como por exemplo, o tambm filsofo, Giorgio Agamben, sua
dvida para com as teorias de Heidegger so claras, como quando fala das
caractersticas da criao esttica:
A criao o hiato entre o nada e o criado, entre o no existir e o vir- ao-mundo. Aquilo que gerado j no est no momento da prpria gerao, apesar de carreg-lo para sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora vige a inapreensibilidade da existncia, fluxo contnuo e simultneo de vida e morte. (CAVALCANTI, 2010, p.17).
Alm das terminologias heideggerianas adotadas na construo de
suas ideias, Cavalcanti no decorrer de todo o percurso de sua anlise manter como
farol as ideias de Heidegger, pois segundo o pesquisador: Heidegger concede
grande relevncia poesia no processo de desocultao da verdade, entendida
como um acontecimento que se d mediante um processo radicado na poeticidade,
[...] (CAVALCANTI, 2010, p. 20).
O terceiro trabalho, o mais recente entre todos, marca o encontro
entre o pensamento de Hilst, de Kierkegaard e de Camus. Trata-se da dissertao
de mestrado de Willian Andr (UEL), intitulada, Kierkegaard. Camus. Hilst: no
labirinto da angstia, defendida em 2012. Neste trabalho o autor, semelhante a
Cavalcanti, se detm no papel da conscincia potica na obra de Hilda Hilst,
vinculando-a ao pensamento sobre o esttico de Kierkegaard e ao absurdo de
Camus. O autor aponta como a angstia e o absurdo se equivalem, e em que
medida o sentimento lrico uma necessidade resultante do confronto entre o
homem e o mundo absurdo e angustiante. Ainda que o autor busque eliminar as
fronteiras entre a filosofia e a literatura, trazendo baila um Kierkegaard poeta, no
podemos nos esquecer de que Kierkegaard, assim como Nietzsche e Heidegger,
est fixado pela tradio no territrio da filosofia. O que garante mais uma vez o
carter interdiscursivo ao trabalho de pesquisador.
A apresentao destes trabalhos, todos recentes, nos permitem
duas concluses. A primeira que a abordagem da obra de Hilst por meio da
aproximao destes dois campos do conhecimento: a Filosofia e a Literatura, ou o
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que tradicionalmente se definiu como discurso peculiar a estes campos do
pensamento, um empreendimento recente. Segundo, que afora estes trabalhos
apontados, certamente outros acabam de ser concludos, ou esto a caminho da
concluso, vindo em breve a estarem disponveis para consulta. Aumentando as
pesquisas de grande flego sobre o assunto, que no momento so poucas,
conforme j enfocamos.
Como contribuio nossa pesquisa o que os trs trabalhos acima
citados nos permitem, de forma geral, repensar as fronteiras entre o objeto literrio
e a prpria construo ontolgica dos sujeitos, pensada tradicionalmente pelo
discurso filosfico; e de forma especfica, em que medida a dvida existencial do
homem repercute na sua linguagem potica. Ou ainda, em que medida esta
linguagem se configura para o homem um universo de salvao do aniquilamento
total do ser.
3.1 REINTRODUO
Como vimos, neste territrio de fronteiras discursivas exposto pela
obra de Hilst, cada pesquisador escolhe sua trilha. Da mesma forma, somos
tentados a descobrir por entre os mltiplos caminhos que a obra indica aquele que
melhor atende nossas prprias expectativas. Pois consideramos que, embora a obra
indique muitos caminhos, a anlise crtica sempre uma escolha baseada em nossa
prpria experincia.
Assim, somos levados a enxergar na obra de Hilst uma relao com
o pensamento de Aristteles, Heidegger e Camus. Esclarecendo que pautaremos
nossa anlise sempre a partir da linguagem hilstiana. Assumindo-a como ponte
entre a experincia literria e a experincia filosfica. Usando a metfora do espao
entre fronteiras, podemos dizer que nos posicionaremos estrategicamente no
territrio da literatura, olhando para o territrio filosfico deste ponto, que
certamente nosso ponto de segurana.
partindo da hiptese da linguagem como possibilidade inaugural
de encontro do ser, que nossa anlise se configurar. Queremos demonstrar que
quando o homem moderno, marcado pelo excesso de racionalidade, repensa sua
existncia em termos de origem e funo, se depara com o silncio e o vazio. Se
antes havia esperana para este homem por meio da religio ou da viso positivista
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da cincia, o presente se apresenta como o lugar de fracasso de ambas as
possibilidades. Deus est morto, e a cincia presa em sua prpria racionalidade
limitadora. A filosofia se coloca como uma possibilidade, mas no seu determinismo
existencialista aponta para a mesma falncia que a religio e a cincia. Assim se
clarifica que o pensamento no pode estar sob a tutela do utilitarismo humano.
Este homem moderno, e aqui tomamos moderno como aquele que
deriva do conturbado sculo XX, encontra-se num mundo escuro, preso a uma
linguagem que no responde as suas dvidas, mas que o nico caminho de
chegar a algum lugar. Logo, est nesta capacidade mltipla da linguagem sua nica
possibilidade de retomar seu lugar inaugural de sujeito, no mais como indivduo
uno e centralizado, mas como reverberaes mltiplas, recordaes de um sujeito
proteico. Por isso que a linguagem agora assume um papel esttico e no mais
utilitrio; no h possibilidade de comunicao entre os sujeitos, seno pelo que eles
tm de silncio e vazio. E segundo Heidegger, a linguagem que melhor explora o
silncio do sujeito inaugural a poesia, ainda que no sirva do mesmo modo
especulao da essncia das coisas, tradicionalmente atribuda ao pensamento.
