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CENTRO DE COMUNICAÇÃO E ARTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO
DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL
GEORGIA DA CRUZ PEREIRA
RECIFE
2014
GEORGIA DA CRUZ PEREIRA
DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco como
quesito para a o obtenção do título de Doutora.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho
RECIFE
2014
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439
P436d Pereira, Georgia da Cruz Dispositivo e processo de criação: estratégias narrativas no audiovisual /
Georgia da Cruz Pereira. – Recife: O Autor, 2014. 154 p.: il. Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de
Artes e Comunicação. Comunicação, 2014. Inclui referências.
1. Comunicação. 2. Documentário (Cinema). 3. Crítica cinematográfica. 4. Arte narrativa. 5. Criatividade. I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da (Orientador). II.Titulo.
302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2015-1)
GEORGIA DA CRUZ PEREIRA
DISPOSITIVO E PROCESSO DE CRIAÇÃO: ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS NO AUDIOVISUAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação.
Aprovada em: 12/12/2014
Banca Examinadora
_________________________________________
Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho (Orientador) Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Octávio D’Azevedo Carreiro (Membro) Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Profa. Dra. Cristina Teixeira Vieira de Melo (Membro) Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Profª. Drª Maria do Carmo de Siqueira Nino (Membro) Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Prof. Dr. Silas José de Paula (Membro) Universidade Federal do Ceará
À mamãe e Germana, sempre e sempre!
“Quase sempre, quando falamos de
filmes, não é deles que falamos, e sim
dos andaimes interpretativos que
erguemos em volta deles”,
Jean-Claude Bernardet
AGRADECIMENTOS
A presente tese é algo ainda em curso, algo em continuum, cujo processo de elaboração contou e conta com diversos apoios e auxílios.
Em primeiro lugar, toda a minha gratidão vai para Deus por sua providência em minha vida e por me conceder força, fé e perseverança para chegar até aqui.
Agradeço à senhora minha mãe, dona Maria das Graças, que desde sempre esteve ao meu lado, me estimulou a buscar novos desafios e a desbravar novos mundos. Obrigada por sempre ser meu exemplo!
À Germana, minha irmã querida, companheira de aventuras acadêmicas, experiências de pesquisa e agruras doutorais. Nós duas, cada uma com sua cruz, digo, sua tese, atravessamos bravamente esse deserto do real! Adjuntemo-nos, pois!
A Marcos Santos, amigo-colega-companheiro-gangue, desbravador de processos criativos, de passeios pelas cidades, incursões pelas noites da Várzea e Mustangs da vida.
À Márcia Jácome pelas andanças por Recife, pelas experiências estéticas compartilhadas, pelas muitas gargalhadas juntas. Obrigada!
À Taciana Gouveia pela gentileza e amizades, pelas conversas divertidas, risadas sinceras e conselhos pertinentes. Por sua falsa rabugice fofa!
À Dona Marta, Seu Antônio e Marcos Alessandro, que durante o período em que morei em Recife me adotaram como família.
À Ritinha, estimada colega, muito importante na conclusão desta pesquisa.
Ao Prof. Eduardo Duarte e os colegas do grupo de pesquisa Narrativas Contemporâneas Raquel do Monte, Mariana Nepomuceno, Lylian Rodrigues, Mariana Andrade, Marcelo Costa, Márcia Jácome e Daniel Abaquar pela acolhida na UFPE e por todos os nossos momentos de reunião.
Aos colegas de doutorado Marcos Buccini, Amanda Mansur, Luís Celestino, Juliana Leitão, Natália Flores, Jean Cerqueira, Barbara Gollner
Aos secretários do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE: Luci, Claudinha e Zé Carlos por toda atenção e ajuda durante esses anos todos.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE pelas contribuições e debates durante as aulas.
Aos queridos amigos Fabianny Melo, Simone Faustino, Deise Pequeno, Raquel Carvalho, Guilherme Cavalcante, Lucas Leitão, Callen Leão e André Pereira por compreenderem minha ausência.
Ao professor Paulo Cunha, pelas orientações e conversas.
Aos professores Maria do Carmo Nino e Rodrigo Carreiro por suas contribuições no momento de qualificação desta pesquisa. Pelas sugestões pertinentes e a gentileza da leitura.
Aos professores Silas de Paula, Cristina Teixeira, Maria do Carmo Nino e Rodrigo Carreiro por atenderem ao convite de participar da banca de defesa deste trabalho.
Aos professores e colegas do Instituto Universidade Virtual e do curso de Sistemas e Mídias Digitais da Universidade Federal do Ceará, com quem tenho a felicidade de trabalhar e conviver.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão de bolsa para realização desta pesquisa.
Resumo
A presente pesquisa discute o processo de criação das obras artísticas, seu
modos de estudos e análises, bem como as relações entre os dispositivos
fílmicos utilizados como estratégias narrativas e a questão do processo de
criação no cinema documentário contemporâneo. Ao observar a particularidade
dos filmes-dispositivo, que trazem em si mesmos registros de seus processos,
foi possível formular a hipótese de que para o conjunto de filmes pertencentes
a essa produção é possível sim abordar a obra também como sendo um
documento de seu processo de criação. A partir dos conceitos de dispositivo
como estratégia narrativa de Cezar Migliorin (2008) e da noção de processo de
criação de Cecília Almeida Salles (2008), dentre outros autores, é proposta
uma metodologia de análise específica para trabalhar com filmes cujo processo
de criação está explicitado na própria obra e compõe assim um paradoxo na
imagem. A essa proposição chamou-se Análise Fílmica Processual. Para a
composição do corpus foram escolhidos filmes da produção contemporânea
em que os autores se utilizam dessa instância processual para a formulação de
suas obras e nos quais o processo se faz perceptível, integrando o sentido da
obra. Os filmes analisados são Câmara Escura (2012), de Marcelo Pedroso;
Moscou(2010), de Eduardo Coutinho; Um Passaporte Húngado (2002), de
Sandra Kogut; e 33 (2003), de Kiko Goifman. Esses filmes foram analisados à
luz da proposta metodológica de Análise Fílmica Processual. Foi possível
compreender como os dispositivos fílmicos como estratégia narrativa se
articulam com os processos de criação de modo a possibilitar uma
compreensão do percursos de realização das obras.
Palavras-Chave: Processo de Criação. Documentário Brasileiro
Contemporâneo. Dispositivo Narrativo. Crítica de Processo. Análise Fílmica
Processual.
Abstract
This research discusses the process of creating the artworks, their modes of
study and analysis, as well as the relationships between filmic apparatus used
as narrative strategies and the question of the creative process in contemporary
documentary film. By observing the particularity of the films-apparatus, bringing
on themselves records of their cases, it was possible to hypothesize that for all
group of the films belonging to this production is indeed possible to approach
the film as well as a document of their process of creation. Based on the
concepts of intern film apparatus as a narrative strategy from Cezar Migliorin
(2008) and the notion of creative process from Cecilia Almeida Salles (2008),
among other authors, a methodology specific analysis is proposed to work with
films whose creation process is explicit in the work itself and thus makes up a
paradox in the image. This proposition was called film analysis procedural. To
make up the corpus of contemporary film production in which the authors have
used this procedure for instance the formulation of his works and in which the
process becomes noticeable, integrating the meaning of the work were chosen.
The films analyzed are Câmara Escura (2012), by Marcelo Pedroso; Moscou
(2010), by Eduardo Coutinho; Um Passaporte Húngaro (2002), by Sandra
Kogut; and 33 (2003), by Kiko Goifman. These films were analyzed in light of
the proposed methodology of film analysis Procedural. It was possible to
understand how the filmic apparatus such as narrative strategy articulate with
the creative processes to enable an understanding of the pathways of execution
of works.
Keywords: Process of Creation. Contemporary Brazilian documentary. Narrative
apparatus. Critical Process. Filmic analysis procedural.
Resumen
La presente investigación discute el proceso de creación de las obras de arte,
sus modos de estudio y análisis, así como las relaciones entre los dispositivos
fílmicos utilizados como estrategia narrativa y la cuestión del proceso de
creación en el cine documental brasileño contemporáneo. Al observar la
particularidad de las películas-dispositivo, que traen en si registros de sus
procesos, fue posible formular la hipótesis de que para el conjunto de películas
pertenecientes a esa producción es posible abordar la obra también como
siendo un documento de su proceso de creación. Partiendo de los conceptos
de dispositivo como estrategia narrativa de Cezar Migliorin (2008) y de la
noción de proceso de creación de Cecília Almeida Salles (2008), entre otros
autores, se propone una metodología de análisis específica para trabajar con
películas cuyo proceso de creación está explícito en la obra misma y por lo
tanto compone una paradoja en la imagen. Esa proposición fue nombrada
Análisis Fílmica Procesual. Para la composición del corpus fueron elegidas
películas de la producción contemporánea en la que los autores han utilizado
este procedimiento, con la formulación de sus obras y en los cuales el proceso
se hace perceptible, integrando el sentido de la obra. Las películas estudiadas
son Câmara Escura (2012), de Marcelo Pedroso; Moscou (2010), de Eduardo
Coutinho; Um Passaporte Húngaro (2002), de Sandra Kogut; y 33 (2003), de
Kiko Goifman. Estas películas fueron analizadas a la luz de la metodología
propuesta del Análisis Fílmica Procesual. Fue posible comprender como los
dispositivos fílmicos como estrategia narrativa se articulan con los procesos de
creación de modo a posibilitar una comprensión de los caminos de realización
de las obras.
Palabras-clave: Documental Brasileño Contemporáneo. Dispositivo Narrativo.
Proceso de Creación. Crítica de Proceso de Creación. Análisis Fílmico
Procesual.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
1 SOBRE PROCESSO DE CRIAÇÃO E SEUS ESTUDOS 18
1.1 Introdução ao processo de criação 18
1.2 Criatividade 20
1.3 Estudos de Criação 25
1.4 Crítica Genética 32
1.5 Análise Fílmica Processual: uma proposta metodológica 43
2. DISPOSITIVOS E DOCUMENTÁRIOS 53
2.1 Exercício de taxonomia 53
2.2 O dispositivo e o cinema 60
2.3 Dispositivos e experiência estética 70
2.4 Dispositiv o e documentário brasileiro contemporâneo 74
3 AS IMAGENS E O DEVIR 77
3.1 O olhar e as imagens 77
3.2 As imagens no cinema 79
3.3 Imagem-presente 92
3.4 Imagem-origem 108
3.5 Imagem-matriz 119
3.6 Imagem-cênica 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS 140
REFERÊNCIAS 146
Filmografia – Ficha Técnica 154
13
INTRODUÇÃO
Estudar processo de criação é lidar, acima de tudo, com o inacabado. É
trabalhar com algo que está sempre fluindo e passível de mudanças. Muitas
vezes essas possibilidades de mudanças são ignoradas por quem não se
dedica ao processo de criação devido à temporalidade que muitas das
reinvenções de obras levam para acontecer.
Quando se fala da possibilidade de continuidade da obra, do contínuo,
uma interpretação comum é o imediatismo com que isso acontece. No entanto,
como se trata de um objeto artístico e criativo, essas mudanças podem levar
anos até que aconteçam. Podem, ainda, nunca acontecer. Por isso, elas estão
colocadas na obra como uma potencialidade.
Os estudos de processo de criação tentam entender esse movimento
contínuo, tentam entender os percursos formativos da obra, tentam entender os
elementos que compõem processo e obra, tentam entender as escolhas dos
artistas. Como todo pensamento analítico, a crítica de processo de criação
tende a estabelecer certa ordem e linha de acompanhamento dos múltiplos
raciocínios que acompanham a elaboração da obra.
Os estudos de processo de criação trazem consigo um caráter
metalinguístico. Quando se fala em obras audiovisuais que se realizam a partir
da explicitação do processo de criação, a metalinguagem pode estar presente
na discussão dos elementos ou procedimentos necessários para que se faça
um filme.
Pode-se compreender a metalinguagem como uma opção por fazer uma
obra que se auto-referencia. Essa ação pode vir como tentativa de
compreender o cerne da realização ou mesmo discutir fragilidades,
problematizar etapas produtivas, discutir a ética, a estética, enfim, há diversos
modos de se trabalhar a metalinguagem na obra.
Acerca da noção do que seja metalinguagem, Chalhub (2005) pontua
que a metalinguagem tem a ver com a discussão da própria linguagem com a
qual se trabalha. É utilizar-se desse elemento de modo a fazer reflexões
internas ao seu funcionamento ou se apropriar de características que possam
ter uma relação problematizadora, conceituadora.
14
A função metalinguística, em síntese, centraliza-se no código: é código "falando" sobre código. Façamos um trabalho substitutivo, uma operação tradutora: é linguagem "falando" de linguagem, é música "dizendo" sobre música, é literatura sobre literatura, é palavra da palavra, é teatro "fazendo" teatro.(p.32)
Aqui cabe o complemento à citação acima, posto que estudar
metalinguagem é também estudar o cinema expondo seus modos de fazer
cinema. Essa perspectiva que discute as nuances de sua própria realização,
que olha para si de maneira crítica e tem na sua própria natureza a obra. A
metalinguagem traz consigo uma espécie de espelhamento, em que a obra é
constituída tautologicamente.
Tautologia essa compreendida dentro da perspectiva da arte conceitual
tal como discutida por Kosuth (1975). O artista e autor trazia para dentro do
campo da arte a discussão entre a obra e suas conceituações, idealizações.
Um de seus trabalhos mais conhecidos apresenta uma cadeira, a imagem de
uma cadeira e a palavra cadeira escrita. A partir dessa repetição de formas
simbólicas que remetem à cadeira, há o cerne do reforço da ideia por trás da
obra, de sua significação para além das representações visuais.
O que estava em questão era o processo de idealização, de concepção
das obras, a noção a priori que marca bastante as realizações da arte dita
conceitual. A ideia de uma obra pode ser considerada já como a própria obra. É
possível encontrar relação entre esse pensamento tautológico da arte
conceitual e os pensamentos das obras audiovisuais formuladas a partir de
dispositivos como estratégia narrativa, cujas imagens são ao mesmo tempo
parte da obra e documentos de seu processo.
Numa prática convencional dos estudos de processo de criação, a obra
serve de espelho para a coleta de informações acerca de seu momento criador.
Essas informações serão chamadas de documentos de processo de criação e,
tal como uma flecha, apontam para a obra, mas não a tocam propriamente.
Como obra e documentos de processo são concebidos como partes de um
todo, mas instâncias separadas, a análise se volta aos momentos anteriores ao
de lançamento dessa obra à apreciação pública.
Contudo, ao buscar-se uma aplicação dessa metodologia de trabalho e
desse raciocínio epistemológico às obras audiovisuais, em particular a
15
documentários cuja estratégia narrativa consiste na articulação de um
dispositivo que explicite seu processo de criação, percebe-se que essa
separação entre obra e processo nem sempre é possível. Nem sempre será
necessária também.
Na produção documentária brasileira contemporânea, observou-se uma
recorrência do uso de dispositivos fílmicos como estratégia narrativa. Esses
dispositivos fílmicos são proposições ou formulações que antecedem a
realização do filme e tem por objetivo fazer com que haja filme (COMOLLI,
2008).
Sua aplicação na prática documentária vem como um potencializador de
ações e movimentos não-naturais. O dispositivo articula uma mise-en-scène,
ou melhor, atua como um disparador, um mote para que a cena aconteça. Essa
estratégia suscita uma espécie de jogo de força que transita entre o controle da
proposição e o descontrole das ações decorrentes. (MIGLIORIN, 2008)
Muitos dos filmes que se utilizam desses dispositivos como estratégia
narrativa têm como cerne de suas imagens e como ponto central de sua
realização a explicitação do processo de criação da obra. O processo de
criação da imagem é a própria imagem. O filme passa a só ser possível, em
muitos casos, se o processo se fizer presente na obra.
Os estudos de processo de criação, como será mais bem discutido no
primeiro capítulo, se baseiam na coleta e sistematização de materiais relativos
à criação das obras e que são denominados de documentos de processo.
Esses documentos figuram como elementos de fundamental importância para a
condução desses estudos e são elementos externos à obra.
Contudo, ao observar a particularidade dos filmes-dispositivo, que
trazem em si mesmos registros de seus processos, foi possível formular a
hipótese de que para o conjunto de filmes pertencentes a essa produção é
possível sim abordar a obra também como sendo um documento de seu
processo de criação.
Com essas particularidades nos modos de produção, em que o processo
criativo não somente guia o caminho da obra, mas compõe a própria obra, é
preciso lançar um olhar diferenciado também para as formas de analisar essas
obras e pensar formas de se estudar o processo criativo.
16
É dessa linha de raciocínio que surge o objeto de discussão dessa tese:
um método de análise fílmica e de estudo de processo de criação
particularmente orientado para obras que trazem a explicitação de seus
momentos criadores como aspecto inerente a suas imagens.
Assim, ao longo da tese é apresentado um percurso reflexivo e
epistemológico para a compreensão das questões abordadas acerca do
processo de criação das obras artísticas e seus estudos. Observando as
idiossincrasias dos filmes documentários dispositivos, aborda-se também a
necessidade de estudá-los de maneira diferenciada. Dessa maneira,
estabelece-se uma proposta de análise desses filmes que observe seu caráter
duplo enquanto obra e processo. A essa análise conveio chamar de Análise
Fílmica Processual.
A elaboração dessa tese se deu inicialmente com pesquisas acerca dos
estudos de processo de criação. Desse modo foi possível compreender de uma
maneira geral os modos como as obras e seus momentos criadores são
abordados pela crítica. Assim, ainda no primeiro capítulo são abordadas
questões relativas ao processo de criação na obra de arte, no cinema, as
relações entre imagem e processo. Para este capítulo e para o
desenvolvimento da tese, é preciso que se definam as noções de processo que
estão compreendidas na pesquisa, que servirão de fundamentação teórica,
além de ancoragem epistemológica para o desenvolvimento da pesquisa.
Partiremos dos estudos acerca da criatividade e da lógica da criação,
abordaremos os estudos de crítica genética àqueles que se encarregam de
uma crítica de processo, que ampliam essa percepção, como nas obras de
Cecília Almeida Salles (2004), (2008a), (2008b), (2012), Jean-Claude
Bernardet (2003), seguiremos pelos estudos que abordam os processos de
criação como Ostrower (2009), Baxandall (2005), dentre outros.
No segundo capítulo será trabalhado o conceito de dispositivo de uma
forma geral e também com o conceito aplicado ao cinema e ao corpus,
explorando ainda a noção de filmes-dispositivo. Circundar essa noção de
dispositivo e sua aplicação ao cinema documentário brasileiro contemporâneo
será de fundamental importância para o desenvolvimento de nossa tese em
torno da relação entre dispositivos, processos e narrativas.
17
Estudar filmes-dispositivo, de uma maneira ampla, tem a ver com o
estudo de algo em processo, em fluxo, que está se construindo todas as vezes
que é visto pelo espectador. Mais que isso, ao se analisar a formulação desses
dispositivos, tenta-se entender os percursos trilhados em suas produções, os
conceitos adotados e as regras estabelecidas por cada um desses dispositivos,
que são únicos, formulados segundo a especificidade de cada um dos filmes
com eles elaborados.
Assim, são de relevante importância os estudos acerca do dispositivo
desenvolvidos por Migliorin (2005) e (2008), Xavier (2005) e Parente (2005).
Para uma compreensão da dimensão histórica e conceitual do dispositivo são
de relevante importância os estudos de Baudry (1983), Deleuze (1996) e
Agambem (2005). O dispositivo e sua associação com as produções não-
ficcionais contemporâneas terão como aporte os trabalhos de Comolli (2008);
Lins e Mesquita (2008); Veiga (2008).
No terceiro capítulo são expostas de maneira mais detalhada as
características da proposta metodológica da Análise Fílmica Processual.
Neste capítulo são analisados os filmes Câmara Escura (2012), de Marcelo
Pedroso; Moscou(2010), de Eduardo Coutinho; Um Passaporte Húngado
(2002), de Sandra Kogut; e 33 (2003), de Kiko Goifman.
Essa análise busca compreender na prática como se dá a relação entre
processo de criação e filmes dispositivos, seus modos de organização e a
resultante da percepção do processo de criação nas obras. Há um esforço
analítico para comprovar a hipótese de que os filmes documentários
dispositivos cujas imagens processuais são aparentes servem como
documento de seus próprios processos de criação, congregando em si mesmo
a obra e o devir.
18
1 SOBRE PROCESSO DE CRIAÇÃO E SEUS ESTUDOS
1.1 Introdução ao processo de criação
No website desenvolvido por Cecília Almeida Salles para o projeto
intitulado Redes da Criação1, processo de criação é descrito como:
Percurso sensível e intelectual de construção de objetos artísticos, científicos e midiáticos que pode ser descrito, numa perspectiva semiótica, como movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de idéias novas. Um processo contínuo sem um ponto inicial, nem final. Um percurso de construção inserido no espaço e tempo da criação, que inevitavelmente afetam o artista.
Partindo-se dessa noção de processo de criação, é possível também
traçar um percurso intelectual e sensível acerca dos estudos de processo de
modo a situar o leitor sobre os caminhos teórico-metodológicos possíveis
dentro dessa área de estudos.
Assim, busca-se com o presente capítulo tratar das concepções dos
estudos acerca do processo de criação da obra. Para tanto, trabalhou-se com
uma matriz histórico-conceitual acerca do que vem a ser a criação artística e o
modo de analisar a criação a partir da obra de arte.
Ao se estudar a criação pelo seu viés misto de trabalho criativo e
realização projetual, busca-se compreender as maneiras a que o analista tem
acesso à obra e como pode ser possível traçar um mecanismo de análise
desse processo que mais adiante permita se trabalhar com obras audiovisuais,
mais especificamente documentários.
Como no campo dos estudos de processo de criação, os estudos de
crítica genética tem um pioneirismo formal em tal abordagem, nesta
investigação optou-se por uma apresentação acerca do seu desenvolvimento
teórico-histórico nessa área a fim de se ver como, motivados pelas
multiplicidades de objetos, os pesquisadores desse campo de estudo foram
1O texto citado é parte integrante do website Redes da Criação e está disposto na área de
verbetes do site. Disponível em <http://www.redesdecriacao.org.br/?verbete=36>, acessado em 20 de junho de 2014.
19
expandindo suas perspectivas e permitindo o acompanhamento cada vez mais
vasto de processos criativos.
Prova disso é a necessidade formal de se compreender as dinâmicas de
diversas modalidades de criação, como é o caso das obras coletivas, além das
mudanças de nome do ramo de estudos, que passa a se chamar de Crítica de
Processo de Criação, uma vez que, como será exposto, o termo Crítica
Genética guardava em sua raíz a noção do trabalho com fontes e manuscritos
literários.
É importante destacar o trabalho de Cecília Almeida Salles e seu grupo
de estudos de processo de criação na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Em seu trabalho, a pesquisadora apresenta a visão da
criação não como algo linear e simplificado, mas visto como uma rede de
criação.
Essa noção será bastante pertinente para a concepção de um
pressuposto metodológico que compreenda a natureza multimodal da criação
audiovisual a que se propõe a presente tese. Enxerga-se na criação
audiovisual uma dupla natureza: procedural e criativa.
A síntese dessas naturezas é apresentada nos regimes escópicos sobre
os quais se trabalhará no capítulo analítico, a fim de tentar apresentar como
possível uma análise de processo de criação que tome as imagens como
documentos de processo.
Assim, como modo de conclusão do capítulo, aborda-se as diferenças
entre produção audiovisual e processo de criação audiovisual. Busca-se tatar
das questões relativas ao filme como documento de si mesmo.
A imagem fílmica e o seu devir. Para tanto, algumas questões desde já
são colocadas: quais caminhos podem ser utilizados quando se trata de
analisar o processo de criação de uma obra audiovisual Como funciona a
metodologia da crítica de processo de criação nos casos em que se trabalha
com a obra e seus elementos residuais, e nos casos em que se trabalha
apenas com a obra Como analisar um regime escópico em sua
simultaneidade de imagem e devir De que maneira os filmes-dispositivo
trabalham essa relação
20
1.2 Criatividade
Dentro do campo de estudos dos processos de criação, existem visões
diferenciadas do que seja o processo criativo e sua percepção a partir do
marco teórico que o norteia. Temos vivido uma época em que os processos de
criação têm ganhado muita notabilidade e têm despertado um interesse
crescente em pesquisadores e curiosos de um modo geral.
Pode-se, de certa forma, falar até num certo fetiche em torno do
processo de criação e materiais oriundos dos momentos anteriores à
finalização da obra, ou seja, aqueles momentos que precedem a entrega da
obra ao público. Isso porque um verdadeiro mercado se constitui em torno de
produtos que permitem ao público ter contato com esses materiais da criação:
são dvds, catálogos, livros etc.
Dentro desse contexto, o processo de criação vira objeto de desejo dos
mais diversos públicos por trazer à tona uma dimensão da criação artística até
então pouco acessível ou mascarada. Em parte o mistério em torno dos modos
de concepção e criação da obra se dava por uma valorização da figura do
artista enquanto ser diferenciado e munido de espírito inspirado, magicamente
hábil e subitamente efetivo no seu trabalho.
A criação era tida como algo restrito a poucos eleitos que conseguiam
acessar esse universo inspiracional, seres humanos diferenciados por essa
habilidade metafísica para concretizar as ideias em obras.
Os estudos acerca da criatividade e da concepção artística não são
novidade. Uma vez que em torno da realização de uma obra sempre orbitou a
curiosidade em entender os seus modos de feitura, bem como sistematizar
seus processos, quebrando com a aura do artista divinamente inspirado. Um
dos autores que vão tratar dos elementos que compõem a relização de uma
obra é Maurice De Wulf (1914), que discute a epistemologia do processo de
criação.
Para o autor, o processo de criação de uma obra de arte traz consigo as
noções de projeto e preparação. Ao contrário do que o senso comum faz crer,
na concepção da obra de arte, o ato de inspiração é só um dos momentos do
21
processo de criação da obra, não sendo condição sine quae non para a sua
realização, é, antes, uma das etapas de sua concepção.
Com os estudos sobre as obras de arte e a compreensão da atividade
artística como um ofício passível de sistematização, a crítica passou a apontar
que há, sim, um momento de inspiração do artista, mas que ele não atua
sozinho. O processo de criação de uma obra envolve tanto a fase de
concepção, quanto a fase de materialização.
A obra existe na cabeça do artista, como ideia, como ideal diante da existência da materialização sensível a que seu talento lhe direciona. Existem assim dois momentos na produção de uma obra de arte: a formação ou a concepção da ideia, e sua exteriorização ou sua execução. Sem a concepção a obra seria incoerente; sem a execução, ela não sairia do mundo das ideias, ela permaneceria estranha ao mundo real. (DE WULF, 1914)
2
Essas concepções acerca dos modos como a criação atua na dinâmica
de relação com a criatividade e sua organização de atuação é reiterada por
Paul Valéry(1990) quando aborda o processo criativo poético. Valéry (1990)
aponta que na criação artística existe uma parcela daquilo que ele chama de
deformações espontâneas, que se referem ao caráter invencionístico, ao
potencial criador das ideias do artista.
Esse potencial não atende a uma ordem de acontecimento ou se
comporta segundo regras de conduta, surge naturalmente. Ao aspecto
ordenador, o autor denomina de ato consciente, uma vez que é a partir desse
ato que o artista consegue apontar o que deseja fazer e como pretende
realizar.
Em resumo, na obra de arte estão sempre presentes duas constituintes: primeiro aquelas das quais não concebemos a geração, que não podem se expressar em atos, ainda que possam ser modificados posteriormente por meio de atos; segundo, aquelas que estão articuladas, que puderam ser pensadas. Há em toda obra certa
2 Tradução livre da seguinte citação: “L'oeuvre existe dans la tête de l'artiste, comme idée,
comme idéal, avant d'exister dans les matériaux sensibles où son talent l'incarne. Il y a donc deux moment dans la production d'une oeuvre d'art: la formation ou la conception de l'idêal, et son extériorisation ou son exécution. Sans la conception l'oeuvre serait incohérente; sans l'exécution, elle ne sortirait pas du royaume des idées, elle demeurerait étrangère ao mondo du réel.”
22
proporção dessas constituintes, proporção que desempenha um papel considerável na arte. (VALÉRY, 1990, p.203)
3
René Passeron (2004), partindo dos estudos sobre a poética e a estética
de Valéry (1990), apresenta uma forma de compreender a criação nomeada de
poiética. Com uma matriz teórica nas pesquisas de filosofia da arte, ela se
coloca como um modo de pensar sobre a criação. Seu raciocínio propõe uma
problematização do conceito de obra, da noção de criador e da pertinência de
abordagem dos estudos da poiética se desenvolverem a partir da antropologia.
Segundo Passeron (2004), o raciocínio da poiética difere dos modelos
de abordagem que a história da arte ou mesmo a semiótica (partindo dos
estudos de Kristeva em relação à semântica) vão desenvolver. Essas áreas,
segundo o autor, apresentam uma análise que estaria mais na dimensão da
abordagem estética e, para ele, “no fluxo da obra, o objeto da poiética está
acima da obra, o objeto da estética, abaixo” (p.10).
Para o autor, a problematização do conceito de criação e de obra é
fundamental para se pensar nos modos de compreender o que ele chama de
condutas criativas. Isso porque Passeron (2004) enxerga a criação como um
fenômeno e a obra como um acontecimento. Para ele, a poiética “é,
simultaneamente, ciência e filosofia da criação.” (p.10).
O autor acha necessário que se estabeleça uma diferença entre
produção e criação, isso porque a criação vai pressupor um trabalho não
mecanizado.
No quadro geral da produção, afirmamos que a criação se caracteriza por três diferenças específicas: 1. Cria-se um objeto único (mesmo que seja feito como protótipo para ser multiplicado); 2. Esse objeto toma a posição de um “pseudo-sujeito” (Dufraenne). Tem-se com ele relações de pessoa para pessoa. Ficaríamos de luto com seu desaparecimento. 3. Esse objeto criado (e, a fortiori, a conduta que lhe deu existência) engaja seu autor. Existem inúmeros exemplos deste compromisso, tanto na reprovação quanto no sucesso. (PASSERON, 2004, p.12)
3 Tradução livre da seguinte citação: “En resumen, en la obra de arte están simpre presentes
dos constituyentes: primero aquellos de los cuales no concebimos la generación, que no pueden expresarse en actos, aunque puedan ser modificados a continuación por actos; segundos, aquellos que están articulados, han podido ser pensados. Hay en toda obra cierta proporción de esos constituyentes, proporción que desempeña un papel considerable en el arte.”
