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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
SIMÃO PEDRO DOS SANTOS
DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS:
A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL
Rio de Janeiro
2015
SIMÃO PEDRO DOS SANTOS
DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS:
A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito para a
obtenção do Título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
Orientador:Prof.ª Doutora
AnéliaMontechiariPietrani
Rio de Janeiro
2015
Ficha elaborada pela Biblioteca José de Alencar – Faculdade de Letras/UFRJ
S237d Santos, Simão Pedro dos.
Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. – Rio de Janeiro, 2015.
209 f.; 31 cm.
Orientadora: Profa. Dra. Anelia Montechiari Pietrani. Tese (Doutorado) – Departamento de Letras
Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Bibliografia: f. 203-209. 1. Linguagem Brasileira. 2. Literatura de cordel. 3.
Memória. I. Título. II. Pietrani, Anelia Montechiari.
CDD 869.0991
RESUMO
SANTOS, Simão Pedro dos. Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelados
carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. Tese (Doutorado em Letras
Vernáculas) – Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras/UFRJ, 2015.
A presente tese defende a ocorrência de uma matéria épica da literatura de cordel com ênfase
no cangaço, a partir de uma memória oral como fundo para a memória escrita. Para a
idealização mítica contemporânea aos cangaceiros, com rara exceção, usou-se a primeira
pessoa do discurso. O processo de feitura desses textos era calcado em uma primeira pessoa a
que chamamos de Eu épico, pelos motivos inerentes à conturbada trajetória das personagens.
A ideia de fazê-los heróis, no entanto, se prolonga até os dias atuais, já com a isenção poética
pertinente à distância no tempo. Nas narrativas épicas do cordel, há filetes espontâneos com
as técnicas das narrativas clássicas como a invocação, a rememorização, a sobrenaturalidade,
as façanhas inusitadas, mas ainda, e principalmente, há íntimo diálogo com textos medievais e
ibéricos legados ao Nordeste no período colonial. Narrativas como as de Carlos Magno e
outras são a essência da invenção e reinvenção dos heróis locais. Este estudo se fundamenta
em textos de Anazildo Vasconcelos, Arnold Hauser, Eric Hobsbawm, Aglae Lima de
Oliveira, Câmara Cascudo, Rui Facó, Jerusa Pires Ferreira, entre outros, que constituem o
apoio teórico nos estudos do cordel épico. O corpus analisado se compõe de textos de
Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, pioneiros do cordel brasileiro, e se
estende aos poetas contemporâneos, que igualmente abordaram a temática ora proposta.
Palavras-chave: Literatura brasileira, cordel, cangaço.
ABSTRACT
SANTOS, Simão Pedro dos. Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelados
carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. Tese (Doutorado em Letras
Vernáculas) – Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras/UFRJ, 2015.
This thesis argues for the occurrence of an epic matter in the literature of cordel with
emphasis on cangaço, from an oral memory as background for writing memory. For a
mythical idealization of the cangaceiros in their contemporary times, with rare exception, it
was used the first-person speech. The process of making these texts was trampled in a first
person which we call “I epic”, for reasons inherent in the troubled history of the characters.
The idea of making them heroes, however, extends to the present, as with the poetic
exemption concerned to the distance in time. In the epics, there are spontaneous fillets with
the techniques of classical narratives as the invocation, the rememorization, the supernatural,
the unusual exploits, but also and above all, there is intimate dialogue with medieval and
Iberian texts bequeathed to the brazilianNordeste in the colonial period. Narratives such as
Carlos Magno’s stories and others are the essence of the invention and reinvention of local
heroes. This study is based on texts written by AnazildoVasconcelos, Arnold Hauser, Eric
Hobsbawm, Aglae Lima de Oliveira, CâmaraCascudo, RuiFacó, GerusaPires Ferreira, among
others, which are the theoretical support in the epic studies of cordel. The corpus analyzed
consists of texts written by Leandro Gomes de Barros and Francisco das Chagas Batista,
Brazilian pioneers in literature of cordel, and extends to contemporary poets, who also
addressed the theme proposed here.
Keywords: Brazilian literature, cordel, cangaço.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................11
1 – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CORDEL PARA SER CONTADO, CORDEL PARA
SERCANTADO . ......................................................................................................................20
2 – TECEDORES DE HISTÓRIAS: A INVENÇÃO DOS CANGACEIROS ... ....................37
2.1 – Romanceiro guardado, memória transferida ........... ...............................................44
2.2 – Aedos nordestinos: penas inspiradas, histórias para contar .. ..................................62
2.3 – Antônio Silvino, Lampião e outros heróis: os fatos, os feitos, o mítico, o
místico........................................................................................................................... ..........96
2.4 – Anábase e catábase: o inferno, o céu e o pouso no sertão .. ..................................131
3 – AMORES: MARIAS E DADÁS – VÊNUS NO SERTÃO ... ..........................................141
3.1 – Tantas mulheres... marias bonitas que se multiplicam........................................ 145
3.2 – Canções de amor: o cordel e outros cantares ......................................................155
4 – OFICINA DO CORDEL: A INSPIRAÇÃO, O SUOR .. .................................................165
4.1 – Metalinguagem: o exercício da palavra-texto . .....................................................167
4.2 – intertextualidade: diálogos possíveis . ...................................................................179
4.3 –A construção:“Tijolo com tijolo num desenho mágico” . ......................................191
CONSIDERAÇÕES FINAIS .. ...............................................................................................200
BIBLIOGRAFIA .. ..................................................................................................................203
11
INTRODUÇÃO
No dia a dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
(“Descoberta da literatura”, João Cabral de Melo Neto, em A
escola das facas)
Uma primeira dificuldade que se tem na proposição dos estudos de literatura de cordel
é a ausência de pesquisa, de sistematização, de teorização, que a coloque no bojo das
discussões literárias. Estudos que as universidades e outros centros de pesquisas ainda estão a
dever. Não há nos tratados literários nenhuma consideração abrangente no sentido da crítica,
do entendimento estrutural e da mentalidade do universo criador dessa literatura.
Desse modo, entende-se que propor estudos dessa expressão da cultura popular é lidar
com um natural desafio. Há de se conceber, portanto, que isso termina por ser tarefa, embora
instigante, árdua, de investigação de um fazer artístico-literário que não perde importância por
ainda não se ter tornado na sua totalidade objeto de estudos nas academias, que intentam
privilegiar manifestações eruditas como produção do espírito criativo, e que, embora voltado
para um povo, ainda considera como legítimo um matiz literário elitizado.
Dentre os poetas da primeira geração do cordel brasileiro destacam-se Leandro Gomes
de Barros (1865 – 1918), a quem se atribui ser o iniciador dessa linguagem no Nordeste do
Brasil, Francisco das Chagas Batista (1882 – 1930), Antônio Ferreira da Cruz (1876 - ?), João
Melquíades Ferreira da Silva (1869 – 1933), Silvino Pirauá de Lima (1848– 1898), Severino
Milanês (1906 – 1967) e José Camelo de Melo Resende (1885 – 1964).
Dos poetas elencados acima, há a seguinte lista de obras sobre a temática do cangaço:
Antônio Silvino: vida crimes e julgamento; A história de Antônio Silvino; História completa
de Antônio Silvino, sua vida de crimes e seu julgamento; Interrogatório de Antônio Silvino;
História de Antônio Silvino - continuação e Vida de Antônio Silvino, de Francisco das Chagas
Batista.
De José Camelo de Melo Resende se destaca Uma das maiores proezas que Antônio
Silvino fez no sertão pernambucano e, de Leandro Gomes de Barros, Antônio Silvino no jury:
debate de seu advogado; Antônio Silvino o rei dos cangaceiros; Antônio Silvino se
12
despedindo do campo; Os cálculos de Antônio Silvino; Como Antônio Silvino fez o diabo
chocar; A confissão de Antônio Silvino; Exclamações de Antônio Silvino na cadeia; A ira e a
vida de Antônio Silvino; As lágrimas de Antônio Silvino por Tempestade; Luta do diabo com
Antônio Silvino; Morte de Tempestade (Antônio Félix); O nascimento de Antônio Silvino; As
proezas de Antônio Silvino; O sonho de Antônio Silvino na cadeia, em que lhe apareceram as
almas de todos os que elle matou); Todas as lutas de Antônio Silvino; A visão de Antônio
Silvino.
Leandro Gomes de Barros lidera, portanto, a lista de títulos sobre Antônio Silvino.
Atente-se que na poética desse autor não há nenhuma narrativa sobre Virgulino Ferreira, o
Lampião, pois seu ingresso no cangaço se deu a partir de 1920, ocasião em que o poeta já
havia falecido. Nesse caso, a temática do cangaço perdeu grandes lances poéticos, a exemplo
de tantos textos com exploração de assuntos variados, todos da verve do poeta paraibano.
É importante lembrar as diferenças entre o popular e o folclórico, uma vez que o
caráter deste será sempre a oralidade, o anonimato, a imprecisão cronológica e a persistência
(CASCUDO, 1978, p. 23). O que torna o popular diferente do folclórico é justamente sua
contemporaneidade e sua aproximação no tempo e no espaço. O cordel, todavia, não se
enquadra na linguagem do folclore (salvo raras exceções), por sua inserção na modernidade,
constituindo texto de fazer individual, e, portanto, por apresentar autoridade reconhecida –
embora por muito tempo mantenha o caráter da leitura em roda, como ocorre com o folclore,
além de quase sempre ser fácil identificar no tempo a criação de determinado texto. Outra
característica do texto em cordel é sua inserção na palavra escrita. Pode-se então afirmar que
se é material gráfico pode até abordar elementos de oralidade, mas não constitui memória
oral.
Podemos inferir que a literatura de cordel pode alimentar um tipo de persistência,
como por exemplo, a tentativa de se manter numa era em que o rádio, a televisão, o cinema,
os jornais, a informática, a internet, linguagens que compõem o cenário da modernidade e da
pós-modernidade, que se afirmam a cada passo. Nesse aspecto, o cordel termina por dialogar
com toda essa soma de tecnologia avançada, estabelecendo uma adaptação que o torna
também uma linguagem igualmente dinâmica, guardadas as diferenças que lhes competem.
Faz-se necessário aventar que essa adaptação da linguagem do cordel às mudanças que o
acompanham no Brasil há mais de cem anos faz dele resistente e persistente dentro dos
avanços e das evoluções que alcançamos.
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Essas criações populares europeias, já conhecidas no Brasil desde o período colonial, e
que diferem daquelas folclóricas, como quadrinhas sobre o Cabeleira, resultaram em texto
matricial, para toda uma poética dos cordelistas brasileiros, sobretudo no que concerne ao
cangaço e o que dele derivou em criação espiritual configurada numa literatura que aponta o
heroísmo de homens que aterrorizaram o Nordeste brasileiro por décadas.
Obviamente o heroísmo de um Carlos Magno difere daquele de um Lampião, mas os
escritos em torno do conquistador europeu e suas façanhas deram ao nosso poeta popular
nordestino a chave para que sua poética em torno de um Antônio Silvino ou um Lampião
fosse ao jeito das proezas e do heroísmo do lendário imperador Carlos, rei medieval dos
francos.
O tema de Carlos Magno subsiste, é transferido, mas, localizado, passa a ter caráter
nordestino. Toda a valentia do herói medieval insere-se no ambiente e na linguagem próprios
dos cangaceiros. Há de se lembrar que os cangaceiros são heróis-bandoleiros da modernidade,
aventureiros que comportam nova linguagem, e, portanto, apresentam os problemas da
modernidade. Desse modo, um Carlos Magno medieval não se adaptaria ao enredo de um
cordel do século XX. Por esse motivo, mesmo que seja inconsciente, a poética da literatura de
cordel recria a temática de Carlos Magno e jamais transcreve seu conteúdo, como propõem
alguns pensadores da matéria.
Para o sertanejo, a figura e a pessoa do cangaceiro representam seu ideal heroico e, por
essa razão, esse mesmo sertanejo sempre se interessou e sempre quis ler ou ouvir os cantares
sobre seus heróis. Se o homem do sertão via no cangaceiro o medo, percebia também que se
fazia necessário o cantar e o louvor em sua honra, pois isso não seria apenas a afirmação
desse herói, mas também do homem e da terra, representados no canto que ele sintetiza.
Observador de todas essas passagens entre o sertanejo e o cangaceiro, entre o temor e
a admiração, os poetas detinham um quê de obrigação por revelar fatos e manter essa
memória. Evidente que havia esse temor do povo em relação ao cangaceiro, ao mesmo tempo
em que havia uma busca por um herói, e este não podia ser outro, senão o próprio cangaceiro.
O povo precisava se apegar às figuras desses homens como escape e saída para suas
amarguras, as injustiças vividas, as secas, a fome e a miséria. Os cangaceiros representavam o
que os políticos, por exemplo, não ofereciam: um sentimento de justiça.
Ao enfrentarem o sistema vigente e ao combaterem os coronéis, os cangaceiros
transmitiam ao povo a conta exata da bravura e do destemor que esse mesmo povo não
mostrava, uma vez que não tinha as forças necessárias para o desafio diário contra um coronel
14
de barranca, pois na luta para sobreviver esse povo dependia quase sempre de um destes
senhores feudais e a ele tinha de se curvar.
Responsáveis por guardar a memória coletiva, cantadores e poetas da literatura de
cordel sintetizam e divulgam essas lutas e essas histórias por meio da voz, os primeiros, e da
letra e da voz, os cordelistas,que, ao tirarem do prelo seus textos, perambulam por feiras e
ruas, praças e cidades, contando valentias e bravuras que perpetuam a saga dos cangaceiros e
os fazem heróis, afirmando-os, mas afirmando ainda o próprio sertanejo, pois este passa a ser
representado no cantar que resume a coletividade de que faz parte. Falar e fazer constituem
para o povo atitude de coragem e destemor. A coragem e os elementos de que o povo não
dispunha para executá-la estavam nas mãos dos cangaceiros e, sendo este vencedor, o povo
estará vingado e a justiça estará feita.
O poeta tem extrema importância em seu grupo social ao centrar seu texto na lida do
cangaço, pois é o único que dispõe do poder da palavra para a captação efetiva da realidade
que propõe focar como observador e como instrumento de ligação entre o cangaceiro e o
leitor possível ou mais precisamente o ouvinte das histórias que sintetiza e conta e até canta.
Entretanto, como porta-voz de seu povo, o poeta tem o cangaceiro igualmente como seu herói,
pois a bravura, a força, a sagacidade do cangaceiro têm de, primeiramente, chamar a atenção
do poeta. A musa da poética popular capta o momento exato de afirmar o herói frente ao povo
e a partir daí o imaginário se faz, não sem um foco no mundo dos fatos ou dos reais
acontecimentos.
O canto épico do cordel, como nos clássicos, apresenta dois planos que auxiliam no
entendimento da natureza do texto: uma realidade patente, calcada num fato, e uma realidade
mítica. A realidade patente depõe da história e de tudo que dela se conta como certeza. A
realidade mítica torna-se o resíduo do que ficou da história ou o que dela se extrai, mas há
nisso um dado interessante: é o mítico que termina por funcionar com foros de verdade, pois é
a verdade que resta e a que o povo e o seu poeta querem e aprovam. O poeta tem por função,
portanto, levar à coletividade o que colhe dessas duas realidades, para dar à sua obra o caráter
de canto épico. Os fatos evidenciam a história, e o imaginário dá relevância ao mítico ou
imaginário, sustentando a narrativa, dando-lhe a grandeza que merece um texto épico.
Na crônica do Nordeste do final do século XIX e início do XX, crimes diversos
envolviam grupos familiares rivais por circunstâncias as mais variadas como as de ordem
político-partidária, pequenas dissensões em torno de delimitações de terra, questiúnculas por
posses de animais, crimes de desonra à filha de determinada casa, e, consequentemente à
15
família, entre outros. Todos motivavam desavenças que se estendiam por anos a fio e
fatalmente abarcavam outra situação: grupos familiares agregados, de um lado e de outro das
refregas, no dever da defesa mútua se digladiavam severa e sinceramente. Nesse ambiente de
tensão e morte, os chefes dessas famílias, no cumprir de seu trato de honra, quase sempre
coronéis, fazendeiros, senhores de terras e posses, ou pequenos aliados como agricultores,
posseiros, servos, terminavam por perecer em lutas, às vezes, desiguais. Morriam, porém, na
defesa da palavra empenhada e da honra de serem aliados.
Ao utilizarem o interessante recurso de um Eu que narra as aventuras cangaceirescas,
os poetas se defendem e se privam de represálias por parte dos cangaceiros e das volantes.
Criar mecanismo que lhes permita divulgar cotidiano tão delicado e perigoso é conferir
expediente de proteção que se estende, com pequena exceção, a todos os cordelistas
contemporâneos do cangaço como um quase inconsciente silencioso pacto. A esse Eu que
representa inteligente saída de criação literária para evidenciar a vida e a ação dos cangaceiros
trataremos de Eu épico. Sustentação poética dos cordelistas, é recurso que representa a voz
aos cangaceiros, pois eles mesmos narram, de forma clara e não menos contundente, suas
histórias. Ao se valer desse Eu épico, os poetas tratam, por exemplo, de furtos, roubos, mortes
horrendas, saques e ataques a pequenas cidades e povoados, ao mesmo tempo em que se
redimem, pois, apesar de ser poema épico, a terceira pessoa que lhes colocaria em apuros não
aparece no texto.
Portadores de virtudes e defeitos, atributos dos heróis, os personagens das narrativas
do cordel épico passam a um só tempo a ideia de que seu heroísmo se faz presente quando se
aponta sua valentia ligada ao enfrentamento dos poderosos locais, representados por coronéis
e fazendeiros, bem como quando do enfrentamento do poder constituído, de natureza mais
abrangente, o que envolve o estado, suas leis e suas forças militares.
Devemos, porém, lembrar que, apesar de receios quanto aos cangaceiros ou ao estado,
há predisposição dos poetas em cristalizar as aventuras e façanhas dos cangaceiros como algo
que caracterizaria o mito segundo as expectativas de parte do povo e de acordo com suas
perspectivas. O poeta sintetiza esse caráter mítico em resposta ao povo.
Abra-se um parêntese para lembrar não só a existência do cordel épico paralelamente
ao período em que os cangaceiros desempenham suas atividades como sua resistência ao
tempo, fenômeno próprio da matéria épica, mas se estendendo aos nossos dias, isto é, seu
curso corre para além do tempo em que o cangaço existiu. Além do mais, o cordel épico atual,
diferente daquele coetâneo aos cangaceiros, usa a instância narrativa, como nos épicos
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clássicos, centrada na terceira pessoa do discurso. Esse distanciamento no tempo faz com que
os poetas se sintam livres para criar e isso influencia no seguinte comportamento: embora
muitos vejam com simpatia os ideais do cangaço, podem agora apresentar visão diferente de
tudo o que propunham os poetas na época em que viveram os cangaceiros.
Desse modo, os poetas surgidos após os anos 40, marco final do cangaço, podem tanto
fazer crítica ferrenha aos cangaceiros ou dirigir-lhes, com visão humorada, a pilhéria e a
galhofa, como lhes devotar admiração exaltando-lhes a bravura. Na verdade, no pós-cangaço
esses textos podem trazer estima ou repulsa sobre os cangaceiros, o que depende do ponto de
vista de cada poeta.
Para manter vivas as histórias do cangaço, os poetas compunham e compõem uma
rede de textos que, conforme mostrado acima, extrapolam o tempo em que viveram os
cangaceiros, havendo toda uma produção de cordéis de natureza épica que passa pelos anos
50 e chega aos nossos dias. No cordel épico, entretanto, o que aparece é a razão de o poeta
engrandecer os atos dos cangaceiros como reconhecimento às suas ações e de acordo com o
que entendem por bravura, como por exemplo, o enfrentamento desses cangaceiros aos
poderes constituídos e aos seus representantes, os poderosos locais, ou seja, coronéis,
fazendeiros, comerciantes, políticos.
Resultante de um acontecimento grandioso, o canto épico se torna igualmente grande,
na medida em que o poeta desfigura a realidade histórica, tornando-a rica de elementos que
extrapolam o acontecimento real, transformando-o, através de recursos míticos, em narrativa
de caráter épico. Na literatura de cordel, essa narrativa também se dá de forma a se apresentar
com recursos parecidos aos do canto épico clássico. As desrealizações do mundo
cangaceiresco se dão de tal forma que não há como negar as realizações míticas, não havendo,
embora, como negar as instâncias do real.
No primeiro capítulo desta tese “História e memória: cordel para ser contado, cordel
para ser cantado”, se faz uma abordagem dos fatos que envolvem a trajetória dos cangaceiros
do ponto de vista da realidade, isto é, dos acontecimentos marcadamente históricos de sua
época e o que vivenciaram, mas que, transpostos para a linguagem da literatura de cordel,
adquirem caráter de memória que se estende até os dias atuais. Há também vários exemplos
de como pensadores viram o fenômeno cangaço e como se divide esse pensar em pró e contra.
Outro dado igualmente importante é que essas narrativas, por terem um “leitor
oralizado”, são contadas mediante duas estratégias: a da leitura – quase sempre em voz alta –
pelos poucos que sabiam ler, em roda, nos serões, em meio a parentes, amigos, achegados e
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aquela que se dava pelo canto a palo seco, i.e, sem auxílio de amplificadores de som, nas
feiras, nas praças, nas ruas, às vezes de memória, pela repetição; noutras, apenas de memória
por não se saber ler. O ritmo, a rima, a estrofação constituíam elementos mnemônicos que
facilitavam tanto a leitura como sua consequente memorização.
O seguinte capítulo, “Tecedores de histórias: a invenção dos cangaceiros”, traz
conjecturas sobre os poetas que tiveram como tema os grandes embates dos cangaceiros e
suas vitórias em meio inóspito e brutal. Há ainda a apresentação e consequente discussão
sobre como se criou todo um romanceiro em redor desses heróis e como essa memória foi
transposta para o cordel. Inegavelmente, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, nessa ordem,
foram os mais importantes cangaceiros, cada um a seu tempo e com seu estilo, e em torno dos
quais se deu toda a realidade artístico-literária da literatura de cordel. Não se deixou de
mencionar outros cangaceiros anterior e posteriormente ao auge e derrocada do fenômeno
cangaço.
Em “Romanceiro guardado, memória transferida”, primeiro subcapítulo do segundo
capítulo, há uma abordagem do cordel local e de sua afirmação no povo brasileiro e
nordestino, a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo na sua transição para o XX,
com os poetas Leandro Gomes de Barros, Francisco da Chagas Batista, João Melchíades
Ferreira da Rocha, Severino Milanês da Silva, Silvino Pirauá de Lima e Antônio Ferreira da
Cruz, todos a obterem em velhos textos ainda medievais alicerce matricial que, transferido, se
presta a erguer construções poéticas de sabor local.
O segundo subcapítulo, “Aedos nordestinos: penas inspiradas e histórias para contar”,
faz um levantamento do que vem a ser, na ótica dos poetas populares, a representação do
cangaceiro como herói, sem perdermos de vista o elenco teórico possível, desenvolvido
academicamente e a partir de estudos que tiveram o mito como mote. Nossa pesquisa tem
como objetivo estabelecer e demonstrar atos heroicos no percurso da poética literária do
cordel, no tocante a esse herói que provém do cangaço. Seguramente, nosso olhar se volta
para a realidade de um herói inserido na cultura nordestina e de acordo com os cordelistas que
desenvolveram sua capacidade de escrever segundo a representação de um mito local, com
vistas, inclusive, para a afirmação coletiva do povo nordestino e brasileiro.
No terceiro subcapítulo, intitulado “Antônio Silvino, Lampião e outros heróis, os
fatos, os feitos, o mítico e o místico”, serão abordados os fatos e os feitos dos cangaceiros de
Antônio Silvino a Lampião, além de outros que fizeram a história do cangaço. O texto faz
notações pontuais que remetem ao período colonial com seus embriões do que viriam a ser os
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cangaceiros pelos séculos XIX e XX. As peripécias desses homens, sua violência, seus
índices de tolerância, seus embates, seus conchavos, teorias várias a seu respeito, tudo se
discute, além de se fazerem mostras de textos de cordel que ilustram os fatos e o mítico, o
místico e o político.
Em “Catábase: a descida ao inferno e a subida ao bom sertão”, quarto subcapítulo,
discute-se o espaço mítico a que os cangaceiros recorreram para configurar sua luta diária. É o
lugar em que os poetas populares inserem seus heróis, e não teria como ser outro. Palmilhar
esse espaço é descer/viver no inferno/sertão. É de lá retornar para alcançar a categoria de
herói. A marca primordial dessa aventura é se sair vitorioso. Ser levado pelo destino sem
olhar para trás é galgar a heroica galeria. O sertão é o grande inferno que os cangaceiros têm
de enfrentar. O inferno é a sobrevivência em meio à aridez não apenas geográfica, mas dos
homens: “coronéis”, senhores de terras, políticos, governo, polícia. Eles, os cangaceiros, são
também áridos, secos, valentes. Viver nessa ambientação é viver no inferno. De lá sair é não
só se purgar, mas tornar-se herói.
É sabido que não se fazem heróis com a marca do anti-herói. Os cangaceiros são, na
poética do cordel, heróis. Embora pelo olhar clássico lhes faltem a plástica e a genética
olímpicas, por outro lado, o sobrenatural, os elementos mágicos, o encantamento, a bravura e
a altivez pertinentes a um filho de deuses gregos, não lhes foram negados. Se não há a
interferência dos deuses em suas ações, a poesia popular, no entanto, lhes dão todas as faces
que caracterizam um herói: a força em meio à luta, a sagacidade, a sabedoria. No panteão
nordestino, os grandes cangaceiros são os heróis segundo o que lhes imputa seu povo e sua
gente, na ânsia, inclusive de, coletivamente, se afirmar. Os poetas percebem isso e tornam
vivos um Jesuíno Brilhante, um Antônio Silvino, um Lampião.
No terceiro capítulo, “Amores no cangaço: Marias e Dadás – Vênus no sertão”, a
intenção é mostrar que o cordel épico traz também em seu bojo as “tágides” sertanejas. Foram
elas acabocladas e trigueiras mulheres que seguiram seus homens sem pensar em
consequências, ou se nelas pensaram, não se intimidaram, pois o amor, mais forte,
sobrepujava a quaisquer perigos e as fez caminhar por ínvios sertões, no afã de, ao lado de
seus companheiros, cultivarem o que há de mais precioso no ser: amar. Sofreram e morreram
por esses loucos amores. Os cordelistas souberam devotar tributos a essas Vênus do sertão.
Nesta tese, mencionamos também canções de amor que foram imortalizadas na memória
brasileira e pertenceram tanto aos bandos propriamente quanto aos demais artistas brasileiros
de todas as épocas e gêneros.
19
No quarto e último capítulo desta tese, “Oficina do cordel: a inspiração, o suor”,
versaremos sobre o fazer poético desses autores que registraram e registram o cotidiano do
Nordeste num esforço para perpetuar a cultura e a história da região. Quase todos
semialfabetizados, esses poetas, em muitas ocasiões, tecem sobre o próprio fazer literário,
independentemente da temática focalizada. Nos cordéis épicos, a presença do metapoema é
uma realidade, sobretudo quando há uma tentativa de se explicar o porquê do tema e de sua
abordagem. Pode-se afirmar com propriedade que mais de 90% desses autores não dão conta
dessa característica teórica em seus textos. Além disso, mostras e discussões sobre
intertextualidade serão uma presença constante nos textos de literatura de cordel, conforme
verificaremos.
É notório que esses fenômenos se dão na própria tradição do cordel e sempre foram
comuns a esse texto, especialmente pela ideia que os poetas trazem de inspiração: batalhar
com a palavra em duro trabalho, explicar seu enredo ou feitura, dialogar com outros textos
tanto na sua forma escrita como na leitura em voz alta para o respeitável público.
Devemos ainda acrescentar que, no que concerne à ortografia dos textos de cordel,
optamos por manter a sua autenticidade, com seus supostos “desvios” gramaticais,
respeitando o tempo em que foram produzidos e o conhecimento que têm seus poetas, no
tocante à normatividade da língua portuguesa.
20
1 – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CORDEL PARA SER CONTADO, CORDEL PARA SER
CANTADO
Vários poetas escreveram
Esta história também...
(José Costa Leite, em Nascimento vida e morte de Antônio
Silvino)
A História no seu sentido mais universal sempre fornecerá ao pesquisador a busca a
fundo dos acontecimentos. É imprescindível ir aos documentos, aos papéis, aos museus, às
bibliotecas, aos jornais, a fim de se resgatar o passado e de se tentar entendê-lo e interpretá-lo.
Na literatura, a busca pela comprovação dos fatos não é nem será um fim. Sua ligação com
um passado histórico qualquer está em com ele dialogar, se há intenção poética de se produzir
texto, por exemplo, de caráter épico.
Seguramente, qualquer evento da história da humanidade em todos os tempos trará
sempre um quê de relato paralelo. A aplicação do termo se ajusta ao texto que remete a tudo
o que se extrai de um dado real, isto é, propriamente histórico, e se estende, com o tempo, a
um imaginário erudito ou popular, numa espécie de resíduo da própria história, para se
constituir, em relato épico, versão tanto erudita quanto popular. Os relatos populares tendem a
representar as verdades em que o povo acredita e de que extrai tudo o que o legitima e com
que se identifica. Isso dá a impressão de que sua história só é real se contada, narrada por ele
ou pelo poeta, seu representante. Destarte, o povo alimenta sua própria história e a guarda
pela memória oral – quase sempre – em detrimento, a princípio, do texto escrito, pesquisado,
analisado academicamente. Acumulados na memória coletiva, os relatos populares se
transpõem de geração a geração e terminam por serem testemunhas de épocas as mais remotas
e das mais variadas histórias e vivências.
Desse modo, pode-se aventar que A história do imperador Carlos Magno permaneceu
por muito tempo na memória popular europeia porque foi não só aceita, mas identificada com
esse mesmo povo. As façanhas do lendário imperador também aguçaram o imaginário popular
brasileiro, já que a história de suas investidas foi para cá transplantada em livretos que,
igualmente, de forma oral se espalharam, ainda no período colonial, sobretudo, em solo
nordestino, espaço em que esses livrinhos de aventuras se arraigaram. Do mesmo modo,
narrativas como A Donzela Teodora, A princesa Magalona, Roberto do Diabo, João de
Calais, entre outras, legaram igual imaginário à verve nordestina. Essas faces importantes de
21
narrativas de bravura com caráter medieval instigaram a adaptação e o desdobramento de
outras narrativas, desta feita, locais, com temática ajustada à saga dos cangaceiros.
A memória coletiva, também chamada de tradição oral, que H. Moniot (1982) define
como “tudo aquilo que é transmitido pela boca e pela memória” (p.102), tem importância no
período colonial, pois constituía a cultura oral do elemento indígena presente quando do
achamento do Brasil, com seus mitos, suas lendas, sua dança, sua música, suas narrativas de
tempos primordiais, com os idosos a passar de geração a geração as mais intrínsecas
tradições. Para ilustrar esse contato do europeu com a tradição oral nativa, veja-se o que narra
Jean de Léry, (1980) em crônica de viagem do século XVI:
Certa vez ao percorrermos o país, eu, outro francês chamado Tiago Rousseau e um
intérprete, dormimos uma noite na aldeia de Cotina; pela madrugada, ao retomarmos
a marcha, vimos chegarem de todos os lados os selvagens das vizinhanças, os quais
foram reunir-se em número de quinhentos a seiscentos numa grande praça. [...]
Durante cerca de duas horas os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de
dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem
música. Se no início dessa algazarra me assustei, já agora me mantinha absorto
ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho
repetido a cada cópia: He, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, heyre, yuê [...]. Como eu
ainda não entendia bem a língua dos selvagens, pedi ao intérprete que me
esclarecesse sobre o sentido das frases pronunciadas. Disse-me ele que haviam
insistido em lamentar seus antepassados mortos e em celebrar-lhes a valentia.
(LÉRY, 1980, pp. 210, 214, 215)
No entanto, à medida que a civilização brasileira avança, começa a estabelecer e a
traçar outros contatos com textos orais, ou até escritos – mas com menor incidência –,
transpostos para cá com o advento de povos como o africano, o judeu, o árabe, que aportaram
principalmente num Nordeste que começava já a amalgamar mitos indígenas e portugueses de
um primeiro momento, para daí em diante deixar de ser luso-indígena e passar a sofrer
influência multicultural em razão da chegada e consequente diálogo com tantos povos.
Graças a esses contatos, fenômenos culturais que passam a integrar a tradição
nordestina, guardam, originalmente, caráter desse imaginário transposto, ao qual foi somado,
de modo natural, o imaginário autóctone, numa espécie de rede que se costurou com fios
multicoloridos para se apresentar carregada de significados locais representados ora pelo
homem do litoral, ora pelo do sertão.
Nesse caudal de cultura e ao lado da História, que constata e sustenta fatos e
fenômenos sociais, sobrevive o lendário, o realismo mágico, o sobrenatural, com o fim de
alimentar o mito. Ao se tocar no Nordeste cangaceiresco, percebe-se que esse fenômeno, para
subsistir e se afirmar, necessitou de algo a mais com que se envolvesse, para se tornar
legitimo: o imaginário popular. Na verdade, com o fim de se afirmar, qualquer povo tem de se
22
munir de explicações as mais variadas para consolidar seus mitos. Nesse caso, para o povo, o
imaginário parece mais importante do que o registro propriamente histórico.
Nas culturas populares, apesar de não parecer, o imaginário sobrepuja a História e
nunca o contrário, pois aquele se dissemina de geração a geração e prevalece na memória da
comunidade, e esta termina por se restringir à escola, à biblioteca, à academia. Dessa forma,
se o povo não tem acesso nem contato com o registro que o documenta, isto é, a História, de
forma natural, reinventa, recria sua própria história, e isso só é possível pelo exato viés desse
imaginário, que diferentemente da história, que se restringe ao registro do real objetivo, se
exercita a partir do inconsciente coletivo em aberto e produzi os discursos onírico, mítico e
artístico.
Se por outro lado, a História tenta explicar, entender os fenômenos humanos
racionalmente, de forma empírica, o povo também busca se explicar, se entender e contar a
sua própria história. É como se, ao buscar fazer sua história e tudo o que a envolve, creditasse
ao imaginário todo o entendimento em torno de si, de sua origem e fundação. A História,
propriamente, funciona como re-historicização, ou seja, busca deter-se apenas no lógico, no
racional, com toda a importância e compromisso que essa ciência tem na narração e
interpretação dos fatos. No saber popular, porém, há a capacidade de contar/recontar a seu
gosto, e até segundo um caráter de subjetividade individual/coletiva, aquilo que a História
pretende analisar de forma isenta. A História é ciclo fechado; o imaginário, aberto, para se
renovar sempre.
Na história nordestina, o cangaço é uma das ocorrências que chamou a atenção de
estudiosos de várias ciências e de artistas das mais diferentes linguagens. Realidade vivida no
espaço sertanejo, o cangaço instiga a História, a Sociologia, a Antropologia a interpretá-lo e
entendê-lo, e a Literatura e outras artes a representá-lo. Associado ao ciclo das secas, à
pobreza e à miséria – em qualquer estudo ou representação artística –, o tema do cangaço será
sempre polêmico, pois depende do ponto de vista, inclusive político, de quem o observa. No
ambiente acadêmico, a formação e orientação política (quase sempre de esquerda) dos
pesquisadores dirão da maior ou menor querela em torno do assunto que, por anos, não só
afligiu, mas encantou o Nordeste brasileiro. Nas artes, rara a representação que não seja
voltada para a justiça e igualdade social.
Nomeadamente, o cangaço não está ligado apenas à miséria, à pobreza e à fome,
afirmativa trivial de considerável parte dos estudiosos. É certo que o meio em que se deu esse
fenômeno, por questão geográfica e climática, é propenso a essa pobreza, miséria e fome, a
23
ponto de Billy Jaynes Chandler (1981) asseverar que “a grande época do cangaço brasileiro
começa com a mortífera seca de 1877-1878 e alcança seu apogeu quantitativo com a de 1919”
(p. 27). No entanto, havia nesse mesmo ambiente inóspito uma gente abastada cuja riqueza
era justificativa para as ações dos salteadores andantes e sua consequente sustentação. Havia
nas terras palmilhadas pelos cangaceiros, apesar das secas, uma prodigalidade em reses,
fazendas, comércio, armazéns, coletorias, entre outros, lugares em que os bandoleiros
empreendiam sua força e violência para amealhar fortuna e poder (financeiro e político), ao
mesmo tempo em que se faziam ou se deixavam propagar como defensores da justiça e dos
pobres.
Em estudo acurado sobre o banditismo, afirma Eric Hobsbawm (2010):
Ao mesmo tempo, porém, o bandido é inevitavelmente arrastado à trama da riqueza
e do poder, porque ao contrário dos outros camponeses, ele adquire aquela e exerce
este. Ele é “um de nós” constantemente envolvido no processo de associar-se a
“eles”. Quanto mais bem-sucedido é um bandido, tanto mais ele é ao mesmo tempo
um representante e paladino dos pobres e parte integrante do sistema dos ricos.
(HOBSBAWM, 2010, p. 118)
Observe-se que a disputa pelo poder, em todos os sentidos, era inerente aos
cangaceiros. Há, porém, de se destacar que lhes interessava,sobremodo, o poder econômico ao
político, devido a sua não fixação em lugar algum, por seu cotidiano desmedido e sem pouso
certo, por seu natural caráter nômade e por estarem sempre em fuga, quando não em combate
com as forças volantes de sua área de atuação.
Um chefe cangaceiro ou seus comandados não podiam se aquartelar e mostrar
qualquer poder em lugar fixo, determinado. Dessa forma, seu poder político se dava
indiretamente, pela influência, por exemplo, de amizades políticas com coronéis de quem
viessem a ser aliados.
De acordo com Vera Ferreira e Antônio Amaury (2009):
Em todos os estados percorridos por Lampião, existiam coiteiros de grande poder
político e econômico, com exceção do Rio Grande do Norte. No Ceará estava
Antônio Joaquim de Santana, pai do secretário de Justiça do estado. Na Paraíba, o
[...] coronel Pereira. Em Pernambuco existiam vários, entre eles o coronel Ângelo da
Gia e, surpreendentemente, o comandante das forças volantes, Theophanes Ferraz
Torres, que chegou a vender munição a Lampião, segundo depoimento de pessoas
da época [...]. Finalmente, Em Sergipe, o coiteiro mais conhecido era Antônio de
Carvalho, o Antônio Caixeiro, pai do interventor [governador] do estado, o capitão
do Exército doutor Eronildes de Carvalho. (FERREIRA e AMAURY, 2009, pp. 34-
35)
Ao referir-se ainda à rede de aliados e coiteiros, Lampião, em entrevista ao médico
Otacílio Macedo, em 1926, em Juazeiro do Norte, só se mostra decepcionado com o temido e
influente coronel José Pereira Lima, o Zé Pereira, chefe da chamada revolta de Princesa, na
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Paraíba, que, no início de 1930, declara a hoje cidade de Princesa Isabel, como República de
Princesa, e, portanto, território independente dentro daquele estado da federação. Privados,
anteriormente, de boa amizade, rompem e se tornam inimigos figadais, de quem afirma
Virgulino Ferreira na entrevista a Macedo: “De todos os meus protetores, só um,
miseravelmente, me traiu. Foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um
homem perverso, falso e desonesto, a quem servi durante anos, prestando os mais vantajosos
favores de nossa profissão”. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 306)
No entanto, há outro coronel com quem Lampião se indispõe, apesar da amizade que
também nutriam anteriormente. Trata-se do coronel baiano Petronilo de Alcântara Reis,
conhecido por coronel Petro, que terminou por trair o bando comandado por Lampião e de
quem, por esse episódio, passa a ser tão perseguido que foge de suas fazendas:
A convivência entre os dois era bastante amistosa e sempre que se encontravam, a
recepção era amável. Até que, ao ser atacado por uma volante baiana, o grupo de
Lampião matou o sargento Afonso. Ao revistarem o corpo do sargento, foi
encontrado um bilhete assinado pelo coronel Petro indicando os locais frequentados
pelo grupo, além de instigar os policiais a eliminarem Lampião. Foi a conta. Ao
descobrir mais uma traição, lampião e seu grupo passaram a destruir as fazendas do
coronel.
O coronel Petro ainda tentou enfrentar o cangaceiro, mas os prejuízos eram tão
grandes que o levaram a abandonar a luta e retirar-se da região para preservar a
própria vida. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 194)
Ressalte-se que Virgulino Ferreira, para quem o cangaço fora profissão, mantivera o
primeiro contato com outro coronel, o padre Cícero, importante e poderoso líder espiritual e
político, nos idos de 1926, em casa do poeta popular João Mendes, na cidade de Juazeiro do
Norte-CE, ocasião em que tratara com o santo patriarca nordestino de assunto relativo à
Coluna Prestes. Em relação àquele estado e ao padre, declara Lampião:
Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque nele não tenho
inimigos. Nunca me fizeram mal e, além disso, é o estado do padre Cícero. Como já
disse, tenho a maior veneração por esse santo sacerdote, porque é o protetor dos
humildes e infelizes e, sobretudo, porque há anos protege minhas irmãs que moram
no Juazeiro [...]. Convém dizer que eu ainda não conhecia o padre Cícero, pois esta é
a primeira vez que venho a Juazeiro. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 310)
Como afirmado anteriormente, e de acordo com essa citação, pode-se inferir que a um
chefe cangaceiro importava, além do já citado poder econômico, apenas rápido e sorrateiro
contato político a exemplo deste com o padre, como uma espécie de suporte e sustentação
para as ações que propõe executar. Dispor de apoio político é, de todas as formas, ter aval
para cruzar fronteiras, agir livremente, fazer conchavos, contar com proteção de várias
vertentes e de diversos lugares por que tinha de passar. Ter tamanho apoio permite a um chefe
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cangaceiro agir como se tivesse ele próprio mando e força política. Pelo menos indiretamente,
devido às cartas brancas que conduzia.
Saliente-se, porém, que, tanto na literatura de cordel quanto nos estudos sobre o
cangaço, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, os dois grandes chefes, por ironia, talvez, ou
de modo inconsciente ou até consciente ou devido a não exercerem o poder político, se
autointitularam, cada um no tempo em que atuaram como governadores do sertão, em
desafio, literalmente, às autoridades e aos poderes constituídos.
Nesse caso, perceba-se que, de uma forma ou de outra, havia por parte dos bandoleiros
referidos uma inconsciente vontade de mando, no sentido mesmo político, embora isso jamais
fosse possível, e decerto, Silvino e Lampião disso tinham consciência.
Num momento qualquer de sua trajetória, Lampião endereça carta ao então
governador do estado de Pernambuco, Júlio de Melo, que lhe fora entregue pelas mãos de
Antônio Guimarães, chefe de polícia do estado. A missiva chegou a Guimarães por
intermédio de Pedro Paulo Mineiro Dias, engenheiro e representante comercial da Standart
Oil, que teria sido feito refém dos cangaceiros capitaneados por Virgulino Ferreira e fora
liberado sem pagamento de resgate. Frederico Maciel (1988) apresenta o conteúdo do texto
escrito por Lampião em que reza os motivos da partilha do estado entre o litoral e o sertão:
fica o mar por conta do governador e o sertão segundo o mando do chefe cangaceiro:
Senhor governador de Pernambuco,
Suas saudações com os seus.
Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerra
no sertão e acabar de vez com as brigas. [...] Se o senhor estiver no acordo, devemos
dividir os nossos territórios. Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião,
Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos
trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a
pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois então é o
que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda seus macacos me
emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um governando o
que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho e para que não
se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo a sua resposta e confio sempre.
Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão (MACIEL, 1988, p. 38)
A atitude de Lampião (se de deboche, se irônica, se verdadeira, embora pelo tom
pareça verdadeira) é de caráter universal entre os bandidos. A ânsia pelo poder traduz, em
termos políticos, a ideia mesma de tomá-lo do estado e de ter maior domínio em sua
comunidade. Se se descartar o Virgulino Ferreira desvencilhado de proposta propriamente
política, revolucionária, de tomada do poder em nome do povo, é possível que a missiva
endereçada ao governador de Pernambuco não tenha valor de protesto pelo poder. Nesse caso,
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soa irônica e constitui apenas insulto. Do contrário, sua atitude seria de defesa do povo e de
tomada do poder pela revolução, mas isso, de fato, não condiz com as propostas do
bandoleiro.
Sobre Antônio Silvino igualmente corre a lenda de que se arvorava a governar o
sertão, a que chamava de estado. Como fizera Lampião (e talvez este o fizera por imitação a
esse seu antecessor), há registro de mensagens sarcásticas enviadas por Silvino às autoridades
de seu tempo. Ao presidente (termo em voga na época para os governadores dos estados) da
Paraíba, conforme Leonardo Mota (1982), enviara telegrama irônico, desafiador e com uso de
trocadilhos:
Ao folclorista Dr. José Rodrigues de Carvalho, então Secretário de Estado, mandou
ele [Antônio Silvino] dizer em referência ao Chefe de Polícia Dr. Antônio Massa e
ao presidente Castro Pinto: -“Pise milho, sesse massa e dê a esse pinto pra comer
que o mal dele é fome!” (MOTA, 1982, p.181)
Leandro Gomes de Barros, com texto em terceira pessoa (raro, já que é
contemporâneo de Antônio Silvino), entre crítico e verdadeiro, apresenta a tonalidade política
que marcou o cangaceiro e o seu apoio, inclusive, a um político local em processo de eleição
também na Paraíba. No texto, a mesma proposta de o governador dominar a capital, e ele,
Silvino, o sertão:
A Paraíba do Norte
Hoje está em desatino;
Uns se queixam do governo,
Outros de Antônio Silvino,
A política parece
Brincadeira de menino.
[...]
Antônio Silvino disse
Que agora, na Paraíba
O que não votar com ele
Pode ir arrumando o quiba,
O eleitor pobre apanha,
O rico morre ou arriba!
Diz ele que se o Governo
Lhe tomar a eleição,
Ele tem o doutor rifle
Para ganhar-lhe a questão,
E a dona ponta de faca
Lhe dispensa proteção.
[...]
Antônio Silvino disse:
- “Eu não aliso ninguém...
Se Rego barros perder,
A coisa aqui não vai bem...
Em pilão que eu piso milho
Pinto não come xerém...
27
Tenho uma opinião:
Que morro porém não minto!
Aqui, sem ser Rego Barros,
Outro vindo, eu não consinto!
Eu só voto em galo velho
Quem quiser que vote em pinto...
Telegrafei ao Governo
E ele lá recebeu,
Mandei dizer-lhe: - Doutor,
Cuide lá no que for seu:
A Capital lhe pertence,
Porém o Estado é meu!!!” (BARROS apud MOTA, 1982, pp. 179-181)
De todo modo, é do cotidiano do banditismo social a tentativa de tomada do poder
constituído. Se Lampião ou Antônio Silvino não eram politizados a esse ponto, a carta do
primeiro e o telegrama do segundo revelam, porém, o que era práxis entre os bandidos sociais
ao longo da história. Hobsbawm (2010) mostra o acabado retrato desse comportamento nos
bandidos tanto da Europa quanto da Ásia diante da fragilidade dos governos em territórios
dominados por bandidos:
A debilidade do poder propiciava o potencial para o banditismo. Com efeito, até
mesmo os impérios mais fortes – o chinês, o antigo Império Romano em seu apogeu
– consideravam que certo grau de banditismo era normal e endêmico nas áreas
fronteiriças dedicadas ao pastoreio em zonas congêneres. [...] Como fenômeno de
massa (vale dizer, como ação independente de grupos de homens violentos e
armados), o banditismo somente ocorria onde o poder era instável, estava ausente ou
havia entrado em colapso. Nessas situações, o banditismo passava a ser endêmico,
ou até mesmo pandêmico [...]. Em tais momentos, líderes independentes de homens
armados podiam penetrar, eles próprios no mundo do poder real, do mesmo modo
como, em outras épocas, clãs de cavaleiros e salteadores nômades haviam
conquistado, por terra ou por mar, reinos e impérios. (HOBSBAWN, 2010, pp. 30-
31)
Os documentos enviados por Lampião e por Silvino constituem mais uma espécie de
crítica ácida desses chefes cangaceiros do que uma realidade/sonho de poder político a
conquistar para o povo. Textos desaforados como este sempre foram direcionados aos
poderosos tanto locais, isto é, coronéis, prefeitos, juízes, como aos de patentes mais
destacadas, como governadores. A ironia representava o pensamento dos cangaceiros, por
acharem fracos, impotentes e inoperantes não só essas autoridades, mas também seus agentes
nas perseguições aos bandos. As narrativas de cordel apresentam essa face de governadores
do sertão encontrada em Antônio Silvino e em Lampião. Sobre o primeiro, também
cognominado Rifle de Ouro, escreve Leandro Gomes de Barros:
Pergunta o valle ao outeiro
O Iman à exhalação
O vento pergunta a terra
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E a brisa ao furacão
Respondam todos em coro
Esse é rifle de ouro
Governador do sertão. (BARROS, apud CURRAN, 2001, p. 68)1
Sobre Lampião há o seguinte excerto, que também dá conta das questões políticas em
que o cangaceiro se quer meter. Narra o poeta:
Nos sertões onde eu governo
A justiça é positiva
O juiz é meu fuzil
Donde toda lei deriva
Todos me pagam imposto
E quem não pagar com gosto
Conte com minha ofensiva. (BATISTA apud CURRAN, 2001, p. 72)
Além dos já supracitados protetores e amigos de Lampião, é importante apontar outros
como os fazendeiros e comerciantes coronel Antônio da Pissara, de nome Manuel Teixeira
Leite (que em dado momento foi obrigado pelo tenente Alencar, chefe de volantes, a entregar
o coito de Lampião e seus sequazes); coronel José Abílio D’Ávila, coronel Joaquim Rezende,
todos, amigos, coiteiros e parceiros em várias situações (Cf.: OLIVEIRA, 1970, pp. 318-320).
