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ESCOLARIZAÇÃO E CULTURA INDÍGENA ENTRE OS TEREMENBÉS EM
TUTOIA-MARANHÃO
TELMA BONIFÁCIO DOS SANTOS REINALDO*
RESUMO
Investigou-se a contribuição da escolarização desenvolvida no município de Tutoia-Maranhão
para a preservação da cultura indígena em uma escola localizada na zona urbana no referido
município. Utilizou-se a pesquisa qualitativa para fins de recolha de dados e os instrumentos
questionário ao gestor da escola e a oito professores e entrevista a dezesseis alunos, de forma
aleatória, que cursavam o ensino fundamental em anos diferenciados, com possibilidades de
respostas livres, e as entrevistas gravadas em áudio, transcritas e validadas pelos participantes.
Os resultados foram complementados com notas de campo registradas durante seis meses.
Esteve-se presente a reuniões pedagógicas na escola lugar da investigação, inclusive
assistindo a algumas aulas. A revisão da literatura consolidou as informações acerca da
história, da cultura e da legislação no que concerne à escolarização indígena. Os principais
resultados revelaram que a escola não reflete ainda a cultura da comunidade indígena em
questão, considerando que os arranjos escolares existentes são inspirados e planejados à luz
de um corpus teórico-prático que não representa as heranças culturais daquela comunidade.
Palavras-chave: Escolarização. Cultura Indígena. Gestão Escolar.
1 INTRODUÇÃO
No presente trabalho procuramos fazer a interface entre a escolarização e a cultura
indígena em uma escola de ensino fundamental, dando ênfase à historicidade dos povos
indígenas que habitaram a região correspondente ao município de Tutoia-Maranhão, para
identificar como se dá a escolarização indígena naquela escola e se esta contempla a
valorização desses povos nativos, identificados pelo seu grupo linguístico como sendo
Teremenbés ou Tremembés.
Nesse contexto, implica analisar a relação entre a escolarização e a cultura
indígena por meio das práticas pedagógicas escolares desenvolvidas na comunidade. Esse
* UFMA, Doutora em Ciências da Educação.
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objetivo vincula-se à necessidade de abordarmos o papel da escola e sua responsabilidade pela
preservação da cultura indígena.
O interesse pelo tema está condicionado aos anos de experiência como professora
formadora de professores da educação básica em algumas localidades maranhenses. As
situações ali vivenciadas nos levaram a perceber a pouca valorização dada pela escola à
cultura indígena, como também pelo não índio (karaiw romo) e até mesmo descendentes
indígenas que, ao longo do tempo, estão se distanciando de sua historicidade, fato atribuído,
na maioria das vezes, à ideologia dominante na sociedade capitalista. Esta, por sua vez, não
tem contribuído para preservação dessa cultura tampouco tem lhe dado a devida importância
na sociedade brasileira.
Nesse sentido, esta reflexão trouxe contributos significativos para o meio
acadêmico e para os professores que militam em sala de aula, seja nas aldeias indígenas, seja
na zona urbana municipal, uma vez que evidenciamos as dificuldades no tratamento das
questões indígenas na escola de educação básica. Além disso, constatamos que, apesar das
Políticas Públicas e das propostas elaboradas e implantadas pelo Ministério de Educação e
Cultura – MEC, ainda não foi possível reverter esse quadro que se traduz por uma distância
entre o conhecer e o operacionalizar tais políticas.
Portanto, investigar sobre a escolarização indígena traz à tona as inquietações, que
geram discussões em nível nacional e estadual, assim como as produções que têm se ampliado
nesse campo a partir dos anos noventa. Tudo isso coaduna-se também com os pressupostos
legais da Constituição Brasileira, de 1988, no capítulo específico (Dos Índios) inserido no
Título III, com a Lei n. 11.645/2008, que altera a Lei n. 10.639/2003, que, por seu turno,
altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a qual passou a vigorar a partir de 1º
de março de 2008, em cujo artigo 26 consta: “nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e
de Ensino Médio, pública e privada, torna-se obrigatório o estudo da História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”.