23
Nessas etapas apresentadas por Passeron (2004), tem-se a dimensão
da criatividade como ponto diferencial do tipo de obra que se apresenta no
processo criativo. As condutas poiéticas, modo como ele chama as ações de
criação, vão ter ainda uma correlação com o momento histórico em que a obra
é feita, o homem e sua produção em conssonância com seu tempo. “Conforme
os séculos, conforme as artes, conforme as culturas, os temas poiéticos
variam, assim como sentido ou o valor atribuído à própria criação.”
(PASSERON, 2004, p.14). Essas ideias vão se assemelhar ao tipo de
metodologia proposta por Michael Baxandall (2006) que discutiremos mais
adiante.
Em seus trabalhos sobre criatividade e processo de criação, Fayga
Ostrower (1987) corrobora com as ideias de De Wulf. Fayga discute que a
criatividade é uma pontencialidade do ser humano e enxerga no projeto
artístico uma necessidade de realização desse potencial.
Contudo, ela aponta para uma noção menos distanciada da arte em
relação aos demais trabalhos humanos, indicando ainda para uma ampliação
da noção de criatividade como sendo algo que não se deve restringir ao
trabalho artístico.
As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana, e unicamente o trabalho artístico é qualificado de criativo. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam. (OSTROWER, 1987, p.5)
Para a autora, a criação está relacionada com dois níveis coexistentes
para a concepção da obra: o nível individual e o nível cultural. O ato criador
está envolvido naquilo que ela chamara “ser sensível-cultural-consciente”.
Nessa noção, a componente sensível diz respeito às faculdades criativas, às
ideias e idealizações. Aqui entra a dimensão sensível do artista, sua
sensorialidade.
24
Articulado a isso temos o eixo cultural, que vê no artista um ser
culturalmente formado e que age dentro da cultura. Por cultura, Ostrower
(1987) pontua a seguinte definição: “são as formas materiais e espirituais com
que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e
cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a
geração seguinte” (p.13).
Quanto à porção consciente de que trata a autora, ela reside na
intencionalidade do ato criador. Dada a capacidade intelectual e criativa dos
seres humanos, o ato criador vai significar um ato intencional e calculado
dentro das suas formas e possibilidades. Isso inclui ainda um nível de
consciência individual enquanto ser social.
A criação do artista está permeada de valores individuais e seu contexto
cultural, suas percepções acerca do seu tempo, e das formas de realização das
obras. A cultura em que o artista está imerso vai interferir e colaborar para a
sua formação como indivíduo, a sua experiência em sociedade, a construção
de seus afetos e elaboração de seu “padrão referencial básico”. É a partir da
elaboração desse referencial que o indivíduo se coloca no mundo, vivencia e
interfere na cultura e sua obra carrega esse valor político, mesmo que
inconsciente, de se relacionar com as formas culturais em torno de si.
Esse referencial comporta concordâncias e discordâncias com o modelo
cultural em que se está imerso, fazendo com que tudo que o artista produz
tenha uma correlação com sua visão de mundo, estímulos seguidos na obra,
técnicas empregadas, materiais utilizados, elaboração dos seus conceitos etc.
O indivíduo talvez discorde de certas aspirações formuladas pelo contexto cultural; mesmo assim, é desse contexto que ele partirá para a crítica. Podem as aspirações serem frontalmente contestadas, sobretudo quanto a metas de vida e caminhos de realização humana – e em nossa sociedade não faltam exemplos – mas é em função do contexto e com possibilidades que surgem no contexto, que a contestação se dá. E se dá a partir de formas latentes no contexto. O homem desdobra o seu ser social em formas culturais. O estilo, por exemplo. O estilo não se refere só a uma determinada terminologia. Abrange a maneira de pensar, de imaginar, de sonhar, de sentir, de se comover, abrange a maneira de agir e reagir, a própria maneira de o homem vivenciar o consciente e as incursões ao inconsciente. O estilo é forma de cultura. Seria de todo impossível preordenar as formas estilísticas, inventá-las, tão impossível quanto seria inventar formas de cultura ou modos de viver. (OSTROWER, 1987, p. 101-102)
25
1.3 Estudos de Criação
Michael Baxandall (2006) trabalha numa interpretação dos percursos
gerativos da obra após sua conclusão. Em sua concepção, as obras seriam
soluções a questões colocadas no mundo, se relacionam com o contexto
histórico e cultural em que estão inseridos o artista e o problema. Com essa
abordagem, Baxandall (2006) estabelece uma perspectiva metodológica
possível para a análise das obras de arte e a abordagem dos elementos
relativos à criação dessa obra.
No método de Baxandall, é preciso levar em consideração a lógica
histórica da obra para que a crítica não caia nos problemas de representação
deslocada no momento da análise. Assim, a história serve aqui duplamente:
como um marco no trabalho do artista e um norte de fundamentação da
construção do pensamento da crítica. A execução das análises à luz dessa
contextualização sócio-histórica será chamada pelo autor de “crítica
inferencial”. Esse modelo de análise visa a criar questionamentos em torno da
obra que levem o crítico a não mais apenas inferir a esmo sobre os
significados, métodos e concepções, mas que sirvam de apoio na construção
de um argumento, e o façam deixar de lado questões como “qual a intenção do
artista?”.
O autor deixa claro que sua percepção da análise não tem por objetivo
estabelecer explicações irrefutáveis sobre os quadros/obras. O que sua crítica
inferencial apresenta é mais um caminho possível dentro das diversas formas
de se apresentar uma análise de obras artísticas. "Nós não explicamos um
quadro: explicamos observações sobre um quadro. Dito de outra forma,
somente explicamos um quadro na medida em que o consideramos à luz de
uma descrição ou especificação verbal dele." (p.31)
Essa explicação sobre a qual Baxandall (2006) trata é ancorada na
descrição dos objetos artísticos a partir da junção entre conceitos técnicos e
impressões que a obra pode causar em quem a descreve.
Toda explicação elaborada de um quadro inclui ou implica uma descrição complexa desse quadro. Isso significa que a explicação se torna parte de uma descrição maior do quadro, ou seja, uma forma de descrever coisas nele que seriam difíceis de descrever de outro
26
modo. Mas, se é verdade que a "descrição" e a "explicação" se interpenetram, isso não nos deve fazer esquecer que a descrição é a mediadora da explicação. (p.32)
A explicação será feita a partir dos moldes teleológicos por entender que
questões relativas às ciências humanas precisam considerar a dimensão dos
seus realizadores, não deixando de lado o propósito presente naquela obra
identificamos os fins de uma ação e reconstruímos seu propósito com base em fatos individuais, e não em fatos gerais, mesmo que esteja claro, ainda que de modo implícito, que nos baseamos em generalizações, talvez mais moderadas que fortes, sobre a natureza humana. (BAXANDALL, 2006, p.45)
O que nos parece interessante na pesquisa de Baxandall é a sua
sistematização dos elementos envolvidos na elaboração da obra, sua análise
com aspecto reelaborativo dos caminhos da criação da obra. Para nossa
pesquisa, que visa como objeto o estudo de imagens de processo de criação
presente em obras cinematográficas e considerando as próprias obras como
documentos de seus processos, essa perspectiva de trabalhar partindo da obra
será bastante útil para a construção de nosso percurso metodológico.
Chama atenção, incluso, a abordagem inicial ser sobre a construção de
uma ponte, um elemento estrutural cotidiano. Trabalhar com um artefato não
artístico permite ampliar as premissas da análise a outros tipos de produções
criativas que não se restrinjam a produções fundadas nas belas artes. É
possível, assim, racionalizar instrumentos analíticos que sirvam de base geral
para análises de processo de criação e que ainda permitam trabalhar com os
níveis de especificidade particulares a cada obra.
Partir da obra nessa perspectiva tem a ver com trabalhar a
intencionalidade de sua criação, percebendo-a como resultante de movimentos
propositais e como resposta a determinadas questões. Para a crítica
inferencial, essa obras serão os objetos de interesse. No caso abordado pelo
autor, as obras são livros, e
partimos deles para inferir as ações humanas e o instrumento que os fizeram do jeito que são - aspectos tratados pela linguagem por conceitos como o de "projeto de desígnio"[design] -, mas isso em
27
geral não é mais que uma forma de pensar sobre a natureza do objeto que vemos. (BAXANDALL, 2006, p.46)
Isso porque, na perspectiva do autor, não se pode retomar integralmente
os momentos que compõem o processo de elaboração de uma obra já dada
por finalizada. Contudo, abordando-a segundo suas características, materiais,
data em que foi dada como finalizada, dentre outras questões, é possível traçar
um raciocínio que aponte para aspectos desse processo. "Tendemos, portanto,
para uma forma de explicação que busca compreender o produto final de um
comportamento mediante a reconstrução do objetivo ou intenção nele contido"
(p.47).
Dentro dessa perspectiva, a obra ocupa um espaço de solução
encontrada como resposta a um problema que o artista se propõe a resolver.
Essa solução, a obra, é feita segundo um contexto histórico. Isso deve ser
levado em consideração no momento em que se trabalha com a explicação
descritiva da análise visando à reconstrução dos momentos e ações que
compuseram a elaboração da obra de arte.
Mas a reconstrução não refaz a experiência interna do autor; ela será sempre uma simplificação limitada ao que é conceitualizável, mesmo que opere numa estreita relação com o quadro em si, o que nos proporciona, entre outras coisas, modos de perceber e de sentir. Nossa atividade será sempre relacional - tratamos das relações entre um problema e sua solução, da relação entre o problema e a solução com o contexto que os cerca, da relação entre nossas interpretações e a descrição de um quadro, da relação entre uma descrição e um quadro. (BAXANDALL, 2006, p.48)
Dentro do enfoque que Baxandall apresenta para a análise, o primeiro
ponto a ser destacado é a descrição da obra como modo de apresentação do
objeto de análise. A essa descrição é possível fazer questionamentos acerca
dos elementos causais da obra. Essas questões serão os porquês e comos
possíveis dentro da descrição como modo de se chegar ao problema original,
ou perto do que se pensa ser esse problema. A ideia aqui é entender quais as
possíveis causas a motivar a formulação dos efeitos, ou seja, respostas que
compõem a solução.
Nessa fase é possível indagar acerca do porquê da existência da obra e
quais elementos dentro da descrição narrativa servem para apontar essa
28
resposta. Outra parcela de indagação é ainda possível e necessária: por que a
obra tem a forma que tem e o porquê das escolhas de seus elementos,
técnicas, materias etc.
Em seguida, é preciso pensar nas condições gerais e nas condições
específicas de elaboração da obra. Nessa dinâmica de pensamento,
estabelece-se ainda o repertório informacional a que o artista teve acesso
naquele contexto histórico e estabelece-se quais fatores eram desconhecidos
ou ignorados. Ao correlacionar as respostas aos questionamentos, há a
possibilidade de compreensão dos acontecimentos e recursos inerentes à
criação da obra.
Para sintetizar esses procedimentos de análise, Baxandall (2006)
concentra os procedimentos em dois conceitos: o Encargo e a Diretriz. O
Encargo diz respeito à dimensão geral do problema, que demanda foi posta
para ser atendida. Já a Diretriz tem a ver com dimensões específicas da
questão geral. Quais eram as demais necessidades, restrições, contexto
histórico envolvidos no problema e no universo passível de elementos que vão
compor a solução.
Como forma de estabelecer um esquema gráfico que aponte para a
correlação de todos esses fatores como influenciadores no alcance da solução,
Baxandall estabelece o que ele chama de Triângulo das Reconstituições.
Figura 1 – Modelo visual adaptado do Triângulo das Reconstituições apresentado
por Baxandall (2006)
Termos do Problema
Cultura
Descrição Objeto
29
Na base desse triângulo, tem-se o Encargo, que o autor designa como
termos do problema. Tem-se também a Diretriz, que é chamada de dimensão
da cultura. No topo do triângulo tem-se a descrição que está diretamente
relacionada com a obra e os elementos que correspondem ao encargo e à
diretriz.
De fato, o que denomino de crítica inferencial funda-se na possibilidade de descrever o objeto a partir de quaisquer dos ângulos, na medida em que se criam relações entre eles. A descrição e a explicação se interpenetram constantemente. (BAXANDALL, 2006, p.72)
Interessante observar que essa concepção da obra como solução de um
problema é muito difundida nos trabalhos com viés metodológico de artes
aplicadas e projetuais, em que são estabelecidos procedimentos a serem
adotados para se chegar à solução desejada. Autores como Bruno Munari
(2008) vão se valer de terminologias bem aproximadas para trabalhar as ideias
de requisitos necessários dentro do processo de concepção de um projeto,
como se pode observar na figura abaixo.
30
Figura 2 – Reprodução do esquema visual da metodologia projetual de Bruno
Munari (2008; p.66)
Munari se utiliza de um problema trivial para exemplificar seu modelo de
concepção criativa. Esse modelo pode ser dividido em três etapas:
31
problematizações e hipótese, prática, e finalização. A base do modelo surge da
direção problema que gera solução. Isso porque, para o autor, "o problema não
se resolve por si só; no entanto, contém já todos os elementos para a sua
solução, é necessário conhecê-los e utilizá-los no projeto de solução."
(MUNARI, 2008, p.41).
Assim, ele usa o problema que consiste no preparo de uma refeição. A
partir desse problema posto, ele lista o que, dentro da fase de problematização
e hipóteses, pode ser identificado. Tem-se a Definição do Problema (DP), em
que se estabelece mais precisamente o que é o problema de fato. Isso permite
que se elenquem as características do problema (CP), que no exemplo de
Munari são Arroz verde com espinafre para quatro pessoas.
Em seguida, acontece a fase de recolhimento de dados (RD), que serão
avaliados na fase seguinte, de análise de dados (AD). Nessa fase, existe um
questionamento acerca das práticas anteriores, se elas existem, como foram
feitas. Com isso em mente, tem-se a fase criativa (C), norteada pela dinâmica
de transformação e criação. Com as ideias traçadas, define-se materiais e
tecnologias (MT) com os quais trabalhar.
Na etapa prática, tem-se as dimensões da experimentação (E), criação
do modelo (M), verificação(V) e desenho construtivo (DC). Todas essas fases
vão auxiliar na materialização/realização efetiva do objeto que, se aprovado,
será apontado como a solução ao problema inicial.
Se observarmos atentamente a metodologia que Munari (2008)
apresenta para a elaboração de projetos de design é possível encontrar
algumas aproximações com os estudos de Baxandall (2006). O método de
Munari parte do problema ao qual o método de Baxandall busca chegar. E,
como veremos mais adiante, os elementos que Baxandal (2006) elenca como
necessários à concepção de uma análise possível guardam certa relação de
equivalência com o modelo de Munari (2008).
É preciso ter em mente que Munari (2008) tem uma explicação linear da
concepção criativa, como seu esquema permite ver, enquanto Baxandall (2006)
é estrutural e bem mais complexo, com múltiplas entradas a partir de cada
elemento do sistema.
32
Como nosso objetivo com este estudo é estabelecer uma metodologia
possível para a análise do processo de criação a partir das imagens fílmicas
em que esse processo está explicitado, nos é de grande valia ter ambos os
percursos metodológicos. Isso porque ambas as propostas, somadas aos
demais conceitos que abordaremos no presente capítulo, nos servirão de
balizadores para a fase de análise, nos permitirão estabelecer critérios para
compreender os agenciamentos possíveis no campo das imagens de processo
de criação sobre as quais nos debruçaremos.
Todas essas questões podem parecer distanciadas dos estudos de
processo de criação e se aproximarem muito mais de uma crítica ou sociologia
da arte. Contudo, é importante perceber que o método apresentado por
Baxandall, ao adotar a modalidade teleológica de análise e juntá-la à
perspectiva histórica, constrói algo muito semelhante, ao menos
conceitualmente, com o trabalho desenvolvido pelos estudos de crítica
genética, ponto teórico que abordaremos a seguir.
1.4 Crítica Genética
Quando falamos dos estudos do processo de criação, nos referimos a
um vasto campo que abrange desde os estudos de criação das belas artes, tais
como pintura e escultura, passando pelos processos pré-projetuais de artes
aplicadas como arquitetura, design e moda, e abrangendo ainda compreensões
de trabalhos mais dinâmicos, cuja ideia de criação é pouco explorada, como é
o caso do cinema e da produção audiovisual.
Os bastidores das produções artísticas e de artes aplicadas começaram
a se tornar populares com as publicações de cadernos de artistas, de
escritores e, bem posteriormente, com a divulgação de materiais de bastidores,
os famosos making ofs.4
4 Exemplo de modos de apresentação desses materiais está nos dvds que formam a trilogia
das cores, da Krystof Kiéslowski. Os filmes A liberdade é azul (1993), A igualdade é branca (1994) e A fraternidade é vermelha (1994) trazem uma considerável quantidade de material extra com fotos, extratos de cenas, comentários e filmagens de bastidores. Outro exemplo disso é o box de dvds da série O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Nos extras o diretor, que é co-roteirista do filme, expõe como foi o seu processo de adaptação da obra homônima de Mário Puzzo para a escritura do roteiro. Com riqueza de detalhes, é explicado o
33
Concebidos inicialmente como um material fruto de uma resultante dos
trabalhos realizados, esses cadernos e cenas de bastidores eram feitos a partir
do reaproveitamento dos rascunhos, escritos, cortes de cenas, modelagens,
enfim, das aparas dos projetos. A sua preservação e catalogação eram feitas
posteriormente ao término das obras.5
O levantamento desses materiais, muitas vezes, consistia num trabalho
hercúleo e numa verdadeira composição de um mosaico, em que peças
surgiam e iam sendo encaixadas da melhor maneira possível dentro dos
percursos gerativos de sentido dos artistas e processos analisados. Esse
trabalho de levantamento e sua posterior análise, principalmente no que
consiste em materiais de processo de criação de autores literários, deu corpo a
todo um campo de pesquisa acadêmica conhecida como Crítica Genética.
A crítica genética surge como campo de estudo pelos idos dos anos 60
do século XX, quando um grupo de pesquisadores germânicos do Centre
National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França, se vê diante da
necessidade de catalogar a obra do poeta alemão Heinrich Heine. Para dar
conta da catalogação desse material, foi necessário se debruçar sobre
questões metodológicas relativas aos modos de arquivamento e classificação
desses escritos.
A esse grupo, ao longo dos anos 1970 e 1980, outros grupos foram
sendo somados. Todos eles congregados em torno das questões relativas aos
trabalhos com manuscritos de alguns poetas como Proust, Zola, Valéry e
Flaubert.
É nessa fase que há uma passagem de um projeto específico para uma problemática geral, com a criação de um laboratório próprio no CNRS: Institut des Textes et Manuscrits Moderns (ITEM), dedicado exclusivamente aos estudos do manuscrito literário (SALLES, 2008a, p.12).
No Brasil, os estudos de crítica genética tem como marco o ano de
1985, com a realização do I Colóquio de Crítica Textual: o Manuscrito e a
método de recorte das páginas do livro e sua junção a folhas de caderno que permitissem uma descrição da cena a ser adaptada. 5 No livro Gesto Inacabado (1998), Cecília Almeida Salles trabalha detalhadamente sobre essas obras
compostas de registros de processo e analisa os trabalhos Ignácio de Loyola Brandão.
34
Edição, realizado na Universidade de São Paulo (USP). O colóquio, organizado
por Philippe Willemart, teve como resultado a criação da Associação de
Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), e posteriormente tem-se a
criação da revista Manuscrítica, em 1990, para servir de veículo de divulgação
dos estudos na área.
A partir de meados dos anos 90, os estudos genéticos estão vivendo uma época de exploração e alargamento de horizontes. O tempo de reflexões sobre os princípios fundamentais e a legitimidade da disciplina abriu espaço para a ação transdisciplinar da crítica genética. (SALLES, 2008a, p.13)
Nesse primeiro momento, a transdisciplinaridade se dava pelas
abordagens teórico-metodológicas possíveis a partir das práticas dos
pesquisadores. Com isso, tem-se uma ampliação do espectro de autores
analisados e modos de realização das pesquisas.
Com o avanço que as pesquisas no campo do manuscrito literário vão
possibilitando, temos paulatinamente não somente um aumento na quantidade
de autores trabalhados, mas também uma ampliação dos possíveis eixos de
análise, saindo da exclusividade do texto poético e literário, e passando às
mais diversas formas de produções culturais e artísticas. Essa ampliação de
paradigma vai ser o marco de atuação dos estudos no século XXI, além de
uma perspectiva transartística, expressão cunhada por Daniel Ferrer e da qual
Salles (2008a) se apropria.
Assim, o surgimento do ramo de estudos da crítica genética baseia seu
trabalho nos materiais deixados pelo artista no processo de criação da obra.
Com isso, uma das perspectivas que marcam o início dos estudos de Crítica
Genética é o devir da obra durante o trabalho realizado pelo artista na sua
execução.
A obra de arte é resultado de um trabalho caracterizado por transformação progressiva, que exige do artista investimento de tempo, dedicação e disciplina. A obra é, portanto, precedida por um complexo processo, feito de ajustes, pesquisas, esboços, planos, etc. Os rastros deixados pelo artista de seu percurso criador são a concretização desse processo de contínua metamorfose. (SALLES, 2008a, p.25)
35
O trabalho do crítico genético reside na junção, catalogação e exame
desses materiais com o objetivo de se compreender melhor os caminhos
trilhados pela criação. Atua ainda na desmistificação da obra como algo que já
é apresentado pronto. Os estudos lançam luz a esse processo de
materialização, auxiliam na dinâmica de entendimento do fazer artístico. “O
nome Crítica Genética deve-se, portanto, ao fato de que essas pesquisas se
dedicam ao acompanhamento téorico-crítico do processo da gênese das obras
de arte.” (SALLES, 2008a, p.26)
É importante perceber como essa prática dialoga com a crítica
inferencial da arte apresentada por Baxandal (2006). Se comparados, os
trabalhos de crítica genética apontados por Salles (2008a) e os de Baxandall
(2006) apresentam pontos de ligação particularmente interessantes. O que se
vê é que ambos terão como ponto de partida a obra tida como finalizada.
Contudo, seu diferencial está nos tipos de questionamentos que cada proposta
oferece.
Como abordado anteriormente, Baxandall (2006) busca com seu método
se aproximar da questão ou problemática para a qual a obra figura como
resposta. Para chegar a essa questão, o autor trabalhará com determinados
fatos e informações que remontam ao problema. Essa perspectiva visa mais a
chegada do que o caminho.
Já na crítica genética, a atenção reside muito mais nos caminhos
percorridos, seus detalhes e peculiaridades. Sua questão norteadora não é o
quê motivou a obra, mas sim o como a obra foi criada.
A crítica genética analisa os documentos dos processos criativos para compreender, no próprio movimento da criação, os procedimentos de produção e, assim, entender o processo que presidiu o desenvolvimento da obra. O crítico genético pretende tornar o percurso da criação mais claro, ao revelar o sistema responsável pela geração da obra. (SALLES, 2008a, p.28)
Para chegar a esse ponto, o estudioso recorre a manuscritos,
rascunhos, versões parciais, arquivos, fotos, gravações, enfim, tudo que possa
ser reintegrado para a compreensão do processo criativo do artista. Esses
materiais vão constituir o que é chamado de documentos de processo, pois
constituem um indício da criação artística.
36
Assim, como apontado na explanação acerca da crítica inferencial, o que
difere a crítica genética em relação a outras áreas de estudo que se utilizam
desse tipo de documentação, como a história da arte por exemplo, é o tipo de
abordagem trabalhada. Os documentos não figuram em obras per si nem são
considerados de maneira isolada para a análise da obra. O que se tem é uma
perspectiva relacional que visa a entender os perscursos para os quais eles
apontam.
Durante algum tempo, os trabalhos realizados pelos críticos genéticos
tinham como objeto de estudo os processos da criação literária e seus
documentos de processo eram pautados em manuscritos, diários, cadernos,
rabiscos, listas de palavras etc. Tudo que estivesse correlacionado com a
natureza mesma da obra que estava em criação.
Um primeiro passo no sentido de uma expansão dessa crítica se deveu
à ampliação das possibilidades materiais dos documentos de processo.
Passou-se a entender que os artistas não se limitavam a um tipo de linguagem
ou material em seu trabalho criativo. O manuscrito já não seria a única fonte de
pesquisa, seriam admitidos outros tipos de materiais. “Processo e registro são
independentes da materialidade na qual a obra se manifesta e independentes,
também, das linguagens nas quais essas pegadas se apresentam.” (p.30).
Com a evolução dos estudos na área, cada vez mais linguagens e
suportes materiais foram sendo aceitos. Fotos, gravações em áudio, vídeo,
gravuras, esquemas visuais, pedaços de tecidos, recortes de jornais, croquis
etc. Gradativamente começou a haver também uma abertura para as obras
cujos processos seriam pesquisados. Isso partia da compreensão de que
outros ofícios, que não só a literatura, eram tão passíveis quanto as obras
literárias de terem seus processos estudados e detalhados.
Tendo em mãos os diferentes documentos deixados pelos artistas, ao longo do processo, o crítico estabelece nexos entre os dados neles contidos e busca, assim, refazer e compreender a rede do pensamento do artista. (...) Uma abordagem cultural em diálogo com interrogações contemporâneas, que encontra eco nas ciências que discutem verdades inseridas em seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais. (SALES E CARDOSO, 2007a)
37
Assim, a crítica genética foi se abrindo para filmes, pinturas, esculturas,
peças teatrais, fotografias. Essas obras vão exigir, contudo, uma abordagem
específica que contemple seus modos de produção e até mesmo a
compreensão dos rastros deixados, cuja sistematização talvez possa vir a ser
mais complexa que o trato que se tinha com os trabalhos de natureza literária.
Essa faceta expandida dos estudos de processo de criação traz
mudanças não apenas nos tipos de documentos aceitos e de obras. Ela traz
consigo, inclusive, uma mudança conceitual. A denominação de crítica
genética, quando trata dessas abordagens mais ampliadas e cujos objetos não
são mais literários somente, dá lugar ao termo crítica de processo de criação.
Além da ampliação dos objetos, essa mudança de nomenclatura aponta para
uma dimensão mais voltada aos rastros criativos deixados pelo artista e ao
estudo do processo em si, tendo a obra como referencial.
Aqui, também, outra noção passa a ser mais clara dentro do
estabelecimento conceitual da área: a noção de obra entregue ao público. Essa
noção se apresenta como um desdobramento da própria ideia de que as obras
não são definitivas, imutáveis. O percurso sobre o qual os documentos de
processo auxiliaram na compreensão é visto como algo que não se encerra,
que está passível de ser retomado a qualquer momento pelo artista. Com isso,
a obra não é mais tida como versão final, antes é pensada como a versão
apresentada ao público naquele momento específico sob condições
específicas.
A mudança conceitual permite um aclaramento das perspectivas teórico-
metodológicas que vão nortear os trabalhos desenvolvidos nessa área. Não se
trata de analisar produtos, a análise é feita em torno dos movimentos criativos
dos quais a obra é resultante. A crítica de processo se interessa pela jornada
do artista e da obra até o momento em que ela é apresentada ao público.
Algumas obras, incluindo todo o potencial que as mídias digitais oferecem, parecem exigir novas abordagens. Ao mesmo tempo, muitas dessas obras exigem novas metodologias de acompanhamento de seus processos construtivs e não somente a tradicional coleta de documentos, no momento posterior à apresentação da obra publicamente, isto é, a abertura das gavetas dos artistas para conhecer os registros das histórias das obras. Muitos críticos de processo passaram a conviver com o percurso construtivo de processo em tempo real. Algumas obras
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contemporâneas (mas não só) geram, assim, novas metodologias para abordar seus processos de criação, enquanto que os resultados desses estudos mudam, de alguma maneira, os modos de abordá-las sob o ponto de vista crítico. (SALLES, 2008b, p.17)
Outra diferença mais clara que esse reposicionamento conceitual
apresenta diz respeito aos modos de organização e níveis de interferência no
processo da obra de que trata Cecilia Almeida Salles (2008b) ao abordar a
crítica de processo de criação. A autora traz a noção de processo organizado
em redes de criação.
As redes de criação são formadas pelos elementos e documentos que
atuam na realização da obra. Os componentes arranjados em forma de rede
permitem uma visão menos cartesiana e mais complexificada do trabalho
criativo. Não existe uma hierarquia ou ordem de prioridades fixas da atuação
desses elementos na composição do objeto: um emaranhado
concomitantemente ativo se estabelece.
O conceito de rede traz ainda uma visão expandida do processo de
criação, o que colabora para um aprofundamento do crítico na hora de tecer
suas análises. A autora ainda aponta que tal conceito
parece ser indispensável para abranger características marcantes dos processos de criação, tais como: simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não-linearidade e intenso estabelecimento de nexos. Este conceito reforça a conectividade e a proliferação de conexões, associadas ao desenvolvimento do pensamento em criação e ao modo como os artistas se relacionam com seu entorno. Contudo, não podemos deixar de mencionar a força da imagem da rede da criação artística que nos incita a explorá-la. (SALLES, 2008b, p.17-18)
O pensamento em rede acompanha não somente uma mudança de
termos, mas uma mudança paradigmática no que diz respeito à condução dos
estudos dos fenômenos de um modo geral. Ele aponta para ações menos
causais e mais relacionais, menos cartesianas e mais fluidas.
Pensar em redes de criação abre margem para uma compreensão
rizomática dos processos e demonstra como é difícil se chegar à origem de
algo. Os meandros do sistema tornam-se mais interessantes do que encontrar
as pontas de um referido pensamento original que leve a uma obra única e
finalizada.
39
Isso porque a ideia de inacabamento, segundo Salles (2008b), está
intimamente ligada à ideia da rede. Ao compreender o processo como uma
rede, há inclusa a ideia de fluxo, mobilidade, de mudança.
Primeiro porque a rede pressupõe interações dinâmicas e múltiplas, que
muitas vezes não podem ser acessadas em sua totalidade ou complexidade.
Em segundo lugar, porque o caráter rizomático da rede permite a elaboração
de novos elos e a criação de novas redes.
Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse - seja um romance, uma peça publicitária, uma escultura, um artigo científico ou jornalístico – como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado. Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe é inerente, há sempre uma diferença entre aquilo que se concretiza e o projeto do artista que está por ser realizado. Sabemos que onde há qualquer possibilidade de variação contínua, a precisão absoluta é impossível. Nesse contexto, não é possível falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca, no fluxo da continuidade, é sempre incompleta e o próprio projeto que envolve a produção das obras, em sua variação contínua, muda ao longo do tempo. O que move essa busca talvez seja a ilusão do encontro da obra que satisfaça plenamente. (SALLES, 2008b, p.20)
Esses novos elos e essas novas redes muitas vezes não são declaradas
ou sabidas pelo artista, quiçá chegam ao conhecimento do analista. Elas abrem
ainda possibilidades para futuras alterações nas obras, o lançamento de
versões reeditadas, por exemplo. Aqui cabe uma referência também ao
trabalho de Gilles Deleuze (2006) acerca dos conceitos de repetição e
diferença.
