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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
CURSO DE HISTÓRIA
ROGÉRIO DE CARVALHO VERAS
ENTRE BODES E EMBATINADOS:
REPRESENTAÇÕES DE UM CONFLITO RELIGIOSO NO MARANHÃO
São Luís
2005
9
ROGÉRIO DE CARVALHO VERAS
ENTRE BODES E EMBATINADOS:
REPRESENTAÇÕES DE UM CONFLITO RELIGIOSO NO MARANHÃO
Monografia apresentada ao Curso de
História da Universidade Estadual do
Maranhão para obtenção do grau de
Licenciatura em História.
Orientadora: Prof. Ms. Júlia Constança
Pereira Camêlo
São Luís
2005
10
ENTRE BODES E EMBATINADOS: REPRESENTAÇÕES DE UM
CONFLITO RELIGIOSO NO MARANHÃO
ROGÉRIO DE CARVALHO VERAS
Aprovado em ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
....................................................................................................................
Prof. Ms. Júlia Constança Pereira Camêlo
....................................................................................................................
Segundo examinador
....................................................................................................................
Terceiro examinador
AGRADECIMENTOS
11
A Deus, por seu grande amor por mim e por estar sempre ao meu lado em todos os
momentos da minha vida.
Aos meus pais, Celeste Maria de Carvalho Veras e José Ribamar Veras, pois dedicaram
parte de suas vidas a minha educação.Vocês são os meus maiores incentivadores, nunca
esquecerei e farei o possível para recompensá-los por todos os seus esforços.
À minha amada Loyde Anne, pela paciência, compreensão e encorajamento nas horas
mais difíceis. Seu estímulo e ajuda foram imprescindíveis. Você me motivou a lutar!
À minha irmã Roxana Veras, pela parceria e incentivo.
À minha orientadora, a professora Júlia Constança Pereira Camêlo, pela sua grande
ajuda e rica orientação. Você sempre se mostrou disposta a me ajudar na realização desta
monografia.Obrigado!
A todos os meus amigos e irmãos do Movimento Estudantil Alfa e Ômega. Vocês foram
o que de melhor conheci na universidade, obrigado pelos momentos de descontração e pela
cooperação em fazer Cristo conhecido. Em especial, a Saulo e Anderson pela dedicação e
apoio.
“Acima de tudo, porém, revistam-se do amor, que é o
elo perfeito” (Apóstolo Paulo)
12
RESUMO
Este trabalho apresenta o ambiente sócio-religioso no Brasil colônia e império e
tem como ênfase uma análise dos conflitos decorrentes da introdução e expansão do
protestantismo no Maranhão. A análise é feita a partir dos discursos e práticas que refletem
imagens construídas ao longo desses conflitos. Essas imagens não se limitam ao período
estudado (entre o final do século XIX e início do XX), mas possuem continuidades da época da
reforma e contra-reforma e suas manifestações na colônia. Ademais, procura-se perceber suas
mudanças específicas a cada contexto. Dessa forma, o trabalho apresenta um quadro das
interpretações/representações do protestantismo de dentro para fora e de fora para dentro em
sua relação com a cultura brasileira permeada de um catolicismo secular. Assim sendo, a
inserção do protestantismo no Brasil no final do século XIX, não se dá sem uma disputa pelo
espaço religioso que se expressa nos discursos e práticas — veículos dessas representações.
Com o objetivo de melhor percebê-las em suas continuidades e transformações, a obra pontua
três momentos distintos dos primeiros 50 anos de protestantismo no Maranhão: um
protestantismo incipiente, mais ligado aos setores liberais e a estrangeiros (décadas de 70 e 80
do século XIX); um protestantismo como opção religiosa concorrente ao catolicismo (de 1885
até 1910); e um protestantismo mais consolidado, a ponto de polemizar publicamente com o
clero (1910-1930).
Palavras chaves: catolicismo; protestantismo; cultura; conflitos.
ABSTRACT
13
This work presents the partner-religious environment in Brazil colony and empire
and has as emphasis an analysis of the decurrent conflicts of the introduction and expansion of
the protestant religious in the Maranhão. The analysis is made from the speeches and pratices
that reflect images constructed to the long of these conflicts. These images are not limited to
the studied period (it enters the end of century XIX and beginning of the XX), but have
continuities of the time of the Reform and Against-Reform and its manifestations in the colony.
Besides, is tried to perceive its specific changes to the each context. In such case , the work
presents a picture of the interpretations/representations of the protestant religous of inside to
outside and outside to inside in its relation with the Brazilian culture permeated of a secular
catholicism. Thus being, the insertion of the protestant religious in Brazil in the end of century
XIX, is not happen without a dispute for the religious space that express in the speeches and
pratices ─ vehicles of these representations. With the objective of better perceiving them in its
continuities and transformations, the workmanship mention three distinct moments of first the
50 years of protestant religious in the Maranhão: a on incipient protestant religious to the
liberal sectors and the foreigners (decades of 70 and 80 of century XIX); a protestant religious
as religious option rival to the catholicism (of 1885 until 1910); a protestant religious more
consolidated read of to polemize publicly with the clergy (1910-1930).
Words keys: catholicism; protestant religious; culture; conflicts.
14
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO...................................................................................................... 08
2. BREVE HISTÓRICO DA REFORMA PROTESTANTE................................... 10
3. CATOLICISMOS E PROTESTANTISMO NO BRASIL.................................. 13
a. Antecedentes Católicos: a construção da hegemonia católica................... 13
b. Antecedentes Protestantes: do “ethos” às missões...................................... 19
4. PROTESTANTISMO NO MARANHÃO IMPERIAL....................................... 29
5. IMAGENS DE UM CONFLITO......................................................................... 33
a. Os obstáculos ao estabelecimento protestante no Maranhão.................... 35
b. A ascensão do protestantismo como opção religiosa concorrente ao
catolicismo..................................................................................................... 42
c. O Protestantismo em consolidação.............................................................. 47
6. CONCLUSÃO....................................................................................................... 59
FONTES...................................................................................................................... 62
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 64
ANEXOS...................................................................................................................... 67
15
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A: Queixa registrada na Delegacia do Rosário.......................................... 68
ANEXO B: Instrucções aos parochos para assistirem aos matrimonios mixtos, isto é de catholicos com acatholicos........................................................................ 70
ANEXO C: Processo de Robert Webster e Luzia Bastos da Silva Porto ............... 71
ANEXO D: Processo de Robert Webster e Luzia Bastos da Silva Porto................. 73
ANEXO E: Enterramento de pessoa não católica em cemitério católico................ 74
ANEXO F: Jornal “O PRESBITERIANO”, 1º de maio de 1937............................ 76
ANEXO G: Jornal “A CIVILISAÇÃO”, 17 de dezembro de 1887......................... 77
ANEXO H: Jornal “O PRESBITERIANO”, 23 de fevereiro de 1937..................... 79
ANEXO I: Jornal “MARANHÃO”, 27 de fevereiro de 1937................................... 80
ANEXO J: Jornal “MARANHÃO”, 28 de março de 1937...................................... 81
ANEXO L: Jornal “O PRESBITERIANO”, 30 de março de 1937......................... 82
16
Veras, Rogério de Carvalho Entre bodes e embatinados: representações de um conflito religioso no Maranhão. / Rogério de Carvalho Veras. – São Luís, 2005 ... f.82 Monografia (Graduação em Licenciatura em História) – Universidade Estadual do Maranhão, 2005 1. Catolicismo. 2. Protestantismo. 3. Cultura. 4. Conflitos I.Título.
CDU: 316.285: [289.51:283/289]
17
ENTRE BODES E EMBATINADOS:
REPRESENTAÇÕES DE UM CONFLITO RELIGIOSO NO MARANHÃO
Rogério de Carvalho Veras
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, tem-se assistido a um vertiginoso crescimento do
protestantismo. Na verdade, o termo “protestantismo” encerra uma diversidade de
instituições e concepções, muitas vezes, constituindo uma barreira para quem deseja
estudar este fenômeno social que tem alcançado diversos setores da sociedade brasileira.
Na historiografia brasileira e maranhense, há ainda uma carência de análises
resultantes de uma investigação científica, prevalecendo, principalmente dentro das
instituições protestantes, diversas obras de caráter triunfalista. Portanto, constitui um
fator importante o estudo baseado na metodologia da história e das ciências sociais para
compreensão desse fenômeno social em suas origem e expansão.
Neste trabalho nos propomos a analisar os conflitos decorrentes da
introdução e expansão protestante nas décadas finais do século XIX e primeiras décadas
do século XX no Maranhão. Antes disso, retomamos o período colonial e imperial para
percebermos as continuidades e rupturas nas mentalidades relativas ao protestantismo e
ao catolicismo, bem como o contexto em que o protestantismo de missão se inseriu no
final do século XIX.
Sabemos das dificuldades que temos com espaços temporais longos como
este, mas foi adequado aos objetivos dessa obra, uma vez que pretendemos analisar os
conflitos em suas “representações” que permanecem e que mudam ao longo do tempo.
Portanto, essa longa duração pareceu-nos útil para termos um panorama mais visível das
continuidades e rupturas presentes nesses conflitos.
18
Com este propósito, analisamos um conjunto de fontes (documentos oficiais,
eclesiásticos, jornais, livros de memórias e entrevistas) procurando dialogar com elas e,
ao mesmo tempo, contrapô-las com a bibliografia pesquisada a fim de compreendermos
as imagens construídas nos discursos e interpretando-as à luz da relação protestantismo-
cultura, ou seja, as representações do protestantismo de dentro para fora e de fora para
dentro, no momento de sua introdução e expansão no seio da sociedade católica
maranhense, com ênfase nos conflitos decorrentes pela disputa do espaço religioso.
Nesse sentido, didaticamente dividimos a obra em quatro capítulos: Breve
Histórico da Reforma Protestante; Catolicismos e Protestantismo no Brasil;
Protestantismo no Maranhão Imperial; Imagens de um Conflito Religioso. Passemos a
uma síntese de cada parte.
No primeiro capítulo, tratamos da Reforma Protestante destacando a
oposição de idéias que tornou inconciliável o retorno à unidade cristã ocidental. Dessa
forma, pretendemos evidenciar que a raiz dos conflitos entre católicos e protestantes
está na oposição de cosmovisões de mundo, de Deus e de homem, sendo que estas
transcendem a um espaço ou época, e por isso são sempre retomadas onde católicos e
protestantes disputam espaço religioso.
No segundo capítulo, nosso estudo remonta aos períodos colonial e imperial
e ao ambiente religioso construído ao longo de três séculos, a fim de percebemos
continuidades e rupturas nas mentalidades da sociedade católica brasileira acerca dos
protestantes, bem como os espaços abertos para penetração do protestantismo como
religião concorrente ao catolicismo.
O terceiro capítulo aborda a chegada ao Maranhão dos primeiros
missionários que desejavam fazer convertidos, objetivamos compreender o contexto em
que se dá essa penetração, qual a receptividade dos maranhenses e as estratégias
utilizadas para enfrentar a Igreja Católica.
O quarto (e último capítulo) refere-se aos conflitos decorrentes da
introdução, consolidação e expansão protestante em São Luís e no interior do Estado,
19
analisando-os conforme as representações expostas nos discursos dos indivíduos que
participaram desses processos. Buscamos aqui perceber as imagens construídas de
ambos os lados no enfrentamento pelas almas maranhenses.
Enfim, esta obra pretende lançar um novo olhar de análise historiográfica dos
conflitos decorrentes da relação protestantismo e cultura brasileira.
2. BREVE HISTÓRICO DA REFORMA PROTESTANTE
Quando Lutero afixou suas 95 teses em Winttemberg, estava em jogo não apenas
mais uma briga de clérigos e suas querelas teológicas, mas um verdadeiro choque envolvendo
diferentes concepções de Deus, de homem, de sociedade, de mundo etc. com efeitos diretos no
cotidiano, na economia, na política, enfim, na história das sociedades ocidentais.
Dessa forma, o movimento reformista iniciado por Lutero não pode ser visto como
um simples racha de clérigos insatisfeitos com os “abusos” da Igreja e com a decadência moral
do clero. Antes de denunciar tais abusos, os reformadores estavam mais preocupados em
empreender uma profunda reforma doutrinária na Igreja, rompendo com muitos dogmas
tradicionais; estes sim, o mal pior, segundo as próprias palavras de LUTERO apud LUIZETTO
(1994, p.40):
...alguém me dirá: quantos crimes, quantos escândalos, essas fornicações, essas
bebedeiras, essa paixão desenfreada pelo jogo, todos esses vícios do clero... Grandes
escândalos, devo confessar, é necessário denunciá-los, é necessário corrigi-los: porém,
os vícios apontados são visíveis para todos, são grosseiramente materiais, são
percebidos pelos sentidos de todos, perturbam, pois, os espíritos (...). Infelizmente,
esse mal, essa peste incomparavelmente pior e mais cruel, o silêncio organizado sobre
a Palavra da Verdade ou a sua falsificação, esse mal que não é grosseiramente
material, nem sequer pode ser visto, não incomoda, não se percebe o seu horror.
Certamente, na origem e expansão da Reforma concorrem fatores de ordem
política, econômica e social. Entretanto, as questões de ordem religiosa não podem ser
secundarizadas. A reforma doutrinária opôs pontos de vistas tão distintos, tornando
20
praticamente impossível manter a unidade cristã ocidental. Essa oposição entre a cosmovisão
católica e a cosmovisão do reformismo protestante tem como cerne os três pilares do
protestantismo: a justificação pela fé, a infabilidade apenas da Bíblia e o sacerdócio universal.
Nos séculos XV e XVI, a maior inquietação dos homens dizia respeito à salvação
de suas almas. Nas mentes do final da Idade Média, o trio de catástrofes (guerra, peste e fome)
expressava a ira de Deus sobre a humanidade e prenunciava semelhante destino para a alma dos
homens.
Nesse contexto de acentuada insegurança quanto à vida presente e futura, a doutrina
da Igreja “não conseguia mais atender às necessidades espirituais dos fiéis e reverter o quadro
de medo, desespero, angústia e incerteza que tomava conta das consciências” (LUIZETTO,
1994, p.21).
O ensino da Igreja reforçava que as boas obras tinham o poder de aplacar a ira
divina e garantir a Graça de Deus. A cristandade ocidental conhecia muito bem esta fórmula e,
por isso, demonstrações de devoção nunca foram tão intensas quanto nos anos de calamidade e
insegurança. Multiplicaram-se os sacrifícios, sacramentos, relíquias e a célebre compra de
indulgências, ainda assim, os espíritos permaneciam angustiados. Por quê? Só poderia haver
uma resposta: as boas obras não estavam sendo suficientes, deveriam ser praticadas mais
intensamente o que acabou gerando nas populações cristãs um ciclo vicioso de angústia e
frustração.
Assim não é de se estranhar porque as palavras de Lutero trouxeram alívio para as
almas quando disse: “O justo viverá pela fé”. Portanto, e sobretudo, a Reforma inicia-se como
resposta religiosa a um anseio espiritual das populações cristãs, como diz DELUMEAU (1989,
p.60): “Se tantas pessoas na Europa, de níveis culturais e econômicos diferentes, optaram pela
reforma, foi por esta ter sido em primeiro lugar uma resposta religiosa a uma grande angústia
coletiva”.
A doutrina da justificação pela fé negava todo o ensino tradicional da Igreja que
preconizava a salvação mediante as boas obras, razão de seu ritualismo e da ênfase nas
indulgências. A partir de Lutero, surge, então, uma nova mentalidade segundo a qual somente a
fé em Jesus Cristo e na Sua Graça era suficiente para se obter a salvação, perde-se sentido
gastar tanto dinheiro, tempo e energias em rituais e indulgências vãs.