Essas relações de amizade constavam dos mais variados interesses: os de ordem política, da
compra de armas, de munição, (de que mais o chefe precisava) e negócios de toda a natureza.
Ter apoio de quem detivesse poder era importante para todos os chefes cangaceiros, de
Antônio Silvino a Virgulino Ferreira, pois esses contatos com os todo-poderosos coronéis era,
de certo modo, estratégia de sustentação política e consequente manutenção do próprio
cangaço.
A propósito do chamado coronelismo, as primeiras notícias que se têm a seu respeito
no Brasil vêm do século XVII e estão ligadas à capitania de Pernambuco. Com a criação do
Governo Geral, em 1549, a terra continua a ser repartida em Sesmarias, ou seja, segue a
cultura do latifúndio, reduto do senhor de terras que dá origem ao coronel.
Luiz Luna e Nelson Barbalho (1983) dão conta desse fenômeno e apontam:
O primeiro coronel com patente que apareceu no sertão de Pernambuco, nomeado
pelo governador Pedro de Almeida, em 1674, ao tempo da Guerra dos Palmares, foi
o fidalgo Luiz do Rego Barros, filho do capitão-mor Francisco do Rego Barros e
descendente em linha reta de Arnau de Holanda. Essa patente é histórica por ser a
primeira expedida oficialmente e foi produzir seus efeitos na área que veio a ser a
Comarca de São Francisco, território que pertencia a Pernambuco [...]. (LUNA e
BARBALHO, 1983, p. 28)
1 Como as informações referentes à data de publicação dos folhetos de cordel são muitas vezes divergentes, e
outras até inexistentes, optamos por indicar entre parênteses apenas o último sobrenome do autor e a indicação
da página de onde foi transcrito o fragmento citado.
29
Ainda no contexto dos coronéis, faz jus voltar aos tempos conturbados do século XIX,
quando da abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, protagonizada pela força das
classes abastadas e dos proprietários rurais, grandes senhores da terra. Nesse momento
histórico e com a independência consolidada, a regência trina faz com que os coronéis
detenham poderes, pois ganha força um sistema paramilitar criado pelo próprio Feijó, com o
nome de Guarda Nacional, e que se estende até os idos de 1922, quando é extinta no governo
de Epitácio Pessoa (Cf.: LUNA e BARBALHO, 1983, pp. 123 e 131).
O ato de criação da Guarda Nacional tem o sentido, inclusive, de inibir as reações e
agitações populares, além das ameaças de insubordinação de tropas militares insatisfeitas
tanto na Corte quanto nas províncias. Esse temor levou os liberais, por medo e insegurança, a
pensarem na instituição de forças paramilitares:
Em tais condições, na sessão de maio de 1831, era lido o texto do decreto-lei
instituindo a Guarda Nacional. Com sua criação, aboliam-se as Milícias, cujas
forças, contudo, ainda permaneciam vivas por alguns anos, sendo extintas à
proporção que se instalavam os corpos da nova organização militar [...]. A Guarda
Nacional empresta caráter oficial aos tradicionais coronéis de barranco. (LUNA e
BARBALHO, 1983, p. 132).
Quanto à relação cangaceiro/coronel, se um chefe do primeiro grupo, conforme já
ventilado, não podia centralizar poder, se pode supor esse mesmo poder pulverizado na figura
do segundo, se aliados, na busca mútua por força e apoio, recompensados pela troca de
serviços e favores. Sempre houve alianças entre chefes cangaceiros e coronéis, pois sem a
cobertura destes, aqueles não agiriam por tanto tempo e impunemente.
Segundo Aglae Lima de Oliveira, o coronel Zé Abílio foi acusado muitas vezes de ter
fornecido munições a Lampião. Em Bom Conselho de Papacaça (atual Bom Conselho – PE),
os irmãos Ferreira ficaram a expensas do dito coronel por vários anos:
Virgulino tinha verdadeira estima e respeito pelo coronel de Bom Conselho. Jamais
se desentenderam. O coronel conhecia tão bem Lampião, que por ocasião da morte
desse bandido, foi convidado para o reconhecimento do cadáver. Autoridades
lavraram o documento, arquivando-o no Batalhão da Polícia Militar, sediado em
Maceió. (OLIVEIRA, 1970, p. 318).
Padre Cícero, igualmente havido como coronel dos maiores do Nordeste, também
mantivera contato com Lampião, conforme anteriormente mencionado. Na verdade, Floro
Bartolomeu da Costa, médico particular e conselheiro do padre em questões políticas, sugere
e articula a visita do bandoleiro à cidade sagrada do Nordeste, pois é Floro encarregado pelo
governo federal para dar combate aos ideais políticos de Luiz Carlos Prestes.
Assevera Abelardo Montenegro (1973):
30
A 8 de março de 1926, falecia no Rio de Janeiro, o caudilho Floro Bartolomeu da
Costa.
Anteriormente, havia sido ele comissionado no posto de general pelo presidente
Artur Bernardes, para comandar as tropas que lutariam contra a coluna Prestes,
Floro Bartolomeu organizaria um Batalhão Patriótico e teria autorização de nomear
os seus lugares-tenentes.
Recebia Floro do Banco do Brasil uma ajuda de custo de mil contos de réis e o
Governo lhe fornecia, ainda, armamento. (MONTENEGRO, 1973 p. 286)
O presidente Artur Bernardes, ao que parece, não se lembrara de que poderes
paramilitares como a Guarda Nacional, remanescente do Império, haviam sido desfeitos por
Epitácio Pessoa quatro anos antes. Autorizar a criação do Batalhão Patriótico é continuar a
manter todo um poderio nas mãos de coronéis e senhores de terras no Nordeste. Constituíam
esses grandes proprietários oligarquias rurais de extremo poder e violência.
Desse modo, coronéis continuam a mandar, sobretudo, no sertão sob a proteção e a
chancela de um Estado igualmente atrasado, cujas forças políticas e militares não se
mostravam eficientes no combate aos seus problemas internos. Quanto a contratar a Lampião
e seu bando para agirem em represália à Coluna, embora não houvesse a concordância de
padre Cícero, vence o deputado, e o sacerdote cede.
Se havia um clamor para que se prendesse Lampião, se havia uma imprensa
independente que isso cobrava, por outro lado, havia uma imprensa complacente e dócil para
com o padre. O jornalista J. Matos Ibiapina, do O Ceará, em 16 de março de 1926, asseverava
“que padre Cícero não protegia criminosos por interesse pessoal para deles usar na defesa de
sua política. Fazia-o por bondade e para demonstração de prestígio” (MONTENEGRO, 1973,
p. 288).
Gonçalo Ferreira da Silva, ao escrever o cordel Evangelho primeiro do padre Cícero
Romão, remete a essa bondade de patriarca e conselheiro de todos os que o procuravam,
inclusive cangaceiros:
Serviu de mediador
Entre a dura autoridade
E o voraz cangaceiro
Que a fraca sociedade
O deixara sem nenhuma
Espiritualidade.
Padre Cícero deixava
O seu interlocutor
De agressivo, sereno
Com respeitoso temor
No fim ainda lhe dava
Humana aula de amor.
Protegia cangaceiros
31
Mas de modo diferente
Muitas vezes ministrando
Um conselho inteligente
Querendo que fosse humano
Sem deixar de ser valente. (SILVA, p. 6)
Além do prestígio de que o padre gozava, houve o acatamento, por sua parte, das
sugestões de Floro Bartolomeu (na ocasião, recém-falecido) em relação ao jovem Virgulino
Ferreira e sua promoção. Por consideração ao ex-deputado, o desfecho da patente termina por
acontecer, independentemente de todas as reais repulsões tanto ao sacerdote quanto a
Lampião, mas principalmente ao padre:
Relativamente a Lampião e seu grupo, padre Cícero não cederia ao governo um
milímetro sequer de sua posição, pois considera a palavra empenhada por Floro
[Bartolomeu] uma questão de honra.
A campanha contra padre Cícero pelo fato de receber Lampião, incorporando-o ao
Batalhão Patriótico para cumprir a palavra empenhada por Floro, generalizava-se em
todo o país. (MONTENEGRO, 1973, p. 289)
As querelas e as motivações políticas dos agitados anos de 1920, sobretudo naquilo
que diz respeito à Coluna Prestes e ao seu alastrar de ideais comunistas por todo o país, fazem
com que o padre defenda e proteja Lampião e seu bando, pois o cangaceiro se envolve com os
propósitos de combater a Coluna. Os apelos do deputado Floro Bartolomeu fizeram com que
Lampião apoiasse a luta contra os comunistas, embora, seguramente, o cangaceiro não
soubesse na íntegra o que vinha a ser esse olhar político de Luiz Carlos Prestes e de seu
grupo. Seu interesse na prometida outorga da patente de oficial do polêmico Batalhão
Patriótico também lhe era rendoso, pois o cangaço era já um negócio. Em entrevista
concedida em Juazeiro do Norte e publicada no jornal O Ceará, de 17 de março de 1926,
responde Lampião a uma pergunta do repórter quanto a abandonar o cangaço, “que se vai se
dando bem com o negócio e não pensa em abandoná-lo” (MELLO, 2004, p. 118).
Lampião adentrou a cidade sagrada do Ceará com 49 homens a quatro dias da notícia
da morte do próprio Floro Bartolomeu, que pelo menos dois meses antes dessa fatalidade
havia coagido por carta Virgulino Ferreira a tomar parte nesse evento histórico de combate à
Coluna Prestes.
Épica e triunfal é a entrada do bando a Juazeiro. Num misto de temor e de admiração,
o povo não resiste à curiosidade. O fato foi descrito da seguinte forma:
No dia 4 de março de 1926, Lampião e 49 cangaceiros chegavam a Juazeiro. Nas ruas, para vê-los, aglomeravam-se umas quatro mil pessoas. Estavam
os bandidos bem armados e municiados. Vestiam, na maioria, brim cáqui. Calçavam
alpercatas de rabicho e chapéu de couro. Usavam lenços de cores diversas amarrados
ao pescoço. Conduziam rifles e fuzil mauser, revólver e punhal. Traziam à cintura
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três a quatro cartucheiras, acondicionando nelas, cada homem, um total de 400
balas. (MONTENEGRO, 1973, p. 286)
Havia, é certo, na trajetória e no encalço dos cangaceiros poderosos inimigos, pois
essa lida dividia opiniões, mas nessa ousada investida os cangaceiros contavam muito com a
habilidade de dialogar ou de alguém por eles exercer essa função com mandatários locais em
diversas situações. Padre Cícero, poderoso que era, teve a sagacidade e, igualmente, a
capacidade não só de contornar qualquer posição contrária, mas de receber o bando e cumprir
com a promessa empreendida por Bartolomeu. Concedeu a patente sugerida tanto por este e
tão desejada por Lampião:
Após o café da manhã do dia seguinte, encaminhou-se à Igreja Matriz de N.ª S.ª Das
Dores. Palestrou demoradamente, em audiência particular, com o padre Cícero
Romão Batista. Lampião manifestou ao sacerdote o grande desejo de ser incluído no
Batalhão Patriota. Batalhão das Forças Legais, sediado em Campos Sales, estado do
Ceará. Solicitou sua interferência a fim de conseguir o despacho de sua promoção ao
posto de capitão. [...] o Padre Cícero redigiu a patente. O Dr. Pedro de Albuquerque
Uchoa, engenheiro agrônomo, a pedido do padre, assinou o documento. (OLIVEIRA, 1970, p. 58).
Consta que Lampião, na conversa com o padre, além da patente de capitão que requere
para si, exige que se nomeiem seu irmão Antônio Ferreira e Sabino Barbosa de Melo como 1.º
e 2.º tenentes, respectivamente. Na lavratura do documento em que se concede a patente a que
tanto ansiava Virgulino Ferreira, vê-se que fora atendido o cangaceiro em sua petição.
O documento dava a Lampião a possibilidade de atravessar livremente os estados do
Nordeste sem sofrer perseguição policial de nenhuma espécie, como um tipo de salvo-
conduto. Nesse momento, estava o cidadão Virgulino Ferreira à frente de seu grupo como
integrante das Forças Legalistas que davam combate a Prestes. No entanto, o cangaceiro não
percebeu que fora logrado, pois o papel que o punha como oficial não teria valor, e, portanto,
não gozava do reconhecimento das ditas Forças. De todo modo, a empreitada surtiu relativo
efeito: atualizou o armamento com substituição do rifle já antiquado por modelo de 1908,
além de seus soldados mais aguerridos terem ganhado cerca de 400 cartuchos,e os demais,
300, tudo fornecido e legado por Floro Bartolomeu, a quem, conforme já dito acima, fora
confiado recrutar o Batalhão Patriótico de Juazeiro (Cf.: OLIVEIRA, 1970, p. 59).
Nos seguintes termos, padre Cícero lavra as patentes de Virgulino Ferreira, Antônio
Ferreira e Sabino Barbosa de Melo:
Nomeio ao posto de capitão o cidadão Virgulino Ferreira da Silva, a 1.º tenente
Antônio Ferreira da Silva, a 2.º tenente Sabino Barbosa de Melo, que deverão entrar
no exercício de suas funções, logo que deste documento se apossarem. Publique-se e
cumpra-se.
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Dado passado no Quartel das Forças Legais do Juazeiro, Batalhão Patriota, sediado
em Campos Sales.
Juazeiro, 12 de abril, de 1926. (OLIVEIRA, 1970, p. 59)
Havia ainda no texto o seguinte adendo: “Reconheço ao senhor capitão Virgulino
Ferreira da Silva o direito de se locomover livremente, transpondo as fronteiras de qualquer
estado com os patriotas” (OLIVEIRA, 1970, p. 59).
Faz jus descrever a bela narrativa do fardamento de Virgulino Ferreira, a partir dali,
capitão Virgulino Ferreira da Silva: “Lampião vestiu-se como verdadeiro capitão. Túnica
Cáqui, na platina três galões de sutache branco, botas e chapéu de massa, cartucheira e
talabarte. Um jovem capitão de 28 anos de idade. Reuniu toda a família e tirou fotografias”.
(OLIVEIRA, 1970, p. 59).
Desse momento histórico, registra-se ainda a visita que o poeta José Cordeiro fez a
Lampião, encontro que resultaria no folheto Visita de Lampião a Juazeiro, (Cf.:
CARVALHO, 2002, p. 69), cujos trechos mais importantes transcrevemos abaixo:
Tudo quanto já expus
Exijo a publicidade
Para que todos conheçam
O que é uma verdade
Como bem, esta visita
Quero que saia descrita
Com toda sinceridade.
A causa dessa visita
Vou dizer de antemão
Para que ninguém suponha
Que foi mera presunção
Eu entrei aqui amarrado
Foi mediante um chamado
Dum homem de posição.
Portanto não vão julgar
Que eu seja presumido
Só penetrei na cidade
Não foi por ser atrevido
Foi atendendo um chamado
Do homem mais elevado
Que eu tenho conhecido.
Foi por intermédio desse
Que obtive o perdão
Dele também recebi
A minha nomeação
Troquei, disso não duvido
Minha farda de bandido
Por outra de capitão.
Em troca dessa patente
(Quem me deu assim o diz)
Vou perseguir revoltosos
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Enquanto houver no país
Com esta resolução
Marcharei para o sertão
Com fé que serei feliz.
Não serei mais cangaceiro
Sou capitão Virgulino
Nem também serei ladrão
Só fico sendo assassino
Troquei velhas profissões
Por 3 bonitos galões
Da polícia, que destino!
Agora, seu Zé Cordeiro
Já expus toda verdade
Com minha autorização
Pode dar publicidade
Todo mundo dê por visto
Que está descrito nisto
A maior realidade.
Não espero pra levar
Um romance publicado
Porque o tempo não dá
E mesmo eu estou vexado
Mas espero no sertão
Me chegar sem delação
Este livro desejado. (CORDEIRO, pp. 20-21)
Na história do cangaço, há de se concordar, o mais importante chefe de bando foi,
incontestavelmente, Virgulino Ferreira da Silva. Há de se ressaltar, porém, que antes do
capitão há outras tantas histórias de cangaceiros cuja biografia não se deve olvidar, inclusive
pelo valor de inegável pioneirismo, a exemplo de José Gomes, o Cabeleira, com atuação ainda
no século XVIII, e de notória e comprovada existência. Segue lista de outros nomes
importantes que remonta aos idos do Império e se prolonga até o século XX, especificamente,
os anos de 1940, marco do fim do cangaço. Havia os que se tornaram conhecidos pelos nomes
das famílias a que pertenciam, o que denota a formação de grupos familiares, os que traziam
os nomes acrescidos dos topônimos de origem e os que detinham apelidos por motivos vários:
Cunhas, Patacas, Lucas da Feira, Cacundos, Mourões, Moquecas, Liberatos, Guarabiras,
Brilhantes, Curundu, Rio Preto, Pinto Madeira, Feitosa, Calango, Cacheados, Simões,
Massuna, Viriatos, Adolfo Meia-Noite, José Antônio Ataíde, Salvaterra, Manuel Basílio,
Cipriano Queirós, Né Pereira, Cassimiro do Navio, Sinhô Pereira, Irmãos Porcino. (Cf.:
OLIVEIRA, 1970, p. 322).
Frise-se que o último bandoleiro importante (OLIVEIRA, 1970, p. 358) tomba em 23
de março de 1940, pelas mãos da tropa volante do coronel Zé Rufino. Trata-se de Corisco,
que, numa derradeira missão de fidelidade à memória de Virgulino Ferreira, tinha por
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finalidade vingar a morte do amigo e compadre, que havia sido morto na Grota de Angicos,
em Sergipe, a 28 de julho de 1938.
Lembre-se que o banditismo errante tem na história brasileira um longo trajeto.
Documentos mais antigos dão conta de que já no século XVII há registros de protótipos dessa
vida marginal andante que, de algum modo, figuram como proto-história do cangaço, termo
este, que, por sua vez, se populariza e passa a ocorrer correntemente de finais do século XIX
ao XX e atualmente.
Quanto à existência de bandos armados no período colonial brasileiro, note-se certo
medo e tensão no povo e a preocupação das primeiras autoridades que já mencionavam a
presença de banditismo itinerante. Corrobora a ocorrência desses protocangaceiros coloniais
Frederico Pernambucano de Mello, que aponta:
Descrevendo os primeiros tempos da capitania de Duarte Coelho, Oliveira Lima
refere várias vezes à insegurança que a caracterizava, pela irrefreada atuação de
criminosos em correrias sem fim. No século XVII, ainda mais intensa revela-se a
ação de salteadores e bandidos, segundo palavras do mesmo cronista. (MELLO,
2004, p. 93)
No século XVII, em terras pernambucanas, constata-se a presença de atores de vida
marginal, em maioria, holandeses, seguidos de franceses. Nesse lapso de tempo em que os
batavos aqui estiveram, nossos avós aprenderam alguns rudimentos de um banditismo que se
estende por séculos, a considerar sua origem no passado colonial tanto do Brasil português
quanto no holandês:
Ao longo do período de colonização holandesa no Nordeste, vamos surpreender
nosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros, desertores das
tropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o contingente mais expressivo
que se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros fugitivos. (MELLO,
2004, p. 93)
Ainda:
E não ficamos nisso apenas. Houve mesmo chefes de grupos que eram holandeses.
Assim o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrecht, ou ainda certo
Hans Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros por volta de 1641.
Três anos após esta data, em 1644, os manuscritos holandeses fazem referência a
outro chefe de bandidos que já se tornara notório: Pieter Piloot, igualmente
holandês. Eram os boschloopers, salteadores ou, literalmente, batedores de bosque,
da designação holandesa do século XVII. (MELLO, 2004, pp. 93-94)
Destarte, pode-se inferir que essa espécie de banditismo nômade apresenta uma
antiguidade que vai ao período colonial e que se renova ao longo dos tempos, mas sempre
com atitude e proposta semelhantes: tumultuar a ordem, pilhar, invadir comunidades inteiras,
tomar de assalto a vida privada dos inimigos, de pessoas simples e de famílias comuns,
promover a vingança – sempre ligada à morte ou ao infortúnio de um parente próximo –,
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enfrentar os poderosos de vida estável e estabelecida e deles roubar para distribuir com os
menos afortunados. Eis o mito que acompanha e sustenta esses homens dispostos a enfrentar à
vida e à morte.
37
2 – TECEDORES DE HISTÓRIAS: A INVENÇÃO DOS CANGACEIROS
“Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.”
(“A moça tecelã”, Marina Colasanti, em Doze reis e a moça no
labirinto do vento)
Roland Barthes (1971, p. 18) afirma que são inúmeras as narrativas do mundo. Há de
se concordar, pois, sem narrar e sem se deixar narrar, o homem cairia em esquecimento e,
nesse caso, correria o risco de perder suas memórias. Narrativas são estratégias para se
guardar memórias com um fim: legá-las à posteridade como dado identificador de
experiências positivas ou negativas, mas que se prestem a referencial qualquer.
As narrativas, sobretudo aquelas em que se trabalha o poema épico, sintetizam a busca
do homem por uma identidade e, portanto, por uma afirmação que, na verdade, se dá
coletivamente. Trata-se de uma tentativa de se inserir em um contexto, se reconhecer para se
fazer reconhecido. Desse modo, pode-se inferir que mediante um poema épico uma
comunidade, uma sociedade qualquer tenta, pela sua história, dar como importante sua
existência no tempo e no espaço. É, em suma, seu estar no mundo, porém sempre com um
olhar para a coletividade e sua memória. Mircea Eliade (apud TÂMEGA, 1986, p. 82), afirma
que “a memória não retém facilmente eventos individuais e figuras autênticas, mas funciona
através de estruturas diferentes: retém categorias, ao invés de acontecimentos, e arquétipos,
em lugar de personagens históricas”.
Pode-se entender que há coerência em se conceber no mito cangaceiresco não um
indivíduo, apesar dos nomes que se destacaram como líderes, mas grupos de heróis que
representam categorias, entidades que soam como referencial de valentia, bravura e até de
honradez de toda a coletividade de cangaceiros, o que evidencia arquétipos ideais para a
coletividade externa ao cangaço: o povo.
Note-se a ideia de que, desde tempos mais remotos da cultura humana, o homem busca
narrar com base em seus mitos e suas lendas como a referendar os arquétipos de que fala
Eliade. Essas narrativas nada são, senão uma tentativa de estabelecer entre homem e realidade
um elo que servirá como marco de constante procura pela origem desse homem e dessa
mesma realidade. Entenda-se que esse narrar envolve várias linguagens e pode se dar de
várias formas.
Sobre narrativas afirma Roland Barthes:
Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros distribuídos entre
substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe
confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada,
38
oral e escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de
todas estas substâncias [...]. (BARTHES, 1971, p. 18)
Desse modo, e com base na afirmação acima, pode-se inferir que a literatura de cordel
com sua múltipla face explora também matéria épica, e assim pode ser entendida, desde que
guarde ou se aproxime de características que envolvam essa espécie de narrativa. Se narrar,
numa concepção épica, é apresentar distanciamento da matéria narrada e usar de objetividade
para mostrar essa dita matéria, pode-se mencionar a existência de textos do universo do cordel
que se inserem nas narrativas próprias do gênero épico, principalmente, aqueles textos pós-
cangaço, i.e, os escritos que se dão depois dos idos de 1938, ano da morte de Lampião e
Maria Bonita e de nove de seus companheiros, o que estabelece o fim do cangaço. A distância
temporal faz com que o poeta se centre na 3.ª pessoa do discurso conforme característica do
poema épico, segundo se constata nos seguintes versos do poeta Gonçalo Ferreira da Silva,
em Lampião, capitão do cangaço:
[...]
Só a alma luminosa
do homem missionário
ouve a voz interior,
e tendo o dom necessário
faz poesia da seiva
de um caule imaginário.
Poeta não ouve vozes
Só com humanos ouvidos,
Ausculta a alma das coisas
Com diferentes sentidos
Para que os não são poetas
Ainda desconhecidos.
Este poema que fala
De cangaço e de sertão
É, apena, à cultura
Uma contribuição,
Um documentário vivo
Da vida de Lampião.
Por ser uma obra feita
À luz da verdade viva,
Mostra a face nobre, humana
E até caritativa
De Lampião, se tornando
A menos repetitiva. (SILVA, p. 1)
O narrador contemporâneo dos cangaceiros, como os poetas clássicos, tentava
observar com distância no tempo e no espaço os fatos da saga do cangaço para contá-
los/recontá-los com a isenção que lhes deveria ser intrínseca, embora quase sempre não
consiguisse, devido não só à espontaneidade de seus textos e à natureza da poesia popular,
39
mas também, seguramente, devido à ausência de conhecimento teórico do narrar épico e à
proximidade no tempo e no espaço do episódio narrado. Parece que o pouco distanciamento
desse espaço e tempo não permite ao poeta se afastar do universo narrado. Observe-se no
texto Antônio Silvino, o rei dos cangaceiros, de Leandro Gomes de Barros, como se faz
presente a natureza do cantar épico:
[...]
O povo me chama grande
E como de fato eu sou
Nunca governo venceu-me
Nunca civil me ganhou
Atrás de minha existência
Não foi um só que cansou.
Já fazem 18 anos
Que não posso descansar
Tenho por profissão o crime
Lucro aquilo que tomar,
O governo às vezes dana-se
Porém que jeito há de dar?!
O governo diz que paga
Ao homem que me der fim,
Porém por todo dinheiro
Quem se atreve a vir a mim?
Não há um só que se atreva
A ganhar dinheiro assim.
Há homens na nossa terra
Mais ligeiros do que gato,
Porém conhece meu rifle
E sabe como eu me bato,
Puxa uma onça da furna,
Mas não me tira do mato.
Telegrafei ao governo
E ele lá recebeu,
Mandei-lhe dizer: doutor,
Cuide lá no que for seu,
A capital lhe pertence
Porém o estado é meu. (BARROS, p. 1)
Atentos às duas mostras acima, percebemos a essência de caráter épico que os textos
contêm. No narrar em que há maior distância no tempo e no espaço, e naquele em que isso lhe
é próximo, há, percebe-se, o intento de se resgatar a presença de um ideal mítico. Nota-se no
primeiro texto uma tentativa do poeta de se manter fora da matéria narrada, por recebê-la
“pronta, processada ao nível do real, o que impede sua participação no mundo narrado”
(SILVA, 1987, p. 14), o que atesta seus escritos como inerentes ao poema épico, e no
segundo, de algum modo, se pode apontar para uma matéria épica ainda em formação.
40
Ao se estabelecer que a narrativa se insere como forma de manifestação humana ligada
à arte do contar, pode esta ser concebida como prosa de ficção – caso do romance, do conto e
da crônica –, mas também estará presente na epopeia, no poema épico e até na história, pois
esta última, embora com olhar científico, relata acontecimentos quaisquer do passado.
Ao narrar, o homem busca guardar sua história, e neste caso, há o sentido de registrar
um tempo determinado, seja este o do mito primordial, da ficção – mais contemporânea –, ou
até o do relato de caráter denotativo. A narrativa traz em si a marca interessante de ser, ora
algo ficcional, ora relato de um fenômeno qualquer da existência humana. É possível que a
importância da narrativa esteja nesses detalhes.
Ao atentarmos nas narrativas mais antigas da humanidade, deparamos com relatos que
envolvem a Bíblia (com seus diversos tons, inclusive épicos); o Alcorão, (igualmente próximo
à primeira, com desenrolar de temas épicos); Homero (Ilíada e Odisseia); Virgílio (Eneida);
Camões (Os lusíadas), entre outros. Todos a expor e até a delinear a história identitária de seu
povo.
A pertinência desses textos está em contar algo que tem a ver com a origem essencial,
primordial, que alimenta histórias cerzidas ao sabor da oralidade. Trazem, ademais, uma carga
semântica ligada a uma tradição do contar que passa de uma geração a outra. É o narrar que
sobrevive e resiste ao peso do calendário, em legado que se compõe de mitos e tradições de
que uma comunidade se vale, no sentido de se colocar e de se fazer presente na cultura
humana, mediante sua história, mas com a finalidade de se integrar e de se afirmar no grande
bojo de uma história longa e maior, que depõe da própria natureza e da formação e
contribuição humanas na composição do mundo.
Se a “narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada oral ou escrita”,
segundo a fala barthesiana, (Cf.: BARTHES, 1971, p. 18), entendemos que feitos podem ser
narrados e aos poetas cabe fazê-lo, segundo sua cultura, seus costumes, sua escrita, ou até sua
oralidade, desde que tenha como intenção afirmar seu povo e um herói de sua realidade.
Com efeito, a uma face da literatura de cordel que busca o herói de seu povo e sua
representação, impute-se a cor de poema épico. Apesar das oscilações quanto ao fazer épico,
entenda-se o cordel narrativo apenas como aproximação com pontos essenciais desse fazer,
propriamente, a invocação, a grandiloquência, o distanciamento (principalmente após a
derrocada do cangaço) ou não (se os cordelistas eram contemporâneos desse fenômeno
histórico) da matéria narrada, a presença do herói, entre outros elementos que a matéria épica
exige.
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O cordelista Manuel D’Almeida Filho usou de precisão épica ao trazer a figura de
Virgulino Ferreira com fala em terceira pessoa, segundo o episódio heroico que lhe resultou
na alcunha de Lampião, a saber, o constante disparar de seu rifle ainda recruta, quando o fora
da lei, neófito, ingressava no bando e na cartilha de Sinhô Pereira, seu mestre, a quem,
posteriormente, sucede:
[...]
Foi à procura do bando
Do velho Sinhô Pereira
Que unido a Luiz Padre
Mantinha uma cabroeira
Lutando contra os carvalhos
Sem se arredar da trincheira.
Virgulino e os três irmãos
Sinhô Pereira aceitou
E como eram valentes
O velho os admirou,
Com inteira confiança
No mesmo dia os armou.
Um rifle papo amarelo
Virgulino recebeu
E poucos dias depois
Um grande combate deu
E nessa batalha foi
Quando Lampião nasceu.
Nessa campanha enfrentou
Uma volante guerreira,
Virgulino atirou tanto
Que secou a cartucheira
E o fogo de sua arma
Parecia uma fogueira.
Isso porque era à noite,
Virgulino disse, então,
Que na boca do seu rifle
Não deixou de ter clarão
Iluminando às campinas
Parecendo um lampião.
Nisso Luiz Padre disse:
- melhorou nosso destino,
Não falta mais lampião
Nesse sertão nordestino,
Porque temos o clarão
Do rifle de Virgulino
Para aclarar as estradas
Nos mais incertos instantes,
Basta Virgulino dar
Os seus tiros cintilantes,
Assim jamais cairemos
Na tocaia das volantes.
42
Desde esse dia que foi
Virgulino batizado
Por “Lampião” e o seu rifle
Foi por um fuzil trocado
Que iluminou o Nordeste
No tempo de seu reinado. (D’ALMEIDA FILHO, p. 5)
Evidentemente, não há acordo nos escritos de cordel quanto à maneira como cada
poeta escreve, devido à sua inserção na poesia popular. O sentido desses textos se dá não só
pelo quê de liberdade e espontaneidade que trazem, mas pela diversidade dos olhares de seus
poetas e de seu fazer, seu construir, seu transpirar. De todo modo, no que respeita ao cangaço
e à exuberância que o poeta pretende dar aos que dele fizeram parte e a suas ações, há uma
intenção de caráter épico, independentemente de sua apresentação em primeira ou em terceira
pessoa. O intuito do poeta termina por se tornar maior que as teorizações estéticas em torno
ou a partir de seus textos. O poeta sabe o que escreve e de quem fala e por quê. E seu leitor
entende.
Criar, inventar tantos Silvinos constitui necessidade primeira do povo e de seus poetas.
Essa invenção, presente em qualquer grupo humano, depõe da necessidade de afirmação da
coletividade e, portanto, isso resulta em discussão acerca de uma necessidade e de seu fator
urgente: o mito local e, consequentemente, da nacionalidade. Desse modo, a presença de um
herói torna-se imprescindível nas narrativas de caráter épico, o que faz surgir em maior ou
menor proporção uma poesia calcada em fundamentos de matéria épica.
Destarte, pode-se afirmar que o herói e seu nascimento podem ou não estarem insertos
em uma realidade, pois o que há, na verdade, é propriamente uma ideia que se desdobra da
necessidade de um povo de sentir sua grandiosidade e, desse modo, se afirmar. Oriundo ou
não de um fato, pode-se dizer que a todo povo é possível criar seu herói.
A invenção de um Antônio Silvino, de um Lampião está ligada ao fenômeno do
cangaço, ou seja, ao acontecimento ou fato. A visão que deles o povo tem os torna grandes
referenciais de luta que vão de encontro a todos os desmandos de um Nordeste aos cuidados
da sorte no enfrentamento dos problemas que lhe são inerentes: secas, fome, injustiça,
políticos, fazendeiros, coronéis. Desse microcosmo e dessa mentalidade nasce o mito e o
herói locais.
Só para abrir um parêntesis, é importante que se mencione a presença de bandoleiros
errantes não apenas no Nordeste do Brasil. Sobre isso, Gustavo Barroso (Heróis e bandidos,
1917) e Câmara Cascudo (Viajando o sertão, 1975). O primeiro afirmara: “não somente nas
zonas sertanejas existem cangaceiros” (p. 14) e completara: “os bandidos não são produtos
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exclusivos das terras brasileiras do Nordeste: em todos os povos têm existido com
dominações diversas” (p. 17). Para Cascudo, “o cangaceiro não é um elemento do sertão, mas
uma figura que existe em todos os países e regiões mais diversas” (p. 42). Com o ideal de
cangaceiro que defende os menos favorecidos, com o perfil de herói do povo, o bandoleiro
nobre ocupa vasta geografia universal e pode estar nos Estados Unidos (Jesse James [1847 –
1882]); em Portugal (José Teixeira da Silva, o Zé do Telhado [1818 –1875]), no México
(Pancho Villa, [1877 – 1923]); na França (Louis-Dominique Cartouche, [1693 –1721]) e
Charle-Alfonse-Paul Ballay [1826–1900]); na Itália (Giuseppe Musolino [1875 – 1956]).
Eric Hobsbawm (2010) faz menção ao bandoleiro italiano Salvatore Giuliano (1922 –
1950) que atua de 1943 até a morte, não só a serviço da máfia italiana, pelas mãos de quem
morre, mas paradoxalmente, a serviço e em luta pelos pobres a quem distribuía o resultado de
seus saques e de quem se torna herói. Atua numa Sicília de extrema miséria e pobreza.
Sobre Giuliano, aponta o autor:
[...] igualmente importante, é o fato de que ele [Giuliano] foi o último membro, na
vida real, de uma antiga espécie com cuja extinção as pessoas não se conformaram:
o bandido popular. Na grande novela, os pobres e fracos continuam a sonhar com a
desigualdade humana e a injustiça, e ali sempre existiu e ainda existe um papel para
Robin Hood. Turiddu Giuliano foi a última pessoa de verdade de quem se tem
registro moldada para isso. (HOBSBAWM, 2010, p. 279)
Como os cangaceiros brasileiros, o chefe italiano de bando não era visto apenas pelo
povo, ele próprio se via como o redentor e protetor de sua gente. Inventado ou não, esse tipo
de herói tem ou toma para si as causas do povo que nele deposita a sua fé.
Por esse mesmo povo diz o bandido lutar até o fim. O excerto abaixo denuncia a
autodenominação do herói:
Não há dúvida alguma de que ele próprio se via nesse papel, tanto quanto qualquer
bandoleiro o tenha feito, e que grande número de sicilianos pobres o aceitaram
como tal. [...] um dos poucos policiais honestos a persegui-lo, o obstinado Lo
Bianco, atesta que por mais de uma vez ele distribuiu milhares de liras a pessoas
em dificuldades. Para essa gente, Giuliano era um deus. (HOBSBAWM, 2010, p.
279)
Desse modo, percebe-se que ao longo da história há uma necessidade premente de se
criar heróis. E isso é próprio do humano. Pode-se pensar ainda que os heróis são formulações
imaginárias e não remetem à Antiguidade porque são eternamente humanos ou humanamente
eternos. Por certo, e por causa do humano, aí estão Lampião ou Robin Hood, Giuliano ou
Jesuíno Brilhante. Cada qual no seu tempo e com sua importância. Todos feitos na forja do
povo e dos poetas.
44
2. 1. ROMANCEIRO GUARDADO, MEMÓRIA TRANSFERIDA
Uma literatura popular, antes desses escritos a que se convencionou chamar de
literatura de cordel, se afirmou no Nordeste brasileiro mediante temática talvez encontradiça
apenas naquela região e foi dividida em temáticas, a saber: o das secas periódicas, do gado, da
agricultura, das festas da plantação e da colheita, das festividades religiosas, o que terminou
por formar uma rede de motes para a literatura que representa o homem local. Nesse
enredamento, em meio a tanto contar, dois ciclos temáticos se destacam por apresentar tema
significativo para a cultura nordestina: o das secas e do cangaço, este último, com
representação épica dos homens que viviam o banditismo rural na transição do século XIX
para o XX, e já de acordo com uma linguagem literária local consolidada: a literatura de
cordel, na forma e na estrutura que se conhece até nossos dias.
Faz-se necessário ressaltar que, no tocante a grupos de bandidos de existência anterior
ao final do século XIX, quase não há textos, e os poucos que há são esparsos e não muito
consistentes para serem enxergados como material épico, o que leva à ideia de que a poética
do cordel épico se justifica e se dá na passagem do século XIX para o XX, tempo em que essa
literatura se afirma em meio à população, sobretudo, nordestina.
Mencionemos que os autores brasileiros da literatura de cordel têm sua arte como um
meio não só de expressão, mas de apreensão dos sentimentos de seu povo, isto é, da alma
nordestina. Aplicada à mentalidade nacional desde o final do século XIX, pode-se afirmar que
uma literatura popular já se fazia presente na cultura do chamado Novo Mundo, desde os
tempos coloniais. De sua presença na América hispânica, há dados que o comprovam
textualmente. Luiz da Câmara Cascudo apresenta o seguinte texto de apoio:
Dom Francisco Rodriguez Marin, citado por Juan Carrizo, procurou no Arquivo
Geral das Índias, em Espanha, os registos de despachos das naus que partiam para a
América, pesquisando livros que seriam enviados nos séculos XVI e XVII. A partir
de 1580, ano da posse de Felipe II, unificando administrativamente a Península
Ibérica, Marin depara veinte resmas de Pierres y Magalona mandados para Nueva
Espana e Puerto Belo. A frota de 1599 levou siete caxas donde van quarenta resmas
de minudencias, como Carlos Manos e Oliveiros de Castilla y outras muchas suertes
de livros e coplas para niños [...] em 1603 seguem seys libros de Carlos Mano, doces
Doncelas Teodor [...]. (CASCUDO, 1978, p. 198)
Informa Cascudo que esses livros viajavam do México para a Argentina, via Peru e
sugere que “o mercado brasileiro fosse o mesmo” (CASCUDO, 1978, p. 198). A afirmativa é
pertinente, embora não se subsidie em pesquisa, uma vez que o Brasil pode ter tido acesso a
esses textos se se levar em conta que os referidos escritos eram mandados para a América do
Sul pela Espanha, que do século XVI ao XVII, ou seja, de 1580 a 1640 domina Portugal e,
45
conseguintemente, tem influência em suas colônias, período que ficou conhecido por reinado
dos Filipes. Basta esse lance histórico para se validar e atestar a ideia de que os livros
apontados por Cascudo poderiam ter chegado à colônia portuguesa da América. Note-se,
todavia, a confluência histórica, cultural e literária que esses dois países ibéricos sempre
viveram, o que leva à conclusão de que, independentemente de quaisquer outros fatores, esses
livros eram naturalmente passivos de chegar até o Brasil.
É importante mencionar que no final do século XIX esse material literário popular
trazido para o Brasil, de algum modo, refletiu na obra de Machado de Assis, pelo menos em
pequena mostra. Em 1896, esse autor reúne sob o título Várias histórias uma série de contos
entre os quais figura Uns braços, no qual o contista aponta para a presença dessas narrativas
populares com circulação também no Rio de Janeiro, então capital do Império. Possivelmente,
apreciada ainda em prosa, a narrativa a que remete o autor de Dom Casmurro era encontrada
em folhetos a que se chamavam também de literatura de cordel. No texto machadiano, o
jovem Inácio é apresentado como leitor de antigos folhetos (nesse caso, não necessariamente
cordéis como se concebe na atualidade, mas essas mesmas narrativas a que o adolescente lê
foram matrizes do que, coincidentemente, desde o final do século XIX se afirmou no
Nordeste, igualmente com o nome de folheto, já em versos, e, contemporaneamente,
conhecido por literatura de cordel). O excerto de Uns braços atesta uma vez mais a
antiguidade dessas narrativas populares no Brasil:
Inácio passava os [dias de domingo] todos ali no quarto ou à janela ou relendo um
dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão,
debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado,
dormira mal à noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede,
pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona e começou a ler. (ASSIS, 1955, p. 57)
Silvio Romero, contemporâneo de Machado de Assis, apresenta importante
informação quanto à existência dos referidos folhetos e à sua variante como literatura de
cordel, o que comprova não ser novo o vocábulo no Brasil, no que se refere a esses pequenos
livros de narrativas simples ligados à cultura e ao entretenimento populares pela leitura.
Afirma o crítico sergipano sobre equivalência de nomes desses textos tanto aqui quanto em
Portugal:
A literatura ambulante e de cordel no Brasil é a mesma de Portugal. Os folhetos
mais vulgares nos cordéis de nossos livreiros de rua são: A história da donzela
Teodora, A imperatriz Porcina, A formosa Magalona, O naufrágio de João de
Calais, a que se juntam: Carlos Magno e os doze pares de França, O testamento do
galo e da galinha, e agora, bem modernamente, as poesias do pequeno poeta João de
Sant’Anna de Maria sobre a guerra do Paraguai. (ROMERO, s/d., p. 257)
46
Confirma ainda Silvio Romero que “nas cidades principais do Império ainda veem-se
nas portas de alguns teatros, nas estações das estradas de ferro e noutros pontos, as livrarias de
cordel” (ROMERO, s/d., p. 257), para asseverar em seguida que “o povo do interior ainda lê
muito as obras de que falamos; mas a decadência por este lado é patente: os livros de cordel
vão tendo menos extração depois da grande inundação dos jornais” (ROMERO, s/d., p. 257).
Não obstante a literatura de cordel ou folheto, outra de sua nomenclatura (já conhecida
assim no Brasil), tivesse no povo e na sua história ancoradouro, não é possível encontrar
quase nada a respeito das façanhas desse povo no que toca a episódios históricos pelo menos
do século XIX ou anteriores. Timidamente, Sílvio Romero relaciona, além dos vistos
anteriormente, dois títulos em torno de fatos contados em versos populares e que se
assemelham à estética dessa literatura. O mesmo Romero faz a seguinte observação: “A falta
que notamos no cancioneiro brasileiro é a de simples referência aos notáveis fatos de nossa
história social e política e os seus homens mais representativos e eminentes” (ROMERO,
1980, p 167).
Todavia, o autor de Contos populares do Brasil pondera: “a ausência não se pode
dizer completa, porque se encontram duas canções, uma relativa ao Filgueiras da revolução de
1824 em Pernambuco e províncias próximas até ao Ceará, e a outra referente ao fato da
Independência em 1822” (ROMERO, 1980, p. 167).
Segue o texto que corrobora as afirmações de Romero no que respeita à
Independência, sob o título de Conversa entre um corcunda e um patriota. O primeiro,
partidário de D. Pedro I, o outro, um idealista da República. O texto se dá em forma de
diálogo, em que C refere ao Corcunda e P, ao patriota:
C. –Deus lhe guarde, meu senhor.
P. –Venha com Deus, cavalheiro,
Venha logo me dizendo
Se é corcunda ou brasileiro.
Vejo-lhe divisado
Na cabeça um grande galo
Bem me parece ser
Da vazante o espantalho.
C. – Sim, senhor, eu sou corcunda
E morro pelo meu rei;
Esta divisa que trago
É da sua leal lei.
Se o senhor é patriota,
Provisório cidadão,
Se fala contra o meu rei
É judeu, não é cristão. [...] (ROMERO, 1980, p. 169)
47
O outro texto que Sílvio Romero caracterizou como narrativo é o que trata da história
de Pereira Filgueira, insurreto que toma parte e é um dos líderes e um dos heróis do braço
cearense da Confederação do Equador nos anos 20 do século XIX. O diálogo se dá da
seguinte forma:
– O que tens Joaquim Inácio,
Que de cores vens mudado?
– Meu cunhado Gonçalinho
Foi preso para o Escalado.
O Filgueira assim que soube
Mandou chegar seu cavalo,
E correu à rédea solta
Em busca do Cantagalo.
Foi chegando e foi dizendo
Com a sua mansidão:
– quero meu sobrinho solto
Que o vejo na prisão.
Responde o cabo da tropa,
Por ser homem malcriado:
Seu sobrinho há de ser morto
Depois de eu morto ou picado. [...] (ROMERO, 1980, pp. 172-173)
Pereira Filgueira, que foi considerado bandido, talvez pelo Estado que sempre rotulou
os que contra ele se levantam, teve entrada no gosto do povo, o que levou Sílvio Romero a
opinar sobre bandidos que viram heróis de narrativas populares:
O que o povo no Filgueiras principalmente viu - foi o tipo perfeito de bandido,
porque outra coisa não foi essa espécie de Ferrabrás, de Valentão e desordeiro, ao
que se depreende da leitura do mais sugestivo dos historiadores brasileiros, o mais
desabrido, o que melhor enxerga as questões sociais, - o perspicaz João Brígido.
(ROMERO, 1980, p. 167).
Essa tradição, porém, de narrar os fatos heroicos da vida dos bandoleiros é constante
na literatura popular, porque o poeta vislumbra que o público para o qual escreve se sente
representado pelo cangaceiro, e por diversos motivos: o enfrentamento dos poderosos, a luta
em armas, as adversidades do meio, a valentia, a identificação com o próprio povo.
Abra-se um parêntese para frisar que não se deve confundir quadrinhas com textos de
literatura de cordel. Aquelas, de prática comum no Brasil, registram diversos momentos da
cronística nacional como as que circulam com tanta profusão, por exemplo, ao tempo e em
torno de D. Pedro II, em tom de elogio, de protesto, de galhofa, o que reflete uma poética
popular, mas não correspondem aos textos de cordel, pois estes exigem peripécias, noção de
espaço, de tempo, personagens, diálogos, sequência no enredo, a que os cordelistas chamam
também de oração, devido a se pretender elaborar texto narrativo (como o dos cordéis épicos),
o que não ocorre às quadrinhas, segundo se mostra a seguir:
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Atirei um limão n’água
De pesado foi ao fundo;
Os peixinhos responderam:
Viva Dom Pedro II.
Ou:
Quando ia hoje
Pela Rua das Violas,
Pedro Segundo
Deu um tiro de pistola.
Quando ia hoje
Pela Rua do Sabão,
Pedro Segundo
Deu um grande escorregão.
Observados os pontos mais importantes da literatura popular, com suas diferentes
faces, como a separação entre o que são quadrinhas e o que é narrativa, percebe-se a
predileção popular pela narrativa heroica, pois o povo tem necessidade de construir, de
montar, de forjar a história com que se identifique nos seus ideais de valentia e que traduzam,
igualmente, ideais de heroísmo. A citação de Romero leva-nos a notar que há no povo a
necessidade de criar heróis, e o faz, já que isto representa ideal coletivo. Para representá-lo,
esse mesmo povo vê em seus heróis os traços mais marcantes de valentia. E essa qualidade
não está associada a furtos, latrocínios, assassinatos, assaltos gratuitos, mas à coragem, à
ousadia, à astúcia, à forma com que agem esses personagens, o que leva esse povo a esquecer
dos desmandos e lembrar, guardar apenas atos de coragem, de desafios, de pudores, de honra:
imagens perfeitas para se eleger um herói. Os poetas, os cordelistas, os cantadores elegeram
esses heróis do povo segundo o ideal do mito que se deu por transferência e influência de um
mito e de uma poética popular europeias que não diminuíram, de forma alguma, os que aqui
recriamos, pois, do contrário, não haveria tantos motes para os cantares locais.
Ainda no que respeita à literatura de cordel na Europa, principalmente em Portugal,
Carlos Nogueira, em estudo apurado para a Revista Eletrônica Ehumanista, aponta:
Se é possível encontrar romances populares publicados em folhetos ou fascículos,
com uma elaboração retórica que implica uma certa complexidade na organicidade
das formas (frases longas, orações intercaladas, anástrofes, hipérbatos, léxico por
vezes erudito) e dos conteúdos, também são comuns os folhetos com quadras
tradicionais ou nelas inspirados, com histórias organizadas em quadras
tradicionalistas ou com cantigas narrativas, que seguem de perto os modelos já
adstritos à oralidade comunitária. (NOGUEIRA, 2012, p. 5,
<www.ehumanista.ucsb.edu>).
49
Carlos Nogueira é ainda mais preciso: [...] folhetos de cordel e folhas volantes – em
verso, em prosa ou em verso e prosa – publicados entre os séculos XVI e terceiro quartel do
século XX. (NOGUEIRA, 2012, p. 2).
Em cordel mais recente sobre o próprio cordel, isto é, em texto metalinguístico, o
poeta Rodolfo Coelho Cavalcante admite a origem europeia dessa linguagem tão cultivada no
Nordeste brasileiro, embora defenda a diferença de um e de outro, com vistas a assegurar que
o cordel nacional não tenha a ver com o estrangeiro:
[...]