Os filmes podem ser vistos pelo público como obras estabilizadas, obras
"acabadas". Isso se dá pela sua materialidade, pela aparente finitude que seu
enredo apresenta. Contudo, os filmes também podem ser compreendidas como
obras que trazem em si esse inacabamento, ou seja, essa possibilidade de
modificação.
É possível constatar essa relação entre processo, obra e inacabamento
com o lançamento de reedições de filmes com diferentes montagens, em que
se aponta a montagem do diretor, a montagem do fotógrafo ou mesmo a
inclusão de cenas que no momento de lançamento do filme haviam sido
retiradas. O que acontece muitas vezes com essas reedições é uma mudança
40
de ordem não somente material, mas também conceitual, significante, que
altera em muitos casos a percepção que se tinha do filme anteriormente.
As redes da criação propostas por Salles (2008b) pensam os elementos
envolvidos no processo de maneira interativa, integrada, atuando de maneira
cooperativa. Essas integrações são chamadas de pontos de interação e são
esses pontos de interação que, quando compreendidos, servirão de norte para
uma possível compreensão do processo. “Ao pensarmos o paradigma da rede
estamos pensando o ambiente das interações, dos laços, da
interconectividade, dos nexos e das relações que se opõem claramente àquele
apoiado em segmentações e disjunções” (p.24).
Os processos artísticos serão trabalhados de maneira integrada com os
seus contextos, com sua variedade de documentação de processo e
observando-se as diversas etapas percorridas pela obra.
Na construção de uma obra estão envolvidos outros elementos variáveis
que não são puramente artísticos, mas que acabam também por integrar a
rede tais como o repertório do artista, sua história de vida, o contexto histórico
em que está inserido, o acesso a materiais, prazos, recursos financeiros.
Sob esse prisma, é interessante pensar que a rede da criação se define em seu próprio processo de expansão: são as relações que vão sendo estabelecidas, durante o processo, que constituem a obra. O artista cria um sistema, a partir de determinadas características que vai atribuindo em um processo de apropriações, transformações e ajustes, que vai ganhando complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas. (SALLES, 2008b, p.33)
No caso dos filmes-dispositivo, pode-se observar que a própria
formulação do dispositivo traz uma associação com essa ideia da rede da
criação. Isso porque ao estabelecer um dispositivo, o artista/cineasta já define
sua metodologia de criação, já define os mecanismos que estarão em vigor
para ativação e desativação dos dispositivos nessa atuação como estratégia
narrativa.
A atividade do crítico de processo de criação tem como objetivo
estabelecer nexos entre esses pontos de interação que compõem a rede da
criação. São os sentidos atribuidos a essas interações que possibilitarão a
compreensão da lógica do pensamento criativo e como cada documento de
41
processo se encaixa com os demais. O pensamento que norteia a análise se
baseia na dinâmica dos processos e interações, e considera que a “forma
nominal associada a processos é o gerúndio” (SALLES, 2008b, p.36).
Assim, dentro da possibilidade metodológica que a crítica de processo
de criação apresenta, é importante para esta pesquisa destacar duas questões:
a primeira diz respeito ao papel que os documentos de processo terão para
esses estudos. Como já se apresentou anteriormente, os arquivos, fotos,
filmes, sons, rabiscos, rascunhos, diários, anotações, enfim, a diversidade de
elementos deixados como rastro da criação da obra serão considerados como
documentos de processo. Como são rastros, aqui existe uma contiguidade com
a obra, em se perceber nos documentos percursos trilhados pela obra, mas
existe também a noção de afastamento. A obra e os documentos são facetas
distintas dentro do processo.
A segunda tem a ver com o modo de trabalhar com esses documentos,
que é pautado na reunião dos elementos, sua contextualização e numa
articulação que relaciona os elementos de maneira geral e específica pelos
seus graus de interação com a obra. Nesse modo de ação, há de se levar em
conta o potencial de transformação inerente à condição de algo que se dá de
modo contínuo, algo que não é fixo ou estanque.
Relativo ao que vem sendo feito pela crítica de processo no campo da
criação audiovisual, Cecilia Salles (2010) apresenta algumas trajetórias de
estudos realizados na área. As pesquisas que tomam as obras audiovisuais
como partida para compreensão do processo vão trabalhar com diversas
possibilidades de análise que são tomadas com base nos documentos a que se
tem acesso.
São trabalhos que vão partir do roteiro, de fotos de cenas e de
bastidores, materiais de making of ou comentários feitos pela equipe de
produção, ou ainda críticos discutindo os elementos da obra e seu processo.
Todos esses materiais deixam evidente um interesse em tornar o processo
aparente e colocá-lo em discussão. O trabalho com cada um deles terá suas
particularidades e possibilidades.
Ao se trabalhar com roteiros, por exemplo, é possível compreender a
obra do ponto de vista da tradução intersemiótica presente no processo. Para
42
esse tipo de trabalho é possível um estudo comparativo entre versões do
roteiro; entre essas versões e versões do filme a cada etapa de filmagem ou
montagem.
O filme funciona como disparador de agenciamentos entre os elementos
de sua produção tais como equipe de profissionais técnicos, atores, decisões
de câmera, modificações no texto, linhas narrativas ressaltadas. “No roteiro, o
filme já está sendo feito. Trata-se de um mapa, com contornos ainda não
totalmente definidos, que carrega algumas tendências do futuro filme.”
(SALLES, 2010; p.173)
Dentro das formas de se interagir com o processo de realização
audiovisual, a autora aborda ainda a profusão de conteúdos em DVDs e
materiais disponíveis atualmente para quem se dedica a essa linha de
pesquisa. Ela realiza então um mapeamento de materiais a fim de indentificar
as formas como o processo é apresentado nessas mídias.
Como resultado desse mapeamento, destaco o encontro de trailers, cartazes dos filmes, cenas cortadas (que são chamadas, de modo atraente, cenas inéditas), erros de filmagem, efeitos especiais, fotos de filmagem, entrevistas com diretores, roteiristas e atores, filmes comentados, diferentes montagens, making ofs de boa qualidade informativa, ou seja, documentários de processo de criação. Há ainda documentários que incluem a filmagem. (SALLES, 2010, p.177)
O levantamento realizado pela autora demonstra como o conhecimento
acerca do processo de criação das obras interessa cada vez a mais pessoas, e
também a facilidade cada vez maior de se ter acesso a esse tipo de material.
Esses materiais permitem traçar algumas categorias de abordagem: diferentes
tipos de montagem, registro de making of, documentários sobre os processos
de criação, os boxes de DVDs de um artista e seus materiais de processo,
comentários sobre documentos de processos, situações em que o processo é a
obra, registros de obras processuais, documentários como espaço de
experimentação.
As categorizações de processos possíveis que Salles (2010) aponta vão
ser importantes para compreender de que forma a crítica de processo de
criação pode ser instrumentalizada para um estudo das obras audiovisuais. O
que se percebe é que em todas as formas de estudos desenvolvidos e
43
apresentados pela autora reside uma perspectiva transmidiática muito
enraizada e determinante para o tipo de análise desenvolvida.
A análise do processo de criação dos filmes dependerá do acesso aos
roteiros, às entrevistas, às cenas eliminadas etc. A compreensão do processo
só é possível se houver atravessamento entre os meios e essa formulação do
processo da obra dependente desses materiais que são acessados.
Mesmo quando trabalha as situações em que o processo é a obra, a
análise é desenvolvida a partir da correlação de elementos externos ao filme.
As visões que a crítica vai oferecer para os estudos de processo de criação
audiovisuais vão ser, contudo, limitantes do ponto de vista da hipótese que a
presente pesquisa aborda.
Não se está aqui querendo atestar uma irrelevância do uso desses
materiais para compor a rede de criação do filme. Longe disso, a importância
desse tipo de análise e a sua eficiência são bastante reconhecidas, e foram o
ponto de partida para a situação aqui apresentada.
O que se pretende, no entanto, é justamente pensar um modo de análise
do processo de criação tomando a imagem fílmica como obra e processo.
Investigar, assim, o que do processo criativo está presente na imagem e como
é possível utilizar essa explicitação para compreender os caminhos trilhados
pela obra, numa perspectiva estética, incrustada na imagem.
1.5 Análise Fílmica Processual: uma proposta metodológica
A proposta metodológica aqui pretendida visa a abordar a dinâmica do
processo criativo presente nas imagens documentárias.
Em 2011, ao concluir a pesquisa de mestrado intitulada O DISPOSITIVO
E SEU PROCESSO: ANÁLISE DOS FILMES 33, FILMEFOBIA E SEUS
DIÁRIOS DE CAMPO, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal do Ceará, uma das questões
levantadas pelo trabalho dizia respeito à possibilidade hipotética de se abordar
o processo de criação dos filmes documentários a partir dos próprios filmes e
44
que os tomasse como documentos desse processo. É essa questão que se
apresenta como norteadora da presente tese.
Com base nos trabalhos de Gilles Deleuze (1990), para quem o filme
deve se bastar como instrumento para sua compreensão, formulou-se a
questão inicial: é possível analisar os processos criativos dos filmes
dispositivos documentários tomando por base o próprio filme Dessa questão
para a investigação acerca dos modos de realizar essa análise, surgiu a
necessidade de se propor um instrumento teórico-metodológico. Isso porque,
após extensa pesquisa bibliográfica, observou-se que os modelos de análise
existentes não contemplavam a natureza da hipótese que se apresentava.
Os trabalhos que tratavam dos estudos de análise fílmica, por muitas
vezes, optavam pela abordagem de conteúdos ou uma unidade analítica que
se baseia apenas na superficialidade dos mecanismos fílmicos. Já os modelos
relativos aos processos de criação, eles se ancoravam na dimensão material
externa às obras, como é o caso da crítica genética e da crítica de processo de
criação apresentadas por Cecilia Salles (2008a), (2008b) e (2010), e os
trabalhos da crítica inferencial de Michael Baxandall (2006).
Uma vez que a hipótese de pesquisa desta tese aponta para uma
abordagem diferenciada dentro dos estudos de processo de criação e da
análise fílmica, tornou-se necessário estabelecer uma metodologia de análise
de processo de criação que contemple a especificidade da realização fílmica e
a possibilidade de se trabalhar com a criação audiovisual tomando a obra como
realização e devir.
Por sua própria natureza escópica, o audiovisual pode ser compreendido
esteticamente como algo em permanente elaboração. Aqui não se faz
referência apenas ao campo do documentário, mas ao audiovisual de uma
maneira geral. Isso porque a cada vez que um filme é assistido e reassistido,
há nele uma relação de retorno e reelaboração, um fluxo entre suas imagens.
Esses trânsitos entre elaboração e reelaboração apontam para uma
perspectiva de experiência mesmo com as imagens, a formação gradativa
dessas imagens na tela e a formação de seus sentidos que se completam junto
ao espectador.
45
Sergei Eisenstein (2002), ao estabelecer os paradigmas acerca da sua
montagem intelectual já trabalhava com essa integração entre espectador e
obra, levando em consideração o referencial de cada espectador para que os
sentidos da narrativa apresentada nos filmes pudessem se concretizar. Aqui,
contudo, as imagens ainda escondem seu processo de feitura.
Tomando Ismail Xavier (2008) como referência, pode-se trabalhar com o
audiovisual e o cinema sob dois regimes de imagens: a opacidade e a
transparência. O cinema nasce sob o manto da opacidade da forma com os
trabalhos dos irmãos Lumière. A opacidade diz respeito à explicitação dos seus
mecanismos, à revelação da câmera e dos modos de se fazer cinema.
Num extremo, há o efeito-janela, quando se favorece a relação intensa do espectador com o mundo visado pela câmera – este é construído, mas guarda a aparência de uma existência autônoma. No outro extremo, temos as operações que reforçam a consciência da imagem como um efeito de superfície, tornam a tela opaca e chamam a atenção para o aparato técnico e textual que viabiliza a representação. (XAVIER, 2008, p.9)
Com o passar do tempo, a opacidade vai dando lugar à transparência,
ao apagamento, à sublimação dos mecanismos de realização fílmica. Ela se
aproxima mais da ideia de que o cinema é composto num processo de mágica
e mistério, ao qual faz alusão frequente Georges Mèlies.
Ele se vale da transparência como ferramenta para a criação de suas
sobreposições, efeitos visuais e efeitos especiais. A transparência é
frequentemente associada às práticas de ficção e entretenimento, contudo ela
pode ser vista como uma marca também da maior parte dos documentários, a
dissimulação da câmera é adotada.
Quando movimentos como o cinema verdade começam a incorporar a
presença da câmera como elemento estético narrativo, a opacidade é chamada
de volta à cena. Essa opacidade de que se vale o cinema verdade, inclusive,
posteriormente se tornará símbolo de uma estética documental: câmera na
mão, interferência na imagem e no áudio, som direto, olhar direcionado para a
câmera, produções sujeitas ao acaso.
Essa estética documental passa inclusive a ser utilizada em trabalhos
ficcionais que buscam se valer do estatuto do documentário e da legitimidade
46
associadas a esses modos da imgem. Em outros trabalhos, por vezes, o que
se percebe é um intencional mescla dos gêneros.
A opacidade é ainda aqui um recurso mais retórico incorporado à
narrativa fílmica, mas que muitas vezes não problematiza a compreensão de
seu processo, não apresentando uma discussão metafílmica. Pode-se dizer
que os trabalhos que motivam a presente tese se diferenciam justamente pelos
seus modos de produção e por incorporarem o processo como elemento
discursivo de suas imagens.
Nos filmes a serem analisados, percebe-se essa natureza metafílmica e
também a dupla atuação da imagem como parte da composição fílmica e
apresentação da imagem em devir. Na análise perceber-se-á que essas
imagens apontam não só para o vir-a-ser do filme, mas para o vir-a-ser dos
percursos trilhados para que se tenha filme. Elas estão intrínsecamente ligadas
ao dispositivo estabelecido como estratégia narrativa.
Essas imagens constroem um duplo na imagem: o filme e seu processo.
A imagem apresentada dá conta da síntese das duas formas numa só,
porporcionando ao espectador uma dupla experiência com o filme.
Assim, dada a sutileza estética presente nessas imagens, os modelos
que se ligam a elementos externos ao filme podem até ser úteis, e o são, para
que se trabalhe parâmetros de análise, contudo não alcançam a dinâmica
processual explicitada no quadro.
Daí a iniciativa de se estabelecer um conjunto metodológico específico
de análise que aqui será chamado de Análise Fílmica Processual. Essa
proposição metodológica se baseará, grosso modo, numa composição entre os
pressupostos da análise fílmica e os estudos de processo de criação. Como
será visto mais detalhadamente no capítulo 3, nossa análise tem como objetivo
trabalhar com os elementos explicitadores do processo de criação da obra
fílmica dentro das imagens fílmicas.
A noção tomada de análise fílmica parte dos trabalhos de Aumont &
Marie (2009), Vanoyé & Goliot-Leté (2004), Bordwell (1991) e Bellour (2001).
Ambos os modelos se baseiam na visão dos filmes, compreensão de suas
imagens e uma fase posterior dedicada à descrição e à decupagem.
47
Obviamente cada filme apresentará suas particularidades, mas é possível ter
generalizações nos procedimentos que permitam seu uso aqui.
Dito de uma forma simples, a análise fílmica tem como propósito a
fragmentação do objeto analisado para que, a partir desse desmembramento e
sua subsequente recomposição, possa-se extrair uma análise, uma conclusão
(Vanoyé & Goliot-Leté, 2005). Contudo, a análise fílmica não se restringe
apenas a isso, dada suas variações de acordo com os interesses de
abordagem da análise e do analista.
Na introdução ao livro A Análise do Filme, Aumont & Marie (2009)
apontam que não há uma unidade quanto ao que seria “a” análise fílmica, o
que de fato existem são análises. O que existem são análises, uma vez que, da
mesma forma que a metodologia de uma pesquisa surge a partir do objeto a
ser estudado, a análise depende do filme ou objeto audiovisual a ser analisado,
“ou seja, tal como não existe uma teoria unificada do cinema, também não
existe qualquer método universal de análise do filme” (p. 8).
Dessa maneira, o que há são possibilidades de análise com base em
trabalhos realizados anteriormente por outros analistas e que indicam pontos
de partida para outras análises que os irão adaptar a seus fins e objetos. “O
objetivo da análise é apreciar melhor a obra ao compreendê-la melhor. Pode
igualmente ser um desejo de clarificação da linguagem cinematográfica,
sempre com um pressuposto de valorização desta." (p.11).
Raymond Bellour (2001) trata a análise do filme como uma ação que
tenta apreender sentidos dentro do filme e compreendê-los. Para o autor, as
análises fílmicas não esgotam o objeto, antes permitem que se apresente
versões de leituras das imagens e enredos. Quanto mais se tenta compreender
os sentidos fílmicos, mais sentidos há por serem compreendidos.
Tal como “a teoria do cinema”, a análise fílmica parte do filme para
ampliar reflexões em torno da produção cinematográfica, seus processos e
aspectos. A teoria do cinema tende, contudo, a ser generalizante, para além
dos casos fílmicos. A análise fílmica é específica, concentra-se no casos
analisados diretamente.
48
Para tanto, há diversas formas possíveis de se trabalhar a análise
fílmica. A análise pode ser baseada em aspectos estéticos, descritivos, textuais
e estruturais, temas, conteúdos, análise da narrativa, da trilha sonora.
De certo cada analista deve habituar-se à ideia de que precisará mais ou menos construir seu próprio modelo de análise, unicamente válido para o filme ou o fragmento do filme que analisa; mas ao mesmo tempo, esse modelo será sempre, tendencialmente, um possível esboço de modelo geral, ou de teoria; isso é, no fundo, uma consequência direta do que acima dissemos sobre a consubstanciabilidade da análise e da teoria. (AUMONT & MARIE, 2005, p.15).
Para David Bordwell (1991), a análise fílmica, ou interpretação fílmica,
tem possibilidades variadas que estão ligadas aos sentidos divergentes
estabelecidos para os termos interpretação e compreensão. Contudo, é difícil
para a maioria dos críticos estabelecer um limite divisor entre interpretação e
compreensão.
A maioria dos criticos faz distinção entre compreender um filme e interpretá-lo, embora eles quase sempre discordem sobre onde as linhas fronteiriças devam ser traçadas. Essa distinção segue a divisão hermenêutica clássica entre ars intelligendi, a arte do entendimento, e ars explicandi, a arte da explicação.
6 (BORDWELL, 1991, p.2)
Assim, a atividade analítica se baseia numa construção de significado,
estabelecendo uma leitura possível da obra na realidade daquele analista. As
análises fílmicas se constituem, na visão do autor, a partir de quatro
possibilidades: a concepção de um mundo em que a narrativa ganha um
sentido específico; a construção de sentidos litereais estabelecidos a partir de
elementos diegéticos do filme; a construção de sentidos figurados e
associativos do filme com base na interpretação de elementos; e interpretações
conceituais e generlistas que se baseiam em leituras ideológicas, políticas
sociais ou econômicas dos filmes (BORDWELL, 1991).
Quanto à questão do processo, tanto os estudos de Salles (2008a),
(2008b) e (2010); e de Baxandall (2006) pelo ferramental de questões
6 “Most critics distinguish between comprehending a film and interpreting it, though they would
often disagree about where the boundary line is to be drawn. This distinction follows the classic hermeneutic division between ars intelligendi, the art of understanding, and ars explicandi, the art of explaining.” (BORDWELL, 1991, p.2)
49
suscitadas por seus métodos, trabalho com documentos de processos e
considerações acerca das inferências possíveis na imagem.
No estabelecimento da metodologia de análise, procura-se observar,
ainda, a natureza única de cada filme, uma vez que não são feitos seguindo
uma forma generalizada. As possibilidades categóricas analíticas que
apontamos surgem dessas variantes e modos de abordagens possíveis. Para o
estabelecimento de tais categorias, trabalhou-se a partir de duas macro-
categorias que são elencadas por Jean-Claude Bernardet (2003): o processo
como obra e a obra como processo.
Em seu texto, o autor trabalha com uma primeira forma de articulação
entre obra e processo que diz respeito ao processo como obra. Entender o
processo como obra tem a ver com uma tendência contemporânea de
produção em que o processo se perfaz da própria obra.
Como exemplo disso, Jean-Claude Bernardet (2003) cita a instalação
realizada a partir dos copiões com mais de 130 horas de material gravado para
o filme No Quarto da Wanda (2000), do diretor português Pedro Costa. A
instalação citada, por mais que contenha o registro das filmagens, bastidores,
se constitui numa obra autônoma, relacionada ao filme, mas independente do
filme para existir.
Como segunda tendência apontada por ele, tem-se a obra como
processo. Essa relação da obra como processo tem a ver com o registro do
processo de criação, recursos de metalinguagem e metadiscursividade dentro
das obras. As obras como processo vão incorporar evidências dessa criação,
vão explicitar a realização.
Pode-se, portanto, identificar nos filmes-dispositivo, mais
especificamente nos que serão analisados nesta pesquisa, uma junção de
ambas as características apontadas por Bernardet (2003). Isso fica claro uma
vez que há incorporada na própria natureza do dispositivo essa noção
processual e metalinguística.
Pode-se dizer que as obras como processo são aquelas que dão conta
muito mais das paisagens encontradas pelo meio do caminho, deixando de
lado o destino a ser alcançado, uma vez que estão sempre abertas às
possibilidades. Aqui tem-se uma compreensão mais clara da relação entre
50
dispositvo e acontecimento que Cezar Migliorin (2005), a partir da noção de
acontecimento em Deleuze (1969), traça ao se referir aos eventos que ocorrem
quando da ativação de um dispositivo.
O surgimento de acontecimentos a partir de um dispositivo pressupõe um desdobramento dos corpos e subjetividades em possibilidades que ultrapassem suas próprias medidas; ultrapassam qualquer medida previamente pensável. A ideia fundamental da utilização de dispositivo está na possibilidade da arte enxergar e criar o mundo a partir de uma desprogramação. (MIGLIORIN, 2005)
Outro ponto trabalhado por Bernardet (2003) e que é bem pertinente
para a Análise Fílmica Processual diz respeito àquilo que ele denomina de
estética do esboço, uma estética baseada na evocação e na sugestão, no
laconismo de elementos processuais, uma forma de deixar que o espectador
complete os espaços, uma proposição estética reflexiva. Muitos filmes que vão
trabalhar com o processo de criação como elemento integrante de suas
imagens, trabalham com essa perspectiva.
Do que se trata? De apresentar elementos visuais e sonoros, verbais ou não. Esses elementos são justapostos sem que se estabeleçam entre eles inter-relações fixas e precisas. São materiais temáticos ou formais que permitem ao espectador construir conexões. (BERNARDET, 2003)
Há ainda uma espécie de pacto de co-criação, uma vez que o(s)
sentido(s) da obra vem em consonância com a interação que o espectador tem
com ela. Não há nem nunca houve um sentido uno e finito. O que há são
experiências, um compartilhamento sensorial e cognitivo que demanda do
espectador essa participação. É no fruir dessa obra que a obra acontece, é
pela descoberta, pela sensorialidade que o sentido se faz mostrar.
Bernardet (2003) ainda salienta o caráter de ressignificação constante
da obra, uma vez que para cada espectador a obra significará de uma maneira,
e para um mesmo espectador a relação com a obra estará em constante
atualização de sentido, uma vez que não há esse sentido fechado e estrito.
Uma estética dos possíveis.
Uma certa opacidade estimula o espectador a construir conexões, trabalho que será ainda mais estimulado/estimulante se os materiais
51
apresentados forem heterogêneos, díspares. E isso sem que nunca se chegue a uma conclusão que possa parecer correta ou definitiva. Simplesmente a apresentação dos materiais propõe uma área de atuação ao espectador, cujo trabalho pode lhe proporcionar intensa emoção estética, bem como discursos, falas a respeito. E, como não há conclusão a que chegar, esse relacionamento entre espectador e obra a rigor não tem fim. (BERNARDET, 2003)
Como o próprio autor destaca, essa noção de co-criação com o
espectador e da estética do esboço acabam, no entanto, por fazer-se rever o
paradigma da arte que desde tempos longínquos trata da noção de obra
interpretada como algo finalizado, acabado. Mas, e o que fazer com as obras
da contemporaneidade que se baseiam justamente no conceito de não finitude,
de co-participação significante do espectador?
Assim como a forma de se relacionar com o mundo, as imagens, sons,
representações, identidades tem mudado, assim também há uma
reconfiguração do conceito de obra. "A obra não é o resultado de um processo
de elaboração superado por uma finalização, ela é o próprio processo de
criação" (BERNARDET, 2003).
Para a Análise Fílmica Processual aqui pretendida, e que será mais
detalhada no Capítulo 3, essas duas noções serão fundamentais por
representarem as duplas possibilidades inferidas nas imagens dos filmes
trabalhados, que se apresentam segundo o que Deleuze (2003) vai chamar de
lógica do paradoxo.
O efeito paradoxal que as obras a serem aqui estudadas permitem tem a
ver com a sua dinâmica de duplicação e um trabalho no sentido da construção
do movimento na lógica do tempo.
São imagens atravessadas por uma vontade de potência que lhes
permite agenciar regimes escópicos e narrativos diversos numa mesma tela.
Há nelas possíveis, uma virtualidade que vai se assemelhar com o que
Deleuze (1985) vai chamar de imagem-cristal. Nessas imagens há um
desdobramento do tempo e uma desconstituição entre passado e presente,
presente e devir.
Dessa forma, no nosso modo de entender, a Análise Fílmica
Processual é uma maneira que nos permite analisar a obra e compreender os
seus percursos criativos a partir da própria obra, dos próprios filmes. Essa
52
análise aborda o paradoxo presente nos filmes que se utilizam de dispositivos
como estratégia narrativa e que têm na explicitação dos seus processos de
criação uma centralidade das suas discussões. A Análise Fílmica Processual
trabalha com essas obras que se constituem a um só tempo como processo
como obra e obra como processo.
53
2. DISPOSITIVOS E DOCUMENTÁRIOS
Neste capítulo trabalharemos com o conceito de dispositivo de uma
forma geral e também com o conceito aplicado ao cinema e ao corpus,
explorando ainda a noção de filmes-dispositivo. Circundar essa noção de
dispositivo no cinema e sua aplicação mais específica no cinema documentário
brasileiro contemporâneo será de fundamental importância para o
desenvolvimento de nossa tese, uma vez que buscamos aqui abordar a relação
estabelecida entre os dispositivos fílmicos, os processos de criação, as
experiências, as narrativas e as imagens.
Dessa maneira, a explanação acerca do termo dispositivo a ser feita
aqui se estabelece como sustentáculo de alinhavo dos demais conceitos, uma
vez que percebemos sua dimensão e sua multiplicidade conceitual.
Iniciaremos nossa discussão com uma apresentação geral do conceito e
de alguns autores que o trabalham em sua discussão discursiva e ontológica.
De que maneira eles trabalham o conceito, como essas conceituações
interagem e no que elas diferem uma da outra.
Em seguida, procederemos a uma abordagem sobre os dispositivos no
cinema, em que falaremos sobre o que é a noção de dispositivo no cinema, sua
variação de acordo com os teóricos que tratam a respeito do tema, além de
apresentarmos algumas visões sobre o que vem a ser filme-dispositivo.
Como último tópico deste capítulo, falaremos sobre a relação entre
dispositivo e experiência fílmica. Após a revisão bibliográfica, aqui
relacionaremos os conceitos de dispositivo no cinema e a experiência fílmica.
Por experiência fílmica, a priori, compreendemos a experiência em sala, as
experiências com as imagens e as experiências com formas expandidas de
cinema.
2.1 Exercício de taxonomia
Jacques Aumont e Michel Marie (2009), em seu Dicionário Teórico e
Crítico de Cinema, partem da definição comum utilizada para o termo
dispositivo (em seu uso jurídico e militar) até chegarem à conceituação que a
54
palavra adquiriu ao ser empregada nos estudos de cinema. Na Mecânica, o
termo será usado para tratar da disposição de partes de um aparato e o próprio
aparato em si. Essa relação semântica permanece no cerne do termo em seu
uso pela teoria do cinema, como veremos mais adiante.
O conceito de dispositivo tem assumido na última década um uso
inderterminado e irrestrito. Há uma livre associação do termo com temáticas
múltiplas, sejam elas de ordem técnica, tecnológica, arquitetônica, conceitual.
Traçando aqui um pensamento que beira o generalismo, mas que nos
serve como ponto de apoio para essa discussão, hoje em dia quase tudo é
associado discursivamente ao termo dispositivo. Seja uma sala de cinema, seja
uma máquina fotográfica, seja um modo de realização fílmica, todas essas
situações podem vir referidas como dispositivos.
Dessa maneira, é preciso que se pense o uso do termo quando o
utilizamos como ponto conceitual. A que, especificamente, estamos nos
referindo quando abordamos as questões fílmicas, sua explicitação de
processo de criação e experiência fílmica pelo viés do dispositivo. De que
dispositivo exatamente estamos falando?
Para iniciarmos tal abordagem, se faz necessário que reflitamos sobre
os usos que o termo vem tendo ao longo dos anos, as transformações pelas
quais a própria aplicação do conceito tem passado. Ainda pensando dispositivo
como algo múltiplo e heterogêneo, nos remetemos inicialmente ao conceito de
Foucault (2000), conceito esse que posteriormente será revisitado e
reatualizado por Gilles Deleuze (1990) e por Giorgio Agamben (2005).
O que trato com esse nome é, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (Foucault, 2000, p. 244)
Essa noção de dispositivo, mesmo que bem expandida, é relacionada
dentro da obra de Foucault com três eixos: o saber, o poder e os modos de
produção de subjetividade. Essa definição que aqui apresentamos foi dada por
Foucault em uma entrevista concedida em 1977 a Alain Grosrichard.
55
Na ocasião, as perguntas direcionavam-se para que o filósofo
apresentasse uma resposta para a tão famigerada questão “o que é um
dispositivo?”, questão essa que motiva a resposta de Foucault e também se
transforma em leitmotiv para os trabalhos que Giorgio Agamben e Gilles
Deleuze desenvolverão partindo da noção foucaultiana de dispositivo e aquilo
que vem diluído em sua obra com relação ao termo.
Dentro dessa sistematização de ideias apresentada por Foucault nessa
entrevista, o autor estabelece três níveis de compreensão do termo: o
dispositivo como uma rede, a compreensão da natureza dessa rede e a relação
entre dispositivo e acontecimento.
Curioso perceber aqui que essa compreensão do dispositivo como rede
casa com a própria dispersão do termo em meio aos textos de Foucault e à
noção de heterogeneidade apontada pelo autor como sendo uma das marcas
do dispositivo. Esse caráter relacional do dispositivo permite que
compreendamos que um dispositivo não é algo uno, bem acabado, moldável e
estático.