Assim, o sujeito da narrativa de Hilst um sujeito vacilante entre a razo e a poesia.
Ele desponta como um representante do caos moderno, um homem absurdo, que
no consegue estabelecer contato nem com a realidade imanente, representada
pelos demais indivduos em sociedade, nem com a transcendncia representada
pela figura clssica da deidade e seu ideal de vida eterna. Para este homem surge
uma realidade que a maioria ignora. A vida s adquire seu significado pelo que ela
tem de subjetiva. A morte e o tempo cclico no se colocam para este sujeito. Vida e
tempo so o sentir e o tocar, afora isso, somente o universo da linguagem se coloca
ainda como um sentido simblico, ltima possibilidade de transcender alm da
realidade material.
Nosso trabalho, enfocando a questo do sujeito desnorteado e
absurdo da obra hilstiana em questo, contemplar inicialmente uma possvel
relao a ser feita com alguns dos conceitos oriundos da filosofia aristotlica e
heideggeriana, para depois adentrar no conceito do absurdo, trabalhado por Albert
Camus em O mito de Ssifo, e que em nossa concepo transparece na obra A
obscena senhora D. Tambm nos utilizaremos de outros arcabouos tericos, alm
dos citados, tanto da Crtica Literria, quanto da Filosofia.
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Com o objetivo de efetivar este estudo comparativo, como j nos
referimos, logo acima, escolhemos a obra A obscena senhora D, de Hilda Hilst,
escrita em 1982. Este livro serve como um rizoma4 da obra geral de Hilda Hilst, j
que ali esto concentradas as caractersticas peculiares de outros livros como:
Fices, Tu no te moves de ti, Kadosh, Estar sendo ter sido. Por algumas vezes
faremos referncias a estas obras de forma a mostrar este processo de repetio
que ocorre n A obscena senhora D e que estruturam a prosa hilstiana. Nosso
estudo, por opo metodolgica, no contemplar nenhuma meno direta poesia
e ao teatro hilstiano.
4 A ideia de rizoma apresentada por Deleuze e Guatari na introduo de Mil Plats (Capitalismo e
Esquizofrenia), 1995. Refere-se a uma concepo paradigmtica do pensamento atual. Com relao ao objeto literrio tal definio aplicada a um texto que espalha referncias a outros textos; que envolve o texto num descentramento e multiplicidade, colocando-o como intermezzo de toda construo literria.
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4 AS OBSESSES METAFSICAS HILSTIANAS
Como j apontamos anteriormente, muitos estudos acerca da obra
de Hilda Hilst no cansam de buscar uma aproximao com o universo do
pensamento filosfico. A isso se devem dois fatores: o primeiro de origem externa
ao texto e refere-se condio da autora enquanto leitora de filosofia. Esta forma de
anlise encontra-se normalmente disseminada na abordagem geneticista que busca
encontrar na obra de Hilst uma correlao direta com a leitura dos muitos filsofos
por ela empreendida. O segundo fator diz respeito ao prprio texto hilstiano que no
cessa de propor indagaes metafsicas, dialogando com os mais diversos campos
do conhecimento, sendo um dos mais notveis a filosofia. Segundo salienta
Cavalcanti:
Hilda Hilst no considera nenhum territrio como espao intransponvel, razo pela qual invade todas as formas discursivas, da pornografia ao drama, da poesia filosofia. Talvez em um grau mais intenso do que em outros autores da literatura brasileira, ela parece atravessar sem culpa e sem preocupaes as fronteiras montadas por sculos de cultura entre poesia e filosofia. (CAVALCANTI, 2010, p. 27).
Este dilogo hilstiano com o campo filosfico ocorre algumas vezes
de forma direta, mas na maioria das vezes, a intertextualidade subjetiva e
internalizada no objeto literrio em si, no havendo referncia direta abordagem
filosfica com a qual o texto dialoga. Desta forma o pesquisador que buscar fazer
ligaes diretas do texto hilstiano com a filosofia pode facilmente sentir-se em
dificuldade para atingir seus objetivos.
O fato que os escritos de Hilda Hilst empreendem uma
ressignificao dos termos filosficos em prol de seu aproveitamento literrio. Por
seus textos vemos circular muito do pensamento filosfico ocidental, mas no mais
como conceitos puros de filosofia, mas sim conceitos mesclados a outras reas do
pensamento e transformados em anseios e divagaes dos personagens. Ao pensar
esta relao com o pensamento filosfico, que se extrai da obra hilstiana, nosso
objetivo, portanto apontar que valor esta correspondncia assume sobre a forma
de uma fico moderna.
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A fico hilstiana, embora sempre surpreenda por suas inovaes
estticas e formais a cada novo ttulo, redunda ao propor um pano de fundo
ancorado em questes transcendentes, como Deus, o tempo, a morte, a essncia do
ser. Tanto na fico quanto nas demais obras, estas questes assumem o carter
de verdadeiras obsesses metafsicas, pois esto sempre sendo recuperadas
pelos personagens e eu-lricos dos diversos livros da autora. Para explicar em que
sentido estamos chamando as indagaes hilstianas de obsesses metafsicas,
preciso esclarecer o que entendemos pelo termo metafsica.
A metafsica inicialmente trata-se de uma disciplina fundamental da
filosofia destinada ao estudo de objetos transcendentes da realidade humana, o que
significa dizer que estariam sob sua tutela questes que escapariam possibilidade
de apreenso emprica, como a existncia de Deus, para onde vo os mortos, entre
outros.
Segundo Heidegger (2006, p.47) o term
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