Cordel quer dizer barbante
Ou senão mesmo Cordão,
Mas Cordel-Literatura
É a real expressão
Como fonte de Cultura
Ou melhor: poesia pura
Dos poetas do sertão.
Na França, também Espanha
Era nas bancas vendida
Que fosse em prosa ou em verso
Por ser a mais preferida,
Com seu preço popular
Poderia se encontrar
Nas esquinas da Avenida.
Era em pequeno volume
A edição publicada,
Tamanho quinze por doze
Pra melhor ser publicada,
Isso no século XVIII
Depois de noventa e oito
Foi aos poucos desprezada. (CAVALCANTE apud ABREU, 1999, pp. 105-106)
Diferentemente do texto de Rodolfo Cavalcante, disposto em estrofes de sete versos,
porém muito usadas em cordéis de todas as épocas no Brasil, ressalta Câmara Cascudo que a
“sextilha setissilábica, forma absolutamente vitoriosa na literatura de cordel brasileira,
ABCBDB, é tão antiga quanto a quadra, como ensinava Carolina Michaëlis de Vasconcelos,
dizendo-a popularíssima no século XVI” (CASCUDO, 1978, p. 351).
Herdeiros dos jograis medievos, cantadores e cordelistas tiveram e têm importância no
Nordeste como tiveram seus irmãos da velha Europa. Divulgadores de uma poesia que de
cidade em cidade se fazia andante, tinham os poetas medievais por função espalhar a poesia,
levando-a ao povo através de narrativas de feitos e mitos que todos ouviam.
Anteriores à invenção da imprensa, e depois a ela afeitos, os jograis europeus levavam
poesia àqueles que ainda se encontravam em condição avultada de analfabetismo. Com uma
poesia de caráter oral, passada, em muitos casos, ao texto manuscrito, antes do advento dos
50
tipos metálicos, os poetas tinham por finalidade a diversão e o entretenimento, mas também o
resgate de mitos fundadores, de narrativas prodigiosas, de valentias, de aventuras de
cavaleiros ambulantes, entre outras nuanças do imaginário dos povos e de suas histórias.
Se o mundo sofre modificações, sobretudo no Renascimento, mudanças ocorrem
também entre os poetas populares que se adaptam às novidades e inovam sua maneira de
comunicação, uma vez que a cultura popular está sempre apta a acompanhar o tempo e suas
transformações. De acordo com Diegues Jr. (1973), “[s]e os jograis, populares ou palacianos,
cantando nas festas, e animando o povo, constituíam como que a comunicação dessa poesia
popular, claro que a forma de difusão se foi transformando de acordo com as próprias
transformações do tempo” (p. 36). Nesse caso, se pode afirmar que uma dessas
transformações do tempo teria sido a invenção da imprensa. Após Gutemberg, toda forma de
comunicação sofre avanço, e a poesia popular, ao viver esse avanço, passa a ser impressa e
divulgada com mais facilidade, o que a faz conhecida em tantas partes do mundo quanto
possível e até no Novo Mundo. Se a reprodução de textos por avançado mecanismo da época
é de grande contribuição à cultura, apesar da grande massa de não alfabetizados, o povo se
beneficia ainda com seus jograis, pois à roda deles acorre como ouvinte atento de histórias de
reinos distantes, de mitos, de santos, de milagres, de feitos grandiosos.
Em período que alcança o medievo europeu, os jograis detinham o poder de espalhar,
disseminar narrativas e fazer com que o povo tomasse contato com um mundo de
sensibilidade e criação artística que o tornava encantado e o levava a guardar, decorar o que
se mostrasse mais interessante, o que fez com que narrativas medievais chegassem aos mais
diversos lugares da Europa, constituindo-se os jograis em importante elemento de
comunicação.
Atribuída a jograis franceses, toda essa poesia popular atravessa a França, cruza
fronteiras, chega à Alemanha, Inglaterra, Espanha e Portugal e daí até a colônia brasileira, o
que termina, com o tempo, a alcançar a cultura local, seu povo e seus poetas, que a adaptam,
mesclada a outras tintas que se incorporaram à cultura local.
Desde o tempo em que aportou no Brasil, essa literatura originou e influenciou,
gradativamente, a narrativa popular do Nordeste. Desse modo, pode-se enxergar, na origem
da literatura de cordel brasileira, toda uma gama de poetas que se esforçaram por disseminar
no Velho Mundo uma poesia que depõe de aventuras e de valentia, de heroísmos e de lutas
que marcam o que é próprio de narrativa e dessa natureza: a afirmação do povo mediante
cantos nacionais e de seus heróis.
51
A respeito da literatura de cordel e de suas origens, afirma Leda Tâmega:
A literatura de cordel é sem dúvida, herdeira da tradição medieval, mas não daquela que
se criou e desenvolveu no sul da França pela arte dos trovadores. Não, suas raízes
devem ser procuradas mais ao norte, na Normandia, na Flandes, na Picardia, melhor
dizendo, nos cantões da langue d’oil, com os trovadores criadores das canções de gesta,
com os poetas que celebraram os feitos heroicos e patrióticos dos nobres senhores, as
explorações guerreiras dos heróis nacionais e dos cavaleiros cristãos contra os infiéis.
(TÂMEGA, p. 1986, p. 80).
É certo, porém, que a literatura de cordel brasileira em sua versão mais moderna é um
legado ibérico introduzido no Brasil por Portugal, mas suas raízes mais distantes e profundas
têm como solo todos os países do Velho Mundo. Da comprovada origem ibérica, do cordel
brasileiro basta observar como se pautaram seus poetas na tradição oral dos romanceiros
portugueses e espanhóis, conforme apontado anteriormente.
Há de se notar essa influência quando se percebe que os hoje chamados textos
matriciais constituíam leitura ou audiência obrigatória nos serões familiares à roda de
histórias de lutas de cavalheiros e aventureiros europeus. Pela leitura constante ou por sua
importância na oralidade, esses textos terminaram por ser incorporados à memória e ao
imaginário do homem do Nordeste, além de se prestarem à inspiração/transpiração para as
composições locais. Desse modo, o cavaleiro Roldão se transmudou facilmente em Antônio
Silvino; Carlos Magno, em Lampião.
Jerusa Pires Ferreira (1979) coloca a História de Carlos Magno como texto matricial
“de tudo o que surge em um cordel épico nordestino” (p. 16). Verdade é que, como texto
matricial, a história de Carlos Magno tem como espelho e mote os ideais de bravura, valentia
e batalhas em torno da e pela Igreja, em nome de que o grande cavaleiro conquistava terras e
reinos em toda a Europa medieval, razão por que teve sua história narrada em verso e prosa,
sobretudo a partir do século IX. Transferidos para o Nordeste, os episódios heroicos desse
cavaleiro da Igreja influenciam como textos-matrizes produções avultadas de cordéis épicos
que tão somente adaptaram os ideais que interessavam daquela narrativa medieval à realidade
e ao chão dos cangaceiros.
Quanto a essa adaptação, é ainda Jerusa Pires Ferreira quem dá a ideia do que seja o
cordel épico nordestino e sua poética calcada no texto matricial, segundo a qual “verifica-se
um verdadeiro acordo intuitivo e tácito, combinação a obedecer a imperativos de ordem vária,
inclusive as de mercado e à sua novidade, sempre na direção de cobrir o mais amplamente
possível o texto matricial” (FERREIRA, 1979, p. 17).
52
Afora assertivas como “acordo intuitivo e tácito” entre cordelistas e texto matricial,
chama a atenção a afirmativa “cobrir o mais amplamente”, uma vez que nos passa pelo menos
dois sentidos: a) o do “apagar” ao máximo as ideias do texto matricial para que venha à baila
a noção de que se criou algo novo, original, e nesse caso, se perderia quase por completo o
conceito de matriz; b) o de que “cobrir o mais amplamente” soe como o texto a que se copiou
quase na íntegra (como as crianças em alfabetização a cobrir letras), não sobrando espaço
para o ideal de criação, no que resulta correr o risco de se afirmar que prevaleceu a matriz. Na
verdade, se pode inferir da sensibilidade do espírito criador que seu parâmetro de
originalidade seja o moto-contínuo processo de criação e recriação, de colagens e releituras,
de olhares e refeituras sempre resultantes de alguma matriz.
Percebe-se que nas narrativas do cordel épico pode desaparecer o ideal Carlos Magno
e surgir o ideal Jesuíno Brilhante ou Antônio Silvino ou Lampião. Mas o que torna original o
novo texto é ter sido pensado, repensado mediante elementos que identificavam na essência
aquele cavaleiro medieval; no entanto, naquele momento de criação/recriação, a novidade era
apresentar o herói estritamente local. Assim observado, há um ineditismo de personagens, de
ações, de peripécias e não propriamente uma cópia de textos matriciais. A adaptação do texto-
matriz ao meio sertanejo marca a necessidade de criação do herói autóctone. É certo que a
força narrativa da História de Carlos Magno tem a ver, na sua raiz, com a realidade do
cangaço nordestino, por tornar comum em valentia Carlos Magno, Jesuíno Brilhante, Antônio
Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e outros, já que, segundo cada época e sua mentalidade, o
leitor estará diante de seus heróis.
Sabe-se também que os cordelistas detinham ou detêm ainda pouca instrução escolar
(raros os academicamente instruídos), e nesse sentido não constituía tarefa fácil buscar textos
matriciais para fundamentar os seus sem daqueles fazer cópia. Havia esse poeta de ser exímio,
uma vez que o herói do novo texto deveria ser identificado com o Nordeste e nunca com
Carlos Magno, por exemplo. O poeta havia de convencer seu leitor da autenticidade da
narrativa que apresentava. Nesse caso, a criação/recriação com que o leitor/ouvinte depararia
teria de fazê-lo vislumbrar o seu herói com suas peculiaridades.
Afirma Jerusa Pires (1979) que, nos cordéis que têm uma matriz como base, o autor
transcreve trechos inteiros, mas também cria (p. 24). Discorde-se desse ponto. Na verdade,
não há transcrição: o autor de cordéis épicos brasileiros, na sua consciência literária, não
transcreve texto matricial. O que pode ocorrer são importações apenas de ideias, como
53
aventado anteriormente, e essa transposição para o novo texto é apresentada ao leitor/ouvinte
como sua mais nova novela de cavalaria.
Para mais bem se entender essas alegações, note-se o que afirma ainda Jerusa Pires
Ferreira, com o que se há de concordar:
Num cordel épico, cuja realidade é contemporânea do poeta, ele terá como base
épicos anteriores, mas há a possibilidade de ele criar mais intensamente.
O poeta pode usar elementos dos cordéis épicos de origem europeia, Carlos Magno,
por exemplo, porém falando dos cangaceiros a realidade narrativa é bem outra,
fazendo maiores chances de uma criação mais autêntica. (FERREIRA, 1979, p. 24).
É justo afirmar que a colagem de ideias constituiu uma prática no cordel épico, que
isso até prevalece no texto, mas não refere à mera cópia ou transcrição de textos inteiros,
como assegurara anteriormente a autora de Cavalaria em cordel. Buscar no texto matricial o
foco de seus escritos poderia ou até pode ser hábito recorrente do poeta popular, entretanto, o
transcrever, o copiar não o levaria a se permitir poeta. Nem seria autêntico.
A influência do romanceiro ibérico se dá claramente na criação dos cordelistas.
Leandro Gomes de Barros, que começa a escrever no final do século XIX, atesta essa
afirmativa. Esse poeta se notabilizou por ter cultivado a herança de textos que muitos séculos
antes circularam pela Europa medieval e reproduziam gestas de valentia como A história de
Carlos Magno ou as narrativas de esperteza e inteligência como a História da donzela
Teodora, entre outras, escritas em prosa, ou por vezes, em verso e prosa, e a que Leandro,
primeiramente, verteu/reproduziu exclusivamente em versos de cordel, mas que em seguida
serviram de matrizes caríssimas à verve deste e de tantos poetas que as acomodaram às
narrativas locais.
Entretanto, quando reproduziu/recriou em versos de cordel brasileiro os textos
supracitados, Leandro Gomes de Barros assume o quanto lhe foram importantes essas
matrizes. A história de Carlos Magno foi motivo para Leandro escrever títulos como A
batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A prisão de Oliveiros, respectivamente (Cf.:
CASCUDO, 1953, p. 448). Do mesmo autor é História da donzela Teodora, de matriz
medieval, que junto aos imediata e anteriormente textos citados comprova o quanto são
resultantes das leituras de escritos originais. Ao seu leitor, informa o poeta sobre o ato de
verter/reproduzir aquilo que já era comum às leituras ou às audiências de costume de seu
povo: o contato com antigos textos trazidos da Península Ibérica, o que nos leva à certeza de
sua migração para o cordel de feição local. Ao dar início à História da donzela Teodora,
Leandro Gomes de Barros esclarece que apenas verteu/reproduziu o texto matricial para os
versos de cordel:
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Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela. (BARROS, p. 1)
Ao finalizar o mesmo texto, o poeta confirma, ainda uma vez, a transcrição em versos
daquilo que era narrado em prosa:
Caro leitor, escrevi
Tudo que no livro achei
Só fiz rimar a história
Nada aqui acrescentei
Na história grande dela
Muitas coisas consultei. (BARROS, p. 31)
No cordel A batalha de Oliveiros, transcreve Leandro de Barros o episódio em que
Carlos Magno se indispõe com Roldão, um de seus soldados:
[...]
Carlos Magno observou
Que nem um se ofereceu,
Logo aí se entristeceu
Chamou Roldão e o mandou.
Disse Roldão – eu não vou
Nem eu nem meus companheiros
Nos combates derradeiros
Esgottamos os valores,
Quem foram merecedores
Foram os velhos cavalheiros. Carlos Magno quando ouviu
A resposta de Roldão
Se encheu de tanta paixão
Que um ferro lhe sacudiu.
Roldão quando olhou que viu
O sangue dele descer,
Não pode mais se conter,
Se armou com tal furor
Que não foi ao imperador
Por Ricardo se interver. [...] (BARROS, p. 5-6)
Na passagem original em prosa, lê-se o seguinte trecho:
“[...] Quando Carlos Magno ouviu tais palavras a Roldão se encheu tanto de cólera e
ira que lhe atirou com uma manopla de ferro e lhe deu pela cara. Vendo Roldão o
seu sangue, lançou a espada com grande furor e provavelmente mataria o imperador
se não se metessem outros cavaleiros de permeio”. (História de Carlos
Magno, p. 27)
Nítida a transferência do texto europeu para o nordestino. Ao trabalhar o original em
versos, Leandro Gomes de Barros populariza-o ainda mais, já que seu público, mais ouvinte
do que leitor, o traz na memória e transmite-o a tantos outros ouvintes quanto possível. É
55
notória também a transmissão e popularização desse texto pelos cantadores repentistas, que
em desafios se digladiavam para mostrar conhecimento da novela e até se comparar aos heróis
em apresentações para seu público. Leonardo Mota (1921, pp. 62-63) dá conta de um desafio
entre os famosos cantadores Manuel Serrador e Josué Romano:
– [...]
Se você tiver
Força de Sansão,
Presa de leão,
Coragem dobrada,
Encontra uma espada
Igual à de Roldão!
– Você falou-me em Roldão...
Conhece dos cavaleiros,
Dos Doze Pares de França,
Dos destemidos guerreiros?
Falarás-me alguma coisa
De Roldão mais Oliveiros?
– Sei quem foi Rodão,
O Duque Reguiné...
E o Duque de Milão
E o Duque de Nenmé...
Sei quem fou Galalão,
Bonfin e Geraldo
Sei quem foi Ricardo
E Gui de Borgonha,
Espada medonha,
Alfanje pesado. [...]
Ainda quanto à influência das novelas de cavalaria em prosa no cordel, sobretudo no
Nordeste, e em relação tanto aos poetas quanto aos leitores, discorre Edson Carneiro (apud
FERREIRA 1979): “Carlos Magno e seu barões glorificados nas canções de gesta vivem no
Brasil onde chegaram não nas asas da poesia, mas nas páginas de Estórias em Prosa, que
figuram entre os poucos livros que o povo lê” (p. 15).
Como mencionado anteriormente, o Brasil e o Nordeste interioranos conhecem o ciclo
carolíngio há muito tempo, tomadas por base informações de Câmara Cascudo, Edson
Carneiro, Jerusa Pires Ferreira, Maria Isaura Pereira de Queiroz, entre outros. Quanto à
circulação da velha novela no Brasil profundo, informa Câmara Cascudo:
A história de Carlos Magno e dos doze pares de França foi, até poucos anos, o livro
mais conhecido pelo povo brasileiro do interior. De escassa popularidade nos
grandes centros urbanos, mantinha seu domínio nas fazendas de gado, engenhos de
açúcar, residências de praia, sendo, às vezes, o único exemplar impresso existente
em casa. Raríssima no sertão seria a casa sem a História de Carlos Magno, nas
velhas edições portuguesas. Nenhum sertanejo ignorava as façanhas do Pares ou a
imponência do Imperador da barba florida. (CASCUDO, 1953, p. 441).
56
A narrativa das batalhas e conquistas do imperador Carlos Magno e de seus soldados,
ao longo do tempo, influenciaram tanto os cordelistas nordestinos, que, em finais do século
XIX, a poética do cordel adaptara a vida de conquistas e andanças do imperador Carlos
Magno às lidas cotidianas do cangaço. Nesse aspecto, ressalte-se que as semelhanças,
reservadas as diferenças, entre os cangaceiros e esses personagens medievais se tocam pelo
viés da bravura, do destemor, das conquistas, das lutas renhidas. Ao lado de seus homens de
confiança, chefes de cangaço empreendiam duros combates, enfrentavam a morte e não
cediam diante daquilo em que acreditavam.
Transpostas para o Brasil, as histórias de Carlos Magno e de outros nomes marcantes
da oralidade e do imaginário europeus passaram a tecido de fundo heroico a ser desfiado para
se recriar em ambientação nordestina essa saga cangaceiresca de bravura, de coragem e de
conquistas em adaptações que se justificam, talvez, por no Brasil não haver um referencial
de fôlego para a épica popular antes daquela dos cangaceiros, e que representasse os ideais
heroicos que os poetas queriam dá legitimação. O texto carolíngio, como acima apontado,
originalmente em prosa, se desdobra por transferência ou imitação em versos, porque as
estrofes rimadas mais bem se enquadram à alma nordestina, o que legitima a literatura de
cordel brasileira frente a leitores e ouvintes, em detrimento da prosa europeia. Nesse sentido,
a abordagem de valentia presente na narrativa de cordel trata do herói autóctone com a
invencibilidade típica de seu coirmão europeu.
Acrescente-se ainda: a narrativa que se afirma no Nordeste do Brasil é toda medieval e
popular. Não há evidência, por exemplo, de que textos gregos ou latinos tenham influenciado
os poetas populares, o que é de fácil compreensão, já que as narrativas greco-latinas são
clássicas. Além do mais, o Portugal que para cá se desloca impregna a colônia de cultura
medieval e católica e, por consequência, as narrativas para cá transferidas se faziam
carregadas de elementos que configuravam essa orientação católico-medieval e popular.
Embora o achamento do Brasil tenha se dado já no Renascimento, o país de natureza
essencialmente católica que nos colonizou em meio à crise da fé não haveria de permitir ou
evitava ao máximo tudo o que remetesse ao paganismo e à racionalidade em meio ao povo,
pois sua principal meta era a de dilatar a fé e o reino.
Para configurar essa influência católico-medieval na literatura de cordel brasileira, faz
jus apresentar mais uma vez a musa do poeta Leandro Gomes de Barros na já citada Batalha
de Oliveiros com Ferrabrás. Percebe-se que Oliveiros, cristão e sobrinho de Carlos Magno,
vence o mouro Ferrabrás, a quem converte à força ao cristianismo. No desfecho da narrativa,
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porém, ambos os heróis são extremamente virtuosos na medida em que sua luta se dá segundo
os ideais que defendem. Essa atitude, de algum modo, será o embrião daquilo que Leandro
Gomes de Barros e outros poetas transferirão para os cangaceiros em narrativas que lhes
dedicaram.
No que respeita à Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, veja-se a quantos elementos
cristãos o poeta remete:
Eram doze cavalleiros
Homens muito valorosos,
Destemidos, animosos,
Entre todos os guerreiros,
Como bem fosse, Oliveiros
Um dos pares de fiança
Que sua perseverança
Venceu todos infiéis
Foram doze leões cruéis
Os doze pares de França.
Todos eram conhecidos
Pelos leões da Igreja,
Pois nunca foram à peleja
Que nella fossem vencidos,
Eram por turcos temidos,
Pela Igreja estimados
Porque quando estavam armados
Suas espadas luziam,
E os inimigos diziam:
– Esses são endiabrados.
[...]
Aquele foi que entrou
Dentro de Jerusalém
Não respeitando ninguém
Até apóstolos matou.
No templo sagrado achou
Balsamo que Deus foi ungido
Cousas que tinham servido
Na paixão do redentor,
A coroa do Senhor
Tudo elle tem condizido.
[...]
Beijou a cruz da espada
Prosseguio em oração!
Oh! Virgem da Conceição!
Maria pia e sagrada,
Mãe de Deus immaculada ,
Esposa casta e fiel
Pelo vinagre e fel
Que Christo bebeu na cruz,
Rogae por mim a Jesus,
Nessa batalha cruel. (BARROS, pp. 1, 3, 13 )
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Outro detalhe importante, como se observa, é que não há por parte de nenhum dos dois
guerreiros atos de covardia: de início, o suposto vencedor, Ferrabrás, não aceita a vitória sem
que seu oponente, embora debilitado, recorra às armas. Desse modo, Oliveiros aceita
continuar a refrega de posse de suas armas:
[...]
E partiu determinado
A Ferrabrás degolar,
Mas não poude aproveitar
O golpe descarregado.
O turco pulou de lado,
Um golpe nele mediu.
Quando Oliveiros sentiu
O braço lhe estremeceu
Do golpe que recebeu
A sua espada cahiu.
Assim mesmo inda pegou-a
Mas tinha o braço dormente.
O turco rapidamente
Partiu a ella, apanhou-a
Chegando examinou-a,
Ficou muito admirado
E disse enthusiasmado
– Oliveiros estás vencido,
Isso ahí está decidido
Porque já estás desarmado.
Porém pega tua espada
Não quero vencer-te assim,
Mesmo quero ver o fim
Dessa batalha encantada,
Pois que está tão dilatada
Que já estou mal satisfeito
Respondeu-lhe – só acceito
Por minhas armas tomadas
Toma-la por mão beijada,
Isso não é de direito. (BARROS, p.19)
A influência da tradição literária popular medieval na poética do cordel nordestino
decorre, sem dúvida, da leitura em que bravura, destreza e coragem se emolduram em canções
de gesta que se conhecem desde o século IX, a exemplo de A História de Carlos Magno e os
doze pares de França, com a qual o poeta e o povo nordestino se identificaram. Ao adaptar e
aproveitar dos poemas carolíngios e de outros textos de igual matriz, os poetas da literatura de
cordel, principalmente, os pioneiros, agregam aos seus textos com temática no cangaço, e na
proporção de seus limites intelectuais, características de identificação com esses medievos
heróis. Recriaram, pois, um mundo de heróis redivivos na geografia, na cultura, no sotaque,
nos ideais de justiça e no caráter nordestino.
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Ressalte-se que, em muitos casos, os primeiros cordéis pareciam transparecer apenas o
intento de noticiar fatos em torno dos acontecimentos que envolviam os cangaceiros, todavia,
o que disso resultava, na verdade, era o transmudar do bandido em herói, pois suas façanhas
traziam coloração de justiça, uma vez que terminava por prevalecer a ideia de que a opção do
cangaceiro era a de auxiliar os desvalidos, os pobres, os necessitados, já que o Estado,
propriamente, a máquina pública abandonava seus cidadãos à sorte, e a Justiça, pouco ou
raramente, olhava pelos oprimidos.
No cordel Antônio Silvino, o rei dos cangaceiros, de Leandro Gomes de Barros, o
senso de justiça do bandoleiro se dá, por ironia, em casa de um padre para quem, segundo o
texto, era anátema aquele que desse apoio a cangaceiros. Curiosamente, a caridade cristã
presente, por exemplo, no ciclo carolíngio, não se dá no caráter nem na mentalidade do
sacerdote. A voz do texto que segue é de Antônio Silvino, que em primeira pessoa narra a
injustiça do pastor católico, contrariamente ao que pensa o cangaceiro sobre promover a
justiça:
[...]
O velho padre Custódio,
Usurário, interesseiro,
Amaldiçoava quem desse
Rancho a qualquer cangaceiro,
Enterrou uma fortuna,
E eu sonhei com o dinheiro!…
Então fui na casa dele,
Disse, padre eu quero entrar,
Sonhei com dinheiro aqui!…
E preciso o arrancar,
Quero levá-lo na frente
Para o senhor me ensinar.
O padre fez uma cara,
Que só um touro agastado,
Jurou por tudo que havia,
Não ter dinheiro enterrado,
Eu lhe disse, padre-mestre,
Eu cá também sou passado.
Lance mão do cavador,
E vamos ver logo os cobres,
Esse dinheiro enterrado
Está fazendo falta aos pobres,
Usemos de caridade
Que são sentimentos nobres.
Dez contos de réis em ouro
Achemos lá n’um surrão,
Três contos de réis em prata
Achou-se n’outro caixão,
Eu disse: padre não chore,
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Isso é produto do chão.
O padre ficou chorando
Eu disse a ele afinal
Padre mestre este dinheiro
Podia lhe fazer mal
Quando criasse ferrugem
Lhe desgraçava o quintal.
Ajuntei todos os pobres
Que tinham necessidade
Troquei ouro por papel
Haja esmola em quantidade
Não ficou pobre com fome
Ali naquela cidade. (BARROS, p. 7)
Percebe-se que Antônio Silvino, como um Robin Hood, – outro arquétipo de justiça
social do Ocidente e até do mundo, agregado à mítica dos cangaceiros –, saqueia o padre para
exercer a piedade cristã e dividir com os necessitados. Tirar dos ricos e dividir com os pobres
não é mérito dos cangaceiros nordestinos, é mito universal que o romanceiro do cordel
absorveu, adaptou e fez disseminar entre leitores ou simples ouvintes.
Para Ruth Lêmos (1983), “na representação do cangaço, os poetas têm como horizonte
um imaginário povoado de heróis antigos” (p. 81). Nesse caso, abrem-se leques de
possibilidades que levam a ideias de que, do fato ou realidade do cangaço, os poetas
recolhiam traços soltos da oralidade que lhes interessavam e imprimindo-os ao seu texto,
criavam. Frise-se, no entanto, que nesse tecido há um criar/recriar, uma vez que os ouvidos do
povo e de seu poeta sempre foram prenhes das linhas antigas que teceram outras histórias
trazidas de outros tempos e que se tornaram voz comum na tradição nordestina: cantigas de
heróis antigos que habitavam o sertão velho. Na poiesis do cordel épico, a busca pelos heróis
antigos resultou na criação/recriação das valentias que o poeta adaptou e atualizou ao mundo
dos cangaceiros. Dessa forma, há um texto matricial que se faz redivivo, sobreposto,
criado/recriado, de maneira que os cangaceiros tanto podem ser um Carlos Magno, um
Oliveiros, um Roldão como eles mesmos.
Os textos matriciais figuram na literatura de cordel como suporte de importância
crucial para os poetas sempre acorrerem como campos para sua transpiração:
Uma ou outra vez o poeta vai buscar na literatura universal, como fez Leandro
Gomes de Barros ao escrever a História de Pedro Cem, na realidade Sem, da
Donzela Teodora, da Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, da Prisão de Oliveiros,
etc. [...] A Batalha de Oliveiros e demais temas foram tirados do livro de Carlos
Magno, que circulou nos princípios deste século por todos os lugares do Brasil. (ALMEIDA, 1976, p. 9).
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Em A prisão de Oliveiros e dos seus companheiros, Leandro Gomes de Barros deixa
clara a menção ao texto matriz e à sua utilização na feitura do seu texto. Deixa transparecer
ainda que, num Nordeste de cultura oral como o de então, a narrativa já era conhecida e
guardada de memória anteriormente à versão que fizera em cordel:
Quem leu a batalha horrenda
De Oliveiros e Ferrabraz,
Não deve ignorar mais
O que é uma contenda
Vê uma luta tremenda,
Como se ganha a vitória
Pôde guardar em mimória
O combate mais horrível
Paresse até impossível
O passado dessa história.
[...]
Carlos Magno também
Tinha doze cavalleiros
Como outros iguais guerreiros
O mondo hoje não tem
Nunca temeram alguém
Segundo dia a história
Tinham nas espadas a glória
Nunca torceram perigo
Nunca foram a inimigo
Que não contassem Victória. (BARROS, p. 1)
Ressalte-se, porém, que a saga desses heróis antigos, às vezes, é reavivada, recontada
em versos de cordel, como apontado no exemplo acima, e noutras, tem o ideal de bravura
transferido especialmente para os cangaceiros, com forma e conteúdo também expressos em
cordel. O texto matricial, como é próprio do nome, serve apenas de modelo à criação/recriação
ou reinvenção do herói sertanejo, trigueiro, local, nordestino, num primeiro momento,
contemporâneo do poeta que quase o alcança no rastro das alpercatas e na quentura do fuzil.
Feito sob a medida do herói antigo, o cangaceiro dos primeiros tempos da literatura de cordel é
o herói instantâneo. Urge que seja.
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2. 2. AEDOS NORDESTINOS: PENAS INSPIRADAS E HISTÓRIAS PARA CONTAR
E a liberdade feito um pássaro de seda
Voava alto nos meus planos de menino
Nas travessuras imitava os meus heróis
Luiz Gonzaga, Lampião e Vitalino.
(“Meninos do sertão”, de Petrúcio Amorim e Maciel Melo)
Do Nordeste de história para contar, é necessário que se aponte a antiguidade de uma
poesia popular que já se norteava para a temática do banditismo errante, o que ocorre desde o
século XVIII, com ênfase na existência de Cabeleira, um bandido que espalhou morte e medo
no Recife e seu entorno.
Arnold Hauser (1972) afirma que “cada época cultural tem o seu Homero, os seus
Nibelungenlied (canção dos Nubelungos) e sua Chanson de Roland” (p. 236). No Nordeste do
Brasil, esses Homeros se apresentam durante todo o ciclo do cangaço e até nossos dias, em
textos que se afiguravam à matéria épica desde o apogeu do cangaço, sobretudo no final do
século XIX, com a produção de folhetos ou cordéis temáticos, o que se dá até a derrocada
daquele fenômeno histórico na década de 1930. Depois dessa queda e até os dias atuais, o que
há são os diversos desdobramentos de textos identificados com propostas propriamente
épicas, com a ressalva de que, se não apresentar matéria épica, esses cordéis podem trazer a
sátira, o humor, a desconstrução do mito pela rejeição, inclusive, daquilo que seria a
mitificação de cangaceiros.
No período em que Cabeleira atuava no banditismo nordestino não era costume
chamar esse tipo de salteador de cangaceiro, embora houvesse o vocábulo cangaço para
designar complexo de armas que costumavam trazer os malfeitores (Cf.: TÁVORA, 1973, p.
199). Por esse tempo também já havia registros de pequenas narrativas em versos sobre o
bandoleiro referido e sua atuação em considerável área de Pernambuco. Esse material, no
entanto, embora escrito em versos, ainda não representava o que veio a ser chamado de
literatura de cordel somente no século seguinte. Os rudimentos de narrativa sobre o malfeitor
em questão se dão a partir de quadras que entraram para o contexto de criação folclórica, uma
vez que não há identificação de autoria, senão aquela nascida da e na verve coletiva. Só com o
tempo essas pequenas narrativas se tornaram naquelas de maior fôlego e enredo, ajustadas a
uma linguagem literária tida e havida por literatura de cordel.
A trajetória de José Gomes, o Cabeleira, foi romanceada por Franklin Távora e
constitui o texto mais conhecido desse autor. Com o título de O cabeleira, a narrativa vem a
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público no século XIX e traz vários exemplos das quadrinhas populares acima apontadas. A
respeito do aproveitamento desses textos orais e populares, explica o autor:
Embora neste número o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na
carreira do crime, menos por maldade natural, do que pela ignorância que em seu
tempo agrilhoava os bons instintos e deixava soltas as paixões canibais.
Autorizavam-nos a formar este juízo do Cabeleira a tradição oral, os versos dos
trovadores e algumas linhas da história que trouxeram seu nome aos nossos dias
envolto em uma grande lição. (TÁVORA, 1973, p. 31)
Em seguida, compara a bravura de Cabeleira aos grandes nomes da tradição heroica de
origem medieval e ainda menciona a função dessas quadrinhas e sua influência no
comportamento das crianças nos grupos familiares que as herdaram da tradição oral:
À sua audácia e atrocidades deve seu renome este herói legendário para o qual não
achamos par nas crônicas provinciais. Durante muitos anos, ouvindo suas mães e
suas aias cantarem as trovas comemorativas da vida e morte desse como Cid ou
Robin Hood pernambucano, os meninos tomados de pavor, adormeceram mais
depressa do que se lhes contassem as proezas do lobisomem ou a história do negro
do surrão muito em voga entre o povo naqueles tempos. (TÁVORA,1973, p. 31)
Note-se que é já tradição enxergar nos bandidos um heroísmo somente ombreado às
legendas de elementos que sempre foram referenciais de bravura desde o mais remoto
medievo: Cid, Robin Hood, Carlos Magno, entre outros, por mais que tenham esses
salteadores sertanejos sua vida marcada pelo crime e violência. A primeira transcrição de
quadrinhas que aparece no romance dá conta de avultada oralidade, mediante autêntica
criação do “espírito popular”, como disse o narrador:
Fecha a porta, gente,
Cabeleira aí vem.
Matando mulheres,
Meninos também. (TÁVORA, 1973, p.32)
Como o Cabeleira salteava em companhia de seu pai e de certo pardo de nome
Teodósio, a poética popular registra essas passagens da vida do minúsculo bando:
Corram, minha gente
Cabeleira aí vem;
Ele não vem só,
Seu pai vem também.
Meu pai me pediu
Por sua benção
Que não fosse mole
Fosse valentão. (TÁVORA, 1973, pp. 38-39)
Há no romance, entre as quadrinhas, a coincidente transcrição de uma sextilha,
composição comum à literatura de cordel longos tempos mais tarde. A disposição dos versos
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se assemelha à construção adotada pelo cordel, mas nada representa nesse sentido por ser
apenas coincidência:
Lá em minha terra,
Lá em Santo Antão,
Encontrei um homem
Feito um guaribão
Pus-lhe um bacamarte
Foi pá, pi, no chão. (TÁVORA, 1973, p. 50)
Com rima pobre e pouco criativa, os versos foram recolhidos juntos com as quadrinhas
para ilustrar o romance histórico de Távora. A propósito das trovas contidas nessa narrativa,
há ainda a presença de um desafio, também em quadras, a partir das personagens Negro e
Caboclo, o que confirma ter o texto vários elementos tirados à tradição nordestina da poesia
oral, provavelmente cantada, atribuída à criação popular, com o seguinte enredo: Marcolino é
o delator que aponta o esconderijo – um canavial –, último reduto do facínora, antes do
fatídico dia de condenação à pena capital. A musa popular aborda a tentativa de Marcolino em
convencer os que estão à sua volta da certeza do esconderijo de Cabeleira, ao que os presentes
terminam por improvisar sobre o que ouviram. O narrador de O Cabeleira se apropria dessa
tradição oral e transcreve-a:
Negro: Vosmecê, seu Marcolino
Vai atrás do Cabeleira?
Se quiser pegar o cabra,
Monte na besta foiveira.
Caboclo: Monte na besta fouveira
Ou no cavalo cardão,
Não há de pegar o cabra
No meio desse mundão. (TÁVORA,1973, p. 166)
Os textos apontados acima confirmam o quanto a poesia popular de natureza oral
acompanha os acontecimentos nacionais desde pelo menos o século XVIII, se tomarmos por
base a narrativa de O cabeleira, que, escrita no século XIX, tem como ponto de partida
passagens históricas do século anterior, num registro da vida e de tudo que envolve a
criminosa trajetória de José Gomes e seus comparsas.
O romancista, em texto a que chamou de Notas do autor, informou não apenas a
profusão de trovas populares sobre Cabeleira – embora deixe claro que em seus esforços de
coleta só tenha pinçado as de que se utilizou – como explicou que as transcreveu na íntegra, o
que atesta a autenticidade dos escritos por ele coletados:
Confirmo aqui tudo o que deixei dito no texto a respeito do meu protagonista.
Por mais extraordinária que pareça – ele na realidade não se mede pelos moldes
vulgares e conhecidos – o Cabeleira não é uma ficção, não é um sonho, existiu e
acabou aqui como se diz.
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Foi objeto de muitas trovas matutas e sertanejas, de episódios dramáticos e anedotas
acinte engendradas para amedrontar a bazófios importunos [...].
Não obstante terem sido numerosas as trovas de que foram assunto sua vida e morte,
e haver eu metido minhas melhores forças por conseguir elas, o pelo menos quantas
bastassem para dar, com uma notícia mais larga do célebre valentão, uma amostra
por onde pudesse ser devidamente aferida a musa popular do Norte há um século,
não pude obter mais as que entremeei no texto.
Não me atrevi a mudar-lhes uma só palavra, uma vírgula sequer. [...] Não quis usar
dessa faculdade. Fez-me escrúpulo tocar no legado que tem por si a consagração de
algumas gerações; e como eu recebi dos nossos maiores, assim o receberá de mim a
posteridade. (TÁVORA, 1973, p. 195)
Há de se notar que os versos transcritos por Franklin Távora não constituem narrativas
que representem a literatura de cordel, embora representem a voz e o sentimento populares no
que respeita ao fenômeno que o povo acompanha, ou seja, a saga do Cabeleira em meio aos
canaviais de Recife e de grande área em volta. Ao empreender coleta de material poético da
cultura popular oral, o autor de O Cabeleira já levantava a proposta de um regionalismo
literário e da criação de uma “literatura do Norte”.
É importante que se aponte a presença de poesias populares que sempre registraram e
atualizaram fenômenos sociais, políticos, religiosos, folclórico-messiânicos, entre outros, a
partir, sobretudo, da criação de quadrinhas que impregnaram o gosto popular e se perpetuaram
na cultura brasileira, inclusive como depoimentos de uma época, e cuja representação mais
legítima, fora do eixo Nordeste, são as que envolveram a maioridade de d. Pedro II, e com que
o povo manifestava nas ruas: “Queremos Pedro II/ embora não tenha idade/ a nação dispensa
a lei/ e viva a maioridade”.
Da era pós-Cabeleira, e para trazer mais um exemplo, mostre-se que a musa popular
continua com suas quadras a registrar tantos eventos quantos sejam possíveis a respeito do
cotidiano do Nordeste brasileiro. Liberato Cavalcante de Carvalho Nóbrega, nome importante
da Paraíba na primeira metade do século XIX, foi político e delegado de polícia, antes de
entrar para a ilegalidade do cangaço levado por inimizades políticas e pessoais.
Em ABCs, composições mnemônicas muito cultivadas no Nordeste, em quadras,
inicialmente, e depois em sextilhas, quando adaptados à linguagem do cordel, muitos nomes
importantes do cangaço tiveram vulgarização. Nas quadras a seguir, o foco é o acima citado
Liberato Nóbrega, de acordo com material poético atribuído ao poeta Hugolino Nunes da
Costa, o Hugolino do Teixeira (1832 – 1895) coletado por Rodrigues de Carvalho (apud
CASCUDO, 1982, pp. 23-24):
Senhores, me dê licença
Para uma história inteira:
Ver contar uma desgraça
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Que sucedeu no Teixeira.
Liberato, delegado,
Foi prender um Guabiraba,
Por causa dessa prisão
Quase o Teixeira se acaba.
Muitos foram os textos que instigaram o imaginário não só dos poetas como da
população. Nesse sentido atribua-se aos poetas populares a responsabilidade fazerem dos
cangaceiros os mitos a que o povo admira e por quem apresentam predileção. Não poucos
foram os textos de raízes orais que levaram os ouvintes (fale-se mais em ouvintes que leitores,
sobretudo nos primórdios dessa cultura da poesia popular) a disseminarem a memória
cangaceiresca de geração a geração.
No Brasil, a literatura de cordel, na configuração e formato atuais, tem pouco mais de
cem anos e sua popularização está ligada, entre outros aspectos, a dois fenômenos históricos
importantes vividos pelo Nordeste brasileiro: as secas periódicas – mote, inclusive, de
variadas abordagens artísticas – e o cangaço, motivo da literatura de cordel,
comprovadamente, a partir de 1904. Francisco das Chagas Batista é o poeta que primeiro
escreveu folhetos sobre essa temática, em composição estrófica de seis versos, com tema na
vida de Antônio Silvino, cangaceiro de nomeada do Nordeste e cuja atuação se deu entre os
anos de 1896 a 1914.
Rute Brito Lêmos afirma que
O advento do cangaço organizado coincide com o início da publicação sistemática
de folhetos. O cangaço passa a ser tema preferencial e é possível supor que
contribuiu em grande medida para firmar essa literatura.
É notável, então, o desencadeamento de uma produção ampla e constante voltada
para os feitos de Antônio Silvino, e da qual se depreende um verdadeiro memorial.
(TERRA, 1983, p. 81)
Ainda de acordo com essa autora, “dos quarenta e cinco poemas populares
identificados como de autoria de Chagas Batista, quatorze são sobre Antônio Silvino e cinco
sobre Lampião” (TERRA, 1983, p. 44). Atente-se, porém, que Silvino fora tema mais
constante para a pena de Francisco das Chagas Batista, não por ser, talvez, mais importante do
que Virgulino Ferreira, mas por anteceder a este em aproximadamente 24 anos na vida do
cangaço. Desse modo, a impressão é a de que em Chagas Batista a narrativa sobre Silvino
sobrepuja a de Lampião pelo hiato que os separa no tempo. Mas, ao se afirmar como
cangaceiro, é notória a fama adquirida por Lampião, o que o torna o mais importante
personagem do universo que escolheu, a partir de olhares tanto positivos como negativos.
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Lembre-se, portanto, que, se na poética inicial da literatura de cordel imperava Antônio
Silvino, é natural que em torno dele não somente poetas populares, mas a mídia da época o
tivessem em mira como, principalmente, tema de notícia, de arte e de debate.
No cordel Antônio Silvino: vida, crimes e julgamento (primeira parte); a segunda trata
do julgamento), de Chagas Batista, é Antônio Silvino quem conta sua história em primeira
pessoa. No final do texto, o cangaceiro justifica sua entrada para o mundo do crime:
[...]
Somente à fatalidade
Eu devo a minha prisão,
Pois todos sabem que eu era
Um indomável leão!
E nem eu sei por que foi
Que me entreguei à prisão. (CHAGAS BATISTA, p. 30)
Observe-se ainda no seguinte trecho:
Não me prenderam, entreguei-me,
Porque fui impulsionado
Pelo destino, talvez!
Vi-me ferido e roubado,
Vim morar nesta prisão,
Cumprir a lei do meu fado. (CHAGAS BATISTA, p. 30)
Note-se que o personagem que ganha voz no texto se veste de heroicidade, já que sua prisão
decorre de fatalidade. O poeta passa a clara noção de que um herói não se deixaria prender pelas forças
policiais. O ato de se entregar, pelo inesperado dos ferimentos em combate, traz ao cangaceiro a
consagração de sua trajetória, pois o poeta encontra uma saída honrosa para um indomável leão, o que
delineou no imaginário popular os traços que arquitetaram o ideal heroico vivido pelo personagem e
sentido pelos circunstantes que já o tinham na conta de justo, benfazejo e valente.
Faz-se necessário lembrar que, embora este seja um estudo da narrativa épica na
literatura de cordel, e, portanto, de cantos a um herói, Lampião não sofre encômios do poeta
Francisco das Chagas Batista. Esse autor, ao focalizar a vida desse cangaceiro, se mostra
indignado a seu respeito, o que se percebe em expressões como assassino cruel, desonrador e
ladrão (Cf. TERRA, 1983, p. 104).
Já Antônio Silvino figura em todos os textos de Chagas Batista e de Leandro Gomes
de Barros como um guardador da honra, salvador das famílias e respeitador dos semelhantes
como mostra a narrativa deste último, no seguinte episódio, também em primeira pessoa:
Fui de madrugada em casa
De um inimigo que eu tinha
Por fortuna achei cerrada
A janella da cozinha
Tirei café, rapadura
Carne guisada e farinha.
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Achei detraz de uma porta
Um rifle já carregado
Esse eu não poude deixar
Que estava necessitado
Fiz de conta que era meu
Que a onça tinha quebrado.
Ouvi o ressono delle
Passei sem alteração
Achei três contos de réis
Em cima de um marquezão
Contei vi o que tinha
Mas nesse não puz a mão.
E deixei em cima d’elle
A bainha e o punhal
Dando a conhecer a elle
Quem era eu afinal
Vi o dinheiro e deixei
Aquillo como signal. (BARROS, pp. 11-12)
Nessa altura da narrativa, o poeta dá voz às pessoas da casa invadida e evidencia sua
reação ao perceber que não se tratava de qualquer inimigo, mas de um cangaceiro fino:
A mulher do fazendeiro
De manhã se levantou
Fez um alarme tão grande
Que o marido se assustou
Porque não achou a carne
Nem o café que guardou.
Gritou ao Mario homem!
Acorde que está roubado
Elle foi ver o dinheiro
Aonde tinha deixado
Achou tudo e a bainha
Que eu tinha depositado.
Como diabo foi isso?
Disse elle em desatino
Aqui não entrou ladrão
Entrou cangaceiro fino
E uma ação como essa
Só faz Antônio Silvino. (BARROS, pp. 12-13).
[...]
O poeta mostrara essa atitude de Silvino em sua narrativa, atribuindo-lhe traços
fundamentais do heroísmo que a idealização é capaz de produzir. Rodrigues Carvalho, ao
estudar meticulosamente a vida no cangaço, anos mais tarde, estabelece comparações entre
Antônio Silvino e Virgulino Ferreira e seu comportamento no tocante à sacralidade dos lares
da geografia de suas atuações:
E em se tratando de decoro, essa diferença ainda avulta mais. Pode-se dizer que
Antônio Silvino fora um príncipe e Lampião um lacaio. A honra das famílias
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sertanejas que este miseravelmente emporcalhava, cobrindo de toda espécie de
excremento moral, para aquele era intangível qual relíquia sagrada. Infenso à
cobiça e avesso à vilania, o lar de seu inimigo era para ele tão inviolável quanto o
de seu amigo mais querido. Se houvesse oportunidade poderia roubar-lhe a própria
existência, porém a honra da sua família seria respeitada acima de tudo como se
fosse sacrossanta. (CARVALHO, 1961, p. 376)
A honesta ação do cangaceiro, seu respeito pela vida do inimigo e dos de sua casa,
vulneráveis em sono profundo, revelam a finura do bandoleiro: jamais enfrentar o outro, pela
vida ou morte, senão desperto. Sorrateiro, apenas toma o rifle de que estava necessitado. O
dinheiro não interessara nem a vida dos outros. Víveres que furta, revelam a necessidade em
que se encontrara. Note-se que o reconhecimento do feito do cangaceiro emana do próprio
inimigo: E uma ação como essa/ só faz Antônio Silvino. Nesse sentido, pode-se recorrer a
Vernant, que indaga e concomitantemente responde:
Como poderia o herói ser responsável por um sucesso que nunca pode conquistar? O
que caracteriza a proeza heroica é sua gratuidade. A fonte e a origem da ação, a
razão do triunfo não se encontram no herói, mas fora dele. Ele não realiza o
impossível pelo fato de ser um herói; ele é um herói pelo fato de realizar o
impossível. (VERNANT, 1990, p. 434)
Depara-se mais uma vez com o ideal de herói dos poetas populares, tendo em vista a
rejeição que Virgulino Ferreira sofria, sobretudo como noviço no cangaço. Atente-se aos
estudos de Martha Abreu e Rachel Soihet (2003), que observam e apontam em trecho de
cordel de Francisco das Chagas Batista o quanto Lampião fora vítima da letra do poeta, o que
confirma o anti-heroísmo desse cangaceiro, segundo o olhar do cordelista, como
anteriormente ventilado:
[...]
Diz o primeiro decreto
No seu artigo primeiro:
Todo e qualquer sertanejo,
Negociante ou fazendeiro,
Agricultor ou matuto
Tem que pagar o tributo
Que se deve ao cangaceiro.
No parágrafo primeiro
Deste artigo elle restringe
A lei somente aos ricos
Dizendo: - a lei não attinge
Ao pobre aventureiro
Pois quem não possue dinheiro
Diz que não tem e não finge. (BATISTA apud ABREU e SOIHET, 2003, p. 123).
Atente-se para a segunda estrofe: o poeta deixa transparecer um ato de nobreza do
bandido, ao tributar ao mesmo tempo ser este complacente com os pobres, pois se não têm,
não fingem.
70
É perceptível, no entanto, a represália que sofre Lampião nos versos dos poetas
populares tidos como iniciadores dos cordéis épicos. É possível que isso se dê por motivos de
Antônio Silvino ocupar no imaginário do povo a face do “gentil homem”, termo que Câmara
Cascudo usa em referência primeira a outro cangaceiro, Jesuíno Brilhante – anterior a
Antônio Silvino –, o que se estende também na mítica popular a este último, que por seu turno
fazia questão de pertencer à “escola romântica” do cangaço. É possível que acerca de
Lampião compusessem espécies de contracantos justificados, talvez, pela quantidade de
crimes e maldade atribuídos ao bandido, sobretudo, no início de sua vida de bandoleiro.