Há uma mutação constante e um rearranjo dos elementos, que estão
aqui postos de forma relacional. Essa noção mutabilidade do dispositivo pode
ser percebida quando se pensa nos dispositivos narrativos dos filmes-
dispositivos, que formulam situações específicas para aquele momento da
realização fílmica. Discutiremos mais sobre isso adiante neste capítulo.
Dessa forma, a própria escritura dos textos de Foucault e sua maneira
de apresentação, a valorização dada às entrevistas como peças de amarração
de pensamento (caráter que é abordado, inclusive, pelo texto de Gilles
Deleuze) e essa multiplicidade de aplicações do termo seriam, se podemos
assim falar, um dispositivo conceitual de organização do pensamento em torno
de um termo, no caso o dispositivo. Como o próprio Foucault ressalta, há aqui
um caráter de jogabilidade, de participação ativa dos elementos e algo vivo,
dinâmico, que faça o pensamento seguir.
Já na forma de apresentação fragmentária, a sua característica de
interrelação entre as estruturas para as quais a noção de dispositivo é aplicada,
enfim, tudo isso compõe a si mesmo como um dispositivo e perceber tal arranjo
nos permite uma abordagem mais holística da ideia. Isso porque tanto Deleuze
56
quanto Agamben vão partir da explicação dessa abordagem como forma de
compreensão das ideias do autor e de expansão da terminologia, aplicabilidade
e conceituação.
O pensamento foucaultiano servirá como uma matriz, um pensamento
gerador, algo que instaura um movimento de reflexão acerca do conceito, mas
que também tem seu caráter criador de outros modos de trabalhar com essa
terminologia, dada sua heterogeneidade, sua multiplicidade, sua variabilidade.
Dispositivo tem uma aplicação conceitual bem ampla e, como bem
estabelece Foucault, pode se referir a objetos discursivos e não-discursivos,
aparelhos, tecnologias, instituições, enfim. A partir do dispositivo de Foucault,
Deleuze (1990) explora a ideia do conceito não somente no que diz respeito ao
termo em si, mas ao que isso significa dentro da obra de Foucault. Estabelece
alguns pontos de observação, em que o primeiro reside na percepção do
dispositivo como algo múltiplo, um conjunto de linhas que se afastam e se
aproximam, uma mescla de vetores.
Dessa forma, os dispositivos seriam “máquinas de fazer ver e de fazer
falar”. Máquinas essas que podem ser discursivas, visuais, arquitetônicas.
Como já apontamos anteriormente, os dispositivos tem uma composição
heterogênea e variável. Como pontos iniciais a apontar na constituição de um
dispositivo, pode-se inicialmente falar de suas curvas de visibilidade e suas
curvas de enunciação.
Aponta-se ainda, num terceiro momento citado por Deleuze (1990), as
linhas de força, ou seja, a questão do poder. Essa dimensão do poder seria um
espaço interior do dispositivo. E todos esses elementos se relacionam por
linhas de objetivação.
Ao destacar esses pontos de objetivação, o autor ainda enfatiza que
existem pontos de fuga, o que seriam as chamadas linhas de subjetivação.
Essas linhas seriam produtoras de subjetividade, seria uma vertente que
estabeleceria certo descontrole no dispositivo, uma escapada à faceta
controlada, correlacionada dos elementos pelas linhas de objetivação.
Esse seria um espaço da individuação, em que se inserem aqui grupos e
pessoas. Essas são “linhas de fratura” do dispositivo, atravessamentos e
pontos de fissura que interligam poderes e saberes entre dispositivos.
57
Deleuze ressalta que cada dispositivo terá um arranjo próprio de seus
elementos e essas linhas compõem um “novelo” único, que responde à lógica
de arranjo daqueles elementos daquele dispositivo em si. Não existe uma
fórmula para os dispositivos e nenhum dispositivo será igual ao outro. Logo,
para que se compreenda do que se trata cada dispositivo é preciso que se
entenda sua organização, seus elementos compositivos e até se perceba seus
pontos de fratura, seus modos de operação e os agenciamentos inerentes a
cada um dos dispositivos.
Dessa forma, seguindo esse raciocínio, são estabelecidas duas
implicações para se trabalhar com os dispositivos. A primeira delas diz respeito
ao “repúdio aos universais”, que tem a ver justamente com essa irrepetibilidade
de elementos do dispositivo, uma vez que “cada dispositivo é uma
multiplicidade na qual esses processos operam em devir, distintos dos que
operam em outro dispositivo.” (DELEUZE, 1990).
O segundo ponto trata de uma implicação complementar à primeira e diz
respeito a um necessário distanciamento daquilo que seja eterno e uma
abertura para o que é novo. Assim, não é possível que se vislumbre uma
imutabilidade das situações, discursos e instituições, antes uma variação
constante em relação a cada dispositivo, onde não cabe a universalização das
características apontadas como inerentes ou não aos dispositivos.
Essa variabilidade se somaria ao que Deleuze aponta como novidade, o
que resultaria posteriormente em outras possibilidades de dispositivo, e outras
formas de subjetivação. Essa novidade diz respeito ao estado atual das coisas.
“O atual não é o que somos, mas aquilo que vamos nos tornando, o que
chegamos a ser, quer dizer, o outro, nossa diferente evolução.”
(DELEUZE,1990).
Esse atual dá conta do devir, do vir a ser, o que remete a Heráclito.
“Devemos separar em todo dispositivo as linhas do passado recente e as linhas
do futuro próximo; a parte do arquivo e a do atual, a parte da história e a do
devir, a parte da analítica e a do diagnóstico.” (DELEUZE, 1990). Dessa
maneira, é possível que se separe os componentes dos dispositivos em dois:
as linhas de estratificação ou de sedimentação, e as linhas de atualização ou
de criatividade.
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Além da abordagem de Deleuze ao questionamento “o que é um
dispositivo”, Giorgio Agamben (2005) também se deterá em responder essa
questão. Em sua leitura do termo, Agamben volta à questão etimológica da
palavra, investigando sua episteme, levando em consideração os fatores
semânticos implicados no uso do termo para mais bem compreendê-lo.
O autor reforça a importância do conceito dentro dos escritos de Michel
Foucault e amplia sua contextualização. Na percepção de Agamben acerca da
abordagem que Foucault faz do termo dispositivo, o autor italiano percebe que,
antes de qualquer sistematização ou restrição de abordagem do termo, ele se
refere à relação entre os indivíduos e a história.
Nessa característica relacional, em primeiro lugar estaria a função do
dispositivo como um elo ou rede entre elementos discursivos e não-discursivos
como proposições filosóficas, leis, instituições. Esse ponto ressaltado por
Agamben é abordado por Foucault na entrevista que citamos anteriormente.
Em segundo lugar, o dispositivo se inscreve numa relação de poder e com
função estratégica. Além disso, há o dispositivo como rede entre conceitos.
Esse dispositivo abordado estabelece uma relação entre os seres
sociais históricos, as subjetivações e as regras às quais as relações de poder
estão condicionadas. Agamben aqui traça sua abordagem do dispositivo por
seu caráter historicamente constituído e a relação com a tecnologia, atentando
para os jogos de poder envolvidos.
A perspectiva etimológica frisada por Agamben vem em sua visão de
que, de modo geral, o dispositivo se refere a práticas e mecanismos materiais e
imateriais. Essas práticas e mecanismos estão ligados a uma perspectiva
histórica, há ainda uma visão teológica à qual o termo se liga e se conecta aos
estudos de Foucault. Agamben elabora questões acerca da trindade, sua
disposição trina, mesmo correspondendo a um conjunto específico de práticas,
saberes, disposições, normalizações, controles que são supostamente úteis.
À luz desta genealogia teológica, os dispositivos foucaultianos adquirem uma importância ainda mais decisiva, em um contexto em que estes se cruzam não somente com a "positividade" do jovem Hegel, mas também com a Gestell do ultimo Heidegger, cuja etimologia é análoga àquela da dis-positio, dis-ponere (o alemão stellen corresponde ao latim ponere). Quando Heidegger, em Die technik und die kehre, escreve que Ge-stell significa comumente
59
"aparato" (Gerät), mas que ele entende com este termo "o recolher-se daquele (dis)por (Stellen), que dis(poe) do homem, isto é, exige dele o desvelamento do real sobre o modo de ordenar (Bestellen)", a proximidade deste termo com a dispositio dos teólogos e com os dispositivos foucaultianos é evidente. (AGAMBEN, 2005, p. 12)
Agamben avança na explicação do termo e procede à sua
recontextualização. Dessa maneira, ele elabora sua própria definição de
dispositivo como sendo
qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2005, p. 13)
Para Agamben, desde o aparecimento do homo sapiens os seres-
humanos lidam com dispositivos. Contudo, a seu ver, na sociedade atual há
uma exacerbada interação com os dispositivos a todo instante. Ele frisa ainda a
multiplicidade de dispositivos como sendo um bom ponto de observação, além
dos sujeitos por eles resultados. (PEREIRA, 2011)
Pode-se, ainda, discutir se o que há, na verdade, não é uma maior
consciência acerca dessa interação com dispositivos, o que provocaria essa
sensação de exacerbação.
Na raiz de cada dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência específica do dispositivo. (AGAMBEN, 2005, p. 14).
Como pontuado anteriormente, os dispositivos de Deleuze e Agamben
vão se diferenciar pelas abordagens dadas, as atenções concentradas em
pontos específicos do pensamento de Michel Foucault. Enquanto Deleuze se
aproxima da relação de jogos de poderes, compreendendo a dimensão de
mecanismos de controle, para Agamben essa abordagem aparece de maneira
60
mais fluida, se focando nos agenciamentos de subjetividade só possíveis pelos
dispositivos.
O autor italiano estabelece uma relação franca com as análises de
tecnologias dos dispositivos que permeiam a vida contemporânea. São sujeitos
criados a partir da televisão, da internet, da disseminação da telefonia móvel.
São mecanismos que funcionam como ferramentais de controle, não somente
como formas de subjetivação. Constituem-se, assim, como formas de vigilância
dos sujeitos.
E aqui acrescentaríamos que essa vigilância se faz por uma adesão dos
sujeitos a esses dispositivos, nessa interação entre seres viventes e aparatos,
o que tornaria sua relação estratégica e intencionalmente formulada para
escapar das intensas programações e aprisionamentos.
Poderíamos comparar esse ponto do pensamento de Agamben com a
fala de Deleuze, que cita linha de fuga. A associação voluntária com
instrumentos de controle teria, portanto, uma função política, uma função
estratégica da vida cotidiana, dessa participação do comum. Há aqui uma
exploração da ideia de resistência, de não-aceitação do que é imposto. Em
Deleuze isso se dá já nos processos de subjetivação como forma de
consequência.
2.2 O dispositivo e o cinema
A aplicação do termo dispositivo para se referir ao cinema começou a
ser feita nos idos dos anos 70. Para a visão dos autores da época, o dispositivo
do cinema levava em consideração não apenas a característica de máquina de
imagens, mas também seu espaço arquitetônico, ambiente de recepção.
Autor conhecido como um dos primeiros a trabalhar com esse termo em
alusão ao cinema, Jean-Louis Baudry lançou suas ideias em dois textos que se
tornaram marcos dos estudos de dispositivo cinematográfico. Os textos são
“Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base” e “Dispositivo:
Aproximações Metapsicológicas da Impressão de Realidade”. Esses textos
foram publicados entre 1970 e 1975 e se tornaram célebres por caracterizarem
aquilo que Baudry vai chamar de “o aparelho de base”, ou seja, o dispositivo.
61
Em ambos os textos, o autor discorre sobre a concepção imersiva e os
efeitos psicológicos provocados pela experiência cinematográfica. O primeiro
artigo trazia a questão sob um viés psicológico, discutia a formação de
subejtividade a partir da projeção cinematográfica, além de abordar questões
de cunho ideológico que envolviam a máquina-cinema. Um dos pontos sobre o
qual se deteve foi a questão dos efeitos psicológicos que o cinema teria.
Em seu conceito de dispositivo, Baudry considerava não somente as
características da imagem projetada, mas os aspectos maquínicos do próprio
aparato cinematográfico, que, em suas palavras, somados seriam o próprio
dispositivo. Outro ponto que tem espaço nesse dispositivo estabelecido por
Baudry é a questão do sujeito, ou melhor, as questões de subjetividade e o
lugar que esses sujeitos tinham dentro desse sistema de projeção. Essa teoria
do dispositivo, segundo Ismail Xavier, vinculava o aparato técnico e as
questões ideológicas, essas relacionadas à “desmistificação do sujeito e da
consciência como entidades autônomas (Marx, Nietzsche e Freud)” (XAVIER,
2005, p.175).
Importante perceber como esse ambiente de projeção e os sujeitos que
surgem daí são uma preocupação citada por alguns teóricos que se dedicam
ao dispositivo, como é o caso de Christian Metz e também de Raymond
Bellour. Segundo André Parente (2007), essa perspectiva que trata do
espectador estaria aí “para definir a disposição particular que caracteriza a
condição do espectador de cinema, próximo do estado do sonho e da
alucinação.” (PARENTE, 2007, p. 6).
No dispositivo do cinema de Baudry, a questão do espectador assume
uma perspectiva renascentista, em que esse público tende a ser o centro da
imagem, o observador. Dessa maneira, o cinema “se converte num dispositivo
ideológico ao recalcar o aparelho de base, o trabalho técnico, na sua forma de
exibição final.” (VEIGA, 2008, p.77). Baudry fala ainda das implicações
ideológicas envolvidas no cinema enquanto “formador de saber”.
Dentro desse dispositivo de Baudry, há a constituição do sujeito a partir
do olhar, além de ser levada em consideração a “participação afetiva”, as
identificações com as personagens dos filmes (XAVIER, 1983, p. 359). Já no
começo de seu primeiro artigo “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo
62
aparelho de base”, Jean-Louis Baudry toma como premissa os estudos de
Freud em “A Interpretação dos Sonhos”, além do mito da caverna de Platão e
fala do estabelecimento de um modelo ótico que sirva para compreender esse
dispositivo, o aparelho de base. Dentro dessa compreensão, ele explora um
pouco da discussão acerca da situação de espectatorialidade produzida pelo
“aparelho de base”. (PEREIRA, 2011)
Em seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, quando fala sobre os modos
de elaboração do sonho e sua organização particular, e o conjunto do
psiquismo, Freud (2013) vai traçar um modelo ótico. Esse modelo tem uma
descrição semelhante a de um microscópio. Freud acaba não se prendendo
nesse modelo, estabelecendo uma máquina de escrita, seu dispositivo psíquico
e que se relaciona com os modos de consciência do sujeito (AUMONT &
MARIE, 2009).
Há nesse abandono do modelo ótico uma reiteração da tradição
científica ocidental, com a própria aparição da câmara-escura e regimes de
pictorialidade e visibilidade. Essa pictorialidade e visibilidade estariam incluídas
naquilo que se conhece por perspectiva artificialis.
Dentro da ideia de perspectiva artificialis, ou perspectiva renascentista,
existe um direcionamento do olhar e a impressão de tridimensionalidade, o que
faz com que o espaço do sujeito seja pré-definido diante das imagens. Há aqui
uma noção de continuidade espacial e homogeneização das imagens, com o
direcionamento do olhar e estabelecimento de um ponto de vista específico
dominante, que irá conduzir o olhar do espectador.
A câmera de cinema, oriunda da câmara-escura, segue esse princípio
de perspectiva. Assim, no cinema, o olho do sujeito é direcionado para o centro
da imagem, em que há uma priorização por parte do mecanismo da câmera
daquilo que se quer que o espectador visualize ou que tenha prioridade
narrativa.
O texto de Baudry é marcado por uma análise acerca dos efeitos e
significados cinematográficos no público, a influência do filme projetado nas
pessoas imersas no dispositivo da sala de cinema, mesmo que essas mesmas
pessoas ignorassem os “dados técnicos dos quais eles dependem e das
determinações específicas destes dados.” (BAUDRY, 1983, p. 384).
63
Esse pensamento de Baudry traz ainda marcas dos estudos em cinema
desenvolvidos nos idos dos anos 1970. Segundo Ismail Xavier (2005), esses
estudos levavam em conta “não só as características próprias da imagem, mas
também as condições psíquicas de sua recepção” (XAVIER, 2005, p. 175).
Jean-Louis Baudry se questionava do porquê de os meios técnicos
usados na projeção de cinema não serem levados em consideração para a
compreensão dos modos de funcionamento desse cinema. Havia uma
preocupação acerca dos efeitos que a projeção, e o dispositivo do cinema
como um todo, pudessem ter nas audiências, os sujeitos oriundos desses
processos de subjetivação proporcionados pelo dispositivo-cinema.
Dessa maneira, como proposição de abordagem, ele lança a ideia de
algo mais empírico e que considere os meios técnicos envolvidos, não apenas
as questões ideológicas conjecturadas nos estudos da época, mas uma
avaliação em que os aparatos e os modos em que os sujeitos se inseriam na
dinâmica fossem considerados como peças importantes para a compreensão
da articulação do modelo ótico cinema-sujeito como um todo.
Em outras palavras, o que Baudry propõe, ao questionar a ausência dos
meios técnicos nos estudos de cinema, é que não se façam estudos em que o
cinema e sua lógica de projeção-significação sejam meros suportes para a
análise da trama ou conteúdo dos filmes. (PEREIRA, 2011)
Há aqui uma preocupação que esses estudos percebam que a
experiência de contato com a projeção, os modos de recepção do filme, a
situação em que o sujeito é colocado diante do filme na sala de projeção, seja
considerada. Essa dinâmica arquitetônica não passa incólume ao espectador,
uma vez que é a partir de sua inserção nesse ambiente da sala escura que
suas percepções serão direcionadas.
É esse dispositivo imersivo, impositivo de ponto de visão e direção, com
som ao redor, escuro, que vai também, juntamente das imagens, compor a
experiência fílmica da sala.
Pode-se perguntar, pois, se o caráter técnico das máquinas óticas, diretamente relacionado à prática científica, não serve para mascarar não só seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar. (BAUDRY, 1983, p. 384).
64
Dessa maneira, ao ressaltar a necessidade de se considerar os
elementos do “aparelho de base” como necessários para uma compreensão do
cinema, o autor estabelece uma constituição desse aparelho, que seria
integrado por processos que são eles mesmos bases constitutivas do cinema.
Assim, integram o aparelho de base a câmera, a imagem, a montagem, o
projetor e a sala escura. Com um esquema visual que esclarece esses
processos, o autor demonstra que alguns desses processos tendem a se
sobressair em relação a outros.
Dentro desse modelo de visualidade apresentado por Jean-Louis
Baudry, o aparato figura num lugar de transição entre a "realidade objetiva",
nome dado pelo autor para os objetos a serem filmados, e o resultado dessa
realidade, no caso o próprio filme. A inscrição de elementos de som e imagem
na película resulta nas imagens cinematográficas, que são o real apreendido e
convertido. Essa ação é chamada pelo autor de trabalho, ação de
transformação do material. Percebe-se uma relação de tradução intersemiótica
no modelo descrito por Baudry.
Como modo de compreender o lugar do espectador na sala de projeção,
o autor fala da centralidade do sujeito nesse esquema. É um estado imersivo e
que mostra a impossibilidade do espectador perante as imagens projetadas, o
alheamento proporcionado por essa situação.
Há uma espécie de hipnose, em que o pacto tácito estabelecido por
essa situação faz com que o espectador esteja imerso nessa situação de
projeção, só sendo “acordado” com a presença de falhas ou defeitos, situações
que o fazem desacreditar daquilo que vê na tela e que foge ao pacto de leitura
outrora estabelecido. É nesse momento de ruptura que o espectador toma
ciência da situação na qual se encontra e o ambiente imersivo é quebrado.7
7 O dispositivo de Baudry não discute isso, mas é importante ressaltar que esse tipo de ruptura
com a imersão pode ainda ser acionado em nível diegético, com elementos colocados em cena para manter o espectador acordado, consciente das situações cênicas. Uma estratégia bem comum é a quebra da quarta parede. Para Brecht (1978), essa quarta parede dá conta da mediação da história feita pelo narrador. Ao romper com essa narração, o ator interage de maneira direta com a plateia, tendo na audiência seu interlocutor direto. Esse recurso é amplamente utilizado em obras audiovisuais quando as personagens subvertem a ordem de não olhar para a câmera.
65
O movimento da câmera é apontado pelo autor como sendo favorável às
manifestações de um sujeito da transcendência. Seu olho explora todas as
possíveis dimensões da imagem e não tem sua continuidade somente atrlada à
percepção corporal. É o que o autor chama de olho-sujeito. “Assim, a relação
entre continuidade necessária à constituição de sentido e o “sujeito” constitutivo
deste sentido se encontra articulada: a continuidade é um atributo do sujeito.”
(BAUDRY, 1983, p. 393).
A continuidade é definidora do espaço ocupado por esse sujeito e ocorre
de duas formas que se complementam: continuidade formal, que advém do
sistema de diferenças negadas, e continuidade narrativa no espaço fílmico. O
cinema conjuga um sistema de escrita constituído por uma base imaterial e a
negação desse próprio sistema ideológico e idealista.
Qualquer tipo de descontinuidade, seja ela formal, seja ela narrativa,
pode acarretar numa perturbação das sensações de continuidade que o
espectador tem, nos estímulo de correlação entre elementos que ele
estabelece, causando perturbações. Essas perturbações podem resultar no
rompimento com a situação imersiva em que o sujeito se encontra.
O mecanismo ideológico em ação no cinema parece, pois, se concentrar na relação entre a câmera e o sujeito. O que se trata de saber é se a câmera permitirá ao sujeito se constituir e se apreender num modo particular de reflexão especular. (BAUDRY, 1983, p. 397).
Como parte da constituição do dispositivo do cinema, esse aparato deve
ser oculto, não visualizado pelo espectador, fazendo com que sua ação se
torne imperceptível ao espectador, de modos a que não haja perturbações na
situação imersiva do processo de projeção das imagens.
No caso dos filmes que compõem o corpus desta pesquisa, o que
acontece é exatamente o oposto. A ruptura com a imersão é condicionante da
realização fílmica e por conseguinte da experiência que o espectador
estabelece com as imagens e seu processo de realização a um só tempo.
Baudry não foi o único a discutir essas questões acerca do dispositivo
cinematográfico. Seus estudos fizeram com que outras discussões fossem
travadas. Dentre elas, a discussão acerca do papel do espectador no cinema,
as questões entre cinema e psicologia, etc. Destaque aqui para os trabalhos de
66
Christian Metz (XAVIER, 2003) com suas formulações acerca da relação entre
a câmera e o espectador.
Metz já inicia seu texto abordando a questão da experiência de
visualidade contida no dispositivo da sala de cinema, bem como o dispositivo-
cinema como algo amplo, que está inserido em uma indústria e cujas
produções e os modos de significação respondem às lógicas de ativação e
desativação desse sistema.
Para o autor, a compreensão do cinema passa, contudo, por perceber
que o cinema vai além desse sistema comercial. O primeiro ponto que Metz
traz para abordar isso é a voluntariedade de presença do público. Os
espectadores vão à sala por vontade própria, querem estar ali.
O outro ponto ressaltado diz respeito aos aspectos discursivos desse
cinema. Mesmo que haja uma ênfase no conteúdo, na história que o filme
conta, não se pode esquecer de seus aspectos discursivos, ou seja, como o
filme conta, quais elementos estão envolvidos nessa produção.
Dentre os elementos destacados por Metz está o fato de que os filmes e
o espaço cinematográfico da sala de exibição são pensados para que se
esqueça da situação fílmica. O espectador sabe que olha um filme e o filme
sabe que tem um espectador olhando, mas ambos firmam um pacto de
voyeurismo velado, em que se olham, se percebem, mas fingem não se
enxergarem.
Nessa modalidade de voyeurismo (regime econômico hoje estável e bem regulamentado), o mecanismo de satisfação repousa no conhecimento que tenho da ignorância de estar sendo olhado em que se acha o objeto olhado. "Ver" já não é devolver, mas surpreender algo. Este algo que é feito para ser surpreendido foi pouco a pouco se instalando e se organizando em sua função até se tornar, como por uma especialização institucional (a exemplo destas casas das quais também se diz serem "especializadas"), a história, a história do filme: aquilo que se vai ver quando se diz "vou ao cinema". (XAVIER, 2003, p. 408)
Além dos de Christian Metz, tem-se ainda os estudos que se
encarregavam de aspectos, digamos, mais discursivos do dispositivo
cinematográfico. André Parente (2005), ao tratar de uma conceituação ampla
do dispositivo, apresenta três dimensões do dispositivo cinematográfico: uma
67
de nivel arquitetural; uma da ordem do discurso; e uma relativa à tecnologia,
mais especificamente na relação entre a câmera e a projeção.
Outro autor que vai discutir sobre o dispositivo no cinema, ou melhor, os
dispositivos no cinema, suas transformações e a relação de experiência que se
tem com os modos de espectatorialidade diversos e os modos de composição
da imagem audiovisual é Raymond Bellour (2012). O autor disute as várias
acepções do termo dispositivo como sendo uma implicação para se discutir o
próprio cinema. Seja na sala escura, seja visto num museu ou na tela de um
telefone móvel: a relação entre dispositivo arquitetônico/estrutural, dispositivo
narrativo e as experiências que emanam de suas conjugações vão interferir
naquilo que se conhece e se entende por cinema.
Nas produções contemporâneas e no cenário de novas possibilidades
midiáticas, ao se referir ao dispositivo no cinema, pelo menos duas noções
podem ser apontadas: a de dispositivo arquitetônico-estrutural, que demanda
uma condição física relacionada com a projeção para o seu funcionamento; e a
dimensão narrativa, que possibilita a produção dos acontecimentos no espaço
da narrativa e do mundo pelo recorte do dispositivo (PEREIRA, 2011).
A dimensão que vê no dispositivo uma estratégia narrativa é a que
interessa a esta tese. Essa noção é a apresentada por Cezar Migliorin (2005),
que aponta na formulação dos dispositivos a própria força motriz dentro da
narrativa, da condução de ações fílmicas, produtora de acontecimentos, o
leitmotiv da realização cinematográfica.
O dispositivo do ponto de vista arquitetônico vem acompanhado da
noção de “dispositivo modelo”, que está ligado a uma configuração do espaço e
do tempo, tal como define Dubois, “que valem e significam tanto ou mais por
elas mesmas quanto pelas imagens que nelas aparecem” (DUBOIS, 2004,
p.101). O dispositivo aqui é externo à narrativa, é um dispositivo da ordem da
fruição cinematográfica, do espaço da sala de cinema.
A concepção e a ativação do dispositivo é aquilo que dá início à
narrativa fílmica, estabelecida por meio de uma estrutura criada que permite
que os personagens estejam nela inseridos e por meio de suas dinâmicas de
funcionamento atuem. (PEREIRA, 2011)
68
Visto por esse prisma, o dispositivo não é algo externo à narrativa, não é
algo que não interfere na realização fílmica. Antes se constitui em parte
integrante da narrativa, em agenciador dessa narrativa que acontece dentro
dos seus modos de ativação numa temporalidade e espacialidade específica.
Migliorin (2005) explica que
o artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou pré-existente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio - do dispositivo - e uma larga falta de controle - dos efeitos e eventuais acontecimentos. (MIGLIORIN, 2005)
Nessa perspectiva de uso do dispositivo como ponto de fundamentação
da narrativa fílmica, é possível dizer que o realizador procede uma cisão na
temporalidade e espacialidade fílmica. Isso acontece porque o dispositivo
existe em uma instância de isolamento do mundo, numa estrutura de
comportamento e temporalização própria, um “presente absoluto que dá
quando o dispositivo está em ação” (MIGLIORIN, 2005).
Essa narrativa só existe enquanto o dispositivo está ativado, este
presente absoluto se desfaz quando o acontecimento é terminado e o
dispositivo desmontado.
Para Migliorin, o usos dos dispositivos se baseia no desejo das obras
que se utilizam deles de estabelecer com o real uma referência. Isso faz com
que as situações formuladas só existam na equivalência do dispositivo, num
processo de "ativação do real". Aqui há uma aproximação do conceito trazido
por Jean-Louis Comolli (2008) de realização fílmica "sob o risco do real". Aqui
não há mais questionamento sobre os padrões técnicos elementares da
produção cinematográfica.
A questão se modifica e tem como foco o que é preciso fazer para que
se tenha filme. E é neste ponto que estão os filmes-dispositivo: fazer com que
haja filme e criar condições para isso. “O dispositivo estabelece encontros da
realidade com a intervenção, supondo sempre uma relação com o real que
desconhece suas possibilidades, apontando para uma virtualidade do próprio
real” (MIGLIORIN, 2008, p.22).
69
Ao falarem sobre o dispositivo nos documentários brasileiros
contemporâneos, Consuelo Lins & Cláudia Mesquita (2008) afirmam que,
assim como Cezar Migliorin apresenta,
a noção remete à criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas – o que nega diretamente a ideia de documentário como obra que “apreende” a essência de uma temática ou de uma realidade fixa e preexistente (p.56)
Essa definição apontada por Consuelo Lins & Cláudia Mesquita (2008)
pode parecer bastante generalista e aplicável a qualquer tipo de filme.
Contudo, dentro da práxis documentária, a proposição de um modelo que crie
regras básicas para aquele projeto traz uma inovação e uma quebra dos
modos tradicionais baseados nas entrevistas e condução roteirizada dos filmes.
O termo "maquinação" será ainda utilizado pelas autoras para se
referirem ao dispositivo. Isso porque elas enxergam o estabelecimento de
bases norteadoras para a realização fílmica, regras de condução. Contudo, não
se trata de uma normatização generalizante e que estabelece uma espécie de
"receita de bolo" para a realização fílmica documentária. O que acontece é que
cada filme terá suas particularidades de atuação e necessidades. (PEREIRA,
2011)
As autoras apontam na identificação e estabelecimentos dessas
necessidades a questão da maquinação, que se adapta a cada proposição.
Assim,
a simples adoção de um dispositivo não garante, em suma, o sucesso de um filme, tudo depende de sua adequação ao assunto eleito, mas, sobretudo, ao trabalho concreto de filmagem, que a maquinação anterior dispensa (LINS&MESQUITA, 2008, p.57).
Filmes-dispositivo são “filmes propositivos que criam protocolos, regras
e parâmetros restritivos para lidar com a realidade.” (Lins & Mesquita, 2008,
p.58). Esta proposição desenvolvida pelo realizador é a própria motriz da
narrativa, do movimento, sendo dotado de capacidade para produzir os
acontecimentos, e permite que percebamos o filme articulado entre duas
vertentes: a do controle e do descontrole.
70
A vertente de controle se refere à forma e às regras estabelecidas pelos
realizadores/autores/diretores como maneiras de permitir a existência do filme,
como Jean-Louis Comolli (2008) bem fala, em que é preciso se colocar “sob o
risco do real” diante de todas as roteirizações cotidianas.