21
Já as doutrinas da infabilidade apenas da Bíblia e do sacerdócio universal surgiram
muito mais como desdobramentos da “descoberta” do “sola fide” e dos confrontos de Lutero e
seguidores com a Igreja Romana, do que de um ataque sistemático contra os dogmas católicos
(RANDELL, 1995).
Convocado pelo Papa para se retratar de suas idéias heréticas, Lutero afirma a
autoridade da Bíblia acima da autoridade eclesiástica da Igreja e, por conseqüência lógica, da
proeminência do indivíduo e sua interpretação das Escrituras sobre o ensino da Igreja, ou seja,
estava delineando também a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes.
Por sua vez, a Igreja afirmava a fé como suplemento das obras e a doutrina da
autoridade de ensino, ou seja, ela como única intérprete confiável das Escrituras, e, em última
instância, a infabilidade papal.
Este debate teológico, consequentemente, ganhava efeitos claros na vida das
pessoas que aderiam ao protestantismo ou que permaneciam fiéis à Igreja, lançando-as a
posições inconciliáveis.
É importante compreendermos o teor desses debates uma vez que eles serão sempre
retomados quando protestantes e católicos disputam o espaço sócio-religioso no Brasil do
século XIX e XX, como se as feridas abertas no século XVI, ainda não estivessem saradas!
3. CATOLICISMOS E PROTESTANTISMO NO BRASIL
3.1 Antecedentes católicos: a construção da hegemonia católica
Antes de tudo é mister um esclarecimento: adota-se aqui o conceito gramsciano de
hegemonia nas palavras de WILLIAMS apud CHAUÍ (1996, p.22):
Uma hegemonia viva é sempre um processo [...]. É um complexo realizado de
experiência, relações, atividades com pressões e limites específicos mutáveis. [...].
Suas estruturas concretas são altamente complexas e sobretudo (o que é crucial) não
existe apenas passivamente na forma de dominação. Deve ser continuamente
22
renovada, recriada, defendida e modificada e é continuamente resistida, limitada,
alterada, desafiada por pressões que não são suas.
(...)
A proeminência de alternativas políticas e culturais, e de inúmeras formas de oposição
e de luta, é importante não apenas em si mesma, mas como traço indicativo do que um
processo hegemônico deve operar e controlar na prática.
Isso justifica a necessidade que tivemos, nesse tópico, de incluirmos “os esforços e
as contribuições daqueles que, de um modo ou de outro, estão fora ou na margem dos termos da
hegemonia específica [a contra-hegemonia]” (WILLIAMS apud CHAUÌ, 1996, p.23).
Feitas essas ressalvas podemos analisar “A Construção da Hegemonia Católica”.
O desafio da colonização das terras portuguesas na América, imposto à Coroa
Lusitana no século XVI, dificilmente teria alcançado o mesmo sucesso, ao longo de três
séculos, se não fosse a estreita relação entre o Estado e a Igreja. Isso porque, enquanto ao
Estado cabia garantir o domínio português sobre a colônia, realizar uma política de
povoamento, organizar as bases da economia colonial, resolver problemas como o da mão-de-
obra, à Igreja coube o papel fundamental do “controle das almas” por meio da educação e,
assim, transmitir a todos a idéia geral de obediência, que na dimensão política, traduz-se em
obediência ao Estado. (FAUSTO, 2003, p.60)
Para a Igreja, a aliança com o Estado no empreendimento colonizador significava a
expansão da fé católica entre os gentios. Logo, Estado e colonização constituem-se como meios
divinos para realização da obra missionária. O pensamento de Antônio Vieira é essencial para
compreendermos melhor essa ideologia católica de colonização nos séculos XVII e XVIII.
As caravelas portuguesas são de Deus e nelas vão juntos missionários e soldados, o
que não constitui nenhum problema ‘ não só são apóstolos os missionários senão
também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentios e trazê-los ao lume da
fé e ao grêmio da Igreja’. (VIEIRA apud HOORNAERT, 1994, p.4 0-41)
Para Vieira, os representantes do Estado, soldados e capitães, também são apóstolos
cujo objetivo é trazer os indígenas à fé católica. Isso nos revela o ponto central de seu
pensamento: o Estado português tem uma missão toda especial dada por Deus — a de
23
reconstruir o Reino de Deus na Terra. É a idéia corrente no Portugal da época: “O Reino de
Deus por Portugal”.
Essa ideologia católica conciliava-se muito bem com as pretensões estatais de
exclusivismo comercial. Ideologia religiosa atrelada ao pragmatismo econômico, logo
identificou, nas mentes coloniais, as nações concorrentes comerciais como inimigas religiosas,
assim nos diz Eduardo Hoornaert:
Nesta longa concorrência o catolicismo funcionava como definidor dos projetos
portugueses considerados ortodoxos e mesmo apostólicos, e os Estados concorrentes,
que foram qualificados de heréticos, depravados e heterodoxos por serem todos
considerados protestantes. (HOORNAERT, 1994, p 67)
Este medo [medo dos concorrentes comerciais] criou o exclusivismo religioso. O
catolicismo brasileiro do período português era uma ‘religião obrigatória’ e não
poderia deixar de ser, pois protestantismo significava adesão à Holanda, ou à
Inglaterra ... (HOORNAERT, 1994, p 408)
Somente católicos poderiam entrar no Brasil e mesmo os religiosos que desejassem
vir, teriam antes que passar pela aprovação de Lisboa. A Igreja estava tão submetida a Lisboa
que quase não houve comunicação com Roma. A coroa empreendia todo esforço para assegurar
a hegemonia comercial portuguesa na colônia.
Os principais mecanismos do controle estatal sobre a Igreja foram: o Padroado, a
Mesa de Consciência e Ordens e o Conselho Ultramarino, dos quais o mais importante é o
Padroado. A ele deve-se a expansão católica no Brasil.
O Padroado consistiu em uma ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado
Português, em troca da garantia de que a coroa promoveria e asseguraria os direitos e
a organização da Igreja em todas as terras descobertas. O Rei de Portugal ficava com
(...) o dízimo (...), cabia também à Coroa criar dioceses e nomear bispos... (FAUSTO,
2003, p.60)
É comum dizer-se que a administração eclesiástica estava tão profundamente ligada
à máquina administrativa do governo civil que pode ser considerada um “estado dentro do
estado”, ou uma espécie de poder paralelo. Todavia, Estado e Igreja nem sempre mantiveram
uma relação harmoniosa e o controle do Estado apresentou seus limites.
24
Primeiro, existiram momentos pontuais de conflitos entre as autoridades
eclesiásticas e civis, principalmente, relacionados à intromissão de tribunais seculares em
questões disciplinares intra-eclesiásticos, mas nada que colocasse em risco o modelo de
colonização.
Por outro lado, a Companhia de Jesus, desfrutando de grande prestígio na Coroa,
pelo menos até a época de Pombal, posicionava-se contra a escravidão indígena em defesa de
seus aldeamentos altamente lucrativos, problema este central para a administração colonial.
Outro fato importante, diz respeito a um maior grau de autonomia conseguido pelas
ordens religiosas à medida que elas foram adquirindo considerável patrimônio. Na verdade, as
ordens mantinham “uma posição ambígua, ser financiada pelo Padroado e, ao mesmo tempo,
tornar-se independente pela constituição de seus próprios patrimônios” (HOONAERT, 1994,
p45).
Escapava também, muitas vezes, ao Estado, o controle das atividades do clero
secular, disperso pelo território. É emblemático o caso dos padres participantes da
Inconfidência Mineira — que claramente optaram por uma vida fora do jugo da Igreja e do
Estado e realizavam suas próprias atividades econômicas como a grande lavoura, a mineração e
o tráfico de escravos —, e de muitos outros que, a partir de 1789, participaram praticamente de
todas as rebeliões na colônia e mesmo após a independência, geralmente, imbuídos de ideais
liberais. (FAUSTO, 2003, p.61)
Porém os revoltosos eram uma exceção nos quadros da Igreja; a regra era a Igreja a
serviço da manutenção da obediência.
Além disso, no interior de seus quadros, a Igreja enfrentava desde o início da
colonização dois sérios problemas: a pequena quantidade de clérigos para a dimensão territorial
do Brasil e o desregramento moral de grande parte dos que aqui estavam, os quais resultavam
nas dificuldades de manter os colonos na mais estrita ortodoxia.
Aqui muitos e muitos dos moradores passavam anos sem ver um sacerdote, sem
participar de rituais nos templos ou freqüentar os sacramentos. Tal carência estrutural
levou de um lado à maior indiferença e apatia de nossos antepassados ante as práticas
religiosas comunitárias, do outro, ao incremento da vida religiosa privada, que, na
falta do controle dos párocos, abria maior espaço para desvios e heterodoxias.
(NOVAIS, 1997, p.163)
25
Américo Jacobina Lacombe nos oferece alguns indícios para compreendermos a
fraqueza moral do clero: “Faltava à autoridade religiosa exatamente o clero, que continuava a
ser recrutada na escória do Reino. Carência esta que gerava a necessidade de facilitar a
ordenação de varões, o que, sem demora, acarretou abusos” (LACOMBE, 1993, p.62 - 63).
Por sua vez, Eduardo Hoornaert (1994, p.13) assim explica a ausência da Igreja na
maior parte das regiões: “As dioceses, prelazias e paróquias ficaram vacantes por grandes
lapsos de tempo, pois a Coroa portuguesa só mostrava interesse na função episcopal e
sacerdotal à medida que estas estavam ao seu serviço”. Ou seja, defenderem os interesses
mercantis metropolitanos.
Essa característica do catolicismo no Brasil produziu uma religiosidade
eminentemente leiga, privada e heterodoxa. Dentro dos comportamentos desviantes, está o
sincretismo, produto da reelaboração da religiosidade de diferentes etnias diante da religião do
grupo dominante. “O sincretismo era uma artimanha de sobrevivência do sentido da vida e
interpretação do mundo próprios dos setores marginalizados e oprimidos diante da imposição
católica” (HOORNAERT, 1994, p.27).
No cenário religioso do Brasil colonial, haviam pseudo-católicos, aqueles que
mantinham secretamente crenças heterodoxas ou sincréticas, mas apresentavam-se
publicamente como católicos apenas para fugir à repressão inquisitorial. Eram: judeus,
animistas, libertinos, ateus, feiticeiros e protestantes (NOVAIS, 1997, p.175).
Percebe-se, assim, no Brasil, uma demanda de espiritualidade forjada pela Igreja
Católica ao longo da colonização, mas que não era satisfeita devido à insuficiência do clero
secular.
No século XIX, anos do Império e da penetração cada vez mais intensa das idéias
liberais, o cenário religioso parece manter uma profunda distância entre o catolicismo ortodoxo
e o catolicismo praticado seja pelas elites ou pelas classes baixas e escravos. As elites, e
inclusive o clero, estavam imbuídos de ideais liberais e não ortodoxos. Estes segmentos eram
mais deístas do que católicos, “enquanto as camadas pobres viviam no mais profundo
politeísmo primitivo e os escravos eram fetichistas apesar do rótulo de católicos” (BARROS,
1995, p.331).
26
Segundo Roque Spencer Barros (1995), foi essa característica do catolicismo
brasileiro que durante muito tempo possibilitou uma relação harmoniosa entre a Igreja e o
Estado Imperial, uma vez que este aumentava seu poder sobre a Igreja sem gerar grandes
conflitos; ao contrário, tinha a concordância dos setores ilustrados da Igreja e da sociedade, que
de maneira nenhuma se viam afastados do catolicismo com este assentimento.
Essa harmoniosa relação só vai ser quebrada quando se ouvirá os ecos do
conservadorismo ultramontano católico no Brasil, que oporá o espírito liberal e o espírito
clerical cuja expressão mais conhecida desse conflito foi a chamada “Questão Religiosa”.
Além dos ideais liberais, contribuíram para a crítica do conservadorismo católico a
substituição da mão-de-obra escrava pela assalariada imigrante. As restrições impostas ao
estrangeiro quanto à manifestação de sua religião levou os pensadores liberais da época à
seguinte conclusão:
...não se tratava, apenas, de ser favorável ou contrário ao regime de religião de Estado,
tratava-se de compreender que tal regime, era incompatível com a realidade histórica
do país e que sua manutenção levava, de forma necessária, a inglórios conflitos sem
solução. (BARROS, 1995, p.333).
Desse conflito entre conservadores católicos e radicais liberais resultará uma
gradual secularização do Estado até a separação definitiva Igreja/Estado após a proclamação da
República.
Em síntese, no final do século XIX, a Igreja encontrava-se diante do desafio da
premente separação do Estado e do aumento das críticas dos intelectuais liberais para os quais o
progresso da sociedade não se coadunava com o tradicionalismo católico.
É nesse contexto de crise do catolicismo, somado ao anseio espiritual não suprido
das populações devido as deficiências do clero, que se terá um “terreno fértil” para o
estabelecimento e propagação do protestantismo no Brasil.
3.2 Antecedentes protestantes: do “ethos” às missões
Por mais que pareça paradoxal, a história do protestantismo na América se inicia
com as conquistas de Portugal e Espanha, maiores representantes católicos europeus.
27
A conquista da América foi contemporânea aos conflitos religiosos advindos da
Reforma e Contra-reforma, esta tendo como um dos principais instrumentos a Inquisição. Pois,
foi exatamente nas metrópoles ibéricas que a Contra-Reforma e a Inquisição apresentaram sua
face mais bélica e rígida, sendo difícil não transpor a aversão ao protestantismo para as
colônias. Fernando A. Novais apresenta bem este quadro:
Extremavam-se, no mundo colonial, as tensões do mundo metropolitano; assim, nas
colônias ibéricas, será na dimensão de Contra-Reforma que a Reforma Católica
marcara sua presença. O empenho da Igreja se concentra na conquista do gentio para o
seio da cristandade e na manutenção dos colonos na mais estrita ortodoxia. (NOVAIS,
1997, p.35).
Assim, mais que por sua presença física, a história do protestantismo na América,
inicia-se como uma ameaça a ser repelida; ameaça aos projetos de totalização colonial católica,
ou seja, de reconstrução da unidade social política e religiosa perdida na Europa.
Segundo Jean Pierre Bastian (1992, p.468), “A ameaça protestante operou-se em
dois níveis: no interior do espaço colonial porque, potencialmente subversivo, era susceptível
de ser adotado por eventuais oponentes à ordem social; no exterior porque era a religião do
inimigo marítimo.”
É com essa dupla presença marginal nas mentes coloniais, que se dará um início da
história do protestantismo no Brasil.
Parafraseando Serge Gruzinski (1988), pode-se dizer que o protestante encontrava-se
assim entre ‘ a série dos desviantes e dos fantasmas e das obessões que habitavam o
imaginário das sociedades ibéricas, ao lado dos judeus, dos sodomitas e dos
feiticeiros’. (BASTIAN, 1992, p.473)
Porém, em fins do século XVIII e no século XIX, o movimento Ilustrado a
Revolução Francesa, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Industrial, elevaram
ideais liberais tais como: laicização do Estado, anti-clericalismo, liberdade, modernidade etc.
Nesse período, duas nações apareciam como vanguarda da modernidade e do liberalismo:
Inglaterra e Estados Unidos; duas nações protestantes. Não é de menos que para o
conservadorismo católico o protestantismo estava identificado com as modernas idéias liberais.
28
Estava colocado, assim, um difícil problema para as minorias liberais formalmente
católicas: como modernizar o Brasil sem protestantizá-lo. Em outras palavras, como realizar
reformas que derrubem antigas estruturas coloniais como o corporativismo, o patrimonialismo
e a hierarquização social, sem romper com a Igreja que reforçava essas estruturas.
“É nesse sentido, mais que pela presença marginal de hereges que a questão
protestante passou das margens do inconsciente coletivo para se colocar no centro do problema
da relação de totalização católica e da modernização liberal” (BASTIAN, 1992, p.473).
