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Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Informatica
Graduacao em Ciencia da Computacao
DO RPG DE MESA A NARRATIVA
INTERATIVA NOS JOGOS DIGITAIS
Raony Mascarenhas Araujo
TRABALHO DE GRADUACAO
Recife
06 de outubro de 2006
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Informatica
Raony Mascarenhas Araujo
DO RPG DE MESA A NARRATIVA INTERATIVA NOS JOGOS
DIGITAIS
Trabalho apresentado ao Programa de Graduacao em
Ciencia da Computacao do Centro de Informatica da Uni-
versidade Federal de Pernambuco como requisito parcial
para obtencao do grau de Bacharel em Ciencia da Com-
putacao.
Orientador: Prof. Geber Lisboa Ramalho
Recife
06 de outubro de 2006
AGRADECIMENTOS
Agradeco a Deus, primeiramente. A minha famılia, por tudo. A todos os meus amigos
que me ensinam e me ajudam nessa caminhada.
Entre eles, os amigos do Centro de Informatica, como o professor Geber por ter
me ensinado a utilizar a sutil arte das caretas na dissolucao das barreiras formais que
impedem as pessoas de serem elas mesmas em frente as outras; Que junto aos professores
Alex e Hermano, me ensinaram que ”ensinar” e mais do que acao, e exemplo. Aos colegas
de graduacao, por terem me ensinado que procrastinar responsabilidades e sempre mais
divertido quando fazemos em grupo.
Aos amigos de todas as horas, agradeco especialmente a Virgınia, cujo nome poderia,
certamente, figurar como co-autora desse trabalho. Aos colegas de RPG que se disponi-
bilizaram a pesquisa, e contribuiram para que tudo isso fosse possıvel.
Mencao especial a Fernando Andrade e Adeline Silva, que seguraram as pontas no
trabalho enquanto eu faltava com as minhas obrigacoes terminando essa monografia.
Agradeco a voce tambem, por ter demonstrado ao menos a intencao de ler esse ma-
terial. Espero que lhe ajude em alguma coisa.
iv
RESUMO
Esse trabalho busca reunir alguns conceitos basicos sobre narrativa e jogos, estabelecendo
uma base de onde discutimos a sua integracao. O objetivo final e fazer da narrativa
um elemento efetivo do jogo, no contexto dos jogos digitais. Para isso, conduzimos
uma pesquisa e sobre os jogos de representacao de papeis, os Role-Playing Games, que,
acreditamos, tem muito a contribuir nesse sentido. Finalmente, compilamos um conjunto
de questoes e ferramentas que poderiam ser utilizados no processo de game design para
desenvolver jogos que buscam levar a integracao com a narrativa um novo patamar.
Palavras-chave: interactive storytelling, games, role-playing games, game design
v
SUMARIO
Capıtulo 1—Introducao 1
Capıtulo 2—Metodologia 3
Capıtulo 3—Narrativa 7
3.1 Ethos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
3.2 Pathos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
3.2.1 Conflito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
3.2.2 Estrutura em tres atos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
3.2.3 Arco narrativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
3.2.4 Tempo dramatico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
3.2.5 Criterios da narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
3.3 Logos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
3.4 Consideracoes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Capıtulo 4—Jogos 13
4.1 Criterios de um bom jogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
4.2 Consideracoes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Capıtulo 5—Narrativas como Jogos 19
5.1 Exemplo 1, The Legend of Zelda: Ocarina of Time . . . . . . . . . . . . 19
5.2 Exemplo 2, Tetris . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
5.3 Exemplo 3, Dragon’s Lair . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
5.4 Exemplo 4, Indiana Jones and the Fate of Atlantis . . . . . . . . . . . . . 21
5.5 Exemplo 4, os RPGs digitais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
5.6 Exemplo 5, The Sims . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
5.7 Exemplo 6, Interactive Storytelling . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
5.8 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
vi
SUMARIO vii
Capıtulo 6—Licoes do RPG de mesa 32
6.1 Diferencas entre o RPG digital e o RPG de mesa . . . . . . . . . . . . . 36
6.2 Diferencas narrativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
6.2.1 A personagem como mais uma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
6.2.2 Mundo independente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
6.2.3 Mundo compartilhado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
6.2.4 A historia e sobre a personagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
6.3 Diferencas em relacao a personagem do jogador . . . . . . . . . . . . . . 40
6.3.1 Historico aberto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
6.3.2 Personagem conhecida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
6.3.3 Identificacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
6.3.4 Destino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
6.4 Diferencas quanto a interacao entre narrador e jogador . . . . . . . . . . 43
6.4.1 Percepcao da personagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
6.4.2 Acao da personagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
6.5 Resumindo as diferencas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
6.6 Ferramentas do narrador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
6.6.1 Discricao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
6.6.2 Meta-narracao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
6.6.3 Incentivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
6.6.4 Ganchos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
6.6.4.1 Quanto a natureza do gancho . . . . . . . . . . . . . . . 55
6.6.4.2 Quanto a utilizacao do gancho . . . . . . . . . . . . . . . 56
6.7 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
Capıtulo 7—Conclusao 60
LISTA DE FIGURAS
2.1 Grounded Theory . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
3.1 Curva dramatica tradicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
4.1 Contagem de territorio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
4.2 Capturando um grupo de tres pedras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
4.3 Ko - a jogada 2 caracteriza um movimento ilegal pela regra do ko . . . . 15
4.4 Padrao de uma partida de Go . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
4.5 Tsume go e quando se decide a ”vida” ou ”morte” de um grupo - acima,
se pretas brancas jogam em A capturam o grupo preto, em qualquer outro
ponto pretas vivem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
4.6 Fuseki - estrategias de abertura de jogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
4.7 Curvas de aprendizado em jogos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
5.1 Curva de aprendizado em Dragon’s Lair - a cada game over o jogador
descobre que tomou a decisao errada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
5.2 Exemplos de estrutura da narrativa em jogos simples - Dragon’s Lair - e
com branching - Fate of Atlantis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
5.3 Exemplos de estrutura nao-linear simples - As cenas de side quests podem
ser acessadas fora de ordem pela narrativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
viii
LISTA DE TABELAS
6.1 Diferencas quanto a narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
6.2 Diferencas quanto a personagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
6.3 Diferencas quanto a forma de interacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
ix
CAPITULO 1
INTRODUCAO
A industria de jogos vem investindo cada vez mais em jogos de maior apelo estetico da
narrativa, contratando escritores profissionais para desenvolver o enredo de seus jogos,
que aliados ao produto de artistas das diversas areas (ilustracao, musica, etc.) vem
trazer aos seus jogadores uma experiencia mais rica e bonita [She04]. Ao mesmo tempo,
ha um crescente interesse em como fazer com que essa experiencia narrativa seja mais
interativa para o jogador, ou seja, como dar mais possibilidades para o jogador altera-la,
aumentando sua sensacao de liberdade [BM05]. O principal problema que isso envolve e
que a maior parte da literatura encontrada sobre o assunto tenta conciliar e: como dar
maior grau de controle para o jogador sem perder de vista os elementos esteticos do que
se considera uma boa narrativa?
Porem so dar controle para o jogador nao caracteriza um jogo; por isso, esse estudo
busca enfocar o problema sob outro ponto de vista: como incorporar a narrativa como
um elemento efetivo do gameplay 1? No contexto dos jogos digitais. Introduzimos, nesse
trabalho e sem intencao que seja usado fora dele, o conceito de jogo narrativo, que e
um jogo onde a apreciacao de sua narrativa pelo jogador e intencional. Entre os jogos
narrativos uma das principais categorias e a de Role-Playing Games (doravante RPG), e
tratamos, nesse trabalho, basicamente sobre como o nosso problema se comporta nessa
categoria.
O campo de pesquisa para as narrativas interativas tem se mostrado bastante fertil
ultimamente, com um sem numero de publicacoes relevantes na area - para uma excelente
compilacao dos principais autores veja [WFH04]; para uma analise geral de todos eles,
veja [Ran05] - que classificam seus experimentos de jogos. Porem, dentre a literatura
revisada, poucos deles se dao ao trabalho de definir o conceito de jogo e muito menos ainda
- nenhum, na verdade - se preocupa em alcancar a qualidade em termos de gameplay ; pelo
menos nao da mesma forma com que procura alcancar os criterios de qualidade narrativa.
Essa carencia do lado ludico e que motiva o presente estudo. Do nosso ponto de vista, um
jogo narrativo e aquele em que a narrativa - alem de preservar os criterios esteticos que
lhe sao proprios -, se comporta como um jogo efetivamente; a ideia de narrativa como
1Jogabilidade - conceito abrangente que inclui desde as formas de interacao com o jogo ate a ex-periencia do jogador como um todo enquanto jogando.
1
INTRODUCAO 2
jogo e central a esse trabalho e voltaremos a ela durante todo o nosso desenvolvimento.
Para isso propomos uma abordagem inovadora: primeiro analisaremos a literatura
para a criacao de um arcabouco - validando a sua utilidade atraves da pratica - sobre o
qual fundamentaremos nossa analise e nosso problema; em seguida, utilizaremos metodos
de pesquisa qualitativa para tentar mostrar como os RPGs de mesa 2 atendem aos criterios
do arcabouco teorico formulado; e seguiremos com o estudo comparativo entre os atuais
RPGs digitais 3 e de mesa, buscando elementos desses que faltam aqueles e que ajudariam
os primeiros a satisfazerem melhor o problema.
A metodologia e apresentada e discutida em Capıtulo 2. O resto do trabalho e dividido
em duas partes: na primeira, temos a apresentacao dos conceitos referentes a drama, que
e feita em Capıtulo 3 e referentes a jogos em Capıtulo 4, e a validacao desses conceitos
em sua utilizacao para avaliacao de jogos em Capıtulo 5; na segunda, apresentamos
os resultados da pesquisa qualitativa sobre RPG de mesa em Capıtulo 6. Finalmente,
seguimos com a conclusao em Capıtulo 7 e referencias bibliograficas.
2Chamados assim porque sao tradicionalmente jogados ao redor de uma mesa, com papel e lapis.3Em oposicao aos de mesa, sao aqueles jogados atraves de alguma mıdia ou meio digital, como o
computador ou o console de videogame.
CAPITULO 2
METODOLOGIA
Para alcancarmos o nosso objetivo - que e analisar como melhor a experiencia interativa
do jogador com a narrativa nos jogos digitais a partir do RPG de mesa -, nos precisamos
primeiro reconhecer os criterios com os quais avaliaremos a qualidade dessa experiencia,
em seguida, estabeleceremos um baseline que consiste na situacao atual dos jogos digitais,
para enfim validarmos a experiencia obtida atraves do RPG de mesa, comparando-a com o
baseline. De posse disso, usaremos os mesmos criterios para analisar as caracterısticas do
RPG de mesa, de forma que possamos extrair conceitos uteis que possam ser aproveitados
nos jogos digitais.
A analise da narrativa como jogo precisa levar em consideracao dois tipos de criterios:
os narrativos e os ludicos. Nesse sentido, buscamos levantar uma bibliografia basica,
tanto na area de narrativa, quanto na area de jogos, que permitiu extrairmos as definicoes
utilizadas no Capıtulo 3 e no Capıtulo 4. A utilidade dos criterios foram comprovadas
atraves da analise de jogos ja existentes e experimentos realizados na area de interactive
storytelling, onde tornaram possıvel o reconhecimento dos pontos fortes e fracos de cada
exemplo utilizado.
Pela propria estrutura sutil do RPG de mesa, nao foi possıvel uma abordagem direta
como foi feita com os jogos digitais, onde o jogo e diretamente acessado atraves da
experiencia - isto e, existe o artefato com todos os seus aspectos narrativos e ludicos
a disposicao para analise, assim como uma obra literaria, por exemplo. Como veremos
no Capıtulo 6, o que chamamos de RPG de mesa e na verdade um arcabouco, sobre o
qual cada grupo de jogadores monta o seu proprio jogo que comeca e acaba dentro da
duracao de uma partida. Essa natureza extremamente temporal, sugere a utilizacao de
ferramentas subjetivas para a captura do contexto em que o jogo ocorre, esse, de carater
mais atemporal e relacionado a cultura dos participantes, e que pode ser utilizado em
nossa analise como artefato representativo do jogo em si.
Nesse sentido, iniciamos uma pesquisa nos parametros apresentados por Flick [Fli04],
onde buscamos construir cada caso de estudo independentemente num processo simi-
lar a hermeneutica objetiva com a diferenca de que nao nos aprofundamos na questao
linguıstica da interacao como Oevermann sugere [Oevermann et alii, 1979 apud Flick,
2004]. Essa metodologia foi escolhida porque foi desenvolvida para estruturar a ativi-
3
METODOLOGIA 4
dade, ao mesmo tempo em que busca identificar e comparar o contexto objetivo da
atividade com o contexto social do indivıduo. Isso e feito a partir de uma analise gradual
de casos de estudos, de onde a generalizacao e extraıda. Assim, o metodo possui dois pon-
tos positivos para os nossos objetivos: primeiro, ele nao se prende ao contexto subjetivo
individual do jogador, mas ao seu papel de jogador dentro da mini-sociedade do grupo
de RPG; segundo, e gradual e sequencial, de forma a casar perfeitamente com a coleta
das partidas de RPG que nao podem ser produzidas, mas sim colhidas naturalmente pela
disponibilidade dos jogadores.
Na estrutura geral conduzida nessa etapa da pesquisa, utilizamos o modelo de grounded
theory tambem apresentado por Flick - Figura 2.1.
Uma grounded theory, em oposicao a teoria tradicional como enunciado formal sobre a
realidade que e validada atraves de experimentos, e a construcao gradual de uma visao de
mundo, que e inerentemente empırica e relativa aos casos estudados. Essa visao e refor-
mulada continuamente a medida que a propria perspectiva dos pesquisadores amadurece.
Figura 2.1 Grounded Theory
De modo que a teoria e construıda atraves da interpretacao de cada caso analisado.
Nossas suposicoes preliminares foram: que o RPG de mesa atinge, e isso em um nıvel
subjetivo, os criterios apresentados de narrativa e jogos, e que se utiliza de certos mecan-
ismos, como vistos em Capıtulo 6, que sao proprios do contexto da interacao.
A coleta foi realizada durante o perıodo de Julho a Setembro de 2006, e consiste em
seis partidas de RPG - tres delas foram gravadas e tres outras foram analisadas baseando-
se nas notas de campo -, onde procuramos aplicar o metodo de hermeneutica na analise
para a construcao dos casos de estudo; foram realizadas um total de oito entrevistas com
jogadores, que tiveram carater validador das hipoteses levantadas pela analise, como o
metodo sugere.
A amostragem para tais coletas seguiu o criterio de conveniencia para as partidas,
METODOLOGIA 5
como ja o dissemos, ou seja, coletamos as que nos foram possıveis, dado o carater natural
da atividade de jogo, onde os jogadores se reuniram para jogar de acordo com suas
disponibilidades e disposicoes. Para as entrevistas, buscamos conciliar casos tıpicos com
casos extremos - narradores com mais de uma dezena de anos de experiencia com o
jogo, por exemplo - e, principalmente, apoiados nas hipoteses no sentido de falsea-las ou
valida-las.
Em relacao aos criterios de legitimidade da pesquisa, temos varios pontos a melhorar:
Enquanto Fine [Fin83] defende que a subcultura dos jogadores de RPG, assim como
outras, so pode ser avaliada satisfatoriamente por observacao participativa - isto e, o
pesquisador tambem como jogador - e, de fato, a experiencia do autor com o jogo catal-
isou o processo de analise de forma tal a viabilizar esse trabalho dentro dos recursos
disponıveis, as garantias sao poucas de que os resultados nao estejam fortemente ten-
denciosos para a perspectiva individual do autor. Isso por que, nem houve a presenca
de um grupo de pesquisa, como sugere a metodologia, para suavizar as interpretacoes
tendenciosas, nem de casos extremos desviantes foram considerados na amostragem, por
falta de recursos - que sao os casos que falseiam as hipoteses e devem ser incorporados
para o entendimento das causas dessa excecao.
Em relacao a confiabilidade do processo, por falta de experiencia por parte do autor
e tambem por falta de recursos, o material coletado e de analise nao estao estruturados
de forma a facilitar uma auditoria, por exemplo. Das tres sessoes gravadas - de duracao
media de quatro horas cada -, apenas uma foi transcrita, as outras foram analisadas em
seu formato de audio, o que dificulta a legitimacao da analise. O processo de codificacao
e levantamento de categorias foi feito de forma quase transparente e esta espalhado pelas
notas de campo sem seguir uma metodologia especıfica. Finalmente, os estudos de caso
nao foram compilados a ponto de poderem ser reutilizados por outros pesquisadores.
Quanto a validacao da teoria e a crise de representacao [DL00], que questiona a vali-
dade cientıfica dos metodos qualitativos, concordamos com Flick que as ”teorias enquanto
versoes do mundo, tornam-se assim, preliminares e relativas” e que sao reformuladas de
acordo com sua utilidade no mundo que reflexiona. No nosso caso especıfico, as teorias
sobre como o RPG atende aos criterios narrativos devem ser validadas nao como ”ver-
dades”, mas como uteis na criacao de jogos digitais que tambem atendam aos mesmos
criterios. Sendo assim, reconhecemos duas formas, igualmente necessarias, de validacao:
a primeira e a proposta por Denzin de triangulacao - utilizar diferentes metodos de cole-
tada, codificacao, analise, amostragem e tambem diferentes pesquisadores para verificar a
consistencia da teoria nessas diferentes elaboracoes; a segunda e a criacao de experiencias
- na forma de jogos digitais - em cima da teoria, e seu subsequente teste com usuarios
dentro dos criterios de uma pesquisa de usabilidade voltada para jogos.
METODOLOGIA 6
Apesar de tudo, consideramos a pesquisa, dado as limitacoes, bem sucedida em seu
objetivo de fomentar a discussao dentro do processo de game design, em relacao a aspectos
talvez desconsiderados; porem presentes no RPG de mesa. De forma que a disponibi-
lizamos a avaliacao da comunidade nesse momento.
CAPITULO 3
NARRATIVA
Num primeiro momento, vamos esclarecer alguns conceitos que utilizaremos no decorrer
desse trabalho relacionados a narrativa; vamos tambem levantar os criterios do que e
uma ”boa”narrativa de forma simplificada, para que possamos mensurar a completude
da primeira parte do nosso objetivo que e a narrativa resultante deve ser esteticamente
agradavel.