Os filmes-dispositivo se colocam como uma estratégia ao mundo
roteirizado e cheio de amarrações. Esses filmes trabalham, sim, com uma
instância da roteirização, da maquinação, a ponta que fica amarrada e
evidencia perfeito controle das estruturas geradoras de acontecimentos.
Contudo, há outra dimensão, a do descontrole, a que é responsável pelo
imponderável nessa dimensão maquínica de uma estrutura pensada para fazer
com que haja filme, a dimensão da ordem do próprio acontecimento
(PEREIRA, 2011).
2.3 Dispositivos e experiência estética
Outra relação presente nesses filmes-dispositivo é a relação de
experiência que temos com as imagens. A respeito do que venha a ser uma
experiência, John Dewey (2010) nos fala que o próprio viver se constitui como
uma fonte contínua de experiências.
De um modo geral, as experiências se constituiriam nesse contato entre
os seres vivos e as condições ambientais. E que existem gradações sobre o
que venha a ser uma experiência.
Ao longo da vida, cada pessoa terá suas próprias percepções acerca
das experiências vividas, que serão próprias da forma como cada um percebe
o mundo, como se conectam com os acontecimentos. Assim, a percepção da
experiência é algo subjetivo, mas a experiência em si é objetiva. Aquilo que
afeta ou estimula uma pessoa de maneira positiva, pode ser algo que outra
pessoa tomará como um aspecto negativo ou mesmo indiferente. Daí advém a
noção de percepção.
Henri Bergson (1999) trata em Matéria e Memória de uma relação entre
o que ele chama de percepção e de afecção. A percepção aqui estaria
relacionada com a nossa ação sobre as coisas e como essas coisas agem
71
sobre nós. Assim, do ponto de vista da experiência, poderíamos ver a
percepção como o contato entre os seres e o mundo.
A duração dessa percepção está relacionada com uma ação externa a
nós. Quando essa percepção é internalizada, temos o que Bergson vai chamar
de afecção. Logo, a diferença entre percepção e afecção para Bergson diz
respeito à intensidade.
Encontramos ressonância dessa diferença de grau quando pensamos a
experiência a partir de seu caráter objetivo e impessoal, como nos fala Quéré
(2010), em que a experiência se torna pessoal a partir do momento em que me
aproprio dela, intensifico a minha relação com o fato.
A experiência é impessoal e objetiva, portanto a-subjetiva, e sua personalização e subjetivação se fazem através de uma apropriação: o processo impessoal que é a experiência se torna "minha" experiência por uma interpretação ou um ato retrospectivo de apropriação, geralmente no contexto de interações sociais em que se coloca a possibilidade de reivindicar ou atribuir uma responsabilidade. (QUÉRÉ, 2010, p.19)
Isso é possível graças às diferentes condições de interações entre o
mundo circundante e essas pessoas, além de todo o referencial que cada ser
traz consigo. Logo, as experiências não devem ser consideradas isoladamente.
O que vem antes e depois, bem como o contexto do durante, tem um peso
nessa experiência.
Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À medida que uma parte leva à outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que dão ênfases de suas cores variadas. (DEWEY, 2010, p.111)
A experiência singular é aquela que tem uma unidade, ou seja, seus
aspectos enquanto experiência estão entrelaçados e, por mais que seja
possível determinar a prevalência de um aspecto em relação a outro, não se
podem dissociar. Assim, uma experiência pode ser mais emocional, contudo
seu caráter intelectual não pode ser esquecido.
Para Dewey, a experiência se constitui como experiência estética
quando seu impacto emocional é sentido de imediato. “A experiência estética
72
não pode ser distinguida da intelectual, uma vez que esta última precisa exibir
uma chancela estética para ser completa.” (DEWEY, 2010, p.114). E mais, é
preciso haver consciência da experiência e um interesse de que ela chegue a
uma consumação.
Assim, ao relacionarmos os dispositivos cinematográficos com a noção
de experiência e de experiência estética, podemos traçar pelo menos duas
relações inerentes entre esses conceitos. A primeira relação que podemos
apresentar diz respeito às experiências-cinema. Experiências-cinema são o
que aqui chamamos das experiências proporcionadas pelo “aparelho de base”,
as experiências na sala escura do cinema, as experiências de
espectatorialidade com a projeção, com o ambiente cinema de uma forma
geral.
A segunda relação que se pode traçar é a experiência com relação às
imagens, a forma como aquelas imagens interagem com o espectador, de que
modos as imagens trazem o filme, como se dá a relação do espectador com o
filme por meio das imagens.
No caso específico de nosso corpus, em que trabalharemos filmes-
dispositivo que tem como base de seus dispositivos a explicitação do processo
de criação como parte integrante da narrativa constituída, podemos pensar a
experiência com a imagem em relação à própria experimentação do processo
de realização fílmica. Nessa imagem é possível ver a força do dispositivo
foucaultiano, a produção de subjetividades fruto dessa experiência com as
imagens.
O apagamento ou mascaramento das marcas de produção desse
cinema é substituído por um desejo de inscrever esse inacabamento como
parte da obra. Dessa forma, com essa explicitação das marcas de realização
fílmica, a imagem tende a ir se construindo diante dos olhos do espectador, à
medida que o filme avança. É uma imagem fragilizada, uma imagem movediça.
Uma imagem que nos dá a conhecer os caminhos percorridos para se chegar
àquela obra.
Dessa forma, essa imagem se torna ela mesma constituinte de uma
experiência fílmica e documento de seu próprio processo de criação. Os filmes-
dispositivo, assim, são meta-narrativas e por meio da experiência das imagens
73
apresentam seu processo, sua discussão em torno do fazer cinematográfico.
Está em pauta não somente o plot, mas o próprio modo de fazer com que haja
filme.
Vemos isso em Um Passaporte Húngaro (2002, Sandra Kogut), por
exemplo, quando por vezes consecutivas a diretora-personagem entra em
contato com o consulado húngaro na França para obter informações a respeito
de seu pedido de expedição de passaporte.
A cada tentativa ou avanço dentro do processo, o filme é composto por
uma imagem titubeante, uma imagem que se apoia não só em suas próprias
características para expor esse aspecto “in progress” da obra, mas que se
reforça de elementos de montagem para tanto. Os elementos aqui utilizados
são as cartelas com as seções do formulário a ser preenchido.
A marcação visual das etapas a serem seguidas pela personagem e,
consequentemente, pelo espectador vão guiando a estruturação desse
dispositivo e apresentando o seu processo, as discussões em torno daquela
própria imagem.
Quando apresenta os itens do formulário a serem preenchidos, Sandra
Kogut traz para dentro do processo fílmico o espectador, que agora preenche
com ela essas etapas, acompanhando pela visão subjetiva da câmera de Kogut
cada cena.
Já em Moscou (2010, Eduardo Coutinho), acompanha-se o processo de
montagem de uma peça pelos atores do Grupo Galpão, grupo de teatro de
Minas Gerais. A peça em questão é “As Três Irmãs”, de Anton Tchecov, e no
decorrer do filme o dispositivo vai apresentando essa montagem da peça e a
própria construção do filme.
Interessante observar que o filme de Coutinho é uma obra de processo
sobre um processo de criação de uma obra, uma vez que não só o filme vai se
construindo como investigação da imagem, mas também a formulação das
cenas da peça.
74
2.4 Dispositivo e documentário brasileiro contemporâneo
Período de consolidação da chamada Retomada do cinema brasileiro,
os anos 2000 viram surgir um aumento geral de produções, mas
especificamente um maior número de filmes-dispositivo. “A interseção com
referências e trajetórias vindas da videoarte e das artes plásticas parece
estimular a aposta em filmes propositivos que criam protocolos, regras e
parâmetros restritivos para lidar com a realidade.” (Lins & Mesquita, 2008,
p.58).
Esses filmes trazem consigo a dimensão de jogo, de interação entre
partes, propor modos de agir e cenários, explorando um caráter mais
experimental nas produções, observando diferentes modos de se articular com
o real na imagem.
Essa interação com as artes visuais e contemporâneas proporcionam
meios de surgimento para outros modelos visuais e diferentes abordagens dos
assuntos sobre os quais os filmes vão tratar. Acontece uma transformação nos
modos de ver e entender as construções de imagem e narrativa dentro do
audiovisual.
Muitas dessas produções têm como objetivo discutir a produção
documentária como um todo, seus objetivos, motivações, modos, éticas,
personagens, imagens. Assim, há um forte viés metafílmico presente nesses
filmes, um apreço pela explicitação das operações de produção do cinema,
declarando seus acordos e funcionamentos.
Outro ponto forte de discussão apresentado por esses filmes está na
participação do espectador, qual seu papel perante essas produções. O
receptor imerso em meio a um dispositivo de sala com atitude passiva deixa de
ser a visão prevista do público.
Muitos trabalhos buscarão em seus públicos a figura do que chamarão
de "interatores", nomenclatura emprestada das artes visuais instalativas. Esse
tipo de espectador vai ser buscado principalmente com os trabalhos
denomidados de "cinema expandido", que vão ocupar as salas de galerias e
espaços de arte. (PEREIRA, 2011)
75
No que concerne à relação de dispositivo-fílmico e cinema brasileiro
documentário contemporâneo, Lins & Mesquita (2008) apontam que essa
estratégia é adotada pelos realizados quando eles têm a necessidade de
construir um modelo produtor de situações fílmicas.
Os filmes que usam dispositivos como estratégia narrativa tem como
ponto de partida o estabelecimento de concepções metodológicas, limitações e
regulações de sua ação. Essa dimensão maquinal, controlada, vai se contrapor
ao descontrole que só se evidencia quando os pontos de controle estão
ativados. Controle e descontrole agem como jogos de forças que permitem às
vontades de potência das imagens emergirem. (PEREIRA, 2011)
Cezar Migliorin (2008) apresenta o dispositivo como estratégia
fundadora do filme e de sua narração, o filme-dispositivo deriva dessa
formulação e de suas visibilidades possíveis.
O dispositivo funda o filme e não desaparece. O dispositivo é o próprio produtor do que é narrado, não deixando margem para que nada se naturalize. O olho que cria e desaparece no cinema clássico já estava novamente presente no moderno, às vezes ambíguo, chamando o espectador, às vezes incompleto, às vezes silencioso. No filme-dispositivo ele não é mais olhar; é máquina de ver compartilhada com o espectador, é máquina de habitar compartilhada com o personagem. No lugar da invisibilidade ou da visibilidade do aparato, nos filmes-dispositivo todas as relações se dão pelo dispositivo, que não cessa de apontar para as ligações potenciais. (MIGLIORIN, 2008, p. 29)
Essa noção de dispositivo relacionado ao cinema, em especial aos
filmes documentários, se articula diretamente com os conceitos de não-
roteirização apresentados por Jean-Louis Comolli (2008). Eles permitem o
estabelecimento de linhas de fuga às previsibilidades cotidianas da vida e do
próprio audiovisual.
É preciso ter em mente que a proposição de um dispositivo fílmico está
sujeita a falhas, não figurando num modo mágico e infalível de se fazer filmes.
Dispositivos não são receitas de filmes de sucesso ou de produções que de
fato vão acontecer. (PEREIRA, 2011)
A simples adoção de um dispositivo não garante, em suma, o sucesso de um filme, tudo depende de sua adequação ao assunto
76
eleito, mas sobretudo do trabalho concreto de filmagem, que a maquinação anterior não dispensa. (LINS & MESQUITA, 2008, p.57).
Esses dispositivos vão se fundar naquilo que o autor chama de risco do
real. Essa condição de risco, de possibilidade, de virtualidade vai atuar como
movimento de enfrentamento aos scripts presentes no mundo que condicionam
ações, comportamentos e produzem uma ficcionalização da vida comum.
77
3 AS IMAGENS E O DEVIR
3.1 O olhar e as imagens
O que as imagens têm a dizer O que elas demandam de seus
espectadores De que maneira elas se relacionam com o olhar e o ver É
tomando por base perguntas como essas que George Didi-Huberman (1998)
inicia seu trabalho acerca das imagens e das relações possíveis de se
estabelecer com elas.
Costuma-se pensar a imagem apenas como algo estático, como algo
concluído, uma representação cujo sentido consiste em si mesma. Ignora-se
sua potência, sua expressividade para além do quadro, sua capacidade de
realização a partir do olhar daquele que interage com ela.
A imagem está intrisecamente relacionada com o ato de ser vista, ela só
acontece enquanto relação. Há uma construção em ação e reação que permite
que se estabeleça um conhecimento da imagem por parte de quem a vê, mas
também uma demanda por visão advinda da imagem.
O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.29)
O sentido das imagens discutido por Didi-Huberman, assim, se constroi
do que de paradoxal essas imagens apresentam quando em contato com a
visão. As imagens, trabalhadas dessa maneira, incluem dentro do seu cerne
outro paradoxo, que se articula à questão da aura e da quebra da aura,
conceitos discutidos por Walter Benjamin (1985) e que são retomados por Didi-
Huberman (1998).
A noção de aura da obra de arte apresentada por Benjamin (1985) diz
respeito ao “valor de culto” que as obras carregam consigo, aos valores
imaculados dados às imagens pictóricas num momento pré-fotográfico.
As imagens eram valoradas pela sua própria existência enquanto
imagem, não pelo que podem suscitar ao existirem. Quando fala quebra dessa
78
aura, o autor se remete ao próprio poder de inquietação que as imagens
adquirem, cujo caráter indicial não passa mais incólume ao espectador. Isso
marcará a relação humana com as imagens.
Ao abordar as imagens fílmicas documentárias e seus elementos de
processo de criação explicitados em quadro, essas noções apresentadas por
Didi-Huberman (1998) e Benjamin (1985) permitem que se perceba nessas
imagens outra forma de se construir um paradigma visual cinematográfico. Isso
porque, como artefato em criação, as imagens e seus processos trazem a
solicitação de participação do espectador para construção de sentido perante
as obras.
As imagens são continuamente reinstaladas, dependem do olhar do
espectador, de seu repertório para acontecerem. Esse interator, se se pode
chamar assim, integra ele também a rede de criação do filme, porque é nele
que sentidos e caminhos possíveis aparecem. Seu repertório se articula com
os do realizador, os da obra, os do processo.
Essas imagens discutem ainda a própria natureza do cinema, as
mudanças nos regimes escópicos ao longo do curso da história. Nesse sentido,
é possível ver uma correlação entre a aura e a opacidade, e a quebra da aura e
a exposição da transparência. Ao apresentar os modos de funcionamento
cinematográficos e de composição imagética, a mágica cinematográfica se
destitui. O modo de funcionamento do filme se modifica.
Para compreender essa mudança paradigmática da imagem fílmica, é
necessário que se discuta os modos de articulação da imagem no cinema. Isso
porque os filmes-dispositivo não acontecem de maneira isolada na história do
cinema, eles vão responder a uma lógica de transformação dos modos de
narrar cinematográficos identificados a partir do cinema pós-II Guerra Mundial.
Essa compreensão sobre as transformações ocorridas no cinema
permite que se realize de maneira mais clara uma análise dessas imagens-
processo aqui trabalhadas. Ao se perceber o tipo de cinema com que se está
trabalhando, torna-se possível identificar quais imagens surgem desse cinema,
a sua lógica formal e de sentido.
79
3.2 As imagens no cinema
Quando Deluze (1990) trabalha as questões acerca da imagem fílmica,
ele desenvolve uma espécie de taxonomia do cinema para trabalhar as
variantes de imagens a partir de suas características e modulações narrativas.
Para ele, as imagens podem atender a dois grandes regimes visuais: orgânico
e cristalino. As imagens orgânicas serão aquelas que o autor denominará de
imagem-movimento. Já as imagens cristalinas serão conceituadas como
imagem-tempo.
Chamaremos de orgânica uma descrição que supõe a independência de seu objeto. (...) o meio descrito seja posto como independente da descrição que a câmera dele faz, e valha por uma realidade supostamente preexistente. Chamaremos, ao contrário, “cristalina” a descrição que vale por seu objeto, que o substitui, cria-o e apaga-o a um só tempo, como diz Robbe-Grillet, e sempre está dando lugar a outras descrições que contradizem, deslocam ou modificam as precedentes. (DELEUZE, 1990, p.155)
A imagem-movimento tem em si um dos princípios formuladores do
próprio cinema, o movimento. “Quando a imagem é um movimento, as
imagens, ao mesmo tempo em que se encadeiam entre elas, se interiorizam
em um todo que se exterioriza a si mesmo nas imagens encadeadas”
(DELEUZE, 1990, p.105).
A imagem-movimento se relaciona a processos narrativos inseridos num
mecanismo de diferenciação que atende a um constante processo de
diferenciação. Isso permite a formação de distintas imagens e um processo de
integração entre elas.
Essa imagem está associada ao esquema sensório-motor próprio do
dispositivo do cinema, esse esquema funciona por ação e reação. Esses
movimentos de diferenciação darão origem a outros tipos de imagem-
movimento que, por suas especificidades, recebem nomes como imagem-ação,
imagem-percepção, etc.
o cinema de ação expressa situações sensório-motoras: há personagens que se encontram nessa ou naquela situação, e que atuam, se é preciso com uma violência, de acordo com o que
80
percebem. As ações se vinculam às percepções, as percepções se
prolongam em ações”. 8 (DELEUZE, 1990, p. 85-86)
Ao traçar um percurso cronológico de aparição dessas imagens,
Deleuze as relaciona com os regimes imagéticos dos cinemas produzidos num
período anterior à II Guerra Mundial. Nesses cinemas, movimento ainda estava
atrelado à ação do tempo. Nos cinemas do pós-guerra, contudo, essa relação
começa a se alterar. O movimento deixa de subordinar o tempo, e a relação se
inverte com o tempo passando a subordinar a imagem. Deleuze (1990) nos diz
que
o cinema é, a princípio, a imagem-movimento. Nem sequer se trata de uma “relação” entre a imagem e o movimento, apesar de que o cinema cria o automovimento da imagem. Depois, quando o cinema faz sua revolução “kantiana”, quer dizer, quando deixa de subordinar o tempo ao movimento, quando põe o movimento na dependência do tempo (o falso movimento como apresentação das relações temporais), então a imagem cinematográfica se converte em imagem-tempo, em autotemporalização da imagem. (DELEUZE, 1990, p.
108)9
Ao descrever o que seja a imagem-movimento, André Parente (2000) se
refere a ela como sendo o tipo de imagem “que exprime um devir no mundo”
(p.43), daí seus processos narrativos e imagéticos formularem narrativas tidas
como verídicas. Esse tipo de narrativa pressupõe um acontecimento anterior à
própria narrativa. “O acontecimento é tomado no curso empírico do tempo”
(PARENTE, 2000, p.41) e sua verossimilhança advém justamente do fato de
representar algo já passado.
Essas narrativas advindas das imagens-movimento, orgânicas, segundo
Deleuze (1990), recebem o nome de verídicas porque buscam o verdadeiro até
mesmo quando se trata de fiçção. Nessas imagens, pode-se dizer que “o
tempo é objeto de uma representação indireta na medida em que resulta da
ação, depende do movimento, é concluído no espaço. Também, por mais
8 “El cine de acción expresa situaciones sensomotoras: hay personajes que se encuentran en
tal o cual situación, y que actúan, si es preciso con una violencia, según lo que perciben. Las acciones se vinculan a las percepciones, las percepciones se prolongan en acciones.” 9 “El cine es, en principio, la imagen–movimiento. Ni siquiera se trata de una “relación” entre la
imagen y el movimiento, sino que el cine crea el automovimiento de la imagen. Después, cuando el cine hace su revolución “kantiana”, es decir, cuando deja de subordinar el tiempo al movimiento, cuando pone al movimiento en dependencia del tiempo (el falso movimiento como presentación de relaciones temporales), entonces la imagen cinematográfica se convierte en imagen–tiempo, en auto–temporalización de la imagen.”
81
revolvido que esteja, ele continua em princípio a ser um tempo cronológico”
(DELEUZE, 1990, p.155).
A noção de imagem cristalina, para Deleuze, tem a ver com aquelas
imagens que vão romper com o esquema sensório-motor do imagem-
movimento. Essas imagens serão chamadas de imagem-tempo, pois passam a
apresentar situações sonoras e óticas puras “desligadas de seu prolongamento
motor: um cinema de vidente, não mais de actante” (DELEUZE, 1990, p.156).
Dentro desse regime de imagens, as personagens deixam de agir, imagem-
ação, e passam a querer “enxergar” aquilo que existe na situação a qual está
inserida.
O cinema da imagem-tempo é, para Deleuze (1996), o cinema moderno.
Isso porque elas vão responder a outros regimes de formulação, conjugação.
Essas imagens-tempo
não se definem em relação à integração, diferenciação e especificação das imagens, como para a imagem-movimento, mas pela qualidade intrínseca do que se torna imagem (seriação) e pela coexistência das relações de tempo na imagem (ordenação) (PARENTE, 2000, p.47).
Apesar de serem mais perceptíveis e presentes na produção
cinematográfica a partir do cinema moderno pós-II Guerra Mundial, Deleuze
(1990) aponta o cinema de Ozu, nos anos 30 do século XX, como um dos
precursores possíveis dessas variações. Essas mudanças, contudo, vão ser
mais visíveis realmente em filmes como os do neo-realismo italiano e da
nouvelle vague. Há nesses cinemas uma alteração mesmo nos modos como as
imagens se encadeiam e as necessidades são despertadas.
A necessidade de ação é substituída pela necessidade de visão, o que
ocasiona uma mudança no movimento, fazendo com que haja
redimensionamento de movimentos, seja pela sua fixação, seja pelo
desordenamento, exagero, multiplicidade, falta ou variação de escalas de
movimento. “O que conta é que as anomalias de movimento se tornam o
essencial, ao invés de serem acidentais ou eventuais” (DELEUZE, 1990,
p.158).
As modificações nas imagens e em seus regimes fazem com que o
tempo das narrativas também seja alterado. O tempo deixa de ser
82
condicionado indiretamente como resultado do movimento, passando a se ter
uma imagem-tempo que condiciona o movimento.
Não temos mais um tempo cronológico que pode ser perturbado por movimentos eventualmente anormais, temos um tempo crônico, não cronológico, que produz movimentos necessariamente anormais, essencialmente falsos. (DELEUZE, 1990, p.159)
As imagens-tempo formulam narrativas não-verídicas. Segundo André
Parente (2000), a narrativa não-verídica, dysnarrativa10 ou falsificante, seria
aquela cujos processos narrativos/imagéticos são condicionados por regimes
de temporalização, a potência falsificadora do tempo.
Na narrativa não-verídica, o acontecimento preexiste à narrativa, esta não consiste em reportar, relatar ou comunicar uma situação presente, passada ou por vir. A narrativa não-verídica implica um ato de narração ou de presentificação, que abre a imagem e a narrativa a um presente vivo (= a qualidade do tempo), narração que introduz o tempo e a duração no acontecimento e o narrador. (PARENTE, 2000, p. 48).
Um regime de imagem que se pode perceber na imagem-tempo é a
imagem-cristal, em que o atual da imagem e o virtual coexistem segundo o
regime do tempo. O virtual dessa imagem tem a ver com a percepção dessa
imagem como possibilidade, como o que pode vir a ser. A dimensão atual
apresentada em conjunto com o virtual manifesta a natureza múltipla dessa
imagem.
Deleuze se pergunta sobre como essa imagem virtual se coloca diante
da imagem atual. O que é essa imagem “A imagem-cristal não é o tempo, mas
vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não
cronológico dentro do cristal, Cronos e não Chronos.” (DELEUZE, 1990, p.102).
Esse paradoxo presente na imagem-cristal é bastante caro a esta
pesquisa por serem os regimes imagéticos aqui analisados utilizadores dessa
mesma dinâmica entre imagem atual e imagem virtual. Imagem fílmica e
imagem em processo, imagem em devir. É possível ver nessas imagens a
relação entre o passado e o presente, o objetivo e o subjetivo. Essa
10
Conceito formulado por Robbe-Grillet
83
composição dialética da imagem que se manifesta em forma de afectos e
perceptos.
O que o cristal revela ou faz ver é o fundamento oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em dois jorros, o dos presentes que passam e o dos passados que se conservam. De uma só vez o tempo faz passar o presente e conserva em si o passado. Há portanto duas imagens-tempo possíveis,uma fundada no passado, outra no presente. Ambas são complexas e valem para o conjunto do tempo. (DELEUZE, 1990, p.121)
Dos modos de composição da imagem-cristal, pode-se destacar a
situação em que se tem o filme dentro do filme. Quando se tem essa relação
metafílmica, existem necessidades que justifiquem o emprego desse
procedimento. Não é apenas uma questão estética, um recurso discursivo
aplicado no regime da imagem. Essas imagens que falam dos próprios
procedimentos fílmicos, discutem sua própria natureza, tem um propósito que é
especificado pelo próprio curso das imagens.
Quando se aborda as imagem-cristal dos filmes-dispositivo aqui
trabalhados, é essa dimensão do filme dentro do filme que se busca destacar.
Nesses filmes, o uso dos recursos metafílmicos e processuais acontecem não
apenas por uma questão estética. Antes, há uma aposta que passa por uma
discussão política e por uma ética, além de seu potencial estético.
Os filmes-dispositivo tem na explicitação dos processos criativos uma
condição de existência, uma dimensão do possível. O dispositivo acontece
entre controle e descontrole, e é esse paradoxo que permite que as imagens
processuais aconteçam.
Elas não podem ser desconsideradas do filme, uma vez que elas são
também o filme, nesse exercício duplo de existência que remete à própria
relação do processo criativo, que transita entre a liberdade da criatividade e os
condicionamentos dos projetos artísticos. E na imagem isso aparece pela
relação entre a imagem-fílmica e a imagem-processo, que são o duplo de uma
mesma imagem, como que num movimento de espelhamento que permite uma
ação de reflexão ao longo do tempo.
Os modos como dispositivo fílmico, processo de criação e imagem se
articulam guardam uma relação de semelhança com as explicações
84
apresentadas por Deleuze (1990) acerca dos modos de interação que a
imagem-cristal apresenta.
A imagem-cristal tem estes dois aspectos: limite interior de todos os circuitos relativos, mas também invólucro último, variável, deformável, nos confins do mundo, para além dos movimentos do mundo. O pequeno germe cristalino e o imenso universo cristalizável: tudo está compreendido na capacidade de amplificação do conjunto constituído pelo germe e pelo universo. As memórias, os sonhos, até mesmo os mundos são apenas circuitos relativos aparentes que dependem das variações desse Todo. São graus ou modos de atualização que se repartem entre esses dois extremos, o atual e o virtual: o atual e seu virtual no pequeno circuito, as virtualidades em expansão nos circuitos profundos. E é de dentro que o pequeno circuito interior comunica com os profundos, diretamente, através dos circuitos apenas relativos. (DELEUZE, 1990, p.102)
Particularmente, é possível perceber em sua descrição uma
aproximação do modelo relacional dos elementos da rede de criação
apresentada por Cecília Salles (2008b), em que a obra é estabelecida como
um todo complexo composto de partes articuladas e que funcionam em
condição relacional. Percebe-se também uma aproximação com os modos de
articulação do próprio dispositivo fílmico como estratégia narrativa descrito por
Migliorin (2008).
A análise desses regimes de imagem, observando a sua natureza mútua
de imagem e documento de processo, só é possível quando se compreende os
modos particulares de funcionamento dos dispositivos e os caminhos trilhados
pelos seus processos criativos.
Ao analisar um filme, em geral, costuma-se se debruçar sobre todas as
informações disponíveis e recorrer à pesquisa de fontes externas que
complementem as lacunas que se julga haver na construção de um texto.
Busca-se informações sobre sua produção, orçamento, vida pregressa do
diretor, enfim, faz-se um levantamento a lá IMDB11.
11
Internet Movie Database, é um site reconhecido por listar informações acerca de produções audiovisuais tais como filmes, séries, propagandas, etc. Suas listagens incluem as fichas técnicas e de produção dos filmes, fotografias de bastidores, fotografias de lançamentos, bem como sinópses e críticas, além de lista de premiações. Além do banco de dados das produções audiovisuais, existem informações para cada profissional da área do audiovisual e seus currículos. Atualmente o IMDB figura como um dos maiores bancos de dados sobre as produções audiovisuais e tem notável credibilidade entre o meio. O endereço de acesso do site é http://www.imdb.com/.
85
Quando se trabalha com a análise de processo de criação audiovisual, a
essas informações são adicionados materiais que remontem aos percursos da
obra, os chamados documentos de processo de criação.
Como já mencionados, esses documentos de processo não tem uma
forma específica, já que variam de produção para produção, acompanhamento
do modus operandi dos realizadores e de suas equipes. Nos estudos de
processo de criação no cinema, duas vertentes de recolhimento desses
materiais tem se estabelecido como padrão.
A primeira forma tradicionalmente utilizada para trabalhar com os
processos audiovisuais é a que remete ao modelo padronizado pela crítica
genética. O acesso aos documentos de processo da obra só são permitidos ao
pesquisador após o momento em que ela é entregue ao público, após seu
lançamento.
Dessa maneira, o pesquisador realiza um trabalho minucioso de
descoberta de materiais, de investigação em arquivos do realizador e
catalogação de dados que possam de fato ser considerados como documentos
de processo válidos para a pesquisa.
Nesse tipo de trabalho, o analista vai se debruçar diante de um mosaico
de elementos, cujos encaixes de peças ele vai inferir a partir da análise
individual dos materiais. Após essa análise inicial, ele pode começar a
composição da rede de criação (SALLES, 2008) e proceder à crítica de
processo de criação.
A segunda maneira que se pode citar é o trabalho de acompanhamento
da obra em curso, com o analista participando do set de filmagens. Esse tipo
de coleta de dados pode ser associado a uma prática etnográfica, à primeira
vista, se se pensar que o pesquisador vai ao campo e registra as atividades de
produção no momento de seu acontecimento.
Além de seus registros in loco, ele pode ter à sua disposição materiais
cujo processo de elaboração ele acompanhou seja nas reuniões com a equipe
de produção, seja nos momentos de gravação, tais como as ordens do dia12,
12
Ordens do dia são documentos de planejamento diários elaborados pela equipe de produção de um filme ou produto audiovisual. Nelas estão determinadas a agenda do dia, com horários e programações pré-determinadas, os profissionais envolvidos naquele dia de trabalho, as sequências a serem realizadas, as locações, equipamentos a serem utilizados, figurinos, enfim,
86
relatórios de continuidade13, boletins de som14, sequências de roteiro com
anotações dos atores ou do diretor, storyboards, versões do roteiro,
decupagem técnica das cenas, versões brutas e cortes do filme.