No que concerne à crônica sobre outros cangaceiros, não se evidencia rejeição da
poética popular, a exemplo dos cantos ao já citado Silvino, a Jesuíno Brilhante, a Adolfo
Meia-Noite, entre outros, todos igualmente bandoleiros, mas tidos e havidos na condição de
heróis sertanejos, pois honravam as famílias e eram gentis, como querem tanto os poetas
quanto o povo. De Adolfo Meia-Noite, quadrinhas populares e soltas, i. e, sem um enredo, e
ainda não sob a forma de cordel, dão conta de seu heroísmo e louvam sua atitude de morrer
sem se entregar. O cangaceiro morre na Serra do Teixeira, Paraíba do Norte, em 1880. Versos
anônimos rezam sobre o caráter do homem Adolfo Rosa Meia-Noite e de como, à traição, fora
morto pela polícia:
Adolfo nasceu nas Varas
De Afogados de Ingazeira
Província de Pernambuco
Foi sua terra primeira.
Não podendo trabalhar
A Paraíba procurou.
De todos os inimigos
Meia Noite se vingou.
- Tenho uma coisa comigo,
Desde a hora de nascer;
Não mato sem precisão
Nem corro sem ver de quê.
Era homem de coragem,
De muito bom coração,
Só matava peito a peito,
Pois nunca foi um ladrão.
As praças da Paraíba
Na Fazenda do Bom Fim;
Lhe fizeram a traição,
Lhe dando o triste fim. (Apud CASCUDO, 1982, p. 112).
As quadrinhas acima representam e revelam ainda importante depoimento: na mítica
popular, nenhum cangaceiro, aqueles tidos por verdadeiros heróis, não matava de forma
71
banal, não roubava sem motivo, pois eles não eram tidos por ladrões. Se o faziam, era pela
sobrevivência e necessidade. Se não trabalhavam, era porque, perseguidos pelo governo e por
inimigos, não tinham chão para se fixar. Nunca se entregavam. Preferiam a honra da morte
em combate. Todos, de Jesuíno Brilhante a Adolfo Rosa Meia-Noite, morreram à traição
protagonizada pelas próprias forças volantes, o que ocorreu igualmente a outros bandoleiros
como Virgulino Ferreira e Corisco.
É necessário lembrar que, diferentemente desses primeiros cangaceiros, a glória de
Lampião e sua inserção no cancioneiro popular só se dão, como esperado, após sua morte, e
ainda pelo afastamento cronológico de seus feitos. O herói Virgulino Ferreira da Silva entra
para o circuito épico da literatura de cordel, principalmente, nas décadas de 1950 (período de
efervescência de valorização do Brasil) e 1960 (reação à ditadura militar), tempo, esse último,
em que intelectuais de esquerda passam a estudar, a entender, a elevar o cangaço à condição
mítica nacional, como espécie de reação ao golpe militar de 1964. Desse modo, mitos como o
de Lampião ou do cangaço, levam os estudiosos a discutirem não só o seu nome de Virgulino
Ferreira, mas o cangaço como entidade de força que contraria o poder estabelecido e contra
este se levanta. Nessa ocasião, aos cangaceiros são dados atributos que ultrapassam a ideia de
que lutavam em causa própria, para alcançar, pelo olhar dos intelectuais, principalmente de
esquerda, o mérito da defesa dos fracos, dos pobres e dos oprimidos pelos poderosos.
Observem-se estudos como os de Rui Facó, Maria Christina Matta Machado, Eric
Hobsbawm, entre tantos, para se entender a mentalidade dessa geração, que atua, alguns,
ainda na década de 1950, e outros, nos anos de 1960 e seguintes. Veja-se texto de
engajamento político2 de Christina Matta Machado, que ao mencionar a morte dos pais de
Lampião em Alagoas, especificamente em Matinha de Água Branca, pela volante do capitão
pernambucano José Lucena, alega: “Naquele instante morre Virgulino Ferreira e nasce
Lampião, que se tornaria mais tarde o mais famoso cangaceiro, que veio a liderar o único
movimento armado de longa duração no Brasil”. (MACHADO, 1978, p. 37). “Movimento
armado” é o termo que chama a atenção, principalmente, por ser típico da época em que o
texto é redigido.
A socióloga Isaura Queiroz aponta para a relação que fora feita, também na década de
1960, em leitura sobre o fato de que o cangaço teria sido visto como resistência aos poderosos
em estudos que incluem as artes, a Sociologia, a História. Conclui a intelectual: pouco a
pouco, na literatura, o gênero de vida específico do cangaço. (Cf.: QUEIROZ, 1978, p. 18).
2 Trata-se de tese sobre o cangaço, que a autora não concluiu, devido a ter falecido precocemente.
72
O simbólico da luta dos cangaceiros para esses estudiosos urbanos está em
representarem resistência aos poderosos e ao sistema arcaico de poder que se instala no Brasil
desde o período colonial. A lida dos cangaceiros passa, com os intelectuais e políticos de
esquerda, a sintetizar o real combate à política e aos coronéis de uma época em que o poder
local a eles pertencia em detrimento dos que a eles viviam subjugados.
Antes, porém, da discussão cangaceiros x poderosos e da valorização dos primeiros, a
peculiaridade de Antônio Silvino quanto à poética popular, e como antecessor de Lampião, é
o fato de, embora inserido no crime, usufruir, concomitantemente, da marca da nobreza e de
prestígio, o que ocorrera a outros cangaceiros, como anteriormente mencionado, tanto na
visão do povo quanto na dos poetas. Tido como grande cavaleiro andante num Nordeste com
fortes traços medievais, Silvino se afirma como um justo defensor do povo nos estados em
que atua, a saber: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Tendo como bandeira a
vingança pela morte do pai, Antônio Silvino assume o chamado cangaço independente, porém
segundo uma moral e ética que são as de não desrespeitar famílias, de não macular as moças,
de respeitar a todos e somente roubar aos que têm para dividir com os despossuídos.
Ao agir nesses moldes, e talvez por estratégia, Antônio Silvino acaba por conquistar
seu espaço e a admiração do povo, além da síntese de sua vida e seus feitos pelas mãos dos
poetas populares. Em A vida de Antônio Silvino, de 1904, com reedição em 1905, 1906 e
1907, o testemunho do heroísmo do cangaceiro se dá em meio a uma ótica que põe Silvino
como vítima do sistema. Sua heroicidade não se dá só pela resistência física, mas por sua
indignação diante dos desmandos e atrocidades sociais e políticas do Nordeste. Conforme o
trecho que segue, há quase uma justificativa e uma defesa do cangaceiro pelo poeta, que
sempre em primeira pessoa, dá voz a Silvino:
[...]
Alguém me chama covarde
Porque eu uso correr,
Podem chamar, mas eu corro,
Porque preciso viver;
E quem se fizer de duro
Que espere para morrer.
Alguns dizem que eu sou
Malvado de profissão.
Me chamam de desordeiro,
Acusam-me de ladrão;
E muitos fogem de mim
Como a cruz foge do cão.
Saibam todos que não sou
Como dizem, tão malvado;
Se aos meus inimigos
73
Eu tenho assassinado
É porque eles me ofendem,
A matá-los sou obrigado.
E também não sou ladrão,
Pois não vivo de roubar:
Para não morrer de fome
Peço a quem tem para dar;
Faço isto porque o governo
Não me deixa trabalhar...
Defendo a honra e a inocência,
Só ofendo a quem me ofende,
Só firo a quem me fere
Ou a quem ferir-me pretende;
E o que me fizer mal
Juro que se arrepende. (BATISTA, pp.46-47)
Há uma justificativa muito comum para a história de jovens que entravam no cangaço:
a vingança pela morte do pai. Referência imprescindível no lar em toda a cultura ocidental
judaico-cristã, a figura do pai representa a ordem, a moral, o sustentáculo da família em todos
os níveis. Na cultura nordestina, a presença paterna sempre se mostrou muito forte como
ancoradouro. A morte do pai, sobretudo, aquela da surpresa de um assassinato, termina por
constituir um vazio que deve ser preenchido e isso se dá pela vingança. Vingar o pai morto,
fazer essa justiça, é ter a sensação de que o vazio foi preenchido. Na cultura sertaneja, vingar
a morte de um ente querido é torná-lo presente no meio familiar, é fazê-lo reviver, e tornar
toda a casa igualmente vivaz. É como se próprio morto voltasse e se autodefendesse.
A profissão de fé que rege a entrada e a luta de Antônio Silvino para o cangaceirismo
se dá no seguinte passo:
[...]
Aos que mataram meu pai
Entrei em perseguição
Nas lutas me acompanhara
Zeferino meu irmão;
De me fazer criminoso
Creio que tive razão. (BATISTA, p. 2)
Essa voz aponta para a vingança de Antônio Silvino e de sua luta em defesa da honra
não só pessoal como do grupo familiar. Sua vingança é a de seu pai e a do grupo a que este
estivera atrelado. Vingar o pai é vingar todo um mecanismo envolvido por laços de fidelidade
decorrentes de anos atados não somente por parentesco, mas por laços afetivos e de amizade,
como comprova o sobrenome Silvino, adotado pelo cangaceiro em homenagem ao provável
parente e aliado, Silvino Aires, na verdade, seu padrinho e também cangaceiro, como será
mostrado posteriormente.
74
Percebe-se que a luta da vingança envolve sempre membros do grupo familiar: Antônio
Silvino, Zeferino, seu irmão, e outros possíveis parentes. Verifica-se, ainda, que o provável
parentesco ou amizade profunda da família de Antônio Silvino com os Aires (de que se destaca
o nome de Silvino Aires) foi o motor de toda a trama e entrada de Antônio Silvino para a vida
de crimes (Cf.: QUEIROZ, 1977, p. 41). Silvino não executa vingança somente em nome de
seu pai: a honra e o sangue a serem desforrados configuram não um ato isolado em relação ao
genitor assassinado do cangaceiro, mas o clã dos Aires, por quem o pai de Silvino morre, teria
a honra vingada na vindita.
Como em autodefesa, a partir do texto de cordel, diz Antônio Silvino “ter razão de se
tornar criminoso” e tenta se justificar se colocando como justiceiro. De suas mãos e de sua
violência acontece o que deveria ser atribuição do Estado, sempre omisso: a justiça. Prender,
julgar, condenar ou absolver, matar, prestar assistência aos pobres e necessitados, agir
politicamente passa a ser ofício de Antônio Silvino, que, à solta pelo sertão, faz o papel do
ausente Estado em todas as instâncias:
[...]
No bacamarte eu achei
Leis que decidem questão
Que fazem melhor processo
Do que qualquer escrivão.
As balas eram os soldados
Com que eu fazia prisão (BATISTA, p. 4)
Ainda com relação à sua lei, afirma Antônio Silvino:
[...]
Onde estou não se rouba
Nem se fala em vida alheia,
Porque na minha justiça
Não vai ninguém para cadeia:
Para logo o que tem feito
Com o sangue da própria veia! (apud. MOTA, 1982, p. 177)
Segundo a visão do poeta popular, o Estado não tem forças para prender Antônio
Silvino e, num canto que representa toda a admiração (o cangaceiro é invencível e somente
quando quis se rendeu definitivamente às forças oficiais), é elevado à categoria do homem
que termina por representar força maior que a de seu principal perseguidor, o próprio Estado:
[...]
Porque Antônio Silvino
(uma é ver, outra é contar...)
Lutou dezenove anos,
Fez o governo cansar
E só puderam prendê-lo
Quando ele quis se entregar (apud MOTA, 1982, p. 181)
75
A impunidade nas sociedades sertanejas pelas autoridades era tamanha, que esse
crônico excesso de violência e vingança entre grupos se estendeu por anos seguidos por todo
o Nordeste, o que faz originar o cangaço e leva as populações sertanejas a um misto de medo
e pavor, mas de admiração pelo cangaceiro, devido à sua coragem no enfrentamento dos
poderosos e, de certo modo, na defesa desses desvalidos. Por outro lado, surge o poeta, que,
voz desse povo, agrega e sintetiza todo um cantar de caráter épico em torno da aventura
cangaceiresca.
A crônica sobre como Antônio Silvino ingressa no crime se dá da seguinte forma: em
uma sub- região da Paraíba, conhecida como Teixeira, berço de cantadores repentistas, quatro
grupos familiares se revezam no poder, a saber, os clãs dos Dantas, dos Cavalcanti Aires, dos
Carvalho Nóbrega e dos Batistas (de que descende Silvino). Os dois primeiros filiados ao
Partido Liberal e os dois últimos, ao Conservador. Quando um dos Aires, Idelfonso
Cavalcanti Aires, ascendeu ao poder, os Dantas, seus aliados, forjam seu assassinato em 1875
e acusam dessa morte um de seus inimigos, especificamente Liberato de Carvalho Nóbrega, a
quem Idelfonso Aires substituíra e de quem fora perseguidor.
Silvino Aires, filho do assassinado Idelfonso, não aceitara a alegação de que a morte
de seu pai tenha sido provocada por seu inimigo, mas por um seu aliado e, auxiliado por
Pedro Batista de Almeida, o Batistão (pai do futuro Antônio Silvino) dá cabo da vida do
verdadeiro assassino de seu pai (Cf.: TERRA, 1982, p. 82).
Segundo Gustavo Barroso (1930, p. 86), há ainda algumas querelas entre os grupos
rivais, sobretudo, por Silvino Aires, porém os Dantas protagonizam um esquecimento de mais
ou menos 20 anos. Há uma trégua, Silvino Aires vai plantar e criar, e, no tempo certo, os
Dantas entram em cena por meio de um subdelegado, seu parente, da já mencionada região do
Teixeira, que em 1897 ataca o território dos Aires, alegando que seus agregados e moradores
são ladrões de cavalos e os espanca. Dessa feita, Silvino Aires forma seu bando e vai à forra:
invade a serra do Teixeira reduto dos Dantas. No meio do bando se encontrava Manuel
Batista de Morais, que depois se torna Antônio Silvino filho do sobredito Pedro Batista de
Almeida, cuja morte ocorrida em 1896, por um dos Dantas, jura vingar.
Os registros apontam que Silvino Aires fora preso por volta de 1898 (Cf.: BARROSO,
1930, p. 88) e a partir de então Manuel Batista de Morais passara a chefia de bando com o
pseudônimo de Antônio Silvino e sobrenome adotado em honra de seu padrinho, dito Silvino
Aires. Do prenome [Antônio], informa (CASCUDO, 1982, p. 29) não lhe saber a origem.
76
A narrativa sobre Antônio Silvino aborda a injustiça em todas as suas configurações,
vivida num Nordeste rural, atrasado e carente. Nordeste, igualmente, de ricos avarentos, de
políticos-coronéis, de ricos aliados dos cangaceiros, de ricos contrários a estes. Território dos
que negam e dos que dão o pão de que o cangaceiro precisa.
O robinhoodismo do cangaço não é de todo imaginação de pensadores de esquerda.
Havia, porém, os que defendiam que, de Antônio Silvino a Virgulino Ferreira e outros, o que
buscavam era o pão fácil e que a luta que empreendiam era, na verdade, para si e em torno de
si, com a ressalva da divisão com seus soldados do lucro de suas investidas. Aos comandados
cabia soldo garantido, porém aos chefes incorria amealhar maior quinhão. A fortuna que
acumulavam esses tinha cofre certo: seu bolso. Eles e seus aliados e colaboradores mais
próximos se afortunavam, portanto.
Mas há de se apontar que no imaginário da poesia popular os chefes de bando são
apontados como heróis do povo sofrido em luta contra o sistema político e econômico
estabelecido e com poucos a deter poder político e econômico, enquanto a maioria tem de se
contentar com a pobreza e miséria extremas, em luta constante para sobreviver. Tirar dos
ricos e distribuir com os mais pobres é exercer, na visão épica dos poetas populares,
verdadeiro papel de Robin Hood. O poeta registra a ocasião em que Antônio Silvino, em uma
de suas façanhas, fizera justiça na distribuição com os pobres do que tirara do estado e dos
ricos em vila do Pilar, na Paraíba:
[...]
Então dirigi-me à loja
Do mesmo Napoleão,
Lá quaro contos de réis
Na gaveta do balcão
Encontrei, e vi que Amim
Tocava aquele quinhão...
À municipalidade
Pertencia esse dinheiro,
Porém eu que do governo
Sou o principal herdeiro,
Apossei-me desse cobre
E em guardá-lo fui ligeiro!
Quando da loja saí
Eu fui à colletoria
Alli deu-me o colector
O cobre que em cofre havia
Sendo este do governo
A mim também pertencia.
Visitei todo o commercio
Fiz muito bom apurado
E vi que de muito povo
77
Eu me achava acompanhado
Alguns pediam-me esmolas:
Então não me fiz rogado.
Uns quatrocentos mil réis
Com os pobres distribuí
Não serve isto para minh’alma
Porque esta eu já perdi,
Mas serve pros miseráveis
Que estavam nus e eu vesti. (BATISTA, p. 26)
Na estrofe acima, a impressão é a de que há um desapego ao dinheiro da parte de
Silvino. É como se a fortuna fosse passageira e o dinheiro não fosse a primeira e principal
meta da vida. A alma é, no dizer do cangaceiro, a riqueza maior. E como afirmado no
discurso narrativo acima, a pecúnia não vale se a alma se perde: Não serve isto para
minh’alma/ Porque esta eu já perdi. Doar aos pobres aquilo que se pilha dos ricos é se
afirmar como um Robin Hood. Esse caráter despojado que a oralidade tributa à vida desse
cangaceiro leva Leonardo Mota a afirmar que Antônio Silvino por longos anos representou o
bom ladrão, o bandido que, a seu modo, procurava fazer justiça social, tirando dos ricos para
dar aos pobres (MOTA, 1967, p. 10).
Essa bondade traz à mentalidade popular a ideia de que o cangaceiro está ao lado dos
desfavorecidos, de que os defende e protege-os. O poeta ao perceber essa nuança dá natural
destaque ao cangaceiro como herói. O poeta representa todo um canto coletivo, e,
conseguintemente, a vontade do povo de ter o seu herói e como tal, que enfrente toda uma
ordem/desordem empreendida pelos poderosos e opressores. E a ideia do povo não é
contrariada: o cangaceiro arca com o enfrentamento do poder pela força de armas, mas com a
coragem pessoal num frente a frente com a violência em luta de morte. Nesse caso, o
cangaceiro será sempre um herói. Nesse sentido, Gustavo Barroso afirma que “o tipo mais
interessante de cangaceiro é o possuído da quixotesca fantasia de proteger os fracos, de fazer
triunfar a Justiça, de endireitar os erros, de sanar faltas, valente, esforçado em lutas, feroz e
impiedoso para o inimigo [...]” (BARROSO, 1962, p. 98-99).
É possível que Antônio Silvino tivesse se espelhado em um dos cangaceiros mais
justos que o antecedera: Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante (1844 -1879),
sobre quem Câmara Cascudo (1982) transcreve os sentimentos do povo, por ocasião de sua
morte e da falta que fizera: “certas injustiças acontecem, porque Jesuíno Brilhante não existe
mais” (p. 111). E conclui o próprio autor: “Era [Jesuíno] o paladino, o cavaleiro andante, sem
medo e sem mácula a serviço do direito comum e natural” (p.111).
78
É imprescindível que se aponte o quanto a temática da luta contra as injustiças, a
desordem subvencionada pelo estado, a reversão do estabelecido por parte dos cangaceiros se
estendem por outras linguagens artísticas. O narrador de Cangaceiros (1976), de José Lins do
Rego, romance publicado em 1953, traz uma reflexão quanto aos sentimentos do povo no
tocante aos cangaceiros e à justiça por eles praticada em meio à miséria da população
sertaneja: “Este nosso sertão é assim mesmo, senhora Josefina, há de se sofrer do Governo, de
rezar com beato, ou lavar os peitos, obter justiça com os cangaceiros” (p. 39).
Na literatura de cordel, o olhar do povo para Antônio Silvino reflete-o como aquele
que não pensava apenas nos desafortunados, mas na proteção às famílias, na honra de suas
filhas e na sua própria remissão:
[...]
Tomei dinheiro dos ricos
E aos pobres entreguei.
Protegi sempre as famílias
Moças pobres amparei
O bem que fiz apagou
Os crimes que pratiquei. (BATISTA, p. 16)
Note-se que a poética popular em torno dos cangaceiros conota quase sempre
recriações do universo oral, pois a falta de documentação leva à inventividade como se os
poetas, ao garimparem os anseios do povo por um herói, criassem e desrealizassem,
concomitantemente, os fatos para dar ao texto matiz épico. A inserção do cangaceiro na
poesia popular é tão inventiva, que sua filtragem no crivo dessa poesia termina sendo
positiva. Antônio Silvino sintetiza as aspirações de justiça de seu povo:
[...]
Silvino fez muitas coisas
Ajudando a classe pobre
Ele tomava do rico
Que era metido a nobre
E dava uma coisinha
Ao pobre que não tinha
Uma moeda de cobre. (COSTA LEITE, p. 2)
Se a concepção do herói é uma justificativa para afirmação de um povo, haverá
sempre a quem aliar grandes defeitos e grandes virtudes para que esse herói seja constituído e
represente os defeitos e as virtudes desse povo. O herói, sem dúvida, constitui a forja e a
invenção. É a idealização a que todo o povo recorre como referencial de mito.
Segundo todos os dados históricos, como já mencionado, Antônio Silvino entra para o
mundo do crime com o propósito, a princípio, de vingar a morte do pai. Fato idêntico ocorre a
Virgulino Ferreira. Na poesia popular, os versos de cordel não deixam passar incólumes os
79
dois eventos que envolveram, em épocas diferentes, as famílias Silvino e Ferreira,
respectivamente. A morte do pai de Antônio Silvino é lembrada pelo poeta Francisco das
Chagas Batista:
[...]
Meu pai fez diversas mortes
Porém não era bandido;
Matava em defesa própria
Quando se vi agredido,
Pois nunca guardou desfeita,
Morreu por ser atrevido.
[...]
No ano noventa e seis
Meu pai foi assassinado
Pela família Ramos
Já sendo nosso intrigado,
Um deles, o José Ramos,
Que era subdelegado.
Para punir esse crime
Ninguém se apresentou;
A Justiça do lugar
Também não se interessou;
Aos bandidos a polícia
Pareceu que auxiliou.
E eu, que vi a Justiça
Mostrar-se de fora à parte,
Murmurei com meus botões:
- Também hei de arrumar-te!
Não quero código melhor
Do que seja o bacamarte. (BATISTA, p. 4)
Sobre a morte de José Ferreira, pai de Virgulino Ferreira, se lê:
[...]
José ouviu Virgulino
Lhe dizer algo ofegante
Que em seu encalço andava
A furiosa volante
De Alagoas, disposta
A ataque fulminante.
José aparentemente
Ignorou o aviso
Mas saiu em passos lentos
Acabrunhado, indeciso
Lamentando em seus rapazes
Tanta falta de juízo.
Ensurdecedor tropel
Por tiroteio mesclado
Ouviu-se em torno da casa
Com o triste resultado:
José numa grande poça
De sangue quente deitado.
80
Naquele sombrio dia
De tanta desolação,
De tanta raiva e ódio
Nascia para o sertão
O nosso famigerado,
Destemido Lampião. (SILVA, p. 14-15).
A consequência desses assassinatos era a busca pela vingança. Segundo a idealização
popular, os filhos buscavam a justiça que não havia para os mais pobres. Nas mortes em que
se envolviam grupos familiares, os clãs mais abastados se beneficiavam da justiça, por haver,
mutuamente, troca de favor tanto político quanto social. Já a solução encontrada pelos mais
pobres era a da justiça levada a efeito pelas próprias mãos, o que levava o cidadão à
ilegalidade, passo curto para a entrada no banditismo não só como meio de efetivar essa
justiça, mas como espaço de apoio e proteção. Fora da lei e na marginalidade, ao entrar para o
cangaço, o jovem se via apto e livre para atuar e sobreviver nas caatingas. Sem o trabalho, e
em constante perseguição por forças policiais, a consequência era o roubo, o saque, o
sequestro, as invasões a fazendas, ao comércio, a vilas e pequenas cidades como forma de se
obterem recursos de sustentação à vida que se escolheu.
É certo que os poetas populares e até o povo nos momentos primeiros de uma poética
do cangaço distinguiam os modos de atuação de um Antônio Silvino e de um Virgulino
Ferreira: ao primeiro, o imaginário dá foros de cavalheirismo; ao segundo, de truculência e
irracionalidade. A face não recomendada de Virgulino Ferreira, em vida, faz com que Antônio
Silvino, também em vida, porém encarcerado, tivesse no povo e, consequentemente, na
poética popular, olhar mais digno.
Evidentemente, só a distância no tempo, já referida neste trabalho, depura Lampião
para o imaginário popular e de criação poética. Note-se que Antônio Silvino fora elevado à
categoria de herói em seu próprio tempo, e Lampião, como típico do canto épico, com o
distender do tempo.
Num Nordeste de antigos costumes coloniais, em que o pré-requisito da palavra
empenhada era comum até em meio ao banditismo, o caráter de Antônio Silvino era tido
como algo positivo, ao passo que o de Virgulino Ferreira, talvez por mais jovem e
inexperiente, não fosse digno de confiança, devido às suas oscilações no trato com a palavra,
o que só o tempo foi o responsável por mudar.
Na narrativa a seguir, detalhes da vida de Antônio Silvino foram concebidos de
acordo com a proposição do personagem épico. Ao narrar a prisão do bandoleiro, o poeta
81
levou o leitor a acreditar no destino pertinente aos heróis, uma vez que o desfecho de sua vida
fora pré-estabelecido. O feito da prisão do cangaceiro, que se entregou às Volantes, não
representou sinal algum de fraqueza ou covardia, pelo contrário, o fez ingressar na categoria
dos heróis, visto que, baleado em luta, e o mais grave, ferido à traição, além de perder
companheiros e ter tido surrupiados os bens de que dispunha, não se deixou prender. Teve a
hombridade de se entregar:
[...]
No pai de um meu companheiro
Uma surra eu tinha dado;
(já fazia quatro anos)
E o cabra havia jurado
De me matar à traição
Em um momento aprazado.
Esse cabra traiçoeiro
Perto de mim atirava
Por detrás de uma pedreira –
Vendo que eu não o olhava,
Atirou-me por detrás
Quando eu menos esperava!
E uma bala de Mauser
Pelas costas me varou,
E saindo pelo peito,
Um rombo enorme deixou,
Caí no chão quase morto
E o cabra ali me roubou.
Levou-me todo o dinheiro
E um anel de brilhante,
Levou-me um grande punhal
E u rifle muito importante,
Não pude me defender
Porque estava agonizante.
Quando despertei da síncope,
Foi que me senti ferido;
Ali procurei meu grupo
Que de mim tinha fugido,
Tudo quanto eu possuía
Tinha desaparecido.
Com dificuldade ergui-me,
Depois de ter-me sentado,
Olhei em redor e vi
Um homem no chão sentado,
Era o amigo Joaquim Moura
Que se achava baleado.
Chamei-o ele se sentou
E me disse: - estou perdido,
Mas não me entrego à polícia.
Portanto eu me suicido...
Deu um tiro na cabeça,
82
Morreu sem dar um gemido.
Quis eu também suicidar-me
Mas as armas não achei;
O veneno que eu trazia
Nos bolsos não encontrei,
Levantei-me e a uma casa
Quase de rasto cheguei.
Ao dono dessa vivenda
Pedi que fosse chamar
O comandante da força
Para a ele me entregar,
Pois eu estava quase morto
E queria me confessar. (BATISTA, p. 29).
Perceba-se que a narrativa aborda a exata questão de o mundo do cangaço se dar no
eixo mesmo da figura paterna. O inusitado ainda é que a vingança contra Silvino ocorre no
próprio bando: o cangaceiro ofendido lava a honra do pai, surrado em algum momento pelo
próprio Antônio Silvino, que entrara num bando para vingar a morte do pai, com o passar do
tempo, e ironicamente, quase fora morto por alguém que, igualmente, tivera o pai injustiçado,
senão pela morte, propriamente, mas pela morte moral de uma surra.
Quanto à fraqueza de Antônio Silvino ao pensar em suicídio, é próprio do herói, em
algum momento de sua trajetória, a recusa no enfrentamento do traçado de seu destino,
embora esse mesmo destino se encarregue de elevá-lo em seguida, ao alento procedente de
força superior.
Pierre Vernant (1990) nos apresenta lição ideal da natureza do herói e de seus possíveis
fracassos, diante das adversidades a que está sujeito:
Indivíduo à parte, excepcional, mais do que humano, o herói, deve, no entanto,
assumir a condição humana; ele conhece as suas vicissitudes, provações, limitações;
deve enfrentar os sofrimentos e a morte. O que o define, no interior mesmo do seu
destino de homem, são os atos [...] que, abolindo os seus próprios limites, ignorando
todos os interditos comuns, transcendem a condição humana e, como um rio que
sobe até sua fonte, vem ajuntar-se à força divina. (VERNANT, 1990, p. 341-
342)
Percebe-se nos versos anteriores que o entregar-se à força divina de que fala Vernant,
de algum modo, se configura no “confessar-se” a que deseja o cangaceiro. Note-se que à
polícia ele trata apenas de se entregar. O confessar-se é a tentativa de buscar a força e o
perdão divinos, embora se encontre sem forças físicas, esgotado, mas não arrependido de sua
vida pregressa, do que decorre o matutar a fraca ideia de suicídio, conforme apresentado
páginas à frente na mesma narrativa:
[...]
Já me confessei a um frade
83
Mas não estou regenerado
Acho-me muito abatido
E estou desequilibrado;
Agora com o suicídio
Eu vivo impressionado. (BATISTA, 30).
Novamente, o poeta dá voz ao herói, que se defende de possíveis acusações quanto a
ter fraquejado, devido a ter se entreguado às forças policiais:
[...]
A bala que me feriu
Pelas costas penetrou,
Saiu no peito direito
E o pulmão me afetou
Mas só prostrou-me porque
A cardite me atacou..
[...]
Somente à fatalidade
Eu devo a minha prisão,
Pois todos sabem que eu era
Um indomável leão!
E nem eu sei por que foi
Que me entreguei à prisão.
Não me prenderam, entreguei-me,
Porque fui impulsionado
Pelo destino talvez
Vi-me ferido e roubado,
Vim morar nesta prisão,
Cumprir a lei do meu fado. (BATISTA, p. 30).
É perceptível como, na voz que o poeta empresta ao cangaceiro, este se coloca como a
se justificar ao povo, que não pode nem deve tê-lo nem vê-lo como um fracassado. É sabido
que nos textos épicos o herói é levado à quase fatalidade, mas o destino termina por torná-lo
vencedor.
No que concerne às narrativas de cordel sobre Lampião, poetas populares do mesmo
período em que o cangaceiro atuou, ou pouco tempo após sua morte, se expressam em seus
folhetos com visão contrária ao bandoleiro, como se seguissem uma escola de repúdio criada
pelos cordelistas do início do século, a exemplo de Francisco das Chagas Batista, João
Martins de Ataíde e outros. É de Ataíde o texto de 1946, portanto, oito anos após as mortes de
Angicos, em que o poeta se expressava da seguinte maneira sobre Virgulino Ferreira:
Assim naquela atitude
Rosto firme, olhar insano
Quem o visse não dizia
Ser um ente desumano
Prestava atenção a tudo
Com um caráter sisudo
Parecia um soberano. (ATAÍDE, p. 1)
84
Observe-se que houve cordéis contrários ao capitão Virgulino Ferreira da Silva
durante sua trajetória, e alguns com esse mesmo caráter, imediatamente após sua morte. No
entanto, Isaura Queiroz (1982, p. 66) aponta para o reconhecimento do herói-bandido, e nesse
bojo inclua-se o próprio Lampião, a partir da década de 1950, com Assis Chateaubriand,
fundador dos Diários Associados e da televisão brasileira, que criou e instituiu a Ordem do
Cangaço. Embora pareça irônico, a comenda era outorgada a brasileiros que dessem provas
de amor à pátria, ou a estrangeiros, porventura afeitos ao Brasil, e ainda a brasilianistas. É
esse nacionalismo urbano, no dizer de Queiroz (1982, p. 68), que faz com que um
aproveitamento do cangaço seja elemento positivo no que respeita à reflexão do nacional em
voga naquela década.
Os poetas populares, ao escreverem sobre o cangaço terminavam por apontar marcas
que por muito tempo foi realidade na história do espaço geográfico nordestino: a violência, a
morte banal, o assalto, o sequestro, não passaram incólumes aos cordéis. No entanto, esses
textos ultrapassaram as fronteiras do cangaço e fizeram a população, principalmente a
sertaneja, sofrer o carimbo genérico de ser tida como gente violenta e má, e em alguns casos,
conivente com os cangaceiros, como alegavam as forças nacionais e estaduais de segurança,
representadas na geografia do cangaço, pelas volantes, tão impetuosas quanto os cangaceiros.
O poeta popular, que sempre se autodenominou representante de seu povo, em algum
momento, no tempo do cangaço, segura e sabiamente, se tolheu de empreender abordagem
que soasse como apologia aos bandoleiros, mas não se permitiu também criticá-los.
Tomando-se por base o pós-cangaço, cordéis anticangaço, e principalmente, anti ou até pró-
Lampião passaram a ser publicados desde depois da chacina de Angicos, em Sergipe, até os
anos 1950 e de lá até os dias atuais.
A partir da década de 1950, surge uma nova visão política sob a bandeira do
desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek. A crença numa sociedade moderna se
construiria por um olhar para o crescimento industrial, mas também cultural e político
centrado em valorizar elementos identificadores da nacionalidade brasileira, mediante
manifestações do folclore e da cultura popular, agregados pelo pensamento universitário e
urbano de esquerda que manifestava ideais nacionalistas em contraposição às influências
estrangeiras, que já se configuravam e tiveram início no pós-guerra. Nesse caso, a
possibilidade se construir um mito da nacionalidade faz com que aquilo que se restringia a
possível mito de origem rural, tome-se urbano e abrangente. Cria-se o mito do cangaço como
uma forma não apenas de chocar a sociedade conservadora, mas de contestar essa mesma
85
sociedade em todos os aspectos: políticos, propriamente, econômico e cultural, e que se
voltava mais para a cultura estrangeira, do que para a nacional, oscilação que remete a certa
falta de identidade. Nesse período cultural e de tantas experimentações artísticas, a temática
do cangaço se dá em todas as linguagens de orientação urbana:
É também nessa década de 50 que se dissemina nas artes a utilização do tema do
cangaço – na pintura, na gravura, na literatura, no cinema, no teatro – numa
perspectiva em que ora se mesclam, ora se separam os temas dominantes do herói
humano e justiceiro e do nacionalismo. (QUEIROZ, 1966, p. 66)
Ao se tomar a ideia de assimilação do cangaço como temário acadêmico e artístico,
percebe-se que a postura intelectual e os estudos e análises desse fenômeno passam a encarnar
alguma dualidade. Tanto isso se dá que a designação para esse heroísmo ocorre segundo um
vocábulo que se forma a partir de um duplo que se opõe, embora para compor um único
campo semântico. O cangaceiro é um herói-bandido ou bandido-herói:
Dir-se-ia que, sob a mitologia dos bandidos-heróis, operava-se uma tomada de
consciência dos problemas mais cruciais da atualidade brasileira, efetuada pelas
elites intelectuais e artísticas e se inscrevendo nas diversas obras. Data também
desse período o interesse pelo estudo do cangaço por historiadores, antropólogos,
sociólogos, cujas interpretações também se orientam em uma ou em ambas as
direções. (QUEIROZ, p. 66)
Note-se que no Brasil os cangaceiros foram tidos como heróis, sem a negação da
marca do bandoleiro, pois a intenção dos intelectuais, nomeadamente, aqueles contrários aos
poderosos, foi a da valorização de seu aspecto heroico, uma vez que o que se buscava era uma
simbologia no mito da resistência a questões políticas que se estabeleceram e se instalaram
antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, período em que ditaduras se instituíram em
vários países. Além do mais, a disseminação do imperialismo norte-americano no pós-guerra
não deixou de ser uma ditadura econômica e cultural sobre vários povos, inclusive o
brasileiro, o que pesou também na escolha de um mito que fosse popular, nacional e,
consequentemente, autêntico.
Há, no entanto, entre os estudiosos do fenômeno do cangaço opiniões díspares: os que
viam nisso consequência de ordem política e social, com a manutenção da pobreza, da má
distribuição de renda e do não incentivo à educação, a exemplo de Rodrigues Carvalho para
quem “[...] [e]nquanto permanecer o sertanejo com a cabeça e o estômago vazios, queremos
dizer, ignorante e faminto, o banditismo florescerá” (RODRIGUES CARVALHO, 1961, p.
60) ou Rui Facó: “O cangaceiro e o fanático eram os pobres do campo que saíam de uma
apatia generalizada para as lutas que começavam a adquirir caráter social”. (FACÓ, 1972, p.
37). Para Câmara Cascudo: “Os cangaceiros são as figuras anormais que reúnem predicados
86
simpáticos ao sertão”. (CASCUDO, 1984, p. 164). E ainda: “Os cangaceiros são a horda
brava e rude, cavalaria frenética e primitiva até no processo de matar”. (CASCUDO, 1984, p.
165). Os exemplos acima são importantes para que se percebam os que enxergam o cangaço
como uma aventura pela aventura, os que veem no fenômeno o gosto pela pilhagem e pelo
roubo ou latrocínio como modos de enriquecimento ilícito e aqueles que veem no fato
questões mais profundas como aquelas de raízes políticas e sociais.
Notem-se, ainda, as contradições no tocante à questão específica de Virgulino
Ferreira: o mesmo Rodrigues de Carvalho que aponta o descaso político para com o sertanejo
“de cabeça e estômago vazios, ignorante e faminto” como sendo o motivo de florescimento
do banditismo, tem Lampião na conta de um dos piores bandidos do cangaço, sem querer ver
que o próprio Virgulino Ferreira é uma vítima do mesmo sistema a que Carvalho se refere:
Seguindo as ordens do novo mentor, [Lampião aqui assume a liderança do grupo de
Sinhô Pereira, que abandona a chefia e o cangaço] indivíduo aberrante, gênio do
mal que parece ter vindo ao mundo para flagelo do gênero humano, tiveram a mais
ampla liberdade de ação. Daí por diante coisas mais sérias iriam acontecer no
sertão. (RODRIGUES DE CARVALHO, 1961, p. 152).
Rodrigues de Carvalho (1961) com ironia amadora, pessoal e sem a racionalidade do
pesquisador afirma sobre Lampião e seu bando: “Se Cérbero tivesse dado um cochilo,
deixando os três portões do inferno à mercê dos pupilos de Satanás não teria sido pior.
Desenvolveu-se rapidamente a mais desenfreada indústria de latrocínio, com assassinatos e
atrocidades inomináveis” (p. 152). Quando trata do cangaço como fenômeno de origem social
e política, o mesmo estudioso se contradiz ao elevar outros chefes cangaceiros, como se,
guardadas as diferenças reservadas à personalidade de cada chefe, de cada cangaceiro, não
pudessem esses ser equiparados ao rei do cangaço em várias ações. É necessário notar o que
diz Carvalho a respeito de Antônio Silvino num quase misto de admiração em comparação
com o que pensa de Virgulino Ferreira:
A conduta de Antônio Silvino posta em cotejo com a de Lampião, oferece aquela
diferença existente entre a água e a creolina. O primeiro era um homem de coração
bem formado por congenialidade, a quem os azares da sorte jogaram na lama do
crime, sem, contudo reduzi-lo à degradação do delinquente profissional
propriamente dito. (RODRIGUES DE CARVALHO, 1961, p. 376)
Faz ainda o referido autor duas parcas linhas de elogio à vida pregressa de Lampião,
para atacar no mesmo texto:
[Lampião] também bom rapaz, honesto e trabalhador com toda a sua família, porém
até o dia em que rolava na sarjeta da criminalidade. Daí por diante foi como quem
despe a roupa de empréstimo, para vestir a que lhe fora talhada sob medida. Desde
que enveredou pela tortuosa senda do banditismo, Virgulino alijava por completo
todas as boas qualidades que aparentemente possuía, para surgir vesgo e sinistro, o
87
insensível, lúgubre, desalmado e hediondo sicário profissional que todos
conhecemos. Este sim matava por diversão, desonrava para humilhar, roubava por
cleptomania e jamais mostrou a menor parcela de arrependimento pelas desgraças
que protagonizava. (RODRIGUES DE CARVALHO, 1961, p. 376)
Desse modo, muitos teóricos e poetas passam a impressão de que, no maniqueísmo
reinante no microcosmo do cangaço, há os que optaram por fazer prevalecer o bem em
detrimento do mal e aqueles que escolheram somente o mal em prejuízo do bem, como se
houvesse maior ou menor criminalidade na escalada de violência do banditismo
cangaceiresco. O que há é uma justificativa que depende do grau de simpatia de quem se
dedica à temática, para abonar alguns do crivo do mal e açoitar outros como o verdadeiro mal,
sem a percepção de que, na verdade, o contexto em que vive Antônio Silvino e outros é o
mesmo de Lampião: o mal que todos praticaram nunca sobrepujará o bem. Criadores ou
inventores do universo dos cangaceiros primam por gerir um mito que seja conveniente com
seus pensamentos. Na verdade, o mal que todos praticaram e o bem que porventura vieram a
promover, sofrerão ambiguidades de pontos de vista, pois tudo dependerá das multifacetas
desses olhares.
O salto que sofreu o tema do cangaço, no entanto, se deu com estudiosos e
pesquisadores fizeram uma representação dos cangaceiros como mitos da nacionalidade,
segundo a onda de nacionalismo decorrente da construção de Brasília, da proposta de
Juscelino dos “cinquenta anos em cinco”, da instalação da indústria de automobilística, da
criação da SUDENE, da Petrobras, esta, ainda no segundo governo Vargas etc., tudo a
configurar a ideia de crescimento econômico e a elevar a esperança e autoestima do povo
brasileiro.
Ressalte-se que no nacionalismo de 1930, sobretudo no político, Lampião e seu grupo,
contrariamente, denotavam uma mancha e uma vergonha para a nação e representavam, como
os coronéis, atraso. Sob Vargas, os cangaceiros eram tidos como bandoleiros na acepção
completa da palavra, e nesse caso, tinham de ser eliminados. Destaque-se que a divulgação de
fotos e de curtas filmagem feitos pelo libanês Benjamin Abraão foi aceso o pavio para a
decretação do fim do cangaço pelo próprio governo Vargas.
Ao se voltar para os anos 1950, perceber-se-á que muitos autores, sob tantas
linguagens, trouxeram à tona o tema do cangaço, a exemplo de Lima Barreto, que leva ao
cinema o já tornado clássico O cangaceiro; José Lins do Rego lança Cangaceiros, afora
outros de seus livros em que essa temática aparece; João Guimarães Rosa torna público
Grande sertão: veredas; Ariano Suassuna, O auto da compadecida. Todos trazem idêntica
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proposta temática com vistas não só para a arte, mas à discussão e conscientização de suas
plateias.
Arraigados ao solo e por dele não saírem, embora levassem a vida como bandido e
salteadores perversos, os cangaceiros terminaram reconhecidos por seu apego a terra, à
cultura telúrica, aos costumes e usos de seu povo, o que resultou em motivo de observação de
estudiosos e literatos que viram no fenômeno do cangaço todo um quê de representação de
um nacionalismo real que aponta para o homem plantado em sua pátria. Remanescente de
uma “civilização do couro”, Lampião, que fora vaqueiro e almocreve, desde adolescente
confeccionava apetrechos de couro como chapéus, embornais, alpercata, perneiras, que usava
no bando, além de enfeitá-los com bordados de vistosa cor por ele, igualmente e com
habilidade, feitos. Os versos abaixo transcritos mostram como comportava Lampião antes de
ingressar no cangaço:
[...]
Foi amansar potros bravos ,
Correr atrás de zebu,
Domar outros animais,
Num gibão de couro cru,
Tornou-se o maior vaqueiro
Das terras do Pajeú.
Aprendeu a fazer selas,
Gibões, arreios, perneiras,
Chapéus de couro e alforges,
Embornais, atacadeiras,
Andava pelas cidades
Vendendo tudo nas feiras. (D’ALMEIDA FILHO, p. 4).
O poeta Antônio Américo narra, igualmente, as atividades do futuro cangaceiro:
Em uma escola primária
Ficou no ano terceiro.
Com doze anos de idade
Pra trabalhar de vaqueiro,
No sertão pernambucano
Foi seu trabalho primeiro.
Começou como vaqueiro
Aprendeu a fazer sela,
Chapéu de couro, arreios
Feitos de sola amarela,
Courona, gibão, perneira,
Pra vender em Vila bela.
E assim de feira em feira
O que fazia vendia,
Nas zonas do Pajeú,
Vendendo mercadoria,
Depois com tropas de burros
trabalhou na freguesia. (MEDEIROS, p. 3).
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O excerto seguinte dá a dimensão da busca dos intelectuais pela afirmação do cangaço
como representatividade heroica nacional. Percebe-se que há duas questões importantes para
o entendimento do cangaço pelo olhar intelectual: o posicionamento político em relação aos
que detêm o poder e uma ideia patente de nacionalismo não menos político, embora com a
visão empolgada do país que poderia dar certo:
A compreensão do cangaço se alargava para além dos limites de sua existência
efetiva, invadindo as paragens do imaginário e se enriquecendo com significados
múltiplos, que não pertenciam nem à sua origem, nem a toda sua vigência real.
Toda esta efabulação em torno do cangaço fora norteada, principalmente, por dois
parâmetros: a oposição de certos intelectuais contra as camadas dominantes e sua
representação, o governo; um sentimento nacionalista generalizado, que as
condições econômicas reforçavam. (QUEIROZ, 1982, pp. 66-67)
Há de se perceber que a resistência dos cangaceiros se deu em todos os aspectos: do
enfrentamento do sistema político, à obstinação em ombrear valentemente com a classe
dominante que os perseguia, até a busca pela natureza nordestina que, paradoxalmente, os
abrigava e lhes era temerosa, fatos que levaram os intelectuais a afirmá-los como heróis
nacionais.
Desde que o império do cangaço se acentuou no Nordeste brasileiro, em torno dele se
criou e intensificou uma canção de gesta local. Houve aquelas que lhes eram contemporâneas,
e as que vieram depois e se prolongaram até os dias atuais, num moto contínuo que prima por
urdir histórias de bravura: homens que não se entregavam e que lutavam armados ou não, até
o limite das forças e às últimas consequências.
Há exemplos típicos do cangaço, como os de José Leite de Santana, o Jararaca, que,
corajosamente e desamarrado, morreu nas mãos da polícia e não se dobrou: “Cavou sua
própria sepultura, distante das catacumbas dos cristãos. Os soldados deram-lhes dois tiros,
abreviando-lhe a morte” (OLIVEIRA, 1970, p. 169). Corisco, da mesma forma, não capitulou
diante das forças policiais: “[...] Zé Rufino avistou Corisco e disse: ‘Corisco, se entregue.
Garanto sua vida’. O chefe respondeu a bala. [...] Corisco, escolhendo um ‘santo lenho’ para
se apoiar, foi baleado pelas costas”. (OLIVEIRA, 1970, p. 359). O poeta Manuel D’Almeida
Filho narra o episódio vivido por Corisco em cordel:
[...]
O tenente Zé Rufino
Ficou mais enfurecido
Ao constatar que Corisco
À noite havia fugido
Em procura de outros portos,
Deixando os capangas mortos
E conduzindo o ferido.
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Sim, pois um rastro de sangue
O tenente descobriu
Como uma prova cabal
Que um bandido se feriu;
Seguiu a trilha bem cedo
Até perto do lajedo
Por onde o bandido sumiu.
Rastejando pelas pedras
Sem olhar marca nem lista,
Só perto do pôr do sol
Foi encontrada uma pista;
No vermelhão vespertino
A volante de Rufino
Perdia o bando de vista.
Porém o tenente agora,
Pelos soldados perdidos,
Tornou a perseguição
Incessante aos foragidos,
Sem ter descanso nem trégua,
Metro a metro, légua a légua,
Até pegar os bandidos.
Os soldados da volante
Três dias não descansaram
Até que no quarto dia
Os bandidos alcançaram;
Já sem panos para as mangas
Pelo ledo dos capangas
Só dois casais escaparam.
Foram Dadá e Corisco,
Rio Branco e sua amante
Que fugiram no escuro
Sem descansar um instante,
Sempre correndo abaixados,
Assim não foram notados
Pelos olhos da volante.
Corisco ia baleado,
Dadá fez-lhe um curativo
No braço ferido que
Tinha aspecto negativo,
Pois estava roxeado
Parecendo gangrenado,
Marcando um fim decisivo.
Queimando em febre, Corisco
Demorava na viagem,
Enquanto Dadá nas costas
Levava toda a bagagem;
O outro casal na hora
Os deixou em foi embora
Sem olhar camaradagem. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 28-29)
Prossegue o poeta com a narração do momento em que Corisco foi ferido, em
companhia apenas de Dadá, sua esposa – um casal que com eles estava decidiu deixá-los e
91
seguir caminho em fuga –. Combalido e fragilizado, o casal lança fora as armas pesadas para
adquirir mais mobilidade na caminhada tortuosa que ainda pretendia fazer. A fatalidade estava
em seu encalço:
Era chegado o momento
Do “salve-se quem puder”,
Pois quem quer mal para os outros
Recebe o mal que não quer;
Em crimes de grande monta
Era o ajuste de conta
De Corisco e da mulher.