Quando falamos em narrativa, utilizamos como pressupostos a narrativa aristotelica
(a utilizacao da palavra narrativa, nesse trabalho, sempre se referira a uma narrativa
dramatica), ou seja, constituinte dos elementos basicos reconhecidos pelo filosofo em
seu trabalho[Ari66], e basilar para toda a ciencia da analise da narrativa que veio a
seguir[Com03]. Pelo fato de que o estudo da narrativa em jogos ser muito recente, e nat-
ural que utilizemos conceitos basicos e tradicionais por motivos de simplicidade. Laurel
[Lau91] ja usou a mesma base no estudo de jogos como mıdia para a narrativa intera-
tiva, assim como outros autores como Murray [Mur03] utilizaram de narratologia para
os mesmos fins. Nesse trabalho, estenderemos a analise dramatica para uma perspectiva
cinematografica, linguagem que se assemelha a usada em jogos por tratar especificamente
de imagens em movimento, assim como ja o fez Manovich [Man01].
3.1 ETHOS
De acordo com o filosofo, o drama e o veıculo de uma mensagem. Chamaremos essa
mensagem de ethos narrativo, e e basicamente sobre o que o drama trata - da epopeia
A Odisseia, e possıvel extrairmos um drama cujo ethos seja o homem como joguete dos
deuses; a impossibilidade de fugir ao seu destino e o de Edipo rei.
No drama, por meio da acao (o mito, a historia em si) que envolve personagens em
conflito, e que o autor comunica sua mensagem. Assim, as personagens e conflitos sao
ferramentas para comunicar o ethos e devem ser construıdas para esse proposito. Se
Laio, pai de Edipo, nao acreditasse que pudesse fugir ao seu destino ou nao houvesse
uma maldicao em sua famılia que determinasse um destino infeliz para si, faltariam
elementos para a apresentacao da mensagem. Foi preciso que a personagem tivesse o
carater necessario - desacreditar da fatalidade do destino - e que o conflito provocasse seu
7
3.2 PATHOS 8
carater da maneira certa - a personagem e apresentada a um destino infeliz - para que
no desenrolar do conflito a personagem caracterizasse o ethos - a tentativa de fugir desse
destino que o leva justamente a concretizar-se.
3.2 PATHOS
Pathos e o mito em acao em sua maior finalidade: provocar emocoes. Considera-se que
bons pathos, desde o de um drama grego [Ari66] ao de um roteiro de TV [Com99],
compartilham caracterısticas que indicam uma estrutura comum. Reconhecemos essa
estrutura como sendo os criterios para uma ”boa” narrativa, enquanto nao limitamos de
forma alguma a arte da narrativa a esses criterios. Pelo contrario, como toda boa arte e
preciso dominar a tecnica para entao inovar e criar arte. Mas, para o nosso caso, esses
criterios sao suficientes, pois estamos apenas comecando a dominar (ou reinventar para
um novo tipo de mıdia) a tecnica da narrativa em jogos digitais.
3.2.1 Conflito
Conflito e muito do que faz de uma narrativa, um drama. Afinal, drama vem do grego
drao e significa acao. Ora, so age aquele se sente compelido para tal. O conflito nada
mais e do que a situacao motivadora da acao; e o que desestabiliza uma determinada
situacao em equilıbrio (que pode ser dinamico ou nao), motivando a busca por uma nova
situacao de equilıbrio dada as novas variaveis inseridas por ele.
3.2.2 Estrutura em tres atos
A estrutura mais simples do drama e a que podemos dividir em tres partes, que assim
chamamos:
� Apresentacao do conflito;
� Desenvolvimento do conflito;
� Resolucao do conflito.
Essa estrutura simples pode ser encontrada nas mais diversas obras dramaticas dos
mais diversos povos e culturas. Em sua simplicidade, ajuda-nos a entender que, inde-
pendente do que se trate na obra, as tres partes devem existir; nao e interessante ter
um conflito que ja se apresente pelo desenvolvimento e se resolva, nem que se apresente
e de repente se resolva e, finalmente, tambem nao e interessante ter um conflito que se
apresente, se desenvolva, mas fique em aberto sem solucao.
3.2 PATHOS 9
3.2.3 Arco narrativo
Chamaremos de arco narrativo uma determinada parcela de historia em que um conflito
apresenta-se, desenvolve-se e resolve-se. A narrativa como um todo que contem o conflito
principal, e um arco narrativo que, inclusive, pode conter outros arcos menores que, por
sua vez, contem seus proprios conflitos. No decorrer desse trabalho, tambem usaremos a
palavra plot, que pode tanto se referir a um arco narrativo, quanto a uma parte desse que
nao contenha necessariamente um conflito (nesse sentido, a primeira parte de um arco
narrativo, a da apresentacao do conflito, e um plot, por exemplo).
3.2.4 Tempo dramatico
Temos da experiencia cinematografica[Com99], que tempo dramatico e uma sensacao de
tempo experimentada pelo espectador no decorrer da acao dramatica. Essa sensacao tem
muito mais a ver com a intensidade e qualidade da acao do que com a quantidade de
tempo real propriamente dita. Assim, no cinema, uma cena cujo dialogo e/ou acao das
personagens intensifica o conflito e percebida como uma cena mais ”rapida”do que e uma
que parece acontecer ”morosamente” sem grande contribuicao para o conflito.
Esse e um conceito complexo que tentaremos, dentro de nossas limitacoes de en-
tendimento, ilustrar a partir do conceito de curva dramatica. Curva dramatica e uma
funcao de tempo em acao dramatica, ou seja, e a quantidade e intensidade - em termos
de contribuicao para o desenvolvimento do conflito - das acoes, dos plots, contidos em
determinada parcela de tempo.
Figura 3.1 Curva dramatica tradicional
Podemos associar uma curva a um arco e entao numa historia com diversos conflitos
(i.e., diversos arcos) a curva final do arco narrativo principal e feita a partir da composicao
3.2 PATHOS 10
das curvas de suas partes.
E natural relacionarmos a estrutura de tres atos com tempo dramatico: num primeiro
momento - apresentacao do conflito - a historia parece decorrer lentamente; no desenvolvi-
mento o tempo se acelera ate o clımax, quando entao volta a demorar-se no momento
final de resolucao. Isso fica bastante claro quando se olha para a curva dramatica tradi-
cional, Figura 3.1, e vemos que o tempo dramatico se relaciona com a inclinacao na
curva. Ou seja, a velocidade com que a quantidade e intensidade de acao dramatica
variam no decorrer do drama.
Entender o tempo dramatico e importante porque podemos falar de um tempo ”ideal”,
em que a acao dramatica deveria suceder-se. Por exemplo, se no desenvolvimento do
conflito temos uma crescente no tempo dramatico e de repente, por uma falha em atender
certos criterios (quais sao e como se dao veremos a seguir), o tempo dramatico desacelera
bruscamente, temos o chamado anticlımax. O tempo dramatico se relaciona diretamente
com a expectativa do espectador, que espera o aumento do volume de acao ate o momento
do clımax. O anticlımax nao proposital, portanto, provavelmente sera uma experiencia
negativa para o espectador, ja que e justamente a falha em manter a continuidade do
tempo dramatico inserindo um momento que parece deslocado em relacao ao resto da
narrativa 1.
3.2.5 Criterios da narrativa
Considerando a estrutura supracitada, podemos avaliar a sua ”boa” formacao a partir
de quatro criterios principais: unidade, coesao, verossimilhanca e necessidade. Os dois
primeiros sao criterios estruturais, os dois ultimos sao da qualidade do mito, ou das partes
deste. Embora se entrelacem, os criterios podem ser considerados separadamente em uma
analise da narrativa.
Unidade e o princıpio de que uma narrativa deve ser o mais enxuta possıvel. Isso sig-
nifica que caso a historia seja contada faltando qualquer uma das suas partes ela perdera
o sentido. De forma geral, o que promove a unidade da narrativa e a garantia de que os
arcos narrativos que a compoem contribuem estruturalmente para o conflito principal,
ou seja, a ausencia de um deles sequer faria, por analogia, que o edifıcio da narrativa
desabasse. Falhar em atender esse criterio pode fazer com que o tempo dramatico se
estenda mais que o necessario, com partes que nao contribuem para a historia.
Exemplo. Em uma tıpica historia de heroi e princesa, temos: a princesa e raptada
pelo vilao, o heroi vai atras, vence o vilao, salva a princesa e casa-se com ela. Se qualquer
1Esse recurso e amplamente usado propositalmente na comedia para causar a impressao do inusitado,do desengoncado.
3.2 PATHOS 11
parte da historia for retirada, ela perde o sentido. Se incluirmos mais dois elementos: o
heroi recebe, de um eremita, o treinamento que o ajudara a derrotar o vilao; o heroi salva
sua vila natal de um monstro que a aterroriza. Desses dois novos elementos somente o
primeiro contribui para o arco narrativo principal - salvar a princesa - o outro poderia
ser descartado sem maiores problemas para a narrativa.
Coesao e o princıpio de que nada pode estar faltando numa narrativa. Isso quer
dizer que existe um caminho natural entre um ponto e outro da historia, da forma como
e percebida pelo espectador, ao qual nenhuma parte parece faltar. Se unidade tem a ver
com nao ter excesso, coesao tem a ver com ter o mınimo necessario para que a historia
faca sentido. Falhar em atender esse criterio pode causar mudancas abruptas no tempo
dramatico e, portanto, possıveis anticlımax involuntarios.
Exemplo. Continuando com a nossa historia, se arranjarmos dessa forma: a princesa
e raptada pelo vilao, o heroi vai atras, recebe o treinamento de um eremita, vence o vilao,
salva a princesa e casa-se com ela; temos que a existe um ”buraco” entre o heroi decidir ir
atras do vilao e ser treinado pelo eremita, por que ele buscou esse treinamento? Sempre
que nos perguntamos porque algo aconteceu numa historia e nao descobrimos a resposta, e
uma indicacao de falta de coesao. Se inserirmos o elemento de que o heroi, na perseguicao
ao vilao, foi derrotado pelos capangas deste, mas conseguiu fugir; conseguimos restaurar
a coesao da historia, pois agora entendemos o motivo dele ter buscado treinamento.
Verossimilhanca e o princıpio de que os acontecimentos de uma narrativa devam
ser verossımeis; tanto em relacao ao carater das personagens, quanto a realidade propria
da historia. Quando nao ha verossimilhanca tanto a coesao, quanto a unidade poderao
ser comprometidas. Se a falha e porque houve uma mudanca inverossımil de carater ou
de mundo, entao a coesao e comprometida, se e porque nao ha mudanca quando o mais
verossımil seria haver, entao a unidade e que e sacrificada.
Exemplo. Se, na nossa historia de exemplo, o heroi que e pura bondade, decidir usar
algum meio escuso para ter vantagem contra o vilao, entao reconhecemos um exemplo de
falta de verossimilhanca.
Finalmente, necessidade e o princıpio de que os acontecimentos de uma narrativa
devam ser necessarios ao carater da personagem diante da situacao. A personagem age
nao so de acordo com o seu carater (verossimilhanca) como por necessidade. De forma
que o protagonista do drama, por exemplo, muitas vezes se ve forcado a tomar decisoes
aparentemente contrarias ao seu carater, mas que na verdade nada mais sao do que
a externalizacao de um conflito interior essencial ao drama: o de que o homem se ve
dividido. Sendo assim, o criterio de necessidade e crucial ao conflito, sob o risco de
em falhando a atender esse criterio, ele seja desnecessario e comprometa a unidade da
narrativa.
3.3 LOGOS 12
Exemplo. Se, na mesma historia, o vilao ameaca a vida da princesa deixando ao heroi
uma unica escolha: praticar um ato de vilania para impedir o mal maior, sujando sua
moral por estimo de tudo o que lhe e mais sagrdo - a princesa. Assim caracterizamos a
necessidade, o heroi age por necessidade do seu carater: ele preza a princesa acima de
tudo. Assim caracterizamos o conflito, o cerne de drama: ate que ponto o heroi deve ir
por aquilo que ele mais estima?
3.3 LOGOS
Falamos que todo drama possui uma mensagem e a transmite dentro de uma estrutura e
criterios que lhe sao proprios; agora, veremos o meio em que a mensagem e transmitida.
Sem nos aprofundar na questao de que a obra nao independe do meio que e apresentada,
e natural considerarmos que cada meio tem suas proprias caracterısticas originais de
comunicar e sensibilizar os comunicantes. Enquanto que no decorrer desse capıtulo,
procuramos apresentar os caracteres do drama da forma mais generica possıveis, essa visao
e fortemente baseada na linguagem cinematografica. Por isso, e necessario identificarmos
as caracterısticas oriundas dos jogos digitais como um meio; basicamente como responder
a seguinte pergunta: como os jogos digitais narram historias? E a nossa resposta a essa
pergunta e o tema dos proximos capıtulos.
3.4 CONSIDERACOES
O que vimos nesse capıtulo e uma perspectiva na qual podemos encarar as narrativas
de uma forma geral. Isto e, como tendo uma estrutura liminar que idealmente atende a
certos criterios. Que enxergar a obra em tres ou cinco atos, assim como enxergar o copo
como metade vazio ou metade cheio, nao altera a natureza dessa obra, mas sim a forma
como a lemos. Essa leitura e o que nos permite teorizar, comunicar e eventualmente
reproduzir padroes que apreciamos a partir da capacidade natural ao ser humano de
abstrair o contexto. E e isso, precisamente, o que procuramos nesse trabalho ao procurar
relacionar narrativas em diversas mıdias nas quais, jogos digitais estao inseridos.
CAPITULO 4
JOGOS
Assim como foi necessario estabelecer uma perspectiva para a analise da narrativa,
tambem sera necessario o mesmo para jogos, se quisermos considerar jogos narrativos. O
estudo de jogos, de forma geral, passou por uma fase de descaso e preconceito, mas nos
ultimos anos tem se expandido [Aar04], seja na area da ciencia social, da psicologia, da
pedagogia ou do design de jogos. Particularmente, nos inserimos nessa ultima categoria
de estudo, que busca entender o que e e como funcionam os jogos, para que possamos
projetar novos jogos.
Jesper Jull[Jul03] faz uma analise das teorias sobre jogos da metade do seculo XX
- como, por exemplo, as de Huizinga [Hui38] - e as novas teorias sobre jogos digitais, e
propoem a seguinte definicao para jogo:
� Possuem regras;
� Possuem resultado variavel e quantificado;
� Possuem valores associados a esses resultados - positivos ou negativos;
� Envolvem o esforco do jogador;
� O jogador esta emocionalmente vinculado ao resultado do jogo;
� As consequencias do jogo sao negociaveis.
Porem essa definicao nao ajuda a levandar criterios de um ”bom” jogo, pois nao
leva em consideracao o principal fator dos jogos: diversao. Raph Koster, em seu livro
Theory of Fun, nos apresenta uma definicao bastante simples e interessante de jogo: e
tudo aquilo o que, interagindo, nos diverte. Apos a qual ele discorre sobre o significado
de fun (diversao), que comumente possui uma acepcao tao ampla que mais obscurece do
que esclarece. Nesse sentido, utilizando trabalhos derivados da psicologia, ele caracteriza
diversos tipos de ”prazeres” que estao envolvidos na palavra fun e finalmente define o
significado que esta tem para o seu trabalho: fun e o prazer advindo do aprendizado
atraves da pratica.
13
JOGOS 14
Utilizaremos essa mesma definicao em nosso trabalho: jogo e tudo aquilo que nos
diverte porque nos da algo para aprendermos praticando. Outros prazeres certamente
advem do jogo, como fiero - o prazer de vencer -, delight - o prazer de reconhecer algo -
e muitos outros, mas o que caracteriza algo como um jogo e a presenca do fun - o prazer
de aprender algo praticando.
Para ilustrar essa definicao vamos usar um exemplo concreto:
Go e um jogo de tabuleiro que existe ja ha aproximadamente 4000 mil anos. Nele
jogam duas pessoas, uma com as pedras brancas, outro com as pedras pretas. O obje-
tivo e vencer o outro jogador cercando a maior parte do tabuleiro com as suas pedras
(Figura 4.1). Cada jogador na sua vez pode tanto colocar uma pedra, quanto passar a
vez. Uma vez colocada, a pedra nao sai do lugar, a nao ser que seja capturada, que e
quando se encontra completamente cercada por pedras do adversario (Figura 4.2). Qual-
quer ponto do tabuleiro e valido para se colocar uma pedra, a nao ser em duas situacoes:
quando a pedra ja estaria capturada se fosse colocada ou caso o padrao formado pelas
pedras do tabuleiro repetira o padrao formado na penultima jogada (Figura 4.3). Quando
os dois jogadores passam a vez consecutivamente o jogo acaba e os pontos de territorio (a
porcao de tabuleiro de cada jogador) sao contados. E isso e tudo o que se precisa saber
para comecar a jogar.
Figura 4.1 Contagem de territorio
Figura 4.2 Capturando um grupo de tres pedras
Vamos ver agora como o jogador interage com o Go. Primeiro, ele e apresentado
a um universo de possibilidades, que sao todas as configuracoes possıveis de pedras no
JOGOS 15
Figura 4.3 Ko - a jogada 2 caracteriza um movimento ilegal pela regra do ko
tabuleiro. Cada configuracao dessas, chamamos de padrao de jogo (Figura 4.4); e o que
o jogador percebe e usa para tomar a decisao do que fazer em seguida. As regras do jogo
definem qual o proximo padrao resultante da acao do jogador (passar ou colocar uma
nova pedra) e com isso, cria padroes de interacao. Os padroes de interacao resultam
da combinacao das regras, dos padroes de jogo e das acoes do jogador, e, por isso mesmo,
extrapolam - pela natureza exponencial da combinatoria - a relativa simplicidade que
possam ter cada um dos componentes (Figura 4.5).
Figura 4.4 Padrao de uma partida de Go
Porem, no Go temos um objetivo: vencer o adversario conquistando mais territorio
que ele. Isso nos leva a um criterio para julgar os padroes de jogo em padroes bem-
sucedidos ou mal-sucedidos. Por consequencia, surgem as estrategias, que nada mais
sao do que um arcabouco de decisoes que mais provavelmente levarao os padroes do jogo a
padroes bem-sucedidos baseadas no entendimento dos padroes de interacao (Figura 4.6).
A forma pela qual o jogo denota sucesso ou falha e chamada de mecanismo de feedback,
e, no caso do Go, a forma mais simples desse mecanismo e a contagem de territorio.
Nisso consiste o aprendizado: em reconhecer a forma de interacao (passar a vez,
JOGOS 16
Figura 4.5 Tsume go e quando se decide a ”vida” ou ”morte” de um grupo - acima, se pretasbrancas jogam em A capturam o grupo preto, em qualquer outro ponto pretas vivem
Figura 4.6 Fuseki - estrategias de abertura de jogo
4.1 CRITERIOS DE UM BOM JOGO 17
colocar pedras); os padroes de jogo bem-sucedidos (territorio, vida ou morte, etc.) e
a forma de produzi-los atraves do domınio dos padroes de interacao (captura, vida ou
morte, etc.). E esse aprendizado que faz com que um jogador se divirta com o jogo mesmo
que perca a partida, o que nos leva a considerar a seguinte questao: o que faz de um jogo
um bom jogo?