Com essa forma de se obter materiais sobre o processo de criação, ao
acompanhar a realização do filme, o pesquisador se torna ele mesmo um
produtor de documentos acerca daquela produção. Ele constrói uma noção em
torno dos documentos e da própria obra que só é possível porque ele esteve
presente nos momentos de realização.
Essa proposta de trabalho se aproxima do que é preconizado pelos
estudos de Etnomedologia (COULON, 1995), em que a construção dos
sentidos se apresenta pela vivência dos fenômenos.
Esses modos de se pesquisar e analisar os processos de criação,
contudo, vão se valer sempre de elementos que são externos ao filme, de
informações que, em muitos casos, não estão dadas na obra.
Eles são aplicáveis e extremamente válidos para modelos de produção
ancorados numa perspectiva mais clássica da realização fílmica, audiovisual.
Seja ela ficção ou documentária, a obra não apresentará em si essas
referências e despertará o interesse por se descobrir mais a respeito da sua
realização. São modelos de criação ancorados pelo já citado regime escópico
da transparência.
Contudo, notou-se na produção audiovisual documentária
contemporânea a utilização de uma maneira mais preponderante de recursos
estéticos que permitem um visionamento que vá além da mimese com o
mundo, da representação que conduz a uma interpretação de sentidos em que
tudo que sirva de direcionamento para a atividade da equipe naquele dia específico. A ordem do dia é um instrumento fundamental na produção de um filme por servir de mensurador econômico, do ponto de vista da distribuição dos recursos, e também criativo, por organizar e distribuir as partes da produção pela quantidade de tempo que se tem para executar. 13
Produzidos pela equipe de continuidade do filme, como o próprio nome diz, tem por função registrar os momentos de pausa das cenas, detalhes técnicos. Registra ainda quais cenas gravadas foram aprovadas e quais foram descartadas e os motivos. Ele é de fundamental importância nos momentos de edição e montagem do material, uma vez que ao se guiar por esse relatório, pode-se ir para momentos específicos das gravações, sem ter de assistir ao total completo de horas brutas filmadas. 14
Elaborados pela equipe de direção de som, tem função semelhante à do relatório de continuidade ao demarcar quais pistas de áudio são as desejadas e a quais trechos e personagens se referem.
87
a forma fílmica não está mais tão diluída em favor dos conteúdos e temas
sobre os quais os filmes se debruçam.
Assim, percebe-se uma ruptura declarada com o modelo de cinema
clássico, uma reconstrução do moderno com outros estabelecimentos de
paradigmas que vão se basear na exposição das texturas, nas camadas
opacas.
No clássico, os procedimentos e os olhares se subordinam ao drama; é um cinema “orientado para a personagem” (expressão de David Bordwell) que procura prender o olhar a motivos que têm o drama como centro e impedem que o espectador perceba que “as folhas se movem”. No cinema moderno (versão europeia), há um movimento de reposição daquela dimensão da imagem pouco ou nada explorada pelo clássico. Renova-se a atenção ao dispositivo e pergunta-se de
novo “o que é o cinema”. Vem ao centro o “o que lhe é próprio”, seja a ambigidade do real (Bazin e os fenomenólogos), o lírico-poético (Pasolini), a imagem-tempo (Deleuze) ou a imagem-figura (Jacques Aumont). (XAVIER, 2008, p.194)
Como um dos modos possíveis de articular essa opacidade da imagem,
de fazer surgir em cena elementos que articulam sensos estéticos, éticos,
políticos, o cinema dos dispositivos internos aos filmes se apresenta. É por
meio do estabelecimento de dispositivos fílmicos como uma estratégia narrativa
que muitos realizadores vão trabalhar as discussões entre suas camadas
imagéticas. Como trabalhado no capítulo anterior, o cinema do dispositivo
permite estabelecer outras articulações entre movimento e tempo. Ele não
reproduz mais imagens, ele é essas imagens.
Ao se perceber que tais obras trazem consigo características peculiares
quanto aos modos de feitura fílmica, observou-se quais os resultados dessas
estratégias. Que tipo de filmes resultam desse cinema Quais discussões
essas imagens trazem O que é esse cinema
Todas essas perguntas se articulavam com compreender o dispositivo
particular de cada filme e enxergar nas imagens os elementos declarados de
seus percursos de realização.
No entanto, estudar essa articulação de imagens fílmicas e do que aqui
se chamará de imagens-processo à luz das práticas estabelecidas
tradicionalmente pelos estudos de processo de criação não se mostrava como
uma perspectiva viável. Isso porque tais imagens são inundadas por um
88
dinamismo construtivo que está pleno de potência. Ao trabalhar essas obras
apenas como um elemento norteador do mosaico a ser construído com base
em seus documentos, era visível a ruptura que se estabelecia na apreensão
dos sentidos do filme em devir.
Para o caso particular desses filmes, eles mesmos precisavam estar
presentes nas análises, uma vez que essas imagens-processo também estão
contidas na imagem fílmica. Entender os meandros da criação audiovisual aqui
passa por entender o filme. Há neste trabalho uma percepção de que três tipos
de análises simultâneas se procedem: análise das imagens, análise dos
encadeamentos narrativo-dramáticos e análises de processo.
Assim, pensando nessa dinâmica de trabalho, a dimensão de coleta de
dados passa a se realizar no visionamento do próprio filme. É nessas imagens
com seus múltiplos que a análise fílmica processual vai encontrar os seus
documentos investigativos.
É pela força do que resiste de processual à montagem que se descobre
as possibilidades do filme e se entende que os caminhos ali apresentados
estão ali por uma necessidade, uma vez que o filme se faz deles, por eles, com
eles.
Para isso, dentro do que aqui se chama de análise fílmica processual,
levar-se-á em conta os seguintes critérios: utilizar apenas o filme como objeto
de análise; analisar processo e obra a um só tempo; identificar os dispositivos
fílmicos e os modos como o processo se articula na obra; levar em
consideração as particularidades dos dispositivos fílmicos na análise. Esses
critérios foram estabelecidos a partir da hipótese seguida por esta pesquisa.
Quantos ao procedimentos, o primeiro momento da análise se dá pelo
uso da descrição dos dispositivos, do processo e das cenas. Assim é possível
apresentar um panorama do objeto em análise para que o leitor se familiarize
com os aspectos mais básicos do filme em questão e possa assim acompanhar
os movimentos da análise.
Posteriormente a essa atividade de descrição, o passo seguinte está em
identificar quais elementos internos ao filme podem ser considerados
documentos de processo e apresentar como esses elementos se articulam com
os dispositivos construídos pelos realizadores. Trata-se aqui de trabalhar os
89
modos como os tipos de dispositivo estabelecidos propiciam a explicitação do
processo criativo e atuam no cerne da construção das imagens.
Para essa etapa é fundamental um entendimento sobre o próprio
funcionamento da produção cinematográfica, particularmente os modos de
criação documentária contemporânea, uma vez que há uma peculiaridade nos
modos criativos dessa prática fílmica no que concerne às variantes abordagens
de personagens, os modos de narrar, a ética documentária, os recursos
próprios de imagens utilizados.
É importante pensar nessa particularidade porque assim como cada
dispositivo tem seu caráter único, os processos criativos disparados por esses
dispositivos respondem a essa unicidade.
A análise que se sucede a esses procedimentos se faz ao relacionar-se
a descrição e a identificação de todos esses elementos, percebendo os
comportamentos das imagens e a possibilidade de se acessar o processo
fílmico tomando o filme como esse duplo concomitante: obra e documento.
Com as análises a seguir, o que se apresenta é justamente esse modelo
em funcionamento, essa perspectiva que enxerga esse duplo, esse múltiplo na
obra fílmica que também é documento de si mesma, sem que se necessite
recorrer a informações outras além daquelas que os filmes já apresentam.
O corpus desta pesquisa é composto pelos filmes Câmara Escura
(2012), de Marcelo Pedroso; Moscou (2010), de Eduardo Coutinho; 33 (2003),
de Kiko Goifman; e Um Passaporte Húngaro (2002), de Sandra Kogut.
A escolha desses filmes para integrarem o corpus da tese se dá porque
ambos apresentam sua articulação via dispositivo e se utilizam da explicitação
do processo como modo de existência. As imagens desses filmes só existem
enquanto processo, enquanto composições visuais e sonoras atravessadas
pelo devir.
O fato de suas datas de realização se extenderem desde o começo dos
anos 2000 até o momento atual também serve como demonstrativo de que
essas produções não ocorrem num momento isolado da cinematografia
nacional, antes têm se consolidado como formato narrativo e recorrente.
Outro fator de escolha do corpus foi a participação do diretor diretamente
ligado ao sujeito da câmera (RAMOS, 2008). Assim, esses filmes têm como
90
fundamento a sua natureza processual e também se aproximam daquilo que
Nichols (2005) nomeia de documentários performáticos. Essa participação do
realizador, de sua narração em primeira pessoa, traz um caráter mais pessoal
da instância do ato criador.
Nos modos documentários, referir-se ao documentarista é uma prática
comum desde seus primórdios. O documentário, por sua dimensão geralmente
crítica, apresenta a visão de uma pessoa, é credenciada à voz de um
realizador.
Com o cinema verdade, essa presença do diretor nos filmes se tornou
ainda mais perceptível. Em Crônicas de Um Verão (1961), Edgar Morin e Jean
Rouch instituem definitivamente essa prática, essa postura mais participativa
dentro da obra, essa postura performativa. Jean Rouch é um formulador, um
teórico. Seus textos sobre etnografia e sobre cinema etnográfico já trazem
parte de sua discussão acerca da postura do realizador e sua relação com a
câmera.
Então para mim, a única maneira de filmar é andar com a câmera, levando-a aonde ela é mais efetiva e improvisando outro tipo de ballet com ela, tentando fazer isso enquanto as pessoas são filmadas. Eu considero essa dinâmica de improvisação como uma primeira síntese do cine-olho de Vertov e da cãmera participativa de Flaherty. Eu costumo comparar isso com a improvisação de um toureiro diante do touro. Aqui, como lá, nada é previamente conhecido; a suavidade da tourada é bem semelhante à harmonia de uma tomada em traveling que articula perfeitamente os movimentos que estão sendo filmados. Em ambos os canos, é uma questão de treinamento, dominando os reflexos como um ginasta. Assim, ao invés de usar o zoom, o cameram-diretor pode realmente chegar ao sujeito. Conduzindo ou seguindo um dançarino, padre, ou artesão, ele não é mais ele mesmo, mas um olho mecânico acompanhado de um ouvido eletrônico. Esse é o estado de estranha transformação que toma conta do realizador que eu chamei, analogamente do fenômeno de possessão, de "cine-transe". (ROUCH, 2003, p.38-39)
15
15 For me then, the only way to film is to walk with the camera, taking it where it is most effective
and improvising another type of ballet with it, trying to make it as the people it is filming. I consider this dynamic improvisation to be a first synthesis of Vertov's ciné-eye and Flaherty's participating camera. I often compare it to the improvisation of the bullfighter in front of the bull. Here, as there, nothing is known in advance; the smoothness of a faena is just like the harmony of a traveling shot that articulates perfectly with the movements of those being filmed. In both cases as well, it is a matter of training, mastering reflexes as would a gymnast. Thus instead of using the zoom, the cameraman-director can really get into the subject. Leading or following a dancer, priest, or craftsman, he is no longer himself, but a mechanical eye accompained by an electronic ear. It is this strange state of transformation that takes place in the filmmaker that I have called, analogously to possession phenomena, "ciné-trance". (ROUCH, 2003, p.38-39)
91
No cinema brasileiro, um exemplo desse tipo de participação do
realizador na obra são os filmes de Eduardo Coutinho (1933-2014). Seus filmes
se tornaram referência a um modo de filmar específico, principalmente pela
habilidade com as entrevistas. Acerca do seu modo particular de realização
fílmica, numa entrevista concedida à revista Contracampo (EDUARDO et al.,
2002) Coutinho fala de sua predileção pelas histórias e expressões individuais
das personagens e de como procede em seus filmes.
Para mim, documentário é escavar. E esse limite te inibe os vôos ideológicos e idéias pré-concebidas. Quando você tipifica uma pessoa, quando você a objetiva, você mata a singularidade da pessoa. É a destruição moral e cívica do indíviduo e do personagem. Ela não pode ilustrar uma idéia generalizada minha. Tenho de criar uma prisão para encontrar os personagens no escuro. Precisa ter esse risco porque cria um sentimento de urgência. Tenho de filmar aqui e nesse prazo. (EDUARDO et al.,2002)
Eduardo Coutinho trabalha suas cenas dentro de uma lógica que ele
auto-intitulou de aprisionamento, em que ele constroi uma circunscrição à
figura da personagem onde a profusão da fala e das histórias ganha destaque.
Ele, como realizador inserido na cena, tem papel de condutor e estimulador
dessas narrativas, a sua performance é mais gerencial do que ativa.
É o que acontece em Moscou (2010), filme que apresenta o processo de
montagem da peça As Três Irmãs (1900), de Anton Tchekhov, pelo grupo de
teatro Galpão, de Minas Gerais. O filme tem o processo de criação da peça
como mote para a sua realização. As cenas são conduzidas de modo a terem o
tom de ensaio, mas ao mesmo tempo já se concretizam pela performance dos
atores diante das câmeras.
Ao trabalhar nas cenas fílmicas a construção das cenas teatrais,
Eduardo Coutinho atua nas imagens como um coordenador, sua participação
nunca é a de sujeito da câmera. Existe certo distanciamento do centro da ação,
em que sua figura só se mostra nos momentos de reunião com a equipe.
Já nos demais filmes adotados para o corpus, e em diversos outros
filmes documentários brasileiros contemporâneos cujas estratégias narrativas
se baseiam em dispositivos fílmicos, a postura do realizador em relação ao
processo é uma postura dinâmica, ativa. Muitos desses trabalhos, inclusive, se
92
baseiam em propostas auto-biográficas, como é o caso de dois dos três filmes
aqui trabalhados.
O ato de trazer a narração para a primeira-pessoa também interfere
diretamente no tipo de performance apresentada. Não existe uma terceirização
do olhar tão imponente, antes uma aproximação com quem vê, até como um
requisito de atenção às imagens. As imagens se tornam, dessa maneira, elas
próprias extensões dos corpos dos realizadores-personagens, esses sujeitos
das câmeras.
Cada obra analisada apresenta particularidades quanto à construção
dos seus dispositivos e tipos de imagem-processo que apresentam. Analisar
essa diversidade serve, ainda, como uma amostragem de confirmação da
incidência de nossa hipótese: os filmes podem servir como documentos de
processo deles mesmos e é possível estabelecer uma análise desse processo
apenas baseada nas imagens fornecidas pelas obras, sem a necessidade de
se recorrer a documentos externos.
3.3 Imagem-presente
A câmara escura é um aparato de natureza ótica. Consiste numa
estrutura que pode ser uma caixa completamente vedada. Possui em uma de
suas faces um pequeno orifício que permite a entrada de luz. Na parede
diametralmente oposta à do orifício, é colocada uma suprfície sensível à luz. A
luz que entra pelo orifício projeta uma imagem que é inscrita nessa superfície
sensibilizada.
A qualidade da imagem obtida por meio desse aparato dependerá do
tempo de exposição, o tamanho do buraco feito e do tipo de superfície
sensível. O princípio da câmara escura é precursor do funcionamento das
câmeras fotográficas. Nos modelos ópticos analógicos, as imagens obtidas por
esses aparatos se configuravam numa surpresa, num presente, sua obtenção
já significava um ganho. Havia um mistério quanto à sensibilização das
películas e os resultados visuais alcançados.
93
Esse risco das imagens se apresentava como uma característica da
prática. Essas imagens estavam sempre em questão quanto à sua existência,
ao seu valor estético e de registro até o momento de sua revelação.
A imagem-presente.
[Ação]
Uma imagem levemente trêmula faz surgir em cena um conjunto de altos
edifícios apresentados numa perspectiva de vista em plongée. Por entre o
emaranhado de fios, é possível contar quatro prédios relativamente próximos
uns dos outros. Uma árvore figura à direita do quadro, permitindo que se tenha
um referencial de altura das torres. Elas ultrapassam e muito o comprimento da
planta. Em um movimento panorâmico descendente diagonal, a câmera conduz
o olhar do espectador para o lado esquerdo da tela.
Telhados, caixas d'água, cercas elétricas, pedaços de muros e até
mesmo um poste de luz vão entrando em cena. As imagens seguem em plano-
sequência. Uma casa com cerca elétrica, muro rosado que permite que se veja
um pé de boungaville em flor. As paredes revestidas de cerâmica remetendo a
um mosaico também tem um tom de rosa. Essas cores se contrastam com o
tom amarronzado do portão, da caixa de correios e do intercomunicador da
campainha. Numa composição em azulejo pode-se ler a seguinte inscrição: R.
Ir. Maria David, 136.
A câmera e quem a opera estão defronte para essa casa. Seguem com
o panorama em sentido horizontal. O titubear da imagem traz um ar subjetivo à
cena, uma vez que impedido pela lógica motriz corporal de seguir com o plano-
sequência horizontal em direção à esquerda do quadro e que permitia ver mais
um portão e o prologamento do muro contemplado, a câmera passeia de volta
para a direita da tela.
Procura-se uma estabilidade da imagem, um quadro que se experimenta
na mostração dessa fachada. À essa tentativa de estabilidade, novos
movimentos de instabilidade da imagem se inscrevem na cena. Um ir e vir de
lado a lado que parece acompanhar passos. A imagem da fachada da casa vai
sendo aproximada nesse claro movimento da câmera rumo a ela.
94
À aparente sutileza dos panoramas iniciais da cena, segue uma rápida
movimentação dentro do quadro e uma aproximação dos elementos
anteriormente mostrados à distância. A imagem chega muito perto da parede,
do portão, apresenta os detalhes do olho mágico e da campainha. Passeia por
esses objetos num fluxo de idas e vindas, provocando um contraste entre os
movimentos horizontais e as formas verticais dos detalhes do portão.
Nessa sequência de movimentos rápidos, ainda em plano-sequência,
uma virada no eixo na imagem acontece e entra em quadro um close up de um
homem. É ele quem opera a câmera. É a sua perspectiva e subjetividade do
olhar que conduz o olhar de quem assiste.
Ao aparecer em quadro, numa proximidade que ocupa quase toda a tela,
ele parece investigar a câmera, observar seu funcionamento. Move um
anteparo em direção ao aparato e o quadro é mergulhado em escuridão.
Apesar da ausência de imagem, é possível ouvir o som da campainha tocar. Ao
ser atendida, recebe a seguinte mensagem: opa, bom dia! Tem uma
encomenda aqui na frente.
[Corta]
Figura 3 – Still de Câmara Escura
Fonte: DVD de Câmara Escura
95
A cena descrita acima se trata do minuto inicial do filme Câmara Escura
(2012), de Marcelo Pedroso. Algumas famílias são sorteadas pelo realizador e
sua equipe para receberem câmeras de presente. Envoltas em caixas, as
câmeras são deixadas nas portas das casas após um aviso feito pelo
intercomunicador das campainhas das portas. No aviso, nada de
apresentações ou de explicações, restando somente um prenúncio e uma
expectativa gerada pela mensagem: “tem uma encomenda aqui para vocês, é
um presente”. No filme, quatro casas distintas aparecem recebendo os
presentes.
Vê-se em Câmara Escura (2012) a formulação daquilo que
anteriormente foi apontado como dispositivo como estratégia narrativa. No filme
é possível ver toda a formulação da proposta e a ativação do processo de
realização fílmico. O que leva a outro ponto dentro dessa observação dos
dispositivos como estratégia narrativa: o uso de imagens de processo nos
filmes. Melhor dito, as imagens de processo tornam-se elas próprias os filmes,
já que imagem fílmica e seus momentos de realização se tornam aqui
indicissociáveis.
Nessa sequência de ações apresentadas acima tem-se a faceta de
controle do dispositivo construído pelo realizador mostrado em seu
funcionamento. Essa apresentação do dispositivo e a sua forma de articulação
com o processo de criação é feita a partir da análise fílmica processual. O
espaço de ação pensado e a busca por reação. Com o tocar da campainha, há
a ativação da instância do outro em quadro, o convite ao jogo proposto pelo
realizador e seu filme.
Um dos objetivos é registrar as reações das pessoas ao aparato e
depois receber as imagens de volta, para que elas componham o filme.
Câmara Escura (2012) discute em seu dispositivo/argumento a relação das
pessoas com o medo, com a cidade, com o outro, consigo. Discute a dinâmica
de realização fílmica, seus caminhos, suas fragilidades.
96
Figura 4 – Still de Câmara Escura
Fonte: DVD de Câmara Escura
[Ação]
Ao corte do plano inicial, se segue, ainda com a tela escura, um som de
manipulação de um objeto. Repentinamente, a tela é mergulhada em luz e
paulatinamente uma imagem começa a se construir em cena. É um rosto.
Dessa vez, não mais do realizador, agora tem-se um outro homem, cujo olhar
investiga o objeto encontrado. A imagem conduzida por esse homem é trêmula,
descoordenada, composta de recortes muito rápidos de sua imagem, do céu,
pedaços das paredes.
[Corta]
Ao deixar a caixa, o realizador (que também é personagem de seu filme)
e sua equipe, que filmavam tudo até ali, deixam o local, não registrando
surpresa, espanto, desconfiança ou qualquer que seja a reação dos
personagens-moradores das casas acionadas. Essas reações são registradas
pela câmera presenteada, que já havia sido deixada à porta ligada e com seu
modo de gravação ativado. São essas imagens que o realizador busca, é esse
97
encontro dos homens e mulheres com o objeto invasor de suas casas por eles
não identificado.
Aqui as imagens são cruas e estão ali para registrar um processo. Seu
sentido plástico advém desse próprio estágio de imagem inacabada, frágil, em
construção, experimental. São imagens titubeantes, imagens vacilantes muitas
vezes, mas que dão conta dessa realização. O argumento aqui tem o objetivo
de estabelecer um movimento não previsto no tempo e no espaço,
proporcionando com que haja filme.
Filme de curta-metragem, Câmara Escura se lança numa longa
discussão permeada de questões que unem a prática cinematográfica
contemporânea e a vida em sociedade na contemporaneidade como motor que
alimenta essa prática. Como a presença de câmeras e gadgets tem se tornado
cada vez mais frequente nas rotinas e como esses objetos são fruto de
estranhamento uma vez que são tirados de seu contexto, que são colocados
em uma situação aparentemente nova para quem entra em contato com eles.
É o que acontece no filme.
[Ação]
O quadro apresenta uma superfície cinza. Em seguida, uma mão e uma
régua entram em cena. Pela textura da superfície cinza, percebe-se que se
trata de um material espumoso. Os elementos são mostrados em detalhe.
Outra mão entra em quadro conduzindo uma caneta marcadora preta, que
traça na espuma cinza uma linha com o auxílio da régua.
A cena é cortada para outro ângulo de visão da ação. Um contraste com
o plano-sequência inicial apresentado. A imagem é visualmente trabalhada.
Não existe nela a fragilidade da cena anterior. Planos com mãos traçando
linhas em superfícies com auxílio de régua vão se sucedendo num arranjo de
montagem que não as coloca em continuidade, mas em movimento
descontínuo.
Um estilete agora corta a espuma marcada com linhas retas. A partir dos
cortes, mãos promovem as separações dos pedações da espuma cinza em
98
blocos. Um novo corte ocorre. Um tecido de tom esverdeado é entrecortado por
uma tesoura.
A imagem corta para um dos blocos cinzas de espuma que apresenta
um recorte retangular estreito em seu centro. Essa espuma é coberta com um
pedaço do tecido que foi cortado. Ele apresenta um corte que se encaixa com o
da espuma. A vista dessas cenas é em plano-detalhe.
O tecido e o recorte da espuma são cuidadosamente encaixados, com o
objetivo de revestimento. Novo corte. Uma caixa de madeira aparece em
quadro e mãos conduzem uma lixa sobre a tampa. A caixa é lixada. O plano
seguinte apresenta a caixa sendo pintada. O detalhe do pincel cuidadosamente
envernizando a caixa é apresentado.
Em seguida uma vista superior da tampa da caixa e seu pequeno fecho
frontal são mostrados. Ela é aberta e o conjunto formado pela espuma
revestida de tecido vai sendo cuidadosamente encaixado em seu interior. No
recorte no centro do forro da caixa, uma cãmera branca é encaixada. A caixa é
fechada e travada.
[Corta]
Figura 5 – Still de Câmara Escura
Fonte: DVD de Câmara Escura
99
As opções estéticas de imagem utilizadas servem para identificar as
vertentes de controle e descontrole do dispositivo. De um lado, quando se trata
das imagens externas, da ação do realizador-personagem na entrega das
caixas, as imagens são trêmulas, desenquadradas, vacilantes, descontroladas.
Por outro, quando se dá a ver a formulação da caixa-presente, as composições
de cena são milimetricamente articuladas e fotografadas.
[Ação]
Com uma vista superior de cena, aparece em quadro uma máquina de
escrever com uma folha branca de papel em que palavras vão sendo
datilografadas.
“Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, um olho
livre aos preconceitos da lógica da composição, um olho que não responde aos
nomes que a tudo se dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na
vida através da aventura da percepção.”
É possível ver que mais de uma cópia do escrito foi feita. As folhas são
recortadas cuidadosamente com auxílio de régua e estilete.
A cena seguinte mostra o diretor, Marcelo Pedroso, juntamente com um
rapaz. Os dois estão na rua vista na primeira sequência do filme. Andam pela
calçada e se dirigem à primeira casa apresentada, a de calçada e muros cor de
rosa. O acompanhante de Marcelo traz em suas mãos um conjunto de caixas
que parecem ser de DVDs.
Eles tocam a campainha. O quadro é composto em duas partes: por
uma parte do portão e muro da casa, mostrando interfone e caixa de correios; e
pela figura do diretor-personagem exposto em plano médio com uma parte da
rua aparecendo.
No interfone, uma voz de mulher responde. Marcelo se identifica como
"o rapaz que esteve aqui ontem". A mulher do lado de dentro da casa adverte
que está sozinha e que não vai abrir a porta para ninguém, pois seu esposo e
100
filho estão ausentes, ela está sozinha. Ela prefere que marido e filho resolvam
a situação com o realizador.
Ela pergunta se Marcelo deseja deixar o endereço para que ela envie o
material pelos correios. Questiona se ele mora em Recife. Quando ele
responde afirmativamente à pergunta, seu rosto expõe preocupação e toma-se
conhecimento de que houve uma situação prévia, não registrada pelo filme, de
mal estar com a família da casa.
Marcelo argumenta que levou alguns materiais para apresentar à
mulher, mas ela reafirma que não abrirá a porta de casa para ele. Ela prefere
que ele forneça o endereço dele para que ela remeta a "fita". Quer saber onde
ele mora. Ele responde: é aqui perto, em Parnamirim. Nesse momento, a
mulher questiona: e qual é a finalidade de vocês fazerem esse filme?
Marcelo responde: olhe, é um filme, justamente, que a gente está
descobrindo aos poucos, sabe? É um filme que a gente está fazendo essa
experiência de deixar a câmera com as pessoas e conversar sobre o processo,
sabe, conhecer as pessoas, as pessoas também nos conhecerem.
Mulher: Mas assim você está é amendrontando a gente, que a gente já
vive apavorado, vocês estão invadindo uma privacidade.
Marcelo: Mas o sentimento de ontem, desse apavoramento já passou
mais, a senhora já está mais tranquila?
Mulher: Olhe, pra sincera eu não estou não, mas agora eu vou anotar
seu endereço. Você diga seu nome, seu endereço pra mandar pelo sedex...
você mora em casa ou edifício?
Marcelo: É num apartamento.
Mulher: Espere aí que eu vou buscar um papel, só um minuto. Volte a
tocar que eu vou deixar o interfone desligado.
101
Enquanto a mulher desliga o interfone, o acompanhante de Marcelo
interage com ele. Não se vê sua imagem em quadro, apenas sua voz que
questiona se eles deixarão o material lá, se a mulher abrirá a porta. Ao que
Marcelo responde não saber, o colega sugere que coloquem os DVDs pela
caixa dos correios.
Marcelo concorda, acha que é uma boa ideia. O colega pede que ele
avise que vai deixar o material na caixa dos correios. Durante todo esse tempo
de cena, o enquadramento se mantém inalterado.
Após esse diálogo, a cena é cortada e há uma variação no
enquadramento, que agora apresenta uma vista frontal do portão e do muro,
com Marcelo dizendo seu nome completo e seus dados pessoais para a dona
da casa pelo interfone.
O diálogo se dá por pausas e esperas. Outro corte acontece e a câmera
agora está postada do outro lado da rua. Em quadro os muros da casa, o
portão, um operador de áudio, o colega que carrega os DVDs e Marcelo
Pedroso.
A mulher explica o porquê de sua reação ao equipamento: Você sabe,
no mundo em que a gente está vivendo, aparece um negócio desse totalmente
esquisito. Você vai pegar uma câmera, um equipamento desse pra botar dentro
duma casa, vocês estão correndo até perigo.
Marcelo diz entender os argumentos da mulher e ela questiona quem
está falando com ela, se referindo a ele como "o moreno que estava no portão".
A mulher segue falando dos tipos de perigo a que a equipe se expôs com tal
projeto, alerta que eles podem sofrer alguma represália em outra casa, se
encontrarem um "doidão" no caminho.
Durante a fala da mulher, pequenos cortes acontecem, mostrando a
duração da conversa com ela. A cena é encerrada com um plano médio
mostrando Marcelo depositar os DVDs de seus filmes na caixa dos correios da
casa e interagindo com os colegas: vamos lá?!
[Corta]
102
Figura 6 – Still de Câmara Escura
Fonte: DVD de Câmara Escura
As imagens que apresentam os momentos de encontro das casas e
entrega das caixinhas parecem vasculhar o entorno da ação, tentam se
apropriar do espaço que compõe o entorno das casas. É interessante observar
que há três perspectivas de condução das cenas no filme que correspondem a
três câmeras em ação: a câmera das caixinhas, a câmera da equipe e a
câmera estéril que registra a montagem da caixa e a escritura do manifesto.
Manifesto esse que depois se saberá, quando aparecem os créditos,
tratar-se de um trecho do texto Metáforas da Visão, de Stan Brakhage. O texto
fala sobre um olhar que não atua segundo as lógicas da percepção pré-
estabelecida, que deve agir de maneira experimental, construindo suas
próprias dinâmicas de visão.
O texto verbaliza, assim, os intentos do dispositivo, esse choque de
visualidade e interpretação objetiva proporcionados pela entrega das caixas. A
reação à entrega das câmeras demonstra exatamente isso. As atitudes dos
recebedores não se encaixam no comportamento esperado diante de uma
câmera no momento histórico em que o filme foi feito, em 2012.