Todavia, não podemos negligenciar a presença do indivíduo protestante no Brasil
desde o 1° século da colonização. Segundo a classificação de Israel Belo Azevedo (1996),
foram de quatro tipos os movimentos de entrada dos protestantes: o protestantismo de invasão
(séc. XVI e XVII); o protestantismo de negócio (séc. XIX); o protestantismo de imigração
(séc.XIX) e o protestantismo de missão (séc.XIX).
A) Protestantismo de invasão
Refere-se às investidas francesas e holandesas no Brasil. A primeira tentativa
francesa de estabelecer uma colônia no Brasil foi a França Antártica. Este projeto teve a
marcante presença de protestantes calvinistas (huguenotes) desejosos de construir na América
um lugar de refúgio ante as perseguições que se desenvolviam na Europa.
A segunda tentativa foi a França Equinocial, de características diferentes da
primeira, pois, nesse caso, os interesses estratégicos do Estado Francês e a Igreja Católica,
através dos padres capuchinhos, ditaram os rumos do empreendimento. Embora tenha havido a
presença de protestantes na expedição, desde o início manteve-se a preocupação de tornar a
colônia do Maranhão essencialmente católica.
Já a invasão holandesa foi feita hegemonicamente por protestantes, visto que a
Holanda, na época, era manifestamente protestante. Esta invasão foi feita com propósito de
defender os interesses mercantis holandeses no Atlântico sul, inexistindo qualquer sentido de
um “refúgio protestante”. Dessa forma, os protestantes holandeses que conquistaram o
Nordeste apressaram-se em reproduzir a vivência religiosa que tinham na Europa, daí
implantarem aqui uma Igreja Reformada, chegando a organizar um Sínodo no Brasil Holandês.
29
Ressalte-se nessa experiência do Brasil Holandês, o relativo exercício da tolerância
religiosa durante o governo de Nassau, a ponto de termos em pleno continente americano no
século XVII, a convivência pacifica entre católicos, protestantes e judeus.
Com a extensão do domínio holandês pelo Nordeste, os holandeses chegaram ao
Maranhão, porém, em um momento de decadência do poder de Nassau, quando a política de
tolerância religiosa fora abandonada. O que se deu aqui foi a tentativa de se impor, junto com a
dominação, a religião protestante sobre as populações católicas locais, o que provocou fortes
reações.
A breve experiência protestante no Maranhão, iniciada pelas mãos do Pastor
francês Pasquier, segundo nos informa Mario Meirelles (1991), foi interrompida quando as
lutas para a expulsão dos invasores começaram.
Ao final dessas invasões, podemos fazer uma pergunta: teriam, de alguma forma, os
aspectos protestantes marcado as consciências ou o “modus vivendi” das populações locais?
Esse é um estudo que ainda está para ser feito, o que se pode afirmar, por hora, é que a partir
daí temos um lapso de quase 200 anos sem a manifesta presença de indivíduos protestantes no
Brasil. Somente no início do século XIX, com o estreitamento das relações entre Brasil e
Inglaterra é que se tornará a ter notícia de protestantes no Brasil, agora, sob um novo
movimento: o protestantismo de negócio.
B) O Protestantismo de negócio
A partir de 1810, com o Tratado de Aliança, Amizade, Comércio e Navegação
firmado com a Inglaterra, há no Brasil uma gradual abertura para o estabelecimento protestante.
Assim o artigo XII do Tratado de Comércio dispõe:
Sua Alteza Real [...] declara e se obriga em seu próprio nome [...] que os vassalos de
Sua Majestade Britânica residentes em seus territórios e domínios não serão
perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua religião, antes
terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço
divino. (FERREIRA, 1992, p.69)
O protestantismo inglês desse momento foi tipicamente desenvolvido por técnicos,
funcionários de missões diplomáticas, marinheiros, negociantes e familiares preocupados em
30
permanecerem ligados à Coroa e à Igreja Britânica. Não havia um interesse proselitista (prática
de fazer fiéis de outras religiões), mas era voltado para os interesses comerciais.
Embora o protestantismo de negócio dos ingleses estivesse essencialmente voltado
para os interesses econômicos, as leis que permitiram sua entrada e regularam sua vida no
Brasil oportunizaram a entrada de outros grupos protestantes no país.
C) Protestantismo de imigração
Segundo informa o sociólogo MENDONÇA apud GOMES FILHO (2003, p.21), a
Igreja Anglicana foi a primeira estabelecida pelos ingleses em 1819, no Rio de Janeiro. Mais
tarde, em 1824, imigrantes alemãs iniciaram uma Igreja Luterana em Nova Friburgo (RS) e,
progressivamente, foram se localizando em outros Estados: Espírito Santo (1847), São Paulo
(1858), Minas Gerais (1862). Todas dentro de sua etnia alemã.
Essa gradual inserção protestante relaciona-se diretamente com a permissão da
liberdade religiosa garantida pela Constituição de 1824, apesar de permanecerem restrições
quanto aos lugares de cultos, construções de templo, proibição de enterros de protestantes em
cemitérios administrados por católicos e ao proselitismo. Tais limitações com propósito de
manter o “respeito à religião do Estado, e não ofender a moral pública” (§5°, artigo 179,
Constituição de 1824).
Também contribuíram o espírito liberal e o enfraquecimento da Igreja Católica sob
o regime do Padroado (anteriormente comentados), ensejando certa tolerância para com o
proselitismo.
A abertura legal ao protestantismo pretendeu responder à necessidade de promover
uma política de imigração capaz de incrementar a produção agrícola, resolver o problema da
abolição do trabalho escravo e satisfazer à ideologia do “embranquecimento da raça”.
Tais razões levaram o protestantismo, a partir da segunda metade do século XIX, a
se difundir de tal maneira que começa a remodelar a paisagem social-religiosa da sociedade
brasileira.
31
Todavia, o protestantismo de imigração também não foi proselitista. Conforme a
antropóloga Giralda Seyferth, esses imigrantes viviam em comunidades fechadas, isolados da
sociedade brasileira, tentando recriar sua nação de origem num cantinho do Brasil. (SEYFRTH,
1999, p.287).
D) Protestantismo de missão
A permissividade na legislação, o liberalismo e a imigração deram suporte para a
entrada de missionários norte-americanos e europeus.
Assim, já em 1835, a Conferência Geral da Igreja Metodista Episcopal dos Estados
Unidos enviou Fontain E. Pitts para a América do Sul com objetivo de relatar das
possibilidades de um trabalho missionário no Brasil. Pitts chegou a organizar no Rio de Janeiro
em 1836, um núcleo eclesial chamado pelos metodistas de “sociedade”. Ainda em 1836, a
Conferência envia outro missionário Justus Spauding para realizar um trabalho permanente no
Rio de Janeiro. Justus chegou a organizar a primeira Igreja Metodista com quarenta membros,
mas seis anos depois, a Igreja encerrou suas atividades devido a problemas decorridos da
Guerra Civil Americana. (MENDONÇA, 2001, p.28)
Somente em 1871, os metodistas voltaram a fundar uma Igreja, agora entre os
imigrantes em Santa Bárbara (SP), mas o estabelecimento definitivo se daria em 1876, no Rio
de Janeiro, com a fundação da 2° Igreja Metodista.
Paralelamente, outro metodista, o pastor Daniel Parish Kidder, desde 1837, viajava
pelo Brasil distribuindo Bíblias. Kidder acreditava que pela propagação da Bíblia, a sociedade
poderia ser transformada. Além disso, Kidder tinha o objetivo de fazer relatórios sobre as
províncias pelo qual passava para verificar reais possibilidades de uma futura investida para
estabelecer igrejas protestantes. Esteve no Rio de Janeiro, São Paulo, Santos e no Norte do país,
chegando às províncias do Maranhão e Pará.
Apesar dos constantes ataques de “alguns bispos e de alguns padres contra essa
difusão de Bíblias; acusavam de ‘falsificadas’ as Bíblias distribuídas pelas Sociedades [Bíblicas
Britânica e Americana]” (RIBEIRO, 1981, p.14), Kidder demonstrava sentir-se bem recebido,
mesmo em um país católico: “Nenhum outro país católico existia onde fosse maior a tolerância
ou a liberdade de sentimentos para com o protestante” (KIDDER apud FREIRE, 2001, p.21).
32
Mendonça nos fornece uma explicação para essa afirmação de Kidder: “Os
distribuidores de Bíblias encontraram simpatias e facilidades por parte de membros das várias
camadas da sociedade, que manifestavam boa vontade em recebê-los”. (MENDONÇA, 2001,
p.27).
Todavia, Dom Romualdo de Seixas expressa bem o sentimento dos clérigos
católicos:
Era verdadeiramente assombroso a intolerância contra as missões e os missionários
católicos, na época em que os metodistas e outros pregadores, inimigos implacáveis da
Igreja Católica, possuíam plena liberdade de percorrer nossas províncias distribuindo
suas obras falsificadas, executando outros meios de proselitismo. (SEIXAS apud
HAUCK apud FREIRE, 2001, p.22).
Em 1855, chega ao Rio de Janeiro o médico escocês Robert Reid Kalley, um
missionário autônomo, fugindo de perseguições na Ilha da Madeira, onde tinha começado uma
comunidade presbiteriana. Com sua chegada e de sua esposa Sarah P. Kalley, tem-se início o
estabelecimento permanente das Igrejas Missionárias no Brasil. Em Petrópolis, começa sua
atividade proselitista em português em reuniões nos lares. Em 1858, fundou uma Igreja, dessa
vez, afastada do modelo presbiteriano. Mendonça assim explica:
“Robert Kalley trouxe para o Brasil o congregacionalismo, ramo calvinista das
igrejas livres da Inglaterra, distinto das presbiterianas por praticar a democracia direta e por
afirmar a autonomia das Igrejas locais”. (MENDONÇA, 2001, p.3).
Após os Kalley, chegou ao Rio de Janeiro o missionário Asbel Green Simonton da
Presbyterian Church in the United States of América, em 12 de agosto de 1859, enviado pela
Junta de Nova Iorque, conhecida pelos brasileiros como a “Board de Nova Iorque”.
Desde o inicio, Simonton demonstrava grande preocupação com o aprendizado do
português a fim de envolver-se entre os brasileiros e conseguir adeptos, como vemos em seu
diário:
O assunto de interesse no momento é conseguir maiores oportunidades para aprender
a língua. Começo a censurar-me pelo desperdício de tempo, pois este é o meu maior
dever, e até que seja realizado, a questão da minha utilidade aqui deixa muito a
desejar. (SIMONTON, 1962, p.59).
33
O Dr. Kalley, a quem procura para conversar e debater as missões, aconselha-o a
não se misturar muito com seus compatriotas ou outros estrangeiros.
Simonton vive seus primeiros três anos de atividade missionária entre as províncias
do Rio de Janeiro e São Paulo, sentindo as dificuldades da língua e do novo meio. Em 12 de
janeiro de 1862, fundou a Primeira Igreja Presbiteriana em solo brasileiro, organizada com
pouquíssimos membros e todos estrangeiros. Depois chegaram outros estrangeiros e dois meses
depois, foi recebido o primeiro converso brasileiro, o senhor Serafim Pinto Ribeiro. Por esse
tempo, Simonton já tinha a companhia do Rev. Alexander L. Blackford e do Rev. F.J. C.
Schneider (MENDONÇA, 2001, p.29).
Em março de 1865, Blackford fundou a Segunda Igreja Presbiteriana em São Paulo.
Foi a partir daí que os presbiterianos desenvolveram uma ação missionária pelo mundo rural.
Em 13 de novembro desse mesmo ano, em Brotas, interior paulista, é organizada a Terceira
Igreja Presbiteriana com onze pessoas e, pela primeira vez, todas brasileiras (MENDONÇA,
2001, p.29).
Estavam presentes ao ato de fundação, além do missionário Blackford, o ex-padre e
ex-vigário de Brotas, José Manoel da Conceição, que viria a ser o primeiro pastor protestante
brasileiro. Aquelas pessoas eram suas ex-paroquianas, influenciadas por ele nas suas críticas ao
catolicismo.
Depois de ordenado, Manoel da Conceição dedicou-se arduamente em pregar a fé
protestante visitando as antigas paróquias entre os sertões de São Paulo e Minas Gerais.
Certamente, contribuiu muito para a expansão do protestantismo, em especial, da Igreja
Presbiteriana, levando muitos à conversão, de tal maneira que a Igreja Presbiteriana não tinha
estrutura para atender a tanta gente dispersa nos rincões do Brasil.
Outro fator que em muito contribuiu para o crescimento do presbiterianismo foi o
estabelecimento, em Campinas, em 1868, da Missão da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados
Unidos, cujo primeiro objetivo foi atender os imigrantes confederados de Santa Bárbara.
Contudo, não se resumiu a isto, pois, logo mais, enviou para o Recife em 1873, os missionários
William Leconte e John Rockwell Smith. Este último chegou ao Maranhão em 1875.
Nesse movimento de expansão, a Igreja Presbiteriana será a que terá maior
crescimento no século XIX:
34
Entre a chegada de Simonton (1859) e o fim do Império, já tinham os presbiterianos
mais de cinqüenta igrejas, quatro presbitérios (unidades regionais eclesiásticas), um
seminário para preparar pastores nacionais, dois colégios e diversos periódicos.
(MENDONÇA, 2001, p.31)
Na mesma colônia de imigrantes de Santa Bárbara, foi iniciada a missão Batista no
Brasil, com a fundação da Primeira Igreja Batista em 10 de setembro de 1871, provavelmente
pelo Pastor Richard Retclif. Porém, foi com o envio de William B. Bagby pela Junta
Missionária de Richmond que se consolidará o trabalho batista no Brasil. Este missionário
escolheu a Bahia como base, onde, com a ajuda do ex-padre Antonio Teixeira, fundou em 15 de
outubro de 1882, a primeira Igreja Batista nacional. A partir da Bahia, os batistas expandiram-
se pelo nordeste/norte aproveitando um espaço relativamente desocupado pelos protestantes.
A Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América foi à última da linha
denominada atualmente de histórica ou tradicional a se estabelecer no Brasil. A American
Church Missionary Socciety enviou dois jovens missionários para o Brasil: os reverendos
Jamen Watson Morris e Lucien Lee Kinsolving, chegados aqui em 1889 (MENDONÇA, 2001,
p.32).
Em 1° de janeiro de 1890, em Porto Alegre (RS), oficiaram o primeiro culto
episcopal no Brasil. Tudo indica que o trabalho episcopal no Rio Grande do Sul foi bem
sucedido, pois, já em 1893 foram ordenados quatro diáconos e confirmadas como membros 114
pessoas; em 1897, foram três diáconos para 150 confirmados e seis convertidos. Atesta,
também, o fato de um dos primeiros missionários, Kinsolving, ter sido sagrado Bispo em 1900
(MENDONÇA, 2001, p.32).
Escolhemos relatar brevemente sobre a inserção e estabelecimento dessas
denominações por serem as principais representantes, no Brasil, do protestantismo do tipo
histórico ou tradicional, mais ligado aos modelos teológicos das missões norte-americanas e
permeado pela ideologia do “protestantismo civilizador”, o que levou este a combater de frente
o modelo de sociedade construído pelo catolicismo ao longo de três séculos. Quanto ao tipo
pentecostal, não coube aos objetivos dessa obra por duas razões: primeiro, a influência
pentecostal foi mínima durante toda a primeira metade do século XX; segundo, porque não se
propôs promotor de uma transformação cultural tal qual o protestantismo histórico, embora
suas origens remontem a este.
35
Em referência ao significado desse “protestantismo civilizador”, Mendonça
esclarece:
A ideologia do protestantismo civilizador, isto é, de que formas sociais e políticas que
o povo americano havia descoberto e implantado em sua própria sociedade [...] eram
modelos que deviam ser compartilhados com outros povos a fim de que o Reino se
implantasse no mundo todo. (MENDONÇA, 2001, p.173).