Devemos destacar que, no momento atual, percebemos um certo retrocesso no
que diz respeito à valorização da cultura indígena, quando discutimos em plenários
constituintes a sua não obrigatoriedade na escola básica.
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O depoimento a seguir, publicado nos Referenciais para Formação de Professor
Indígena, demonstra a preocupação do depoente quanto a essa questão:
Nosso papel como professor indígena é este: pensar e descobrir o que está
acontecendo para que a agente possa melhorar, criando uma política de defesa e de
maior esclarecimento sobre o que é a nossa educação. Só assim vamos poder sentar
juntos e ajudar uns aos outros (BRASIL, 2002: 31).
Esta fala pode dar sentido à valorização da cultura indígena pelos profissionais da
educação que buscam construir e compartilhar conhecimentos com seus alunos nativos,
aproximando-os da diversidade cultural existente em nossa sociedade.
No entanto, apesar do reconhecimento de que nos últimos anos do século XX, e
no início deste século, as políticas de escolarização indígena vêm atendendo, de algum modo,
aos interesses dessa população nativa, verificamos limitações em suas implementações, pois,
conforme aponta Azevedo (1996),
Para melhor compreender o desenvolvimento da educação escolar indígena no
Brasil, além das políticas implementadas, faz-se necessário investigar também a
legislação, pois, um dos mais preciosos documentos para o estudo da evolução do
caráter de uma civilização se encontra na legislação escolar, nos planos e
programas de ensino e no conjunto das instituições educativas (AZEVEDO, 1996:
56).
Assim, podemos dizer que, apesar dos avanços e conquistas, o processo de
escolarização indígena, com vistas à promoção de uma educação intercultural e bilíngue,
apresenta ainda um cenário para interpretações múltiplas, tanto que fundamentamos nossa
reflexão levando em consideração que na escolarização indígena pouco se tem dado ênfase à
preservação da cultura indígena, dado que dificulta sua valorização que sempre foi vista como
inferior por nossa sociedade.
2 A ESCOLARIZAÇÃO INDÍGENA
No Brasil, o processo de escolarização indígena teve início com a presença dos
jesuítas em nosso território, com o fito de convertê-los à fé cristã, fato que nos remete a
pensar que, desde sempre, a educação escolar indígena teve importância nas relações de poder
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da Igreja e do Estado. Porém, percebemos que este é um indicativo de diferenças culturais e
étnicas existentes desde então e que justificavam aos indivíduos aculturar os nativos às
condições que a metrópole desejava, tanto que coube aos missionários jesuítas atuar em
projetos de alfabetização e educação escolar nativa para integrá-los à sociedade daquela
época.
Por outro lado, vozes e ações articularam-se através dos tempos contra esse
projeto integracionista, a exemplo, o modelo contemporâneo de educação escolar indígena,
que se apresenta com projetos alternativos à política oficial e aos movimentos indígenas desde
a década de 1970, assegurado pela Constituição de 1988, passando a se configurar uma
política de Estado.
Conforme os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indí-
gena (BRASIL, 2005), esta corresponde a uma forma sistemática de educar as comunidades
indígenas de tal forma que estes possam ter acesso aos conhecimentos universais sistemati-
zados pela escola básica nacional mediante documentos legais que regularizam e uniformizam
os conteúdos curriculares.
A proposta de uma educação escolar indígena também denominada educação
formal, que está presente nos RCNEI (BRASIL, 2005), não deverá ser de adaptação dos indí-
genas aos conhecimentos da sociedade não-indígena nem de adaptação dos conhecimentos da
sociedade não indígena ao contexto sociocultural indígena, mas sim de construção conjunta de
um saber intercultural.
É nesta perspectiva que este estudo pretende investigar como a educação formal
“escolarizada” tem articulado o ensino e a aprendizagem na rotina escolar em uma dada
realidade e como é desenvolvida a preservação e valorização da cultura dos índios da região
(Teremembés), de forma a contribuir para a sua autoidentificação, tendo em vista que
A escola entrou na comunidade indígena como um corpo estranho, que ninguém
conhecia. Quem a estava colocando sabia o que queria, mas os índios não sabiam,
hoje os índios ainda não sabem para que serve a escola. E esse é o problema. A
escola entra na comunidade e se apossa dela, tornando-se dona da comunidade, e
não a comunidade dona da escola (FREIRE, 2004: 28).