103
Isso porque há uma popularização tremenda dos aparatos visuais, a
começar pela sua presença dupla na maior parte dos aparelhos celulares
disponíveis no mercado. Há ainda o fato para o próprio filme atenta em uma de
suas cenas, que é a presença de câmeras de vigilância por todos os lugares.
Isso traz uma verdadeira dimensão panóptica da visão.
Assim, o dispositivo do filme pode ser considerado um dispositivo
biopolítico (FELDMAN, 2010). Isso acontece
quando a privacidade se torna publicidade, quando a experiência se torna jogo e a vida se torna performance, estamos diante de um investimento biopolítico na vida, em sua força plástica, modulável e inesgotável, continuamente destinada a ser capturada e escapar, a se adequar e resistir, a ser otimizada e fracassar. (FELDMAN, 2010, p.122)
A ação de entrega das câmeras acontece da seguinte maneira: o carro
da equipe estaciona e dele salta Marcelo Pedroso segurando a caixa numa
mão e a câmera na outra.
Existe a preocupação de com a câmera que vai ser entregue no
momento, fazer imagens locativas da casa e de sua fachada. Isso, supõe-se,
servirá para futura identificação sobre a origem das imagens, a que casa elas
correspondem. Após essas tomadas e os testes de funcionamento das
câmeras, o diretor-personagem se aproxima da casa, toca a campainha e
guarda a câmera na caixa.
No filme as situações de controle pedem pelo descontrole da ação das
personagens. A ação é alimentada por esse contato entre os personagens e as
câmeras, pelo seu desconforto e até mesmo por suas reações totalmente
inesperadas.
Outro recurso imagético que o filme apresenta se realiza no trabalho dos
elementos sonoros. Seu som, basicamente composto por captação direta, é de
fundamental importância para evocar as imagens em criação, o curso das
cenas que são provocadas pelas caixas-presente quando abertas pelos
personagens-moradores.
Como as câmeras são deixadas com o modo de gravação ativado, antes
mesmo de ver os receptores, é possível ouvir o que se passa no ambiente
interno das casas. As reações provocadas pelo recebimento das câmeras, as
104
elucubrações acerca do conteúdo do presente. O som também é o instrumento
de corporificação das personagens que existem a despeito do muro de
separação entre as casas e as ruas. É pela voz captada dos interfones que
essas pessoas existem, que penetram o espaço da diegese.
O som entra como elemento fundamental para a construção da dupla
natureza dessas imagens, para sua apresentação enquanto filme e processo,
uma vez que as imagens obtidas pelas câmeras deixadas nas casas, muitas
vezes se direcionam a elementos fixos e sem representação específica. Isso
porque os personagens-moradores, em sua maioria, apresentam uma relação
de rejeição ao artefato, até mesmo de manipular o equipamento.
Não pela sua natureza de câmera, mas por temerem se tratar de um
golpe, como em uma das cenas, em que um homem conversa com o outro
sobre o modo de manipular o aparato. Dentro de um contexto social marcado
por desconfiança e violência, uma das famílias “presenteadas” pelo realizador
encara o artefato como se se tratasse de uma bomba, explosivo, ou mesmo um
elemento de espionagem visando ao sequestro da família. Assim, câmera,
família e realizador (e com eles o próprio filme) vão parar na delegacia de
polícia, a fim de esclarecer os acontecimentos.
Após a cena de esclarecimento com a mulher da casa rosa, a cena que
se segue é de um dos trechos presentes na abertura do filme. Essa imagem
aparece aqui repetida, mas com a continuação da ação, a percepção dela se
torna diferente. Ao abrir a caixa, sem saber que o som está sendo captado, o
primeiro elemento em que o homem que abre a caixa repara é a marca da
câmera.
Ouve-se a voz masculina ler: sony. Há uma preocupação em não se
deixar capturar. Visualmente, nessas cenas, o filme existe enquanto devir, na
perspectiva não aurática da imagem, que intriga quem a enxerga, que provoca
uma curiosidade de apreensão de todos os possíveis elementos em quadro. É
a imagem-cristal mesma em funcionamento, com seus elementos óticos e
sonoros puros, aplicados à compreensão dos meandros da realização do
projeto artístico.
105
A discussão da realização fílmica só é possível pela discussão da
relação entre os personagens-moradores e os artefatos. As imagens são as
mesmas, mas permitem acessar ambos os níveis discursivos.
Uma das casas escolhidas para compor o filme dá esse tom à narrativa,
uma vez que a proprietária do imóvel ao receber a câmara escura em sua porta
pensa se tratar de um objeto criminoso ou algo ameaçador. Denuncia a ação
na polícia e o espaço do filme é transportado para a delegacia, fazendo com
que o próprio dispositivo do filme reconduza o espaço e o tempo da realização.
Figura 7 – Still de Câmara Escura
Fonte: DVD de Câmara Escura
Incorporado ao filme, a abertura do inquérito e o diálogo com o policial
fazem eles também parte desse processo de criação fílmica, são mais uma das
peças do mosaico montado pelo realizador para nos apresentar o filme dentro
desse dispositivo. Os filmes-dispositivo são já pela sua natureza produções
baseadas no processo, na explicitação dos caminhos trilhados pelo filme, além
de logo de cara apresentarem as regras do jogo, deixando clara essa dimensão
meta-fílmica.
A questão policialesca e da vigilância é recorrente na fala das
personagens-moradoras e do policial. Existe uma questão que passa pelo uso
106
que se faz das imagens, o que os aparatos captam de imagem, uma discussão
sobre a privacidade e a revelação de identidades.
O filme mostra pouco ou quase nada de imagens concretas de figuras
humanas. Contudo, na abstração visual apresentada em muitos momentos da
imagem existe uma força que questiona o processo de realização de um filme.
Ou melhor, o processo de realização daquele filme e a validade ou não do uso
dessas estratégias.
[Ação]
A imagem em close mostra a campainha de uma casa sendo tocada.
Quando o quadro é ampliado, percebe-se se tratar da casa rosa. Marcelo se
apresenta ao interfone como “o rapaz da câmera”.
A mulher responde ao interfone dizendo que já vai. A cena corta para
uma vista do chão e do pé de Marcelo, num claro movimento de câmera que
indica que eles não podem ser pegos filmando nada ali. Uma linha de tensão
atravessa toda a imagem. Quando se ouve a porta abrir, a voz presente em
cena é de um homem, não mais a da mulher que atendeu a campainha.
Marcelo: Estou aqui com o pessoal...
Homem: Está com a quadrilha todinha aí A troupe
Marcelo: É, o pessoal todo. A gente esteve ontem aqui, mas o senhor
não estava.
Homem: Fui resolver uns negócios lá da firma, fui também ver uma
pessoa que entendesse do aparelho. O cara botou no notebook e não tem
nada.
Uma voz de mulher chega e convida Marcelo para entrar. Mas apenas
ele, não o restante da equipe, como faz questão de ressaltar. Segue-se
acompanhando a conversa pelo áudio do microfone que Marcelo carrega. A
câmera que fica do lado de fora segue filmando o portão, o muro, cada
elemento da fachada.
107
O casal, homem e mulher, explicam a Marcelo suas reações ao abrirem
a caixa e virem que se tratava de uma câmera. A todo tempo na fala da mulher
é retomada a questão da segurança e da ameaça que a câmera significou.
O homem reafirma ter checado que na câmera não havia “nada”, apenas
som. E diz: se tiver imagem, eu não quero imagem minha em filme seu nem
nada. Eu não autorizo, porque isso aí é um crime, o que vocês fizeram.
Enquanto o homem fala sobre a atitude do diretor ser crime, ao “tirar a
privacidade das pessoas”, a câmera que ficou do lado de fora encontra a
câmera do sistema interno de vigilância da casa rosa. Ali está ela, cercada por
uma caixinha de ferro. Protegida. Ladeada pelos fios da cerca elétrica.
Apontada para a fachada da casa, em direção à campainha.
[Corta]
As imagens que compõem o filme são imagens bem fotografadas e
roteirizadas da elaboração da caixa de presente, imagens obtidas pelo resgate
das câmeras das caixas, imagens de registro das ações de entrega e
devoluções das caixas, e a entrevista com o policial na delegacia acerca do
inquérito instaurado contra a equipe do filme.
As imagens-processo do filme podem ser apontadas como uma cama
mais superficial e à mostra na obra. A imagem-processo em Câmara Escura é
o contato permanente do espectador com a obra em curso, é preciso
naturalizar o potencial questionador dessas imagens para que se acesse a
camada narrativo-dramática do filme.
Aqui se fala em percepções de camadas da imagem como forma de
direcionamento do olhar. Contudo, esses regimes são simultâneos, são o duplo
mesmo dessas imagens atuando. É o caráter paradoxal que dá o aspecto de
presentificação desses acontecimentos. Assim, o título dado a este tópico
figura como um jogo semântico entre o sentido de surpresa e o sentido de
imagens que acontecem no momento atual.
108
3.4 Imagem-origem
[Ação]
Em uma tela escura o filme começa com o som da chamada de um
telefone. O telefone toca três vezes até que alguém o atenda. Nesse momento
a imagem de um telefone aparece na tela. A voz que atende é feminina e fala
francês.
- Alô, Consulado da Hungria, bom dia!
Do lado de cá do som, outra voz feminina responde a saudação e
pergunta se uma pessoa cujo avô é húngaro tem direito a um passaporte
húngaro.
A cena corta para a imagem de um outro aparelho, agora um aparelho
de fax, e a voz da resposta agora é masculina.
- Essa pessoa é húngara, pergunta a voz masculina
- Não, meu avô é húngaro, responde a voz feminina
- Você é francesa?
- Não, eu sou brasileira.
- É... Acho que não.
A imagem corta para um terceiro telefone, distinto dos outros dois
anteriores, em que se houve mais uma vez uma voz feminina.
- O avô é húngaro?
- É.
- Pai e mãe?
- Brasileiros.
- E a mãe?
- Brasileira.
- E o pai?
109
- Também.
- Não... um momento.
A linha fica em espera enquanto a atendente checa a informação. Uma
música de fundo vai surgindo aos poucos. A imagem fecha em fade out
enquanto a música segue tocando. Na tela escura aparecem o nome da
diretora do filme, Sandra Kogut, e do produtor, Michel David. A música segue
tocando até que a imagem retorna para o plano do telefone anterior. A
atendente então pergunta:
- Você tem os documentos que provam que seus avós eram húngaros?
- Talvez, se você me der a lista.
- Não precisa de lista. Tudo que você tiver de origem húngara. Tudo que
for húngaro e permitir reencontrar as suas origens.
[Corta]
Registrar o processo de solicitação e obtenção de um passaporte
húngaro na França por uma brasileira neta de húngaros. Essa pode ser a linha
geral que identifica o leitmotiv de Um Passaporte Húngaro (2002), da diretora
Sandra Kogut.
A realizadora-personagem é filha de brasileiros, e tem avós húngaros.
Mathilde e Nathán Lajta. Eles vieram para o Brasil em 1938, fugindo do regime
nazista que intensificava as perseguições aos judeus em todo território
europeu. A avó de Sandra, senhora Mathilde, era austríaca e, ao se casar com
Nathán, perde o direito à cidadania da Áustria e assume a cidadania húngara.
Para as necessidades do projeto, seus documentos não ajudam tanto,
mas suas lembranças e memórias são de fundamental importância. Suas
vivências aprofundam as questões sobre casa, identidade, pertencimento que o
filme evoca em seu processo de realização/busca de documentos.
110
Figura 8 – A avó apresenta os passaportes húngaros
Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro
É pelo passaporte do avô, senhor Nathán, que Sandra pode ter
viabilizada a obtenção do seu próprio passaporte. É por meio do documento
desse avô que ela vai descobrindo os traços da sua família no velho
continente, os familiares, a língua, as cidades, a história do país, as origens. O
filme toca em momentos particularmente sombrios da história mundial,
períodos e ações que queriam ser esquecidas, mas acabam por ser lembradas.
É o caso do desaparecimento de registros civis na Hungria por causa da
origem judaica do governante na época do nazismo. Nesse período, era muito
comum a troca de nomes judeus por nomes mais ocidentalizados,
europeizados. Contudo, se houvesse uma consulta aos livros de registro, logo
se saberia quem havia trocado de nome e qual havia assumido. Daí, a solução
achada para quem precisava ocultar suas origens e dispunha de meios para
tanto era dar fim aos documentos.
Ainda no campo das documentações acessadas e que apresentam
consigo momentos da história, há a visita ao Arquivo Nacional Brasileiro, no
Rio de Janeiro. Nesses momentos do filme, são apresentados os documentos
referentes à entrada de imigrantes no país no ano de 1938. Por meio da visão
dos papéis e das conversas com os funcionários, toma-se conhecimento dos
111
funcionamentos das fronteiras e aduanas brasileiras, bem como seu
posicionamento no cenário da II Guerra Mundial.
Figura 9 – Avó relatando a saída da Hungria
Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro
Uma das barreiras a ser enfrentada por Sandra diz respeito justamente
ao momento histórico e o tipo de tratamento designado aos judeus. Seus avós
possuíam passaportes que exibiam uma enorme letra K, um carimbo dado no
momento de saída da Hungria.
Esse carimbo diz respeito a uma ida permanente, a quem foi para nunca
mais voltar. Isso fez com que, teoricamente, eles perdessem a sua cidadania
húngara a partir daquele momento. Essa informação entra como elemento de
discussão narrativo-dramática, contudo, vai interferir nos percursos do projeto e
nas relações de experiência das situações pela realizadora.
[Ação]
Olhando para a realizadora, que está no canto direito do quadro, fora de
campo, a avó fala sobre o que significam os termos escritos nos passaportes.
112
Mathilde: Você sabe o que é esse k? É que quando a gente foi tirar o
visto de saída da Hungria, eles botam esse K. E quando o vovô foi saindo da
sala ele ouviu ainda: "um judeu sujo a menos".
Sandra: E K quer dizer o quê?
Mathilde: Kivándorlás. Quer dizer que vai de vez.
[Corta]
Figura 10 – Busca de documentos no Arquivo Nacional
Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro
O filme tem como perspectiva visual a composição de imagens
subjetivas. Praticamente durante todo o filme, acompanha-se imagens em
primeira pessoa, com uma inserção inferida da realizadora através de
pequenos traços seus que entram em quadro e por sua voz, que é o elemento
que de fato a corporifica em cena.
Um Passaporte Húngaro constrói seu processo de criação a partir dos
seguintes procedimentos:
113
1. Buscar informações e sondar fontes acerca da possibilidade de
solicitar e obter um passaporte húngaro no consulado da Hungria em
Paris.
2. Garatir a possibilidade de se obter o documento mesmo sendo
brasileira e comprovando a cidadania húngara dos avós.
3. Levantar os documentos prévios necessários que garantam a
entrada do protocolo do Passaporte.
4. Preencher os formulários do consulado em húngaro.
5. Driblar os entraves burocráticos necessários para as comprovações
de cidadania.
Esses procedimentos não estão listados em ordem de ocorrência no
filme. Eles vão sendo apresentados de maneira alternada na montagem.
Contudo, o procedimento listado no item 4, sobre preenchimento de
formulários, é escolhido como espinha dorsal narrativa e visual da
apresentação dos processos de realização do filme e de obtenção do
passaporte húngaro. Isso porque são as necessidades desse formulário que
vão guiar as ações da realizadora do filme.
As imagens são, então, montadas em sequências que atendam ao
preenchimento de uma espécie de check-list de passos a serem dados para se
conseguir o documento. Dessa maneira, para a construção do filme, há dois
tipos de imagens: as imagens que dão conta dos encontros com diversas
pessoas e fontes que ajudarão Sandra a conseguir seu passaporte húngaro, e
imagens de tom poético, que evocam certo lirismo em torno da abordagem
dada ao filme, que lida com as memórias da realizadora.
Esse tom poético, lírico, vai marcar toda a condução da história. O modo
como o processo da obra aparece explicitado também vai atender a essa
sutileza evocada pelo filme. Há uma busca por plasticidade que passa longe
das afetações, que tenta dar corpo às memórias e percursos evocados pelas
falas das personagens, necessidades do filme.
Como modo de demarcar essa diferença entre os regimes de imagens,
há a adoção de suportes e linguagens diferentes para cada um dos tipos. Para
as imagens acerca das tentativas de conseguir o passaporte, utilizou-se de
114
uma câmera de vídeo, com enquadramentos em perspectiva subjetiva. A
informalidade das ações atravessa todas as imagens. São conversas,
reencontros, pesquisas, jantares, visitas ao consulado e repartições públicas
húngaras.
Figura 11 – Imagem em vídeo
Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro
Essas imagens poderiam configurar um documentário executado ao
modo clássico pelo seu conteúdo. No entanto, a estratégia de personificação
da câmera na figura da diretora, de conjugação entre sua visão e as ações
acaba conferindo outra dinâmica ao filme. Esse sujeito da câmera, como diria
Ramos (2005), se inscreve na imagem, se aproxima da cena, participa dela,
interfere no conjunto da obra.
Na figura 11, por exemplo, é possível ver a perspectiva de olhar da
realizadora ao conversar com sua avó enquanto esta examina documentos e
passaportes. Um exemplo dos modos de visão e percepção das situações que
o dispositivo proporciona. O olhar é levado na curiosidade do detalhamento dos
objetos manuseados em quadro.
A isso se somam as posições que essa câmera ocupa e o modo como o
quadro é composto. Ela acompanha a naturalidade de um diálogo. Não há um
115
desejo de totalidade, de apresentar tudo que está no entorno. Antes, essas
imagens fixam-se em elementos e situações que correspondem a um
comportamento curioso, mas atento. As imagens vão servindo de registro para
as conversas, buscas por processos e documentos. Servem, também, para a
construção do próprio filme, que se faz enquanto devir, na obtenção dos
requisitos de que a diretora-personagem necessita.
Para as imagens mais poéticas, o recurso técnico escolhido foi o uso de
imagens em super-8. Essas imagens ganham uma textura inteiramente
diferenciada e contrastante com as imagens apresentadas em vídeo. Há
também o contraste no que diz respeito aos tipos de imagens obtidas. Essas
imagens apresentam a cidade de Budapeste com seus prédios, sua vida
cotidiana, pessoas caminhando na rua. Um exercício de visualização dos
espaços, de apresentação.
Elas guardam ainda uma referência direta com os caminhos trilhados
pelos avós da diretora quando tiveram de deixar a Hungria e ir para o Brasil,
quando estavam fugindo do nazismo. Elas acabam por dar sentido visual às
falas que aludem às memórias dos personagens.
Figura 12 – Imagem em super8
Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro
116
Passam a sensação de found-footages, seja pela granulação, seja pelo
ritmo de encadeamento dessas imagens, que se assemelham às imagens das
cidades dos filmes realizados nas primeiras décadas do século XX, com a
visão dos prédios, das modernizações dos transportes e as pessoas que
circulam nesses ambientes.
São imagens que passeiam por estradas de ferro, por trêns, plataformas
de embarque e composições. Planam sobre as águas do oceano. Tentam
trazer na sua luz, na sua textura, esses espaços habitados e tão modificados,
bem como os caminhos que convergem para os sentidos aludidos pelas
memórias, registros históricos e documentos que vão sendo encaixados no
mosaico de elementos que a realizadora monta para chegar ao seu objetivo.
Em termos de operação e funcionamento, esse dispositivo como
estratégia narrativa tem como instância de controle as premissas de sua
ativação: dar entrada no pedido de passaporte húngaro e obtê-lo mesmo sendo
brasileira, neta de húngaros. A essa questão, outra faceta de controle que
surge pela apreensão do processo no filme se dá no saber que esse projeto
tinha estabelecido uma janela de tempo para acontecer. Um ano. Esse era o
tempo suposto na formulação do dispositivo como sendo suficiente para a
conclusão das ações.
Contudo, como jogo de forças que é, o dispositivo apresenta como eixo
de descontrole situações que vem como respostas a essa fixidez inicial. As
burocracias necessárias de serem atendidas são bem mais numerosas do que
o previsto. Há um tráfego frequente entre Brasil, Hungria e Paris para
responder aos imprevistos de documentação, autenticações e até mesmo de
avaliações de idioma. E por precisar atender a tantos pré-requisitos, o tempo
do projeto acaba sendo duplicado, só havendo uma obtenção do documento
após 2 anos do pedido. O filme se inicia em maio de 1999 e termina em maio
de 2001.
Com a análise fílmica processual, pode-se perceber que as imagens-
processo em Um Passaporte Húngaro guardam na sua simplicidade a chave
para a compreensão e o entendimento dos modos de apresentação da criação
na imagem. São imagens com um forte senso de presença. No filme não se
117
recorre à composição com imagens de arquivo, o que é comum em filmes
dessa natureza mais memorialística.
As imagens do filme são atravessadas por um conjunto de
agenciamentos do momento em que o filme é feito. As opções por uma câmera
mais leve, pela informalidade das conversas, por registrar todos os momentos
de busca de documentos e por haver uma inferida naturalização da relação da
câmera com as personagens filmadas é responsável por isso.
As personagens sabem que estão sendo filmadas, elas não guardam
nenhuma ilusão ou disfarçam sua relação com a câmera. A presença
subjetivada da realizadora e a revelação dos usos de aparatos também dão a
saber esse processo.
A condição paradoxal em que as personagens estão inseridas em
relação ao tempo do filme e ao movimento também são um ponto a se
perceber. Principalmente em relação aos regimes de tempo do filme, às
temporalidades evocadas nas falas e aos ritmos de condução das imagens,
noção de tempo apresentada na narrativa.
O tempo é construído de maneira linear e progressiva, num ritmo sem
dilatações ou encurtamentos. A forma de perceber a passagem do tempo,
inclusive, vai se dando de maneira sutil na imagem. E só é concretizada a
percepção total de tempo decorrido ao final, quando se sabe da duração de
dois anos do projeto.
Um Passaporte Húngaro trabalha com um processo fílmico num filme
sobre processo. E não só isso: tudo que é apresentado no filme se configura
em construção, nada está estabelecido e fixo.
Seja a ideia do filme, que vai se alterando à medida que outras
necessidades vão surgindo, seja a identidade da realizadora, que se vê imersa
num mosaico de descobertas acerca de suas próprias origens, seja o processo
de obtenção do passaporte.
Outro ponto em processo está na própria dinâmica de continuidade que
a obra traz consigo. Esse inacabamento é também evocado pelo uso do som,
que passa de um bloco sonoro a outro sem que necessarimente haja uma
mudança na imagem.
118
Há a criação de blocos autônomos, mas complementares de imagens e
som. Eles permitem uma ressignificação do visto e do ouvido a partir desse
entrecruzamento. Existe uma dimensão do inacabamento que é inerente a
essas imagens e a todo o tempo é convocada à cena.
Exemplo disso está na necessidade constante de novos documentos e
atendimento de novas demandas que surgem e exigem contatos distintos
dentro da rede de criação da obra. A cada novo elemento solicitado, novos
percursos são desbravados, mais pontos de interação entre os elementos que
compõem a rede vão acontecendo.
Essa ação é contínua e, mesmo com a obtenção do passaporte, não
deixa de ser uma possibilidade. Isso porque a certidão de nascimento obtida
pela realizadora possui um prazo de validade, que pode significar que num
futuro, quando tenha de solicitar uma renovação do documento, ela precise
passar por toda a odisséia registrada no filme.
Figura 13 – Oficial de passaporte
Fonte: DVD de Um Passaporte Húngaro
A outra questão está na aceitação do próprio passaporte, como mostra a
cena final. Sandra está no trem e o fiscal de imigração passando solicitando os
passaportes dos passageiros. Quando ela entrega seu passaporte, ele lhe
119
questiona para onde ela vai. Ele fala em húngaro. Ela não responde. Ele insiste
e pergunta novamente. Ela sugere que se fale em inglês. Ele, com um tom
irônico e conferindo as páginas do documento, reformula a pergunta em inglês.
Ao que ela responde que está indo para Paris. Olha para ela checando a
fotografia do documento e se pergunta como ela pode não falar húngaro.
Ironiza o fato e questiona por mais documentos, pergunta se ela traz consigo
uma identidade. Ao que ela não responde, ele sai da cabine levando consigo o
passaporte, intrigado com a situação. Depois de um tempo, o homem volta e
devolve o passaporte. Despede-se e deixa que ela siga viagem.
Nos minutos em que o guarda se ausentou, colocando em xeque a
validade do passaporte, é como se se estivesse reativando o processo de
obtenção que se acreditava anteriormente encerrado. Com isso, se reativa o
dispositivo fílmico, cujo processo de construção da obra fílmica existe enquanto
existir a incompletude da obtenção do documento.
3.5 Imagem-matriz
No ano em que completa 33 anos um homem resolve que vai buscar
por sua mãe biológica. Essa busca terá a duração de 33 dias. Para encontrá-la,
ele entrará em contato com investigadores de São Paulo, cidade em que mora,
e Belo Horizonte, cidade em que nasceu. Conversará também com sua família
adotiva composta por mãe, irmã, tia e a babá que lhe criou. Findo o prazo
estipulado, encontrando ou não sua mãe biológica, o projeto se encerra. Esse é
o dispositivo formulado como estratégia narrativa para o filme 33 (2003), de
Kiko Goifman.
Na composição visual do filme de Goifman, o primeiro ponto a
chamar atenção reside na aposta estética pelo uso de uma fotografia em preto
e branco. Essa fotografia nos remete a filmes com uma estética noir, o que traz
para a camada estética o aspecto detetivesco que o dispositivo assume. O
processo de obtenção de informações, e que vai refletir nos tipos de imagens
obtidas, é revelado pela narração: nas manhãs e tardes, investigação; nas
noites, captura de imagens com pouca luz e espaços vazios.
120
Figura 14 – Estética noir referenciada em 33
Fonte: DVD de 33
Há um trabalho dos contrastes de claro e escuro nas imagens que
apresentam um sentido visual que conversa, e muito, com as artes plásticas.
Dispositivo com uma característica temporal declarada desde o início, 33
apresenta uma forte ligação direta, dentre todos os filmes abordados no
corpus, com a definição em si da imagem-cristal, nesse regime da imagem-
tempo. Isso porque no filme, as imagens são extremamente subordinadas ao
tempo de que se dispõe e os processos criativos ativados na realização fílmica
e apresentados nos dão pistas de uma tentativa de lidar com esse ato de
esculpir o tempo a que o realizador se propõe.
O limite temporal imposto pelo realizador funciona como barreira
intransponível e também no sentido de limitação do potencial que o projeto
pode desenvolver. O tempo é seu viés de controle. Ele sabe onde o filme
começa e onde o filme termina. O que ele não sabe determinar é como se dá
esse término. Essa relação com o tempo aparece na sua primeira fala em off,
quando diz: “Tenho 33 anos e fui adotado por Berta, que nasceu em 1933.”
As imagens são de uma grande variação. Transitam entre planos de
detalhe, entre imagens plásticas, imagens-câmera, planos gerais. Feitas em
perspectiva subjetiva, as imagens suscitam do olho um comportamento
121
investigativo que vasculhe a cena, passeando pelos contornos e formas
apresentados em escuro e claro.
Figura 15 – Claros e escuros
Fonte: DVD de 33
Os blocos imagético-sonoros do filme são apresentados em capítulos
cujos títulos são números múltiplos de três. À medida que o filme vai
acontecendo, a contagem dos dias também acontece e isso é indicado pelos
números que aparecem em forma de cartelas entre os capítulos.
No filme, as imagens apresentam a viagem até Belo Horizonte para
realização das filmagens, imagens da cidade, entrevistas. O modo de compor o
quadro é variável, mas aqui também há a mímese com o interrogatório dos
filmes detetivescos. As personagens mostradas em alto contraste de luz e
sombra, questionadas sobre detalhes do passado do realizador.
122
Figura 16 – Exemplo de enquadramento nos depoimentos de 33
Fonte: DVD de 33
Juntamente com a contagem dos dias realizada em forma de
capítulos na tela, a espinha dorsal da narrativa é dada pela narração em
primeira pessoa com um tom bem pessoal do diretor. Na narração em off, ele
detalha aspectos da sua busca, apresenta detalhes que podem ou não estar
relacionados com as imagens. Existe essa dupla dimensão que é acessada em
que várias informações caminham concomitantemente nas cenas.
123
Figura 17 – Cena dentro do carro: caminho
Fonte: DVD de 33
Interessante perceber que a voz de Kiko Goifman funciona de duas
formas diferentes no filme. Quando atua como narrador, o diretor assume uma
postura de onisciência sobre as imagens, ele as conhece, ele as montou, ele
as antecipa, complementa fatos. Assim, sua voz está numa dimensão da
diegese que é externa às imagens em curso. Ela funciona mesmo como uma
espécie de relatório, de documentação dos percursos do filme. Ela tem
controle, ela é o dispositivo.
Quando suas falas se apresentam na dimensão interna à diegese do
filme, sua voz em formulando questões, desejando respostas, em construção.
Tudo é descoberta, tudo é caminho, não há nada acabado, nada finalizado.
Elas personificam o sujeito da câmera em quadro. Traz para a cena esse fora
de campo que se torna tão interno. Ela sinaliza uma situação de deriva.
Situação essa que é a do próprio filme, com sua busca pela mãe biológica
através de pistas de seu passado. Essa voz reage às instâncias da memória
dos entrevistados, se posiciona de acordo com o que acontece. Ela é o
descontrole, ela é processo.
124
Figura 18 – Primeiro frame do filme
Fonte: DVD de 33
Aos capítulos e à narração, somam-se para compor a estrutura linear
do filme um recurso de cartelas com informações sobre os passos que a busca
dá. O filme se utiliza muito da palavra escrita. Dentre os motivos possíveis pra
isso, pode-se apontar a escritura de um diário concomitante à realização do
filme.
Esse diário tem sua versão disponível online, e no momento da sua
escritura serviu de ponte de contato com pessoas, que forneciam pistas que
pudessem ajudar Kiko. Uma dessas pistas acaba até sendo mencionada por
ele no filme, demonstrando que ele recorreu a tudo quanto possível para
encontrar os rastros que viabilizassem sua busca.
A forma de abordar o tema da adoção e busca por uma mãe
biológica escolhida pelo realizador passa ainda pelo uso do humor e da ironia.
Há uma faceta de galhofa presente nas cenas que tratam do universo
detetivesco. Isso é antecipado na primeira cena do filme, que traz uma citação
de Dashiel Hammet. Já na primeira fala do narrador, ele revela que acha
engraçado o modo como as pessoas reagem ao tema de sua adoção, de que
elas se sentem especiais quando ficam sabendo disso.
125
As imagens-processo em 33 tem a característica da busca incrustada
em si mesmas. É uma câmera voyeur, é uma câmera que investiga em
primeira-pessoa o mundo ao seu redor. O mundo que é observado
minuciosamente. Essas imagens apresentam momentos que em muitos filmes
poderiam ser consideradas como tempos mortos. Contudo, essas imagens
ganham vivacidade dentro da proposta do projeto artístico. Esse projeto cuja
busca final reside no encontro da própria identidade do investigador.