Todavia, o protestantismo só se implantou no Brasil mediante uma remodelação
entre o discurso do especialista religioso (missionário, pastor ou pregador) e as heranças
culturais e histórico-sociais dos receptores, criando “um protestantismo com características
muito próprias, até certo ponto negador de seus modelos históricos ligados ao liberalismo e à
modernidade”. (MENDONÇA, 2001, p17 e18).
Isto é especialmente evidente naqueles brasileiros que, por várias razões secundárias
passaram da religião folclórica católica romana para o protestantismo sem nenhuma
compreensão mais profunda da teologia evangélica, ou sem nenhum compromisso
com o ‘Cristo Vivo’. Em tais circunstâncias, é muito natural que o peso da herança
cultural supere o que é tradicionalmente parte da fé cristã e Reformada. (HAHN,
1989, p.293)
Por fim, vale ressaltar que o protestantismo, no momento de sua inserção e nas
primeiras décadas do século XX, será visto pela unidade cultural católica como elemento
estranho na sociedade brasileira, uma seita, que deve ser repelida assim como um organismo ao
se defender de intrusos.
4. PROTESTANTISMO NO MARANHÃO IMPERIAL
Como vimos, o século XIX foi promissor para as missões protestantes no Brasil.
No caso do Maranhão não foi diferente. A partir da abertura dos portos, cada vez mais
estiveram presentes indivíduos protestantes, sejam para fins proselitistas ou não.
36
Também no Maranhão, os primeiros protestantes que se aproveitaram das
facilidades legais dos Tratados de 1810, foram os ingleses. Aqui as firmas comerciais inglesas
rapidamente se espalharam, não em busca de almas, mas de lucros.
Esses ingleses instalados aqui por causa dos negócios ou para defender os interesses
britânicos, não possuíam o ideal de fazer, entre os brasileiros, novos convertidos para o
protestantismo, até porque, a sociedade inglesa considerava o Brasil nação cristã e civilizada,
diferente dos norte-americanos que consideravam o catolicismo como uma deturpação da
verdadeira Religião Cristã. Sendo assim, os ingleses mantinham seus cultos nos lares e até
tinham um cemitério em São Luís.
Foi esse ambiente de prosperidade econômica aliada à presença de muitos
estrangeiros que acabou atraindo os primeiros missionários proselitistas para o Maranhão.
Um desses pioneiros foi o Pastor Daniel Parish Kidder, o distribuidor de Bíblias
citado anteriormente. Kidder chegou ao Maranhão em 1841 e suas impressões nos fornecem
uma idéia de um ambiente propício para o estabelecimento protestante. Dentre as vantagens, ele
nota que aqui “se encontram numerosos ingleses e franceses que se ocupam da atividade
comercial” (KIDDER apud FREIRE, 2001, p.37). Esses estrangeiros poderiam se constituir
como um ponto de apoio para missionários, uma vez que muitos eram protestantes ou já tinham
contato com o protestantismo em seu país.
Chamam a atenção de Kidder a moral e a intelectualidade da sociedade
maranhense, elementos favoráveis às missões: “estes alegam possuir, e não sem razão, um grau
de desenvolvimento intelectual e moral compatível a seus patrícios das maiores cidades do
Império” (KIDDER apud FREIRE, 2001, p.38).
Observa também o progresso e a prosperidade econômica da província,
principalmente com relação ao algodão: “Tem-se a cidade do Maranhão como sendo de melhor
construção que qualquer outra do Brasil. Apresenta ela ao visitante um aspecto de progresso
como raramente se nota em outras cidades do Império” (KIDDER, apud ALMEIDA, 2001, p
26). E mais:
O terreno presta-se muito para a cultura do arroz, que produz em grande quantidade, o
algodão lá se desenvolve muito melhor que a cana de açúcar (...) nas fazendas do
37
interior, rebanhos de carneiros, gado vacum e cavalar multiplicavam-se rapidamente
(KIDDER apud FREIRE, 2001, p.38).
O relatório de Kidder apresentou todos esses pontos positivos para uma investida
missionária no Maranhão e apenas um registro negativo: ainda a repercussão da Balaiada,
transmitida a ele provavelmente pelas elites:
Alguns desesperados sem escrúpulos, nada mais visando que o assassínio, o sangue e
o roubo, conseguiram insuflar o espetáculo revolucionário entre os ignorantes e
malfeitores — dos quais a província deveria estar repleta e começar a atacar
indivíduos e famílias sem defesa, justamente quando fazia suspeitar tais
acontecimentos. (KIDDER apud FREIRE,2001, p.38)
Ressalte-se que os relatos das viagens de Kidder pelo Brasil foram publicados em
inglês e se tornaram referência para todos os missionários com intenções de virem para o país.
Assim, o Maranhão entrava no rol de leitura dos futuros missionários.
No entanto, somente em 1875, tem início o estabelecimento definitivo de uma
Igreja Protestante na Província com chegada do Pastor presbiteriano John Rockwell Smith em
São Luís.
Era tarde do dia 3 de julho de 1875, quando aportava, à Praia Grande, o navio Guará,
vindo da cidade de Fortaleza, trazendo entre muitos passageiros, o missionário
protestante John Rockwell Smith, acompanharam-no o missionário Blackford e os
leigos: João Mendes, Francisco Filadelfo de Sousa Pontes, Silvino de Oliveira,
Raimundo Honório e Félix de Abreu. (BANDEIRA, 1986, p.5)
A chegada desses missionários está ligada à expansão do presbiterianismo após
1868, com a conversão do ex-padre José Manoel da Conceição e o estabelecimento da Igreja
Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos, como falamos no capítulo anterior.
É interessante notar a semelhança entre as impressões de Rockwell Smith e Kidder.
Escreve o primeiro:
O povo do Maranhão tem aparência de ser mais culto e polido, e sua cidade tem um
aspecto mais civilizado do que no Ceará. A última dá impressão de uma cidade do
interior, enquanto São Luís, possui indicações mais favoráveis de contato com o
mundo e idéias estrangeiras.
(...)
38
O povo, isto é, a classe alta de São Luís, são provavelmente pessoas mais alegres que
os cearenses, menos beatos e supersticiosos e mais tolerantes; ou talvez seja melhor
dizer, mais indiferentes em questões religiosas. (SMITH apud BANDEIRA, 1986, p.5)
Essas considerações de Smith mostram que na visão do missionário a cidade de São
Luís é propícia à propagação do protestantismo devido à população ser mais aberta a novas
idéias, inclusive as religiosas. Assim, Smith revela a fácil penetração das idéias liberais e
anticlericais na elite maranhense.
Para Smith, São Luís e o Maranhão eram pontos estratégicos para a ação
missionária no Norte do País e por isso desde cedo se esforça em capacitar alguns “leigos”
continuadores da obra.
Themudo Lessa, historiador do presbiterianismo brasileiro, fala dos leigos de
Smith:
Filadelfo Pontes foi herói no Baixo São Francisco, na Paraíba sua terra, em Caxias-Ma
e no Piauí, onde mourejou por longos anos. Silvino Neves trabalhou no Maranhão, na
Capital, no Rosário, em Caxias e Teresina, o Colpotor (distribuidor de Bíblias) João
Antonio Mendes foi outro que por aqueles tempos, apareceu subindo o Itapecuru e
indo talvez a Terezina. (LESSA apud BANDEIRA, 1986, p.9).
Estabelecida a primeira congregação, Smith foi para o Recife, e a deixou nas mãos
dos leigos, até a chegada do missionário e médico Dr. George William Butler em 15 de maio de
1885.
Já no dia 31 de maio de 1885, Butler realizou o primeiro culto público, sábado pela
manhã, na Rua Grande n° 69, esquina com Beco dos Craveiros, onde estavam presentes 50
pessoas. No mesmo dia, à noite, o número dobrou, estavam presentes 100 pessoas, fato que
indica uma boa oratória e persuasão do Dr. Butler.
As pregações do Pastor George Butler alcançavam as classes mais abastadas de São
Luís, trazendo para sua Igreja pessoas de influência na sociedade maranhense, dentre as quais
destacam-se: o Cônsul inglês Henry Airlie, o Cônsul português Jerônimo Tavares e o Dr.
Francisco de Paula Belfort Duarte que viria a ser governador do Estado com a República
proclamada, segundo Bandeira, a sua esposa Dna. Maria Bárbara Belfort Duarte foi o primeiro
fruto de Butler.
39
A personalidade de Butler foi fundamental para o estabelecimento do
protestantismo no Maranhão. O crescimento gerou a necessidade da construção de um templo e
ele mesmo dedicou-se inteiramente à edificação, finalmente inaugurado em 26 de julho de
1887. Em 1888, ele realizou o primeiro casamento em rito evangélico e o primeiro
sepultamento no cemitério local até então privativo dos católicos (BANDEIRA, 1986, p.16 e
17).
Estes atos deram visibilidade à Igreja, que começou a ser encarada como instituição
e a incomodar alguns setores da Igreja Católica. Um exemplo: há um documento em que o
Bispo Antônio Candido de Alvarenga oficiou ao então Presidente da Província para que tivesse
término as “agressões” do Pastor Butler, que “feriam” os sentimentos católicos da população
local (Anexo E). Esse e outros conflitos advindos das ações de Butler, veremos no próximo
capítulo.
Em 1892, depois de 7 anos de Ministério na região, Butler, esposa e filhos
deixaram o Maranhão para passarem o primeiro período de férias nos Estados Unidos
(FERREIRA, 1987, p.44).
5. IMAGENS DE UM CONFLITO RELIGIOSO
Analisar os conflitos entre católicos e protestantes no Maranhão requer cuidados,
como em toda obra historiográfica, de ordem metodológica e teórica.
Como metodologia adotamos a análise de um conjunto de fontes que nos permitem
pensar as ações e reações no campo sócio-religioso a partir da penetração, expansão e
consolidação do protestantismo num contexto religioso sob a hegemonia sócio-cultural da
Igreja Católica, que era o Maranhão do final do século XIX e início do século XX.
Trataremos as fontes percebendo três aspectos do conflito relativos a três momentos
bem perceptíveis da história do protestantismo no Maranhão. O primeiro momento é o do
estabelecimento nas décadas de 70 e 80, quando os protestantes já têm seus primeiros adeptos
proselitistas, mas pouquíssima expressividade religiosa; é apenas a religião dos estrangeiros. O
40
segundo, tem início com a ação do missionário George Butler em 1886 e se estende até a
primeira década do século XX, momento em que o protestantismo começa a ser percebido
como rival no cenário religioso, ao mesmo tempo, em que a Igreja Católica procura se
reestruturar após a República e a separação do Estado. E o terceiro, compreende a segunda e
terceira décadas, período que já se encontra consolidado a presença protestante no Estado. Isso
se faz sentir pelo crescimento das Igrejas, pelas suas publicações, e pelos protestantes que se
lançam às polêmicas pelos jornais com os padres católicos.
Do ponto de vista teórico, achamos pertinente discutir o conflito a partir da
perspectiva das representações, “ou seja, que o compreenda [o protestantismo] como um
movimento religioso cujas facetas múltiplas devem ser analisadas a partir dele para a sociedade
e desta para ele em seus olhares e interpretações” (SANTOS, 2003, p.61), isso porque as fontes
encontradas “são representações de discursos, imagens e práticas construídas num lugar e numa
situação. Em outras palavras construídas na sua historicidade” (SANTOS, 2003, p.63).
Sobre o assunto é importante ressaltar o pensamento de Chartier:
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e praticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade
à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a
justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta
investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num
campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de
poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.
(CHARTIER, 1990, p.17)
Em suma, acreditamos que é possível analisar o conflito sem cair na construção da
vítima e do algoz, percebendo as representações de protestantes e católicos, como eles se viram
e que ajustes tiverem que fazer para se enfrentar.
Tendo isto exposto passemos à analise das fontes:
5.1 Os obstáculos ao estabelecimento protestante no Maranhão
41
O primeiro conjunto de fontes é relativo a três processos de casamentos de “cultus
disparitas”, ou seja, entre católicos e não-católicos, mais exatamente, entre uma mulher
católica e um homem protestante. Estes são estrangeiros, a trabalho no Maranhão nas firmas de
comércio, fábricas ou a serviço do governo britânico, portanto, sua presença está relacionada
com aquele primeiro movimento — protestantismo de negócio. Além do mais, reflete o período
em que a Igreja Protestante ainda é inexpressiva.
Como exemplo, cito o processo de Robert Webster e Luzia Bastos da Silva Porto
(ANEXO C). Uma das razões alegadas para dispensar o casal do impedimento “cultu disparita”
comprova um incipiente protestantismo: “O não haver nesta capital senhora da seita do orador,
com quem elle possa cazar, não devendo por isso deixar de gozar dos bens do Matrimônio.” O
documento é de 4 de agosto de 1884, ou seja, nove anos depois da chegada do missionário John
R. Smith. O interessante é que a alegação se repete nos outros dois processos, um anterior, de
1881 e o outro, bem posterior, de 1894. Como se vê, a Igreja Protestante no Maranhão era ainda
tão pequena que quase não havia mulheres solteiras protestantes. Outra hipótese seria o fato que
até esse momento somente se tinha estabelecido aqui, a Igreja Presbiteriana, talvez não da
mesma denominação desses protestantes que decidiram se casar com mulheres católicas.
Consideradas essas circunstâncias desfavoráveis, não podemos descartar o campo
das conveniências, ou pressões sociais. Afinal esses estrangeiros “preferiram” se submeter a um
processo, no interior da Igreja Católica, que lhes eram aviltante por vasculhar suas vidas e ainda
por fim, terem, de certa forma, que renegar a religião em que nasceram, para casarem com
moças de famílias católicas. O que era claramente desaconselhável pela Igreja, com vemos
nesse documento (ANEXO B):
Instrucções aos Parochos para assistirem aos matrimonios mixtos, isto é de catholicos
com acatholicos.
1a. O parocho antes da celebração do matrimonio deverá exhortar a parte catholica a
desistir desse casamento do qual a Egreja procura sempre afastar os catholicos como o
declara Bento XIV; que os qualifica de matrimônios detestaveis. (? “Matrimonia” de 4
de novembro de 1741.
2a. Deve o parocho antes do casamento indagar do contrahente acatholico se na sua
seita o baptismo é administrado validamente, isto é, empregando-se a mesma matéria
e forma que se emprega no baptismo dos catholicos, porque se constar certamente a
nullidade do baptismo neste caso o impedimento será dissinante (sic) e o matrimonio
será nullo, se não proceder dispensa só o Papa pode conceder neste caso anisthia.
3a. Deve-se a publicação dos banhos.
42
4a. Antes do acto (um dia antes de for possivel) o parocho fará quando tiver
commissão para isto, fará que cada um dos nubentes separatiun perante duas
testemunhas pelo menos preste juramento e assigne o respectivo termo com relação a
liberdade da parte catholica para praticar a religião catholica e educação da prole de
ambos os sexos nas máximas e princípios da fé catholica etc. o qual termo será
assignado respectivamente pelos contrahentes e as testemunhas.
Esse documento permiti-nos algumas considerações. Primeiro, a Igreja Católica não
apenas desaconselhava como também impunha uma série de empecilhos para que o indivíduo
protestante transmitisse os ritos de sua religião à sua família, sob pena de ter seu casamento
nulo. Segundo, observamos pelo termo “acatholico” o status social do individuo protestante
qualificado por aquilo que ele não é, e ao mesmo tempo, caracterizando a sua religião, pelo
vocábulo “seita”, um termo pejorativo que, nas mentes católicas, é identificado como algo
demoníaco.
Não é sem motivo que a Igreja qualifica esse tipo de união de “detestável”,
“exhortando” a parte católica a desistir do casamento.