Jogaram fora os fuzis,
Arma à vista não levavam
Para não causar suspeita
Nos lugares que passavam;
Só armas curtas num saco
Enrolados num casaco
Secretamente guardavam.
O casal numa fazenda
Pela precisão que tinha
Pediu arrancho e lhe deram
Numa casa de farinha,
Enquanto a volante dura
“lambendo uma rapadura”
Já perto da casa vinha.
Dada quando viu a tropa
Gritou: - Corisco, cuidado!
Porém o grito foi tarde:
Estava tudo cercado -
Corisco, como uma lebre,
O corpo queimando em febre,
Gemendo, desacordado.
Rapidamente a volante
Num ataque de surpresa
Metralhou o cangaceiro,
Que, como uma vela acesa,
Apagou-se numa rede
Em um canto da parede,
Sem um gesto de defesa.
Dadá ainda correu,
Porém um soldado viu,
Passou-lhe fogo num pé
Que ela, embolando caiu:
Depressa foi agarrada,
Com uma corda amarrada,
Desmaiou, não resistiu. (D’ALMEIDA FILHO, p. 29)
Outros tantos cangaceiros, destacados ou não, morreram, mas não se deram por
vencidos. Não há dúvida de que leitores, e principalmente ouvintes, dessas histórias passam a
admirar esses homens que não se entregaram nem omitiram seus ideais. Desse modo, pode-se
92
depreender que narrativas de lutas e valentia, de sangue e enfrentamentos corajosos povoaram
não somente o imaginário, mas, em muitos casos, a realidade social nordestina veiculada por
jornais, revistas e livros, meios mais comuns na época em que se vive o cangaço, além da
oralidade. De todas essas informações os poetas populares souberam aproveitar para terem
como subsidiar seus textos:
Entre os fatos mais falados
Pelas plagas do sertão,
Temos as grandes façanhas
Dos cabras de Lampião
Mostrando as quadras da vida
Do famoso capitão.
Em diversas reportagens
De revistas e jornais,
Com testemunhas idôneas,
Contando fatos reais,
Coligimos nesse livro
Lances sensacionais.
[...] São casos que ainda hoje
Não temos quem os conteste
Porque ficaram gravados
Nas entranhas do Nordeste
Com sangue, com ferro e fogo,
Como a maldição da peste.
Muito embora tenha havido
O sensacionalismo
Sobre os dramas sertanejos
Na era do na banditismo,
Nós apenas escrevemos
O lado do realismo. (D’ALMEIDA FILHO, p. 3)
Como já mencionado, sabe-se da existência de bandos no Nordeste desde o século
XVII, mas é somente no final do XIX que a região se vê tomada por verdadeiros grupos
armados como o bando de Antônio Silvino (do final do século XIX até 1914) e que pela
valentia e coragem foi elevado à condição de herói de sua época de atuação.
O poeta perpetua Antônio Silvino em escritos que tornam os leitores informados de
sua vida e simpatizantes de suas aventuras:
[...]
Leitores, eu vou contar-vos
A minha biografia;
Contar-vos que eu outrora
Não fui quem sou hoje em dia.
Fui homem muito pacato,
E sou uma fera bravia!...
Da minha vida de crimes
Nada vos ocultarei:
Tudo quanto tenho feito,
93
Vos juro que contarei;
Quero que o mundo saiba
Quem fui, quem sou, quem serei.
No ano mil oitocentos
E setenta e cinco nasci
No distrito de Afogados
de Ingazeira – onde cresci
Junto aos meus progenitores
Com quem criei-me e vivi.
[...]
Até os vinte e um anos
Vivi calmo e sossegado,
Desfrutando a mocidade
Como um sertanejo honrado
Porém nesta idade o crime
Quis me fazer desgraçado.
No ano mil e oitocentos
E noventa e seis (lembrado
Inda estou), em janeiro
Meu pai foi assassinado,
Por José Ramos da Silva
E um subdelegado.
O José Ramos foi preso
E pra casa de Detenção
Da capital do Estado
Desceu escoltado, então
Ficou o subdelegado
Sem a menor punição.
[...]
Vendo eu que a justiça
Procedia dessa sorte,
Resolvi então ir mesmo
Vingar de meu pai a morte;
Fez-se toda sociedade
Minha inimiga forte!...
Então me vi obrigado
A cingir a cartucheira...
E no mesmo ano, em junho,
Eu fiz a morte primeira;
Matando meu inimigo
- Manuel Ramos Cabaceira.
Foi somente pra vingar-me
Que fiz a primeira morte!
A polícia perseguiu-me...
Eu abracei a má sorte!...
Hoje em dia me conhecem
Pelo bravo herói do Norte! (BATISTA, pp. 1, 2-3)
Lampião, já no século XX, chega a ter mais de cem homens, divididos em subgrupos
liderados por lugares-tenentes de sua confiança.
94
[...]
Com as primeiras façanhas
Surgiram Lucas da Feira,
O Jesuíno Brilhante
E o malvado Cabeleira
O bravo Antônio Silvino
Com a sua cabroeira.
Porém o grupo maior
Que apareceu no sertão,
Com as maiores façanhas,
Dominando a região,
Foi sem dúvida comandado
Pelo estoico Lampião. (D’ALMEIDA FILHO, p.3)
Quanto a dividir o grupo em bandos, com seus respectivos comandantes, narra o
poeta: [...]
Daí até trinta e quatro,
Lampião viu-se apertado,
Corria de dia à noite,
Dentro do mato fechado,
Pra todo canto que ia
Só encontrava soldado.
Da Bahia a Alagoas,
Por Sergipe atravessando,
Para ver se descansava,
Um dia pegou o bando
E dividiu em três grupos
Cada um com um comando.
O comando de um grupo
Lampião deu a Corisco,
Foi dado outro a Moderno
Que topava qualquer risco,
Ele chefiava o último
Nas margens do S. Francisco.
Os grupos foram espalhados
Pelos lugares distantes
Que com os vários assaltos
Enlouqueciam as volantes
Ninguém não contava mais
Os Lampiões assaltantes.
Porque em um mesmo dia
Lugares eram atacados,
Com 30 ou 40 léguas,
De outros distanciados,
Em nome de Lampião
Eram os fatos consumados.
As tropas desordenadas
Quase nada conseguiam,
Os grupos tinham uns pontos
Aonde se reuniam,
Quando entre si os produtos
Dos assaltos repartiam. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 33-34)
95
Ao redor do fenômeno do cangaço se desenvolveu uma poética da literatura de cordel
que terminou por divulgar e popularizar as ações do cangaço, cujos atores tiveram a vida
registrada em folhetos e passaram a constituir tema recorrente, que, por seu turno, despertou
nos leitores/ouvintes da época em que se viveu o cangaço, ou depois, um interesse que se
estende por anos a fio e até nossos dias, o que sedimentou o mito daqueles que foram tão
intensamente parte da paisagem sertaneja nordestina que com ela se confundiam. Os poetas,
coevos ou não dos cangaceiros, souberam-lhes sempre a importância, e por esse motivo,
colocaram suas penas a rabiscar e a sulcar gestas que lhes perpetuaram as ações em meio ao
ensolarado sertão.
96
2.3. ANTÔNIO SILVINO, LAMPIÃO E OUTROS HERÓIS: OS FATOS, OS FEITOS, O
MÍTICO, O MÍSTICO
Cantarei meu canto no canto que entoa
Serei o encanto da imaginação
Terei nos baiões, nas cantigas e loas
Os sons e a proa da minha canção.
Do Rei do Baião cantarei o ensino
De um vão Virgulino serei Lampião
Moldado no barro de um rei Vitalino
Cantarei o hino e a voz do sertão.
(“O poeta cantador”, de Flávio Leandro)
É importante que se faça a distinção entre o jagunço e o cangaceiro para que se possa
delimitar o objeto de estudo. Embora possa vir a se tornar um cangaceiro, o jagunço está
ligado diretamente a uma espécie de segurança particular atrelada a um coronel e à guarda de
sua família. O serviço do jagunço é quase sempre trabalho pago. Tendo como sinonímia
capanga ou cabra, o jagunço oferece seus serviços de guardião e não age por conta própria.
Sempre às ordens, cumpre apenas mandados de terceiros, e por esse motivo não se pode
associá-lo, a princípio, aos cangaceiros que aterrorizaram a geografia do sertão nordestino por
algumas dezenas de anos.
Igualmente criminoso, o jagunço tem por obrigação vingar crimes familiares de seus
comandantes, intimidar e até matar inimigos políticos daqueles, lavar honras perdidas ou
ameaçadas. Como pagamento pode ter o dinheiro, o favor e a casa em redor da fazenda. Pode
vir a ser um quase agregado, e desse modo, é dependente direto do coronel, seu suserano.
Pode-se até afirmar ser esse tipo um cangaceiro potencial e, porventura, alguém que pode
ingressar ou integrar com o tempo as fileiras do cangaço. Seu preparo profissional de matador
e agente vingador permite isto, mas, a priori, esta não é uma realidade.
Há de se frisar ainda que nem sempre foi assim: o jagunço também já se inseriu, por
fanático, nas lides religiosas católico-populares como soldado na defesa militar de territórios
sagrados como aqueles capitaneados por Antônio Conselheiro e pelo padre Cícero, no final do
século XIX e começo do XX, respectivamente.
Guiados e fanatizados pelos seus mestres, e pelas causas em que acreditaram, mataram
e morreram. Essa admirável valentia é caminho, sem dúvida, para a violência, e a história
registra os fenômenos de Canudos em Juazeiro – BA, como dos episódios mais violentos da
realidade fanática brasileira. Defesa justificada em nome da crença e da fé, esses
acontecimentos geraram cenas perigosas e tão agressivas quanto aquelas patrocinadas por
coronéis e cangaceiros.
97
Não se pode deixar de declinar que nesses estados-maiores da história do fanatismo o
jagunço aprendeu a matar, se resignou a morrer, a saquear, a praticar a degola (legada pelas
forças oficiais ao sertanejo) e a perder o medo. Essa violência e destemor foram aprendidos
no terreiro dos coronéis, que prometiam tantas benesses quanto fossem necessários os
trabalhos a serem cumpridos, ou sob as barbas de líderes espirituais, e nesse caso, segundo a
crença em promessas de amparo, assistência e proteção social que o Estado sempre negara,
além da iminência do milagre, da cura e da vida eterna que amainam os sofrimentos na terra.
Se dispensados de seus préstimos pelos seus senhores feudais ou ao verem seus líderes
tombarem, como em Canudos, a saída podia ser outras fazendas e outros senhores a quem
pudessem oferecer seus serviços. Havia também o prestar serviço como vaqueiro ou o
espinhoso caminho do cangaço. Era o que restava.
Fiéis a seus chefes ou líderes, os jagunços vão até o esgotamento na defesa dos feudos
a que pertencem: sejam os seculares, como as fazendas e seus coronéis, ou religiosos. Nesses
últimos, se tornam verdadeiros Carlos Magnos na defesa da fé como ocorreu em Canudos, na
Bahia ou em Juazeiro, no Ceará. A propósito do Ceará, jagunços em 1912 e sob as bênçãos do
padre Cícero lutaram até as últimas consequências em movimento político-religioso
conhecido como Sedição do Juazeiro, na defesa não somente do solo religioso do padre, mas
debaixo do manto da fé, dos ideais políticos que o padrinho nutria. Para jagunços, se o
movimento envolve o padre Cícero Romão Batista, a causa é cristã e de redenção messiânica.
Caldas Aulete (apud CASCUDO, 1998) dava conta de que o termo jagunço “é
brasileirismo e, portanto, vocábulo popular que ocorre na região da Bahia” (p. 468). Para
Câmara Cascudo, o vocábulo pode ter “se espalhado por todo o Brasil com o movimento
fanático de Canudos. É sinônimo de valente, decidido e fanático, o que atesta a ideia de que,
apesar dos crimes e da violência que pratica o jagunço não pode ser confundido com o
cangaceiro”.
Outro estudioso da cultura popular brasileira, Beurrepaire Rouhan (apud CASCUDO,
1998), diz ser o jagunço “guarda-costas de políticos, fazendeiros, senhores de engenhos,
peculiar à Bahia” (p. 468), o que lembra não somente os grandes latifúndios presentes naquele
estado, como os inúmeros aglomerados de famílias poderosas, e o próprio movimento
fanático do século XIX às margens do Rio Vasa-Barris ainda na Bahia. Todos, das poderosas
famílias, ao movimento fanático, têm o jagunço como agregado.
A prática do jaguncismo, porém, rompe as fronteiras baianas e atinge o Ceará,
Pernambuco, Paraíba e outros estados do Nordeste, pois em todos eles há o político-coronel, o
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fazendeiro e o senhor de engenho potentados e ferrenhos inimigos em lutas políticas e por
posse de terras. Envolvidos em crimes de honra ou vinganças familiares, todos precisam dos
préstimos do jagunço.
Necessário lembrar que o catolicismo popular e fanático do sertão nordestino, que
sempre termina em questão de ordem política, é ambiente propício à atuação e à coragem do
jagunço.
Ainda que do ponto de vista etimológico, jagunço é uma espécie de chuço, pau-
ferrado, haste de madeira com ponta de ferro aguçado, arma de ataque e defesa, popular
especialmente na Bahia e Pernambuco (CASCUDO, 1998, p. 468), por associação semântica,
jagunço é aquele que maneja com destreza uma arma pessoal. Nesse caso, é ter o domínio
profissional dessa arma com o fim de matar, mas também pode revelar o camponês que luta
na defesa de sua terra, de sua família, de seus ideais.
Para que possamos compreender essa diferença entre jagunço e cangaceiro, atentemos
no que discorre a esse respeito Euclides da Cunha:
O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais
perigoso; é mais forte; é mais duro.
Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito
firme de destruí-lo, seja como for. (CUNHA, 1995, p. 125).
Euclides da Cunha compara o gaúcho com o tipo nordestino que em nada lembra o
herói que o imaginário cria. Apesar de suas considerações, de certo modo, preconceituosas,
como a afirmativa de que o sertanejo é antes de tudo um forte, segue o autor fluminense com
o elogio às avessas: “[...] A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o
contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das
organizações atléticas”. (CUNHA, 1995, p. 118). No entanto, sua conclusão entre o homem
nordestino e o do Sul é idêntica à que estabelece com relação a esse mesmo nordestino
sertanejo e o da mesma região, porém litorâneo. Frente ao habitante dos pampas, o homem do
Nordeste termina por apresentar mais coragem, talvez pelo motivo de dispor de menos
recursos no enfrentamento das adversidades, o que torna necessárias agilidade e valentia no
ataque e na defesa. A comparação se faz da seguinte forma:
[...] o gaúcho, vencido ou pulseado, é fragílimo nas aperturas e de uma situação
inferior ou indecisa.
O jagunço, não. Recua. Mas no correr é mais temeroso ainda. É um negaciar
demoníaco. O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da
espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias. (CUNHA,
1995, p. 125).
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Embora a comparação de Euclides da Cunha seja entre o gaúcho e o jagunço
conselheirista, este último em luta por uma causa coletiva, o perfil que dele se tem é
justamente o do homem serviçal, aparentemente humilde, mas perigoso ao mesmo tempo,
pois age com espírito que tanto faz enfrentar sem medo seu protetor ou senhor como por ele
pode morrer. Com o tempo, jagunço passa a ser termo que remete ao bandido assalariado que
constitui a imagem do destemor e da astúcia, mas sempre sob o contrato, pois em situação
pacífica nunca executa alguém por conta própria.
Levando-se em conta as informações acima, é fácil perceber por que a imagem do
jagunço para o povo nunca refletirá aquela que se tem de um herói, pois seu trabalho passa a
ser compreendido como outro qualquer. Sua condição de prestador de serviços pode ser
comparada à qualquer atividade de trabalho. O cangaceiro, ao contrário, age livremente, com
independência, a circular de um lado para outro sem prestar contas a ninguém. O que pode
haver é algum diálogo de interesse mútuo com aliados, mas sempre com desconfiança
bilateral. A percepção popular distingue o jagunço do cangaceiro e, num misto de temor e
admiração, vê no segundo, paradoxalmente, um paladino e, no primeiro, um covarde, pois,
apesar de ambos serem criminosos, o agir do jagunço nunca será equiparado ao do cangaceiro
devido à sua natureza traidora.
Como apontado anteriormente, o jagunço pode vir a ingressar nas hordas cangaceiras,
pois, ao trabalhar sob encomenda pode, em algum momento, ter escasseados os seus serviços
ou até perdido terreno de sua atuação, e nesse caso, a opção pelo cangaço não seria
descartada. Todavia, a lógica do cangaço não aceita de bom grado esse elemento, pois sua
atuação anterior junto a poderosos pode representar perigo a olhos vistos, uma vez que estará
fatalmente associado aos olheiros ou o que o valha, tão comuns no contexto dos inimigos do
cangaço, e, desse modo, sua cota de participação no bando será tida como a de possível
informante de forças volantes ou de coronéis inimigos. Detectado o espião, a morte será certa.
Quanto ao sertanejo fanático, ligado a movimentos religiosos populares de santos e
profetas demiurgos de um Nordeste ainda arcaico, crente e farto de carências sociais, políticas
e até religiosas, será de bom alvitre declinar como sua valentia se dá na defesa de suas Mecas
sertanejas, ao ponto de aceitar ser identificado com um tipo a que antes não cogitava, talvez,
se deixar comparar, o de jagunço:
Lá [Canudos] se firmou um regime modelado pela religiosidade do apóstolo
extravagante [...]
Canudos estereotipava o fácies dúbio dos simples agrupamentos bárbaros.
O sertanejo simples transformava-se, penetrando-o, no fanatismo destemeroso e
bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então
100
consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e
saqueadores de cidades – jagunços. (CUNHA, 1995, p. 192)
Deve-se entender que esse sertanejo simples, no dizer de Euclides da Cunha, na
verdade, não apresentava ou não tinha nenhuma índole para o mal. Pacato, torna-se ou
tornam-no jagunço na defesa de si e na de sua crença, de seu mestre e do arraial ou reduto que
ajudam a construir. Sua fé em dias melhores faz com que, esperançoso, lute em prol de uma
causa para ele nobre. Defender o Conselheiro era, na prática, defender toda a comunidade
com ideias e práticas dignas de uma sociedade que organizava a comum tarefa de dividir o
pão e a fé, a arma e a luta, na ordem e no respeito ao próximo, ao contrário daquilo a que
Euclides da Cunha nomina ironicamente de Urbs monstruosa.
O interesse desse jagunço não é particular, mas incide diretamente na comunidade.
Não se trata de um criminoso apto a matar e ser pago para isso, mas de alguém que na ânsia
de uma vida melhor leva adiante as últimas consequências em torno do Arraial de Canudos.
Em luta, mata e morre por essa coletividade. Canudos é a luta ideal do Conselheiro, que
jamais pegou em armas, e de todos os que passam a frequentá-la. É essa psicose coletiva que
torna o jagunço fanático, o que o difere do criminoso profissional.
Pode-se a princípio afirmar que o jagunço fanático não seria um criminoso, mas
alguém que como qualquer discípulo acredita na prédica de seu mestre e, por esse ideal e por
essa esperança messiânica, mata e morre. O jaguncismo de Canudos explica-se mediante, e
principalmente, por uma causa nobre disseminada por seu líder: o paraíso na terra seca, a luta
por uma vida melhor, o resgate da alma sofrida. Paraíso presente, Canudos representa a
conquista, passo a passo, do território de Deus em solo seco, a Terra Prometida há milênios
esperança de hebreus, e, posteriormente, da cristandade.
Lutar, para, ainda na terra, alcançar esse lugar de delícias, o paraíso bíblico, a
Cocanha medieval, vale a pena para a multidão de desvalidos da cristandade popular
sertaneja. Lutar pela Canaã rústica dos sonhos de Conselheiro e de seus crentes é ter nas
armas a defesa de um paraíso conquistado em pleno sertão nordestino, e é, além disso, ter a
posterior senha de entrada para o cruzamento da soleira de um Éden a ser reconquistado.
Defender Antônio Conselheiro é, com efeito, uma garantia para que o céu seja
alcançado e, dessa forma, esse homem simples termina por cometer o crime que talvez em
outra situação nunca viesse a cometer, mas o que vale nesse envolvimento com a morte é a
vida futura: o paraíso. Por esse motivo, o jagunço fanatizado passa a ser mais temido do que
aquele que presta serviços sob encomenda, pois enquanto este age em troca de moeda, aquele
101
mata ou morre por promessas de paraísos e canaãs, o que representa colocar fagulhas
próximas a barris de pólvora. A promessa de ascensão dos desvalidos ao paraíso é
infinitamente mais perigosa do que a imediata ascensão pelo dinheiro, pois esta, apesar de
mais concreta, é mais difícil de se tornar realidade, enquanto aquela se torna realidade pela
crença e pela fé. Movido por isso, o indivíduo está disposto tanto a matar como a morrer. É
isso que instiga o fanatismo.
No sertão de Antônio Vicente Mendes Maciel é assim: o homem aparentemente
desgracioso, desengonçado, torto “[...] transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos
relevos, novas linhas na estatura e no gesto” (CUNHA, 1995, pp. 118-119), se uma situação
nova e principalmente inusitada, como é o caso de Canudos, lhe aparece. O Hércules
abandona o Quasímodo de que falara Euclides e surge de chofre o jagunço forte, destemido,
destinado. E o inimaginável acontece.
Para sustentarmos ainda uma vez a diferença entre jagunços ou capangas e
cangaceiros, podemos ver como opina Rui Facó ao assinalar as hordas a serviço de coronéis
cujos feudos se estendem até os anos 30 do século passado:
Aí está o capanga e sua sede – a grande propriedade territorial; o seu comando: o
chefe local, o coronel fazendeiro ou o dono de garimpos.
Estes exércitos mobilizados a serviço dos coronéis do interior não são de
cangaceiros, são de capangas ou de cabras. Homens a soldo, pistoleiros, matadores
profissionais. (FACÓ, 1972, p. 56)
O jagunço ou capanga é de tamanha dependência a um coronel, que, como homem pago,
afilhado ou agregado, em seu encalço há sempre outro igual bandido a lhe dar ordens,
desconfiado, mas ciente, um e outro, de que nada pode deixar de se cumprir, pois a ordem
vem, de fato, do coronel. Rezar por essa cartilha é a maneira de se manter. Ainda viver sob o
teto da casa grande é tirar daí o seu sustento e de sua família, mediante outras atividades:
Não importa que no intervalo entre um assalto à propriedade e a execução de um
crime de morte de algum desafeto do coronel, o capanga esteja vaquejando o gado
ou plantando um roçado. Fazia-o comumente.
Sua dependência econômica e social em relação ao grande proprietário, o
avassalamento da economia seminatural, a falta de terras para a pequena
propriedade, tornavam-no um semisservo que deveria obedecer, sem discutir, as
ordens do patrão, cumprir todas as suas vontades, executar os crimes mais hediondos
por eles ordenados. (FACÓ, 1972, p. 56)
Essa vida é de certa ou total dependência, e quiçá, de tormentas, protagonizadas por
jagunços ou capangas e cabras, em subserviência cega e impensada, dispostos a tudo em
nome do senhor de engenho, do coronel ou do patrão.
102
O cangaceiro, diferentemente do jagunço, apresentava vida independente, caminhava
livre nos territórios de sua atuação, não tinha apego a lugar algum, não tinha patrão e
teoricamente não se atrelava a coronéis ou fazendeiros, embora com estes mantivessem algum
laço de camaradagem, por necessidade mútua.
Para o povo, no entanto, entre escolher cangaceiros e coronéis, (sempre senhores de
terras, chamados também de “coronéis de barranco”), a preferência, devido à valentia e ao
heroísmo, recaía nos bandidos. Mandatários locais, os coronéis representavam chefes de clãs e
figuravam como grandes senhores “feudais” que massacravam o próprio povo e os seus
comandados, os jagunços. Desse modo, ao se buscar um referencial da terra, o cangaceiro
representava para o povo a busca de alguém que fosse o sumo de seus desejos e esperanças,
pois seus traços de valentia, no embate com os que simbolizam a opressão, os tornavam
heróis.
Não há como ver no tirano um herói, e os coronéis eram esses déspotas, embora
fossem igualmente corajosos no enfrentamento das lutas de seu dia a dia, inclusive contra
grupos de cangaceiros, que não deixam de ser como os coronéis, impiedosos. O que os
diferencia ainda, ao que parece, é que os cangaceiros, por sua mobilidade, e por serem livres,
transmitem ao povo a esperança e certo ideal de liberdade, sem fugir à luta no enfrentamento
das volantes, de outros grupos armados por coronéis, mas se protegendo e aos companheiros,
até que o inimigo dê trégua ou empreenda a retirada. A narração que segue mostra a luta do
bando de Lampião com Clementino Furtado e seu grupo, além da injustiça com que esse age,
a oprimir o homem do povo para dar conta do paradeiro de Virgulino. No texto, se vê a
grandeza do capitão e dos homens a seu comando, em detrimento da personalidade do
sargento, a quem o poeta trata com perceptível ironia:
[...]
O Clementino Furtado,
Fazendeiro do sertão
Sentou praça na polícia
Para pegar Lampião
Recebeu logo as divisas
De sargento, o valentão.
O sargento certo dia
Deitou mão a um coiteiro
Ameaçando matá-lo
Na boca do granadeiro
Para que ele revelasse
Onde estava o cangaceiro.
O coiteiro respondeu
Como na vida passava:
Tinha uns barrigudinhos
103
E tudo quanto ganhava,
Na venda dumas miçangas
Nem para a boia não dava.
Enquanto isso o sargento
Todo o seu corpo riscava
De punhal, e ele vendo
Que a morte se aproximava
Resolveu levá-lo até
Onde Lampião estava.
Na Serra da Baixa Verde
Lampião tava acoitado
Dentro dum rancho de palha
Com os cabras descansado,
Sem esperar nem por sonho
Que ia ser atacado.
O sargento fez o cerco,
Preparou os seus soldados,
Depois mandou chover balas,
Quase por todos os lados,
Os cabras surpreendidos
Acordaram atordoados.
Lançaram-se à retaguarda
Enfrentando os atacantes,
Fugindo e contra-atacando,
Em manobras fulminantes,
Tentando romper o cerco
Dos soldados vigilantes.
O fuzil de Lampião
Na luta não tinha falha,
Da boca saía fogo
Parecendo uma fornalha
Ou uma metralhadora
Descarregando a metralha.
Lampião era ligeiro
E corajoso também,
No carrego e na descarga
Ele manobrava bem,
Se um cabra dava dez tiros
Ele dava mais de cem. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 8-9)
Não obstante a condição de bandido, o cangaceiro pode representar o povo por se
tornar referencial de destemor. Para o imaginário popular, quase sempre seu herói enfrenta,
com número desigual de combatentes e de armas, os poderosos locais (coronéis desafetos,
fazendeiros, comerciantes, prefeitos, juízes), todos, em posição superior, por disporem de
apoio do estado e terem o auxílio das volantes. Duelar com as forças do governo e vencer (em
diversas ocasiões) é ter como certa a entrada para o panteão dos heróis populares. Ainda que
envolvido no mundo do crime, o cangaceiro, por sua intrepidez, é motivo de honra no
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universo em que vive e atua, e isso ocorre, porque, como parte integrante de seu microcosmo
e em qualquer época, o homem necessita de mitos que lhe sirvam de arquétipo. Homem do
sertão, o cangaceiro será esse referencial, pois está sempre apto a ir de encontro ao
estabelecido, a enfrentar as forças políticas organizadas, a tomar parte de rebelião espontânea,
voluntária, em nome de algo comum: a honra. Não tipificam os cangaceiros as lutas políticas.
Não há chefes de bando que lutaram, por exemplo, em prol de causas político-sociais, ou pelo
bem-estar do povo, porém, lutar contra as injustiças dos coronéis é erguer bandeira que
equivale à própria justiça social:
[...]
Criou o homem o chicote
Infernalmente inclemente
Para corrigir o erro
Do sujeito intransigente
Lampião foi um chicote
De Deus em forma de gente.
Nunca se viu englobados
Num só vivente mortal
Tanta sede de grandeza,
Nunca sanha tão brutal,
O sentimento selvagem
Bruto do bem e do mal.
[...]
Os coronéis mais valentes,
Os políticos mais ousados,
O juiz mais arrogante,
Os mais cruéis delegados
Na frente de Lampião
Ficavam paralizados. (SILVA, pp. 18 e 22)
Era essa a sensação de justiça que o povo via nesses homens, apesar do maniqueísmo
apresentado pelo poeta hodierno Gonçalo Ferreira da Silva.
Em outro momento, a narrativa popular mostra a valentia dos cangaceiros e motiva seu
heroísmo diante do povo em face da capacidade que mantinham de serem fiéis aos
companheiros e por eles arriscarem a vida. Nessa mesma luta entre o grupo de Lampião e a
polícia de Clementino Furtado, caso importante de fidelidade ocorre, e o poeta cristaliza:
[...]
Durava já duas horas
Essa luta sem cessar,
Lampião foi dar um salto
mas no pulo deu azar
pois recebeu uma bala
no esquerdo calcanhar.
Caiu atrás duma pedra
Porém um cabra leal
105
Que estava acostumado
Extrair bala a punhal
Correu logo em seu auxílio
Mas teve a sorte fatal.
[...] Com a bala no calcanhar
Lampião foi capengando
Caiu a uns cinquenta metros
E ficou lá esperando...
Enquanto Livino, só
A batalha ia aguentando.
Frente a frente com a tropa
De Clementino Furtado
Nesse instante Meia-Noite
Um negro desassombrado
Pôde fugir conduzindo
Lampião no seu costado (D’ALMEIDA FILHO, p. 9)
Nesse episódio, percebe-se a valentia não só do chefe dos cangaceiros, mas de Livino
Ferreira, seu irmão, que sustentou sozinho o comando da luta, além do cangaceiro Meia-
Noite, que, sem assombro algum, se arriscou, e, em meio ao fogo cerrado, não temeu a tropa
do sargento Clementino, na ânsia de salvar a vida de Lampião. A passagem se assemelha a
um dos cantos da Eneida, de Virgílio, quando da fuga de Eneias com os seus, diante do
incêndio de Troia:
Havia dito e já ao longo das muralhas se ouvia mais nitidamente o crepitar do fogo e
o incêndio rola turbilhões perto de nós. Adiante, pois! Vamos, caro pai sobe para
as nossas costas: eu te levarei nas minhas espáduas, e esse fardo não será pesado.
Ocorra o que ocorrer, haverá para nós dois um só e comum perigo, uma só salvação
[...]. (VIRGÍLIO, s/d. Canto II)
Um dos mais belos versos da Eneida, os passos acima representam a força conjunta e a
proposta de que a luta é de todos e a salvação ou o perigo a todos pertencem. O poeta popular
mostrou essa grandeza dos cangaceiros como forma de consagração legítima do herói, o que
leva à conclusão de que atos heroicos atravessam a história da humanidade e de que não
importam os olhares: o erudito ou o popular dirão da grandeza humana e o homem se faz
grande se suas ações não forem pequenas.
Outro fator que dá caráter heroico aos cangaceiros é o da coragem aliada à luta em
meio hostil como o enfrentamento da natureza e sua exuberância – espaço inclusive, propício
a emboscadas –, da fome, da sede, do desprendimento da vida sedentária, em função da
nômade, o constante embate com as forças policiais, aparelhos do Estado, o ininterrupto
avizinhar da morte tanto no tocante à polícia quanto no que respeita ao bruto refúgio da
natureza e o perigo que esta também representava:
106
[...]
Quatro estados reunidos
Tratam de me perseguir,
Julgam que não devo ter
O direito de existir,
Porém enquanto houver mato,
Eu posso me escapulir.
Eu ganhando essas serras,
Não temo alguém me pegar
Ainda sendo um que pegue,
Uma piaba no mar,
Um veado em mata virgem
E uma mosca no ar.
Eu já sei como se passa
Cinco dias sem comer,
Quatro noites sem dormir,
Um mês sem água beber,
Conheço as furnas onde durmo
Uma noite se chover.
Uma semana de fome,
Não me faz precipitar,
Mato cinco ou seis calangos
Boto no sol a secar,
Quatro ou cinco lagartixas,
Dão muito bem um jantar.
Eu passei mais de um mês
Numa montanha escondido,
Um rapaz meu companheiro
Foi pela onça comido,
Por essa também
Eu fui muito perseguido.
Era um lugar esquisito,
Nem passarinho cantava!…
Apenas à meia noite
Uma coruja piava,
Então uma grande onça,
De mim não se descuidava.
Havia muito mocós,
Eu não podia os matar,
Andava tropa na serra
Dia e noite a me caçar,
No estampido do tiro
Era fácil alguém me achar.
Passava-se uma semana
Que nada ali eu comia,
Eu matava algum calangro
Que por perto aparecia
Botava-os na pedra quente
Quando secava eu comia.
Quando apertava-me a sede
107
Pegava a croa de frade
Tirava o miolo dela
Chupava aquela umidade
Lá eu conheci o peso
Da mão da necessidade.
Um dia que a tropa andava
Na serra me procurando
Viram que um grande tigre,
Estava em frente os emboscando
Um dos oficiais disse:
Estamos nos arriscando.
E o Antonio Silvino
Não anda neste lugar,
Se ele andasse, aquela onça
Havia de se espantar,
Eu estava perto deles,
Ouvindo tudo falar.
Ali desceu toda a tropa,
Não demoraram um momento,
Um soldado que trazia
Um saco de mantimento,
Por minha felicidade
Deixou-o por esquecimento.
Eu estava dentro do mato,
Vi quando a tropa desceu
O tigre soltou um urro,
Que o tenente estremeceu
Até a borracha d’água
Uma das praças perdeu.
Quando eu vi que a tropa ia
Já n’uma grande lonjura,
Fui, apanhei a mochila,
Achei carne e rapadura,
Farinha queijo e café,
Aí chegou-me a fartura.
Achei a borracha d’água
Matei a sede que tinha,
A carne já estava assada,
Fiz um pirão de farinha
Enchi a barriga e disse:
Deus te dê fortuna, oncinha.
Porque a tua presença,
Fez toda a força ir embora,
O ronco que tu soltasses,
encheu-me a barriga agora,
Eu com a sede que estava,
Não durava meia hora.
E é agora o que faço,
Havendo perseguição,
Procuro uma gruta assim
E lá faço habitação,
108
Só levo lá, um, dous rifles
E o saco de munição.
[...]
Pode ter muita coragem
Ser bem ligeiro e valente,
Mas vamos ver suporta
Passar três dias doente,
Com sede de estalar beiço
E fome de serrar dente.
Se não tiver natureza
De comer calango cru,
Passe um mês sem beber água
Chupando mandacaru,
Dormir em furna de pedra
Onde só veja tatu.
Não podendo fazer isso,
Nem pense em ser cangaceiro,
Que é como um cavalo magro
Quando cai no atoleiro,
Ou um boi estropiado
Perseguido do vaqueiro.
Há de ouvir como cachorro,
Ter faro como veado,
Ser mais sutil do que onça,
Maldoso e desconfiado,
Respeitar bem as famílias,
Comer com muito cuidado.
Andar em qualquer lugar
Como quem está no perigo,
Se for chefe de algum grupo
Ninguém dormirá consigo,
O próprio irmão que tiver,
O tenha como inimigo.
O cangaceiro sagaz
Não se confia em ninguém,
Não diz para onde vai,
Nem ao próprio pai se tem,
Se exercitar bem nas armas,
Pular muito e correr bem.
Em meu grupo tem entrado
Cabra de muita coragem,
Mas acha logo o perigo
E encontra a desvantagem
Foge do meio do caminho,
Não bota o meio da viagem.
Porque andar vinte léguas
Isso não é brincadeira,
E romper mato fechado,
Subir por pedra e ladeira,
Como eu já tenho feito,
Não é lá cousa maneira.
109
Pegar cobra como eu pego
Quando ela quer me morder,
Cascavel com sete palmos,
Só se Deus o proteger,
Mas eu pego quatro ou cinco
E solto-a, deixo-a viver. (BARROS, pp. 11-14 e 16-17).
A condição de fora da lei e a resistência às autoridades, com quem o povo não se
identifica, dão aos cangaceiros aparato suficiente para que, no imaginário popular, se tornem
heróis absolutos resultantes do surgimento do elemento mítico que permeia a história do
cangaço:
Quando eu vou dar um ataque
Meu pessoal não cochila
Se encontra um batalhão
Aquartelado na vila
Entro sorrindo no jogo
Para ver no fim do fogo
Quem tem roupa na mochila.
O cangaceiro valente
Nunca se rende a soldado
Melhor é morrer na bala
Com o corpo cravejado
De que render-se à prisão
Para descer do sertão
Preso e desmoralizado. (ATAÍDE, p. 1)
No final do século XIX, Sílvio Romero já indicava o meio e o imaginário do cangaço.
Sua plausível justificativa esclarece a afeição do povo e do poeta ou de uma poesia anônima,
da seguinte forma:
Os sertanejos, em cujos centros floresce o banditismo, conhece-lhe os tipos
principais, que se distinguem por suas façanhas.
É por isso que nosso cancioneiro é tão rico em xácaras encomiadoras de bandidos e
facínoras, como Lucas da Feira, o José do Vale, o Cabeleira e outros assim. (ROMERO, 1980, p. 167)
O sertanejo, em busca de referência que justifique uma mítica local, procura eleger o
herói que determine essa afirmação telúrica. Ao identificar em um elemento de sua paisagem
o homem que detenha as qualidades do herói, a consagração se faz. Ao que se observa, não
importam para o sertanejo as atitudes pregressas de quem foi escolhido como referencial
heroico: valem as ações desse homem-bandido-herói. Viver em meio adverso, enfrentar
lances marcantes para a sobrevivência, se confrontar com escudados coronéis, com famílias
tradicionais e suas armas, afrontar poderosos eleva o homem do cangaço a cenário heroico e,
desse modo, vem com ele o molde de homem invencível e inquebrável como os heróis de
110
qualquer época da humanidade, segundo seus mitos mais profundos e primordiais. Por essa
razão, se faz pertinente aplicar-se aos que vivenciaram o mundo do cangaço aquilo que
representa o pensamento do próprio homem em relação ao herói, numa síntese sustentada por
Joseph Campbell:
O herói é o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas
pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias
e aspirações dessas pessoas vêm das fontes primárias da vida e do pensamento
humanos. (CAMPBELL, 2007, p.28)
É certo que a concepção do herói moderno difere do que se cogita do olhar grego e
convencional. No entanto, entende-se que um ideal de herói remete sempre ao universal e ao
atemporal, uma vez guardado o legado essencial do conceito. Desse modo, o personagem
heroico se fará presente em qualquer instância humana, independentemente do tempo
histórico, da cultura, do espaço em que esteja inserido e de sua representação. Campbell
fundamente e esclarece essa questão ao tratar do herói na modernidade e ao conceber sua
permanência no tempo:
O herói morreu com o homem moderno; mas, como homem eterno – aperfeiçoado,
não específico e universal – renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por
conseguinte retornar ao nosso meio transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada
que aprendeu. (CAMPBELL, 2007, p. 28)
O cangaceiro, como qualquer herói, tinha consciência da morte iminente, mas lutava
até as últimas consequências. Entregar-se, capitular, era a maior afronta e a pior das provas de
covardia. Dificilmente há notícias de cangaceiro que tenha abandonado a carreira, mesmo que
se possa entrever em sua luta proposta de foro pessoal, como a simples vingança, por motivo
vário ou até pela ânsia de enriquecimento, no entanto, mais do que isso, a fama do cangaceiro
está em seus atos heroicos, como bem descreve Gonçalo Ferreira da Silva ao trazer em versos
e justificar a vida de Corisco:
O desnível social
Provocava o desordeiro
Porque este via no rico
Não um senhor fazendeiro
Mas um desavergonhado
E metido a posseiro.
Corisco em sua vida curta
Endiabrado viveu
Sanguinolento, indomável,
Herói que nunca se deu
Por vencido e como herói
Que não se entrega, morreu. (SILVA, p. 32)
111
Por uma ótica de natureza política de esquerda e pelo viés de uma orientação
igualmente de esquerda, o fenômeno cangaço é abordado pela arte como algo que ocorre
como grito por justiça em nome dos desvalidos do estado, e, principalmente, a partir de um
olhar que se desenvolve dos anos até nossos dias:
No caso do Nordeste, sua mitologia, instituída por toda uma produção
tradicionalista ou oligárquica, será agenciada, a partir da década de trinta, pelo
discurso de intelectuais tanto ligados à esquerda como a setores burgueses da
sociedade, e submetidos a um tratamento acadêmico ou artístico, direcionado por
estratégias e demandas de poder diferenciadas. O mesmo cangaceiro que era visto
pelos tradicionalistas como o justiceiro dos pobres, como homem integrado a uma
sociedade tradicional e que se rebelava por ser vítima da sociedade burguesa,
tornar-se-á, no discurso e obras artísticas intelectuais ligadas à esquerda, um
testemunho da capacidade de revolta das camadas populares e símbolo da injustiça
da sociedade burguesa, ou uma prova da falta de consciência política dos
dominados, uma rebeldia primitiva e mal orientada, individualista e anárquica. (ALBUQUERQUE JR, 1999, p. 193-194)
O povo, no entanto, não pensa dessa forma: na verdade, quer heróis. Identificar no
cangaço elementos que o representem é algo indispensável. No ambiente dos menos
favorecidos, tentar encontrar fatos grandiosos nos cangaceiros é adequar às suas necessidades
e agonia alguém que, embora nada traga de concretude como o pão e a justiça, traga, pelo
menos, para amaciar-lhe o ego, o enfrentamento aos que os oprimem com arbitrariedade. Se
no confronto com aqueles, os cangaceiros não se abalam, o povo, igualmente, não se abala.
Pode-se afirmar, portanto, que o legendário, o mítico é criação mesma do povo que se vê e se
quer bem representado.
Na narrativa de ficção, fica clara a fala do mestre Zé Amaro em Fogo morto, quando
se faz presente a mítica do cangaceiro como combatente dos potentados coronéis, em favor do
povo:
[...] Aquele Lula de Holanda, sem que nem mais, mandava que ele se fosse de uma
casa que o pai levantara. Anos e anos perdidos. E Manuel de Úrsula vinha lhe falar
em direito. Pobre não tinha direito. Quem sabia dar direito aos pobres era o capitão,
era Jesuíno Brilhante, era o cangaço que vingava, que arrasava um safado como
Quinca Napoleão. (REGO, 1990, p. 198)
Segue o diálogo, e o andarilho cego Torquato, corrobora com o desabafo do mestre
seleiro, seu interlocutor, frente às injustiças de que o povo padece:
É o diabo, mestre. Leva um homem a vida inteira numa propriedade, cria raiz na
terra, e chega uma ordem para botar para fora, como se corta um pé de pau. Isto não
está direito. É por isso que eu digo todo dia: homem para endireitar este mundo só
mesmo um Capitão Antônio Silvino. (REGO, 1998, p. 198)
112
A figura lendária e mítica do cangaceiro não se restringe apenas ao imaginário da
população menos favorecida. Talvez, por questão de necessidade, a mais avultada parte da
comunidade sertaneja enxergue seu herói com olhos mais aguçados, porém sua centelha
mítica representa toda a comunidade, pois a natureza do herói é coletiva, o que justifica o
cantar épico empreendido pelos poetas de todos os tempos e de todas as realidades.
Assevere-se, para abrir um parêntesis, que, no sertão, além dos cangaceiros, houve
outros heróis que, com seus atos de bravura e destemor, terminam por alavancar igual
imaginário coletivo, a exemplo de personagens marcantes e fortes como Antônio Conselheiro
(1830–1897) e os taumaturgos padres Cícero Romão Batista (1844–1934) e José Antônio
Pereira Ibiapina (1806–1883), entre outros, que, segundo seus propósitos, arrebanharam não
poucos seguidores, levados todos pelos ideais míticos por eles preconizados.
Em se tratando do cangaço, porém, o elemento mítico se mostra mais intenso e vivo,
pois versa sobre valentia diferente, itinerante e não sedentária. Adentrar a paisagem sertaneja
exigia coragem e absoluta resistência física, pois, além do complexo espaço geográfico e dos
perigosos agentes oficiais armados, havia a dura luta contra outras armas inimigas: coronéis
não afinados com ideais do cangaço, a falsidade de supostos amigos, a fome, a sede, as noites
mal dormidas para citar alguns aspectos desse cotidiano, que resumem a um só tempo a vida
amargurada dos cangaceiros, mas, por outro lado, representam pré-requisitos para o
imaginário popular considerá-los entes míticos e, portanto, heroicos.
Sabe-se que o texto épico exige a passagem do real para o mítico. Cabe ao poeta
adotar a desrealização do real, isto é, do fato para se alcançar o mítico, pois, do contrário, as
ações dos cangaceiros não caracterizariam o ideal heroico desejado:
A aderência mítica que desrealiza o fato o fato histórico, desrealiza também o ser
histórico e lhe dá a condição mítica necessária para alcançar a categoria de herói. O
personagem histórico, para ganhar a condição mítica que qualifica o herói, tem de
agenciar também a dimensão mítica da matéria épica, passando do plano histórico
para o maravilhoso. Essa exigência épica define a qualificação do herói e do relato, e
a passagem do plano histórico para o plano maravilhoso se faz através da
grandiloquência. (SILVA, 1987, p. 14)
Exemplifique-se ainda, com o romance de 30, a sintonia do narrador com a identidade
cultural nordestina, no momento em que, em diálogo sobre os cangaceiros, se evidencia a
conversa entre os meninos Carlos de Melo e Maria Clara sobre o transmudar, o encantar-se de
Antônio Silvino, seu disfarce em outros entes da natureza local, o que se entende como o
plano do maravilhoso, segundo a mítica alimentada pelo povo e resgatada por José Lins do
Rego: “As nossas conversas iam longe. Maria Clara indagava por Antônio Silvino. Então me
113
derramava em histórias. O cangaceiro se encantava em bicho. Uma tropa vinha atrás dele, e o
que encontrava era um rebanho de carneiros”. (REGO, 1984, p. 140).
Além da ficção, que capta essas mostras da realidade, há a exata crença popular de que
os cangaceiros se utilizavam de rezas fortes que não só os livravam das investidas e das balas
inimigas, como os faziam sumir, se necessário. No imaginário popular essa mítica contribui
com a disseminação de histórias que enriquecem a travessia dos cangaceiros pelas gerações
que seguem:
O cangaceiro é um tipo supersticioso. Acredita na força mágica dos patuás, figas,
orações fortes. Aquele que conduz um amuleto está imunizado dos males exteriores
[...]. O matuto crédulo está convencido de que um cangaceiro detentor de oração
forte pode ad libitum transformar-se num toco, ou fazer que das espingardas que lhe
apontam caiam os fechos, ou então que em vez da carga de chumbo, saia um jato de
urina. (MONTENEGRO, 1973, p. 204-205)
Informa Aglae Lima de Oliveira a respeito da religiosidade, das superstições e das
crendices dos cangaceiros. Quanto às crendices de Lampião, repare-se nos detalhes:
O sal tinha certo mistério. Não se retirava do “rancho” sem deixar um pouco.
Evitava perseguição.
Quando bebia água, punha um pouco por trás da cabeça. Limpava e soprava os anéis
para atrair sorte. As horas preferidas por Lampião para suas orações eram 6 horas da
tarde, meio-dia e meia-noite em ponto.no seu retiro espiritual e nas igrejas, rezava de
olhos fitos nas imagens do altar. Desfiava as contas azuis e brancas de seu rosário.
Em cada mistério, uma medalha. [...] Tinha o pescoço cheio de bentinhos. [...]
Nesses saquinhos, fortes orações escritas e dobradas com uma hóstia consagrada,
furtada do sacrário, misturada com sangue do próprio bandido, e o oferecimento do
credo eram amuletos usados para fechamento do corpo. Lampião conduzia a Vida de
Cristo
de Papini. Jamais matou, torturou um padre. Nunca tirou dinheiro das igrejas, não
admitia tiroteio contra templos. (OLIVEIRA, 1970, p. 119)
Os cordelistas captam as crenças do imaginário popular e em versos traduzem a
desrealização dos fatos. O maravilhoso se dá em vários textos, o que representa a mitificação
perante o povo de seu herói. Dos cangaceiros tardios, a literatura de cordel dá conta da vida de
Antônio Tomás, (1910-1948), um dos últimos cangaceiros. Cearense, Tomás detinha caráter
místico muito forte, o que contribuiu para a literatura popular relatar em versos sua saga não
desvencilhada do elemento maravilhoso, já que esse cangaceiro, segundo a mítica popular,
não só tinha o dom de sumir como teve o pressentimento de sua própria morte. Os versos de
certo poeta que se assinava J. Q. S. C. Reis relatam:
[...]
A polícia muito ativa,
Vivia a lhe procurar,
Porém não acha ninguém
Que dissesse: - Eu vi passar!
Porque onde ele passava
114
Era difícil se achar.
Sargento Gouveia um dia
Para a luta se preveniu,
Trouxe uma força volante
E atrás dele seguiu
Porém siquer na terra
Um rasto dele se viu.
[...]
Diziam que ele tinha
Ajuda de reza forte,
Notava a perseguição,
Vinda do sul ou do norte,
Se aparando num toco,
Estava isento da morte.
[...]
Um dia estava jogando
Ouviu o galo cantar,
Urgente parou o jogo
E foi-se a profetizar
Que a sua vida estava
Perto de se liquidar.
Retirou-se e foi dormir
E às quatro horas da tarde
Do dia sete de junho
Tornou, veio com brevidade,
Palestrando entre amigos
Com a mesma atividade.