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Conforme Freire (2004), a escola entrou na comunidade indígena impondo sua
cultura de forma a fazer um transplante cultural a serviço dos interesses da corte portuguesa,
que via no nativo a oportunidade de aumentar seus súditos tanto no viés político econômico
como religioso. Mesmo tendo a clareza de que os nativos preservavam sua cultura no viés
consuetudinário, ou seja, de pais para filhos, o colonizador desenvolveu práticas educativas
que se diferenciavam da escolarização antes vivenciada (RIBEIRO, 1996: 127).
Segundo Leonardi (1996), a escolarização naquele momento seria uma via de mão
única que objetivava impor ao nativo a cultura dominante e, para tanto, haveria necessidade
da edificação do espaço escolar, no qual a escola, independentemente das condições históricas
existentes no contexto no qual está inserida, selecionaria os saberes existentes, a fim de
organizá-los com um objetivo predefinido, no caso específico, “a aculturação indígena”, para
o que seria necessário catequizar os índios nos moldes da empreita colonizadora exigida pela
metrópole. Ainda segundo Freire (2004):
Quando a escola foi implantada em área indígena, as línguas, a tradição oral, o
saber e a arte dos povos indígenas foram discriminados e excluídos da sala de aula.
A função da escola era fazer com que estudantes indígenas desaprendessem suas
culturas e deixassem de ser indivíduos indígenas. Historicamente, a escola pode ter
sido o instrumento de execução de uma política que contribuiu para a extinção de
mais de mil línguas (FREIRE, 2004: 24).
Para Grupioni (2008), a instituição escolar, ao se constituir como responsável pela
instrução das novas gerações, não o faz de forma neutra e consensual, mas, sim, intencional,
buscando resgatar valores que estão implicados na base da ideologia dominante, sobrepondo
os valores europeus à cultura local.
Desse modo, o termo escolarização utilizado tem um duplo sentido, mas
intimamente relacionados. Num primeiro momento, escolarização pretende designar o
estabelecimento de processos e políticas concernentes à "organização da educação europeia”
em terras brasileiras, ou seja, impor ao nativo os valores considerados autênticos de uma
sociedade em desenvolvimento; num segundo momento, se traduz por apagar do contexto
dominado a cultura considerada exógena e desprovida dos valores morais e religiosos da
época (GRUPIONI, 2008: 49).
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A escolarização indígena, sem dúvida, teve e ainda preserva um viés religioso,
apagando através da religiosidade cristã alguns ensinamentos indígenas, dentre estes, o
domínio da cura por meio das orações e bebidas medicinais.
Para que essa escolarização se concretizasse, foi instituída a Língua Geral, fruto
da adaptação de vários dialetos indígenas e considerada obrigatória a todos os índios aldeados
e batizados na religião católica. Assim, tornar-se-ia fácil a aprendizagem das orações e dos
ensinamentos morais e disciplinadores impostos pelos jesuítas. Essa conversão durou até
1757, quando os jesuítas deixaram de contar com a proteção da Coroa portuguesa, sendo
expulsos do Brasil, muito embora a colonização tenha continuado através dos colonos
portugueses radicados na colônia (LUCIANO, 2006: 112).
A criação do Diretório dos Índios, tendo à frente um diretor nomeado pelo
governador-geral, se incumbiu de transformar as aldeias indígenas em vilas e a proibir o uso
da língua nativa e ou mesmo da língua geral criada pelos jesuítas, perdurando esse domínio
até 1798 quando foi revogado o Diretório dos Índios.
Em 1845 foi criado o Regulamento das Missões através do Decreto 426, de 24 de
julho de 1845, que tratava das diretrizes gerais para a reintrodução de missionários no Brasil a
fim de tomarem conta da catequese e civilização dos indígenas, tomando por base o sistema
de aldeamento necessário para a continuação da catequese das crianças e dos adultos
indígenas. Para tais catequizadores, o desenvolvimento econômico que dependia do trabalho
indígena só seria possível se essa população fosse catequizada e integrada ao trabalho junto
com os trabalhadores não indígenas (MELIÁ, 1999: 65).