4.1 CRITERIOS DE UM BOM JOGO
Koster usa o conceito de curva de aprendizado para analisar a qualidade de um jogo.
Segundo essa perspectiva, um bom jogo e aquele em que o aprendizado e suave e contınuo
(Figura 4.7). Todo jogo so e divertido enquanto o jogador sente que esta progredindo
- isto e, que esta aprendendo a dominar os padroes de interacao - e percebe que ainda
ha mais para aprender. Se o jogo falha em prover essa sensacao de progresso, o jogador
se frustra com a dificuldade do jogo. Se o jogador domina o jogo e nao percebe mais
nenhuma novidade, se entedia e para de jogar - jogo da velha so e divertido enquanto
todos os jogos nao dao em empate.
Figura 4.7 Curvas de aprendizado em jogos
Nesse sentido, podemos dizer que um jogo e tao bom quanto mais conseguir prolongar
a diversao. E sendo assim, e uma consideracao completamente pessoal, os ajustes dos
criterios, assim como na narrativa, variam de pessoa para pessoa e so podemos considerar
um jogo bom em face de um grupo de pessoas, um povo, uma cultura, uma epoca. Jogos
classicos sao aqueles que provam sua prolonga capacidade de divertir em face da historia;
Go e Xadrez sao jogos de tabuleiro classicos, assim como jogo da velha e um otimo classico
infantil.
4.2 CONSIDERACOES 18
4.2 CONSIDERACOES
Se quisermos considerar a narrativa como parte efetiva do gameplay, devemos utilizar
os mesmo criterios dos jogos na sua analise. Se o jogador vai interagir com a narrativa
como um jogo, entao precisamos nos preocupar com os padroes de jogo: quais sao? Sao
facilmente reconhecidos? Seria a propria narrativa em si? E os mecanismos de feedback,
O jogador e capaz de perceber quando a narrativa e bem-sucedida ou mal-sucedida? E,
o mais importante, os padroes de interacao permitem uma curva de aprendizado suave e
longa o suficiente para que ele goste de jogar com a narrativa? O que queremos dizer com
jogar com a narrativa? No proximo capıtulo veremos como um jogo conta uma historia.
CAPITULO 5
NARRATIVAS COMO JOGOS
Nesse capıtulo veremos nao so a forma com que jogos contam historias (ou seja, o logos),
mas como eles contam essas historias em vista dos criterios de narrativa e de jogos.
Faremos uma analise de diversos casos, exemplo a exemplo, para entendermos exatamente
quais problemas estamos lidando.
5.1 EXEMPLO 1, THE LEGEND OF ZELDA: OCARINA OF TIME
O quinto jogo da serie Zelda, desenvolvido pela Nintendo e lancado em 1998 para o
console Nintendo 64, vendeu cerca de 8.6 milhoes de copias (5 milhoes apenas nos cinco
primeiros meses) [Wik], sendo aclamado como um dos melhores jogos de video-game ja
criados e obtendo classificacao maxima nos principais crıticos da area [Fam]. O jogo
traz a conhecida historia de Link, um garoto que e chamado ao seu grandioso destino de
heroi. No caminho, ele apazigua problemas de diversas nacoes, viaja no tempo e enfrenta
desafios como crianca e como jovem. Finalmente, ele domina as forcas necessarias para
lutar contra o terrıvel vilao da historia, Ganondorf, que esta de posse de um inestimavel
artefato magico, e salvar a princesa Zelda de um destino infeliz.
Naturalmente, jogos contam historias. O mais comumente, melodramas, que sao ”a
dramatic form that focuses on action, clear plotlines, characters who personify good and
evil, plot twists, and morally unambiguous resolutions” [She04]. E certamente, Ocarina
of Time conta uma melodrama a partir do seu arco narrativo principal (que no caso de
jogos digitais chamaremos, nesse trabalho, de storyline).
Quando a narrativa fala de um ambiente de contos de fadas, e, precisamente, o que
vemos na Floresta Kokiri, o lar de nosso heroi e onde a historia comeca. Um lugar
povoado de duendes de orelhas pontudas auxiliados pelas suas fadas-guia. Link, o unico
ainda a nao possuir uma fada-guia, e chamado pela Grande Arvore, que lhe revela que
fora amaldicoada e pede sua ajuda. Ele entra na arvore, derrota a causa do mal, mas
mesmo assim nao consegue salvar a arvore. Antes de morrer, a arvore entrega uma pedra
magica ao nosso heroi e pede para que visite a princesa Zelda no Castelo de Hyrule. Esse
e o inıcio de toda a historia.
Em Rules of Play, Zimmerman simplifica notoriamente a questao da narrativa em
19
5.2 EXEMPLO 2, TETRIS 20
jogos, reconhecendo dois elementos: embutidos e emergentes. Elementos embutidos da
narrativa sao tudo aquilo que tem significado para o jogador e e criado pelos autores.
Assim, o visual de contos de fadas, a trilha sonora, as personagens encontradas por Link,
todos os assets (objetos) do jogo, tudo faz parte dos elementos embutidos da narrativa, e
atraves deles que sabemos que Link e um garoto de orelhas pontudas e visual feerico. E
atraves das personagens (chamadas NPCs ou Non-Player Characters, e sao as personagens
que o jogador nao controla no jogo) que sabemos que Hyrula e um reino, cuja princesa
chama-se Zelda.
O elemento emergente da narrativa e fruto da interacao do jogador com o jogo. Ou
seja, e o encadeamento dos padroes de jogo decorrentes da acao do jogador e os padroes
de interacao. O jogador e quem ativamente conduz Link por sua vila natal, conversa com
NPCs, vai ate o local onde a Grande Arvore o espera, e derrota a causa do mal.
Assim, a narrativa final experimentada e o resultado dos elementos embutidos, orde-
nados, selecionados e apresentados de acordo com os padroes de interacao, a partir das
escolhas do jogador. Disso concluımos que a narrativa, em jogos, sempre existe e sempre
e interativa, basta-nos saber quao bem atende os criterios de jogo e narrativa dramatica.
5.2 EXEMPLO 2, TETRIS
Em um poco retangular, tetrominoes 1 caem da sua borda em uma sequencia aparente-
mente aleatoria e vao se acumulando na sua base formando um emaranhado de formas
intricadas. De repente, os blocos dos , tetrominoes formam uma linha contınua de um
lado a outro do poco, que, apos um rapido flash, some fazendo que os blocos das camadas
acima caıssem. Assim, novos padroes sao formados, que por sua vez possuem linhas
fechadas que somem mais uma vez, repetindo o ciclo.
Pode nao parecer, mas o jogo de Tetris tem uma narrativa, mas se a compararmos
com os criterios vistos no Capıtulo 3, veremos que, com certeza, nao e uma narrativa
dramatica. Assim, mesmo que o jogo seja comprovadamente um bom jogo - Tetris sempre
aparece nas listas dos 100 melhores jogos digitais de todos os tempos -, pode acontecer
da sua narrativa emergente carece de elementos embutidos que atendam aos criterios de
uma historia cativante.
Pode acontecer tambem de que os meios de interacao entre o jogador e o jogo ten-
ham um efeito negativo na narrativa. Zimmerman cita o exemplo do famoso jogo Super
Breakout da Atari - onde o jogador controla uma barra horizontal no canto inferior da
tela e tenta rebater uma bola contra retangulos coloridos que somem ao contato com esta
-, que possui a seguinte interpretacao para os elementos embutidos: o jogador representa
1figuras geometricas formadas por quatro quadrados ligados por pelo menos uma de suas arestas.
5.3 EXEMPLO 3, DRAGON’S LAIR 21
um piloto de uma nave espacial que viaja pelos confins do universo e de repente e barrado
por um campo de forca alienıgena multicolorido, seria ele capaz de utilizar a velocidade
da luz da sua nave para quebrar essa temıvel barreira? Embora esse contexto enriqueca
a narrativa no geral, os meios de interacao restringem a interpretacao dos eventos a algo
que se assemelharia a um jogo de ping-pong.
5.3 EXEMPLO 3, DRAGON’S LAIR
Enquanto Tetris e um exemplo de narrativa completamente interativa, mas carente de
significado, Dragon’s Lair e quase o oposto. O jogo se passa todo em FMV 2 e durante
uma animacao de 12 minutos, o jogador e responsavel pela morte da personagem principal
ou pelo continuar da animacao fazendo o movimento correto na hora certa. O jogo nos
mostra a aventura de Dirk ”the Daring”, em sua tentativa de salvar Princesa Daphne do
perverso dragao Singe, no castelo de um feiticeiro.
Enquanto que os elementos embutidos da narrativa (que e quase toda formada apenas
disso) preservam a estrutura do drama, atendendo aos criterios de unidade, coesao, etc.,
o gameplay e notoriamente limitado. O jogador tem apenas um joystick e um botao
para interagir com o jogo. Os padroes de interacao sao bastante simples: o movimento
correto faz o jogo continuar. O mecanismo de feedback e extremo: caso o jogador erre
ele tem que recomecar do inıcio do jogo (Figura 5.1). O jogador precisa adivinhar qual o
movimento certo (que consiste em puxar o joystick para uma direcao ou apertar o botao)
a partir da animacao que ocorre durante a cena. A curva de aprendizado resultante e
fragmentada e curta, ja que uma vez sabendo quais os movimentos certos, nao ha mais
o que aprender do jogo. Certamente, apesar de revolucionario para a epoca, e um jogo
lembrado mais pelo delight proporcionado pela sua historia e sua belıssima animacao do
que pela qualidade do seu gameplay.
5.4 EXEMPLO 4, INDIANA JONES AND THE FATE OF ATLANTIS
Nesse bem conceituado trabalho da LucasArt, o jogador controla o conhecido personagem
da franchise Hollywoodiana Indiana Jones em uma busca pelo continente perdido da
Atlantida. Ao mesmo tempo em que os nazistas tambem procuram o continente para
utilizar a tecnologia atlantida na criacao de armas de destruicao em massa. A categoria
do jogo e Adventure, muito popular no inıcio da decada de 90 e que busca misturar
2Full Motion Video - tecnologia utilizada em muitos jogos no inıcio da decada de 90 que basicamenteconsistia em um conjunto de cenas filmadas ou animadas previamente, que sao encadeadas dependedoda acao do jogador. Apesar de que, os jogos em FMV possuiam graficos muito melhores do que seuscolegas renderizados da epoca, geralmente eram tambem pobres em interatividade.
5.4 EXEMPLO 4, INDIANA JONES AND THE FATE OF ATLANTIS 22
Figura 5.1 Curva de aprendizado em Dragon’s Lair - a cada game over o jogador descobreque tomou a decisao errada.
historia elaboradas, humor e muito puzzle solving.
A narrativa em Indiana Jones and the Fate of Atlantis atende aos criterios do Capıtulo 3,
em cada momento a protagonista e levada de um conflito a outro por necessidade, en-
quanto que a storyline se mantem coesa e una. Ao mesmo tempo, podemos reconhecer
a interacao do jogador com a narrativa em pelo menos dois nıveis distintos: dialogo com
as NPCs e resolucao de puzzles.
Atraves do dialogo, o jogador seleciona entre um conjunto pre-definido de frases que
Indiana pode falar; entao as NPCs reagem de acordo com a frase selecionada. Isso e o que
chamamos de arvore de dialogo (dialogue’s tree) e serve para o autor manter controle do
carater da personagem (as opcoes disponıveis ao jogador) e do desenvolvimento do plot
(reacao dos NPCs). Ate hoje (the Fate of Atlatins e de 1992), a arvore de dialogo e o unico
mecanismo (com raras excecoes) usado quando se quer dar uma maior interatividade da
protagonista com os NPCs. Porem, em the Fate of Atlantis o dialogo tambem permite que
a storyline do jogo se desenvolva de forma diferente, a depender da escolha do jogador.
Essa caracterıstica e o que chamamos de branching da historia, onde cada caminho
possıvel e um branch (Figura 5.2).
Branchs sao usados para dar uma sensacao de interacao do jogador com a narrativa. O
motivo disso e que, apesar de poder alterar a componente emergente da narrativa atraves
da forma como ele resolve os puzzles, sao as componentes embutidas que avancam a sto-
ryline apresentando a protagonista a um novo conflito. Sendo assim, independentemente
do que o jogador faca na resolucao de puzzles - parte interativa -, a componente embu-
tida avanca a historia exatamente da mesma forma que avancaria caso o jogador tivesse
tomado outras decisoes. A sensacao resultante e a de que a narrativa esta dissociada
5.4 EXEMPLO 4, INDIANA JONES AND THE FATE OF ATLANTIS 23
Figura 5.2 Exemplos de estrutura da narrativa em jogos simples - Dragon’s Lair - e combranching - Fate of Atlantis.
do gameplay, e e o principal sintoma de uma narrativa pouco interessante como jogo.
Vamos utilizar as perspectivas apresentadas nos Capıtulo 3 e Capıtulo 4 para entender
a causa desse problema:
Quais os padroes de jogo na narrativa? Elementos embutidos que revelam o
carater da personagem, a natureza do conflito, o seu desenrolar e desfecho - como, por
exemplo, quando Jones descobre que o seu contratante era um nazista disfarcado, ou que
descobre que sua colega Sophia corre perigo, ou quando, sob ameaca de morte, tem que
ajudar os nazistas ja em Atlantida - e elementos emergentes que servem para resolver
puzzles e escolher entre alguns caminhos possıveis na historia - como, por exemplo, pegar
itens, usa-los, olhar, dar algum item para algum NPC, etc.
Quais os padroes bem-sucedidos? Em geral inexiste esse criterio, com algumas
raras excecoes. Em determinado momento da trama a protagonista e ameacada de morte
se nao fizer o que o nazista manda, se o jogador for persistente em se recusar a aceitar
a ordem, o nazista dispara com uma arma de fogo e a protagonista morre, levando a
um game over 3. Exemplos como esses sao pontuais, e sao os unicos momentos em que
a narrativa se mostra como um jogo realmente, ou seja, que apresenta padroes bem-
sucedidos e mal-sucedidos e o jogador deve aprender o padrao correto.
3Quando o jogo acaba em um resultado negativo.
5.5 EXEMPLO 4, OS RPGS DIGITAIS 24
Quais os padroes de interacao? Basicamente: puxe o gatilho e a historia prossegue.
O gatilho pode ser qualquer coisa, desde falar com uma NPC ou resolver um puzzle. Ape-
sar da interacao inerente a descobrir qual o gatilho e como ativa-lo, a historia so nos da
duas opcoes: prosseguir ou estagnar. The Fate of Atlantis traz, no entanto, uma excecao
peculiar: em determinado momento, durante o dialogo com uma NPC, o jogador pode
escolher entre tres branchs completamente distintos, inclusive no gameplay. Apesar das
consequencias dessa escolha serem tao distintas, elas carecem de significado em termos
de jogo, isto e, nenhuma e melhor do que a outra - vai dar mais pontos, por exemplo - e
o jogador escolhe muito mais baseado em seu gosto pessoal - se ele prefere um jogo mais
voltado a acao ou a puzzles - do que em algum tecnica aprendida.
Dessa analise e possıvel dizer que a narrativa, como um jogo, em emphIndiana Jones
and the Fate of Atlantis , possui meios de interacao bastante limitados, pouca distincao
entre os padroes e um padrao de interacao relativamente trivial. Por isso, a sensacao
de um jogo dissociado da narrativa e natural, dado que enquanto existe uma serie de
intricados quebra-cabecas a serem resolvidos no decorrer do jogo, a historia apresenta um
padrao bastante trivial e linear.
5.5 EXEMPLO 4, OS RPGS DIGITAIS
Com o passar dos anos, os RPGs digitais foram perdendo espaco com o publico, assim
como os Adventures. Porem o genero reviveu com o sucesso de Diablo, em 1996, e vem
ganhando destaque desde entao. Nao e objetivo entrar em detalhes sobre essa categoria
de jogos - o que faremos mais profundamente no Capıtulo 6 -, mas discutiremos aqui a
forma como RPGs digitais contam historias.
Como sendo uma categoria de jogo digital bastante baseada na narrativa, e no RPG
digital que mais encontramos esforcos de transforma-la em um bom jogo. E neles que
foi introduzido o conceito de quest : uma missao que a personagem principal precisa
completar para ganhar uma recompensa e que pode ser tratado como um arco narra-
tivo independente, ou seja, um modulo da historia que pode ser rearranjada com outros
modulos para formar uma estrutura mais propriamente nao-linear da narrativa - que
Sheldon chama de ”teia” (Figura 5.3).
Fable e um RPG digital da Lionhead Studios, lancado em 2004 e sendo aguardado
com grande ansiosidade por parte do publico. Nele voce joga com um garoto que perde a
famılia num ataque de bandidos e e salvo por um heroi. Ele e entao levado para a Guilda
dos Herois, onde ele recebe treinamento para tambem se tornar um heroi. Em sua busca
por vinganca, ele reencontra sua irma e mae. Finalmente, acaba se envolvendo com um
ardiloso plano do vilao que esta por tras de tudo, que deseja despertar um terrıvel mal e
5.5 EXEMPLO 4, OS RPGS DIGITAIS 25
Figura 5.3 Exemplos de estrutura nao-linear simples - As cenas de side quests podem seracessadas fora de ordem pela narrativa.
conquistar o mundo.
Melodrama a parte, o jogo possui uma estrutura que consiste em uma serie de quests
principais - a sotryline - com alguns poucos branchs e muitas side quests. Sao essas
ultimas que dao o aspecto nao linear da narrativa, pois o jogador pode escolher realiza-
las em qualquer ordem ou mesmo nao as realizar de forma alguma. O objetivo disso e
deixar ao jogador a escolha do que fazer e quando fazer, ele pode salvar uma vila em um
momento e atacar um acampamento de mercadores em outro. A narrativa parece, entao,
bastante ”frouxa”.
Analisando a narrativa, em Fable, em relacao aos criterios narrativos, temos que: a
liberdade de interacao faz com que, por exemplo, a protagonista se esforce para salvar a
vida de um pobre garotinho por puro altruısmo, e no momento seguinte esta espalhando
caos e destruicao gratuitamente. A narrativa acaba carecendo de coesao e verossim-
ilhanca; as coisas parecem acontecer como que por capricho - e e verdade, capricho do
jogador - e nao por necessidade. Finalmente, com excecao da storyline, muito do que
acontece no meio poderia ser retirado definitivamente da narrativa - isto e, carece de
unidade -, sem muito impacto na apreciacao da mesma, o que, alias, torna-la-ia ainda
melhor.