Nisto chegou-lhe uma amigo
Estava em conversação;
Momento depois uma bala
Traspassou-lhe o coração,
Deu um ai por despedida
Caiu sem vida no chão. (REIS apud CASCUDO, 1982, pp. 41-43)
A vida que se levava no cangaço exigia que assim fosse, isto é, os perigos, as
correrias, a iminência da morte, os risco de ferimento, tudo convergia para a busca da
sobrenaturalidade, pois somente esse recurso servia como alento em, praticamente, toda a
trajetória que os bandos percorriam. Recorrer ao sagrado, e, misticamente, ao fechamento do
corpo era uma prática que acompanhava a história de todos os que fizeram parte do cangaço.
É interessante perceber que na trilha do cangaço não há espaço para a ausência da fé e da
crença, embora todos estivessem na contramão do sagrado e em contradição estupenda,
sobretudo, em relação ao 5.º Mandamento, o “não matarás”, bíblico, revelador da condenação
quanto à prática do tirar a vida ao outro.
O cangaço, entretanto, requeria, além de coragem pessoal, muito além da bravura, a
necessidade da crença, da superstição, da esperança na vida protegida por uma supremacia
115
que se traduz na força de Deus, dos santos e de outras proteções a que os cangaceiros
recorriam sempre que lhes fosse possível. Buscar recursos de fé era pleitear a proteção para o
chefe e para todo o bando.
Entre tantos recursos de fé utilizados por Lampião está a interessante oração da “Pedra
Cristalina”, espécie de extrema proteção por envolver os vários símbolos do catolicismo
popular tão praticado por esse chefe cangaceiros e seus companheiros:
Minha pedra cristalina que no mar foste achada entre o cálice e a hóstia consagrada
teme a terra. Nosso Senhor Jesus cristo no altar. Assim teme os corações dos meus
inimigos quando olharem para mim, eu te benzo em cruz e não a mim.
Entre o Sol e a Lua e as Estrelas. As três pessoas distintas da Santíssima Trindade,
meu Deus, na travessia avistei meus inimigos, meu Deus, que faço com eles! Com o
manto da virgem Maria sou coberto e com o sangue de meu Jesus Cristo sou valido.
Se tem vontade de atirar, porém não atira, água pelo cano da espingarda correrá; se
tiver vontade de me furar, a faca da mão cairá. Se não amarrarem os nós, desatarão ,
e se me trancar as portas, se abrirão. (OLIVEIRA, p. 123)
Mas segundo ainda o imaginário popular, os bandos apelavam para outras forças, que,
embora sobrenaturais, fugiam aos padrões religiosos de tradição sertaneja e católica. Observe-
se como o capitão Virgulino agia quanto ao sobrenatural, o que, seguramente, ocorria aos
demais chefes:
Em tropelias e correias pelo sertão, em brigas individuais, em assaltos, em conflitos
de verdadeiras batalhas com 251 tropas do governo, Lampião pôde escapar de
emboscadas, de golpes de faca, e lances de punhal, de descargas de bacamarte, de
tiros de fuzil, de traições de amigos e inimigos; de ferimentos, doenças e males; de
maldições, esconjuras e de feitiços; de envenenamento, de mordidas de cobra e
bichos peçonhentas, graças à proteção do demônio, com quem fez pacto e à
salvaguarda das orações de fechamento de seu corpo. (TAVARES JR. s/d., p. 251)
Versos anônimos da cultura popular, especialmente, sobre Lampião, dão conta de sua
passagem em casa de um feiticeiro para o ritual de fechamento de corpo:
[...]
Foi à casa de Macumba
E ele fez o serviço
Feichou o corpo do rapaz
P´ra bala, faca e feitiço
Então disso a Lampião:
Não haverá valentão
Que pise no teu toutiço.
Primeiro ele sujeitou-se
A um serviço arriscado
Em um caixão de defunto
Passou uma noite trancado
O feitiço o ungiu
E quando ele saiu
Estava de corpo fechado.
116
Disse-lhe o velho Macumba
Agora podes brigar
Bala não te fura o corpo
Faca só faz arranhar,
Feitiço não te ofende
E a polícia só te prende
Depois que eu acabar.
Porém, depois que eu morrer
Ficarás de copo aberto
Tudo pode acontecer-te
Deverás andar alerto
Pelos maus será vencido
Deves viver prevenido
Que a morte terás por certo. (ANDRADE apud TAVARES, s/d., p. 252-253)
Observe-se que o cangaceiro, ao ser acuado pelo diabo e ao sair da casa do feiticeiro
que lhe inicia no misterioso mundo da magia e do encantamento, busca a ajuda celeste num
ato eclético e não menos místico que envolve a fé católica. Valer-se dos santos nessas
ocasiões reflete enraizamento de típica da alma nordestina:
Aí o negro partiu
E disse vamos a ela
Você hoje vai comigo
Deixar pronta a panela;
Vou comer-te em panelada
Do fato faço buxada
E do sangue cabidela.
Lampião atirou nele
Mas quando a bala partiu
Na boca o negro aparaou-a
Cuspiu-a fora e sorriu
E disse: bala p’ra mim
É motivo de festim
Foi quem sempre me nutriu.
Então ele com punhal
Tentou furar o diabo
Porém a ponta da arma
Envergou até o cabo
Sem que lhe arrancasse o couro
Satanás por desaforo
Deu-lhe uns cascudos com o rabo.
Lampião ali benzeu-se
E chamou por São Cipriano
Dizendo ao santo, livre-me
Desse negro desumano
Disse o negro com espanto
Não precisa chamar santo
Por que eu mudei de plano.
Acalma-te Lampião
Que não mais te ofenderei
Machoca esses quatro dedos
117
Que teu amigo serei;
Desejo ser um teu sócio
Vamos entrar em negócio
Pois eu te protegerei. (ANDRADE apud TAVARES, s/d., pp. 253-254)
Não é recente a prática do fechamento de corpo, dos amuletos e das crendices
populares. No período colonial brasileiro isso era uma experiência que remete aos índios,
sobretudo, aos tapuias que “tinham grande canalha de feiticeiros, agoureiros, bruxos e
curandeiros”, nas palavras de Simão de Vasconcelos. O fechamento do corpo, junto a outras
práticas de semelhante calibre, era recurso que buscavam todos os que disso necessitavam.
Folclorista da segunda metade do século XIX, até as duas primeiras décadas do XX, Pereira
da Costa informa:
[Os tapuias] Eram vários e ridículos o modo de dar os seus oráculos e adivinhar o
futuro, e como que endemoniados, revelavam o que lhes vinha à boca, com o
cérebro exaltado ou pelo efeito do tabaco, ou pelas libações de embriagante néctar
fabricado de folhas de jurema, a uns ameaçando de morte, a outros de boas ou de
más venturas, no que acreditava toda a gente [...]. além de todos esses prodígios do
mandingueiro, tem ele ainda o poder de fechar o corpo às pessoas, que, graças a
semelhante predicado, ficam livres e imunes de todos os males e perigos, da mais
certeira pontaria de uma arma de fogo e até mesmo do veneno das cobras. (PEREIRA DA COSTA, 2004, p. 126)
Corriqueiras no Nordeste eram as histórias de que os cangaceiros, famosos ou não,
traziam o corpo fechado. Justamente essa crença popular é o que garante o tom épico de suas
trajetórias, já que sua luta real frente aos inimigos e até ao meio em que viviam era subsidiada
pela crendice que se torna legendária. De qualquer forma, e em muitos momentos,
cangaceiros e volantes cediam devido às baixas de ambos os lados, porém o elemento
mítico/místico de heroísmo é unilateral. Pertence só aos bandos, pois a estes o povo tinha
como heróis que o representavam.
Ranulfo Prata faz descrição detalhada desse imaginário e das crendices e superstições
dos cangaceiros, sobretudo do cotidiano místico de Lampião:
A sua religiosidade é feita de um fetichismo bárbaro e abusões católicas, que se
condensam em um misticismo extravagante e selvagem.
Finge mais superstição do que possui, com o fim de criar em torno de si atmosfera
de mistérios e sobrenatural. Traz pendentes do pescoço, saquinhos encardidos,
bentinhos milagrosos, medalhas protetoras, e um grande Cristo em ouro maciço,
roubado a uma senhora da aristocracia rural de Pernambuco. Não esquece a oração
do meio-dia, hora má, como a da meia-noite, em que o diabo se solta para prender as
criaturas. Quando o sol se empina em raios verticais sobre a cabeça, a sombra
minguada aos pés, nos pousos, nas estradas, nos combates, ele verga os joelhos,
genuflexo, no chão duro, pende a cabeça humilhada, e, contrito, com a grande mão
ossuda e escura a bater no peito, reza com fervor.
Os companheiros, em torno, fitam-no cheios de estranho respeito. [...]
118
Jamais desrespeitou um padre. Trata-os como pessoas sagradas, intocáveis,
merecedoras de respeito e garantias. Quando os topa pelos caminhos apea-se,
pressuroso, e humildemente lhes beija as mãos.
(PRATA, 1934, p. 225-226)
O poeta popular Elias A. de Carvalho, em cordel intitulado A morte de Lampião, de
1984, narra, entre outras peripécias, a do encontro de Lampião com seu maior inimigo, José
Saturnino, que, já sob a pena de morte, é salvo pela mãe, que apela pelo filho ao chefe
cangaceiro. Atendida, abençoa e fecha o corpo de Virgulino Ferreira:
[...]
Quando chega em Vila Bela,
Por capricho do destino,
Recebe a feliz notícia
Da volta de Saturnino.
Ia matar o desejo
De seu instinto canino.
Tá Saturnino e a mãe
Aparece Lampião.
Os cabras cercando a casa
E ele de fuzil na mão
Entrando de porta a dentro
Parecia um furacão.
Nem o diabo demovia
Lampião dessa vingança.
O homem que o atirara
Naquela maldita dança,
Da qual jamais sairia,
Não tinha mais esperança.
Saturnino aquela altura
Nada mais pode fazer.
Entrou no quarto da mãe
E lá trancado a tremer,
Procurava uma saída
Para escapar de morrer.
E sua mãe, dona Xanda,
Enfrenta a fera selvagem.
Colada à porta do quarto,
Para impedir-lhe a passagem,
Fala com o coração,
Amor materno e coragem.
– Virgulino, meu filhinho,
O que desejas comigo?
Diz Lampião, furioso:
– Nada pretendo contigo.
Sim, matar esse cachorro,
Que a senhora dá abrigo.
– Se teu caso é tirar a vida,
Tire a minha, deixe a dele.
Faça o que quiser comigo
119
Mas, por Deus, não toque nele!
– Madrinha!... A senhora sabe:
Minha desgraça foi ele!
– Sei perfeitamente, filho.
Foste vítima da maldade.
É justa a tua revolta.
Mas a maior crueldade
Você faz a uma mãe
Que te tem muita amizade!
De fuzil engatilhado
Pra saciar seu intento,
Fita a madrinha e hesita
Diante do argumento.
As palavras da velhinha
Tocaram seu sentimento.
– Tá certo, minha madrinha
Pode ficar sossegada
Que a esse cachorro imundo
Eu não vou fazer mais nada!
Em seu rosto havia lágrima
De seus olhos derramada.
Depois de pedir-lhe a bênção
Se prepara pra partir.
Diz a velha: - Vá com Deus
que enquanto eu existir,
Nenhum de teus inimigos
Ousarão te destruir.
Nunca se soube se a velha
Gostava de bruxaria.
O que se soube é que ela
Em trinta e oito morria.
Meses depois, Lampião,
Também desaparecia. (CARVALHO, pp. 16-18)
Importa ventilar que esses elementos dão legitimidade à narrativa épica da literatura de
cordel, pois a invencibilidade dos cangaceiros traz os rudimentos suficientes para se elencar
as histórias fantásticas do imaginário popular. Manuel Diegues Jr. (Regiões culturais do
Brasil, 1960) aponta para a curiosa informação quanto às crendices vividas no cangaço:
No folclore, onde o cangaceiro ocupa todo um ciclo – o heroico – encontramos
muitos elementos que permitem ver o quanto o fanatismo está empregado nas gentes
sertanejas. As orações para benzimentos e curas são em grande número; não são
menos numerosas as destinadas a fechar o corpo, usadas principalmente pelos
cangaceiros [...] Entre os documentos encontrados nos despojos de Lampião, em
Angico, havia um ofício de Nossa Senhora que pertencia a Maria Bonita. (DIEGUES JR., 1960, p. 157)
Nos cantos épicos clássicos, de sabida natureza pagã, e até no renascentista Os
lusíadas, a presença de deuses, de porções mágicas, de seres sobrenaturais era a certeza de
auxílio ao herói, quando em apuros. Na mítica sertaneja, não só no que concerne aos
120
cangaceiros, mas ao povo, todos praticantes de um catolicismo-popular, a certeza dessa
sobrenaturalidade se dá por transferência a Nossa Senhora, ao padre Cícero, às velhas
rezadeiras, às místicas mães dos cangaceiros com suas rezas fortes, segundo as crendices
populares.
Da mítica dos poderes sobrenaturais que acompanham os heróis, o cangaço não
escapou. Pressentir o inimigo, ver antes os acontecimentos, sentir quando se pode ou não
empreender uma marcha e até quando invadir um povoado, uma fazenda, é algo vivenciado
nos grupos cangaceiros. Sobre essa prática no bando de Lampião, informa Frederico
Pernambucano de Mello:
Conta-se que Lampião, seguindo as crenças do sertão, lia nas estrelas, sabia
compreender os fenômenos naturais suscetíveis de lhe anunciar um perigo ou uma
traição e também interpretar sonhos. O mugido intempestivo de um boi, os saltos
estranhos de uma cabra, os uivos incessantes de uma raposa nas noites sem lua, os
combates entre pássaros, o choque de um pássaro contra a aba do chapéu de um
cangaceiro, o pio da coruja nas noites silenciosas, o canto do galo fora das horas
habituais eram-lhe perfeitamente inteligíveis.
(MELLO, 1993, p. 93)
Da forte crença católica e popular de Virgulino Ferreira e de seu ecletismo dá conta
ainda Aglae Oliveira: Era do catolicismo antigo: lendas, superstições, rosários, ofícios, ladainhas, novenas,
horas marianas, missões abreviadas e lunário perpétuo.
O lunário perpétuo [...] merecia todo o respeito e crença.
Consultava o horóscopo; aconteciam as previsões. [...]
Lia o “magnífico’ e o ‘lembrai-vos, São Bernardo’ .
Diariamente, rezava o ofício de N. Sa. da Conceição. Em grandes aflições, recitava o
rosário apressado de N. Sa. da Conceição, fazendo cruzes na cabeça. O missal era
marcado por santinhos e cartões de visitas dos amigos. (OLIVEIRA, 1970, p. 120)
Toda essa mística levava o sertanejo a não se importar com a presença dos rastejadores
(profissionais comuns nos bandos e nas volantes), que tinham por função espreitar, medir,
procurar rastros da presença – dependendo de para quem trabalhavam – de um dos grupos,
para avisar do encalço das volantes aos cangaceiros, da perseguição destes contra aqueles. O
homem simples contemporâneo do cangaço preferia acreditar que esses avisos,
principalmente no que se refere ao cangaço, eram avisos sobrenaturais.
Fora ainda a inteligente estratégia dos enterros forjados para consequentes ataques aos
inimigos, às vilas, às pequenas cidades, as pegadas, com as sandálias dispostas ao contrário,
para despistar a polícia, as negociatas com a própria polícia, o fornecimento de armas e
munições, também por membros influentes dessa mesma polícia, que contribuiu para o
aguçamento da criatividade do povo, pois isso resulta, seguramente, na fusão dos elementos
míticos aos de realidade. Em outros termos, foi essa inteligente realidade de estratégias que
redundou em desrealização para se criar o mito. Diegues Jr. informa precisamente sobre
121
Lampião: “Invariavelmente, os recursos de luta de lampião foram os de sempre, que se
praticavam nas caatingas. As idas e vindas, as pistas falsas, as alpargatas calçadas ao
contrário, deixando rastros em direção oposta à que se seguia” (DIEGUES JR., 1960, 156).
Desse modo, percebe-se que a ideia do cordel épico se sustenta na medida em que haja
subsídios teóricos que, confrontados, assegurem a matéria épica nele contida, a partir de
personagens que agreguem esses mesmos subsídios:
O personagem épico, para alcançar a qualificação do herói, terá de agenciar as duas
dimensões da matéria épica, isto é, além da necessária presença do fato histórico,
terá de pisar o solo do maravilhoso. Logo, é a aderência mítica que, estruturando o
maravilhoso do poema, confere a autenticidade épica do herói e do relato. (SILVA,
1987, p. 29)
Os cantos épicos disseminados pela literatura de cordel no Nordeste, sobretudo,
tornam os cangaceiros não apenas populares, mas fazem com que suas ações redundem em
imaginário que chega a uma realidade mítica local com todos os referenciais das instâncias
míticas universais, guardadas as proporções e as particularidades exatas daquilo que é
universal e do que é local.
Se o herói é aquele que aglutina a valentia, a ira e a luta contra a injustiça no ideário de
um povo, é também o que incorpora, além disso, a imagem do homem que enfrenta a
geografia em que vive, ao dar prova de resistência e obstinação no enfrentamento de
intempéries, no palmilhar as longas distâncias, no entregar-se aos humores da chuva ou do
sol, em embate terrível com a própria natureza. Nesse sentido, os cangaceiros representam o
herói ao agregarem e tomarem para si duas ferrenhas lutas: aquelas dos combates cotidianos,
motivos para os poetas disseminarem :
[...]
Muita gente já conhece
A história de Lampião
Que andou pintando o sete
Pelas terras do sertão
Seu nome era Virgulino
E com Antônio Silvino
Mostrou ser o campeão
Todo mundo já conhece
Sua história e seu passado
Porém existe detalhe
Que ainda não foi contado
E o poeta popular
Se apresenta pra contar
Deixando o povo informado
Sabemos que Lampião
Foi corajoso demais,
Não tinha medo de nada
122
Por ser astuto e sagaz
Muito vivo e competente
De um sujeito valente
Andava 10 léguas atrás. (COSTA LEITE, p. 1)
E a outra luta é a do inevitável enfrentamento da imponente natureza. Esse destemor
não é outro, senão o do homem valente, do herói de feitura universal até, como se vê no
cordel Antônio Silvino, vida crimes e julgamento, com o maior e mais temidos dos animais
das florestas brasileiras:
[...] Esse rugido abalou a serra
Até o mais fundo reconco
Da furna; a serra tremeu
Desde o cimo até o tronco;
Percebi rapidamente
Que de uma onça era o ronco!
Então atirei na fera
Que sobre mim se lançou
E deu uma tapa no rifle
Que distante o atirou
E ouvindo o estampido
Mais assanhada ficou!
Dei um pulo para trás
E a pistola puxei,
Porém no mesmo momento
Que um tiro lhe disparei
Deu ela na arma outro tapa
E desarmado me achei! (BATISTA, p. 23)
Atente-se, porém, nos recursos que essa mesma natureza proporciona ao herói em seu
auxílio, que, sem a arma de fogo, tem a lua e o punhal como recursos imprescindíveis na luta
em que se envolve:
[...]
Felizmente nessa gruta
Entrava a luz do luar
E o solo era espaçoso...
Continuei a pular,
Me desviando da fera
Que me tentava agarrar!
Num desses saltos eu pude
Puxar da cinta o punhal,
E apertei-o na mão
Com uma ira infernal,
Dizendo: - se eu não morrer,
Mato esse audaz animal! (BATISTA, p. 24)
123
Nessa passagem o herói se faz pela grandeza de matar sua agressora, apenas porque
em jogo está sua própria vida. O homem integrado, mas ameaçado pela natureza dá lugar ao
herói:
[...]
A onça era tão ligeira
Como o raio de um clarão!
Eu não voava, porém
Mal sentava os pés no chão!
Compreendi que em mata-la
Estava a minha salvação.
E quando a fera avançou
De arma em punho esperei,
E então ao pé da goela
Tal punhalada lhe dei,
Que o punhal enterrado
Dentro dela abandonei. (BATISTA, p. 24)
A grandiosidade do herói em meio à natureza e diante do animal feroz se estabelece
quando, nos estertores da morte, os rugidos da onça abalam as serras, estremecem a natureza
e ainda ameaçam esse herói desprovido de armas:
[...]
A onça ao ver-se ferida,
Um enorme salto deu,
Rugindo com tanta força,
Que a serra estremeceu.
Então por sobre o lajeado
O corpo em cheio estendeu...
Enraivecida, rugindo,
Tentava se levantar,
Procurando em vão com os dentes
A arma do peito arrancar,
E eu, desarmado, temia
Que ela voltasse a lutar. (BATISTA, p. 24)
Note-se na ferrenha luta a igualdade dos pares e o heroísmo de ambos, embora a
narração faça do cangaceiro, por fim, verdadeiro herói, pois esse é o foco:
[...]
Quando a fera se aquietou,
Da gruta me retirei,
E todo o resto da noite
Noutra furna repousei.
Somente pela manhã
Meus companheiros busquei.
E reunido ao meu grupo,
Nessa furna penetramos:
A onça morta a um canto
Logo ao entrar encontramos:
Minha pistola e meu rifle
124
Ambos quebrados achamos.
Vi que no peito da fera
O punhal estava enterrado
E reparei que meu rifle
Tinha o coice esfacelado!
A pistola achei-a longe,
Com o gatilho quebrado.
Então do peito da onça
O meu punhal arranquei,
E o sangue que ensopava
Logo em um lenço limpei.
Depois com muito cuidado,
Eu a onça examinei... (BATISTA, p. 24)
Por fim, nessa quarta estância da mostra anterior, dá-se um fato interessante e que
remete à centelha humana do herói: seu cuidado e cautela ao examinar o animal. Se a face
heroica, divina, enfrentou a fera e reagiu com absoluta segurança, a humana refletiu, foi
cuidadosa, temeu. O detalhado da descrição da onça, no entanto, fecha a narrativa de bravura
que caracteriza o herói:
[...]
Era uma onça pintada,
De formas descomunais
Os dentes ponteagudos,
Unhas longas, desiguais;
Tinha os músculos dianteiros
Mais grossos que os demais. (BATISTA, p. 25)
Nos passos declinados acima, faz-se necessário perceber que o poeta se utiliza de
recursos da cor local: a onça, as furnas, as grutas, a própria natureza sertaneja, o que denota
tratar o herói local como representatividade do povo igualmente local.
Bandoleiros famosos, a exemplo de Antônio Silvino – um dos mais importantes –, e de
outros igualmente antigos e famosos como Jesuíno Brilhante, Adolfo Rosa Meia-Noite,
Viriato, todos do século XIX ou da transição para o XX, dos quais e de cujas façanhas o povo
sempre teve conhecimento tanto por meio oral como pela leitura de folhetos, romances –
como também são chamados – ou modernamente, literatura de cordel, tornaram-se
responsáveis por cerzir todas essas histórias, legando-as, pelo relato escrito, à posteridade. Os
mais antigos foram trazidos à tona pelos poetas de seu tempo e, para que o povo não os
esquecesse, a musa do cordel dos anos que se seguiram continuou a abordar e a popularizar
nomes mais jovens surgidos já no século XX e que fizeram história, como José Leite de
Santana, de alcunha Jararaca, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, Cristino Gomes da
125
Silva Cleto, o Corisco e tantos de seus companheiros que se destacaram entre os anos 20, 30 e
40 do século passado.
Para escrever a saga do cangaço, os poetas contemporâneos dos bandidos, a exemplo
de um Francisco das Chagas Batista, um Leandro Gomes de Barros, um João Martins de
Ataíde, entre outros anteriormente citados, utilizavam a primeira pessoa do discurso para dar
voz aos cangaceiros, o que para Mark J. Curran (1973) tinha por função criar realismo na
narração (p. 307).
Com efeito, leve-se em conta o embasamento mais bem fundamentado de Ronald
Daus, (1982) para quem os poetas tomados de autodefesa se utilizavam do recurso de primeira
pessoa com o fim de ressaltar a visão de mundo do próprio cangaceiro para dar o tom épico
aos textos (p. 21). É como se a muralha da primeira resguardasse os poetas na abordagem de
tema tão polêmico:
Os textos do ciclo dos cangaceiros diferenciam-se de todos os outros da poesia épica
nordestina por uma particularidade formal: os escritores empregam muito
frequentemente a 1ª pessoa do singular na narrativa dos acontecimentos.
Originalmente isto tinha a ver sem dúvida como medo de represálias: se louvassem
de forma pública o procedimento do cangaceiro, teriam de temer atos de vingança
da polícia. Caso censurassem o cangaceiro, não passariam melhor: os amigos dele o
perseguiriam tenazmente. Salvaram-se desse dilema, redigindo seus textos de forma
que não pudesse comprometê-los: o próprio protagonista conta sua história. (DAUS,
1982, p. 21)
Como a narrativa nesses cordéis pioneiros não se faz de distâncias no tempo e no
espaço, conforme convém ao texto épico, o espaço-tempo no rastro das alpercatas conduziu o
poeta a aguçar a inteligência, a fim de não perder a oportunidade de narrar os fatos, porém
sem deixar abertura para censuras, castigos ou perseguições que pudessem vir a sofrer.
Desse modo, tanto as forças volantes quanto os cangaceiros poderiam usar de
arbitrariedade contra os poetas. Para se resguardar, já que suas narrativas são tecidas sob a
quentura dos fuzis de cangaceiros e soldados, esses mesmos poetas colocaram os cangaceiros
para narrar suas façanhas. Como na épica do cordel dos primeiros momentos o cangaceiro era
um herói quase instantâneo e sua saga se fazia no quente da notícia, diferentemente do herói
clássico que leva tempo para tomar forma, o poeta procurava a melhor maneira de dar a essas
histórias a tonalidade épica na mesma medida das ações dos cangaceiros tanto no tempo
quanto no espaço. E como se houvesse uma urgência por criar heróis, na medida em que é
urgente a afirmação do meio em que circulam os cangaceiros: um Nordeste carente de tudo e
para o qual falta um referencial popular e notório do porte dos grandes cangaceiros,
idealizados segundo o clamor por força, justiça, valentia e heroísmo.
126
Criar, consciente ou inconscientemente, um ser épico que, herói do relato, conte ele
mesmo suas aventuras, é aparentemente, fugir da natureza épica do relato que deveria se dar
em terceira pessoa, segundo a proposta da matéria épica marcada pelo distanciamento espaço-
temporal e que, por isso, lega suficiente liberdade ao poeta para narrar os acontecimentos. No
entanto, é nessa aparente fuga que está o exato espaço de liberdade de que o poeta necessita,
pois se o cordel épico havia de cantar o contraditório herói cangaceiro, que fosse sem fazer
soar o risco de que estaria a exaltar o crime.
Para fundamentar a ideia de que poetas ou quem ousasse veicular as lidas de bandos
poderiam sofrer represálias tanto do estado e de seus agentes quanto dos cangaceiros, é
importante trazer à tona o episódio que envolve as filmagens do bando de Lampião nos anos
de 1930, levadas a cabo pelo sírio Benjamin Abrahão. Primeiramente, segue Benjamin as
trilhas do rei do cangaço com a finalidade de conseguir a devida autorização para filmar o
bando. Empreitada de risco, que o imigrante não temeu, e, finalmente, seu intento foi
cumprido. Em texto escrito por Lampião a Benjamin se veem os contornos do que pensava
Virgulino Ferreira quanto a questões que envolvessem seu nome e o bando por ele
comandado. Em texto transcrito conforme o original, assim se lê:
Ilmº Sr. Benjamin Abrahão
Saudações
Venho lhi afirmar que foi a primeira peçoa que conseguiu filmar eu com todos os
meus peçaol cangaceiros, filmando assim todos os muvimento da noça vida nas
catingas dus sertões nordestinos.
Outra peçoa não conciguiu nem conciguirá nem mesmo eu concintirei mais.
Sem mais do amigo
Capm Virgulino Ferreira da Silva
Vulgo Capm Lampião (MELLO, 2012, p. 171).
Quanto ao Estado, o periódico Correio do Ceará de 7 de abril de 1937 divulgava o seguinte
telegrama:
Tendo chegado conhecimento Departamento Nacional de Propaganda estar sendo
anunciado, ou exibido na capital ou cidades do interior desse Estado, um filme sobre
Lampião, de propriedade da Aba-Film, com sede na Rua Major Facundo, solicito
vos digneis providenciar no sentido de ser apreendido imediatamente o referido
filme, com todas as cópias, e respectivo negativo, e remetê-los a esta Repartição,
devendo ser evitado seja o mesmo negociado com terceiros e enviado para fora do
país.
Atenciosos cumprimentos – Lourival Fontes, Diretor do Departamento Nacional de
Propaganda do Ministério da Justiça
127
Motivos como esses levavam os poetas populares a caminharem na mesma direção: a
da autodefesa em relação a uma e a outra instância. Não se havia de desafiar um estado
repressor nem de ficar vulnerável à sanha dos cangaceiros em sendo seus textos por eles não
compreendidos. A marca do discurso em primeira pessoa não se faz presente apenas nos anos
do Departamento Nacional de Propaganda da era Vargas. Francisco das Chagas Batista
empresta voz em primeira pessoa a Antônio Silvino ainda no início do século XX:
[...]
Leitor, em versos rimados
Vou minha história contar,
Os crimes que pratiquei
Venho agora confessar.
Jurando que da verdade
Jamais me hei de afastar.
Pedro batista de Almeida
E Balbina de Morais,
Casados catolicamente,
Foram meus legítimos pais,
Nascidos em Pernambuco
E do Pajeú naturais.
Nasci em setenta e cinco,
Num ano de inverno forte,
No dia dos de novembro,
Aniversário da morte
Por isso o cruel destino
Deu-me de bandido a sorte. (BATISTA, p. 1)
Note-se que o poeta resolveu inteligentemente a peleja com o tempo e o espaço a ele
tão próximos, ao utilizar do recurso discursivo a que se pode chamar de Eu épico, mecanismo
poético-discursivo que agrega características de poema épico, mas que não pode se narrado
em terceira pessoa, conforme é próprio desse texto. Adotar o termo é considerar que o poeta
levou a um grau particular o sentido da épica no cordel, principalmente no início do século
XX, a partir de um ponto de vista narrativo que se dá segundo o olhar do cangaceiro, e nunca
ou quase nunca do poeta narrador.
Centrar a narrativa em primeira pessoa era garantir que não se incorreria no fardo da
acusação de ser o poeta um delator dos cangaceiros, pois ao bando o texto poderia trazer
pistas e até ser motivo de estratégia para as forças volantes. De outra feita, o mesmo poeta
poderia sofrer perseguição das volantes por seu cantar vir a ser entendido como de apologia
ao crime. Desse modo, apesar da intenção de escrever um poema épico, as penalidades por
que os poetas passariam poderiam vir tanto de um lado, o dos fora da lei, quanto do outro, o
das forças policiais, que rechaçavam impiedosamente a quaisquer atitudes de simpatia por
cangaceiros.
128
A dinâmica que a literatura de cordel sempre apresentou no que respeita aos relatos
sempre contíguos aos acontecimentos ou fatos, a rápida feitura do texto, seu baixo custo de
impressão, e, consequentemente, seu baixo preço, sua ligeira disseminação poderiam trazer
subsídios seguros para uma força volante da conta do paradeiro de determinado bando. O
cordel, praticamente informação jornalística, daria conta de noticiar fatos ou de exaltar atos,
concomitantemente, e de acordo com os olhos e a intenção de quem o lesse. Narrar as
façanhas empreendidas por grupos de cangaceiros era se limitar com patentes perigos. Os
poetas não ousariam cair nas mãos de um ou de outro grupo.
Veja-se como Leandro Gomes de Barros, em As proezas de Antônio Silvino, apresenta
o cangaceiro a narrar suas aventuras e desventuras. O texto é de 1908 e traz um eu entre
resignado e a busca do senso de justiça:
[...]
Eu como já estou perdido
Minha vida não tem jeito
Vou mesmo com a desgraça
Que d’ella tiro do peito
Com Ella já não espanto
Da desgraça almoço e janto
Com Ella como e me deito.
Na Parahyba do Norte
Eu sou vigário collado
No Rio Grande do Norte
Eu sirvo de advogado
Em Pernambuco sou tudo
Lá já fiz fallar um mudo
Fiz correr um aleijado.
Eu hoje podia ser
Um distinto cavalheiro
Mas a justiça faltou-me
Devido a não ter dinheiro,
Meu pai foi assassinado
Eu para me ver vingado
Fiquei sendo cangaceiro.
Eu achei um desaforo
Uma falta de ação
Um cabra matar meu pae
E não dá satisfação
Matei e o fiz em postas
Abri ele pellas costas
Arranquei-lhe o coração. (BARROS, pp. 1-2)
Ao dar voz a Silvino, o poeta delega-lhe tom autobiográfico e se exime de qualquer
responsabilidade quanto aos detalhes mais pesados, densos, da narrativa. Na sua voz, o
cangaceiro deixa patente o motivo de se ter tornado cangaceiro, o que confirma sua real
história, segundo os documentos que atestam sua biografia. O realismo de que falou Mark
129
Curran se apresenta mais dramático e faz a imagem de Antônio Silvino ter boa passagem
entre os leitores/ouvintes de Leandro Gomes de Barros. A coloração que o poeta dá à
narrativa configura o heroísmo que o cangaceiro adquire durante sua atuação.
A ideia de justiça que Antônio Silvino defendia era a justificativa para sua
permanência no cangaço. O fato de ser tido como “um distinto cavalheiro” termina por levar a
comoção popular a entendê-lo como um homem que pensava o bem comum, primava pela
igualdade e tinha na Justiça a instância que deveria ter isenção no trato com os cidadãos,
independentemente do extrato social a que pertença, e não como entidade de olhar unilateral,
e que se faz conivente com os grandes senhores de terra, com as classes privilegiadas, com o
alto comerciante e o político de influência. Esse viés demanda a ideia de que a Justiça estaria
a serviço dos que dispõem de poder social, político, econômico. Em outras palavras, que
funciona de acordo com o que se teria a oferecer.
No cordel A política de Antônio Silvino, esse sentimento de justiça se faz presente com
a ideia de o cangaceiro, em tendo poder político, promover uma sociedade cujos bens sejam
comuns:
[...]
A terra será em comum,
Todos se apossarão,
Ninguém pagará mais foro
Para fazer plantação:
Não haverá nesse tempo
Nem criado nem patrão.
Será geral igualdade
Todos hão de ter direito,
O que foi rico, terá
Ao que foi pobre, respeito.
O graúdo senhor de engenho
Irá trabalhar no eito. (BATISTA apud. DAUS, 1982, p. 130)
Francisco das Chagas Batista continua com o empréstimo da voz do eu a Antônio
Silvino, que se apresenta como aquele que vem em honra do pai, vingá-lo de assassinado
(como já mencionado anteriormente), já que à Justiça não coube cumprir sua missão.
Esse eu que se conta em exaltada voz épica só o faz porque o poeta não se concede
construir seu poema épico com base numa terceira voz. O que se mostra interessante, porém,
é que o texto, apesar do eu, não permite ao leitor atento enxergá-lo fora de uma concepção
épica. Perceba-se o tom elevado, na medida do possível, do cangaceiro, que tenta explicar a
atitude nem tanto “por instinto”, de honrar o sangue paterno:
[...]
Não foi tanto por instinto
Mas sim, por uma vingança
130
Porque mataram meu pai
Minha única esperança
E eu vingar sua morte
Para mim era uma herança.
[...]
Para a punição do crime
Ninguém se apresentou
A justiça do lugar
Também não se interessou
Inda hoje tenho em suspeita
Que ela ao crime auxiliou.
[...]
Eu chamei pela justiça
Esta não quis me escutar
Me vali do bacamarte
Vi esse me auxiliar
Nele achei todas as penas
Que um código pode encerrar. (BATISTA, pp. 4-5)
Os versos acima são do cordel O interrogatório de Antônio Silvino e trata do ingresso
do bandoleiro no mundo do cangaço e dos motivos dessa atitude. Há de se convir, entretanto,
que a herança de que fala Silvino soa com ironia se a palavra for cogitada não somente como
vingança pela perda do pai, mas como algo duplamente grandioso, o que inclui a real
vingança pelo sangue de seu genitor, mas também o desafiar o próprio estado com sua
ausência de justiça. O sentimento de justiça, não feita a quem de direito, termina por remeter
o indivíduo a agir segundo suas forças e seu senso pessoal de justiça. No discurso do
cangaceiro, sua força vem mesmo do bacamarte que o auxilia, já que a lei não encerra os
códigos contidos nela.
Ao lidar com o imaginário tanto seu como do leitor/ouvinte, os poetas populares
transmitiam a esse mesmo leitor/ouvinte o conceito de que o cangaceiro, por sua busca e sede
de justiça, só cometia atrocidades em havendo motivo muito superior, a exemplo das
inimizades que plantava em sua trajetória: não matavam, não usurpavam sem necessidade.
Não roubavam honra. Todos os chefes de bando, no âmbito do real ou do imaginário sempre
orientaram seus comandados a respeitarem as mulheres, as crianças, os idosos.
Sobre a honra de mulheres e quanto às causas dos roubos, aconselhava Lampião a seu
grupo: [...] respeitem as moças e mulheres casadas. [...] Tirem dos ricos e deem aos pobres.
(Cf.: ARAÚJO, 1985, p. 90). A mítica do cangaço se configura, além do mais, quando seus
chefes orientam a distribuição aos pobres daquilo que dos ricos se tirou.
Essa bondade traz à mentalidade do povo a ideia de que o cangaceiro está ao seu lado
para sua defesa e proteção. O poeta percebe essa nuança e na sua poética é natural o destaque
131
ao cangaceiro herói. Se o poeta representa seu povo, se seu canto deve ser coletivo por
conceber a vontade das gentes sertanejas por um referencial mítico, de suas mãos brotam
esses heróis a reverter a ordem, embora seja próprio dos heróis revertê-la. Heróis às avessas e
do seu jeito, se não trouxeram uma paz nordestina nem a justiça desejada, seus embornais
floridos foram motes para a poesia e o sonho.
2.4. CATÁBASE: A DESCIDA AO INFERNO. A SUBIDA AO BOM SERTÃO
“Desçamos ao mundo onde nada se vê”
(“Castelo dos iluminados”, Dante Alighieri, em A
divina comédia)
O mito, no sentido que apontamos a partir de textos da literatura de cordel, e em
relação aos cangaceiros, não é aquele à semelhança do que os gregos apresentam. Primeiro, o
tempo é outro; segundo, a proposta é também outra, pois uma foi tornada clássica, a outra,
popular. Para os gregos, o mito tem por função disseminar valores e feitos que seus heróis
representam como a luta em meio às tormentas, as vitórias, a coragem, a astúcia, a
persistência. No mito do cangaço, há valores que até se assemelham aos que os gregos
propunham, porém não há uma unanimidade nessa direção, o que torna os cangaceiros
bandidos para alguns e heróis para outros. A se levar em conta o primeiro argumento, os
cangaceiros não são exemplares, portanto, não representariam o mito. Levando-se em conta o
segundo argumento, representariam o herói, pois este guarda defeitos e virtudes para
representar seu povo: a astúcia, a coragem e a garra são as qualidades que tornam mitos os
cangaceiros, no enfrentamento das adversidades por que sempre passaram.
Na Eneida, livro VI, Eneias estabelece interessante diálogo com a Sibila de Cumes:
Não há provação, ó virgem, que apresente diante de mim um aspecto novo ou
inesperado; tudo imaginei e com antecipação estudei em meu espírito. Só peço uma
coisa: uma vez que é aqui, segundo dizem, a porta do rei do inferno e o tenebroso
Paul, transbordamento do Aqueronte, que me seja permitido ir à presença de meu
querido pai e com ele entreter-me; ensina-me o caminho e abre as portas sagradas. (VIRGÍLIO, s/d., p. 96)
Nas epopeias ocidentais, principalmente as greco-romanas, a menção ao inferno ou
mundo subterrâneo ou das sombras é constante. Metáfora das dificuldades por que tem de
passar o herói, o inferno será sempre o limite, linha tênue entre a angústia e a vitória. A
primeira se dá porque é a estada temporária do herói no Hades; a segunda, porque de lá
regressa. Espaço de aprendizado e de colher experiência, o inferno é a porta do saber, pois é lá
que estão os antepassados: Ulisses, Eneias, Dante, todos, guardadas as proporções e
132
diferenças, vão buscar no passado ou na tradição orientações, a partir das quais rumarão seus
caminhos. A condição divina do herói decorre de, ainda que mortal, descer ao inferno e de lá
regressar:
Andei – prosseguiu Ulisses – mais tempo ainda no convívio das sombras. Mas tantas
me perseguiram, tantas me interrogaram, chamando, gritando, chorando, que o medo
tomou-me e resolvi fugir-lhes. Por isso regressei à luz e à alegria da vida, e ordenei
aos meus marinheiros que pegassem nos remos e que remassem depressa. Logo que
o navio sulcou as águas do Oceano, o reino da morte se escondeu no horizonte
fugidio do mar. (HOMERO, s/d., p. 74)
Em A Divina comédia, Dante aborda a temática do inferno na busca do pagão Virgílio,
seu guia, diante do qual treme:
Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em
uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é
difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples
lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão
terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar
de outras coisas, que do bem, passam longe.
Eu não sei como fui parar naquele lugar sombrio. Sonolento como eu estava, devo
ter cochilado e por isso me afastei da via verdadeira. Mas, ao chegar ao pé de um
monte onde começava a selva que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi
aquela ladeira coberta com os primeiros raios do sol. A cena trouxe luz à minha
vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanças. Decidi então subir aquele
monte. Olhei para trás uma última vez, para aquela selva que nunca deixara uma
alma viva escapar, descansei um pouco, e depois, iniciei a escalada. (ALIGHIERI,
2002, p. 9)
Na literatura de cordel, especificamente, nas narrativas sobre o cangaço, a presença do
mundo subterrâneo ou do inferno passa a ser constante. O primeiro texto de que se tem notícia
sobre essa temática é a A chegada de Lampião no inferno, do poeta José Pacheco da Rocha. A
narrativa dá conta da visita que faz Lampião ao inferno. De forma humorada, segundo a
natureza popular da poética do cordel, o texto acontece em cenário do cotidiano de uma
cidade qualquer, com seu comércio, seus armazéns, suas casas de armas, seus vigilantes, seus
escritórios, a exemplo de qualquer cidade com sua vida comum e normal. O poeta transfere a
realidade vivida no espaço da cidade e a recria no inferno, recinto para o qual Lampião é
destinado, para, como os personagens clássicos, adquirir a condição de herói.
Narrado em terceira pessoa, o texto é escrito segundo a ótica de um cangaceiro que
volta do inferno para assombrar o sertão, e dá conta de como a fronteira entre a terra e o
inferno foi cruzada por Lampião, que teve que, sozinho, superar as dificuldades para descer e
alcançar o mundo subterrâneo:
Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
133
Em certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal-assombrado.
E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O Inferno nesse dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar. (PACHECO, p. 1)
O cangaceiro enfrenta, pelas próprias forças, como é comum ao herói, o primeiro
obstáculo representado pelo porteiro do inferno, que lhe proíbe a entrada, com a alegação de
que tem de cumprir ordens superiores:
Vamos tratar da entrada
Quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
- quem é você, cavalheiro?
- Moleque, eu sou cangaceiro;
Lampião lhe respondeu.
- Moleque, não; sou vigia
E não sou seu parceiro
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro...
- Moleque, abra o portão
Saiba que eu sou lampião
Assombro do mundo inteiro! (PACHECO, p. 2)
O diálogo tenso entre Lampião e o vigia leva este a consultar o grande chefe para
saber como agir diante do cangaceiro, e se lhe permite a entrada no inferno:
[...]
Então esse tal vigia
Que trabalha no portão
Dá pisa que voa cinza
Não procura distinção
E o negro escreveu não leu
A macaíba comeu
Ali não usa perdão.
O vigia disse assim:
Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro.
Lampião disse: vá logo
Quem conversa perde hora
134
Vá depressa e volte já
Eu quero pouca demora
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo asavesso
Toco fogo e vou embora. (PACHECO, pp. 2-3)
Percebe-se que, ao descer ao inferno, o herói mantém a mesma intolerância com que
viveu na terra. Apesar do humor do texto, Lampião é colocado como se não percebesse que
mudou de dimensão, o que denota que sua valentia integra a memória popular como a daquela
que enfrenta qualquer espécie de poderoso. Consciente, ou inconscientemente, o poeta deixa
transparecer que, se o inferno que o cangaceiro viveu na terra não lhe foi menos duro e cruel,
e ao qual desafiou sem fugir, na mansão inferior, esse enfrentamento não poderia ser diferente
nem decepcionante. Virar o inferno às avessas e incendiá-lo é desafiá-lo e demonstração de
que não há perigo que o cangaceiro tema.
A anunciação pelo vigia de que Lampião aguarda ordens para entrar no inferno deixa o
chefe do inferno perturbado e irredutível. A graça do texto fica por conta do medo do diabo de
perder para o cangaceiro, o que acaba ocorrendo. A ironia de só chegar gente ruim ao
inferno, o desejo de expulsar boa parte dos que já se encontram lá, o julgamento que Satanás
faz do bandido para impedi-lo de cruzar o tenebroso portão revelam a grandeza do nome do
fora da lei. Virgulino Ferreira é nome historicamente internacional por sua valentia e
atrocidades; desse modo, não justifica, segundo o chefe da escura mansão, a estada do
cangaceiro naquele local. Diante da fala do vigia, as reações de seu chefe são as mais
inusitadas:
[...]
O vigia foi e disse
A Satanás no salão
Saiba vossa senhoria
Que aí chegou Lampião
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe ingresso ou não.
- Não senhor! Satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Eu já estou com vontade
De botar mais da metade
Dos que tem aqui pra fora.
- Lampião é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A nossa propriedade
E eu não vou procurar
135
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade.
Disse o vigia: patrão
A coisa vai se arruinar
Eu sei que ele se dana
Quando não puder entrar
Satanás disse: isto é nada
Convide aí a negrada
Leve os que precisar.
- Leve cem dúzias de negros
Entre homem e mulher
Vá na loja de ferragens
Tire as armas que quiser
É bom avisar também
Para vir os negros que tem
Mais compadre Lucifer. (PACHECO, pp. 3-4)
Nesse sentido, é pertinente que se verifique uma colocação de Hannah Arendt quanto à
questão de como a impossibilidade do diálogo desdobra certos acontecimento e o que disso
decorre:
As armas e a luta pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se
do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala. Quando usadas com o
propósito de lutar, as palavras perdem sua qualidade de fala; transforma-se em
clichês. O modo como os clichês instalaram-se em nossa linguagem cotidiana e em
nossas discussões, pode ser um bom indicador não só do ponto a que chegamos ao
nos privarmos de nossa faculdade da fala, mas também de nossa presteza para usar
meios de violência mais eficazes para impor nossos argumentos. (ARENDT, 1995,
p. 22)
A partir do que afirma a filósofa alemã, entende-se que Lampião, embora irônico,
tenta estabelecer diálogo, primeiro com o vigia, e posteriormente, com o superior do inferno,
por intermédio desse mesmo guarda e têm frustrados seus planos, devido ao irredutível chefe.
Nesse sentido, a fala perde o valor, soa como o clichê mencionado por Arendt, pois passa a
lugar comum, por tornar-se repetição, o que resulta perda de força argumentativa.
Nas estrofes imediatamente anteriores, percebe-se o que seria a possibilidade de
diálogo. Nas que seguem, é perceptível o exato momento em que, não havendo essa troca de
comunicação, recorrem ambos os lados à violência, o que leva à conclusão de que respostas
pelas armas decorrem do esvaziamento de diálogos. A não aceitação de uma conversa
deflagra o conflito que se dá tanto por meio de armas quanto com recursos outros como paus,
pedras, as próprias mãos, os braços, apetrechos do cotidiano, o que manifesta a
irracionalidade da lida de violência:
[...]
E saiu a tropa armada
Em direção ao terreiro
Com faca, pistola, facão
136
Cravinote e grandeiro
Uma negra também vinha
Com a trempe da cozinha
E pau de bater tempero.
Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada
Disse: só na Abissínia
Oh! Tropa preta danada!
O chefe do batalhão
Gritou de arma na mão
- Toca-lhe fogo, negrada!
Acabou-se o tiroteio
Por falta de munição
Mas o cassete batia
Negro rolava no chão
Pau e pedra que achavam
Era o que as mãos achavam
Sacudiam em Lampião.
- Chega traz um armamento!
(Assim gritava o vigia)
Traz a pá de mexer doce
Lasca o gancho de caria
Traz um birro de Macau
Corre, vai buscar um pau
Na cerca da padaria!
Lúcifer mais Satanás
Vieram olhar do terraço
Todos contra Lampião
De cacete, faca e braço
O comandante no grito
Dizia: briga bonito
Negrada, chega-lhe o aço.
Lampião pode apanhar
Uma caveira de boi
Sacudiu na testa dum
Ele só fez dizer, oi...
Ainda correu dez braças
E caiu enchendo as calças
Mas eu não sei de que foi. (PACHECO, pp. 5, 6 – 7)
É possível que, por influência judaico-cristã, o poeta recorra ao mito de Sansão, em que,
num momento inusitado e até gracioso, o herói dos hebreus se utiliza do improvável, quando,
segundo o relato bíblico, seus conterrâneos o entregam ao povo filisteu. Num lance próprio do
herói, e com ajuda sobrenatural, Sansão se liberta das amarras que o prendiam e age:
Três mil homens de Judá desceram então à caverna da rocha de Etã e disseram a
Sansão: "Você não sabe que os filisteus dominam sobre nós? Você viu o que nos
fez?"