Para tanto, incluíram, além dos ensinamentos de ler e escrever, a aprendizagem de
alguns ofícios necessários para o desenvolvimento da colônia, regulamentados pela criação do
Regulamento da Catequese e Civilização dos Índios (1845), propondo a criação de oficinas de
artes mecânicas e o estímulo à agricultura bem como o treinamento militar e o alistamento dos
índios em companhias especiais, como as de navegação (GRUPIONI, 2006).
Ainda segundo Grupioni (2006), por volta de 1870, algumas províncias criaram
institutos de educação, internatos e ou orfanatos para crianças indígenas, com o fim de
transformá-las em intérpretes linguísticos e culturais para auxiliar os missionários na suposta
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civilização dos seus parentes. Essas escolas localizavam-se fora da área dos aldeamentos e
pretendiam oferecer às crianças indígenas não só a instrução primária elementar, mas também
tarefas doméstica e manufatureira que contribuíssem para o desenvolvimento local.
Para Amoroso (2000),
A presença de não índios nos aldeamentos do século XIX fez com que, na maioria
das vezes, a escola e outras instituições de apoio às populações indígenas aldeadas
acabassem atendendo aos não índios, usando para isso a verba destinada à
catequese dos índios (AMOROSO, 2000: 138).
Assim, o período imperial que perdurou entre os anos de 1808-1889, se
caracterizou, segundo Ferreira (2001), por debates em torno da educação escolar mantida pelo
poder público estatal, para atender aos interesses dos governantes e ofertada à população
indígena associada ao ensino de ofícios, com vistas ao atendimento das necessidades locais,
sob o comando das missões religiosas.
Nos anos posteriores, o Estado brasileiro criou uma política indigenista com a
intenção de desconstruir a imagem que tinha o país na sociedade internacional, criando para
isso o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que foi extinto em 1967, tendo sido atribuições
repassadas para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão responsável pela organização
das normas de aldeamento e convivência pacífica da sociedade com os índios (FERREIRA,
2001: 82).
Para Ferreira (2001), a grande preocupação das políticas indigenistas foi sempre
atuar no sentido de escolarizar o índio para que este se tornasse produtor e consumidor das
tecnologias produzidas pelos não índios, constituindo também uma reserva alternativa de mão
de obra barata para abastecer o mercado de trabalho.
Parafraseando Thompson (1984: 271), podemos dizer que na transição de uma
sociedade não escolarizada para uma escolarizada, a tensão desta recai sobre a totalidade do
social, não deixando intocada nenhuma de suas diversas dimensões. Essa tensão pode ser
percebida não apenas naquilo que toca diretamente a escola e seu entorno, mas naquilo que de
mais profundo há na cultura e nos processos sociais como um todo: as formas de comunicação
e as formas de educação dos sujeitos, passando pelas inevitáveis dimensões materiais
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garantidoras da vida humana e de sua reprodução; tudo isso se modifica, mesmo que
lentamente, sob o impacto da escolarização.
Essas ações educacionais são reforçadas, segundo Santos (2005), na vivência que
se estabelecem no dia a dia na escola que deveria ser o lugar onde a diversidade e a prática
social resultasse na luta para amenizar as contradições existentes na sociedade, conforme nos
lembra Freire (2003):
Tanto mais pobre seja uma nação, mais baixos padrões de vida das classes
inferiores, maior será a pressão dos estratos superiores sobre elas, então
consideradas desprezíveis, inatamente inferiores, na forma de uma casta de nenhum
valor. As diferenças acentuadas no estilo de vida entre aquelas de cima é as de
baixo apresentam-se como necessariamente necessárias (FREIRE, 2003: 94).
Essa desigualdade, da qual se ocupa Freire nas suas análises, é mascarada no
discurso da igualdade e tende a imputar ao fracasso escolar as condições sociais que estão
fora da escola para atender o desenho de sociedade capitalista e assim a duplicidade cultural
na qual estamos inseridos, visto que nossos professores ainda não alcançaram em sua
maioria o nível de conhecimento cultural necessário para garantir a preservação dessa
sociedade tão desestruturada pelos seus antepassados.