Para podermos entender como o jogo atende aos criterios, vamos primeiro discutir o
seu mecanismo de feedback : o jogo termina quando o jogador vence o vilao da historia,
Jack ”of All Blades”, quando todas as quests da storyline sao completadas. O princi-
pal desafio em todas elas e vencer algum tipo de batalha, para vencer essas batalhas e
necessaria uma combinacao de esperteza, destreza manual e, principalmente, uma per-
5.5 EXEMPLO 4, OS RPGS DIGITAIS 26
sonagem com estatısticas fortes. O que isso diz para o jogador? Que ele deve deixar
a personagem o mais forte possıvel. Como ele consegue isso? Basicamente atraves do
assassınio de qualquer NPC no jogo, mais comumente os que querem o seu mal. Quao
mais difıcil e de derrotar a NPC, mais pontos de experiencia e ganho ao derrota-la; mais
tarde, esses pontos sao usados para melhorar as estatısticas da personagem e adquirir
novos poderes. Os adversarios mais difıceis so estao disponıveis dentro das quests. O que
isso ensina ao jogador? Que a melhor forma de ficar forte e completando todas as quests
e side quests - tendo paciencia, ele pode ate utilizar os pacıficos aldeoes como vıtimas
para acumular pontos de experiencia.
Em relacao aos criterios de jogo, vamos dividir a interacao do jogador com a narrativa
em duas perspectivas: na micro esta toda acao que ele realiza no jogo, na macro estao
quais quests ele escolheu realizar. Na perspectiva micro, o jogo e rico em detalhes e
interatividade. Na perspectiva macro, o jogador possui poucas opcoes de interacao -
sao relativamente poucas quests ao total e menos ainda disponıveis por vez - e gracas
ao mecanismo de feedback, como explicamos, fica claro desde o comeco que a melhor
alternativa e completar todas as quests possıveis. Assim, temos que a narrativa como
jogo no nıvel macro empobrece o gameplay como um todo.
Outros problemas surgem do ponto de vista da narrativa, dependendo das escolhas
do jogador, as acoes da personagem muitas vezes carecem de verossimilhanca e ne-
cessidade. Intrinsecamente, nao existe nenhum problema com o mecanismo de feedback
do jogo, mas a partir do momento em que os elementos possuem um significado para o
jogador -Fable busca passar o de que a protagonista e um heroi, que tanto ela quanto
as NPCs sao pessoas como qualquer um de nos -, e necessario que o gameplay reaja
da forma que o jogador espera. Ou seja, espera-se de uma ”pessoa” convencional que
ela se comporte de forma consistente. Mas o que acontece e que gracas ao mecanismo
de feedback a personagem pode nao ser consistente em suas motivacoes; a motivacao e
fracamente relacionada a narrativa. Com suas acoes fracamente ligadas por necessidade
e seu carater inverossımil, como vimos no Capıtulo 3, a historia dessa protagonista sera
marcada pela falta de coesao e unidade.
Retornando ao primeiro exemplo desse capıtulo, Ocarina of Time reune um conjunto
de quests e side quests que, em sua grande maioria, condiz com o carater da personagem no
momento e a necessidade dramatica da historia. Talvez seja por isso que tenha alcancado
tao boa aceitacao do publico. Mesmo assim, o jogador tem poucas escolhas em relacao a
quais quests completar e em que ordem, pior, nao ha diferenca significativa nas escolhas
que ele toma para afetar a narrativa de uma perspectiva macro.
Finalmente, e preciso admitir, fomos simplistas ao descrever os mecanismos de feedback
de Fable. Enquanto que agir caoticamente consistentemente lhe deixa avancar melhor e
5.6 EXEMPLO 5, THE SIMS 27
mais rapido atraves do jogo, existem certas diferencas no gameplay. Existe um espectro
de ”bondade” ou ”maldade” onde a moral da personagem se localiza em cada momento.
Essa localizacao indica se sua personagem, em geral, e bondosa, neutra ou malvada; o que
afeta diretamente a reacao dos NPCs. Porem, apesar da acao do jogador, quer seja boa,
quer seja ma, de fato afetarem o gameplay, nao se pode dizer objetivamente que e pra
melhor ou para pior. Ou seja, se o que a protagonista fez e ”certo” e deixado a cargo do
jogador subjetivamente decidir - esse e um mecanismo de feedback implıcito, e existem
jogos quase que completamente baseados neles como veremos no proximo exemplo.
5.6 EXEMPLO 5, THE SIMS
The Sims ocupa a posicao de jogo para PC mais vendido na historia. Seu gameplay
e curioso e original: o jogador controla um grupo de ”sims” que vivem numa mesma
casa. Em todos os aspectos um ”sim” e uma pessoa, com a diferenca de que o jogo deixa
bastante claro de que, de fato, nao o sao - sao ”sims” apenas. Isso e importante, porque
a cobranca de verossimilhanca sera em cima do significado que o elemento tem para o
jogador; sendo assim, o que esperar de um ”sims”?
O jogo prove uma variada gama de escolhas possıveis para o jogador, desde comprar
e mobiliar sua casa, como fazer o ”sim” interagir com essa mobılia e, mais interessante
ainda, interagir com outro ”sim”. Aqui temos outra curiosidade, ao inves de usar uma
estrutura de arvore de dialogo para a interacao entre os ”sims”, o jogo disponibiliza
uma serie de ”acoes”, que pode tanto ser algo que se fala ou que se faz ativamente, que
representam tipicamente a intencao da comunicacao. Isto e, por exemplo, que voce nao
pode fazer seu ”sim” falar uma ou outra determinada frase, mas pode fazer com que ele
conte uma piada, ou que flerte, por exemplo. Isso retira a responsabilidade do jogo de
manter a coerencia entre as frases do dialogo e, ao mesmo tempo, aproxima muito mais a
interacao de uma conversa casual, que tende naturalmente a mudar de um assunto para
outro sem criterio explıcito.
Na criacao de cada ”sim” o jogador define alguns atributos de sua personalidade,
e no decorrer do jogo o sistema utiliza esses atributos somados com outras variaveis
para indicar as necessidades como: diversao, relacionamentos e riqueza. De modo geral,
podemos dizer que o objetivo do jogo e fazer a sua personagem - ou grupo de personagens
- ”feliz”; o que e possıvel ser feito atraves de uma mirıade de formas diferentes que
afetam o humor da personagem. Esse mecanismo de feedback permite que o jogador crie
para si diversos objetivos a realizar com a personagem, como, por exemplo: construir
uma carreira profissional, enriquecer, formar uma famılia, etc. Cada objetivo podem ser
mapeado dentro do jogo em diversas acoes, que auxiliam ou dificultam sua concretizacao,
5.7 EXEMPLO 6, INTERACTIVE STORYTELLING 28
e que funcionam como um mecanismo de feedback implıcito.
Pode nao parecer, mas, em termos estruturais da narrativa, Tetris e the Sims sao ex-
atamente iguais. Assim como o jogo dos tetraminoes, a narrativa em the Sims e comple-
tamente formada da componente emergente - gameplay e acoes do jogador; nao existindo
nenhuma componente embutida que mova a ”protagonista” de um momento a outro da
historia que nao seja exatamente da forma como o jogador determinou. Isso tem a ver
com granularizar a quantidade de movimento narrativo em cada elemento embutido do
jogo, de forma a aumentar a sensacao de controle do jogador, diminuindo a aparente
distancia entre narrativa e gameplay ; as duas sao uma so.
Apesar de the Sims apresentar as caracterısticas citadas por Sheldon como sendo as
”ideais” em termos de narrativa dinamica e interativa, certamente, nao podemos chamar
a narrativa produzida pelo jogo de dramatica. Isso por diversos motivos, entre eles: a
narrativa carece de final e todo o conceito de drama e baseado em uma historia com
inıcio, meio e fim; nao existe um conflito principal, no sentido de que antes havia um
estado de equilıbrio que e desequilibrado por uma forca atuante contraria a personagem,
impelindo-a a acao - apesar de surgir conflitos no decorrer do jogo, a narrativa em si nao
e conflituosa. A partir do momento que o jogo tenta incorporar uma storyline - como em
the Sims 2 -, comecam a surgir componentes embutidas com larga atuacao na narrativa
que nao interagem decisivamente com o jogador, parecendo distanciar, mais uma vez,
narrativa do gameplay.
5.7 EXEMPLO 6, INTERACTIVE STORYTELLING
Diversos trabalhos no meio academico tem chamado a atencao da comunidade de jogos
digitais para as possibilidades da utilizacao de inteligencia artificial no intuito de melhorar
a forma como a narrativa acontece em jogos. Esses trabalhos sao chamados de Interactive
Storytelling e dentre os pesquisados, citaremos dois exemplos: Facade e OPIATE.
Para ter-se uma ideia da repercussao de Facade, temos que a revista Times cita o jogo
como: ”This is the future of video games”. Chris Crawford em On Interactive Storytelling
comenta sobre o mesmo: ”Facade is without a doubt, the best actual working interac-
tive storyworld yet created” e Ernest Adams, na Gamasutra http://www.gamasutra.com,
completa: ”Facade is one of the most important games ever created, possibly the most
important game of the last ten years”. O experimento chamou a atencao, certamente,
nao so da mıdia como tambem da comunidade que desenvolve jogos.
Enquanto Facade nao precisa ser visto como um jogo, e, portanto, atende a outros
criterios, faremos nossa analise a partir dessa perspectiva. A historia comeca quando o
avatar do jogador - mais adiante, mostramos o motivo de nao chamarmos de personagem
5.7 EXEMPLO 6, INTERACTIVE STORYTELLING 29
- e chamado por um amigo da epoca de faculdade para um jantar em sua casa. Ao chegar
la, o jogador encontra seu amigo discutindo com a esposa aparentando a dissolucao do
seu casamento.
Basicamente o jogador interage com alguns poucos objetos, se move pelo apartamento
numa perspectiva de primeira pessoa e interage com as personagens falando - o jogador
escreve o texto que deseja falar - com, confortando ou beijando a NPC. As NPCs reagem
em tempo real, em um dialogo ininterrupto e sem turnos como acontece quando se utiliza
uma arvore de dialogo tradicional, de forma bastante similar como tambem acontece em
the Sims com a diferenca de que ao inves de trabalhar com intencao e ideias, o jogo tem
um mecanismo que tenta inferir o significado e a intencao do jogador a partir do que ele
escreve. A historia segue, com padroes de interacao complexos, porem discernıveis - e facil
reconhecer, por exemplo, quando o avatar toma a posicao de alguma das NPCs em sua
discussao -, e que permitem ao jogador alterar o desenrolar do plot em diversas direcoes
possıveis - em determinado momento o avatar e capaz ate de conquistar o ”coracao”
de uma das NPCs e provocar de vez o fim do casamento dos seus amigos. O sistema
ainda conta com um mecanismo de inferencia do tempo dramatico, que insere eventos ou
reorganiza a ordem em que estes acontecem para evidenciar o conflito em que o jogador
esta envolvido e forca-lo a tomar decisoes.
Preferimos chamar a personagem do jogador de avatar, porque o jogador nao sabe
nada sobre ela a princıpio. Apesar de ela possuir um passado - ela conhece o casal, estudou
junto com uma das NPCs -, ele e vago e deixa em aberto o carater da personagem para
justificar qualquer atitude tomada pelo jogador. O jogo carece de um criterio de sucesso,
deixando a cargo do jogador criar seu proprio mecanismo de feedback implıcito, podendo
fazer com que ele nao saiba o que fazer - melhor ainda, o que deve fazer. Novamente,
a ausencia de clareza nas motivacoes da personagem esconde da narrativa o seu carater,
podendo causar todos os problemas ja mencionados no exemplo anterior. Apesar disso,
o jogo e inovador na forma como busca atender os criterios e mostra a possibilidade de
abordar relacionamentos no gameplay de uma forma mais madura; certamente, um passo
a mais em busca de uma narrativa superior esteticamente.
Enquanto Facade e, como os proprios autores indicam, um drama de um ato so,
o OPIATE, desenvolvido por Fariclough em sua tese de doutorado na Universidade de
Dublin, permite uma estrutura maior de desenvolvimento do conflito. O OPIATE - Open-
ended Proppian Interactive Adaptative Tale Engine - e bem mais simples que o exemplo
anterior de interactive storytelling, tanto em meios de interacao para o jogador, quanto
em acabamento estetico, mas traz uma caracterıstica interessante: adaptacao dinamica
na perspectiva macro da narrativa. O sistema foi feito para contar historias similares aos
contos de fadas com a participacao de um jogador. Este controla uma personagem que
5.8 RESUMO 30
”vive” em um mundo fantastico com varias NPCs. O jogo possui um sistema bastante
simples de relacionamento que permite definir afeicoes - ou desafeicoes - entre as NPCs e
a personagem do jogador, e essas relacoes sao usadas para definir o papel das NPCs na
historia a ser contada.
Vladimir Propp foi um estudioso dos folclores russos que reconheceu um conjunto de
estruturas que se repetiam em todas as lendas que catalogou [Fai04]. A essas estruturas,
e dado o nome de funcoes, e se dividem em cinco grupos: preparacao, complicacao, trans-
ferencia, disputa e retorno. Essa divisao, apesar de nao tratar de drama especificamente,
tem similaridade com a estrutura dramatica de tres atos usada nesse trabalho, que pode
ser vista da seguinte forma: temos apresentacao do conflito na preparacao e complicacao;
desenvolvimento do conflito na transferencia e na disputa; resolucao do conflito no re-
torno. Exemplos de funcoes: o heroi viola algum aviso deixando pontos fracos; o vilao
executa um ato de vilania; o heroi recebe auxılio de um mentor; o heroi vence o vilao; o
heroi casa-se com a princesa. O OPIATE utiliza essas funcoes como uma forma abstrata
de tratar a historia - assim, limitando o tipo de historias para contos de fadas - e os papeis
em cada funcao podem ser preenchidos tanto pela personagem do jogador, quanto pelas
NPCs - selecionadas a partir do sistema de afeicao/desafeicao.
A partir disso, um jogo feito com o OPIATE conduz a historia atraves da execucao
dessas funcoes narrativas, que requerem uma posicao do jogador diante delas como per-
sonagem principal. A partir das escolhas do jogador o jogo entao buscaria quais as mel-
hores funcoes para executar a seguir, baseando-se em um corpo pre-definido de historias
”ideais” e nas regras de Propp para o encadeamento das funcoes de forma que preserve
a coerencia da narrativa. Se comparado com o sistema de quests dos RPGs digitais,
e como se falassemos em que cada escolha do jogador alteraria, nao so a ordem com
que estas acontecessem, como tambem a propria natureza da quest, preservando uma
estrutura mais abstrata que e o que realmente daria forma a narrativa como um todo.
Finalmente, falta tambem ao OPIATE um sistema de feedback que permita ao jogador ter
criterios ao decidir continuar com uma funcao ou nao - da mesma forma como Facade, o
jogador e deixado com seu proprio mecanismo implıcito e, como o proprio autor comenta
em seus testes, os jogadores do prototipo feito com o OPIATE tiveram dificuldade em
decidir/descobrir o que fazer.
5.8 RESUMO
Nesse capıtulo, vimos como jogos contam historias. Na literatura pesquisada nao existe
um consenso claro de como isso acontece, nem por que meios. Por isso, nesse trabalho
reforcamos a base apresentada por Zimmerman, mostrando sua utilidade ao analisar
5.8 RESUMO 31
diferentes tipos de jogos. Acreditamos termos deixado claro que todo jogo conta uma
historia, que a partir do momento que ha um jogador, essa historia se torna interativa.
Isto e, a narrativa de todo jogo emerge da interacao entre o jogador e os componentes
embutidos. Basta a quem se dedicar ao estudo da narrativa em jogos, definir os seus
criterios e analisar como os padroes de jogo, de interacao e feedback se combinam para
satisfaze-los ou nao.
No nosso caso, vimos que os criterios definidos para narrativa dramatica podem nao
ser atendidos quando o jogo: carece de padroes de jogo com uma semantica propıcia
- onde se reconheca minimamente personagens, conflito, enredo; possui padroes de in-
teracao que nao promovem coesao e unidade; os mecanismos de feedback nao promovem
verossimilhanca e necessidade, ou pelo menos nao incentivam que o jogador crie mecan-
ismos implıcitos que assumem esse papel.
Vimos tambem que para uma narrativa interativa ser considerada um jogo, pelos
criterios definidos, e necessaria que tenha padroes de jogo, de interacao e feedback. Prin-
cipalmente os padroes de interacao devem ser ricos em prover padroes de jogo, de forma
que atraves do mecanismo de feedback o jogador possa aprender a dominar e a guiar o
jogo para os padroes bem-sucedidos. Quanto mais longa e suave e a curva de aprendizado
do jogador, melhor e o jogo.
Reconhecidamente, os jogos digitais possuem um potencial de interatividade e imersao
que ainda estamos apenas comecando a descobrir. Todas as componentes para uma
maravilhosa experiencia de narrativa interativa ja parecem estar disponıveis com as fer-
ramentas atuais, entao o que esta faltando? Por que parece que quando o jogo tenta
delimitar um caminho em que a narrativa seja esteticamente deslumbrante o gameplay e
sacrificado? Por que quando o gameplay e estendido a nıveis excelentes de interatividade,
parece que a narrativa se desfaz em caos? E por que quando se tenta atingir os dois ob-
jetivos ao mesmo tempo o que temos e um jogo que parece dissociado da narrativa? No
proximo capıtulo veremos uma categoria de jogos que esclarece esses problemas, porque
permite que jogadores conscientes conciliem narrativa dramatica e jogo sem sacrificar as
caracterısticas de cada um.
CAPITULO 6
LICOES DO RPG DE MESA
O RPG e uma categoria de jogos que surgiu na decada de 70 e descende dos jogos de
simulacao de guerra. Distingue-se da maioria dos jogos por nao haver condicao de vitoria,
isto e, ao final de uma partida nao existe jogador vencedor ou perdedor. A versao digital
do RPG surgiu quase na mesma epoca e possui mais visibilidade que sua versao original,
chamada RPG ”de mesa”. Destaca-se por ser uma das categorias de jogos digitais - junto
com a categoria Adventure - que mais enfocam o lado narrativo do jogo, valorizando
elementos dramaticos para causar delight [She04]. Por outro lado tambem, o RPG digital
e geralmente classificado como um jogo onde a personagem evolui com o tempo [KW04]
dando a entender que esse e o principal objetivo dos jogadores. Fica claro pela introducao
do primeiro e um dos mais famosos sistemas de RPGs publicados, Dungeons and Dragons,
que o objetivo de uma partida de RPG e: se divertir representando papeis. O RPG nao
e somente um jogo em que se representa um papel, mas um jogo de representacao de
papeis - i.e., e central ao jogo a habilidade de representar uma personagem, de ser fiel ao
seu carater e de conduzi-la de forma verossımil e interessante no decorrer da partida.