Um outro obstáculo para a expansão do protestantismo no Maranhão está no
problema referente aos lugares de sepultamento. Como falado anteriormente, até 1889, os
cemitérios estavam sob administração da Igreja Católica, não sendo permitido enterro de
pessoas de outra religião, mesmo sendo cristã, como no caso protestante. Os amigos e
familiares dos protestantes falecidos tinham apenas uma opção o Cemitério dos Ingleses, o que
se constituía mais uma desvantagem para um brasileiro tornar-se protestante pois teria que ser
enterrado num local mais afastado e longe dos túmulos de família.
Na literatura do final do século XIX, vemos no romance “O Mulato”, cujo tema
central é o amor proibido do mulato Raimundo com a aristocrata branca Ana Rosa, um trecho
bem interessante. É um diálogo entre o Cônego Diogo (personagem que representa o Bispo
Antônio Cândido de Alvarenga) e a Maria Bárbara, sobre o comportamento “suspeito” de
Raimundo.
— Sabe? Já descobri tudo!
— Tudo, o quê?
— O motivo de todas as desgraças, que nos tem acontecido ultimamente.
— E qual é?
— O cabra é “bode”...
...
43
— Veja esta bruxaria, reverendo! Veja e diga ao depois se o danado tem ou não
parte com o tinhoso! (...)
— Sim senhora! Tem toda razão! Cá estão os três pontinhos da patifaria! ...
— (...) além de cabra é bode!
(AZEVEDO, 1998, p.104 -105 )
Como este trecho pode ser revelador de uma imagem do protestantismo?
Primeiramente, “cabra” é uma forma ainda hoje comum de se reportar a um indivíduo no
Nordeste do Brasil. Por sua vez, bode, na interpretação nordestina da linguagem bíblica, é o
símbolo do mal presente disfarçadamente no meio das ovelhas de Deus que são o seu
verdadeiro rebanho. Assim, no imaginário católico, eram “bodes” os indivíduos da sociedade
que não professavam a fé católica.
No contexto do final do século XIX, o forte anticlericalismo e o pensamento liberal
no Maranhão em muito devia a ação da maçonaria. “Os três pontinhos” refere-se a um sinal
típico que acompanha a assinatura dos maçons. O protestantismo, visto como religião portadora
do liberalismo e da modernidade, logo identificou-se, nas mentes católicas conservadoras, com
a maçonaria, tendo mesmo membros maçons nas igrejas protestantes como veremos adiante.
Dessa forma, a palavra “bode” significando o enganoso, o mal disfarçado de bem, fonte de
desgraças, ligado ao demônio ou o já condenado ao inferno, poderia ser utilizada para o maçom
e/ou protestante.
Quando passamos a analisar as informações colhidas sobre o estabelecimento
protestante no interior do Estado, percebemos que ele se dá em movimentos autônomos, mas a
partir de um centro irradiador comum: o Centro-Sul do Maranhão, principalmente a cidade de
Barra do Corda, considerada ponto estratégico para a evangelização dos índios.
Dizemos que foram movimentos autônomos porque os primeiros missionários
protestantes tiveram uma atuação muito mais individual do que em obediência ou com apoio de
igrejas ou organizações missionárias. Entre esses pioneiros incluem-se tanto especialistas
religiosos estrangeiros quanto leigos brasileiros. Somente a partir da década de 20, é que se
dará uma atuação mais sistemática com a presença das organizações estrangeiras, dentre as
quais destaca-se a WEC (Worldwide Evangelization Crusade) e UFM (Unevangelized Fields
Mission).
44
Alguns relatos nos revelam sobre esses pioneiros que, movidos pelo afã
missionário, chegaram à região e travaram embates com a religião tradicional.
O Pastor Abdoral Fernandes cita o caso das famílias Barros, Caetano, Pinheiro,
Codó e outras que haviam se convertido ao protestantismo em Barra do Corda no ano de 1901,
pela ação de um evangelista independente, João Batista Pinheiro, e que decidiram sair da
cidade para um lugar chamado Lagoa da União, mais tarde, segundo o autor, um pregador
chamou o lugar de “O Paraíso dos Crentes” e o descreveu:
Era uma localidade no centro mais denso da mata, destinada ao abrigo de famílias
crentes e pobres que se ocupavam de cultivar o solo. Era mata sem fim, sem medida,
requerida pelo sistema antigo de posse, cujos limites não se conheciam. Naquele lugar
não morava ninguém de outro credo (SILVA, 1994, p.16)
Também segundo Abdoral Fernandes “Os de fora chamavam-no de Centro dos
Protestantes” (SILVA, 1994, p.16).
E necessário questionarmos através desses testemunhos, as motivações implícitas
para que um considerável grupo de pessoas (levando-se em conta que cada família tinham cerca
de dez a quinze membros, como era comum na época), se retirar da cidade, de uma vida a que
já estavam adaptados, após terem se convertido ao protestantismo, e irem para uma propriedade
no meio do nada.
Embora fossem trabalhadores rurais, não nos parece uma explicação suficiente para
uma mudança tão radical. E por que somente após a conversão, essas famílias em conjunto
decidiram se mudar?
O referido pregador, ao dizer que “naquele lugar não morava ninguém de outro
credo”, parece sugerir que fazia parte das preocupações daquelas famílias protestantes fugir das
pressões sociais e conflitos que poderiam surgir a qualquer momento na cidade, convivendo
com famílias católicas e com os padres, antigos “pastores de suas almas”. Ademais, ali
poderiam realizar seus cultos sem sofrer limitações ou retaliações.
Essa interpretação ganha força quando o próprio Abdoral Fernandes, mais adiante
discorre sobre as dificuldades “(...) para a evangelização em uma cidade dominada pelos frades
capuchinhos que a olhavam como se eles fossem os donos, desde o começo do século.”
(SILVA, 1994, p.19)
45
Ainda em Barra do Corda, outro testemunho, o de Dugal Smith, filho de Perry
Smith, missionário que viveu peregrinando e pregando pelo centro-sul do Maranhão no início
do século, dá-nos uma idéia das pressões sociais que o protestantismo sofreu no interior do
Estado.
Às vezes notávamos certa oposição por causa da nossa religião, especialmente por
parte de fanáticos ou de autoridades com excesso de ‘zelo’, que imaginavam que o
missionário fazendeiro ia subverter a religião tradicional do povo.(...)
Uma vez por outra, pedras foram jogadas nos salões de culto, mas Smith nunca foi
atingido. Outras vezes, durante um culto, muita gente (especialmente jovens) se
congregava perto do prédio ou do local do culto, se era ao ar livre, e fazia grande
barulhada, batendo latas, cantando e gritando interrompendo completamente a
reunião. (SMITH, 1986,p.52)
Um dos recursos que historiador pode lançar-se a analisar são as memórias,
obviamente tendo consciência que são apenas fragmentos de uma apreensão da realidade e em
constante reelaboração. Observamos que Dugal fala da oposição de fanáticos e autoridades com
excesso de “zelo” devido o imaginário de que o “fazendeiro ia subverter a religião tradicional
do povo”. Essa idéia atribuída a tais atores sociais, parece reproduzir o discurso da Igreja
Católica, ou seja, esses fanáticos e autoridades estavam sob o campo de influência católica e a
Igreja tinha criado uma imagem de protestantismo não apenas inimiga no campo religioso mas,
inclusive, “subversiva” para a própria ordem “tradicional”.
Um fato narrado pelo autor vem corroborar a essa interpretação, além de lançar
outras questões.
Certa vez, seu pai, o missionário Perry Smith, entrou em conflito com alguns
proprietários de gado locais por ter cercado a sua propriedade. Mais tarde, em quanto viajava
pelos sertões, teve a sua cerca derrubada. Dias depois, um homem que trabalhava para Smith se
feriu, o qual foi tratado pelo missionário e sua esposa. Duas semanas depois, o homem
desapareceu misteriosamente. Nessa mesma manhã, sob o pretexto do desaparecimento de um
homem, os policiais acusaram o missionário Smith de assassinato. “O certo é que, sem ouvirem
qualquer explicação, os policiais apreenderam Smith e o atiraram na cadeia”. A notícia da
prisão do missionário se espalhou rapidamente pela cidade e logo havia uma multidão na porta
da cadeia pedindo a soltura do missionário (SMITH,1986,p.55).
46
Ao que parece, Perry Smith havia incomodado gente muito poderosa, talvez as tais
autoridades que queriam de alguma forma paralisar o missionário, tanto que nem houve quem o
escutasse se defender. Em contrapartida, surpreendentemente uma “multidão” saiu em defesa
do missionário. Por quê ?
O próprio Dugal lança luz sobre a questão num trecho anterior do livro em que diz:
“Apesar do povo local não apreciar a ‘religião nova’ pregada por Smith, todos o amavam
porque ele os supria de muitos produtos por preços razoáveis, que dantes não existiam, ou pelo
menos não eram encontrados com abundância” (SMITH, 1986, p.52).
Ou seja, o missionário era visto de maneira ambígua pela maioria da população que
era pobre, porque embora sendo ele de outra religião não “apreciada”, era ele quem supria as
necessidades básicas de uma população vivendo numa região carente nos grotões do Maranhão.
Além de vender mercadorias a preços “razoáveis”, era ele o “tira-dentes” da região (SMITH,
1986, p. 45.), serviços que comumente eram realizados pelos estrangeiros protestantes nas
regiões carentes do interior do Nordeste.
Mais uma vez chama-nos atenção a maneira como o autor se refere a religião do
missionário como a “religião nova”, provavelmente reproduzindo o discurso da população da
época. E é essa “religião nova” que se opõem à “religião tradicional do povo”.
Percebe-se, então, como a cultura católica reagiu à penetração protestante nos
grotões do Maranhão com a martelada, mas eficiente, idéia de que “as coisas sempre foram
desse jeito”. Já aqui o protestantismo é visto como “religião nova”, não por ser portador da
modernidade como foi na capital, mas somente por ser a antítese da religião tradicional, ou
seja, a religião, que segundo discurso católico, poderia colocar em risco a ordem estabelecida.
5.2 A ascensão do protestantismo como opção religiosa concorrente ao
catolicismo.
Não podemos falar de protestantismo no Maranhão sem retomar um personagem
interessantíssimo nesse período de estabelecimento, principalmente, devido aos conflitos
resultantes de suas ações ousadas, que consistiram uma afronta às lideranças católicas locais.
Esse personagem é George Butler.
47
Como afirmamos anteriormente, é com George Butler que o protestantismo ganha
projeção no cenário religioso maranhense. Ele conseguiu fazer seguidores nas classes mais
abastadas de São Luis, realizou os primeiros rituais de sepultamento e casamento evangélicos
no Maranhão, construiu o primeiro templo protestante em 1887 quando ainda as leis do Império
restringiam tal edificação, realizou diversas viagens missionárias de Caxias à Teresina, etc.
Diante de tudo isso, a Igreja Protestante passou a ser reconhecida como uma instituição que se
opunha à Igreja Católica teologicamente, ideologicamente e na disputa por fiéis.
Algumas fontes nos indicam como o Dr. Butler constituiu um incômodo para as
autoridades católicas ao mesmo tempo que nos revelam traços do modo católico de ver o
protestantismo e, por sua vez, como o protestantismo viu o catolicismo e a partir disso criou
estratégias para combatê-lo na disputa por fiéis e importância religiosa.
Com esse fim, é importante voltar ao já citado requerimento de 26 de março de
1888, do Bispo Antonio Candido de Alvarenga, repassando o oficio do Capelão da Santa Casa
da Misericórdia ao Presidente da Província, Desembargador José Bento de Araújo, para que
este tomasse providências contra o Sr. George Butler (ANEXO E). O motivo:
...participando-me que já por duas vezes se tem apresentado no cemiterio sob a
administração da mesma Santa Casa um Senhor George Butler, que se diz Ministro de
uma seita protestante, para nesta funccionar nos enterramentos de pessoas que se diz
pertencerem a essa seita, a fim de que V. Exª., como provedor da Santa Casa da
Misericordia, se digne providenciar como julgar conveniente, em ordem a fazer cessar
este abuso, que constitue uma affronta aos sentimentos religiosos da população desta
cidade, visto que o cemiterio à Cargo da Santa Casa é um cemiterio Catholico, e como
tal não podem nelle sepultados cadaveres de pessoas que tiverem pertencido a seitas
hereticas.
O Bispo Antonio considera os atos do Senhor Butler um “abuso”, uma “affronta aos
sentimentos religiosos da população desta cidade”. Primeiro, porque, para ele, “um Senhor
George Butler, que se diz Ministro de uma seita protestante” não pode arrogar-se como tal,
afinal, Ministro é aquele que ensina e, no caso, ensina a Palavra de Deus. Para a Igreja Romana,
só teria autoridade para ensinar a Palavra de Deus quem passasse por um longo tempo de
preparação nos seminários católicos, sendo assim, o Ministro protestante não tem autoridade de
ensino, é um falso Ministro de uma falsa Palavra de Deus.
48
Ademais, num cemitério católico, “não podem nelle sepultados cadaveres de
pessoas que tiverem pertencido a seitas hereticas”. Vemos o discurso religioso retomando
termos da época da reforma, estigmatizando o protestantismo como “seitas hereticas” como se
o individuo protestante já estivesse condenado ao inferno, embora fosse cristão.
Outro importante aspecto a ressaltar no documento é o “lembrete” feito ao
presidente da Província de que ele, “como provedor da Santa Casa da Misericordia, se digne
providenciar como julgar conveniente”, ou seja, percebendo a sua posição como católico. Isto
evidencia que a Igreja Católica, embora bastante combatida na época, ainda possuía muita
influência junto ao poder público, e que usou, ou pelo menos procurou utilizar desse recurso
para obstaculizar o desenvolvimento do protestantismo.
Surge um pergunta inevitável: Por que George Butler, embora sabedor da proibição
das leis, decidiu enfrentar por duas vezes as autoridades católicas e realizar os ritos de
sepultamento de protestantes?
Essa postura de enfrentamento contrasta com outra encontrada em um documento
de dois anos depois, quando chegou a realizar uma queixa na delegacia do Rosário a respeito de
pedras que foram lançadas na casa das prédicas, mas não seguiu em frente com o inquérito por
considerar “que tal apedrejamento não merecia ocupar as autoridades superiores” (ANEXO A).
Foi averiguado que foram “apenas moleques e negrinhas ex escravisadas”. Talvez, o fato de
que em Rosário a “Religião Catholica é professada com toda fé e outras quaisquer olhadas com
indiferentismo”, ou seja, com menos pessoas abertas às novas idéias o missionário teria menos
apoio num eventual conflito com as autoridades católicas locais, isso esclarece o
questionamento anterior: na capital, o apoio, inclusive de autoridades, chegou ao ponto de dar a
Butler a sensação de poder enfrentar abertamente a Igreja Católica e aparentemente sair ileso.
Os jornais pesquisados confirmam que há muito o missionário causava incômodo
no clero maranhense. Durante todo o ano de 1887, em um jornal semanário católico “A
Civilisação”, o padre Arthur César da Rocha escreveu vários artigos convidando George Butler
para debater assuntos teológicos, como Butler nunca respondia, os ataques foram sistemáticos.
O padre publicou uma série intitulada “É o protestantismo verdadeira religião fundada por
nosso Senhor Jesus Christo?”.
49
No próprio título percebemos a preocupação de contra argumentar uma das
características mais fortes do discurso missionário protestante ao enfrentar um catolicismo que
permeava toda a sociedade brasileira: a de se arrogar a verdade, contra o engano do
catolicismo. A imagem que o protestantismo de origem norte-americana fez do catolicismo
brasileiro foi a de deturpador do verdadeiro cristianismo, daí adviria todas suas críticas do culto
aos santos, ao desregramento moral dos padres, ao sincretismo patente nos atos de religiosidade
das populações.