Kiko Goifman busca sua mãe. Ela pode estar em qualquer parte, em
qualquer espaço da cidade, na rua, na calçada, perto de uma praça, num
hospital. Cada ponto de direcionamento e condução do olhar dessas imagens é
uma construção dessa busca. Na montagem, essas imagens são colocadas de
maneira intercalada quanto ao seu ritmo, quanto às suas composições de
plano e iluminação.
Como forma de ampliar sua busca, Kiko Goifman torna o projeto
numa busca pública. Em forma de episódios, parte do material resultante da
sua procura pela mãe biológica é exibido em rede nacional no programa
Fantástico, da Rede Globo de Televisão.
Figura 19 – Kiko vendo as imagens de 33 no Fantástico
Fonte: DVD de 33
126
Nesse ponto do filme, cabe atentar para o movimento de mise-en-
abyme que essas imagens provocam. Isso porque são agregadas ao filme as
imagens do próprio filme que foram exibidas na televisão. E mais que isso. O
filme apresenta o realizador assistindo essas imagens.
É o registro do processo do processo. E esse registro é a imagem
incorporada à narrativa fílmica. A visualização dessas imagens pela televisão,
essa segunda tela dentro da tela. Essas imagens só existem como uma
possibilidade, como esse curso dos acontecimentos da investigação captados
como imagem de processo.
Outro ponto do filme em que o processo de construção fílmica fica
bem evidente e tem-se mais um exemplo claro das imagens-processo, é
quando Kiko Goifman planeja a realização da cena final do filme.
Figura 20 – Último plano
Fonte: DVD de 33
[Ação]
Na imagem, com um foco retangular no meio do quadro, aparece
Kiko Goifman. Ele empunha um cigarro e conversa com a câmera num dos
raros momentos de imagem sua direta, de frente para a câmera. Ele parece
127
feliz, conta que naquele dia descobriu o dia em que nasceu. Dia 2 de agosto de
1968. Essa é a data de seu nascimento, que se deu na Santa Casa de
Misericórdia de Belo Horizonte, às 22h.
Há um corte para cenas superiores da rua. Carros e pessoas
trafegandos pela noite escura. Parcos pontos de iluminação tornam o ato de
ver em investigar.
A imagem retorna à figura de kiko que diz:
- E eu pensei como último plano desse documentário o seguinte: eu
sentado, aí a Cláudinha (esposa de Kiko) vai lá e fala com a mãe. Mas fala 'ah,
não sei quê não sei quê lá" e dá um jeito que ela vem em minha direção. Só
que aí eu paro. Eu paro e ela passa direto. Isso, é fundamental ela passar
direto. O encontro ia ser o extremo do melodrama, o extremo do...Pra quê o
encontro? Tá nítido ali que eu vou encontrar ela. Depois, o que eu vou fazer é
problema meu. Não interessa mais pra quem tá assistindo.
[Corta]
O ato de planejar essa cena apresenta o curso das investigações e
do projeto. Há nessa cena uma perspectiva de desfecho, de finalização, uma
tentativa de assumir as rédeas das ações e roteirizar previamente as cenas.
Contudo, o jogo de forças que o dispositivo provoca se alimenta dessas
situações. Quanto mais controlada uma situação tenta ser, mais ela caminha
para o descontrole. É o que acontece aqui. Essa cena sintetiza os elementos
da obra e do devir de que trata a análise fílmica processual.
A busca de Kiko Goifman acaba não obtendo o resultado esperado. Sua
busca se encerra no trigésimo terceiro dia sem que ele saiba quem é sua mãe
biológica. As pistas obtidas resultaram num beco sem saída. Sua busca, a
partir dali, seguiria não-publicizada. A imagem-matriz que ele pretendia, a da
cena que diante da câmera ele roteirizava, não é apresentada.
128
3.6 Imagem-cênica
[Ação]
Num fundo preto, com uma iluminação que o destaca, um homem de
barba e cabelos grisalhos aparece. Ele está sentado numa espécie de banco,
veste uma camiseta azul e um calção cinza. Despojado. Está sentado mais à
direita do quadro e interage com algo ou alguém à esquerda. Segura nas mãos
um envelope de onde saca uma imagem e explica para seu interlocutor:
- Isso aqui não é uma foto minha, é uma foto de moscou.
Ao finalizar essa fala, o homem sacode o envelope e quem opera a
câmera aplica um zoom in, de modo a mostrar de modo mais próximo a
imagem apresentada. Aproxima-se também da imagem do homem. Ele torna a
falar, agora apontando com o dedo detalhes na imagem.
- Quando eu tinha 16, 17 anos a gente ia à missa das seis e depois
descia da missa numa rua que saía aqui nessa praça e aqui está o prédio do
cinema, que uma vez quando eu visitei Moscou numas férias, cheguei lá e o
cinema estava sendo demolido. E eu sofri muito mais do que quando eu vi
minha casa sendo demolida.
[Corta]
Moscou (2010) é um filme dirigido por Eduardo Coutinho e trata da
adaptação da peça As Três Irmãs, de Anton Tchekov, pelo grupo de teatro
Galpão. O filme foi realizado entre os meses de fevereiro e março de 2008, na
cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais.
O modo de composição do filme apresenta uma lógica que busca jogar
com a dinâmica teatral e traz a câmera para dentro do quadro como uma
personagem, em diversos momentos. Os cinco primeiros minutos do filme
servem como uma apresentação daquilo que vai acontecer ao longo do filme,
129
uma imersão nos modos singulares de apropriação da história de Tchekov pelo
grupo de teatro e pelo próprio filme.
Ele não é um filme dispositivo semelhante aos demais filmes que
constituem o corpus desta pesquisa. Principalmente se forem levadas em
consideração questões como a narração em primeira pessoa e a própria
situação de protagonismo dos sujeitos-da-câmera que foram relatadas nas
outras obras. Contudo, é justamente por isso que sua presença nesta pesquisa
se faz importante. Ele serve ao propósito de discutir a compatibilidade do
método da análise fílmica processual com filmes de dispositivos diferenciados
em relação ao inicialmente pensado para a análise.
Isso porque o tipo de dispositivo articulado por Eduardo Coutinho traz
em si uma peculiaridade em relação aos demais dispositivos analisados nesta
tese e aparece aqui como uma espécie de análise de controle, cujo objetivo
reside na testagem do método. O filme apresenta já no primeiro momento de
seu visionamento uma tensão com relação aos dispositivos fílmicos narrativos,
suas articulações de ação e modos de apropriação do processo de criação pela
obra apresentada ao público.
Figura 21 – Cena tomada da posição da plateia com detalhes de processo
aparentes
Fonte: DVD de Moscou
130
Moscou permite compreender que existem gradações do que se pode
acessar visualmente do processo para uma análise cujo objetivo reside na
compreensão dos caminhos de realização da obra. Mas em que medida
Moscou se configura como documento de seu próprio processo De todos os
filmes analisados nesta pesquisa, talvez Moscou tenha sido o que mais
sutilezas e ambiguidades apresentou.
Estão em cena três níveis de percepção: a obra, o processo fílmico e o
processo teatral. Assim como os outros trabalhos aqui analisados, por diversas
vezes tais percepções se alinham de modo a agruparem as três possibilidades
de abordagem e análise, nesse tensionamento paradoxal que é a marca das
imagens aqui trabalhadas.
Num primeiro momento, até, a inclusão de Moscou no corpus foi
questionada, uma vez que suas imagens dão conta diretamente do processo
de montagem da peça As Três Irmãs pelo grupo de teatro Galpão. Havia uma
dimensão de processo clara no filme, não restava dúvida. Mas era o processo
fílmico ou o processo teatral, do qual o filme surgia como mero registro
O filme poderia muito bem ser compreendido apenas como uma obra de
registro documental sobre a criação da peça. Contudo, com um olhar mais
detido e atencioso, olhar esse próprio da condição do analista, é possível
observar detalhadamente que a peça faz parte do dispositivo como estratégia
narrativa formulado por Eduardo Coutinho.
A mise-en-scène teatral atende ao filme. E mesmo que não atendesse,
ainda caberia um exercício lógico de compreensão que admite no processo de
montagem e ensaios da peça o próprio processo de construção da imagem
fílmica, uma vez que esta só existe alimentada da realização teatral sobre a
qual se detém.
131
Figura 22 – Eduardo Coutinho apresentando o dispositivo para o elenco Fonte:
DVD de Moscou
[Ação]
Uma mesa retangular com 16 lugares. Sobre a mesa blocos de papel,
jarras de vidro com água e copos de vidro. Em uma das cabeceiras da mesa,
ao fundo, três pessoas aparecem. Uma mulher e dois homens. Eles conversam
entre si algo não muito compreensível. Uma voz cujo dono não está no quadro
fala:
- Ok, Coutinho.
O Coutinho a que se refere é o diretor de cinema Eduardo Coutinho, um
dos homens na cabeceira da mesa. Ao receber o sinal afirmativo, ele confirma
que está tudo certo, chama por alguém de nome Neco para ter certeza. O
homem que está do seu lado começa a chamar pelo elenco, pelo grupo
Galpão. Uma voz de fora do quadro repete seu chamado pelo elenco e pelo
galpão. As pessoas começam a entrar em quadro e vão ocupando lugares na
mesa. Coutinho vai explicando a organização da mesa.
132
- Já não tem volta, viu? Tem nome pra pessoa, tem a peça, tem lugares
aleatórios que foram escolhidos. Espero que não falte nenhum. Aqui tem um.
As pessoas vão procurando suas identificações e se assentam. Do plano
geral que mostra toda a extensão da sala e da mesa, passa-se a um plano
fechado na figura de Eduardo Coutinho, que pergunta se os atores sabem de
que peça se trata. Uma das atrizes confirma saber que se trata da peça do
Tchekov, As Três Irmãs. A intenção da montagem proposta não é fazer uma
adaptação integral do texto de Tchekov, o que se pretende é fazer algo
diferente. Dentre os que estão ali, nenhum deles aceitou dirigir o trabalho e
pediram que viesse alguém de fora. Coutinho então chamou Henrique Dias por
sugestão do grupo.
A proposta é usar alguns trechos do texto de Tchekov e uni-los com
algumas outras seleções de materiais que são externos à peça. O tempo
disponível para a execução do projeto é de três semanas. A ideia é mesmo ter
uma coisa inacabada, fragmentada que, segundo Coutinho, tem bastante
relação com Tchekov.
A imagem corta para um primeiro plano de Henrique Dias que reforça o
quão curto é o prazo de três semanas para montar uma peça. Contudo, é
preciso que as pessoas envolvidas no projeto se engajem. A ideia é ver até
onde é possível chegar em três semanas descontruindo o texto original, mas
também construindo uma visão particular dentro do material trabalhado. A
proposta de trabalhar dessa maneira vem do próprio Coutinho. As proposições
de trabalho orbitam em torno das capacidades de sentimento humano. A
junção de todos ali naquela ocasião é para ler o roteiro de maneira coletiva.
Em off, a voz de Eduardo Coutinho anuncia:
- As Três Irmãs, peça de Anton Tchekov escrita em 1900. Cenário: a
casa da família Prosorov. Lugar: Uma cidade de província a centenas de
quilômetros de Moscou. Olga, a mais velha, uma espécie de mãe substituta.
Masha, casada com um professor de ginásio. Irina, que festeja o aniversário de
20 anos. Andrei é o único irmão. Todos sonham em voltar para Moscou, onde
nasceram e passaram a infância. A família só se relaciona socialmente com os
133
oficiais da brigada militar estacionada na cidade. O novo comandante da
brigada, coronel Vegine, encanta as irmãs, sobretudo Masha, que acaba se
tornando sua amante. Andrei se casa com Natasha, moça de classe inferior,
que pouco a pouco se torna dona da casa, praticamente expulsando as irmãs.
Enquanto a narração em off acontece, os atores que interpretam cada
um dos papéis citados vão sendo mostrados realizando a leitura do texto.
[Corta]
É interessante observar o uso da imagem fotográfica no filme como
modo de representação visual verossímel das histórias oralmente contadas
pelos atores. A participação dessas imagens tem muito a ver com a discussão
de memória e repetição das histórias narradas, e da própria peça ensaiada. As
fotografias estão presentes desde o começo do filme, na referência aos
espaços ditos habitados pelas personagens em seus monólogos, ou mesmo
numa das cenas de ensaio no camarim, em que as atrizes que fazem as três
irmãs passam o texto enquanto se arrumam.
Figura 23 – Fotografias no camarim
Fonte: DVD de Moscou
134
As explicitações do processo de criação em Moscou são bastante sutis.
Em diversos momentos do filme elas só são perceptíveis com um olhar mais
atento que dá conta da cisão entre imagem e texto declamado, por exemplo. É
o caso da cena em que as atrizes estão se arrumando no camarim enquanto
passam seus textos.
Suas ações desconectadas de suas falas e o ambiente diverso ao
descrito pelo off de Eduardo Coutinho nas definições da peça no começo do
filme apontam para que se compreenda que esse é um momento de ensaio,
não um momento de apresentação, não um momento de palco. Isso fica ainda
mais evidente quando a atriz que interpreta Olga pega seu roteiro e checa as
falas para seguir com o ensaio.
Figura 24 – Ensaio no camarim
Fonte: DVD de Moscou
Essas cenas de ensaios, falas, improvisos são constantes e são
apresentadas na montagem do filme de modo intercalado aos momentos de
orientação dos atores pelo diretor da peça Henrique Dias. É possível fazer uma
comparação, até, do grau de explicitação do processo presente nos dois casos.
135
É como se quando as cenas se concentram nos atores e em suas
interpretações o que estivesse em quadro fosse a peça em si, mesmo que
ainda em elaboração. Já quando as orientações são apresentadas é quando se
tem mais claramente a apresentação do percurso criativo da peça-filme. Assim
se compreende melhor os movimentos das ações dos atores nas cenas
anteriores e posteriores a esses momentos de orientação, em que o processo
está mais claramente exposto.
Há uma preocupação na montagem das cenas em suscitar uma
dubiedade das ações, uma vez que se trata de um filme documental de ações
ficcionais. Seu processo de criação passa mesmo pelo tensionamento do
gênero fílmico trabalhado.
Essa hibridização entra como mais um paradoxo a ser destacado nessas
imagens, uma vez que o registro em si é documental, mas o objeto do registro
é da ordem do ficcional. Ambos os regimes habitam a mesma imagem,
juntamente com os modos de obra e processo que também estão presentes
nas cenas.
Esse caráter híbrido permite uma problematização dessas imagens, uma
discussão acerca de seus conteúdos, modos de posicionamento de câmera,
elementos explicitadores de processo e composição narrativa da obra.
Enquanto objeto de uma análise fílmica processual, Moscou se apresenta
como algo extremamente desafiador.
O que inicialmente aparentava ser um filme cujas explicitações do
processo de realização fílmica pareciam inexistir, sendo apenas uma obra de
registro de uma peça, se mostra, no entanto, como um filme inteiramente
construído para discutir a criação imagética audiovisual.
A começar pelas performances dos atores, que tem na câmera uma
interlocução e não ignoram a sua presença em cena, passando pela forma
como o som é captado, deixando ruídos perceptíveis de uma captação
rudimentar. Há ainda a noção de que tudo que está posto em cena foi realizado
dentro da janela temporal de três semanas imposta por um dos mecanismos de
controle do dispositivo articulado por Eduardo Coutinho.
Uma das temáticas bastante abordadas no filme diz respeito aos modos
de criação teatrais, como os atores são estimulados a buscarem referências
136
para a composição de suas personagens. É recorrente ao longo do filme o
trabalho com as memórias e sentimentos dos atores, numa busca de
correlações com o próprio texto de As Três Irmãs em que se baseia a peça.
Com isso, novamente há o uso de imagens e de memórias numa relação
de causa e efeito. Um grande álbum de família se forma a partir das descrições
apresentadas pelos atores e por suas personagens. Novamente há a mescla
do real e ficcional dentro das cenas fílmicas.
Figura 25 – Filmagem por detrás da porta.
Fonte: DVD de Moscou
Outro evidenciador do caráter inacabado, processual das imagens
apresentadas no filme, está nas escolhas dos pontos de filmagem das ações
em quadro. Há momentos em que a câmera se coloca atrás de uma porta e a
imagem é apresentada através do vidro, como na imagem acima.
Esses momentos evidenciam uma observação externa ao espaço das
ações da peça e podem ser considerados como momentos fílmicos mais
declarados, em que a peça e o filme se desmembram e suas diferenças de
espaço de cena são mais claramente perceptíveis.
137
Em outras cenas, a câmera é colocada na posição da plateia, com a
visão da cena em curso de maneira afastada e permitindo que sejam vistos
microfones, detalhes de iluminação, condicionadores de ar, o diretor sentado
na ponta do palco observando as ações e até mesmo um bebedouro no canto
esquerdo do quadro.
O paradoxal das imagens de Moscou e seu modo de condução está no
fato de que quanto mais os atores encenam a peça, mais fílmica a imagem se
torna. Isso porque a câmera passeia por entre os personagens, conduz a visão
do espectador, seus enquadramentos abstraem o palco e focam nas ações
específicas, fechando mais o quadro, num esforço de síntese dos assuntos
mostrados.
Outro ponto que reforça isso são os locais inusitados das ações, que
remetem aos bastidores do teatro, às salas de elenco, às escadas e
almoxarifados. Esses espaços são tomados de cenário nessa metáfora de
progressão da montagem da peça.
Por muitos momentos ao observar o filme, sua relação com o processo e
os tipos de imagens apresentados, é possível sim ter certeza da explicitação do
processo de criação e da possibilidade de tomar essa obra como um
documento de si mesma. No filme, a estética do inacabamento é bastante
evidenciada e é preciso uma atenção para perceber que o devir, a imagem
fílmica de fato, está na forma como a narrativa é montada. Está ainda na
progressão com que os trechos adaptados da história de Tchekov vão tendo ao
longo do filme.
Se a imagem, os figurinos, os cenários dão conta do inacabamento e da
processualidade, é nas falas, gestos e ações dos atores que reside o que virá a
ser da peça. Perceber essa articulação entre os elementos que compõem o
filme faz com que simultaneamente se acompanhe ensaio, filme e encenação.
138
Figura 26 – O último diálogo das irmãs
Fonte: DVD de Moscou
[Ação]
A imagem mostra em quadro duas das três irmãs. Irina e Olga. Elas
estão em imagem fechada ocupando todo o quadro.
- Olga, você ouviu?
- O quê?
- O batalhão vai ser transferido daqui, parece que pra bem longe daqui.
- Isso é boato.
- Nós vamos ficar tão sozinhas. Eu aceito, eu acho que vou aceitar casar
com o barão. Afinal de contas ele é um bom homem, eu o admiro. Aceito me
casar com o barão. Vamos pra Moscou, Olga? Vamos?! Olga! Olga! Olga!
À medida em que o diálogo ia acontecendo, o quadro ia se abrindo,
mostrando o espaço do palco ocupado pelos atores sentados em volta da
mesa e assistindo a interpretação das atrizes. Ao fim da cena, a luz que
iluminava as duas irmãs é reduzida e a voz de Eduardo Coutinho em off
139
retorna. Ele vai falando e a imagem vai se dissolvendo em fade, até que o
quadro inteiro esteja preto.
- Últimas palavras da peça: Olga: o tempo passará e nós partiremos
para sempre. Vão esquecer nosso nome, nosso rosto, nossa voz. Vão
esquecer que nós éramos três. Mas o nosso sofrimento se transformará em
alegria para aqueles que virão depois de nós. A paz reinará sobre a terra e
aqueles que vivem agora serão lembrados com boas palavras e abençoados.
Minhas queridas irmãs, nossa vida ainda não terminou. Vamos viver, vamos
trabalhar.
[Corta]
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta inicial desta pesquisa se baseava numa análise das obras
fílmicas cujo processo de criação está explicitado nas imagens. Para tanto, no
começo da pesquisa, o modelo de análise a ser seguido seria o da crítica de
processo de criação, mais especificamente o modelo baseado nas redes da
criação de Cecilia Salles (2008).
Contudo, uma vez que a hipótese norteadora desta tese residia na
afirmação de que era possível acessar e compreender o processo de criação
dessas obras tomando por base apenas a imagem fílmica, sem se valer de
documentos externos à obra, o uso da crítica de processo de criação tornava-
se inviável para alcançar a completude da análise proposta.
É a partir do levantamento do estado da arte sobre estudos de processo
de criação, bem como dos estudos de análise fílmica que a análise fílmica
processual começa a se apresentar como uma necessidade. Para uma melhor
compreensão do fenômeno abordado, era preciso o delineamento de uma
abordagem metodológica que levasse em consideração as particularidades
dessas obras.
Os dispositivos e processos criativos analisados nesta pesquisa estão
incluídos dentro do que se trata por documentário contemporâneo brasileiro.
São filmes cujas proposições abrangem não somente a realização de uma
obra, mas que almejam discutir a própria capacidade do gênero, suas
vocações estéticas e seus paradoxos.
Aliás, as suas naturezas são paradoxais em diversos aspectos. A
começar pelo paradoxo mais evocado por essa pesquisa relativo à
apresentação das imagens de obra e devir num mesmo momento, processo e
seu vir a ser. Essa imagem cristalina, para citar um termo de Gilles Deleuze
(1990). Além disso, é possível apontar para outras tensões do gênero tais
como a questão da hibridização entre documentário e ficção, o fora de quadro
e o enquadrado, a ética documentária e a participação do realizador nas obras
como personagens-sujeitos da câmera.
A aposta fílmica na explicitação do processo e nessa evocação
paradoxal traz consigo uma grande discussão metalinguística que já se inicia
141
com a formulação dos dispositivos, com o tracejar de elementos que vão guiar
a experiência da realização fílmica. Quando do momento da sua realização, há
o jogo constante entre as forças do controle e do descontrole, das quais o
processo, essa imagem inacabada é não somente aposta, mas se torna fruto.
Esse processo de criação cuja percepção muitas vezes é sutil e requer
do analista uma atenção para que se perceba na síntese das imagens as
potências de suas explicitações. Em diversos momentos da verificação do
método e do questionamento do corpus de análise foi preciso que se fizesse
um verdadeiro escaneamento das imagens, um visionamento que trabalha com
as perspectivas de compreensão e entendimento dos regimes visuais
(BORDWELL, 1991).
Nesta proposição de análise o ponto fundamental reside na percepção
das relações entre dispositivo como estratégia narrativa e o processo criativo
explicitado. Isso porque as imagens em processo são originárias das
formulações do dispositivo, o que faz com que seja necessária uma postura de
singularização de abordagem em cada obra.
Antes de analisar o filme ou o que se compreende acerca do seu
processo, é necessário que se compreenda os modos de funcionamento dos
dispositivos internos ao filme. Só de posse dessa compreensão dos leitmotifs é
possível que se proceda a uma análise direcionada a entender a relação ali
existente.
Dentro da compreensão dessa relação e da admissão dos filmes para o
corpus é preciso problematizar, ainda, a validade de suas imagens enquanto
documentos de processo. É mesmo possível compreender o processo de
criação dessas obras tendo como base estritamente o que elas apresentam em
si, sem recorrer a documentos outros que não os fornecidos pelo próprio filme
O que se percebe dessas obras e o acesso aos seus processos de
criação acabam por constituir uma experiência fílmica singular. É com base na
compreensão dessa experiência estética que se pode suscitar a obra como
documento dela mesma. O entendimento dessas explicitações de processo
que fazem parte mesmo da obra como sendo documentos, registros de sua
criação, é possível e válido, o que permite um aprofundamento das
experiências com os filmes.
142
Ambos os filmes que compõem o corpus se mostraram de extrema
validade para um entendimento maior do método proposto, sua validação.
Além disso, permitiram uma compreensão mais ampla acerca dos modos de
criação audiovisual e as formas de levar o conhecimento desse momento
criador à obra entregue ao público.
O método da análise fílmica processual figurou, assim, como um
caminho propiciador de estudo desses filmes, parâmetros para traçar um
raciocínio cujo objetivo, dentre outros, residia no entendimento da inclusão do
processo nessas obras.
Assim, num primeiro momento foi preciso traçar uma discussão acerca
do estado da arte dos estudos de criatividade e processo de criação. Isso se
mostrou necessário como modo de entender de maneira mais conceitual os
meandros da criação artística, bem como seus instrumentos de análise.
Outro ponto de bastante relevância estava na compreensão acerca do
conceito de dispositivo como estratégia narrativa. Era de extrema necessidade
caracterizar o tipo de dispositivo a que se faz referência nesta pesquisa, uma
vez que o termo possui uma aplicação ampla e em campos diversos. Dessa
forma, dentro de diversos trabalhos que abordam conceitualmente o
dispositivo, sua relação com as imagens e o cinema, delineou-se um percurso
em que se chega à noção trazida por Migliorin (2008) de dispositivo como
estratégia narrativa, um dispositivo interno ao filme, pelo qual o filme acontece.
As correlações entre dispositivo e processo de criação, sua
problematização dentro do campo do documentário brasileiro contemporâneo
permitiram compreender melhor o fenômeno abordado. Isso porque é possível
observar nestes tipos de produções uma particularidade e uma
interdependência em relação à articulação de dispositivos fílmicos e a presença
do processo de criação nas imagens. Há ainda outro ponto a ser destacado
que diz respeito à ampliação das discussões e interesses sobre os processos
criativos das obras que estão presentes nestes filmes e são estimulados por
eles.
Com isso, outro ponto de importante discussão para a construção desse
método residia na compreensão das características dessas imagens e as
peculiaridades apresentadas nesses filmes. Afinal, o que eles tinham de
143
diferente a ponto de suscitarem uma nova proposição de método Suas
particularidades residem no tipo de imagem apresentada, na posição ocupada
por seus realizadores dentro do filme, sua condução narrativa e a própria
articulação entre obra e devir.
Nesses filmes, observa-se na análise, a força das imagens em fluxo, o
poder dessas imagens inacabadas é o que faz com que haja filme, uma vez
que eles se apresentam dentro da não-roteirização de que fala Comolli (2008).
Assim, percebe-se que um dos pontos fundamentais da relação entre
dispositivos e processos de criação está na obtenção dessas imagens, no
aproveitamento desses descontroles, nessa opacidade declarada.
A obtenção das imagens que compõem os filmes acontece durante a
ativação dos dispositivos. É nesse momento que todos os pensamentos e
conceitos estabelecidos anteriores ao filme são colocados em prática. Como
característica do próprio dispositivo, essas situações de controle suscitam
respostas descontroladas. São falas, gestos, olhares, ações das personagens
e dos temas trabalhados que fogem ao determinado, são as forças do acaso da
realização fílmica que aparecem.
A exposição da opacidade da criação fílmica se apresenta, assim, como
a maneira de integrar esse acaso, esse descontrole, as evidências dos
momentos de criação, da realização fílmica para dentro do filme. Essa camada
opaca é vista quando Kiko Goifman planeja a cena de seu reecontro com a
mãe que jamais acontece. Quando Sandra Kogut tem seu passaporte húngaro
testado pelo oficial da imigração no trem. Quando Marcelo Pedroso tem seu
material de trabalho transformado em assunto de polícia. Quando Eduardo
Coutinho adota posições não-convencionais para realizar suas imagens,
mostrando os detalhes das coxias do teatro, dos condicionadores de ar, do
bebedouros.
Ao trabalhar cada um desses filmes sob a ótica da análise fílmica
processual, foi possível perceber que havia em cada um deles uma referência
conceitual que sintetizava a lógica de seus dispositivos. Mais do que nomear as
seções de análise, os termos imagem-presente, imagem-origem, imagem-
matriz, imagem-cênica trazem consigo uma lógica de sentido.
144
Em Câmara Escura (2012), essa síntese se faz por meio daquilo que se
chamou de imagem-presente numa referência direta às caixas de presente que
continham as câmeras, mas também num sentido mais direto da imagem, sua
busca pelos momentos de interação das personagens com as câmeras.
Em Um Passaporte Húngaro (2002), as escolhas técnicas de imagem, a
opção por usar imagem em 8mm, são uma tradução visual formal e estética do
sentido de busca por origens que o filme aponta. Assim, essa síntese deu-se o
nome de imagem-origem.
Em 33 (2003), o termo imagem-matriz tem uma primeira relação com o
processo de criação do filme, que toma por mote a procura de uma mãe.
Contudo, há também nas imagens do filme, na forma como realizador se insere
no filme como sujeito-da-câmera e personagens, seus auto-frames, uma noção
geradora, de composição de um sujeito.
Já em Moscou (2010), o que se denomina de imagem-cênica parte da
síntese do dispositivo voltado à mise-en-scéne formulado por Eduardo
Coutinho. Suas imagens apontam para essa relação direta entre cena e
encenação, numa discussão metadiscursiva.
Cada dispositivo vai formular sua situação específica. Cada obra vai ser
única. Cada forma de conduzir essa obra vai ser particular. Cada ação vai ser
característica dentro desse conjunto de realização.
Cabe ao analista fílmico processual encontrar essas evidências nas
imagens, essas marcas, desvendar seus modos de articulação para cada filme
analisado, traçar suas linhas de acompanhamento e perceber de que modo o
processo funciona dentro da obra, na formação desse duplo, dessa obra e
desse vir a ser.
Cabe ao analista também vislumbrar as obras como um todo,
percebendo suas narrativas, suas potências estéticas, sua condução enquanto
obra fílmica. Os elementos da produção audiovisual e sua análise não podem
passar despercebidos. A proposta é justamente mesclar, fundir os modos de
observação de uma obra e de seu processo, traçando um pensamento analítico
que auxilie na compreensão desses outros modos de realização audiovisual.
Dessa maneira, observou-se ao longo de todo o período de realização
da tese que existe uma carência metodológica nas abordagens das obras
145
fílmica de uma maneira geral. Ao problematizar uma necessidade de outro
modo de analisar o processo de criação em obras audiovisuais, esta pesquisa
buscou ainda discutir a própria emergência desse campo de estudo.
146
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Um Passaporte Húngaro
Gênero: Documentário Direção: Sandra Kogut Roteiro: Sandra Kogut Produção: Marcello Maia Trilha Sonora: Papir Iz Dorkh Vais, Yah Riboh Duração: 71 min. Ano: 2002 País: França, Hungria, Bélgica e Brasil Cor: Colorido Moscou Gênero: Documentário Direção: Eduardo Coutinho Produção: Beth Pessoa Fotografia: Jacques Cheuiche Ano: 2010 País: Brasil Cor: Colorido Câmera Escura
Gênero: Documentário Direção: Marcelo Pedroso Produção: Simio Produções Ano: 2012 País: Brasil Cor: Colorido
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