Basicamente, no RPG de mesa, um grupo de jogadores se reune para vivenciar aven-
turas representando papeis em mundos fantasticos. Essas reunioes sao chamadas de
sessoes de RPG e podem durar duas, quatro, seis a quem sabe mais que doze horas.
Antes, ou no inıcio da sessao os jogadores criam suas personagens dentro de um cenario
pre-definido, ou escolhem personagens ja criadas que foram utilizadas em sessoes pas-
sadas. Um dos jogadores, que chamamos de narrador, e quem cria a storyline da qual as
personagens fazem parte, que chamamos de aventura. Uma aventura pode durar uma
ou mais sessoes e tem comeco, meio e fim.
Quando a aventura e feita sem intencao de reutilizar as personagens, chamamos
de oneshot , quando nao e as personagens sao representadas em varias aventuras en-
cadeadas, temos o que chamamos de campanha, que e uma das modalidades mais co-
muns de RPG de mesa na comunidade analisada por esse trabalho. Uma campanha pode
ter final ou nao, podendo ser open-ended ate os jogadores ”cansarem” da historia. Uma
outra modalidade de jogo sao os projetos que chegam a possuir mais de um narrador
e muitos jogadores - ja fizemos parte de um projeto de quatro narradores, 20 jogadores,
e que durou quatro anos - e que pode apresentar uma estrutura contınua, como uma
32
LICOES DO RPG DE MESA 33
campanha, mas sem o conceito de aventura claramente definido. Apesar de nao ser o
foco de nossa pesquisa, falaremos mais de projetos de RPG na conclusao desse trabalho.
O jogador - quando falando sobre RPG de mesa, usaremos o termo ”jogador” para
todos os jogadores com excecao do narrador - e responsavel por criar uma personagem, isto
e, construir o seu passado, vivencia, carater e motivacoes, que geralmente e condensado
no que chamamos de historico, e construir tambem as estatısticas dentro das regras
usadas pelo jogo, que sao anotadas na ficha da personagem. Naturalmente, dentro da
categoria de RPG de mesa, existem varios jogos que geralmente consistem em um livro
basico, que descreve a mecanica do jogo em termos de regras e cenario da fantasia, e
livros suplementares que trazem mais detalhes sobre o cenario, novos cenarios e/ou novas
regras. As regras servem para guiar os jogadores e narrador na construcao do que e
possıvel dentro da fantasia, tanto em termo de potencialidades da personagem, quanto a
chances de sucesso e efeitos de suas acoes.
O narrador e responsavel por contar uma historia em que as personagens dos jo-
gadores tenham participacao, e na medida em que narra, esses jogadores dizem o que
suas personagens falam, pensam, fazem ou como se comportam, representado-as como
se fossem elas proprias. O narrador, entao, ajusta a narrativa incorporando as acoes dos
jogadores, narrando os resultados dessas acoes; ele pode inclusive desconsiderar uma acao
do jogador, ou altera-la com o seu consentimento, pois que ele possui o poder validador
da fantasia compartilhada atraves do jogo. Isto quer dizer que o que de fato acontece na
narrativa e somente e sempre o que o narrador sanciona e, portanto, o que narra.
No processo de validar a fantasia o narrador pode - mas nao e obrigado a - usar as
regras e as estatısticas das personagens para decidir o resultado de uma acao encamin-
hada pelo jogador. O ele faz e pedir um teste para o jogador, ou o realiza em segredo,
onde se utiliza dados de variadas tipos - para inserir um carater de chance e imprevisao
ao jogo - e o resultado da acao e baseado nos valores dos lances de dados, nas estatısticas
da personagem e na dificuldade do teste, por ele determinada. Enquanto as regras per-
mitem que os jogadores e narradores entre mais facilmente em comum acordo sobre o
que e possıvel, elas podem ser completamente dispensadas por um narrador e jogadores
experientes.
Caracterizar os padroes do jogo no RPG e uma tarefa um tanto quanto difıcil, isso
por que o jogo, apesar de ser percebido atraves da conversacao, se passa na imaginacao
dos jogadores e narrador. Podemos dizer que os padroes de jogo sao a narrativa como
compartilhada por todos os jogadores, tudo o que o narrador fala dentro do contexto do
jogo faz parte desses padroes, como tambem tudo o que os outros jogadores falam no
mesmo contexto e que e sancionado pelo narrador. Em uma analise desatenta podemos
achar que os padroes de interacao sao as regras utilizadas pelos participantes, porem e
LICOES DO RPG DE MESA 34
um engano tanto quanto acharmos que DD e um jogo. Como dissemos no inıcio, DD
e um sistema de RPG, o que quer dizer que tudo o que contem esta a disposicao do
narrador para usar, descartar ou modificar ao seu bel prazer. E o arcabouco sobre o qual
o narrador constroi o seu jogo.
Sendo assim, os padroes de interacao sao frutos da visao de mundo do narrador, como
ele pensa, raciocina, como acha que os elementos da narrativa se comportam. O mecan-
ismo de feedback, apesar de cada sistema sugerir o seu, tambem dependem exclusivamente
do narrador, e esta relacionado com o seu ethos, seus objetivos com o jogo, sua cultura e
suas inclinacoes quanto as questoes levantadas durante a narrativa. Enfim, a complexi-
dade e a curva de aprendizado variam de narrador para narrador e mesmo de sessao para
sessao.
Pode parecer confuso, mas os padroes de interacao e feedback podem ser tao sim-
ples quanto: as personagens estao em um labirinto infestado de monstros e tesouros,
tudo o que se mover deve ser morto, quanto mais e maiores forem os inimigos, mais
tesouros e poder as personagens ganham - esse estilo de jogo e chamado de hack’n’slash e
caracteriza-se por pouca atencao a estetica da narrativa, como criterios de necessidade ou
verossimilhanca, e muita atencao as regras, combate, estrategias e acumulacao de riqueza
e poderes. Tambem existem jogadores mais experientes que procuram aprofundar mais
a questao da narrativa e da representacao, aproximando o jogo de formas de arte como
cinema e teatro. A grande maioria, porem, encontra-se num meio termo entre esses dois
extremos, e e junto a esse tipo de narradores e jogadores que buscamos conduzir a nossa
pesquisa.
Durante a nossa pesquisa, buscamos identificar o que os jogadores entrevistados con-
sideram uma sessao bem-sucedida e chegamos aos seguintes criterios:
� As personagens dos jogadores foram envolvidas em um conflito;
� O conflito estava balanceado com a capacidade da equipe - nem muito difıcil, nem
muito facil;
� Nenhum dos jogadores fugiu ao carater da personagem;
� Todos os eventos vivenciados pelas personagens - atraves da narracao do narrador
e da representacao dos jogadores - pareceram verossımeis e necessarios.
Uma boa sessao e aquela onde o narrador e os jogadores estao sintonizados, no que diz
respeito ao desenrolar da estoria; ou seja: nem ha uma imposicao do que vai acontecer
por parte do narrador nem este deixa os jogadores ’soltos’, para fazerem o que quiserem,
LICOES DO RPG DE MESA 35
visto que sempre e necessario um contexto para que algo possa acontecer [Entrevista com
jogador].
O conflito, em uma partida de RPG, pode variar desde vencer um combate a conquis-
tar o coracao da princesa. Daı tem que atraves do RPG muitas e muito variadas historias
podem ser contadas e os jogadores cooperam ativamente para que causem delight. Assim
como no RPG digital, os jogadores se deparam com diversas escolhas, principalmente
relacionadas a representacao da personagem, porem o mecanismo de feedback e bastante
diferente.
Um [sic] personagem precisa ter uma personalidade marcante, de preferencia diferente
da personalidade do jogador. Assim e possıvel notar claramente quando o jogador esta
[representando] ou simplesmente tomando uma acao fora do contexto da [representacao].
Espero encontrar um bom [historico]para entender o que fez a personagem chegar ate ali
e como ela agiria em situacoes diversas. Tambem espero que a personagem possua uma
grande gama de acoes possıveis, para que nao se torne sempre a mesma coisa [Entrevista
com jogador]
Do ponto de vista do narrador, ele tem o desafio de conduzir o jogo tambem de acordo
com criterios de satisfacao e feedback que lhe sao proprios. E o criterio mais importante,
nesse tipo de jogo e a imersao, que acontece quando os jogadores se concentram na
narrativa e na representacao de suas personagens.
Eu penso em, quando ele participa, ele esta fazendo o que? Ele esta pensando pela
personagem, pronto entao eu penso isso. Um jogo e bom quando ele pensa pela person-
agem.[...] quando eu consigo fazer o jogador pensar pela personagem, nao como ele, mas
como a personagem [Entrevista com narrador].
Dentro desse criterio, a sensacao de imersao e sacrificada sempre que os jogadores fo-
gem ao carater da personagem. Essa fuga e punida dentro de um mecanismo de feedback
que pode envolver o fator social - quando os jogadores comentam fora do contexto do
jogo sobre a atitude do infrator - ou fatores de gameplay efetuados pelo narrador que po-
dem ser tanto diretamente pelo enfraquecimento das estatısticas da personagem, quanto
indiretamente atraves da reacao dos elementos da narrativa.
Por impulsividade, a personagem de Joao, que tem carater bondoso e ordeiro, acaba
assassinando um guarda da cidade. Foragidos, as personagens do grupo decidem fugir da
cidade, enquanto que Joao decide por entregar sua personagem a justica. Apos discutir
com o narrador sobre como resolver o problema, ambos concordam que a melhor solucao e
manter a personagem presa, que durante muitos anos de remorso e culpa, acaba decidindo
abandonar a espada e seguir um caminho de sacerdocio e privacoes [Notas em campo].
A solucao que melhor preserva a imersao, certamente, e quando dentro de mecanismos
dentro do jogo, os criterios narrativos sao resgatados - como no exemplo citado acima,
6.1 DIFERENCAS ENTRE O RPG DIGITAL E O RPG DE MESA 36
onde a verossimilhanca do carater foi recuperada por mecanismos de feedback dentro
da propria narrativa. Porem, isso so e possıvel com a colaboracao entre jogadores e
narrador.
Assim, vemos que e possıvel ajustar os padroes de interacao e feedback para focar
o objetivo do jogo em criterios esteticos da narrativa. Ao inves de parecer competir
com essa estetica, O jogo passa a ser sobre efetivamente alcancar essa estetica. Dessa
forma, cumprindo seu objetivo de jogo de representacao de papeis, e nao apenas onde se
representa papeis. Se os jogadores buscam representar suas personagens de acordo com
os criterios dramaticos e o narrador conduz a narrativa sob os mesmo criterios, temos que
o jogo pode ser o mais interativo possıvel e mesmo assim, o resultado sera uma narrativa
que se aproxima dos criterios esteticos do grupo, pois esse e o objetivo do gameplay.
Naturalmente, essa e apenas uma forma de conciliar narrativa e gameplay, porem e
a partir dessa primeira experiencia que buscamos entender como podemos repeti-la ou
usa-la para melhorar a experiencia do jogador com a narrativa nos jogos digitais. Nos
proximos capıtulos visitaremos as diversas caracterısticas e tecnicas utilizadas no RPG
de mesa e digital, de forma a buscar tracar os meios pelo qual, efetivamente, a narrativa
funciona como jogo.
6.1 DIFERENCAS ENTRE O RPG DIGITAL E O RPG DE MESA
A partir da experiencia positiva tida com o RPG de mesa, nossa motivacao agora sera
descobrir o que, de fato, ha no RPG de mesa que nao ha nos jogos digitais. Para isso,
e mister levantar cuidadosamente todas as diferencas, relacionando-as aos criterios lev-
antados no Capıtulo 3 e no Capıtulo 4. Vale a pena notar que essas caracterısticas nao
indicam superioridade do RPG de mesa como mıdia em relacao aos digitais, pois ambas
possuem atributos unicos e distintos. Podemos inclusive tracar duas linhas de evolucao
simultaneas onde os RPGs digitais se destacam pela imersao sensorial, enquanto que os
de mesa sao muito mais onırica.
Enquanto nos RPGs digitais, o jogador e ”bombardeado” com imagens, sons, an-
imacoes, vıdeo, movimento, interatividade ininterrupta [New01], nos de mesa, a inter-
atividade e intermitente, fragmentada e requer muito mais interpretacao por parte do
jogador para construir os padroes de jogo em sua imaginacao - e e nesse contexto que
escolhemos usar a palavra onırica.
Porem, em outros aspectos os dois estilos tratam dos mesmos conceitos - narrativa, por
exemplo - de formas diferentes, e e atraves dessas diferencas, podemos levantar questoes de
game design a serem consideradas durante a construcao de jogos digitais onde a narrativa
como jogo importa. Para facilitar a organizacao das diferencas, nos as dividimos em tres
6.2 DIFERENCAS NARRATIVAS 37
grandes grupos: as relativas a narrativa em si, as relativas ao papel do jogador e as
relativas a forma como narrador e jogador interagem.
6.2 DIFERENCAS NARRATIVAS
6.2.1 A personagem como mais uma
Uma das maiores diferencas que o RPG de mesa possui em relacao aos seus primos digitais
e o que acontece quando o jogador falha. No RPG digital quando o jogador falha e dada
a ele a chance de recomecar (de forma ilimitada atraves de saves 1 ou limitada atraves
de lifes e continues 2), enquanto no RPG de mesa esse recurso raramente e utilizado.
No mais comum, a falha de um jogador no RPG de mesa o leva a criacao de uma outra
personagem a ser incorporada na trama.
Apesar de terem como semelhanca a chance de continuar no jogo, no RPG de mesa
nao e dada a chance de repetir as escolhas passadas nas quais o jogador tenha falhado
para que ele seja bem sucedido dessa vez, pois que recomeca o jogo a partir de outra
personagem com outra vivencia. E como se em um jogo baseado no classico A Odisseia,
mesmo que o jogador controlando Ulisses falhasse - causando a morte dessa personagem
- ele pudesse continuar o jogo como Telemaco, o filho de Ulisses.
Essa capacidade do jogo prosseguir mesmo com a aparente falha do jogador, no RPG
de mesa, e devido ao fato de que o objetivo nao e o sucesso da personagem, mas a diversao
do jogador. Como foi dito anteriormente, o jogador falha quando deixa de representar
sua personagem e com isso atrapalha o estado de imersao dos outros jogadores.
Isso confere a narrativa uma aparente independencia da personagem. Aparente porque
a narrativa sempre gira em torno da personagem, porem o narrador e capaz de adaptar
a narrativa para prosseguir com outras personagens da mesma forma. A capacidade de
adaptacao, como nos veremos adiante, depende do cenario e das habilidades do narrador
e do jogador, fazendo com que o jogo prossiga ate que as possibilidades de adaptacao se
esgotem.
Os impactos dessa aparente independencia da narrativa sao dois: livres de considerar
a ma fortuna de suas personagens como o fim do jogo, os jogadores sao incentivados
a tomar atitudes dramaticas que reforcam a verossimilhanca da narrativa; depois, essa
independencia aprofunda as nuancas entre os padroes bem e mal sucedidos no jogo,
1E quando o jogador armazena na memoria do jogo um determinado estado do jogo que pode serrecuperado mais tarde para que possa recomecar de onde parou - muito comum em RPGS.
2lifes e continues sao chances para o jogador recomecar o jogo quando perde, geralmente a partir depontos determinados pelo jogo chamados de checkpoints - esse tipo de mecanismo de recomeco tem caıdoem desuso nos jogos atuais.
6.2 DIFERENCAS NARRATIVAS 38
fazendo que o jogador busque experimentar mais, mesmo a custo de arriscar o sucesso de
sua personagem.
Certa vez um personagem do grupo iria ser julgado por um crime que ele nao come-
teu. Entao eu me entreguei, mesmo tambem nao sendo culpado, porque meu personagem
gostava muito deste personagem que estava sendo culpado. Ja fiz meu personagem se ati-
rar de um precipıcio com um monstro, so porque acreditava que meu personagem achava
que a destruicao do monstro era mais importante que a propria vida [Entrevista com
jogador].
6.2.2 Mundo independente
Em um jogo digital, como foi visto, a narrativa geralmente possui dois mecanismos: a
storyline (com possıveis branchs) e as side quests. O RPG de mesa mantem uma estrutura
similar, partindo de uma storyline simples em uma aventura oneshot para storylines
complexas com muitos branchs e side quests em campanhas ou projetos com mais de um
narrador.
Em um projeto de Vampiro: A Mascara de Pernambuco, que envolve varios narradores
e por volta de vinte jogadores, o coordenador explica como funciona a narrativa: uma serie
de plots e ganchos que sao deixados em aberto e os jogadores sao livres para desenvolver
quais acharem melhor e quando acharem melhor [Nota de campo].
A diferenca e que, no RPG de mesa, os narradores desenvolvem os plots da narrativa
que os jogadores nao buscaram interagir. E como se a side quest, uma vez engatilhada,
desenvolvesse-se independentemente do jogador, porem, podendo influenciar e ser influ-
enciada por este. Sendo assim, a ideia de side quest como um laco narrativo separado
que pode ser acoplada a storyline em determinados momentos se dilui e o que o jogador
percebe e uma serie de escolhas que ele deve tomar que vao influenciar o desenrolar da
historia seja com ou sem a sua participacao.
Um exemplo disso pode ser visto da seguinte forma: a personagem do jogador chega
a um pequeno vilarejo em busca de pistas, em determinado momento ela descobre que a
filha do prefeito foi sequestrada; no entanto, ela decide que nao e da sua conta e continua
sua busca pessoal. Mais tarde, ao retornar pelo vilarejo, encontra os moradores realizando
um funeral, que, como a personagem vem a descobrir, e da menina sequestrada que nao
pode ser salva.
Nao e de se estranhar que a maioria dos narradores entrevistados afirmou que procura
trazer essa caracterıstica para o seu jogo, pois o mundo ate certo ponto independente da
personagem aumenta a verossimilhanca da narrativa. Indo alem, a aproximacao da side
quest com a storyline faz com que o jogador reflita sobre quais sao melhores para ele
6.2 DIFERENCAS NARRATIVAS 39
realizar e quais nao, ciente de que isso alterara a storyline de fato, levando-a a padroes
bem ou mal sucedidos de acordo com a sua escolha.
6.2.3 Mundo compartilhado
Uma das caracterısticas mais fascinantes no RPG de mesa e a construcao da personagem
por parte do jogador, que decide tudo sobre a personagem desde a personalidade ate o
seu passado. Nesse ponto, vamos nos deter no fato de que o historico de uma personagem
faz parte efetivamente da ambientacao do mundo do jogo.