Por sua vez, e em defesa de suas posições, a Igreja Católica, emblematicamente
representada na pessoa do padre Arthur, vê o protestantismo como devaneio intelectual de uma
religião individualista, sem nenhuma base teológica sustentável. É o que o padre Arthur procura
mostrar em seus artigos, que a fé protestante não tem nenhuma sustentabilidade. Para isso
utiliza alguns, segundo ele, “documentos” e se apropria dos discursos de reformadores para
confirmar seus argumentos.
Citamos como exemplo o artigo publicado no dia 27 de agosto de 1887 da mesma
série, este com o propósito de analisar se “O Protestantismo possui a Santidade da religião de
Jesus Cristo?”, escreve o Pe Arthur:
Jesus Cristo, o fundador da verdadeira Religião dizia a seus discipulos; Eu sou o
caminho, a verdade e a vida.(...)
O Apostolo S. Paulo, um dos mais extremos propagadores da fé, dizia aos fiéis de
Corintho: ‘Sêde meus imitadores como eu sou de Christo.
Ao contrario Luthero, o fundador do protestantismo, alguns instantes antes de ter um
ataque apopletico, escrevendo do seu proprio punho, deixava esta palavra que devem
sepultar todo o protestantismo em um mar de vergonha: ‘Na verdade, somos uns
PATIFES.’
Agora, diga-nos o Sr. Butler com toda franqueza: deve se seguir a um patife? É
decente imitar a um patife? Um homem sério fica bem em um bando de patifes?
Responda-nos com sinceridade.
Que juízo deve-se fazer de um homem que se tem em semelhante conta? E que
qualificação deve ter a sua obra? Deduza, Sr. Butler, a conclusam que as premissas
indicam.
Já viu Ss. um patife ser santo? Não se repellem estas duas qualidades?
Este era o conceito que o fundador do protestantismo fazia de si e dos seus...
Nesse fragmento, observa-se como o Pe Arthur opõe Jesus Cristo e o apóstolo
Paulo ao reformador Lutero, contrapondo a origem do catolicismo no ministério de Jesus e dos
50
apóstolos com a “fundação” do protestantismo pelo “patife” Lutero e assim afirma o
catolicismo como a verdadeira religião cristã, autêntica e santa.
Para isso cita uma fala de Lutero e, mais adiante, várias outras, do próprio Lutero,
de outros reformadores como Calvino e Zwinglio e demais escritores contemporâneos. Depois
o Padre desafia Butler:
“Agora apresente-se Sr. Butler e defenda se puder, o fundador da Reforma.
Conteste estes documentos que ahi ficam estampados, e formule, se for capaz, argumentos que
possam destruir os testemunhos que acabamos de nomear.”
Não é sem razão tantas citações, afinal o padre coloca-se para seus leitores como
erudito, estudioso que conhece a fundo os erros do protestantismo e, ao mesmo tempo,
menospreza Butler desafiando-o a contrargumentar “se for capaz”.
Mas pelas queixas do Pe Arthur, Butler não respondeu a sequer um desses artigos:
“Esperava que o ministro protestante apparecesse pela imprensa contestando os documentos
que tenho apresentado contra o protestantismo(...)” (A CIVILISAÇÃO, 10 de setembro de
1887). Por que o Butler não lançou-se às polêmicas? Em uma sociedade intelectualizada, aberta
às idéias liberais, não haveria espaço para ele replicar? Talvez os poucos anos de Brasil ainda
não lhe permitiria polemizar na língua dos padres!? Hipótese que é reforçada quando
verificamos que, mais tarde, em 1895, já em Garanhuns, Pernambuco, Butler polemizou
publicamente com o Frei Celestino de Pedávoli, dentro da Igreja da cidade (FERREIRA, 1987).
O certo é que, no Maranhão de 1887, o silêncio de Butler expressa o momento de
um protestantismo que, apesar de incômodo, ainda se restringia a círculos limitados de
indivíduos, a maioria afeitos às modernas idéias liberais-anticlericais e pertencentes a setores da
elite. Ademais, os brasileiros (ex-católicos) convertidos parecem não estar à vontade em tornar
pública sua adesão ao protestantismo. Talvez temendo retaliações sociais.
Isso é demonstrado pelo fato de que somente um indivíduo escreveu um artigo no
Jornal “Pacotilha” em 26 de março de 1887, em resposta aos ataques do Pe Arthur defendendo
o protestantismo, mas preferiu permanecer no anonimato, o que mereceu uma resposta direta do
Padre no artigo “O protestantismo entre nós” de 16 de abril de 1887, onde este lamenta o fato
de um leigo anônimo que nada sabia de “Bíblia ou de latim” vim debater com ele e não o Sr.
Butler.
51
Percebe-se, ainda nesse momento, que o protestantismo não tem o espaço social
adequado para polemizar pelos jornais com o clero romano, ficando o enfrentamento
direcionado às práticas e ao discurso religioso da negação dos ensinamentos católicos.
5.3 O protestantismo em consolidação.
Os primeiros anos do século XX são anos de consolidação do espaço protestante no
Maranhão. Assim, os conflitos com o catolicismo ganharam uma maior repercussão com
diferentes contornos na capital e interior.
Nesse início de século, além dos conflitos com o catolicismo, a Igreja Protestante,
mais especialmente a Presbiteriana, viu-se em uma crise interna, de âmbito nacional, referente à
questão da maçonaria (como ocorrera com a Igreja Católica décadas atrás), resultando na
separação entre a Igreja Presbiteriana Brasileira e a Igreja Presbiteriana Independente.
Esse conflito difundiu-se rapidamente e em São Luís também resultou na cisão da
Igreja, o que significava a tentativa de um afastamento do protestantismo brasileiro e
maranhense das suas origens ligadas à ideologia modernizante liberal, cujo papel da maçonaria
como propagadora foi determinante.
Isso não implica dizer que o protestantismo irá abandonar o discurso modernizador
no momento de enfrentar a tradicional Igreja Católica, mas apenas que esse protestantismo está
buscando novas feições, mais nacionais e menos norte-americanas. Porém isso só se dá
gradualmente.
Como sinal disso, temos o ingresso dos primeiros pastores brasileiros. Na Igreja
Presbiteriana de São Luís, BANDEIRA (1986, p.21) informa que:
o Rev. Belmiro César exerceu o pastorado em São Luís de 1894 a 1911. Dedicou-se
ao magistério lecionando geografia, inglês e grego no Liceu Maranhense. Antes, abriu
colégio para os filhos dos crentes e de outros que não temessem a influência
protestante.
Pelas disciplinas que o Rev. Belmiro lecionava, percebemos se tratar de alguém
preparado para o ministério pastoral, além do mais, alguém que ensinava aos filhos da elite.
Ressalte-se a preocupação com a educação, a necessidade de abrir um colégio. Segundo
52
Mendonça, a educação foi uma estratégia das missões e missionários norte-americanos,
essencial para vencer o peso cultural do catolicismo.
Mas é fora de dúvida que a educação nos colégios protestantes reproduzia os padrões
da ideologia norte-americana do individualismo, do liberalismo e pragmatismo. Não
desconheceram os missionários, logo de começo, o formidável obstáculo que
representava a civilização católica (...). Transplantar para cá e ver mendrar aqui a
cultura norte-americana era tarefa de gigantes.” (MENDONÇA, 2001, p.106)
Não há razões para duvidarmos que Belmiro César, embora sendo brasileiro, tenha
fundado este colégio com o espírito da ideologia americana. Mas também é certo que se está
diante de um novo contexto onde o protestantismo já tem sua primeira geração de pastores
brasileiros, bem como um certo espaço social e institucional a ponto de um pastor ser professor
do Liceu e dirigir um colégio para os filhos dos crentes (talvez discriminados em outras
escolas) e de outros que não temessem a influência protestante. Ou seja, aqueles que viam com
bons olhos o transplante da cultura americana, cujo protestantismo seria o guardião.
Diante dos abalos institucionais sofridos pela Igreja após a separação com o Estado
e dessa maior aceitação da “influência protestante”, é que se terá um protestantismo mais
consolidado no cenário religioso a ponto de os primeiros indivíduos se lançarem às polêmicas
nos jornais.
Segundo Bandeira (1986), já na década de 10, o Rev. Antonio Texeira Gueiros, que
pastoreou a Igreja Presbiteriana de São Luís de 1917-1922, travou combates pelos jornais com
o padre Arias Cruz e o poeta Correia Araújo. O que também foi vivenciado pelo pastor da
mesma igreja, Raimundo Bezerra Lima, na década de 20, lançando-se às polêmicas contra o
padre Arias Cruz e espíritas maranhenses nos jornais Folha do Povo, O Combate e Pacotilha.
Em nossa pesquisa, não encontramos essas polêmicas. Todavia, vale o registro
como demonstração de uma maior consolidação do protestantismo no espaço religioso
maranhense, embora não deixasse de ser rechaçado pelo clero católico.
Por outro lado, na década de trinta, obtemos uma vasta seqüência de embates
travados pelos jornais, principalmente, entre os articulistas do jornal “O Presbiteriano” e do
jornal católico “Maranhão”. (Essa maior descoberta de fontes deve-se ao fato de que nos anos
53
30, tanto a Igreja Batista, a partir de 1933, quanto a Presbiteriana, a partir de 1936, terão jornais
em circulação).
A análise de jornais nos foi útil à medida que nosso estudo procurou compreender
as representações conflituosas no âmbito dos discursos, próprias de uma relação concorrente do
protestantismo com uma sociedade impregnada de cultura católica e as reações advindas desse
confronto cultural, além das interpretações que permaneceram e que se modificaram ao longo
dos anos.
Antes, ressalte-se o que nos diz FOCAULT (2004, p.12): “... o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo
que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.
Com essa orientação, cito o texto publicado no dia 17 de dezembro de 1887 no
jornal “A Civilisação”, com o título: “Não se deve permitir a propagação da heresia de um
estado catholico” (ANEXO G); e depois compararei com um outro artigo de “O Presbiteriano”,
publicado 50 anos depois, em 1º de maio de 1937, cujo título é “O maior inimigo do Brasil é o
Romanismo” (ANEXO F). Vamos ao primeiro texto:
Se devemos tolerar com caridade os defeitos e os erros do nosso próximo,
lamentando-os todavia, seria uma tolerância criminosa e prejudicial permittir que elle
os derrame no seio da sociedade, e a arraste, senão a sua total ruína, ao menos à um
transttorno universal (...)
Quem não vê que pretende congraçar o erro com a verdade é querer um impossivel?
Querer que se tolerem mutuamente a verdade catholica e os erros do protestantismo é
pretender pôr em pratica uma utopia irrealisavel
Certamente está presente aqui uma crítica aos grupos liberais radicais mais
simpáticos à penetração protestante, à liberdade religiosa e ao fim do esquema da religião de
Estado. Mas há também uma visão que irá permanecer por muito tempo nas mentes católicas
tradicionais, de que o protestantismo representa um perigo para a ordem social pelo próprio fato
de ser um “erro” inconciliável com a “verdade” católica. Nesse contexto, subverter a ordem
social, significa para a Igreja Católica atacar as estruturas sociais, políticas e econômicas
montadas desde o período colonial.
Conclui o artigo:
54
“Por conseguinte, permittir em um estado catholico a propagação da doutrina
protestante é querer que nelle se introduzam a desordem e as divisões, e (...) Não há nada que
possa melhor consolidar um estado que a unidade de religião.”
O segundo texto “O maior inimigo do Brasil é o Romanismo” é uma resposta ao
jornal católico “Maranhão” que afirmou que o “Protestantismo era um dos inimigos do Brasil,
por ser uma heresia”. O texto inicia acusando o romanismo de heresia, afirmando que a história
prova isso quando alguns Papas aderiram ao arianismo e negaram a divindade de Cristo. Mas
não só, para o autor, o romanismo é o maior inimigo do Brasil porque é o responsável pelas
mazelas econômicas e sociais.
O romanismo é uma religião estrangeira,
viceralmente inimiga da democracia e do sentimento liberal”. [Prossegue o
argumento]: Uma das causas de nossa depressão cambial é a remessa de dinheiro que
os padres extrangeiros fazem para os seus paizes e principalmente para Roma: sendo
assim fácil é concluir-se que o clero romanista é o maior inimigo da economia
nacional.
Em contra partida, o protestantismo é apresentado como uma religião mais
brasileira do que o catolicismo:
Quem tem mais direito de apelar para o sentimento de brasilidade? O brasileiro, que
aceitando o Protestantismo que não é religião Norte-Americana, nem, Alemã ou
mesmo Judaica, mas que é essencialmente universal na expressão máxima da palavra,
que não se centraliza em nenhuma das cidades do mundo, seja New York, Londres,
Berlim ou Jerusalém; ou o brasileiro que, acima de seus deveres cívicos coloca o
Romanismo o qual tem sua sede em Roma.
Também o autor (segundo o jornal “Maranhão”, seria o diácono protestante Hilton
Perdigão) acusa o romanismo de “deixar que o povo permaneça mesmo nas trevas profundas da
ignorância para que mais comodamente, livremente, para dominar”, ou seja, para o autor, o
romanismo é o responsável e o mais interessado na manutenção de altos índices de
analfabetismo no Brasil (70%) e conclui comparando a taxa de países protestantes que “não
ultrapassam de 6%” com a de países católicos como a Bolívia que chega a 80%.
Quando comparados os dois artigos, é fácil percebermos a permanência do
confronto de “verdades”, cada um se arroga a “verdade” e declara o outro como “heresia”. A
55
diferença agora é que os protestantes podem ser ouvidos mais claramente e, por conseguinte,
são expostas, com contornos mais definidos, as representações do protestantismo de dentro para
fora e de fora para dentro.
Evidentemente, essas representações são mutantes. No primeiro artigo, de 1887,
início da Igreja Protestante no Maranhão, o protestantismo é visto como um perigo não só para
a Igreja, por ser adversário religioso, mas para a sociedade já que poderia levá-la à ruína com a
propagação de sua doutrina herética e fomentadora de divisões. Como se vê, o problema maior
não é a existência de indivíduos protestantes, mas a propagação das suas idéias, nesse
momento, identificadas com as propostas liberais. É o medo da propagação do protestantismo
aliado ao espírito modernizante liberal patente em uma Igreja em crise nas suas relações com o
Estado e sendo criticada por seu conservadorismo por uma elite intelectualizada. E, como dito
anteriormente, o protestantismo utilizou-se dessa identificação com o liberalismo e a
modernidade para se implantar no Brasil.
Todavia, em 1937, o que vemos no 2º texto é o esforço protestante de, embora
mantendo a identidade com a modernidade e o liberalismo em oposição ao atraso, ao
conservadorismo e ao clericalismo católico, apresentar-se com uma feição mais brasileira,
como a religião que pode levar o Brasil a ter um povo mais educado, interessada no
desenvolvimento nacional e engrandecimento do país. Aliás, discursos bem adequados ao
contexto das reformas educacionais e do nacionalismo econômico da Era Vargas.
Outro aspecto que nos chamou atenção, envolvendo as polêmicas nos jornais, foi a
recorrente presença nas colunas do Jornal “O Presbiteriano” ou “Maranhão” de nomes de “ex-
padres” como Helvídio Martins e Raphael Gioia que se tornaram pastores ou pregadores
protestantes, passando a atacar o catolicismo.
Isto não é sem razão! Em “O Presbiteriano”, o que os “ex-padres” escreviam
atacando o catolicismo era usado como um forte argumento dos erros do catolicismo. Raphael
Gioia chega a desafiar os “maranhões” (ANEXO H):
“...desafiamos, dissemos, para uma discussão pública, na presença do povo nobre
do Maranhão para se ajuizar com quem estava a justiça e a verdade.”
Depois, lista uma série de conselhos teológicos, em latim, sobre o “confessionário
papista” e provoca:
56
“Traduzam-me, por favor, estes conselhos de suas borolentas theologias.
(...)