D’Angelis (2005) confirma essa tendência, destacando que
Os professores indígenas só alcançam a verdadeira compreensão de que sua língua
é efetivamente uma língua, em tudo organizada, regrada e complexa como a língua
portuguesa (ou outra língua europeia), quando passam a analisá-la com a mesma
nomenclatura e minúcia que viram ser aplicada ao português, em sua experiência
escolar. O impacto disso na autoestima chega a ser evidente (D’ANGELIS, 2005:
40).
Para esse autor, a escola é um lugar que contribui para a construção do futuro; se
os indígenas não se alfabetizarem em sua língua, esse processo acontecerá somente na língua
majoritária e, dessa forma, “a invasão cultural estará colocada na escola, bem no centro da
vida da aldeia” (D’ANGELIS, 2005: 16). Por outro lado, a oralidade dos nativos estará
alijando-os do conhecimento da língua nacional tão requisitada nos meios sociais e
acadêmicos; esta é mais uma das ambiguidades no que diz respeito à escolarização indígena.
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3 CULTURA INDÍGENA
Malinowski (1965) afirma que a cultura não é estática e que acompanha as
modificações da sociedade. Desta forma, concluímos que a organização formal é dinâmica e
assim se transforma de acordo com as interações sociais, uma vez que o ser humano não é
somente o produto da cultura, mas, igualmente, produtor de cultura (LARAIA, 2005), pois
fomos condicionados a reagir depreciativamente em relação àqueles que agem fora do padrão.
Não podemos negar que este pensamento uniforme tem raiz na concepção positivista que
dominou o mundo por muito tempo e ainda se perpetua em tempos vigentes.
No entanto,
A linguagem e, quase sempre, o meio mais importante através do qual os povos
constroem, modificam transmitem suas culturas. É por meio do uso da linguagem
que a maneira de viver de uma sociedade é expressa e passa constantemente
reavaliada, de uma geração para outra. Os modos específicos de usar linguagem
são por isso, como documentos de identidade (BRASIL, 2005.p.113).
Câmara Jr. (1964) corrobora essa assertiva, destacando que a língua é o
microcosmo da cultura e constitui-se numa representação da cultura material e espiritual de
um povo e é por si só o veículo de comunicação entre os homens.
Nesse sentido, podemos destacar várias contribuições dos povos indígenas ao
povo brasileiro, que, de certo modo, compõem os artefatos culturais, tais como as técnicas de
sobrevivência na floresta, mão de obra nas expansões agrícolas e extrativistas, as expressões,
conceitos e palavras da língua indígena, o manuseio das ervas medicinais, a culinária
brasileira que inclui a farinha, a tapioca, entre outros. Podemos também fazer referência aos
hábitos higiênicos, como o banho diário, por exemplo.
Pensar e agir nessa direção, subjaz entender que nenhuma cultura é superior à
outra, conforme sinaliza Laraia (2005), e, apesar de este pensamento ter se cristalizado ao
longo dos tempos, é preciso romper com esse paradigma que teve como berço a colonização.
É preciso, portanto, caminhar em outra direção que preveja a interculturalidade e a
pluralidade cultural, de modo que esta discussão tenha como lugar não só as escolas
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indígenas, fixadas nas aldeias, mas as escolas “nacionais”, conforme sinalizam os PCN, a fim
de que o não índio conheça, compreenda e, acima de tudo, respeite e valorize a cultura
indígena, visto que a educação que se fortalece nessas escolas perpetua o preconceito e o
estigma em relação a índios e negros no país, povos que tiveram influência direta na formação
e constituição da educação brasileira.
Face ao exposto, propusemos-nos, neste estudo: Identificar como a escolarização
tem contribuído para preservação da cultura indígena. Averiguar o que pensam os alunos do
ensino fundamental sobre essa problemática. Saber o que dizem os professores e gestores da
escola básica. Observar como são desenvolvidas as aulas no ensino fundamental com vistas à
compreensão da importância que a cultura indígena para nossa sociedade. Destacar qual
resultado pode advir da reforma curricular pós-LDB nº 9.394/96?