Nessa campanha medieval que mestravamos, o Titonos, tınhamos um jogador que fez
uma personagem nobre, no seu historico ele descreveu famılias e feudos, a partir desse
historico criamos todo um reino, um reino inteiro, dentro da ambientacao. Podemos
dizer que boa parte do que o jogo foi e devido a criacao conjunta desse reino atraves do
historico do jogador [Notas pessoais].
Essa capacidade de que elementos criados pelo jogador, no historico de sua person-
agem, reaparecam durante o jogo faz com que ele, em primeiro lugar, tenha uma sensacao
de integracao maior com a narrativa ao ver que o passado e futuro de sua personagem
estao interligados, segundo tenha uma sensacao prazerosa advinda da autoria do historico,
o jogador se identifica mais fortemente como co-autor da narrativa.
ele comecou a construir a ideia a partir do historico do meu personagem no inıcio
do jogo [...] ele fez a historia baseada em pedacos do meu historico, e pedacos feitos por
outros jogadores [...] varias coisas ele pegou do passado e saiu ligando com o presente
assim... que eu dei o gancho de ter cortado a relacao [da personagem] com esse passado,
e ele comecou a voltar, surgir coisas do passado que afetam [a personagem] [...] isso
e muito bom, porque se voce nao cria seu historico, voce nao cria sua personalidade,
nao cria nada... no RPG e diferente, voce cria e se o mestre 3fizer isso [reutilizar o
historico da personagem na narrativa presente] voce vai estar sempre muito envolvido no
jogo [Entrevista com o jogador].
A princıpio, essa caracterıstica nao parece atender a nenhum dos requisitos reconheci-
dos anteriormente, mas influencia basicamente na identificacao que o jogador tem com
a sua personagem e ela, como veremos adiante, e fundamental para a manutencao da
unicidade e do ethos da narrativa.
3Expressao comum para narrador - orinada do ingles: Game Master.
6.3 DIFERENCAS EM RELACAO A PERSONAGEM DO JOGADOR 40
6.2.4 A historia e sobre a personagem
Vimos aqui que o jogador pode usar diversas personagens e que a narrativa se adapta a
personagem atual. Isso porque, por mais que pareca obvio e preciso afirmar, a narrativa
e sobre a personagem e nada mais. Nos jogos digitais, percebemos que o carater da
personagem principal costuma tanto ser estatico quanto evoluir de forma organizada em
pontos claramente definidos. Quando a personagem passa a ser representada no jogo
de mesa, a sua evolucao passa a ser de total controle do jogador, ele decide o que a
personagem e e quando. Essa liberdade e uma das caracterısticas principais de um bom
jogo, de acordo com os entrevistados (tanto jogadores, quanto narradores).
Quanto maior qualidade da narrativa, maior a liberdade dos jogadores. As vezes en-
contramos narrativas ruins, nas quais quando os jogadores tentam fazer algo, sao repelidos
pelo narrador e sao forcados a seguir os rumos da narrativa...[Entrevista com jogador]
E preciso lembrar que em uma narrativa trata-se tanto sobre as escolhas que uma
personagem toma, quanto sobre o motivo que a faz tomar essas escolhas. Portanto o
narrador esta sempre atento para adaptar a narrativa ao que a personagem e em deter-
minado momento, suas motivacoes, carater, necessidades. Por mais que a narrativa tenha
um pano de fundo brilhante, no final das contas a historia deve ser sobre a personagem.
A campanha [...], que foi a melhor, teve comeco, meio e fim. Teve fim, cara, nao
porque os personagens resolveram o plot principal, mas porque eles atingiram seus obje-
tivos, ficaram completos em si, os personagens foram evoluindo, quem queria viver numa
fazenda e criar seus filhos conseguiu... Teve gente que nao, mas no final, digamos, os
personagens fizeram tudo e nao queriam mais nada [Entrevista com narrador].
Esse momento de completude caracteriza tambem o final de uma narrativa dramatica;
de uma forma ou de outra, o conflito acaba e a personagem esta completa, nao lhe resta
mais nenhuma motivacao relativa ao ethos. Essa capacidade de adaptar-se a personagem
faz com que o jogo amplie os horizontes de interacao entre jogador e os padroes da
narrativa. Essa liberdade e mais bem delineada nas proximas secoes, onde entenderemos
como a liberdade do jogador e total e, ao mesmo tempo, sutilmente restrita e conduzida
pelo narrador.
6.3 DIFERENCAS EM RELACAO A PERSONAGEM DO JOGADOR
6.3.1 Historico aberto
Nos jogos digitais, como o roteiro e pre-escrito, a personagem do jogador tem um passado
definido e que nao muda. Ja no RPG de mesa, e comum o jogador preparar apenas um
esqueleto do passado da sua personagem e ir preenchendo os espacos vazios a medida
6.3 DIFERENCAS EM RELACAO A PERSONAGEM DO JOGADOR 41
que o jogo progride. Isso permite ao jogador e ao narrador complementar a narrativa
relacionando fatos atuais com o historico da personagem.
O nome da minha personagem e Eric, ele e albino e por isso sera discriminado pelo
seu povo, visto como sinal de mau agouro [...] aı teve o acidente, todos que estavam la
morreram, menos ele [a personagem] que acabou sendo considerada um demonio, a causa
do acidente. Ele foi abandonado pelo proprio pai e moradores da vila na floresta, ainda
muito jovem, para morrer, mas foi resgato por elfos e passou a viver com eles [...] teve
tambem que ele colocou que, apesar de eu nao ter tido conhecimento, meu pai nao quis
me matar, que na verdade me salvou dos outros moradores e me deixou com os elfos, isso
foi muito [marcante] [Entrevista com jogador].
Essa flexibilidade ajuda diversos criterios narrativos como unicidade, coesao e neces-
sidade. Isso e possıvel porque a historia pregressa da personagem tem influencia direta
sobre suas motivacoes e carater atuais e, como vimos, o drama e a acao advinda do carater
e modificadora desse mesmo carater. Alem disso, em termos de jogo, o jogador e agraci-
ado com uma maior interatividade com os padroes narrativos, pois, alem de modifica-los
com suas acoes, ele pode modifica-los tambem com as decisoes que toma na construcao
do historico de sua personagem.
Isso e comum [alterar o carater da personagem por necessidade do jogo], isso sempre
acontece em algum grau... e as vezes isso frustra o jogador porque o mestre, pelas pressoes
no jogo, faz voce mudar o conceito que voce quer realizar [com a personagem] [Entrevista
com jogador]
6.3.2 Personagem conhecida
Por mais que os jogos digitais hoje em dia procurem passar o contexto da personagem
que o jogador representara no jogo, esse contexto raramente e mais profundo que algu-
mas notas superficiais sobre a ocupacao e um pouco da motivacao da personagem. Ha
jogos inclusive que utilizam da falta de conhecimento do jogador sobre a personagem
como ferramenta da narrativa (como o RPG Knights Of The Old Replubic e o jogo de
acao Breakdown, onde basicamente o jogador comeca o jogo com uma personagem com
amnesia).
No RPG de mesa, de modo geral, o jogador e responsavel por decidir o historico e o
carater de sua personagem; conhecendo-a tao profundamente quanto e possıvel conhecer.
Na verdade, na maioria das vezes, o jogador conhece mais a personagem do que o narrador,
cabendo a este descobrir o carater da personagem a medida que o jogador a representa.
No RPG digital, o jogador e ”apresentado” - se for apresentado - a personagem e ao seu
passado com o decorrer do jogo. Sendo assim, podemos dizer que no geral a personagem
6.3 DIFERENCAS EM RELACAO A PERSONAGEM DO JOGADOR 42
e muito mais familiar ao jogador no RPG de mesa do que no RPG digital.
6.3.3 Identificacao
No jogo de mesa, a personagem e o que o jogador representa de forma que o jogador
sabe tudo o que a sua personagem sabe. Nesse sentido a identificacao do jogador com
a personagem e bem mais ıntima do que ocorre, por exemplo, nos jogos digitais. Essa
identificacao permite que o jogador passe por conflitos bem mais pessoais e sutis no
universo da personagem.
Paulo mesmo, comecou querendo dinheiro, colocou la no objetivo da personagem:
quero ser rico. Depois com o passar do jogo a personagem evoluiu e ja passou a ser:
quero estar bem, com meus amigos. Porque ele viu que sem os amigos... ta [sic] ligado?
Ele nao tinha nada [Entrevista com narrador].
6.3.4 Destino
Vimos que o jogador tem total domınio da personagem, nao so sobre o seu passado como
sobre seu carater e motivacoes. Essa identificacao com a personagem faz com que ele leve
em consideracao conflitos, nao apenas os universais, mas os pessoais tambem. Com isso se
criam possibilidades mais interessantes para a narrativa; esta passa a envolver situacoes
mais complexas em termos emocionais. No lado do jogo, a intimidade com a personagem
aumenta as nuancas dos padroes a medida que o jogador leva em consideracao muito
mais criterios alem de life 4, municao ou novos poderes na tomada de decisao. O jogador
passa a interagir com padroes bem mais sutis, como a psique da personagem e os conflitos
internos que o narrador proporciona a mesma.
Gosto de personagens com objetivos proprios. Por exemplo, ja tive personagens que
queriam descobrir algum misterio de seu passado, ou que queria vingar-se de alguem ou
que queriam simplesmente conhecimento e que tinha prazer em viajar pelo mundo para
adquiri-lo, por pura curiosidade. Alguns tinham objetivos que provinham de sua psique,
por exemplo, tive um personagem que queria redimir-se do mal que havia cometido e
estava arrependido e, por isso, muitas vezes se martirizava [Entrevista com jogador].
O resultado e que o jogador acaba tendo uma maior liberdade na criacao do destino
de sua personagem. Isto e, ao inves de escolher entre uma serie de destinos pre-definidos
como acontece no RPG digital, o jogador e responsavel por definir os objetivos de sua
personagem e representa-la atraves dos meios que a levara ate eles. Em suma, no RPG de
4Nesse contexto, nos referimos a quantidade de dano que a personagem pode receber em combateantes de morrer - e dar game over.
6.4 DIFERENCAS QUANTO A INTERACAO ENTRE NARRADOR E JOGADOR 43
mesa, o narrador confia ao jogador a responsabilidade de criar uma personagem interes-
sante que se encaixe na sua narrativa, e o jogador espera do narrador conflitos igualmente
interessantes para sua personagem.
Alguns jogos permitem uma liberdade semelhante, mas nao atraves do mesmo mecan-
ismo. Nos jogos da serie Elder’s Scrolls, o jogador e colocado diante de um vasto mundo
de possibilidades. O jogo usa de recursos narrativos para que o passado da personagem
seja desconsiderado e o jogador se sinta livre para construir a personagem como queira
a partir das acoes em jogo. Porem, o que se segue e uma nao-linearidade da narrativa
que fere todos os princıpios do drama, pois que todas essas possibilidades na verdade
nada mais sao que dezenas de arcos narrativos semi-independentes que o jogador pode
interagir de forma arbitraria, muitas vezes resultando em uma narrativa fragmentada e
controversa. Apesar de ser considerado um bom jogo (game of the year), e questionavel
sua qualidade como narrativa.
No RPG de mesa, por outro lado, essa liberdade se manifesta de maneira completa-
mente diferente. Narrador e jogador estao constantemente negociando todos os aspectos
do jogo, seja o que a personagem percebe seja como ela age ou o que se desenrolara a
seguir.
6.4 DIFERENCAS QUANTO A INTERACAO ENTRE NARRADOR E JOGADOR
Como foi dito, a liberdade do jogador e negociada com o narrador, basicamente atraves
de dois processos: um de percepcao da personagem e outro de atuacao da personagem.
6.4.1 Percepcao da personagem
Em geral, no RPG digital, a personagem percebe o mundo por completo. Isto e, tudo
o que ela ve e tudo com que ela pode interagir e vice versa. Isso facilita para o jogador
reconhecer os padroes do jogo e os meios de interacao com eles.
No RPG de mesa, como podemos dizer que o jogo todo se passa na imaginacao
dos jogadores, a percepcao da personagem e uma coisa relativa. Nao existe uma mıdia
compartilhada da narrativa em que o jogador possa claramente basear a percepcao da
sua personagem. E tentador considerar a verbalizacao ocorrida durante a partida como
a mıdia compartilhada entre os jogadores, mas isso e um engano. Como Mackay [Mac01]
traz em seu estudo, a fantasia se passa tao somente na imaginacao dos jogadores, e a
comunicacao verbal serve apenas de contextualizacao e reformulacao da fantasia. Muito
diferente de ser a mıdia, o dialogo e na verdade a ferramenta com a qual os jogadores
trabalham a narrativa em suas proprias imaginacoes subjetivas.
6.4 DIFERENCAS QUANTO A INTERACAO ENTRE NARRADOR E JOGADOR 44
De modo mais objetivo, o jogador depende do narrador e vice-versa para definir o que
a personagem percebe do mundo. E uma percepcao negociada. Quase sempre o jogador
assume detalhes do cenario que nao foram descritos pelo narrador, de forma que quando
quer se assegurar de que algo que sua personagem percebeu e de fato sancionado pelo
narrador (que tem o papel de validar a fantasia), o jogador re-visita diversos pontos da
descricao do cenario, inquirindo certos detalhes que a princıpio ele apenas supos ou nao
foi dada a devida atencao.
[Narrador] A luz da tocha so ilumina tres metros a frente. Voces so veem o corredor
sumindo na escuridao.
[Jogador 1] Eu sou elfo, posso ver o dobro da distancia que um humano normal na
mesma luminosidade.
[Narrador] ta [sic] bom, voce o corredor mais a frente se abrindo em um salao.
[Jogador 2] eu vejo isso?
[Narrador] voce nao.
[Retirado de uma sessao de RPG]
Os criterios levados em consideracao nessa negociacao sao: o que o narrador acha que
e essencial a cena; o que o jogador acha que sua personagem estaria prestando atencao
e o que o narrador acha que a personagem do jogador estaria prestando atencao. De
forma que a negociacao gira em torno dos dois ultimos.
A primeira vantagem disso e que o narrador e capaz de selecionar o que a personagem
percebe de acordo com seus criterios e o resultado da negociacao com o jogador. A
vantagem narrativa dessa ferramenta e que o narrador consegue trazer a atencao do
jogador para detalhes do jogo que caracterizam os padroes de interacao e feedback. Assim
como ocorre no jogo digital, onde a mıdia mostra tudo o que a personagem percebe e
pode interagir, acontece tambem de forma diferente no jogo de mesa onde o narrador nao
narra tudo o que ela percebe e pode interagir, mas seleciona os pontos mais importantes
que caracterizam o foco de atencao da personagem e o que ela provavelmente precisa para
interagir.
A outra vantagem e a questao da adaptabilidade. Apesar de o narrador ter a
palavra final sobre o que a personagem percebe, e necessario adaptar o resultado ao
objetivo do jogador tambem. Se o jogador nunca consegue influenciar no processo de
negociacao, ele acaba se frustrando. E aı que a magica acontece: como a narracao nunca
e exaustiva, ou seja, descreve todos os detalhes, e a fantasia se passa na imaginacao, o
narrador pode introduzir novos elementos ao cenario a medida que sao necessarios de
acordo com o objetivo do jogador. Essa flexibilidade e o que permite ao jogador ter a
sensacao de liberdade propria aos jogos e ao narrador manter o senso estetico de coesao
e de verossimilhanca narrativa.
6.4 DIFERENCAS QUANTO A INTERACAO ENTRE NARRADOR E JOGADOR 45
[...] voces chegam no templo e sao recebidos pelo padre Dort. [...] inclusive o padre
Varden esta no fundo da sala com a mao na cabeca [Descricao do templo feita pelo
narrador na primeira visita das personagens, que buscavam aconselhamento junto aos
sacerdotes desse templo].
[...] aı ele chega abre a porta do templo. Voces entram aı vai ate a estante de livros,
que o templo e construıdo numa sala so. Tem os altares, com Mystra, Selune, Tyr. Tem
um negocio com livros, e tem umas cadeiras no meio pra fazer a missa e tal. E uma porta
a direita e uma porta a esquerda [Segunda descricao do mesmo templo pelo narrador na
mesma sessao, momentos depois, quando as personagens retornam ao local, dessa vez
com um dos jogadores, cuja personagem e tambem um sacerdote, buscando encontrar
conhecimento atraves de livros que por ventura existissem no templo].
6.4.2 Acao da personagem
Pelos mesmos motivos citados acima, os mecanismos que levam a personagem a agir a
partir da vontade do jogador sao diferentes nos jogos de mesa e nos digitais. Isso se da
em dois aspectos: objetividade e resultados.
O jogo digital e totalmente objetivo. A dificuldade para a personagem desempenhar
determinada acao e tao somente relativa a habilidade do jogador em manipular a interface
com o jogo. Em termos gerais, o jogador aperta um botao, logo a personagem pula,
empurra um manche e ela vai pra frente, etc. O jogador, considerando que ele saiba como,
tem acesso direto a todas as acoes possıveis para a personagem diretamente, podendo
executa-las ao seu bel prazer.
O mesmo nao se da no jogo de mesa, onde o jogador negocia com o narrador a
acao que sua personagem desempenhara. Varios sao os criterios levados em consideracao
nessa negociacao, mas entre os principais esta, certamente, o criterio de verossimilhanca
- e verossımil a personagem fazer aquilo naquele momento? Somente depois de passado
pelo crivo do narrador e que a acao e considerada. O tempo gasto na negociacao varia
pelo tipo da acao (quanto mais banal, mais diretamente e considerada pelo narrador), o
tipo do narrador (narradores que prezam mais o lado representativo do RPG costumam
cobrar mais de seus jogadores) e o tipo do jogador (jogadores mais experientes costumam
ja saber quais acoes sao cabıveis ou nao, dentro dos criterios gerais, como verossimilhanca,
e especıficos de cada narrador em questao).
Por esse mesmo motivo, nao existe no RPG de mesa um subconjunto finito e delim-
itado do que a personagem pode fazer. Esse conjunto e determinado pela habilidade do
jogador em negociar suas acoes e a capacidade de adaptacao do narrador ao aceitar tais
acoes.
6.5 RESUMINDO AS DIFERENCAS 46
Apos o narrador aceitar a acao do jogador, ele e responsavel de descrever o desenrolar
e resultado da acao. No entanto, nada garante ao jogador que o resultado da sua acao
sera como ele espera. Alem dos elementos aleatorios do jogo, como a jogada de dados,
o narrador tambem pode alterar a ordem dos acontecimentos, introduzindo elementos
imprevistos no decorrer da narracao. E comum o narrador ouvir do jogador o que ele
deseja fazer, para so entao descrever detalhes da cena que, se o jogador soubesse anteci-
padamente, muitas vezes teria escolhido atitude diferente. Isso ocorre primeiro porque o
conhecimento do que se passa na cabeca do jogador antes da cena acontecer de fato aux-
ilia na composicao desta, e segundo porque elementos de surpresa geralmente se dao de
forma inesperada, quando a personagem ja toma sua decisao e e interrompida de repente.