“Se não fizerem, estarão ‘ipso facto’ esmagados, desmoralizados e sepultados para
todo o sempre.” (O PRESBITERIANO, 23 /02/ 1937)
A resposta publicada no “Maranhão” teve o seguinte título: “Resposta a um
sepulcro caiado” (ANEXO I). Ali o clero justifica porque somente aceita um debate pela
imprensa:
1-Por que só especialistas poderão julgar a quem cabe a victoria n’uma discussão que
se trava ‘na arena da tese, das discussões theologicas e exegese bíblica’
2-Porque a presença das autoridades constituídas não tinha razão de ser, pois que as
autoridades eclesiásticas não dão a hereges a honra de julga-los a não ser
disciplinarmente, e as autoridades civis, no Maranhão, são todas pessoalmente
católicas, e como autoridades civis não devem se imiscuir em questões theológicas.
3-Porque uma discussão pela imprensa, que se faz assim também deante do publico, é
mais seria, pois os argumentos desenvolvidos ficam escriptos e a falsidade e os
embustes em que os protestantes são uzeiros e vezeiros ficam mais patentes”.
(MARANHÃO, 27/02/1937)
Quanto aos conselhos teológicos em latim, diz que eles não serão traduzidos, pois
não há mal nenhum em os padres estudarem “trechos escabrosos de moralistas”, uma vez que
“o padre, que no exercício de seu ministério tem de ouvir confissões”.
Estes trechos nos permitem algumas conclusões: 1) se a igreja católica preferiu uma
discussão pela imprensa, isso é um sinal do grau de circulação desses jornais pela cidade e do
conhecimento da população local sobre essas polêmicas, mesmo que parcialmente, através do
jornal Maranhão; 2) ao desafiar o clero católico utilizando sua própria teologia em latim, o
protestantismo pretendia também demonstrar conhecimento profundo dos “erros do
catolicismo”; 3) se o clero nega-se a uma polêmica diante das autoridades e se, por outro lado,
os protestantes assim desafiaram, isso é indicativo de uma aceitação do protestantismo junto a
esses setores dominantes, embora “as autoridades civis, no Maranhão, são todas pessoalmente
católicas”.
Outrossim, o desafio a uma polêmica pública, revela como os protestantes se vêem
seguros para um embate teológico, isso, não apenas pela sua aceitação junto às classes mais
57
altas, mas também ao fato dos protestantes perceberem-se como a religião da Palavra, portanto,
a verdade religiosa.
O Protestantismo propagou-se com essa idéia. O uso da Bíblia para devoção pessoal
e comunitária, introduzido pelos missionários desde o início das missões, contrasta com o
ensino tradicional do catolicismo de negar a livre interpretação e com a postura do clero de
acusar de falsidade as Bíblias protestantes, proibindo os fiéis a aceitarem tais Bíblias. Assim, o
protestantismo criou a imagem de um catolicismo anti-bíblico, sem poder de contra-argumentar
a verdade protestante. Por sua vez, o catolicismo vê que a teologia resultante do livre-exame
protestante só leva à “falsidade e embustes”.
Com relação ao fato de haverem “ex-padres” aderindo ao protestantismo e atacando
o catolicismo, diz o “Maranhão” (ANEXO J):
Entretanto, se passarmos em revista todas as aquisições deste gênero que a seita
protestante fez até hoje. Verificaremos que todos os infelizes que se tornaram, de
sacerdotes em pastores protestantes, tiveram a mesma história, que é a victória, nelles,
da carne sobre o dever, pois todos passaram ao protestantismo através da porta, tão
pouco edificante, no concubinato, mesmo legalisado em casamento civil.
(MARANHÃO, 28/03/1937)
Dessa maneira, foram ridicularizados não somente os “ex-padres”, mas a própria fé
protestantes que aceitava como pastores estes homens de índole vulnerável.
Em “O Presbiteriano” do dia 30 de março veio a resposta (ANEXO L):
Para a satisfação da carne, já o disse o pastor Gioia Martins, e sabem-no todos,
mesmos os católicos que ainda tem a liberdade de pensar, não é preciso deixar a
batina.
E os fatos que se comentam, a cada passo, o comprovam: Hoje é um embatinado, que
numa pensão desta cidade tenta, de um modo torpe satisfazer o seu baixo sensualismo;
ontem era outro, que, numa capela do interior da ilha, é encontrado na sacristia, nos
braços da amante.
E assim seguem-se os insultos de ambos os lados tentando desmoralizar ao outro
diante do público maranhense.
58
Outro recurso que utilizamos para compreender esse período de consolidação
protestante foi a metodologia da história oral entrevistando o Pastor Abdoral Fernandes da
Silva, que trabalhou na evangelização pelo interior do Maranhão nas décadas de 30 e 40. A
Análise desta entrevista é um importante instrumento para compreensão dos conflitos gerados
pela expansão protestante no interior do Estado e para percebermos, no discurso e nas práticas,
as representações de dentro para fora e de fora para dentro do protestantismo. Diz o Pastor
Abdoral:
Sempre a gente se sentia perseguido pela Igreja que eu acho que no cumprimento
mesmo da sua posição de Igreja da maioria não é, e uma tradição de não deixar que os
evangélicos, cristãos evangélicos, o protestantismo crescesse, então desde menino eu
sentia essa pressão por exemplo: a primeira investida que eu senti pesado, foi quando,
interno do colégio cristão em colinas né, eu me lembro que fomos apedrejados em um
culto ao ar livre, na praça pública né, enquanto realizávamos o culto, em colinas,
quando era estudante do colégio cristão com 17 anos, mas não houve vez que eu sofri
agressão por causa do evangelho, com os outros não é.
É razoável pensarmos que os embates entre catolicismo e protestantismo pelo
interior não se dão com a mesma “cordialidade” dos confrontos pelos jornais da capital. A
violência será sempre uma ferramenta a mais quando a “pressão” não se mostrar suficiente e, a
essa realidade, o protestantismo como religião da minoria deveria adequar-se.
Na memória do pastor, é marcante o episódio em que foram apedrejados em um
culto ao ar livre, pois foi a “primeira investida que sentiu pesado”, embora mais adiante diga
“mas não houve vez que eu sofri agressão por causa do evangelho”. O que faz esse depoimento
parecer contraditório? Ora, essa aparente contradição só tem explicação em um ambiente onde
o recurso da violência era comum. Talvez o pastor tenha conhecimento de outros casos onde a
“agressão por causa do evangelho” fora ainda mais direta. Como se vê, casos de apedrejamento
em cultos ao ar livre não são lembrados como tão terríveis, o que nos leva a inferir sobre a
adequação protestante à essa realidade e a pressupor que apedrejamentos eram comuns.
Um outro fato narrado que nos chama atenção, aconteceu em Grajaú:
Ah... soube de uma... num culto dessa mesma espécie de trabalhos especiais, sobre
uma grande procissão que eles fizeram, um dia pela manhã, plena chuva, se
ajoelhando na lama pra Nossa Senhora expulsar da cidade a influência protestante.”
[Convicção!] (Afirmação nossa.)
59
Jean Bastian (1992, p. 473) apresenta o papel das práticas na formação de uma
mentalidade anti-protestante:
Sua condenação sistemática no decorrer do último terço do século XVI teve outra
conseqüência: a de inculcar no seio da população colonial, por meio de espetaculares
autos de fé, a consciência antiprotestante e anti-estrangeira interligadas no
inconsciente coletivo colonial.
E em seguida assevera:
Parafraseando Serge Gruzinski (1988), pode-se afirmar que o protestante encontrava-
se assim entre a ‘série dos desviantes e dos fantasmas das obessões que habitavam o
imaginário das sociedades ibéricas ao lado dos judeus, dos sodomitas e dos
feiticeiros’.
Apedrejamentos e procissões revelam que essa mentalidade antiprotestante forjada
desde o período colonial permanece viva. Parece que a sociedade católica não vê apenas com
estranheza e indiferentismo a presença protestante, ela é um mal que deve ser extirpado;
apedrejamentos e procissões são autos de fé, símbolos da expulsão de hereges, identificados,
nas mentes dos fiéis católicos, como algo demoníaco.
Apesar de tudo, a Igreja Protestante firma-se no interior e cresce. Como isso é
possível? Mais uma vez, a imagem que o protestantismo conseguiu fazer de si, principalmente
para as classes mais abastadas das cidades foi fundamental. Percebemos isto em pelo menos
dois momentos da entrevista. Falando sobre as relações dos protestantes com as pessoas
importantes da cidade, o Pastor Abdoral nos diz:
A relação era boa... até porque, Grajaú, os evangélicos ali eram muito bem
relacionados, embora perseguidos. Seu Ernesto Utem, o missionário inglês ali,
ensinava no ginásio, tinha muito conceito na cidade a ponto de uma reunião de
estudantes lá no colégio, o único ginásio que era dos padres, perguntaram: (oh... qual
era o nome do padre?)... ‘Será que seu Ernesto se salva?’ E ele disse: ‘menino se um
protestante se salvasse, seu Ernesto tá salvo’, quer dizer não podia se levantar contra o
conceito do homem né? E também, o coletor da cidade era evangélico, muita
influência como orador, como professor e algumas outras pessoas também. Então, a
gente era bem recebido pelas autoridades, mas muito perseguido pelos padres, não é ?
Em outro momento, o pastor narra um episódio em Barra do Corda em que ele
polemizou com o padre da cidade por meio de auto-falante:
60
Quando eu comecei a falar ele então abriu na direção... era muito mais potente que a
nossa, que era exatamente para acabar, aí eu precisei... convidei o promotor da cidade,
doutor Zé Maria, o prefeito, e disse: oh, vou falar com o padre...
(...)
Então, começou-se a repartir simpatizantes do padre contra o pastor... protestante. E
eu com uma... uma convulsão temendo durante um mês... aí cada dia ele falava, no
outro dia eu respondia. Quando no fim do mês eu recebi uma comissão em casa: o ...
Edico, um vereador, não sei quem lá da prefeitura, uma comissão enorme, na porta e
diz: “olha, você sabe que a cidade ta empovorosa... numa situação política tremenda!”
Barra do Corda estava também enfrentando uma situação política além desta situação
política, a religiosa aí ... eles não sabia como fazer.
A referida situação política lança outras questões:
Situação política... que um camarada, por sinal membro da nossa igreja, na verdade,
João Pires era um coronel velho, desses que não se rendia... ele... foi eleito prefeito.
Aí... como é? Tomaram a prefeitura dele. E ele sozinho pegou a alavanca, chegou lá
rebentou a porta da prefeitura e entrou; tomou o lugar dele.(risos). E ele... todo mundo
disse: ‘não faça uma coisa dessas’... ‘e não! Eles arrebentaram pra entrar e eu também
to arrebentando pra entrar...’ e começou aquela... foi preciso vir polícia especial de
São Luís... cercando a cidade, com fogueira no meio da cidade, a tropa entrando...
Aí, aí, esses representantes do político tudim... em casa, querendo fazer a conciliação,
a cidade pra pegar fogo, porque politicamente tava assim, a religiosa desse jeito,
queriam saber o que é que eu posso fazer.”
Temos assim um protestantismo aceito pelas autoridades e pessoas de influência a
ponto de “um coronel velho” ser membro da Igreja.
Então, o que teria levado essas pessoas de influência na cidade a aderirem ao
protestantismo? Chama-nos a atenção o trecho sobre o missionário Ernesto Utem que era
professor no ginásio, de muita influência e gozando de bom conceito na cidade, em seguida,
cita o coletor federal que tinha “muita influência como orador, como professor”. Seriam
evidências de que esse intelectualismo atraiu as pessoas de influência? E por que essa ligação
com o intelectualismo atraiu essas pessoas?
Segundo Mendonça, “a leitura dos historiadores das denominações protestantes no
Brasil mostra, com insistência, embora de passagem sem maiores comentários a contínua
fundação de escolas ao mesmo tempo que de igrejas” (MENDONÇA, 2001, P.98).
61
Em seguida diz:
O sistema educacional no Império apresentava notável fraqueza, especialmente quanto
à sua extensão. Não conseguia alcançar todas as crianças em idade escolar. A zona
rural era naturalmente, a mais prejudicada. Como a vida urbana era menos intensa que
a rural, compreende-se porque essa carência educacional atingia na classe dirigente
elevado grau de preocupação. (MENDONÇA, 2001, p.98)
Certamente, durante a 1ª República, essa realidade educacional não mudou muito.
Nesse contexto, educação protestante esteve vinculada à necessidade da leitura pessoal e
comunitária dos cânticos e da Bíblia, junto a uma população analfabeta. Todavia, a estratégia
protestante de “contínua fundação de escolas ao mesmo tempo que de igrejas” a fim de
imprimir seus valores através da educação, também adequou-se aos anseios dos grupos
dominantes e foi vital para o estabelecimento e crescimento das igrejas nas cidades do interior
do Maranhão.
Uma outra questão que o depoimento suscita é por que o prefeito eleito João Pires,
membro da Igreja, teve a prefeitura tomada? Seria por ser protestante? Então, como ele foi
eleito? As limitações e os objetivos da pesquisa não nos permitiram preencher essas lacunas, no
entanto, interessa-nos que o depoimento deixa transparecer que a crise política foi associada à
crise religiosa a ponto das autoridades da cidade irem à casa do pastor verem o que ele poderia
fazer. Parece que há mais ligações entre ambas do que o simples fato de terem ocorrido num
mesmo período!
Por fim, identificados com a idéia da intelectualidade, os protestantes passam a
polemizar com o clero católico. É emblemático o fato narrado pelo pastor Abdoral em que ele
confronta-se com o padre por auto-falantes onde a capacidade de argumentar pode definir qual
das religiões está certa. Interessante é que quando ele se sentiu prejudicado pelo padre em seu
“direito de liberdade de expressão religiosa”, ele logo procura a defesa das autoridades.
A partir dessas revelações do depoimento, podemos afirmar que nesse momento de
expansão pelo interior, os líderes do protestantismo, além da convicção de terem a Palavra ao
seu lado, já sentem uma efetiva proteção sócio-política e jurídica, o bastante para expor seus
ataques ao catolicismo, ou seja, partir publicamente para o enfrentamento pelo espaço religioso.
62
O protestantismo vive, portanto, um outro momento de sua história no Maranhão,
seja na capital ou no interior, onde o protestante discursa publicamente, confrontando os
clérigos católicos pelos jornais, auto-falantes ou praças públicas. E através dessas polêmicas, as
representações concorrentes expressas nos discursos surgem bem definidas, ambos negando um
ao outro na busca do controle do espaço sócio-religioso.
6. CONCLUSÃO
Nosso objetivo neste trabalho foi analisar o protestantismo como fenômeno social
desencadeador de uma reação da religião católica historicamente estabelecida, a partir da
inserção e expansão protestante no seio da sociedade católica maranhense. Certamente, a
relação protestantismo-cultura é um fato social de múltiplas feições, mas enfatizamos neste
trabalho a questão dos conflitos inerentes à essa relação.
Foi-nos adequado a utilização do conceito das “representações”, atualmente muito
utilizado nas ciências sociais, ainda mais quando percebemos as fontes encontradas como
discursos emanados de “lugares” que revelam imagens e interpretações, social e culturalmente,
construídas, ou seja, construídas em sua historicidade
Dessa forma, primeiramente, verificamos que o protestantismo foi identificado
como portador da modernidade, ligado às idéias liberais e ao sucesso das nações de ponta do
capitalismo da época; para alguns setores da sociedade significava a oposição religiosa ao
atraso do clericalismo católico. Por sua vez, o catolicismo combateu-o como uma heresia, cujo
maior dano seria por em risco a ordem político-social estabelecida desde o período colonial.