Ele respondeu: "Fiz a eles apenas o que eles me fizeram".
137
Disseram-lhe: "Viemos amarrá-lo para entregá-lo aos filisteus".
Sansão disse: "Jurem-me que vocês mesmos não me matarão".
"Certamente que não!", responderam. "Somente vamos amarrá-lo e entregá-lo nas
mãos deles. Não o mataremos." E o prenderam com duas cordas novas e o fizeram
sair da rocha.
Quando ia chegando a Leí, os filisteus foram ao encontro dele aos gritos. Mas o
Espírito do Senhor apossou-se dele. As cordas em seus braços se tornaram como
fibra de linho queimada, e os laços caíram das suas mãos.
Encontrando a carcaça de um jumento, pegou a queixada e com ela matou mil
homens.
Disse ele então:
"Com uma queixada de jumento
fiz deles montões.
Com uma queixada de jumento
matei mil homens". (LIVRO DE JUÍZES, Cap. XV, vv. 11-16)
Lampião também vive episódio semelhante, embora segundo a visão humorada do
poeta: [...]
Lampião pode pegar
Uma caveira de boi
Sacudiu na testa dum
Ele só fez dizer, oi...
Ainda correu dez braças
E caiu enchendo as calças
Mas eu não sei de que foi. (PACHECO, p. 7)
Uma carcaça de boi é também algo simbólico em relação ao espaço de que o
cangaceiro procede. Mais uma vez, o poeta se utiliza de experiências cotidianas da vida
sertaneja para compor, por transferência, o cenário da luta de Virgulino Ferreira no inferno.
Peças como caveiras de boi, de jumentos e assemelhados já compunham a paisagem de
representação de morte tanto para o leitor como para o cangaceiro. Se, diferentemente de
Sansão, que, segundo a lenda, matou mil homens com a queixada de jumento, a morte de
apenas um, no inferno, com artimanha que se assemelha à do personagem bíblico, denota a
necessidade de se sair de situações as mais variadas com os recursos de que se dispõem,
mesmo que da forma mais inusitada. Matar um ou mil não faz diferença para quem enfrentava
legiões. Ambos os heróis se assemelham pela inteligência com que os narradores lhes fizeram
sobressair do embaraço com que se envolveram.
Nesse aspecto, o poeta leva o leitor a, como receptor, se enredar à narrativa e não só
decodificá-la, mas imaginar as cenas resultantes da leitura, abstrair naquele sentido que
propõe Guinsburg (2001) de esse leitor não se fazer simples, mas de pôr “em andamento a sua
aparelhagem, não só de percepção e decodificação, mas de reativação na cena de seu
imaginário, com a animação de sua sensibilidade” (p. 21). Ao colocar Lampião no inferno, o
138
poeta conduz o leitor à expectativa de que o cangaceiro se sairia da situação em que se
encontrava, uma vez que na paisagem sertaneja em atuação no cangaço se saíra de
circunstâncias as mais extraordinárias:
[...]
Estava travada a luta
Mais duma hora fazia
A poeira comia tudo
Negro embolava e gemia
Porém Lampião ferido
Ainda não tinha sido
Devido à grande energia.
Lampião pegou um seixo
E rebolou-o num cão
Mas o que, arrebentou
A vidraça do oitão
Saiu um fogo azulado
Incendiou-se o mercado
E o armazém de algodão.
Satanás com esse incêndio
Tocou no búzio chamando
Correram todos os negros
Que se achavam brigando
Lampião pegou a olhar
Não vendo com brigar
Também foi se retirando. (PACHECO, p. 7).
A mudança inesperada de cena se dá no momento em que Lampião, ao se utilizar de
um seixo como arma para sair da insustentável situação em que se encontrava, surpreende
não somente a todos os moradores do inferno como ao leitor, que pode ter no riso a reação
maior, mas pode também inferir da inteligência do texto não só em armar, engendrar a
inusitada saída do herói do inferno, mas em trazer solução surpresa para fechamento do
próprio texto, o que representa o ponto final de alto relevo da narrativa.
Ao se retirar sorrateiramente, como o texto sugere, o cangaceiro adquire um quê de
humanidade. Se como herói não visse “com quem brigar”, a saída como tal não é das mais
nobres e, nesse sentido, o poeta faz o mito/linguagem cair nas graças do leitor. É justamente
nesse aspecto que Kothe (1987) afirma que “à medida que o herói épico decai em sua
epicidade, ele tende a crescer em sua “humanidade” e nas simpatias do leitor/expectador” (p.
14). Esse mesmo leitor depara-se também com um último desfecho, uma última constatação:
o inferno em polvorosa diante das perdas. A narrativa se encerra com a reclamação dos
maiorais do mundo das trevas:
[...]
139
Houve grande prejuízo
No inferno nesse dia
Queimou-se todo o dinheiro
Que Satanás possuía
Queimou-se o livro de pontos
Perdeu-se vinte mil contos
Somente em mercadoria.
Reclamava Lucifer:
Horror maior não precisa
Os anos ruins de safra
Agora mais essa pisa
Se não houver bom inverno
Tão cedo aqui no inferno
Ninguém compra uma camisa. (PACHECO, p. 8)
Nas duas estâncias, pode-se perceber que o foro de herói do cangaceiro está em
constituir uma vontade popular e coletiva de vencer as adversidades, de enfrentar poderosos,
atingir a medida maior do anseio de todos. Numa visão ainda humorada, mas não menos
verdadeira, o poeta lança para o leitor a ideia de que esse mito/linguagem é a configuração do
herói pícaro segundo preconiza ainda Kothe (1987) com sua teoria a esse respeito: “o herói
épico é o sonho de o homem fazer a sua própria história; o herói trágico é a verdade do
destino humano; o herói trivial é a legitimação do poder vigente; o pícaro é a filosofia da
sobrevivência feita gente” (p. 15).
Esse herói da “filosofia da sobrevivência feita gente” é encontrado, por exemplo, num
João Grilo de O auto da compadecida, com seu enfrentamento dos poderosos: o que envolve
o padeiro e sua mulher, o clero, o senhor de fazenda, até um grupo de cangaceiros, numa
sociedade composta de injustiças. No inferno, o cangaceiro, por tantas peripécias, não deixa
de ser um pícaro, para, na busca de uma saída inteligente, agora sem o poder das armas, e só
com o da inteligência, ter num seixo o grand finale para a vitória sobre o poderoso inimigo: o
inferno.
Em desfecho carregado ainda de ironia/humor, mas com verdade, o poeta se dirige ao
leitor para dar conta do paradeiro de Lampião:
[...]
Leitores, vou terminar
Tratando de Lampião
Muito embora que não possa
Vos dar a explicação
No inferno não ficou
No céu também não entrou
Por certo está no sertão. (PACHECO, p. 8)
Como os heróis clássicos, Lampião foi levado à catábase, ou seja, esse descer ao “mundo
subterrâneo, com todo o sortilégio que lhe confere o misterioso desconhecido [...] como um
140
reino onde a verdade pode ser encontrada ou, pelo menos, ouvida, porque as almas dos que
desapareceram da terra a podem contar mais livremente, testemunhas que foram das muitas
peripécias já lendárias por que passaram no mundo dos vivos”. (ROSADO FERNANDES,
1993, p. 347).
Descer ao inferno e de lá sair é algo inerente aos heróis. Na mítica brasileira e
nordestina Virgulino Ferreira da Silva, com sua centelha humana, morreu. Lampião, por outro
lado, segundo sua centelha divina, vive. E “por certo está no sertão”.
141
3 – AMORES NO CANGAÇO: MARIAS E DADÁS – VÊNUS NO SERTÃO
O sertão cria homens fortes e mulheres belas e cria também
devoradoras paixões no mais tímido peito da mais recatada
donzela.
(Jorge Amado, em ABC de Castro Alves).
Há pelo menos duas versões sobre as mulheres que se encaminharam para o cangaço:
as que tiveram o propósito de se juntar ao homem a quem amavam, espontaneamente, e as
que, raptadas, terminaram por amar, com o tempo, o homem a quem perigosamente tiveram
de acompanhar.
Faz-se necessário lembrar que essas mulheres antes de ingressarem no cangaço
tiveram habitual viver doméstico: seus lares, suas famílias, a dedicação doméstica, tudo
segundo a tradição familiar nordestina. No entanto, seu desprendimento (como anteriormente
aludido, forçado ou não) para vivenciar o cangaço incluía a coragem que, sob a égide da
tensão, era imprescindível, para se sentirem seguras já que tinham a vida presa por fio tênue e,
portanto, não sabiam o que era a vida e a morte.
No mundo do cangaço, há de se ressaltar, todos os que dele tomaram parte tinham
referencial familiar, religioso, cultivavam o respeito à moral, aos bons costumes sociais, além
de, quase todos, serem provenientes de famílias com posses, isto é, proprietários de pequenas
áreas rurais (uns até de grandes fazendas) das quais tiravam o sustento doméstico. Todos
procedem do meio rural. Todos alegavam vingança como idêntico motivo da escolha de
entrada para o cangaço: a morte do pai, de um parente próximo, de um amigo íntimo era
argumento forte e mote dessa tomada de decisão.
Quanto às mulheres que tomam parte desse universo, há de se considerar igual
referência encontrada nos homens: família, religião, moral, bons costumes, vida econômica,
em muitos casos, relativamente estável, salvo em períodos de seca, embora outras tivessem
origem muito humilde.
Das filhas de proprietários rurais constam Ilda Ribeiro de Souza, a Sila; Maria Gomes,
a Maria Bonita; Sérgia Ribeiro, a Dadá, entre outras, que deixaram para trás a casa paterna,
espontaneamente (Maria Bonita) ou raptadas (Dadá e Sila), entre tantas, que terminaram, a
142
exemplo das duas últimas, por se apaixonar e amar seus companheiros, atitude que as torna
fortes por seguirem seus homens até a derrocada do cangaço. Perderam a vida nessas
perigosas trilhas Neném de Luiz Padre, (1936) e Maria Bonita e Enedina (dois anos mais
tarde). Outras pagaram com a prisão, durante o cangaço, e após o episódio de Angicos, em
1938.
Em depoimento em torno de sua vida antes de entrar para o cangaço e sobre os
referenciais de família, diz Ilda Ribeiro de Souza, a Sila:
Nasci em Poço redondo, uma cidadezinha do interior de Sergipe, localizada no
semiárido nordestino, banhada pelo Rio São Francisco. Foi lá que nasci, na Fazenda
Recurso, no dia 26 de outubro de 1924. A Fazenda Recurso pertencia a meu pai e a
meu tio China [...]. Ambos viviam da pecuária e da agricultura. Meu pai, Paulo
Gomes de Souza, e minha mãe, Josefa Gomes de Souza, sempre viveram em Poço
Redondo. Quando minha mãe morreu, eu contava cinco anos de idade. Aos treze,
perdi meu pai. Órfã, fiquei aos cuidados dos irmãos mais velhos. Apesar de tudo não
podia me queixar da sorte, pois se meus parentes não eram ricos, também pobres não
eram; tinham do que tirar o pão de cada dia. Trabalhar, sim, porque no sertão toda
criatura de Deus que se preze, trabalha. (SOUZA, 1997, p. 19)
Quanto à vida em criança, depõe:
Como toda criança, gozava também dos meus momentos de folguedos. Picula,
chicotinho queimado, boca-de-forno e bonecas de pano que eu mesmo preparava
com esmero e bom gosto. Marietinha, Tila e Doza, minhas amigas de infância,
tinham em mim sua pequena costureira. Fazia os vestidinhos de suas filhas e
empregadas. Aprendi a fazer renda de almofada, pois em Poço Redondo todo
mundo era rendeira [...]. Eu já desempenhava, contudo, alguns afazeres: lavar as
roupas dos irmãos, também os pratos e as panelas da casa, além de pegar água na
fonte. Sabia tirar leite das vacas e das cabras. (SOUZA, 1997, p. 19)
Ainda no tocante ao lar como ambiente de aconchego e núcleo da família, percebe-se
na vida de Maria Bonita igual infância e adolescência em comparação com todos os que
vivem essa fase na cidade ou no campo, em qualquer época: “Convivendo com os irmãos e
parentes próximos, suas brincadeiras resumiam-se nas rodas, passa-anéis, bonecas feitas de
sabugo de milho vestido com pano.” (ARAÚJO, 1985, p. 168).
A vida digna, no sentido econômico, se dava da seguinte forma:
O criatório em maior quantidade era de miunças: cabras, cabritos, ovelhas. Não se
deixando de ter também algumas vacas, e o leite para beber puro como também
misturado com farinha. Aliás, muitas vezes pilava-se o piruá de milho de pipoca,
isto é, os grãos que não estouravam, e o fubá grosseiro era levado já no fundo da
cuia ao pé da vaca que estava sendo ordenhada no curral. Esguichava-se o leite
morno do animal no tosco recipiente e quando o fubá sobrenadava à tona do leite,
bebia-se gostosamente. (ARAÚJO, 1985, p. 168)
143
Há de se perceber pelo excerto acima, quanto era simples a vida do sertanejo com seus
hábitos, pequenos prazeres cotidianos, a lida com o gado grande e pequeno, demais afazeres.
Na vida familiar de Maria de Déa, posteriormente conhecida por Maria Bonita, nada ou pouco
diferenciava das demais mulheres que ingressaram no cangaço. Todas depõem, salvo
pequenas diferenças, do mesmo estilo de vida, do modo como foram criadas e orientadas
pelos pais e irmãos mais velhos, em um código sertanejo que visava à dignidade, ao respeito
humano, religioso e social.
Para Bachelard (2000), “o mundo é um ninho; um imenso poder guarda os seres do
mundo nesse ninho” (p. 116). Nossa reflexão com respeito à afirmativa do autor de A poética
do espaço, e com vistas à temática que ora abordamos, é a de que a mulher, ao ingressar nas
lidas do cangaço, começa a perder, aparentemente, o espaço do ninho. A casa, no sentido mais
restrito e até figurado de lar como família, núcleo familiar, lugar daqueles que vivem sob o
mesmo teto, se perde num primeiro momento, já que a nova casa dessa mulher passa a ser o
mundo.
A perda do ninho como espaço do núcleo familiar é compensada com o aparato desse
novo ninho-mundo, espaço não fixo, nômade, sem um referencial, sem um endereço, sem os
caracteres de um pouso a que se possa chamar de lar. A proteção desse e nesse novo ninho-
mundo-lar se dá pelo “céu imenso apoiado sobre a terra imensa”, de que fala Herder, citado
por Bachelard (2000, p. 116). Portanto, há de se apontar, todos os cangaceiros e cangaceiras,
inclusive o casal Lampião–Maria Bonita, nunca deixaram de sonhar, e eram sequiosos com a
volta, o restabelecimento e consequente estabelecimento do lar no seu sentido mais
tradicional, como sempre lhes foi passado.
Para a sertaneja que ingressa no cangaço, a ideia de lar não se perde, embora sua
atitude de entrada para esse universo marginal não a deixe vivenciar o lar de que saiu ou o que
queria construir. Entra em pauta nessa nova opção de vida o ninho-mundo que acima
apontamos: um lar que, como aquele estabelecido e estável, demanda ordem, limites,
tradição, respeito, costumes inerentes aos lares convencionais do sertanejo: a busca da
proteção divina (o céu de Herder) por meio de orações, ladainhas, contrições é comum aos
bandos, sobretudo aquele comandado por Lampião. Vive-se num lar aberto, vulnerável. É
mister que se busque o imenso poder de que nos fala Bachelard, como apelo à proteção de um
ninho que se faz itinerante e nômade.
Ao deixarem as casas dos pais e, às vezes, de seus maridos, caso de Maria de Déa, a
Maria Bonita, essas mulheres tinham de ser suficientemente fortes para acompanharem seus
144
homens em um mundo de incerteza, sombra e morte, sem a mínima condição de se pensar em
um teto, uma vez que a vida se fazia de confrontos, correrias e emboscadas. A casa como
espaço de refúgio passa a ser uma impossibilidade. Nem as casas dos coiteiros, salvo em
situações de tranquilidade passageira, eram seguras para a vida que os cangaceiros para si
propuseram.
Cangaceiros mais antigos tinham mulheres e filhos ou noivas, mas deles não se faziam
acompanhar. Praticavam seus assaltos, faziam suas rondas, empreendiam suas façanhas, mas
voltavam aos seus lares, pois tinham todos morada fixa. Convém lembrar que nesse lapso de
tempo o cangaço não era ainda profissão. Em muitos casos, funcionava com a argumentação
que sempre prevaleceu durante toda a história cangaceiresca: vingança em causa própria ou
em nome de amigos: vingava-se o pai, o irmão, um familiar qualquer. Um amigo. Às vezes,
famílias da comunidade também eram defendidas e protegidas por esses andarilhos justiceiros
ainda no século XIX, sobretudo a partir de sua segunda metade. Mas todos os
protocangaceiros eram pequenos proprietários de terras. Nelas e delas viviam e para ela
retornavam.
Ao virar profissão e sem deixar de ter como pretexto a vingança, os cangaceiros
passam a viver no nomadismo. A princípio essa forma de vida dispensa as mulheres. Não há
como dividir com o sexo oposto uma vida que oferece riscos iminentes. Comprometer-se com
a vida no cangaço é, inclusive, ser estorvo: o ser mulher, as gravidezes, a agilidade – que
talvez não tenha –, o saber atirar para defesa própria (se for possível) e do bando. Destreza e
mobilidade, tudo levava a crer, não eram inerentes a mulheres, o que representaria um
percalço na vida e sobrevivência do grupo cangaceiro.
É inerente, porém, aos homens amar: homens e mulheres em sociedade e, não importa
a circunstância, têm seus amores e devem amar. A vida moderna no cangaço terminou por não
impedir que Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, tivesse sua Sérgia Ribeiro da Silva, a
Dadá; que Zé Sereno tivesse sua Ilda Ribeiro de Souza, a Sila; que Luiz Pedro tivesse sua
Neném; que Lampião tivesse sua Maria Bonita, para citar alguns. E isso é a busca humana por
constituir um lar.
145
3.1 – TANTAS MULHERES... MARIAS BONITAS QUE SE MULTIPLICARAM
Maria, a mais bonita
Que uma bola prateada,
Usava batom e fita
E andava bem armada [...]
(Fanka, em A mulher e o cangaço)
Ao viver o nomadismo, próprio do cangaço, os grupos eram compostos apenas por
homens, pois, pelos motivos aventados anteriormente, não era possível ter nos bandos a
presença feminina. No entanto, com a entrada de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e
com sua ascensão no comando de grupo importante, dividido em subgrupos de 8 a 10 homens,
num total de mais de cem, a quem chefiou, o rei dos cangaceiros termina por admitir ingresso
de mulheres para o bando sob suas ordens.
Nos idos de 1929, o próprio e dito Lampião, em suas passagens pelas bordas do rio
São Francisco, faz contatos e tem o apoio de uma família, a do fazendeiro José Felipe de
Oliveira e de Maria Joaquina da Conceição, a dona Maria Déa, e deixa seu coração se
apunhalar pela beleza de Maria, a mais bonita:
Por ocasião dessa segunda estada na fazenda, uma das filhas do casal estava
presente. Seu nome era Maria Gomes de Oliveira, mas todos a chamavam de Maria
de Déa. Era uma jovem de dezoito anos, morena, de cabelos pretos e olhos azuis, de
estatura mediana. Era casada, mas estava, naquele momento, de relações cortadas
com seu marido, José Miguel da Silva, mas conhecido como Zé de Nenê. O
relacionamento entre os dois não vinha bem há algum tempo, e ambos já haviam se
separado mais de uma vez. (FERREIRA e ARAÚJO, 2009, p. 225)
Lampião e Maria de Déa se mostram simpáticos mutuamente, conversam, sabem um
do outro, e o cangaceiro deixa-lhes peças de lenços para bordar quando sabe de sua habilidade
quanto a isso, na esperança de voltar em determinado tempo. É na volta para pegar a
encomenda que os corações se apaixonam e se dão. Começam a namorar, conforme atestam
os depoimentos prestados pelas irmãs de Maria Bonita, a saber, Antônia Oliveira Santos,
conhecida por Dorzina, e Amália Oliveira Silva, a Dondon (Cf. FERREIRA e ARAÚJO,
2009, pp. 225-226).
O agravante dessa amizade é a perseguição empreendida com mais afinco pelas
volantes à casa do patriarca dos Oliveira, a partir da notícia que provavelmente se espalha. A
família, diante da problemática, não tinha como agir: como impedir que o cangaceiro não os
146
visitasse? Qual seria sua reação? Desse modo, Lampião frequentava a família da moça, e a
polícia, em represália, igualmente investia em visitas de investigação à referida fazenda, o que
levou o patriarca dos Oliveira a tomar a atitude de trocar de domicílio:
Certa ocasião chegou à Malhada da Caiçara, [Fazenda da Família] uma volante tão
violenta, que após os interrogatórios de praxe para saber o destino de Lampião,
começou a destelhar a casa, derrubar cercas e ameaçar incendiar tudo.
Zé Felipe viu-se obrigado a mudar-se, indo para Alagoas, num local conhecido
como Salomé. Maria, pensando no bem-estar de seu pai e de seus familiares, e não
querendo deixar de ver Lampião, tomou a mais importante decisão de sua vida:
resolveu acompanhar Lampião e ir-se embora com ele definitivamente.
(FERREIRA e ARAÚJO, 2009, p. 226)
O poeta Antônio Teodoro dos Santos, anos mais tarde, em registro de cordel, narra o
episódio dessa decisão de Maria Bonita quanto a acompanhar Virgulino Ferreira:
[...]
Sei que em suas andanças
O senhor muito precisa
De uma mulher ao seu lado
Que saiba bem onde pisa
E prepare as refeições,
Costure e pregue botões
Em blusão, calça e camisa.
[...]
A conversa de Maria
Lampião ouviu calado,
Sem alteração, sorrindo,
Como quem já conformado;
Convidou-a prazenteiro,
À sombra de um imbuzeiro,
Parecendo apaixonado.
Como que hipnotizado
Na beleza de Maria,
Sentindo o perfume dela,
Lampião se derretia,
Tanto se contraditou
Que no final terminou
Querendo o que não queria.
Conversaram muito tempo
Dos capangas afastados,
Que com tais perspectivas
Ficaram muito alarmados,
Sem entender quando viram
Que os dois na hora saíram
Já caminhando abraçados.
Ficaram mais assombrados
E sem compreender bem
Porque sabiam que o chefe
Não confiava em ninguém,
147
Porém nas mãos de Maria
Tudo que vinha comia
Com confiança também.
Maria que deu seu corpo
Sedento de mil desejos
Sentia exalarem todos
Os aromas sertanejos,
Pelo amor genuíno
Embriagou Virgulino
Com o sabor de seus beijos. (SANTOS, 23-24)
Desse modo, a sertaneja da Bahia seguiu ao lado do homem a quem amou e esse
exemplo terminou por atingir a outras mulheres, que, desassombradas, tomaram destino por
difíceis caminhos, como o tempo comprovou.
Da lista de multiplicação de tantas Marias que enveredaram os caminhos e
descaminhos do cangaço em nome de perigoso amor, declinam-se: Mariquinha, (uma ex-
cunhada de Maria Bonita), que resolve tomar novo rumo e seguir, junto com a comitiva do
cangaço, em companhia de Ângelo Roque, de codinome Labareda; Dadá (de Corisco);
Neném, morta em combate, (de Luiz Pedro); Durvalina (de Moreno); Sila (de Zé Sereno);
Lídia, (de Zé Baiano), morta tragicamente, pelo próprio companheiro, sob a acusação de tê-lo
traído; Inacinha (de Gato); Adília (de Canário); Cristina, (de Português), morta tragicamente
também sob a alegação de infidelidade conjugal; Maria Jovina (de Pancada); Dulce (de
Criança); Moça (de Cirilo Engrácia); Otília (de Mariano); Maroca (de Mané Moreno); Maria
Ema (de Velocidade); Enedina, (de Cajazeira), morta no massacre de Angicos; Rosalina (de
Chumbinho); Estrelinha (de Cobra Viva); Hortênsia (de Volta Seca); Lacinha (de Gato Preto);
Iracema (de Lua Branca); Eleonora (de Azulão); Lili (de Moita Braba); Catarina (de
Sabonete); Mocinha (de Medalha); Maninha (de Gavião); Maria Juriti (de Juriti); Dora (de
Arvoredo); Marina (de Laranjeira); Dinha (de Delicado).
É notório que, antes de Maria Bonita, houve outras mulheres na vida de Lampião,
porém, não havia a permissão de se manterem laços, a fim de que não se perturbem as ações
do bando. Entre tantos depoimentos de estudiosos da temática do cangaço, Luiz Luna
informa:
Antes dela [Maria Bonita], outras, naturalmente, passaram pela vida de Lampião.
Mas foram rápidas demais, não deixaram maiores vestígios. No princípio, Virgulino
chegou mesmo a proibir a presença das mulheres no bando. Elas ficavam em
determinadas fazendas ou cidades, aguardando as problemáticas passagens dos
cangaceiros. Depois, Lampião foi transigindo aos poucos, até que ele próprio se fez
acompanhar de algumas mulheres, antes do reinado absoluto de Maria Bonita.
(LUNA, 1972, p. 93)
148
Antônio Kydelmir Dantas, em sextilhas de cordel apresenta os nomes dessas
admiráveis mulheres que por seus homens enfrentaram as caatingas, as volantes, os coronéis,
a própria morte:
[...]
Começa a segunda fase
De Lampião no cangaço.
Na Bahia, em Alagoas
Em Sergipe deixou o traço
Em todos estes estados
Há presença do seu braço.
Diferente de outros chefes,
Daquela gente ferina,
Que não queriam nos grupos
A presença feminina,
Surgiu a Maria Déa
Quebrando toda rotina.
Uma morena formos,
Com os olhos de catita,
Independente e valente
Sedosa igual uma chita,
A rainha do cangaço
Foi a Maria bonita.
Com sua entrada no grupo,
Ficou o espaço aberto,
Para os outros cangaceiros
Que queriam ter, por perto,
Suas amantes com eles,
Para aquecer seu deserto.
A presença feminina,
O cangaço humanizou.
A mulher por ser mais fina,
Logo ele transformou,
Ficando menos sangrento
E muitas vidas poupou.
[...]
Logo depois da rainha,
Nas margens do São Francisco,
Apareceu a princesa
De temperamento arisco,
Foi Sérgia da Conceição,
Companheira de Corisco.
[...]
Só ela pegou em armas,
Nunca saiu na carreira
Que enfrentou a polícia,
Comandando a cabroeira
Mais das vezes defendendo
Seu marido na trincheira.
Sila foi outra guerreira,
Daqueles tempos atrás,
Que serviu com Zé Sereno,
149
Seu marido e capataz,
Escreveu a sua história:
Memórias de guerra e paz.
Durvinha ou Durvalina
Companheira de Moderno
Jurava ao companheiro
Para sempre amor eterno,
Com a morte de Virgínio
Viu as portas do inferno.
Até que enfim, resolveu
Num clima morno e sereno,
Juntar-se ao maior amigo
Como este mundo é pequeno
Morreu há pouco casada
Com o Antônio Moreno.
[...]
Adília era de Canário,
Cristina, de Português.
Lili foi de Moita Brava
E Enedina se fez
No bando, com cajazeira,
Morreram os dois de uma vez.
[...]
Neném foi de Luiz Pedro,
O cangaceiro fiel.
Otília, de Mariano,
Este lhe foi infiel,
Lhe trocando por Rosinha
Fazendo feio papel.
[...]
Áurea de Manoel Moreno,
Um cabra paraibano,
Dizem que era muito frouxo,
De lutar não tinha plano.
Maria, de Azulão
E Lídia de Zé Baiano.
[...]
Maria! Teve um bocado,
Mais ou menos afamada.
Teve Maria dos Santos,
Por Mariquinha é lembrada.
Também Maria Jovina
Ou Maria de Pancada.
Teve Maria Isidoro,
Maria de Gitirana.
Ângelo Roque teve duas:
A mariquinha e a Ana,
Laura Alves ou Doninha,
Disposta alagoana. (DANTAS, p. 5–10)
150
Dentre tantas cangaceiras Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, depois de Maria Bonita e
Dadá, talvez seja a mais interessante dessas mulheres. Verdadeira em suas colocações a
respeito do que passou e viveu no cangaço, não deixa de elogiar o capitão Virgulino e sua
companheira, mas também não se omite de apontar as crueldades que presenciou durante sua
estada em meio à gente de bando.
As informações de Sila, decerto por verdadeiras, são atenuadas pela maneira como
depõe. Admiradora do casal Lampião-Maria Bonita, é perceptível seu carinho quando deles
fala. Ademais, são seus conselheiros e amigos incondicionais, segundo se depreende de suas
informações.
Fala-se de arbitrariedades do rei do cangaço, se se mencionam decisões de morte ou
vida, mas a ex-cangaceira deixa transparecer com lucidez a normalidade do que ocorria
naquelas vidas em meio à violência, assassinatos, perseguições policiais, correrias, farras,
bebedeiras, coitos e coiteiros, banhos em rios, festas, brincadeiras, rezas.
As palavras de Sila, ao se referir à amizade com Maria Bonita, deixam transparecer a
intimidade mútua, a satisfação e o respeito pela companheira que viria a cuidar inclusive do
enxoval de seu primeiro filho e de quem viriam a ser padrinhos.
Note-se na citação sobre o nascimento de seu filho:
Sem dúvida alguma o inverno estava bastante frio. Chovera muito naquele ano.
Minha barriga avolumara-se enormemente, e parecia prestes a estourar. Pelos meus
cálculos meu filho nasceria entre junho e agosto, e eu o esperava ansiosamente.
Queria ver aquela criaturinha, filha da caatinga e das correrias pelo sertão, acariciar-
lhe o rosto e dizer-lhe quanto o amava. (SOUZA, 1997, p. 68)
Veja-se como Maria Bonita era mencionada:
Maria Bonita preparava o enxovalzinho do futuro sertanejo. Embora simples,
empregava-se nele com tanto esmero que eu quase a via como uma segunda mãe da
criança que estava por nascer. Ela era assim: dava-se de corpo e alma às pessoas às
quais se afeiçoava. E éramos praticamente duas irmãs. (SOUZA, 1997, p. 69)
Quanto a Lampião e suas histórias com relação às mulheres, cangaceiras ou não, há
dados controversos. Há quem mencione suas crueldades diretas ou indiretas, no tocante às
mulheres, como sua omissão quanto a Zé Baiano, que ferrava mulheres no rosto com as
iniciais JB. Já com relação a seu calar em casos como os das cangaceiras Lídia e Cristina,
acusadas de traição amorosa e mortas em consequência disto, direta ou indiretamente, diante
dos olhos fechados dos chefes Lampião e Corisco, respectivamente.
151
Para entendermos melhor esses episódios e seus desdobramentos, atentemos na citação
que segue:
Como em toda sociedade, acontecem casos de infidelidade, embora em raras
ocasiões, entre os cangaceiros. Estranhamente, as mulheres sempre pagavam a
traição com suas próprias vidas. Tivemos exemplos de Lídia, mulher de Zé Baiano;
Lili, de Moita Brava; Cristina, de Português, entre outros. Aos homens infiéis nada
acontecia. (FERREIRA e ARAÚJO, 2009, p. 50)
Não descobrirmos nem entendermos o porquê de os homens infiéis em meio ao
cangaço não sofrerem retaliação ou dano algum. É possível que isso se dê devido à cultura da
falocracia tão presente no código de honra não apenas cangaceiresco, mas predominante na
sociedade machista de todos os tempos. No sertão isso não soa como novidade.
No entanto, um dado curioso envolve Lampião: Billy Chandler, estudioso do
fenômeno do cangaço, aponta o quanto esse chefe de cangaceiros era cordado no que respeita
às mulheres, estejam estas no cangaço ou integrem a sociedade sertaneja comum. Nesse caso,
o autor relacionado acima deixa claro nesse passo o respeito devotado por Virgulino Ferreira
a elas:
Lampião avisava a diversas pessoas durante a tarde que haveria um baile à noite.
[...]. Para que a festa fosse um sucesso, Lampião deu ordens a uma das mulheres
para que arranjasse bastantes moças, de preferência, acrescentou, das classes mais
modestas. [...]. Houve a dança. Metade dos homens compareceu, enquanto os outros
montavam guarda, e a pedido de Lampião exibido um filme. As moças foram
tratadas com respeito, porque Lampião ameaçou castigar qualquer um que se
excedesse. (CHANDLER, 1981, 140)
Detalhe: anteriormente a esse baile, houve invasão à cidade de Queimadas, e como
consequência, a morte de sete soldados na delegacia, além da arrecadação em dinheiro,
exigida por Lampião, episódio seguido de bebedeira e comilança à vontade. O ano era o de
1930 e, pela data, o chefe já havia se juntado a Maria Bonita.
Ainda com relação a Virgulino Ferreira, um ex-cangaceiro de alcunha Zabelê dá conta
das preocupações do capitão em relação ao respeito e à ordem dentro do bando, fora dele e
principalmente no que toca às mulheres: “Respeitem as moças e mulheres casadas. Com as
raparigas façam tudo o que der no pensamento” [...] (LINS, 1998, p. 90).
Outro detalhe: apesar do discurso de Lampião no respeito às mulheres e às moças, há
um quê nessa fala que traduz e nivela os homens no milenar desrespeito com as prostitutas:
fazer-lhes o que der no pensamento.
No entanto, com relação à honra das mulheres, era o capitão Virgulino Ferreira
contundente. Repare-se no excerto com relação a Sabiá, um de seus cabras:
152
Era um bandido jovem. Dezoito anos. Passou pouco tempo no grupo. Foi morto a
tiros de fuzil pelo próprio Lampião. Sabiá desonrou a filha de 13 anos de um
fazendeiro da Lagoa do rancho, estado da Bahia. Consumado o crime, o cangaceiro
entrincheirou-se e pretendia atirar nos companheiros que ousassem castigá-lo.
Lampião foi pessoalmente à sua trincheira. Sabiá gritou que atiraria em Lampião. O
capitão Virgulino fuzilou o cangaceiro, antes bateu-lhe com a coronha do fuzil,
quebrando-lhes os dentes. (OLIVEIRA, 1970, p. 175)
Mas há de se destacar a mítica feminina no que envolve os cangaceiros: o sonho de
muitas mulheres segundo o que se via e se sabia da vida aventureira dos cangaceiros. Para
Daniel Lins (1997):
Muitas mulheres sonhavam com Lampião, almejavam um dia se juntar ao cangaço.
Tocadas pela poesia, pelo imaginário, pelo desejo de aventura, de paixão e combates
representados pelo cangaço, muitas viam na vida do bando uma promessa redentora.
Outras, à maneira de alguns jovens, viam o cangaço enquanto espaço de liberdade,
de rebeldia. As mais românticas buscavam as emoções da natureza selvagem
acopladas aos calafrios de uma epiderme buliçosa em simbiose com os sonhos
ecológicos. Em um universo onde o perigo e o prazer davam ao presente um caráter
de peste e de fim de mundo, a partilha simples de uma alegria efêmera, [...] tinha
também a força do milagre. (LINS, 1997, p, 68)
Fanka, cordelista contemporânea, em canto ao reinado dessas mulheres interessantes,
faz uma mostra do quanto foram fortes, de como tomaram parte nessa ambientação, de como
foram destemidas, de como viveram num universo masculino, violento e fechado e que
anteriormente não as aceitava:
[...]
Da história do cangaço
Muito tem para saber:
Enfeite e bala de aço,
Conhaque para beber.
A mulher participando
Sugerindo nesse bando
Outro jeito de viver.
[...]
Violência era o lema
Desse bando do sertão,
Porém, para este tema,
Houve uma amenização
Com a força feminina
Ingressando, de menina
Mudando essa visão.
[...]
A mulher só ingressou
A partir de Lampião.
Muita coisa se mudou
Com a sua opinião,
Pois Maria interferia
Da maneira que podia
Em cada situação.
153
Maria, a mais bonita
Que uma bola prateada,
Usava batom e fita
E andava bem armada,
Se o carro dirigia,
A Ford toda rangia,
Em tudo ela foi ousada.
Dada foi audaciosa,
Rimava na pontaria,
Era muito corajosa
Na briga e na montaria.
Vou aqui citar Otília,
Com destaque para Sila
Que merece horária.
[...]
Pela vida cangaceira
Ninguém faz a opção.
É pedaço de trincheira
Que padece o coração.
Nessa sina traiçoeira
Não se vê outra maneira,
É só guerra e confusão.
No resgate da memória
Tudo pode acontecer.
Aparece na história
A mulher para tecer
Outro lado da versão
De Pereira a lampião
Ela procurou vencer! (FANKA, pp. 1, 2-3).
O texto, de olhar feminino, e, portanto, com a sensibilidade de quem vive o ser
mulher, apresenta o sonho, a tensão em momentos cruciais, mas também o sentimento de
liberdade que Daniel Lins aponta.
Portanto, não era só de liberdade e idealização que viviam as cangaceiras. Episódios
de extrema violência foram presenciados, e de toda natureza: “tribunal” em que se decidia
pela vida ou a morte do outro, pequenas querelas por ciúmes, mortes por traição conjugal,
morte em combate, entre outros eventos. Sila relata que a morte de uma cangaceira provocou
uma dor muito forte no bando, e, sobretudo, em Luiz Pedro, um dos cangaceiros mais valentes
e fiéis aos grupos a que pertencia: o de Lampião e o subgrupo de Zé Sereno. Conta a ex-
cangaceira que Neném fora morta em combate com a volante comandada pelo sargento Luz,
composta por doze soldados, e que atacou o grupo de Zé Sereno. Narra Sila o suposto
enlouquecimento de Luiz Pedro e como procedeu:
Luiz Pedro desesperou-se, e uma loucura momentânea apossou-se dele. Pôs-se em
pé e começou a atirar em direção aos soldados. Expunha-se ao fogo da volante.
Outro companheiro do bando derrubou-o ao chão e o arrastou para o mato, livrando-
o de morte certa. (SOUZA, 1997, p. 40)
154
Ainda em outro momento, Sila fala da perda irreparável de Neném tanto para ela, mas
principalmente para seu companheiro:
Neném morta. Esta ideia não me deixava em paz; impossível conviver com ela.
Desespero maior que o meu só mesmo o de Luiz Pedro: homem valente e destemido,
não conseguia disfarçar a dor que lhe corroía a alma. Embora homem, (e eu jamais
vira um homem chorar), ele não se continha. As lágrimas rolavam-lhe da face
macerada e ele lamentava-se abertamente. Queixumes de fazer dó, de partir o
coração de qualquer um. (SOUZA, 1997, p. 41)
A vida brutal do cangaço não negou o amor das mulheres. Por algum tempo o que se
negou foi o acesso dessas mulheres aos perigosos caminhos trilhados por homens belicosos, e
por isso não menos prudentes. Homens cheios de amor, ávidos por amar e de corações com
portas escancaradas ao amor. Os arroubos que se deram em dois ou três momentos, e com
perdas de vidas se deram por motivos de traição amorosa, tendo por vítimas apenas as
mulheres. O que esperar de rudes homens desonrados? O que esperar de homens e mulheres
traídos em qualquer sociedade? Em qualquer momento da história?
Desse modo, é a partir do amor arrebatado de Lampião e Maria Bonita que no cangaço
é possível amar e deixar livre o caminho para o amor, apesar dos riscos que sabiam correr as
mulheres e os homens, ao optarem por investir num amor que dependia desse estilo de vida.
Raptadas muitas mulheres, caso de Sila e Dadá, porém, segundo elas, em discursos
muito parecidos, foram extremamente respeitadas, passado o susto, e por todo o tempo em
que maritalmente viveram. Outras, porém, entravam para os bandos por espontânea vontade:
perigos, riscos, aventuras, mas seguir o homem amado era apostar e jogar com a vida que
poderia ou não dar certo. O amor traz consigo o importante detalhe do arriscar. Nesse caso,
quem arriscou é porque não tinha medo de amar nem de morrer. E muitas amaram. E algumas
morreram. E todas vivem. Suas memórias aí estão.
155
3.2 – CANÇÕES DE AMOR: NO CANGAÇO, NO CORDEL, NOUTROS CANTARES
Um olhar silencioso,
Um toque suave e mudo,
São, espiritualmente,
Pelo nobre conteúdo,
Gestos que não falam nada,
No entanto, dizem tudo.
(Gonçalo Ferreira da Silva, em Maria Bonita, a eleita do rei)
Sempre houve poesia no e sobre o cangaço, apesar da brutalidade em que viviam os
cangaceiros. O canto, como em qualquer grupo social, leva à ideia de que se presta para
espantar os males. É possível. A vida e a criação poética afloravam em meio hostil quando o
cantar ecoava nas caatingas nos intervalos em que a paz se fazia presente. Cantos de guerra, a
exemplo de Mulher rendeira, entoada quando da feitura de saques, num misto de alegria e
deboche, é bela criação forjada no cangaço e, de certa forma, um canto a essa mulher do
cangaço. Cantar é próprio de homens e pássaros. E isso redunda aos homens como um quê de
liberdade por eles pretendido. Como eram homens que se pretendiam pássaros, os cangaceiros
cantavam. E o faziam por e com amor.
Há na e sobre a história do cangaço uma profusão de textos que revelam cantares
amorosos de docilidade rústica, mas de beleza simples e, por isso, pura. Uma poesia, às vezes
amorosa, noutras não, sempre se deu tanto no meio e fora dele. Poetas cantaram e cantam o
lirismo do cangaço em todos os tempos e em linguagens que se transpõem mutuamente, por
exemplo, do cordel para o cinema; do repente para o cordel; da música para as artes plásticas;
da dança para o romance e teatro, entre outros em constante movimentação.
De autoria propriamente cangaceiresca, Mulher rendeira é clássico atribuído
tradicionalmente, mas sem provas, a Lampião. Tem autoria reclamada também por Volta Seca
(Antônio Alves de Souza), ex-cangaceiro do bando do rei do cangaço; por Zé do Norte
(Alfredo Ricardo do Nascimento), compositor paraibano, cuja versão a ele tributada teve a
voz da atriz Vanja Orico e Demônios da Garoa, em O cangaceiro, de 1953 (Companhia Vera
Cruz), e é cantada até os dias atuais.
156
Na verdade, o mais acertado é afirmar que, transposta para o âmbito do folclore, justo
por falta de autoria comprovada, cada um que com ela tem contato acrescenta-lhes os versos
que forem convenientes. Na versão de Volta Seca, a letra se dá dessa forma:
Olê mulher rendeira
Olê mulher rendá
A pequena vai no bolso, a maior vai no embornal
Se chora por mim não fica, só se eu não puder levar
O fuzil de lampião, tem cinco laços de fita
O lugar que ele habita, não falta moça bonita [...]
Em Zé do Norte, especial para O cangaceiro, assim aparece:
Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá
Tu me ensina a fazer renda,
eu te ensino a namorá.
Lampião desceu a serra
Deu um baile no Cajazeiras
Botou as moças donzelas
Pra cantar "mulher rendeira"
As moça de Vila Bela
Não tem mais ocupação
Sé que fica na janela
Namorando Lampião.
De Volta Seca a Luiz Gonzaga, de Zé do Norte a Chico César e Elba Ramalho, mais
modernamente, todos cantam versões a que foram acrescentados versos sempre renovados.
Sempre foi notório o diálogo de Lampião com as artes. Sabe-se de seu capricho com
trajes, chapéus, o colorido dos lenços, o bordado, as alpercatas bem cuidadas. Élise Grunspan-
Jasmin (2006) apresenta texto em que se atesta o comportamento do bando de Lampião
quanto ao seu cotidiano de pendor artístico, sobretudo masculino:
Eram homens que cortavam e costuravam suas roupas [...] sabiam também
confeccionar todo tipo de objeto e de roupas de couro. Bem antes de entrar para o
cangaço, Lampião confeccionava e costurava suas roupas e sabia bordar á máquina..
duas fotografias apresentam Lampião e Luiz Pedro bordando os paramentos e suas
roupas com a ajuda de uma máquina Singer. (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 136)
Igual sensibilidade o capitão Virgulino Ferreira apresenta no que diz respeito à poesia
(ele mesmo um poeta, conforme já mostrado anteriormente), à música, à literatura de cordel,
ao cinema, à cantoria de viola com seus repentistas, à leitura de revistas como O Cruzeiro, A
157
Revista Ilustrada, de jornais como O Globo, entre outros. Em entrevista da cangaceira Sérgia
da Silva, a Dadá, se vê a demonstração de como o grupo, em tempos de paz se portava no que
se refere ao entretenimento dos cangaceiros:
A gente cantava muito nos forrós, pois já gostava de dançar. Quem era solteiro
dançava com o fuzil arrastando o pé. [...] Lampião apreciava muito dos folhetos de
cordel como também de ouvir um violeiro. Agora quem quisesse agradar Corisco,
desse um folheto de feira. No nosso bando tinha o Gitirana que cantava muito na
viola e tinha uma voz bonita de dar gosto de ouvir. Quando aparecia um tocador, a
gente sempre fazia um forró. [...] Todo mundo gosta de dançar r do xaxado.
(GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 136)
Outro cangaceiro, Beija-Flor, depõe e comprova a entrevista de Dadá no que respeita
ao grupo e subgrupos de Lampião e como seus integrantes vivenciavam e tinham
sensibilidade para a linguagem do espírito:
Nas noites de lua, os bandidos sentavam no chão, bebiam cachaça, Lampião tocava
sanfona e Maria Bonita acompanhava no bandolim. Os cangaceiros cantavam
modas. Canções que falavam de sua vida aventurosa e cheia de perigo. Também
falavam de amor. (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 136)
Quanto ao depoimento de Beija-Flor, não há comprovação do bandolim a que se refere
tocado por Maria Bonita. De resto, Lampião sempre se fez acompanhar da sanfona, na
verdade, harmônica tocada nesses intervalos de paz. Dentre os artistas do cangaço, além do
próprio Lampião, de Volta Seca, de Virgínio, de Moderno, entre outros, é Gitirana o cantor
maior e poeta do grupo como já mencionado por Dadá e confirmado por Aglae Lima de
Oliveira (1970) em retrato que traça do bandoleiro:
Dotado de inteligência e animador das festas nos arraiais e ranchos. De cor moreno-
escura, cabelos lisos e de traços finos. Seus versos tinham rima. Seus cantos eram
animados e explosivos. Sapateava, gritava em simpáticos repentes. Os versos tristes
comoviam Gitirana. Era até barítono. Ninguém, no bando, e onde chegavam,
cantava melhor do que Gitirana. Os versos quentes, espontâneos e simples eram bem
aplaudidos pelos companheiros e pelas sertanejas. Era baiano e apreciava remexidos.
(OLIVEIRA, 1970, p. 176)
Dos versos atribuídos a Gitirana, os transcritos abaixo depõem de sua verve lírica de
pureza ingênua:
Amô remexe ca gente
Chegando de supetão
Mais pió qui dô de dente
É sinti parpitação.
Cabrocha pra sê bunita
Bunita cumo os amô
158
Basta um vestido de chita
E na cabeça uma frô!
Toda cacrocha bunita
Num sabe tê sintimento
Vistida entonce de chita
Só sabe tê trivimento.
Quando escurece o sertão
É mais bonito que o má
Cumo bate o coração
Si de noite faz luar. (GITIRANA, apud OLIVEIRA, 1970, pp. 176-177)
Quanto a essa presença lírica no cangaço, informa Amaury Araújo (1982):
A música era uma das poucas manifestações artísticas permitidas pelas condições
errantes do cangaço. Havia entre os cangaceiros alguns com verdadeiros dotes
repentistas, de que usavam e abusavam não só quando entravam em combate –
quando descompunham e injuriavam o inimigo –, mas durante as caminhadas
intermináveis pelos carrascais ou quando paravam para arranchar-se num pé de
serra.
Nas bocas de noite, após comer farinha e carne seca moqueada, descansando as
pernas, o grupo ouvia Cacheado, o Suspeita, Gitirana, o alagoano bamba da
embolada, e outros de menor capacidade criadora. (ARAÚJO, 1982, p. 38)
Perceba-se no lirismo amoroso do cangaceiro Cacheado uma dor saudosa que
provavelmente atravessava boa parte da noite em canto nostálgico:
Serenô de madrugada
Essa noite sereno.
Eu nos braços do meu amor,
Serenô não me molhou,
Não me molhou
Não me molhou. (CACHEADO apud. ARAÚJO, 1982, p. 39)
Virgínio, alcunhado Moderno, também se notabilizara por sua veia poética lírico-
amorosa. São a ele atribuídos os seguintes versos:
Devagar, devagarinho
Venha cá minha adorada,
Oh meu benzinho
Vem enxugar meus prantos delirantes
Nas minhas faces um beijinho
Oh querida!
Um beijinho de amor
Minha flor
Que um beijinho mais oculto
Não é fruto
Para um pobre cantor. (MODERNO apud. ARAÚJO, 1982, p. 41)
Segundo Amaury Araújo (1982, p. 42), “Corisco não era cantor que agradasse, mas
depois de uns goles de cachaça ou conhaque punha-se alegre e cantava esta valsinha”:
Tenho saudades de Maura
Daquela Maura amorosa
Daquele céu estrelado
Daquelas noites de rosa.
159
Tenho saudades da fonte
Da fonte que tinha ali
Onde Maura se banhava
E eu por Maura me perdi.
Os versos que seguem são do cordelista Manoel D’Almeida Filho, um dos que mais
cantou o amor no universo de Lampião. As estrofes narram como Maria Bonita encantou o
cangaceiro com sua beleza, cuidados pessoais e caprichos e como o chefe se entregou:
[...]
Diante a Maria Déa
Lampião ia cedendo
A beleza dominava
O amor ia vencendo
Não queria, não queria,
Porém terminou querendo.