[Narrador] Voces estao em um corredor de uns doze metros de comprimento com uma
porta no final. Me digam aı como esta a ordem de voces.
[os jogadores explicam quem esta na frente, quem esta atras e quem esta no meio na
ordem em que andam em fila]
[Narrador] Beleza, vao fazer o que?
[Jogador que dirige o personagem que esta na frente] vamos ate a porta ver como ela
e.
[Narrador] voces andam seis metros e aı... faz um teste de reflexos 5 aı.
[Mesmo jogador] Que? Que foi que houve?
[Narrador] Faca um teste de reflexos. Um alcapao se abriu embaixo dos seus pes de
repente, vamos ver se voce cai.
[Retirado de uma sessao de RPG].
Essa distancia entre a decisao do jogador e a acao da personagem de fato facilita, para
o jogador, a aprendizagem dos padroes de interacao, que e qual a melhor forma dele
interagir com os padroes do jogo, fazendo com que surjam padroes bem-sucedidos.
Isso e fundamental, porque e atraves da negociacao com o narrador (que personifica os
padroes de interacao, ou seja, como as coisas acontecem) que o jogador aprende a tomar
acoes cada vez mais verossımeis e uteis, que satisfacam o criterio de jogo como um jogo
narrativo.
6.5 RESUMINDO AS DIFERENCAS
Partindo do princıpio de que toda narrativa tem um ethos, o primeiro desafio do jogador
no RPG de mesa e construir uma personagem que permita a apresentacao desse ethos.
Assim, em um jogo aventuresco de capa e espada, o jogador precisa construir um person-
5Nesse contexto, um teste de reflexos representa a tentativa da personagem de escapar de algumperigo imediato por meio da agilidade corporal - seja saltando ou segurando em algo, por exemplo.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 47
agem heroico; em um jogo de drama psicologico, a personagem precisa ter elementos que
ou a deixam atormentada ou que permitam o seu desequilıbrio mais adiante. Em oposto
ao RPG digital, onde o jogador ja encontra essa personagem pronta.
Apos construir essa personagem, o jogador (ou mesmo enquanto a constroi durante o
jogo) enfrenta o duplo desafio de representar fielmente seu carater enquanto altera esse
mesmo carater, a medida em que ela vivencia os conflitos apresentados pelo narrador.
No RPG digital, isso se da pela escolhas de caminhos pre-definidos da narrativa; ja no
RPG de mesa, isso se da pela manipulacao dos arquetipos internos da personagem, suas
motivacoes, desejos e necessidades com o auxılio do narrador.
Finalmente o jogador se depara com um mundo que nao so incorpora sua personagem
como elemento, mas que tambem se modifica constantemente independente dela, com a
possibilidade de explorar situacoes extremas, pois o sucesso no jogo nao esta atrelado ao
que se convenciona sucesso para a personagem (bem-estar, felicidade, paz).
Assim o jogador e livre para configurar e interagir com varios elementos; mas ele assim
o faz com um proposito: atender o ethos, a unicidade, a coesao, enfim, os criterios da boa
narrativa, personificados pelo narrador, figura que exerce seu poder validador da fantasia
compartilhada para ajustar as necessidades de gameplay e estetica.
As diferencas apresentadas nesse capıtulo estao resumidas na Tabela 6.1 sobre a narra-
tiva, na Tabela 6.2 sobre a personagem e na Tabela 6.3 sobre a interacao entre narrador
e jogador. No proximo capıtulo, procuraremos levantar os mecanismos utilizados pelo
narrador para criar e manter essa atmosfera apresentada ate agora.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR
Ate entao temos demonstrado as caracterısticas do RPG de mesa voltado para a narracao
e representacao, mas nem sempre isso acontece. Como indicamos, o RPG e um jogo
de muitas possibilidades de diversao para os jogadores e as caracterısticas apresentadas
no capıtulo anterior, conquanto presentes em todos os tipos de sessoes, so se mostram
em todo o seu valor em sessoes em que os jogadores estao com a sua atencao voltada
aos aspectos esteticos do jogo. Nesse capıtulo, buscaremos definir alguns mecanismos
utilizados pelo narrador para criar, facilitar e manter essa atencao.
Em nossa pesquisa inicial, reconhecemos cinco estruturas recorrentes no processo de
narracao: discricao, simplificacao, meta-narracao, incentivos e ganchos.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 48
Tabela 6.1 Diferencas quanto a narrativaRPG digitais RPG de mesa
os plots geralmente esperam pela os plots sao inerentemente dinamicos, o
interacao do jogador para se narrador nao espera pela interacao do jogador
desenvolverem - se ele nao interagir, mais e decide os resultados dos plots independente
tarde quando voltar ao plot ele estara do deste.
mesmo jeito.
Os criterios de sucesso do jogo estao Os criterios de sucesso do jogo nao estao
atrelados aos de sucesso de personagem, atrelados aos de personagem; a personagem
o sucesso dela e o sucesso do jogador. pode ser extremamente mal sucedida e o
jogador bem sucedido, porque a recompensa
esta na estetica da narrativa e na
representacao.
O mundo e a historia pregressa da o jogador tem liberdade inclusive para criar o
personagem ja estao definidos no inıcio do passado de sua personagem, e com isso ter
jogo, cabe ao jogador seguir com a influencia sobre a narrativa antes mesmo dela
narrativa a partir de entao. comecar como jogo.
Na maioria das narrativas, o centro da E comum existir narrativas sobre as
historia sao acontecimentos que conduzem personagens, que podem inclusive se afastar
a personagem de um ponto a outro. dos acontecimentos previstos e cabe ao
narrador adaptar o rumo as motivacoes do
jogador
6.6.1 Discricao
Uma tecnica bastante comum entre os narradores de RPG de mesa e utilizar o que
chamamos de ”escudo” ou divisoria, que e um conjunto de pelo menos tres folhas de
cartolina ou um material mais rıgido, que e colocado entre o narrador e os jogadores a
fim de esconder o que quer que o narrador faca atras do escudo. Em geral, e atras do
escudo que o narrador deixa as anotacoes sobre a sessao, fichas com as estatısticas dos
inimigos que as personagem enfrentarao e, principalmente, e onde ele rola suas jogadas
de dados. Mesmo sem a utilizacao do escudo, e muito comum o narrador esconder suas
jogadas de dados de alguma forma, nem que seja com a mao concava em cima do dado
rolado.
Essa discricao do que acontece nas jogadas de dados e uma poderosa ferramenta do
narrador para conduzir o andamento da narrativa. E sabido que o narrador possui o
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 49
Tabela 6.2 Diferencas quanto a personagemRPG digitais RPG de mesa
O passado da personagem e definitivo. O passado da personagem pode ser ajustado
para justificar e enriquecer a narrativa.
O passado da personagem nao existe, ou A personagem e definida completamente pelo
nao importa, ou nao e familiar ao jogador. atrelados aos de personagem; a personagem
Ele e apresentado a personagem a medida carater e seu passado.
que joga.
Devido a distancia entre jogador e A identificacao entre o jogador e a
personagem, os temas utilizados para a personagem e mais proxima, o que torna
identificacao sao universais como: bem e comum temas mais pessoais: como cobica,
mal, vida ou morte, etc. orgulho, inveja, amor, paixao, honra, etc.
O jogador pode escolher entre os possıveis O jogador trabalha em um nıvel mais interno,
destinos da personagem, que esta atrelado definindo as motivacoes, o passado e os
ao seu carater definido. Nos jogos em que objetivos de sua personagem, para a partir daı
o jogador tem mais escolhas, o carater da escolher os destinos possıveis junto com o
personagem nao existe ou nao importa. narrador.
poder de alterar as regras ao seu bel prazer (mencionada regra de ouro que vem em todos
os RPGs), mas a alteracao constante das regras pode acabar frustrando os jogadores.
Como vimos, boa parte da diversao do jogo esta em dominar os padroes de interacao,
sendo as regras do jogo parte desse padrao; se elas mudam arbitrariamente, os jogadores
nao conseguirao dominar esses padroes para concluir se suas acoes serao bem sucedidas
ou nao. E aı que entra a discricao na jogada dos dados: a princıpio o narrador pode
alterar o resultado de suas jogadas sempre que quiser e o jogador nunca sabe quando e
como isso acontece.
Cara, sinceramente, quando e um jogo [...] coberto eu faco o jogo pela minha cabeca,
dificilmente eu faco o jogo aleatorio, entendeu? Sabe que eu jogo com divisoria ne? [...]
eu jogo com tres divisorias, ninguem tem a mınima nocao do que ta [sic] atras [...] entao
eu jogo [o dado], agora como eu jogo atras do escudo eu simplesmente jogo o dado po, eu
faco o que eu quiser. Agora se eles [os jogadores] soubessem disso, eles iam me DEPOR,
cara [...] [Entrevista com narrador].
Da mesma forma como o narrador pode alterar as jogadas de dados, ele tambem pode
alterar estatısticas dos inimigos ou a dificuldade de testes que os jogadores precisam
sobrepor (veja o inıcio desse capıtulo). As situacoes mais comuns em que isso ocorre sao:
quando o narrador reconhece a oportunidade de fazer a cena particularmente interessante;
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 50
Tabela 6.3 Diferencas quanto a forma de interacaoRPG digitais RPG de mesa
O que a personagem percebe e O que a personagem percebe e negociada
diretamente percebido pelo jogador, nao ha entre jogador e narrador. O jogador imagina o
distancia de ponto de vista, a imersao que a personagem percebe, por isso o mundo
sensorial e maior. pode ser tao detalhado e complexo quando a
imaginacao deste e o poder de descricao do
narrador.
O jogador atua objetivamente nas acoes da As acoes da personagem sao negociadas
personagem, todos seus comandos sao entre jogador e narrador, levando em
traduzidos diretamente em acao. A consideracao diversos criterios antes de ser
sensacao de interacao e contınua. efetivada. Isso permite a manutencao da
verossimilhanca, mas a interacao e
fragmentada e distanciada.
quando ele quer regular a dificuldade de um desafio; quando ele quer evitar que algo que
possa destruir a narrativa aconteca; e, finalmente, quando ele quer que a narrativa siga
por um determinado rumo.
Alguns exemplos de utilizacao:
O narrador reconhece uma oportunidade comica: O gnomo inventor, person-
agem de um jogador e personagem comica do grupo, diz que quer fazer fogo-grego em
seu laboratorio, o narrador pede um teste oculto de alquimia que ignora e faz com que os
produtos explodissem no rosto do gnomo deixando-o coberto de fuligem e seu laboratorio
impregnado com cheiro de ovo podre bem no momento que a meia-elfa bonitona que o
gnomo paquerava aparecia para perguntar como ele estava.
Regulando a dificuldade do desafio: os jogadores estao enfrentando o vilao que
os tem causado problemas ja de algum tempo, rapidamente por um momento de boa
sorte os jogadores rolam uma serie de jogadas positivas que derrotaria o vilao facilmente,
para evitar o anti-clımax o narrador faz com que o vilao seja mais forte do que ele tinha
construıdo anteriormente, de modo que agora o vilao apos a serie de ataques sorri e diz
assim ”pff, e so isso que voces tem pra me mostrar?”.
Evitando desastres narrativos: apos uma longa busca as personagens dos jo-
gadores chegam ao covil do homem que matou o pai de uma das personagens que desde
entao entrou numa busca de vinganca pessoal que arrastou todo o resto do grupo. De
repente, em uma luta com capangas insignificantes, um dos capangas que estava prestes a
cair tira um resultado extremamente positivo no seu ultimo ataque que causaria a morte
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 51
da personagem vingativa. O narrador que tinha se preparado a semana inteira para o
encontro da personagem com o seu algoz que se revelaria nada mais, nada menos que seu
proprio pai transformado pelas forcas do mal, acaba alterando os resultados dos dados e
descrevendo que a personagem se feriu gravemente no lugar de acabar morrendo.
Conduzindo a narrativa: as personagens dos jogadores ja estavam ha uma sem-
ana cacando um grupo de orcs pelas montanhas adentro, os jogadores estavam tendo o
cuidado de sempre andar escondidos por entre as rochas para nao serem vistos enquanto
perseguiam. Mas o narrador queria que as personagens fossem capturadas e levadas ao
acampamento inimigo onde descobririam que o problema era maior do que imaginavam e
tivessem que fugir a todo custo. Para nao ignorar abertamente a tentativa dos jogadores
de passarem despercebidos, o narrador pede os testes de ”esconder-se” das personagens
em oculto e entao falha um deles propositadamente para justificar terem sido descobertas
pelos orcs e capturadas.
Facilmente se ve a utilidade dessa tecnica em relacao ao aumento da capacidade de
adaptacao da narrativa, evitando que ela siga rumos incontrolaveis. Porem a perfeita
utilizacao dela so vem com a experiencia, pois caso os jogadores percebam que o narrador
constantemente altera o resultado dos dados para que o jogo siga um rumo predefinido,
eles podem acabar se frustrando com a ausencia de liberdade e do carater de imprevisao
que os dados dao ao jogo.
Nos jogos digitais essa discricao e mais poderosa ainda, pois que o jogador esta com-
pletamente submetido ao sistema do jogo, sem poder de apelacao. Falta aos jogos digitais
agora considerar a possibilidade de manipular esse sistema tendo em vista os criterios nar-
rativos. Varios trabalhos provam que e possıvel equilibrar esse sistema com a habilidade
do jogador [And06] ajustando o grau de desafio de forma o jogo nao fique nem muito
difıcil de forma que o jogador se frustre, nem muito facil de forma que o jogador fique
entediado. O que propomos aqui e que junto a esse, outros criterios advindos da narrativa
sejam tambem levado em consideracao nesse ajuste.
Das situacoes apresentadas acima a mais facil de ser considerada em um jogo digital e a
de desastre narrativo. Por exemplo, sempre que o jogador tem que recomecar (carregando
um jogo salvo, por exemplo) a narrativa e sacrificada.
Outra situacao importante de ser considerada e a de conducao da narrativa, que se
destaca quando os jogadores tem liberdade de alterar profundamente o caminhar do jogo
atraves do resultado de determinadas acoes. Assim, a arbitrariedade desse resultado por
parte do jogo digital e uma forma de restricao dessa liberdade, forcando a narrativa a
seguir determinado caminho. Conquanto seja uma forma bem mais sutil do que nao dar
opcao nenhuma ao jogador, tambem deve ser usada com cautela, pelo mesmo motivo do
RPG de mesa.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 52
Simplificacao Durante o jogo, o narrador geralmente simplifica situacoes que nao
possuem valor dramatico. Alguns possıveis exemplos sao: compra de equipamentos,
viagens, estudo e treinamento. Enfim, sempre que durante determinado tempo nada de
interessante vai ocorrer, o narrador simplifica a narracao. Assim, mais atencao e dada
ao que mais afeta as personagens e a trama; de forma condizente com a ideia de tempo
dramatico, onde a trama tem que se desenvolver em determinado ritmo para manter a
atencao e expectativa, no caso, dos jogadores. Claro que se nos exemplos acima o vendedor
de equipamentos fosse dar uma pista importante ou as personagens fossem encontrar algo
que as impedisse de continuar a viagem, a simplificacao ao inves de ajudar, atrapalharia
o tempo dramatico.
[Narrador] A sua esquerda voce ve o vale de Vaasa, tambem coberto de neve com
algumas fumacas saindo ao longe, e voce olha para tras e nao ve seus colegas nao. Agora
o caminho atras de voce e acidentado ne, porque voce comecou a subir a montanha entao
pode ser que eles estejam escondidos nas rochas, alguma coisa assim. Assim como voce.
[Jogador] pelo que entendi, e para eu vasculhar essa area atras de algum
vestıgio de orcs, ou alguma coisa assim...
[Narrador] E, vai continuar?
[Jogador] Vou continuar.
[Narrador] Duas horas se passam... Voce caminhando, certo? Voce esta
ofegante, se nao estivesse frio voce estaria suando. Certo? Voce sente seus ferimentos
doendo muito, seus pes tambem... Voce sente, apesar de voce estar acostumado.
[Retirado de uma sessao de RPG].
Simplificando: o que nao tem muito impacto na narrativa, os jogadores costumam se
expressar em ideias gerais, dando a entender muito mais o que a sua personagem quer fazer
de modo geral do que o que ela esta fazendo momento a momento. O efeito e parecido com
o corte de cenas no cinema, que ajudam a manter a fluencia da narrativa [Com99]. Porem
e preciso ter duplo cuidado na utilizacao dessa tecnica em jogos digitais: primeiro porque
a simplificacao, assim como o corte no cinema, nao pode dar a sensacao de estar faltando
algo entre um momento e outro, e segundo porque se utilizada de forma demasiada acaba
engessando o tempo dramatico e o jogador fica entediado, porque ”nao acontece nada
interessante”.
6.6.2 Meta-narracao
Muitas vezes o narrador complementa a narracao com informacoes que ajudam o jogador
a tomar decisoes. Essas podem ser tanto explıcitas como um aviso, quanto implıcitas
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 53
como uma mudanca no tom de voz. Chamaremos essas informacoes de meta-narracao 6
e podem servir basicamente para: lembrar o jogador de algo que a personagem sabe, mas
ele esqueceu ou aconselha-lo sobre determinada acao ou situacao.
[Jogador] Eu fico imaginando se eu me camuflasse aqui no mesmo estilo do ambiente,
seria mais interessante? Como e um ambiente hostil.
[Narrador] O que tu quer [sic] dizer com camuflar?
[Jogador] Eu tenho um kit de camuflagem.
[Narrador] Olhe, voce nao consegue imaginar nenhuma camuflagem a nao ser uma
capa da mesma cor da rocha, alguma coisa assim.
[Jogador] Mais ou menos isso, se pintar de cor de rocha, meio prata.
[Narrador] Essa camuflagem serve para movimento ou so para voce ficar parado ca-
muflado?
[Jogador] E mais para ficar parado
[Narrador] Entao...
[Jogador] E irrelevante se vou estar sempre em constante movimento.
[Narrador] Exato, a nao ser que voce pare em algum local, esteja fugindo de alguem,
aı a camuflagem ajuda.
[Jogador] Beleza, entao eu continuo.
[Retirado de uma sessao de RPG].
A meta-narracao e uma poderosa forma de convencimento. Como o jogador nao
possui a mesma vivencia da personagem, e comum ele tomar decisoes precipitadas que,
se analisadas sob o ponto de vista experiente desta, seria improvavel que tomasse a mesma
decisao. Por isso, o narrador leva em consideracao o que a personagem sabe e informa
ao jogador sobre detalhes que ele nao considerou; pode sugerir acoes e talvez indicar as
chances de sucesso.