Em segundo lugar, percebemos dois momentos bem distintos relativos aos conflitos
com o catolicismo: as primeiras décadas de estabelecimento protestante, onde os especialistas
protestantes não possuem o espaço institucional e social suficiente para enfrentar publicamente
os clérigos que, por meio de jornais, ridicularizavam a fé protestante; e a partir da década de 30,
quando já veremos o protestantismo polemizando pelos jornais ou, até mesmo, em praça
pública, atacando o catolicismo ou rebatendo o menosprezo dos clérigos.
63
Um outro aspecto refere-se às características diferenciadas do estabelecimento
protestante na capital e no interior do Estado. Na capital, a doutrina protestante, vista como
guardiã do liberalismo e da modernidade, teve uma boa aceitação junto às elites intelectuais e
anticlericais, além do mais, a implantação das Igrejas foi obra, principalmente, de especialistas
religiosos norte-americanos enviados por organizações missionárias. Nas cidades do interior,
destaca-se a figura do leigo; a implantação de igrejas pelo interior está ligada, muito mais, a
ação desses indivíduos, brasileiros ou estrangeiros, que iniciaram seus trabalhos sem qualquer
apoio institucional. Percebemos também que, no interior, a aceitação desses indivíduos deveu-
se aos serviços prestados àquelas populações carentes, desde tirar dentes até a educação, onde
era geral o analfabetismo, através da existência de escolas junto às Igrejas.
Todavia, também no interior, o protestantismo foi visto com estranheza, como uma
religião nova em oposição à religião tradicional do povo. Dessa forma, a violência foi um
recurso constantemente utilizado para repelir o intruso: apedrejamentos, ameaças de morte a
pastores e missionários, prisões ilegais, invasões de cultos ao ar livre etc. Apesar de tudo, o
protestantismo, aos poucos, foi conquistando os setores dirigentes das cidades do interior,
principalmente, por causa de sua identificação com o intelectualismo.
Por fim, concluímos que o enfrentamento do protestantismo com a religião católica
apresenta, evidentemente, suas rupturas e continuidades ao longo de cinqüenta anos.
Procuramos percebê-las nos discursos institucionais (padres e pastores), nas práticas populares
(insufladas ou não pelos clérigos), ou qualquer outra expressão das mentes católicas e
protestantes.
Há nas mentes católicas, a permanência de uma imagem do protestantismo como
seita, erro, engano algo que deveria ser expelido, e, por outro lado, o protestantismo vê o
catolicismo como deturpador do verdadeiro cristianismo e da “palavra de Deus”.
Quanto às transformações, vemos um protestantismo que, desde o início do século
XX, está buscando feições mais nacionais, menos ligadas aos modelos culturais norte-
americanos, característicos da fase de implantação, e que passa a atacar o catolicismo como
“inimigo do Brasil”. Por sua vez, nesse momento político, após a laicização do Estado, em que
a Igreja Católica encontra-se perdendo poder, mas consciente de sua enorme influência social, o
catolicismo vai mudar a ênfase de uma imagem do protestantismo como subversivo para a
64
ordem estabelecida e destacar os erros do protestantismo, menosprezando a fé protestante,
ressaltando-o como heresia.
FONTES
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ROCHA, Arthur César da. O Protestantismo possui a Santidade da religião de Jesus Cristo?. Civilisação, São Luís, 27 de agosto de 1887.
ROCHA, Arthur César da. O protestantismo entre nós. Civilisação, São Luís, 16 de abril de 1887.
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MARGUERITE, Conde Solarde la Não se deve permittir a propagação da heresia de um estado catholico. Civilisação, São Luís, 17 de dezembro de 1887.
O Maior Inimigo do Brasil é o Romanismo.O Presbiteriano, São Luís, 01 de maio de 1937.
MARTINS, Raphael Gioia. Esmagando a Hidra. O Presbiteriano, São Luís, 23 de fevereiro de 1937.
Resposta a um “sepulcro caiado”. Maranhão, São Luís, 27 de fevereiro de 1937
Que differença!. Maranhão, São Luís, 28 de março de 1937
MARTINS, J. Que diferença!. O Presbiteriano, São Luís, 30 de março de 1937.
� DOCUMENTOS
Queixa registrada na Delegacia do Rosário
Arquivo Público do Estado do Maranhão
65
Fonte: Delegacia da Polícia do Rosario
Rosário- MA data: 29/08/1890
Enterramento de pessoa não católica em cemitério católico.
Arquivo Público do Estado do Maranhão
Fonte: Bispo Diocesano/ Presidente de Província 1878-1901
São Luís - MA data: 26/03/1888
Processo de Robert Webster e Luzia Bastos da Silva Porto
Fonte: Livro de Registro de casamentos de Consciência e Cultus Disparitas
(1867-1905)
Arquivo Público do Estado do Maranhão
São Luís - Ma 04/08/1894
São Luís - Ma 19/08/1884
Instrucções aos parochos para assistirem aos matrimonios mixtos, isto é de catholicos com
acatholicos.
Fonte: Livro de Registro de casamentos de Consciência e Cultus Disparitas
(1867-1905)
Arquivo Público do Estado do Maranhão
São Luís - Ma 04/05/1884
� ENTREVISTA
Pastor Abdoral Fernandes da Silva
Data de nascimento:18/03/1921 Local: São Domingos-MA
Endereço atual: Rua Frei Hermenegildo nº95, Bairro: Aurora
Data da entrevista: 19/12/03
66
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SIMONTON, Asbel G. Simonton: Inspiração de uma existência, 1962 (Diário de Simonton) SMITH, Dugal I. Fazendo Progresso. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1986
69
ANEXOS
ANEXO A
Acervo: Arquivo Público do Estado do Maranhão
Queixa registrada na Delegacia do Rosario
Delegacia da Polícia do Rosario
29 de agosto de 1890
Ilms.
Ao Cidadão Doutor. Chefe de Polícia do Maranhão
A vossa estada nesta villa no dia 24 do corrente, quase que me despensou de informar
conforme o officio de 15 do mesmo mez ,n°2745 em relação as queixas do cidadão Dr. George
Buthler, fundadas em outras do seu comissário Silvino de Oliveira Neves, o qual no Diario de
21 do citado mez foi o próprio em voltar a imprensa retratando-se e em defesa do Cidadão
Henrique Fernandes da Rocha, e conseqüentemente do Reverendíssimo Vigario que nesse
mesmo n° publica um artigo. Mas como tinha aberto o inquerito em cumprimento a vossas
ordens; devo dizer que neles deposeram pessoas de boa fama n’esta villa e até o escrivão de
Juiz de Paz simpathico aos pregadores protestantes; o resultado colhido como verdade foi que
lançavam pedras na caza das predicas nas noites de 3, 10 e 17 tudo do corrente apenas
moleques e negrinhas ex escravisadas.
O proprio Dr. Buthler que já aqui encontrastes está convencido que tal apedrejamento
não merecia occupar as autoridades superiores, tanto que me procurou para terminar a qualquer
deligencia a respeito.
Estou convencido que se elle não fissesse (sic) substituir por um môço inexperiente,
nada se teria dado n’esta villa, onde a Religião Catholica é professada com toda fé; e outras
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quaes quer olhadas com indiferentismo; tanto assim é- que a unica familia e adeptos dos
protestantes não são rozarenses.
Concluindo devo prevenir-vos, se outra grita se levantar, deve merecer a mesma
importancia porque moleques e macacos são semelhantes em toda a parte.
Saúde e fraternidade.
Raimundo José Cordeiro
Delegado Supplente
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ANEXO B
Acervo: Arquivo Público do Estado do Maranhão
Fonte: Livro de Registro de casamentos de Consciência e Cultus Disparitas
(1867-1905)
Processo de Roberto Wall e Maria Regina de Carvalho
São Luís-Ma 04/05/1894
Instrucções aos Parochos para assistirem aos matrimonios mixtos, isto é de catholicos com acatholicos. 1a. O parocho antes da celebração do matrimonio deverá exhortar a parte catholica a desistir desse casamento do qual a Egreja procura sempre afastar os catholicos como o declara Bento XIV; que os qualifica de matrimônios detestaveis. (? “Matrimonia” de 4 de novembro de 1741. 2a. Deve o parocho antes do casamento indagar do contrahente acatholico se na sua seita o baptismo é administrado validamente, isto é, empregando-se a mesma matéria e forma que se emprega no baptismo dos catholicos, porque se constar certamente a nullidade do baptismo neste caso o impedimento será dissinante (sic) e o matrimonio será nullo, se não proceder dispensa só o Papa pode conceder neste caso anisthia. 3a. Deve-se a publicação dos banhos. 4a. Antes do acto (um dia antes de for possivel) o parocho fará quando tiver commissão para isto, fará que cada um dos nubentes separatiun perante duas testemunhas pelo menos preste juramento e assigne o respectivo termo com relação a liberdade da parte catholica para praticar a religião catholica e educação da prole de ambos os sexos nas máximas e princípios da fé catholica etc. o qual termo será assignado respectivamente pelos contrahentes e as testemunhas.
ANEXO-C
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Acervo : Arquivo Público do Estado do Maranhão
Fonte: Livro de Registro de casamentos de Consciência e Cultus Disparitas
(1867-1905)
Processo de Robert Webster e Luzia Bastos Da Silva Porto
São Luís- Ma 04/08/1884
Exmo. e Revo Snr Bispo Diocesano Autoado na Câmara Ecclesiastica, venham conclusos. Maranham 4 de Agosto de 1884.
Os oradores Robert Webster e Luzia Bastos da Silva Porto, solteiros parochianos da
freguezia de N. S. da Conceição da Capital, este residente na caza n° 77 da Rua do Apicum
desta cidade, de idade de 28 annos, da seita episcopaliana, caixeiro no comercio, natural de
Lanark no reino da Escossia, filho legitimo de William Webster de Wellgate Lanark, e ella
residente na Rua de S. João no 74 de idade de 15 annos, orphã de pae, Catholica Apostólica
Romana, natural e baptizada na freguezia de São João Baptista desta cidade, filha de Anna
Rosa Ribeiro e perfilhada por escriptura pelo fallecido Benedcito Bastos da Silva Porto,
pretendendo contrahir o sacramento do Matrimonio, vem rogar a V. Ex.ª Revo se digne
dispensal-os para esse fim do impedimento – Cultus disparitas – por ser o orador christão
protestante da seita episcopaliana e a oradora Catholica Apostólica Romana.
As premissas que allegão para obter esta graça; são:
A affeição e amisade sincera que de tempos a esta parte entre si nutrem;
O não haver nesta capital senhora da seita do orador, com quem elle se possa cazar, não
devendo por isso deixar de gosar dos bens do Matrimônio;
A conveniencia que deste matrimonio deve necessariamente resultar a ambos,
especialmente a oradora que por este meio ficará amparada e livre das seduções á que está
sujeita a mulher pelo seu sexo frágil;
A firme resolução em que permanece a oradora de continuar a praticar os actos
religiosos da fé e religião Catholica Apostólica Romana, e de educar e fazer educar nas
maximas e verdades desta religião Catholica Apostólica Romana os filhos de um e outro sexo
que por ventura nascerem deste Matrimonio, que avidamente desajão levar a effeito se V. Ex.ª
Revo dignar-se conceder-lhes esta graça da dispensa de tal impedimento.
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Finalmente o prejuiso que resultará a oradora, se não conseguir esta graça attenta a
amisade que reina entre ambos. Ella vive honesta e recatadamente em companhia de sua mãe e
irmão.
Assine P. Pa V. Ex.ª Revo se sirva deferir-lhes, in forma panperum, etc Orabent ad Dominum S. Luiz do Maranhão 4 d’agosto 1884 Luzia Bastos da Silva Porto
ANEXO-D
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Acervo : Arquivo Público do Estado do Maranhão
Fonte: Livro de Registro de casamentos de Consciência e Cultus Disparitas
(1867-1905)
Processo de Robert Webster e Luzia Bastos Da Silva Porto
São Luís –Ma 19/08/1884
Ilmo. e Rmo Dr. Provisor do Bispado P. Maranhão 19 d’Agosto de 1884 Moura S.
Roberto Webster, solteiro de 28 annos, natural de Lanark na Escossia, christão
protestante da seita episcopaliana, filho legitimo de William Webster e de Wellgate Lanark,
residente nesta cidade de San Luiz, na freguezia de N. Snrª da Conceição, na rua do Apicum
casa n° 77, requer a VSª Rmª se digne mandar certificar abaixo se é verdade, que o suplicante
provou e foi julgado por sentença de VSª o seguinte: - que o justificante é o próprio de que se
trata, natural da freguezia e filho dos paes allegados; que saio do logar de sua naturalidade com
idade de 16 annos directamente para esta cidade de San Luiz, onde aportou em 1872 e aqui tem
residido desde então até hoje; e finalmente que é solteiro, livre e desimpedido sem ter até hoje
contrahido Matrimonio nem esponsaes.
E. R. M.ª
O Conego Severino José dos Sanctos, Escrivão interino da Camara Ecclesiastica do
Maranhão et caetera
Certifico ser verdade o allegado na petição supra. O referido é verdade e aos respectivos
autos, os quaes forão processados no corrente mez. San Luiz do Maranhão 19 de Agosto de
1884. E eu conego Severino José dos Sanctos, escrivão interino, a subscrevi e assignei.
Conego Severino José dos Sanctos
ANEXO-E
Acervo : Arquivo Público do Estado do Maranhão
Fonte de Pesquisa: Bispo Diocesano/ Presidente de Província 1878-1901
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São Luís –MA data: 26/03/1888
Palácio Episcopal do Maranhão
26 de março de 1888
Illustrissimo e Excelentíssimo Senhor
Tenho a honra de passar as mãos de V. Ex.ª a inclusa copia do officio que dirigiu-me
hoje o Reverendo Capellão da Santa Casa de Misericórdia, Francisco Manuel Rufino de
Sant’Anna Freitas, , participando-me que já por duas vezes se tem apresentado no cemiterio sob
a administração da mesma Santa Casa um Senhor George Butler, que se diz Ministro de uma
seita protestante, para nesta funccionar nos enterramentos de pessoas que se diz pertencerem a
essa seita, a fim de que V. Exª., como provedor da Santa Casa da Misericordia, se digne
providenciar como julgar conveniente, em ordem a fazer cessar este abuso, que constitue uma
affronta aos sentimentos religiosos da população desta cidade, visto que o cemiterio à Cargo da
Santa Casa é um cemiterio Catholico, e como tal não podem nelle sepultados cadaveres de
pessoas que tiverem pertencido a seitas hereticas.
Renovo a V. Exª as seguranças da minha perfeita estima e distincta consideração.
Deos Guarde a V. Exª
Illustrissimo e Excelentíssimo Senhor Desembargador José Bento de Araújo Presidente
da Província e provedor da irmandade da santa Casa de Misericórdia
Antonio, Bispo Diocesano
Copia
Capellão da Santa Casa da Misericordia do Maranão, 26 de março de 1888.
Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor. Julgo de meu dever levar ao conhecimento de Vossa
Excelência Reverendíssima a tristissima ocorrencia que se deu no Cemiterio da Santa Casa da
Misericordia no dia 24 do corrente mez, de haver o Senhor Jorge Butler, que se diz Ministro
protestante, acompanhando o cadaver de uma mulher que se julga protestante, e com grande
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ostentação fez os ritos de sua seita, apezar das minhas advertencias, em presença de vários
sequases. Devo ainda ponderar a Vossa Excelência Reverendíssima que é este o segundo facto
que se dá, parecendo que ha proposito da parte do dicto Senhor Butler provocar qualquer
conflcito ou ao menos desmoralisar-me no exercício do Cargo de Capellão da Santa Casa da
Misericórdia. Deos Guarde a V. Exª. Revma. Exmo. e Revmo. Snr. D. Antonio Candido de
Alvarenga Ministro D. Bispo Diocesano. O Capellão Francisco Manoel Rufino de Santa
Freitas. − Está conforme. Cônego Vicente Ferreira Galvão. Secretario.
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