Teoricamente imaginamos que a escolarização com vistas à promoção da cultura
indígena deve ser considerada no processo escolar, a fim de que os povos descendentes destes
nativos afirmem suas identidades, preservem sua história e esta os leve ao conhecimento de
outras sociedades, numa relação intercultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme historiadores da região, entre eles, Bernarda Cantanhede (2005),
primeira professora nomeada para o município de Tutóia e que tem um livro publicado sobre
as origens do município, as primeiras tentativas de exploração da costa do Nordeste
maranhense ocorreram a partir de 1571, e um dos colonizadores foi o português Nicolau
Resende, que promoveu as primeiras jornadas exploratórias à aludida costa.
Esta informação se insere na narrativa de Gabriel Soares de Sousa, escritor da
época, citado por F. A. Pereira da Costa, que considera o “Rio do Meio” como braço do
Parnaíba, que desagua entre as ilhas dos Poldros e das Canárias, formando a atual “Barra do
Meio”, referindo-se, assim, à “Baía do Ano Bom”, como sendo a “Barra de Tutoia”.
Existem múltiplas versões sobre a origem de Tutóia, algumas pitorescas, outras
lendárias e poéticas. Uma delas, sustentada pelo historiador Ludwig Schwennhagen, indica
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que Tutoia é uma corruptela de “Troia, a célebre cidade grega da Ásia Menor, tornada famosa
pela beleza de Helena, que provocou a guerra cantada em versos por Homero, mais de 1.000
anos A.C.” Inclusive, o citado cronista afirma que foram os fenícios os autores desta
denominação, quando surgiram por essas bandas, no século XII A.C., para virem buscar
salitre que serviria ao embalsamento de suas múmias.
Conjetura ainda ele que estes lendários navegantes se estabeleceram na costa
maranhense, a fim de dominar a foz do rio Parnaíba e então fundaram uma colônia com o
nome de “Turtoia”, pelo que explica que “Tur” era a rica cidade e metrópole da grande
navegação, e Troia era a histórica vencida cujo nome trouxe a grinalda imortal da glória. E
continua Ludwig: “O costume de cortar o r é muito antigo e usado também no tempo
moderno, na língua portuguesa. É provável que os tupis pronunciassem Turtroia ou Turtoia,
ainda no tempo da chegada dos portugueses, os quais cortaram o r”.
Outra versão, encontrada na monografia “Tutoia e Seu Folclore”, aponta o termo
como procedente do meio indígena, onde, na linguagem Tremembé, onde era situado o povo
tremembé, e na linguagem Tremembé, Tutoia quer dizer “lençol de areia”, “grande extensão
de dunas”, que caracteriza efetivamente a topografia da costa litorânea de Tutoia. Circula
ainda outra versão, segunda a qual o nome Tutóia provém do tupi-guarani e significa “água
boa”. Porém, a que é mais aceita pela maioria dos tutoienses é a de que “Tutoia” é uma
corruptela de “Totoi” que, em linguagem indígena, quer dizer: “Que beleza!”, “Que
encanto!”.
Para Cesar Marques e Pereira da Costa, a história de Tutóia começa em 1722,
quando o jesuíta João Tavares chegou àquela região com a ajuda da Coroa portuguesa para
pacificar os nativos Tremenbés oriundos do Ceará. Após a morte do religioso, pessoas
particulares regularizaram as terras indígenas para criação de gado e foram aculturando os
índios até sua expulsão ou disseminação.
O município de Tutóia é ponto de apoio para quem visita o Parque Nacional dos
Lençóis Maranhenses e o Delta do rio Parnaíba, com 20km de praias paradisíacas, de mar
calmo e dunas de areias brancas, dentre elas, a do Arpoador e Namorados, as Lagoas da
Taboa, Jacaré, da Areia e Lagoinha, as Ilhas Cajueiro, Coroatá, Melancieiro, Igoronhon,
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Grande, Pombas, José Correia, Caieira, Papagaio, formando o grande Delta parnaibano, e,
além disso, o visitante irá conhecer o artesanato em palha, couro, coco, chifre, linha e conchas
que a região oferece.