Esse processo ocorre entre o momento em que o jogador expressa o seu desejo de agir
e o momento em que o narrador valida a acao descrevendo seu resultado. Nesse ınterim, a
acao pode ser inclusive descartada. Trazer essa caracterıstica para o jogo digital nos leva
a um grande desafio, porque a grande tradicao dos jogos digitais e a de culto a destreza
manual do jogador. Ele esta a todo instante mexendo o seu avatar para la e para ca no
mundo do jogo. Essa pausa para refletir sobre a acao acaba quebrando o ritmo do jogo,
que passa a ser muito mais um exercıcio de imaginacao e inteligencia do que de destreza.
6A utilizacao do termo Meta-narracao nao tem nenhuma relacao com o conceito Meta-narrativoliterario.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 54
6.6.3 Incentivos
Sob o nome de incentivos, vamos relacionar tudo aquilo que busca incorporar carac-
terısticas de representacao e narrativa no gameplay. Nesse sentido, temos basicamente
dois processos: modelo de carater e recompensas. O objetivo dos dois processos e ajudar
e incentivar o jogador a se manter fiel a sua personagem, representando-a em todos os
momentos.
Modelo de carater e tudo aquilo que atrela o carater da personagem ao gameplay.
Um exemplo disso em jogos digitais e, por exemplo, em Fable onde alguns itens como
armas e armaduras so podem ser usadas por personagens bondosas ou malvadas. No
RPG de mesa, um exemplo classico e a Tendencia da personagem em DD, que segundo
o jogo e ”A character’s or creature’s general moral and personal attitudes”. Basicamente
representada por dois eixos: bem versus mal e ordem versus caos, o jogador pode escolher
qualquer combinacao entre esses dois eixos.
[colocar figura dos eixos da tendencia com as 9 tendencias possıveis para ilustrar]
A tendencia nao so prove as linhas gerais nas quais o jogador representa sua per-
sonagem, como tambem tem vasta influencia no gameplay ; desde efeitos de magias a
interferencia divina, de artefatos magicos a evolucao das estatısticas da personagem. En-
quanto esse tipo de modelo ja pode ser encontrado em diversos jogos digitais, e notoria
a sua simplicidade. Essa simplicidade e reconhecida no DD como uma das principais
caracterısticas que faz muitos jogadores, que prezam mais a representacao, dizer que DD
e um jogo de hack’n’slash.
Outros jogos mais voltados a representacao como os da serie Storytelling da WhiteWolf
utilizam um modelo menos dicotomico, introduzindo o conceito de arquetipos bastante
semelhante aos de Jung e Campbell [CMF90]. Da mesma forma que a tendencia no
DD, os arquetipos influenciam no gameplay, por exemplo, indicando a forma com que o
jogador recupera ”pontos de vontade”, que no jogo sao gastos para obter mais chances de
sucesso ao desempenhar uma acao. Com isso entramos no segundo processo de incentivo,
as recompensas.
Em todo jogo, os padroes bem sucedidos podem ser reconhecidos atraves de recom-
pensas. Assim, toda vez que o jogador acerta ao manipular os padroes do jogo ele recebe
uma recompensa positiva, toda vez que erra, uma recompensa negativa. O mesmo pode
ser feito no jogo da representacao. Como foi dito, nos jogos da linha Storytelling se o
narrador acha que o jogador representou fielmente sua personagem de acordo com seus
arquetipos em momento de conflito, ela ganha pontos que serao uteis mais tarde no
decorrer do jogo.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 55
Quando o narrador valoriza isso... Seja em XP 7 quanto em utilizar aquela repre-
sentacao para dar mais ”caminhos” ”motes” ao jogo. [...] Alguns narradores querem
representacao, mas isso nao da XP, ao menos nao tanto quanto matar... Outras coisas
poderiam dar XP, ou mais XP... Exemplo: em que matar ensina ao Ladrao andar mais
furtivo? Ou abrir melhor uma fechadura? [...] As representacoes, quando ligadas ao que
voce faz, deveriam dar mais XP [Entrevista com jogador].
E claro que o jogador sempre procura repetir a acao que na funcao de feedback lhe
retorna o maior valor [KW04]. Se a personagem do jogador evolui enfrentando monstros,
isso sera so com o que ele se preocupara. Por isso e responsabilidade do sistema do
jogo (e por isso mesmo do game designer) prover uma funcao de feedback que incentive
o jogador a tomar acoes que condizem com o carater da sua personagem. Essa e uma
caracterıstica de suma importancia no jogo narrativo, porque com o feedback correto o
jogador procurara conscientemente representar a personagem, sua sensacao de liberdade
nao sera ferida por so atuar dentro do carater dessa personagem, pelo contrario, ele se
sentira mais bem sucedido quanto mais se manter fiel a esse carater, contribuindo, assim,
positivamente para a evolucao da narrativa.
Mas a recompensa maior para um jogador de RPG de mesa e se ver como co-autor.
E reconhecer quando o narrador valoriza a sua participacao com elementos dentro da
narrativa. Para isso, e preciso entender como funciona essa ”incorporacao” e e sobre o
que trataremos na proxima secao.
6.6.4 Ganchos
Tradicionalmente, no RPG de mesa, ganchos e o que leva as personagens dos jogadores de
uma aventura a outra. Porem, na linguagem da comunidade estudada, o termo assume
uma serie de outras conotacoes que valem a pena serem agrupadas sob o mesmo conceito.
Nessa secao faremos o possıvel para sumarizar as formas de ganchos, reconhecendo a
aplicacao de cada uma delas e como interagem entre si.
6.6.4.1 Quanto a natureza do gancho Gancho de cenario: e tudo o que ha no
cenario que poderia influenciar ou ser usada para influenciar a narrativa de alguma forma.
Como essa definicao e muito generica, tudo o que o narrador descreve e classificado como
gancho, porem ele toma nota e desenvolve somente alguns que acha mais importante. Os
criterios para essa selecao sao: relevancia para a personagem e relevancia para a trama.
As personagens ja estavam hospedadas a algum tempo em uma estalagem e sempre que
7Abreviacao de eXperience Points - que costuma resumir qualquer mecanismo de progressao da per-sonagem baseado em pontuacao.
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 56
la se reuniam para conversar sobre seus feitos eram servidas pelo estalajadeiro e sua filha.
Em determinado momento introduzi nomes para essas NPCs e busquei criar um laco de
intimidade delas com as personagens dos jogadores. Assim, quando bandidos invadiram
a estalagem atras da personagem de uma jogadora, acabaram assassinando o dono da
estalagem no caminho. Isso fez com que os jogadores sentissem a perda e se apiedassem
da filha do homem morto [Notas pessoais].
Um bom narrador sempre mantem nota das principais NPCs que os jogadores inter-
agem, localidades, boatos, etc. Tudo isso e material para ser usado mais tarde, criando
um gancho entre o passado e o presente da personagem, suscitando emocoes a esta e por
conseguinte ao jogador.
Ganchos de historico: o mesmo recurso e utilizado a partir do historico da person-
agem, que foi construıdo pelo jogador. Quaisquer elementos que possam ser resgatados
pelo narrador em um momento posterior, ja durante o jogo, e um gancho de historico.
Historicos bons sao aqueles que na minha opiniao permitem uma caracterizacao boa
do personagem, constroem sua historia e deixam ganchos que podem ser aproveitados pelo
mestre na hora de preparar as aventuras para os personagens dos jogadores [Entrevista
com jogador].
Existem tres criterios para avaliar um historico: quao bem fundamenta o carater da
personagem, originalidade e quantidade/qualidade dos ganchos deixados pelo jogador.
Esse tipo de gancho sao os que provavelmente influenciarao mais a personagem, pois que
sao ganchos formadores do carater da personagem e provavelmente possuem um valor
afetivo muito maior do que outros introduzidos durante o jogo.
Exemplos desse tipo de ganchos sao: famılia, amigos de infancia, objetos, lar, segredos,
eventos que marcaram a personagem, etc.
6.6.4.2 Quanto a utilizacao do gancho Em geral, inicialmente os ganchos estao em
estado latente e se ligam a personagem de alguma forma. Pode ser simpatico ou antipatico
a esta, no sentido do sentimento que ela nutre em relacao a estrutura reconhecida como
gancho. A partir daı e engatilhado um evento que a personagem pode estar ciente ou
nao e cujo resultado pode-lhe ser tanto positivo quanto negativo, daı resulta seus esforcos
no sentido de evitar ou de concretizar esse evento. A forca de um gancho e medida a
partir do quao relevante ele e para a personagem e se reflete diretamente na quantidade
de empenho que ela disponibilizara no decorrer do evento proporcionado por aquele.
Essa e uma forma abstrata de tratar uma estrutura bastante complexa: a motivacao
da personagem. Vimos que o conflito e o cerne da narrativa dramatica, porem este se da
a partir de pontos sensıveis na personagem; se ela e insensıvel aos elementos constituintes
6.6 FERRAMENTAS DO NARRADOR 57
do conflito entao na verdade nao existe conflito. Esses pontos sensıveis sao o que estamos
chamando de ganchos. Vamos a um exemplo:
O jogador cria sua personagem como um jovem aventureiro que busca fama e fortuna,
mas que nutre saudade de seu antigo lar, onde sua famılia espera apreensiva pelo seu
bem estar. Esta configurado o gancho em seu estado latente, que consiste na sua famılia
e seu lar, aos quais a personagem e ligada por simpatia. Em determinado momento
durante o jogo, a personagem ameaca um poderoso polıtico que em retaliacao sequestra
seus familiares e destroi seu antigo lar. O gancho engatilhou um evento que trouxe para
a personagem uma situacao de conflito.
O objetivo final de um gancho e, portanto, proporcionar conflito a personagem.
Qual o conflito e como ele sucedera depende do contexto maior da narrativa. Ganchos sao
por isso mesmo recursos nas maos do narrador, que os utilizam para manter a personagem
atrelada a sua trama.
Isso nos leva pensar que nos jogos digitais as side quests nao deveriam ser disponi-
bilizados baseado apenas em criterios externos (como level 8 ou equipamentos), mas
principalmente em criterios internos (a forca do gancho usado para proporcionar o con-
flito da side quest) da personagem. De forma que se toda a acao em jogo for interligada
por esses ganchos e esses ganchos se relacionam com o carater da personagem, teremos
que esta naturalmente passou de um conflito a outro por necessidade, por forca de seu
carater.
O jogador deve ser incentivado a construir e conduzir a sua personagem deixando
ganchos que o narrador utilizara para introduzir conflitos e tecer a trama da narrativa.
Esse princıpio e basicamente o que permite ao narrador ajustar a narrativa ao destino
escolhido pelo jogador, como citado nas diferencas entre RPG digital e de mesa na secao
anterior.
Enfim, se usado corretamente, e o que permite que o jogador tenha o grau de liberdade
relativa, para interagir com padroes do jogo (o cenario, os ganchos), descobrir padroes
bem sucedidos (que satisfacam o carater) e dominar os padroes de interacao (os conflitos, a
mudanca de carater, o surgimento de novos ganchos). Ao mesmo tempo em que preserva
os criterios narrativos de unicidade (se faltar um gancho nao havera sentido entre um
conflito e outro), coesao (um conflito acontece a partir do gancho lancado por um anterior
e assim sucessivamente ate o clımax e resolucao) e necessidade (cada gancho possui um
valor dramatico para a personagem, de forma que ela atua no conflito por necessidade do
seu carater).
8Tipicamente o que mede a forca ou poder da personagem.
6.7 RESUMO 58
6.7 RESUMO
Nesse capıtulo, vimos que para incorporar os elementos tradicionais da narracao do RPG
de mesa no RPG digital e necessaria uma serie de mudancas de paradigmas. Primeiro, e
necessario modelar o carater da personagem do jogador. Antes de nao ter vida interna,
ou entao ser um mero reflexo do jogador, a personagem deve ser sim construıda como um
ser a parte que o jogador representa.
Esse modelo vai permitir que a narrativa torne-se adequada ao carater da person-
agem, mantendo no seu curso os criterios de unicidade, necessidade, verossimilhanca, etc.
Inclusive adaptando-se as mudancas de carater, que se feitas de forma coerente com o
ethos narrativo, produzira uma narrativa coerente com os criterios do drama.
Como cabe ao jogador definir e conduzir a personagem e seu carater, e necessario que
ele seja incentivado a fazer isso de forma coerente. Para tanto, deve ser dada a devida
atencao na construcao dos padroes de jogo e de interacao relativos a representacao da per-
sonagem, incorporando conceitos como incentivos e meta-narracao. O jogo precisa deixar
o jogador livre para representar sua personagem, porem recompensa-lo positivamente
quando a representa coerentemente ou negativamente quando foge ao seu carater.
E preciso levar em consideracao o publico alvo ao qual o jogo e dirigido, porque como
vimos, para que o jogador possa decidir com mais propriedade, e util haver um espaco
entre o que ele acha melhor fazer e o que a personagem faz de fato. Isso vai de encontro
ao paradigma vencedor na industria desse tipo de jogos que e buscar atingir imersao
atraves do controle absoluto e direto do jogador; quanto mais dinamico e frenetico melhor.
Comenta-se sobre a ausencia de tıtulos de Adventure no mercado - que basicamente sao
pouco dinamicos se comparados a um FPS por exemplo - e os tıtulos de RPG estao mais
para Action-RPGs do que RPGs propriamente dito. Por isso, criar um jogo em que a
maior dificuldade pro jogador nao e se esquivar dos ataques do seu inimigo, mas decidir
qual atitude e mais apropriada ao carater de sua personagem, e de fato, uma quebra de
paradigma.
Finalmente, a utilizacao dessas tecnicas no game design de um jogo digital visa trazer
o foco para padroes bem mais interessantes do ponto de vista da narrativa do que qual
poder o jogador vai escolher no proximo level ; como por exemplo, se ele vai perdoar a sua
mae por nao ter lhe dito que foi adotado, e que seus pais verdadeiros sao os pobres coitados
que sua famılia adotiva oprime. Nesse sentido, o game designer tem as ferramentas para
incorporar esses padroes no jogo dando uma maior sensacao de interacao com a narrativa
para o jogador. Porem, essas ferramentas nao substituem a habilidade artıstica na criacao
do cenarios e do ethos narrativo. Tambem nao aumenta o universo de possibilidades que
os jogos digitais ja possuıam enquanto sistemas, no sentido que a maquina por tras do
6.7 RESUMO 59
sistema ainda calcula caminhos dentro de um universo limitado e considera modelos e
criterios determinısticos. Essas ferramentas tao somente ajudam a esclarecer uma parcela
desse universo que estava passando despercebido. Se o narrador humano do RPG de mesa
utiliza de criterios determinısticos para escolher como conduzir sua historia dentro de um
universo limitado, ainda estamos longe de perceber quais criterios, de fato, sao esses e o
quao limitado e esse universo.
CAPITULO 7
CONCLUSAO
O presente trabalho reune diversos conceitos em um arcabouco para a analise e avaliacao
de jogos narrativos; notadamente, conceitos estruturais - de drama: tres atos, arcos nar-
rativo, conflito, tempo dramatico; ludicos: padroes de jogo, de interacao e de feedback -
e criterios de qualidade - referentes a drama: coesao, unidade, verossimilhanca e necessi-
dade; referentes ao jogo: curva de aprendizado. Esse arcabouco pode e deve ser estendido
para considerar outras formas de narrativa e outros ”prazeres” associados aos jogos em
seus criterios - como delight, fiero e outros.
Esse arcabouco e utilizado para avaliar diversos jogos e projetos de interactive sto-
rytelling, mostrando como e porque eles costumam falhar em atender todos os criterios.
Esse resultado esta de acordo com o pensamento geral da comunidade desenvolvedora
de jogos que, embora usada devidamente promova maior imersao e delight ao jodor, a
narrativa nao combina com gameplay [Aar04]. Procuramos ser o mais simples possıvel
em demonstrar a utilidade e a necessidade de um arcabouco como o apresentado antes
de se buscar criticar ou propor solucoes na area de jogos narrativos.
Em seguida, abordamos o problema da narrativa como jogo de forma inovadora, tanto
na area de jogos digitais, quanto na de interactive storytelling. Utilizamos de metodos
de pesquisa qualitativa para entender o contexto do usuario, i.e., o jogador, na atividade
colaborativa da construcao de um jogo - o RPG de mesa - onde a narrativa integra-
se com o gameplay de forma mais pronunciada. Essas construcoes foram analisadas, e
varias caracterısticas reconhecidas como beneficas para essa integracao foram levantadas e
seus principais mecanismos de atuacao listados. Acreditamos que essas ”licoes” do RPG
de mesa possam ser utilizadas para facilitar o mesmo tipo de integracao de narrativa
com gameplay que acontece nele. Portanto, fizemos o caminho inverso ao comumente
encontrado na literatura, partindo do jogo para a teoria, ao inves da teoria para o jogo.
Essa analise, por ora inicial, revela o potencial do estudo de RPG de mesa na criacao
de jogos digitais. Mas, reconhecemos durante a pesquisa que sua maior potencialidade
esta para os MMORPGs 1 que compartilham diversas caracterısticas com o RPG de mesa
- como varios jogadores, conteudo atualizavel, etc. Principalmente, apontamos o enorme
1abreviacao de Massive Multiplayer Online Role Playing Game, exemplos desse tipo de jogo sao:Ultima Online, World of Warcraft, City of Heroes, etc.
60
CONCLUSAO 61
potencial do estudo de projetos de RPG - como apresentado no Capıtulo 6 - para a criacao
de MMORPGS e mundos virtuais mais interessantes do ponto de vista da narrativa.
Como trabalhos futuros, alem dos supra citados e da melhoria e expansao da pesquisa
qualitativa realizada - ver Capıtulo 2 -, esta a realizacao de experimentos em jogos digitais
que levem em consideracao as questoes levantadas nesse trabalho. Para isso, e preciso:
refletir sobre como o game design resolvera as questoes, analisar as possıveis formas de
implementacao e, principalmente, validar o experimento com jogadores reais como play
testers 2. Somente atraves do envolvimento de usuarios reais e que acreditamos que os
maiores progressos na area serao alcancados.
Por ultimo, acreditamos que a analise apresentada sobre narrativa, narrativa interativa
e jogos e valida, na medida em que auxilia a firmar o terreno comum onde nao so em jogos
como em outras formas de mıdia interativa [Ran05] esses elementos possam ser avaliados
e discutidos.
2Indivıduo que testa a qualidade do jogo - jogando, obviamente - antes que este fique disponıvel emsua forma final
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Este volume foi tipografado em LATEX na classe UFPEThesis (www.cin.ufpe.br/∼paguso/ufpethesis).
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