Em relação à escolarização no referido município, escolhemos uma escola não
indígena, muito embora seus alunos e professores tenham remanescentes de origem indígena,
sem perder de vista o contexto histórico onde estamos inseridos e as construções ideológicas
que nos rodeiam, o que não foi tarefa fácil.
A escola lugar da pesquisa tem seu nome de fantasia intitulado Unidade Escolar
Gonçalves Dias. É uma escola situada na zona urbana de Tutóia e considerada uma das mais
antigas da cidade, abrigando um conjunto de 12 salas de aula em uma construção de alvenaria
com boa conservação para uso, possuindo sala de professores e de gestores, secretaria e
espaços para refeições, além de um espaço para reunião no qual se fazem as reuniões
pedagógicas e encontros de formação, além do pátio para recreio.
Sabemos que a educação indígena inicialmente se dava informalmente e no
âmbito familiar, onde as crianças, em contato com os adultos em suas atividades diárias,
aprendiam as regras da comunidade por meio de seus rituais. Em relação ao nosso primeiro
objetivo, percebemos que os alunos da escola investigada pouco sabem sobre a origem
indígena de seus antepassados e, portanto, suas também, por isso não a valorizam. Essa
realidade também é observável nos professores e gestores que esperam da escola básica o
ensino formal e nem de longe atentam para sua ancestralidade indígena, de modo a valorizar a
sua cultura e preservar a sua história.
No entanto, apesar deste sentimento, cinquenta por cento dos alunos entrevistados
não acreditam que a escola esteja a dar tudo que eles esperam dela. Alguns alunos consideram
que a escola tem pouca relação com a comunidade e não valoriza os saberes significativos que
eles trazem.
Em relação ao segundo objetivo, os alunos destacam que a escola é importante por
garantir a esperança de um futuro melhor, por isso consideram que compete à ela incentivá-
los a não esquecer as suas raízes indígenas, ainda que não se fale dos índios tremembés em
sala de aula. Em relação aos professores e gestores, estes desejam que o currículo considere as
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diversas culturas e tradições do seu povo, porque lhes parece notório o esquecimento cultural
que é vivido nesse espaço, bem como em outros espaços de sociabilidade local. Mas, apesar
da importância que atribuem ao papel que a escola pode desempenhar, não deixam de atribuir
algumas críticas ao modo como ela funciona.
Em relação ao terceiro objetivo, percebemos que os professores e o gestor escolar
procuram fazer um trabalho de qualidade, dão o máximo de si, no entanto, alguns professores
pensam diferente, relacionando trabalho com salários auferidos, sem levar em conta a
responsabilidade social da escola. Destacam também que a escola precisa rever o currículo,
assim como alguns conteúdos e algumas práticas vivenciadas pelos alunos no cotidiano e que
nem sempre são objeto de planejamento curricular.
Em relação ao quarto objetivo, para professores e alunos não índios, estes dizem
que não valorizam a cultura indígena porque poucos conhecem da sua história e, além disso,
existe preconceito em relação aos índios, porém torna-se necessário conhecer sua história para
poderem valorizar a cultura indígena. Que o contexto escolar é um espaço que deve
privilegiar as tradições e a cultura indígena e que todos, sem exceção, devem participar. Esse
é um pensamento da maioria.
Em relação ao quinto objetivo, a opinião generalizada dos estudantes converge
para a conclusão de que cada vez mais a escola caminha para um distanciamento das tradições
de seus alunos e professores. Todavia, apesar do distanciamento das tradições, encontrado na
comunidade, a escola continua a representar o lugar da construção da identidade de um povo,
pois é nela que encontramos a preservação dos costumes e a construção da cidadania.
Em síntese, constatamos que a escola investigada não contempla no currículo
escolar a história e a cultura dos seus antepassados indígenas, conforme preceitua a Lei nº
11.645/08, e nem atende aos pressupostos dos Referenciais Curriculares Nacionais para a
Educação Indígena. Logo, é preciso que as autoridades locais e estaduais, responsáveis pela
educação escolarizada, se mobilizem no sentido de replanejarem seus currículos com a
finalidade de atender ao que orientam as leis nacionais.
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