Todos os cabras ficaram
Um a um mais alarmados
Vendo que o chefe estava
Por Maria apaixonado,
Porque confiava nela
Como um alucinado.
[...]
Maria Déa formosa,
Embriagou Lampião,
Com sua beleza nata
Dominou seu coração,
Suas faces pareciam
Com o luar do sertão.
Entre ela e Lampião
Contam-se muitas histórias,
Com lutas e sofrimentos,
Com alegrias e glórias,
Vexames e prejuízos,
Com fracassos e vitórias.
[...]
Violeiros, repentistas,
Cantando na região,
Batizaram novamente
A mulher de Lampião
Como “Maria Bonita,
A linda flor do sertão”.
[...]
Maria Bonita tinha,
Entre o seu equipamento
Batom, rouge, talco e pasta
Para o seu bom ornamento,
Perfume escova de dentes,
Espelho, pente, armamento. (D’ALMEIDA FILHO, p. 26)
160
O poeta Antônio Teodoro dos Santos, ao fazer uma abordagem do amor no bando de
Lampião, apresenta o retrato de Maria Bonita, também chamada Santinha pelo chefe. O
cordelista faz um apanhado da vida e das sinas que acompanham a rainha do cangaço: a de
amar e seguir Lampião e a de morrer a seu lado. Nos traços que faz o poeta, Maria Bonita é a
mulher destemida que não teme seguir inusitado amor, que não teme lutar ao lado desse amor
e que se desprende de laços como o casamento que fica no passado para, até a morte, viver.
Viver seu amor, suas aventuras, sua coragem, sem deixar de ser feminina em meio a bruto
sertão. O texto transparece um canto de valorização à mulher marcada pela coragem até as
últimas consequências:
Agora no nosso livro
Vamos abrir um espaço
Para falar de uma jovem
Que tinha os nervos de aço
Com valor de uma pepita,
Ela é Maria Bonita
Também: “A mulher-cangaço”.
Ela nasceu e criou-se
Em um sítio que existia
Abaixo de Paulo Afonso,
No Estado da Bahia,
Linda como uma sereia
Porém tinha em cada veia
O sangue da valentia.
Como que veio marcada
Por um poder diferente,
Desde muito pequenina
Tinha um gênio muito quente;
Ela escondia a coragem
Que enganou muita gente.
Porém os eu nome estava
Gravado na profecia,
Recebeu a influência
Quando foi levado à pia,
Teve como panaceia
O sobrenome de Déa –
Batizada por Maria.
O nome Maria traz
Uma magia de glória,
De luta de sofrimento,
De derrota, de vitória,
Como a que nos trouxe a luz
Que como mãe de Jesus
Passou da vida á história.
[...]
Daí Maria Bonita
Seguiu o seu companheiro
Em todas as suas lutas
161
Sem exigir paradeiro,
Com prazeres e desgostos
Fazendo todos os gostos
Do seu amor cangaceiro.
[...]
Apesar de ser valente
Maria era afeiçoada
Às coisas bem femininas:
Só andava perfumada,
Impunha todo o rigor –
Quando dava o seu amor
Gostava de ser amada.
As coisas que precisava
Tinha em seu equipamento:
Perfume, batom, espelho,
Rouge, talco e armamento,
Escova de dente, pasta
Pente e mais tudo que gasta
No caso um bom ornamento.
[...]
Era assim como Maria
E Lampião conviviam,
Por uma amor verdadeiro
Que os dois corações sentiam,
Com beijos apaixonados
Como eternos namorados
Mais os carinhos cresciam.
Sempre em luta quando mesmo
Enfrentando um batalhão,
Santinha permanecia
Ao lado de Lampião
Sem sobrosso nem temor
Para ajudar seu amor
Com arma e com munição.
[...]
Lampião e sua amada
Vistos em primeira linha
Receberam balas sem
Saber de onde a morte vinha;
O chefe todo ferido
Morreu sem dar um gemido,
Abraçado com Santinha.
Naquele dia Maria
Deu o derradeiro adeus
A todos que a conheciam
Parentes e amigos seus –
Nos braços de Lampião,
O amor do seu coração,
Entregou a alma a Deus.
Trouxe Maria no sangue
Essa força como um laço,
Onde prendeu ao destino
162
Dando-lhe o maior espaço;
Orgulhosa pela sorte,
Recebeu na sua morte
Os horrores do cangaço. (TEODORO, pp. 5, 6, 25, 26, 27, 32)
Como os cordelistas, violeiros e repentistas também se encantavam e ao seu público
com a beleza da baiana a quem chamaram de “Maria Bonita, A linda flor do sertão”, são dos
repentistas contemporâneos Geraldo Amâncio e Ivanildo Nova, sob o mote “Lampião, rei do
cangaço/Foi assombro do sertão”, os versos em que cantam a bravura e o amor do casal,
independentemente de consequências:
Um primitivo Sandino
Um estrategista bruto
Um Fidel Castro matuto
Um Ho Chi Minh nordestino.
Adulto virou menino
Quando teve uma paixão
Aí o seu coração
Muda o ritmo e o compasso
Lampião, rei do cangaço
Foi assombro do sertão.
[...]
Maria, amante e consorte,
Nordestina destemida
Foi companheira na vida
Na desventura e na morte
Sente um choque muito forte
Ao vê-lo morto no chão
Cai sobre o seu coração
Dando o derradeiro abraço
Lampião, rei do cangaço
Foi assombro do sertão.
Outro exemplar de lirismo no cangaço é a toada “Acorda, Maria Bonita”, atribuída a
Lampião, mas com criação tributada ainda ao cangaceiro Volta Seca. A música foi por este
gravada em LP, depois remasterizado para Cd com o título de Cantigas de Lampião. A beleza
do texto se dá pelo inusitado do aviso com relação às volantes: Maria Bonita é evocada, e o
fazer o café e o preparar-se soam como alertas de eventualidades cotidianas:
Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já tá de pé.
Se eu soubesse que chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem.
163
Cabelos pretos anelados
Olhos castanhos delicados
Quem não ama a cor morena
Morre cego e não ver nada.
[...]
O texto transpôs o cangaço e virou marchinha de carnaval cantada por todo o país. A
influência talvez se dê pelo já mencionado filme O cangaceiro, da década de 1950, e, de certo
modo, pelo nacionalismo que prevaleceu nesse período. A propósito, nessa mesma década há
euforia da construção de Brasília, símbolo de uma nova afirmação nacional, surge a Bossa
Nova como linguagem musical de renovação e afirmação externa do país, há o Cinema Novo
voltado para um pensar a realidade cultural brasileira tanto urbana quanto rural. Época em que
o país se vê e se reconhece. Antes, porém da década de 1950, Jorge Amado transpusera a vida
de Castro Alves em biografia romanceada, sob o título ABC de Castro Alves com inspiração
seguramente na literatura de cordel, cujos representantes sempre cultivaram a técnica poética
do ABC. É o ano de 1941. O narrador menciona para sua suposta interlocutora o episódio
lírico que envolve Lampião e Maria Bonita e seu mútuo caso de amor. A narrativa de fino
ornamento amadiano se inicia com a seguinte e rica imagem:
Lampião teve seu ABC, num ABC foi cantada Maria Bonita que cortou o sertão com
o seu homem e por ele deu a cabeça bem próximo a Propriá. Essa história de tão
trágico amor melhor que eu te contarão as águas do São Francisco que passavam
perto [...]. (AMADO, s/d, p.7)
Como fez Jorge Amado, poetas populares de todas as épocas e gêneros cantaram,
igualmente, o amor no cangaço, especialmente com voz em que o amor de Maria Bonita e
Lampião se faz presente, a fim de que a memória popular não esqueça esses amantes que se
deram por toda a vida e até a morte. Elementos inesquecíveis da paisagem humana nordestina,
Lampião e Maria Bonita representam ainda o retrato de um amor que se fez de eterno laço.
Em linguagem musical, “Maria Cangaceira”, de Téo Azevedo, imortalizado por Luiz
Gonzaga, apresenta versos em que elementos poéticos fazem aflorar com grandeza e
brejeirice o amor do rei e rainha do cangaço:
Maria, Maria
Bonita como a natureza
Bonita como canta a água
Na quebrada da correnteza
Filha do velho José
Maria, beleza rara
Foi nascida e criada
Na Malhada Caiçara
164
Quando fez dezoito anos
Ó destino treteiro
Casou com Zé de Neném
O remendão sapateiro
Cinco anos depois
Apareceu Lampião
Maria se apaixonou
E lhe entregou o coração.
A música tem um quê de biográfico, resumidamente apresentado, com versos de
abertura que denotam a cangaceira e seu epíteto em comparação com a própria natureza em
torno da qual vivia: “Maria, Maria/Bonita como a natureza/Bonita como canta a água/Na
quebrada da correnteza”.
No universo do cangaço é a caatinga que dita regras para o humano. Se a mulher
escolheu ou foi escolhida para esse caminho, cabe-lhe se adaptar ao modo de vida imposto
pelo meio. Fortes, viveram essas mulheres intempéries as mais variadas em meio a cardos e
serranias. Nesses espaços lutaram, pariram, amaram. Cantadas em verso e prosa em meio ao
cangaço e igualmente fora dele, essas mulheres se doaram a uma causa de que sabiam, talvez
não voltassem. Viveram ou sobreviveram umas. Sofreram muito, todas; escaparam umas;
sofreram e morreram outras. Não se entregaram quase todas, senão a seus homens.
Entregaram-se, poucas, a outros homens, e por isso morreram: tragédias de amores
clandestinos. Nenhuma, ao que se sabe, se entregou a homens de volantes. Nenhuma se
entregou ou entregou companheiros às volantes. Fiéis companheiras, todas deixaram os pais.
Todas deixaram a família: irmãos (exceção para os que as seguiram), avós, tios, primos,
amigos. Todos ficaram para trás. Tudo ficou para trás. Havia um homem, apenas um homem a
ser seguido. Havia um risco de morte, mas havia um traço de vida. Escolhiam os dois. Aliás,
escolhiam os três: o homem, a vida e a morte.
Eis as mulheres do cangaço. Que amaram e viveram e que nunca morrerão.
165
4 – A OFICINA DO CORDEL: A INSPIRAÇÃO, O SUOR
[...]
é oficina que ensina
a aguçar setas, pedras:
(João Cabral de Melo Neto. “escrição de Pernambuco como
trampolim” em A escola das facas)
O poeta popular tem à sua frente todo um espaço diante do qual um mundo de
experiências se abre para ser mostrado. A letra, em maioria, e naquele sentido academicista,
pode lhe faltar ou ser precária, mas não o impede da feitura do texto, que, coerente, abrange o
seu leitor específico, aquele a quem se dirige verdadeira e diretamente, isto é, o povo, além de
atingir outro leitor, aquele interessado nas engrenagens dessa oficina.
Na literatura de cordel, esse mundo de experiências se dá das mais variadas formas, e
sob os diversos olhares: o humor, a política, o trabalho, o amor, as injustiças sociais, o
cangaço, todos, como representação do cotidiano tanto do contexto urbano quanto do rural.
Remanescente quase sempre do meio rural, o contato primeiro do cordelista é com a natureza
e as coisas em volta, que, por simples, parecem lhe provocar sensibilidade para o uso das
palavras. Dessa natureza, o poeta retira matéria-prima para sua obra: alegrias, tristezas,
perplexidades, esperanças, desesperanças, a chuva, o sol, a plantação, a colheita.
Nos cordelistas que se voltaram ou se voltam para o cangaço sempre houve ou há um
martelar em oficina de escritos que, além da forma e do conteúdo inerentes ao tema, tende a
dialogar com textos anteriores, isto é, tentam estabelecer pontes com os que já mencionaram a
temática no passado mais distante, mas o fazem também com textos imediatamente
anteriores, e, portanto, contemporâneos. Buscam ainda, alguns, entremear seus escritos com
elementos extras, como o uso de textos de verve anônima, e, nesse caso, de natureza
folclórica. Há ainda a menção a texto de apoio histórico, como livros, jornais e revistas que
representam fontes de consultas para embasamento dessas narrativas, sobretudo, aquelas de
feitio épico. Pode-se aventar ainda na construção desses textos a presença de caráter místico,
metapoético, intertextual e de diálogo com o leitor.
O poeta Antônio Américo de Medeiros, em Lampião e sua história contada em
cordel, dá destaque a esse diálogo com fontes que asseguram ao seu texto não somente
166
legitimação de pesquisa, comprovação do assunto ventilado, a busca por dados, mas também
tonalidade metapoética, além da feição de diálogo com o leitor, o que ocorre no texto abaixo:
[...]
Quem desejar conhecer
De Lampião a História.
Foi cangaceiro famoso,
No cangaço teve glória,
O título de Capitão
Ainda está na memória.
Pesquisei todos os livros
Da vida de Lampião.
Juntei o que achei certo
Para versar com noção,
A vida do cangaceiro
Que foi terror do sertão. (MEDEIROS, p. 1)
Quanto ao caráter de metalinguagem, que se discutirá adiante, explica o poeta:
[...]
A história bem contada
Nos dias de Lampião
Trabalho bem pesquisado
O folheto é campeão.
Não podemos ocultar
Isto eu fiz pra propagar
O livro em toda Nação.
A história num cordel
Merece um análise fino
Este trabalho que mostra
Rei do Sertão nordestino
Intriga o levou à morte
Cangaceiro bravo e forte
O capitão Virgulino. (MEDEIROS, p. 48)
Ao explicar a feitura do seu texto, ao confirmar suas pesquisas, ao declarar que “A
história num cordel/merece um ‘análise fino’”, o poeta leva a efeito o fazer metalinguístico, o
questionamento de seu trabalho e seu destino, nesse caso, o de ser veículo de informação para
seus leitores, a intertextualidade, os mecanismos de construção, porém, sem perder a relação
entre o olhar artístico e a inspiração, intrínsecos à proposta dos textos de caráter popular.
Desse fazer e desse olhar tratarão os próximos subcapítulos.
167
4.1. METALINGUAGEM: O EXERCÍCIO DA PALAVRA-TEXTO
Que é a Poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos
por todos
os lados.
(“Poética”, Cassiano Ricardo, em Jeremias Sem-Chorar)
É imperioso observar que os cordelistas têm a mesma consciência da matéria poética
do fazer academicista. Diferencia-os apenas os elementos de construção: enquanto a
argamassa do fazer popular é tirada diretamente da fonte, e por isso, se apresenta em estado
mais puro, a do fazer academicista tem um quê de complexidade que pode ir além da
sensibilidade popular, o que não os impede de, como criadores, tratarem da feitura do próprio
trabalho. A metalinguagem nos poetas populares se dá naturalmente. É como explicar ações
do cotidiano: a construção de um assento de madeira ou feitura de um fogão à lenha, tudo
ligado às práticas e vivências da comunidade em que se vive.
Pode-se cogitar, igualmente, que as explicações desse fazer se dão por imitação do
outro, da tradição, num desenrolar metalinguístico. Escreve Gonçalo Ferreira da Silva os
seguintes versos sobre o seu fazer, no cordel Lampião, o capitão do cangaço:
Este poema que fala
De cangaço e de sertão
É, apenas, à cultura
Uma contribuição,
Um documentário vivo
Da vida de Lampião.
Por ser uma obra feita
À luz da verdade viva,
Mostra a face nobre, humana
E até caritativa
De Lampião, se tornando
A menos repetitiva. (SILVA, p. 1)
O exercício de questionar, de experimentar, de testar a linguagem revela que o ato de
escrever constitui verdadeiro laboratório. Fazer da palavra ferramenta de sondagem de si
mesma é imaginar o carpinteiro a escolher a melhor madeira para cumprir seu trabalho
cotidiano de preciso emadeiramento ou o pedreiro, tijolo a tijolo a elevar sua construção não
sem antes questionar e se questionar.
168
Para Samira Chalhub:
[...] linguagem da linguagem (tomando-se como linguagem um sistema de sinais
organizado) é metalinguagem – uma leitura relacional, isto é, mantém relações de
pertença porque implica sistemas de signos de um conjunto onde as referências
apontam para si próprias, e permite, também, estruturar explicativamente a
descrição de um objeto. A extensão do conceito de metalinguagem liga-se, portanto,
à ideia de leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de
signos, de linguagem. (CHALHUB, 2005, p. 8)
Há de se perceber, no entanto, que essa “ideia de leitura relacional” tem a ver também
com a presença do leitor. Há no processo de feitura do texto duas linguagens: uma, do poeta,
a outra, do leitor. É este que decodificará o texto a partir do conhecimento que detém, e isso
se dá por uma linguagem, um campo de entendimento que pertence a esse leitor e, com essa
linguagem de que dispõe, tentará decifrar os textos com que teve contato.
Além do questionamento da técnica, o poeta tem de apresentar o talento necessário
para se expressar, pois do contrário, estaria apenas a passar informação, a comunicar um fato.
A respeito dessa marca da arte e da capacidade dos que a ela se dedicam, aponta Carmelo M.
Bonet (1970):
Em todas as artes há algo acessível à maioria: a parte mecânica, a que se relaciona
com a técnica. Qualquer um aprende a pintar ou a tocar piano. Mas quantos se saem
mediocremente. Qualquer um consegue escrever com um pouco de experiência. Mas
dar categoria à expressão é outra coisa. Necessita-se, além da técnica, algo mais: o
que chamavam os antigos “veia”. (BONET, 1970, p. 19)
No fazer artístico, na acepção geral do termo, “veia”, sinônimo de talento, vocação, é
palavra sempre em voga, de que decorrem expressões como “veia artística”, “veia literária”,
“veia musical”, pois não basta a técnica. Desse modo, como em todos os fazeres artísticos, no
literário, talento e técnica são indispensáveis por darem ao texto literariedade. Poetas eruditos
têm consciência técnica e cultivam a ideia de que o fazer, além de construção, não dispensa o
talento. Poetas populares, por seu turno, buscam a técnica, mas utilizam também uma tradição
saída da memória coletiva, que se estende de geração a geração, fazendo-os acreditar, a
maioria considerável, que além do talento e da técnica, a construção poética se dá como
presente do divino. O poeta José Camilo dos Santos, ao escrever o cordel O filho de Garcia,
no primeiro verso da estrofe inicial, demonstra essa interferência divina:
Deus Grande Ser Incriado
Com os seus dons multiformes
Torna-se imaginário
Nos seus mistérios triformes
Simbolicamente fala
Aos gênios “aculeiformes”. (SANTOS, p. 1)
169
Nessa invocação, percebe-se a busca por Deus, “ser incriado”, como fonte inspiradora
e imaginária “nos seus mistérios triformes” de nítida alusão ao Pai, Filho e Espírito Santo,
forças a que esses poetas recorrem, por as terem, simbolicamente, como fontes em que se
encontram os dons da poesia ou os “dons multiformes” com que são agraciados tantos
“gênios aculeiformes”, i.e., aqueles cujo olhar remete à agudeza, e isso revela entendimento e
discernimento finos e profundos na percepção da realidade e do mundo à sua volta.
Para explicar seus “gênios aculeiformes”, no entanto, o poeta recorre a neologismos e
com versos de feição metalinguística afirma como a poesia se faz e o que é ser poeta:
[...]
E estes “aculeiformes”
Têm a visão “duplicia”
Que abstraticamente
Concretizado procria
Imagens compositórias,
Eis o que é poesia.
Ser poeta é ser geníaco
Sensibilante ao ouvir
As magnificências e
Unificar, concretir
Na visão imaginária
Formar, criar, colorir.
Assim sendo agora mesmo
Vou criar mais um romance
Com ordem do Grande Deus
E a força do meu alcance
Pois ouço a musa dizendo:
“Seu Camilo, avance, avance. (SANTOS, p.1)
Dos termos trazidos pelo poeta, aculeiforme e triforme são dicionarizados. “Duplicia”,
“abstraticamente”, “compositório”, “geníaco”, “sensibilante”, “concretir” procedem da
ambientação vocabular do poeta e de suas vivências linguísticas, o que o faz produzir uma
linguagem particular que estabelece vínculo com as raízes dessas palavras, pois remetem,
respectivamente, ao campo semântico de duplo, abstrato, compor, gênio, sensível, concreto.
Parece evidente que o poeta desdobrou as palavras, talvez na busca de forçar as rimas,
mas sem perder a noção etimológica dos termos trabalhados e levando o leitor a ser capaz de
relacionar o sentido dessas palavras com aquelas de que derivaram. O dom e a técnica para
lidar com as palavras concedem aos poetas a plena liberdade de criação/recriação das coisas,
da realidade e das palavras: “Eis o que é poesia”, como explica o cordelista. Na poesia erudita
esse questionamento do labor poético sempre foi prática constante. Carlos Drummond de
Andrade é exemplo mais acabado dessa práxis. Em O lutador, há um eu lírico que se mostra
170
surpreso e perturbado com o mistério criador, e assim como José Camilo, se atira na busca
pela essência das palavras:
[...]
Luto corpo a corpo
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Iludo-me às vezes,
Pressinto que a entrega
se consumirá.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
outra sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume. (ANDRADE, 2001, pp. 244-245)
Em Procura da poesia, é mais categórico quanto à busca das palavras e à construção
poética:
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. (ANDRADE, 2001, p. 249)
Não há ilusão: os poetas sabem e têm consciência de que “lutar com as palavras” é
tentar descarnar-lhes o interminável mistério com a força braçal e sob a dor do criar. Os
poetas sabem, igualmente, que sê-lo “é ser geníaco” e “na visão imaginária, formar, criar,
colorir”.
171
Em Proezas de Lampião, Luiz Gonzaga de Lima é categórico na metapoesia:
Voltei novamente ao campo
Da poesia rimada,
Pois a pena do poeta
Nunca pode estar parada –
Porque pena preguiçosa
Não faz sucesso em nada.
Por isso, me destinei –
Botei a pena na mão,
Para versar este livro
Com devida precisão.
O seu nome vai na capa:
Proezas de Lampião. (LIMA, p. 18)
Voltar ao “campo da poesia rimada” é voltar-se para o trabalho, para o fazer, a técnica.
Uma ideia de transpiração se dá pelas palavras “pena” e “preguiçosa”: pena como
instrumento de trabalho e “preguiçosa” como negação da ociosidade e afirmação da própria
ideia de que texto é trabalho. Campo pode também se referir ao lugar de vivência do próprio
poeta e de seu público, e quase sempre é, se se pensar esse espaço como aquele da troca de
experiências cotidianas e de trabalho, campo que com enxada se lavra/papel/campo que com a
pena se lavra. Com a enxada se sulca a terra, com a pena se sulca o papel: “Por isso me
destinei/ Botei a pena na mão”.
Torna-se necessário ainda refletir sobre o vocábulo “versar”, que tanto significa
discorrer, abordar como fazer versos, versejar. O poeta versa a respeito do tema escolhido
tendo como matéria de criação narrativa o verso. Vasta é a messe para a “pena do poeta” e
não é pequeno vaso de sementes a ser lançado a seus leitores.
Sabem, entretanto, poetas populares e eruditos que há uma inspiração para o fazer
poético, mas têm ciência também de que há uma técnica, e que, irmanadas, redundam as duas
em construção. Poesia.
Em A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita, Manuel Pereira Sobrinho
invoca a força celestial e deixa transparecer a ideia de que o dom sagrado e a inspiração vêm
de Deus:
[...]
Grande Deus senhor dos seres
Mandai-me orientação
Ideias, forças e rimas
De que tenho precisão
Para versar a história
Da vida de Lampião. (SOBRINHO, p. 1)
172
Há na poética popular um jogo que o poeta estabelece entre o místico e o ato de
escrever: sem aquele este não se realiza. O místico, porém, não se dá apenas no processo de
inspiração em que Deus ou divindades se fazem presentes. A própria Natureza igualmente se
apresenta como musa inspiradora dessa construção. O poeta mais engajado no aspecto em que
poesia e natureza se misturam, ousa se colocar como servidor de Deus e observador da
Natureza sempre disposto a lhes servir. Invocar a Deus é, igualmente, apelar à Natureza, que
também o atende:
Procurei me transportar
Como um ser imaginário
À procura de Lampião
Dentro do meu calendário
Trazendo seus pensamentos
Para o meu vocabulário.
Ligeira, a Natureza
Para mim apareceu
Trazendo ela consigo
Com todo seu apogeu –
Lampião, todo armado
Como antes ele viveu. (BATISTA, p. 2)
No entanto, não haja ingenuidade: o espaço da razão no ato criador da poesia popular
representa também o motivo de o poeta escrever, pois a presença do intelecto é essencial para
as inferências objetivas desse fazer. Nesse aspecto, o divino não aparece e o texto vai direto
ao assunto em diálogo com o leitor, convocando-o à leitura.
Francisco das Chagas Batista, que dá voz em primeira pessoa ao cangaceiro Antônio
Silvino, o faz declarar:
Leitor, em versos rimados
Vou minha história contar,
Os crimes que pratiquei
Venho agora confessar.
Jurando que da verdade
Jamais hei de me afastar. (BATISTA, p. 1)
Leandro Gomes de Barros também adota igual recurso. Ao escrever o texto em que
Antônio Silvino narra sua vida, é o cangaceiro que se apresenta ao leitor, e, literalmente,
apresenta-lhe seu retrato, na verdade, um desenho que ilustra a capa do folheto:
Caro leitor, eis ahi
Meu todo neste retrato,
Todos quantos me conhecem
Dirão que estão muito exacto;
Tirei elle no Ceará,
Perto da villa do Crato. (BARROS, p. 2)
173
Luiz Gonzaga de Lima se apresenta ao leitor para narrar Justiça de Lampião, com o
intento de estabelecer, como os outros poetas, igual diálogo:
Para os prezados leitores
Que gostam do realismo,
Quero escrever mais um caso
Do tempo do banditismo,
Quando a justiça dormia
No berço do carrancismo.
Não quero enfadar o público
Com frívola narração –
Quero, respeitosamente,
Pedir geral atenção,
Que vou contar mais um caso
Da vida de Lampião. (LIMA, p. 26)
Com as devidas afirmativas de que o texto de literatura de cordel também resulta de
estudo, pesquisa, levantamento sobre o tema, Gonçalo Ferreira da Silva exemplifica abaixo,
sob a tinta da metalinguagem:
Nunca foi dita verdade
Tão definitivamente e dura,
Contundente em muitos lances
Noutros comovente e pura
Como nesta obra, joia
De nossa literatura.
[...] Livros de vários autores
Também foram pesquisados,
Exaustivamente lidos,
Depois de lidos, filtrados
Os lances mais importantes
Depois aqui registrados. (SILVA, p. 1)
O poeta deixa transparecer com o texto acima que o ato da escrita é também o da
leitura, releitura, e, conseguintemente, de reescrita, mesmo que isso não esteja num âmbito
estrita e exclusivamente documental.
Para Mikel Dufrenne (1969), “o intelecto é impessoal: pode e deve sê-lo, para
constituir um domínio de objetos manipuláveis, objetivos que não exigem um compromisso
particular” (p. 133). Nesse caso, sabe-se, o poeta popular também não pode dispensar essa
razão, pois nesse cabedal está o ato de construção do texto. É nesse espaço que se encontram
o apagar e o acender do texto, a borracha e o lápis deslizam no papel em transpiração
constante até o resultado do que se pretende poético. É nesse espaço que se institui o
inevitável encontro do poeta com a razão. Se a inspiração é o encontro com a divindade ou a
natureza para o pretexto da criação, o texto se faz da linguagem-palavra e, para isso, evoca-se
o racional.
174
Maritain, citado por Dufrenne, distingue três figuras que estendem a ideia do gesto
poético às demais artes, a que chamou de três maneiras de libertar, por vezes, heroicamente, o
sentido poético dos vínculos que o detêm à razão discursiva, pois essa libertação é sempre a
principal ambição do poeta inspirado:
A primeira consiste “em dar imediatamente livre curso à intuição criadora nascida
nas profundezas da alma”. A segunda, ‘invejosa de Deus que careceu de tato
suficiente para criar antes de nós’, exalta o poder criador do homem. A terceira visa
uma procura de si através da poesia. (MARITAIN apud DUFRENNE, 1969, p.134)
No ato de criação da literatura de cordel, essa intuição é uma realidade que se
presentifica quando, num primeiro momento, levamos em conta esse poeta natural,
desarmado de qualquer amarra racional, por agir apenas pela sensibilidade que o envolve a
alma no sentido mais profundo, embora sem se desvencilhar da ideia de que, sem o dom, sem
a verve, não há poesia. É “é o dom necessário” de que fala Gonçalo Ferreira da Silva. Num
primeiro instante, porém, a alma do poeta se confunde com o próprio ato criador, quando o
que predomina é a busca pela inspiração, para, a partir disso, o texto tomar sentido,
propriamente, de que é construção:
Só a alma luminosa
Do homem missionário
Ouve a voz interior,
E tendo o dom necessário
Faz poesia da seiva
De um caule imaginário.
Poeta não ouve vozes
Só com humanos ouvidos,
Ausculta a alma das coisas
Com diferentes sentidos
Para os que não são poetas
Ainda desconhecidos. (SILVA, p. 3)
Ao invocar a Deus, há o reconhecimento do criador supremo por parte do poeta, mas
esse invocar é o pretexto “invejoso” daquele que se pretende igual criador em relação àquele
que, primeiramente, é o Criador. E que é “antes de nós”. No ato de criação do cordel, há
também essa busca por afirmação do homem como criador, e que, como um deus, se arvora à
condição de criador:
Oh! Deus todo poderoso
Dai-me a santa inspiração
P’ra eu descrever em versos
Sem despeito e sem paixão
A mais triste das histórias
Ocorridas no sertão. (SILVA, p. 1)
175
Costa Leite, em O encontro de Lampião com Antônio Silvino, também se coloca como
o que, primeiramente, necessita da permissão do Criador para empreender sua narrativa:
Peço proteção a Deus
Nas poesias que faço
Saúde e felicidade
Enquanto copio e traço
Este conto nordestino
A luta de Antônio Silvino
E Lampião, rei do cangaço. (COSTA LEITE, p. 1)
Esclareça-se ainda que nos cordéis épicos não há fronteira na invocação a deuses e
musas inspiradores. Ao buscarem proteção para criar seus textos, tanto se invoca a Apolo
quanto a institutos representativos do universo judaico-cristão. De idêntica forma, a Natureza
com sua grandiosidade sofrerá pedido de auxílio na árdua labuta de se guardar memórias em
poesia.
Nos exemplos que seguem, as invocações aludem claramente à cultura clássica.
Mencionar Apolo ou, genericamente, as musas é prática já tornada tradicional na literatura de
cordel, o que denota o gosto dos poetas populares por essa cultura clássica, em muitos casos,
para mostrar conhecimento não somente a seu público, mas a seus pares, o que já se tornou
praxe entre esses poetas. É o que Marlene de Castro Correia (2010, p. 130) chama de
“disfarçada autovalorização do poeta junto ao público, perante o qual ele se define como
detentor-difusor da tradição”.
Ao invocar os deuses e as musas do Olimpo, o poeta se autoafirma perante seu
ouvinte/leitor como aquele que se atém à cultura clássica:
Apolo abre as veredas
Do passado do sertão
Mais um irmão de Silvino
Em minha apresentação
Aqui está no cordel
Dois cabras de Lampião [...]. (SABÓIA, p. 1)
Me inspire ó musa divina
Com toda sabedoria
Daí-me da mais rica mina
As pérolas da poesia
Para rimar meu poema
Nesse interessante tema
Que escolhi neste dia (RINARÉ, p. 1)
Musa mãe da poesia
Me encha de inspiração
Para narrar uma história
Sobre uma grande nação
Que é povo chinês
De milenar tradição (GERALDO, p. 1)
176
Perceba-se na estrofe a seguir como se misturam invocações pagãs e cristãs, num
escancarar de portas que deixa conviverem deuses de toda casta:
Vinde musa mensageira
Do reino de Eloim
Traz a pena de Apolo
E escreve aqui por mim
O Assassino da Honra
Ou a Louca do Jardim. (SILVA, p. 1)
Nesse outro exemplo as musas são santas, em plena mistura de tradição católica e
pagã:
Ajudai-me santas musas
Com força suave e leve [...] (SILVA)
Em invocação totalmente cristã, Joel Francisco Borges recorre a Deus para escrever
seu cordel Vida do vaqueiro:
Com o apoio que tenho
Do santo Deus verdadeiro
Que da santa poesia
Eu me tornei um herdeiro
Neste livro vou falar
Sobre a vida do vaqueiro. (BORGES, p. 1)
A natureza, a que o poeta popular sempre foi integrado, constitui motivo de invocação
como se agregasse todas as forças de que o vate necessita:
Ligeira a Natureza
Para mim apareceu
Trazendo, ela, consigo
Com todo seu apogeu [...]. (BATISTA, p. 1)
Mas há ainda das três figuras do “gesto poético” de Maritain aquela em que o poeta se
busca ou diz de si ‘através da poesia’. Gonçalo Ferreira faz a pergunta retórica, para, na
verdade, se dizer num ato de autorreferencialidade:
Onde estaria Gonçalo
Alheio à humana dor?
Possivelmente na fonte
Geradora de amor,
No absconso segredo
Das mãos de seu Criador.
Dirão que não há estética
Neste preâmbulo que faço
Pois tenho que mergulhar
No velho nordeste crasso
Para arrancar um poema
Das entranhas do cangaço. (SILVA, p. 3-4)
177
No cordel Trechos da vida de Lampião, Expedito Sebastião da Silva se enquadra nessa
terceira categoria do teórico francês, já que também se coloca no texto que constrói:
Para tirar o leitor
Duma dúvida ou embaraço
Aqui detalhadamente
Ligeiro um resumo faço
Sobre a vida do famoso
Lampião, rei do cangaço.
Da vida dele só conto
Trechos que chamam a atenção
De acordo com o que ouvi
Contado pelo sertão
E baseado no livro
Façanhas de Lampião.
Sobre ele algum poeta
Escreve, mas não conhece
A história verdadeira
Então o que acontece
É dizer muitas mentiras
Ferindo a quem não merece.
Portanto, fugindo à regra
Que escreve algum poeta
Adiante dou início
A uma história correta
Contando de Lampião
Trechos da vida completa. (SILVA, p. 1)
Esse dizer-se, apresentar-se no ato criador é algo corrente na literatura de cordel. Não
é pouco o número de autores que assim procede como a manter e preservar a tradição típica
de textos que provêm da oralidade. Antônio Teodoro dos Santos inicia o cordel Lampião, o
rei do cangaço da seguinte forma:
Nestes versos sertanejos
Escritos por minha mão
Baseado nas memórias
Do cangaço no sertão
Vou descrever o destino
Do capitão Virgulino
Que se chama Lampião. (SANTOS, p.1)
Quanto à construção do texto, afirma ainda Challub:
[...] o encontro que aí se dá é o da linguagem: do poeta e do leitor, construtores de
signos. Ou do emissor e do receptor diante de qualquer produção que necessite
expor seus sentidos a um outro que lhe dê existência pelo ato da descoberta de seu
ser. Diante de um poema, de um filme, da música que estimula o sensorial auditivo,
da escultura que convida ao tato, da ciência que permite a especulação, [...],
portanto, de qualquer mensagem organizada como um sistema de signos está o
receptor defrontado com a linguagem. [...] Há sempre o outro deflagrado diante do
eu, há sempre relações – de passividade ou dinâmicas, de criação ou de repetição –
mas sempre relações de linguagens. (CHALLUB, 2005, pp. 5-6)
178
O poeta Abraão Batista propõe ao seu leitor as diversas possibilidades de leitura a
partir da linguagem do cordel, no entanto a leitura relacional se dá segundo a linguagem desse
mesmo leitor e sua consequente identificação com os códigos a ele lançados:
Meu leitor, meu amiguinho
Permita a imaginação
Desse encontro imaginário
De kung Fu com Lampião
Na cidade de Juazeiro
Do padre Cícero Romão.
Pois bem, eu vou lhe dizer
Como foi que aconteceu
Para contar quem se feriu
Quem se matou, quem morreu
Depois me diga por aí
Quem contou isso foi eu.
Lembre-se: essa história
É livre e imaginária
Vem do livro do poeta
Que tem na indumentária
Do infinito astucioso
Que não tem medo de pária. (BATISTA, p. 1)
Da mesma forma que o “poeta tem liberdade/sagrado dom da natura”, como escrevera
José Pacheco (Debate de Lampião com São Pedro, p. 8), e se é livre para percorrer os
caminhos do seu texto, o leitor, igualmente, fica livre, segundo seu contexto cognitivo para
imaginar e até completar a narrativa, se for um leitor ativo, atento. Nada é empecilho para um
“encontro imaginário” de Lampião com Kung Fu num diálogo universalizado, já que ambos
são filtrados pelo imaginário popular como ideais heroicos. Se Lampião e Kung Fu confluem
para esse ideal de herói, o leitor também pode confluir para o texto, segundo seu alcance
imaginativo, para estabelecer sua leitura/texto, uma vez que não há fronteiras no universo do
imaginário. Desse modo, autor e leitor se complementam e se completam na ciranda
criação/leitura/recriação.
179
4. 2. INTERTEXTUALIDADE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
“Um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude.”
(Maingueneau)
Outro fato chama a atenção para o ato criador dos poetas populares: há uma
mentalidade artística que os leva a construir a partir de nítido diálogo intertextual. É comum,
na abordagem da literatura de cordel, e sobre quase todos os assuntos, o poeta recorrer,
mencionar textos anteriores, como pontos de partida para o seu. A intertextualidade não só
homenageia um texto anterior como é depoimento de seu prestígio no tempo e no espaço
diante de um novo texto ou autor, e, consequentemente, um novo leitor ou uma nova leitura.
Se um Camões se pauta num Virgílio e este, num Homero é sinal de que há sempre um novo
texto em contato com outro anterior. Nesse caso, a visita de autor a outro termina por levar o
leitor a empreender dupla leitura, pois, ao tomar contato com a releitura de um autor qualquer,
seguramente estabelecerá diálogos com fontes anteriores ao autor, seu contemporâneo.
Para Julia Kristeva (1974), “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo
texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de subjetividade,
instala‑se a intertextualidade e a linguagem poética lê‑se pelo menos como dupla” (p. 62).
Nos diversos cordéis nordestinos, a realidade do intertexto se faz presente não só naqueles
sobre cangaço, mas numa gama de temas de outra natureza:
Como dizia Drummond
“Cansei de ser moderno
Agora vou ser eterno”
Nesse mundo de meu Deus
Levo os pensamentos meus
Para contar uma história
Da grandeza da vitória
Com a pureza da razão.
Fazendo uma confissão
Como o ovo é da galinha
A história não é minha
Chegou-me pela internete
Sem enfeite, sem confete
Em forma de brincadeira
Do nosso Jorge Ferreira
Um retrô modernizante. (SALLES, p. 1)
180
Outro texto do mesmo autor se faz carregar de intertextualidade:
Vários anos se passaram
Na história do cordel
E eu cada dia aprendendo
Sempre de lua de mel
Vou contar um novo enredo
Sem mistérios nem segredo
Escrevendo no papel.
Esse drama não é meu
Nem sei quem foi o autor
Se foi fato verdadeiro
Também não sei não senhor
Conheço desde menino
Por isso agora ensino
Mesmo sem ser professor. (SALLES, p.1)
Desse modo, é convergente a intertextualidade na literatura popular nordestina,
especificamente, nos escritos de cordel.
Conforme ainda de Kristeva (1974), “a palavra literária não é um ponto, um sentido
fixo, mas, um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do
escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior” (p. 62).
Ao escrever Lampião, rei do cangaço, amores e façanhas, Antônio Teodoro dos
Santos começa seu texto com a transcrição do que chamou de “canto de guerra”, numa alusão
à Mulher rendeira, em explícito trabalho intertextual com a cantiga usualmente cantada pelo
bando, quando este entrava ou saía dos povoados e pequenas cidades invadidos. Em tom de
irônica zombaria, como a desafiar as comunidades atingidas, a canção, raro, não era entoada.
Da conhecida invasão de Lampião e seu bando a Mossoró, no Rio Grande do Norte,
em 1927, informa Fenelon Almeida (1981), quanto à toada em questão e sobre quem era o
cantador do grupo:
[...] era um menino, uma criança, um garoto de apenas 15 anos. Seu nome de
família: Oliveira, o Oliveira. Mas no bando, era tratado e respondia por “Menino de
Ouro”. [...]
Com sua voz de falsete descambando para aligeirado barítono – nem fina nem
grossa – era o “Menino de Ouro” quem puxava os acordes e o refrão de Mulher
Rendeira. (ALMEIDA, 1981, p. 52)
De autoria que oscila entre o folclórico e o popular, a canção é atribuída a Virgulino
Ferreira, ao bando, propriamente, em autoria coletiva, e a outros cangaceiros como Antônio
dos Santos, o Volta Seca, do bando de Lampião.
181
Ao antepor aos versos iniciais de seu cordel trechos dessas quadras saídas do povo,
além de permeá-lo com outras quadras de igual origem, o que faz em todo o texto, o poeta
agrega-os em seções a que chamou “Canto de guerra”, “Toada satírica do povo” e “Poesia de
Lampião”. Noutras partes do texto, trechos de “Mulher rendeira” aparecem seguidos da
expressão “bis”, comum aos cantos cujas estrofes se desejam repetir em canções quaisquer.
Noutro lance do texto, talvez o mais interessante, se dá a transcrição de pequeno poema
atribuído a Virgulino Ferreira, comprovadamente apreciador de música de cantadores
repentistas e da poesia popular.
Entremear seu texto com outros resultou no enriquecimento do cordel em questão,
uma vez que sobre o cangaço se fazia presente desde muito tempo essa memória popular em
versos, e trazê-los à tona valoriza-os tanto quanto ao cordel. Desse modo, começa seu texto
Antônio Teodoro:
“O fuzil de Lampeão
É coberto de metá
A bala que sai de dentro
Cantando Muié rendá...
Olê, mulé rendera...
Olê, mulé renda...
Tu me ensina a fazê renda
Qu’eu t’insino a namorá
Chorou por mim não fica
Saluçou vai no borná!” (SANTOS, p. 3)
Veja-se que o poeta, ao iniciar seu texto, menciona a memória como algo que sai do
povo, de seu saber e de sua verve:
[...]
Nestes versos sertanejos
Escritos por minha mão
Baseado na memória
Do cangaço no sertão
Vou descrever o destino
Do capitão Virgulino
Que se chama Lampião. (SANTOS, p. 3)
O poeta encaixa outro trecho trazido da memória do cangaço, mas sempre em diálogo
com as ideias que quer transmitir em sextilhas anteriores ou posteriores à transliteração.
Nesse espaço, a menção é aos pais de Lampião. O pequeno texto, em tom de sátira, escarnece
da genitora de Virgulino Ferreira:
“Armei uma arapuca
Pr’a pegar um gavião
Peguei uma cobra preta
182
Que é a mãe de Lampião.” (SANTOS, p. 4)
Na estrofe que antecede o texto, o poeta se refere aos genitores do rei do cangaço:
[...]
José Ferreira da Silva
E dona Maria José
São os pais de Virgulino
Unidos na Santa Sé
Não suportaram o menino
Foi criado Virgulino
Com seu tio, em Nazaré. (SANTOS, p. 4)
Por todo o texto, se faz notar a presença dessas quadras em distribuição aleatória,
porém, sempre de acordo com as intenções autorais, isto é, em constante conversa com a
narrativa. A escolha dos textos também se fez de modo interessante: há umas de tom
elogioso, outras, de caráter irônico, de modo que todo o escrito se faz acompanhar de
exemplos que se fazem atravessar de ideias, ora afirmativas sobre o cangaceiro, com dados
positivos, ora de outros em que elementos de negação compõem a intertextualidade presente
na narrativa.
Percebamos nesse trecho que rememora a entrada de Lampião para o cangaço, após
perder o pai por assassinato, como o texto em cordel se dá, e como a quadrinha que segue, o
legitima, fechando-o:
[...]
Virgulino nesse tempo
Tinha dezessete anos
Participou à justiça
O que fizeram os tiranos
Alguém disse: - Virgulino
Entrega ao Juiz Divino
Que resolve todos planos.
Ele disse: - É isso mesmo
Isso são coisas fatais
Mas se lê nos Mandamentos:
“honrarás aos vossos pais”
Eu nasci, sei que sou homem
Não garantindo este nome
Não desejo viver mais...
Comprou um rifle e punhal
Na vila de São Francisco
Fez bornal e cartucheira
Sem medo de correr risco
Convidou cada um irmão
Ajuntou no batalhão
Calais, Sabino e Corisco...
“Lá vem Sabino
Mais Lampião
183
Chapéu quebrado
Fuzil na mão!” (SANTOS, p. 6)
Ao dar foco ao amor vivido por Virgulino e Maria Bonita, o poeta dispõe entre duas
sextilhas versos que se conhecem até os dias atuais, com suas variantes, e que o folclore
reconhece como cantos entoados no bando do rei do cangaço. O lirismo do texto tem requinte
e beleza matuta, porém, sem deixar a base própria da história desse encontro. Maria de Déa,
como era também chamada, foi mulher de um sapateiro, a quem o poeta satiriza, e de quem,
antes de seguir Lampião, Maria Bonita havia se separado:
[...]
O sol assoprou seus raios
Sobre o véu da catadupa...
Lampeão naqueles matos
Só com Maria se ocupa
E o sapateiro, eu nem falo
Pois o dono do cavalo
Não monta nem na garupa.
“Te alevanta, Maria Bonita
Te alevanta, vem fazer café...
Os cabra na mesa de jogo
Maria Bonita, na máquina de pé!”
Alguém que não conheceu
A mulher de Lampeão
Se nome diz a beleza
E a proeza o coração
Lutava contra a polícia
Tinha coragem e perícia
Destreza no mosquetão. (SANTOS, p. 23)
Em outro trecho, Antônio Teodoro dos Santos apresenta textos tirados da canção
anônima em torno do casal, de seus desgostos, de suas saudades. Como mencionado
anteriormente, o texto transliterado é referente à letra e melodia, pela pista encontrada na
expressão “bis”, além de, dentro do texto, os versos “vibrando uma melodia/ da conhecida
canção” confirmarem a ocorrência da linguagem musical em diálogo com a desse cordel:
[...]
Naquele sertão imenso
Alguém ouviu Lampeão
Vibrando uma melodia
Da conhecida canção
Muita gente até chorava
Pela voz que deslumbrava
Na dor da recordação:
“Não sei se é minha sina
Não sei se é minha sorte:
Tenho saudade e não vejo) Bis
A Ingazeira do Norte...”) (SANTOS, p. 27)
184
Quanto a Maria Bonita, a narrativa se dá na saudosa voz da própria cangaceira, na
estrofe imediatamente seguinte:
[...]
Então, Maria Bonita
Com uma voz que admirava
Cantava sua modinha
Que a serrania ecoava
No seu gesto de beleza
Parecia uma princesa
Quando estes versos narrava:
“Adeus casa que eu morava
Sala que eu passeava
Cadeira que eu me assentava) Bis
Janela que nós namorava!...” ) (SANTOS, p. 27)
Ao abordar a intertextualidade, Roland Barthes traz interessante discussão ao
mencionar que essa prática resulta no processo de desconstrução, mas também de
reconstrução de outro texto, ou seja, do novo texto:
O texto redistribui a língua (é o campo dessa redistribuição). Um dos caminhos
dessa descontrução-reconstrução é permutar textos, retalhos de textos que existiram
ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto é um
intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais
ou menos reconhecíveis. [...]
A intertextualidade, condição de todo texto, seja ele qual for, não se reduz,
evidentemente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo
geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações
inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. (BARTHES, 2004, p. 275)
Entendamos essa redistribuição de que fala Barthes como um mecanismo de repetição
permitida a que todos os escritores têm acesso, a partir da língua, como se um texto anterior,
ou até contemporâneo, fosse ponto de partida para outros textos. É o olhar ou o sentir de um
poeta, por exemplo, que se estende ao de outro, que o confirma, com novo texto, sem deixar
de ser original, e por isso mesmo, se afirma como construção, ou seja, desconstrói-se, para se
entender a engrenagem de um texto anterior, com o sentido de reconstruí-lo, o que, na
verdade, é já outra construção. Se refletirmos nas “fórmulas anônimas” do autor de O prazer
do texto, todo texto pré-existe anonimamente, e nesse caso, haveria uma autoria coletiva,
porém o que o torna original é o arranjo ou rearranjo que alguns têm a capacidade de
executar, e desse modo, eis a razão do reconhecimento autoral.
Nessa direção, o poeta dá voz do próprio Virgulino Ferreira, já no final da narrativa,
como um fechamento com chave de ouro, sob o título de “Poesia de Lampião”, em que se
transcrevem versos debitados a Virgulino, e nos quais o bandoleiro descreve, entre o lamento
e o orgulho, a sina de ser cangaceiro:
[...]
185
Por minha infelicidade
Entrei nesta triste vida
Não gosto nem de contar
A minha história sentida
A desgraça enche o meu rosto
Em minha alma entra o desgosto
Meu peito é uma ferida.
Quando me lembro, senhores
Do meu tempo de inocente
Que brincava nos serrados
Do meu sertão sorridente
Magoado desta paixão
Sinto que meu coração
Bate e chora amargamente...
Meu pai e minha mãe querida
Quiseram me ensinar
No seu coro carinhoso
Ela ensinou-me a rezar
E, à luz dos pirilampos
Ele ensinou-me nos campos
Eu menino a trabalhar.
[...]
Tive também meus amores
Cultivei minha paixão
Amei uma flor mimosa
Filha lá de meu sertão
Sonhei de gozar a vida
Bem junto à prenda querida
A quem dei meu coração...
[...]
Meu rifle atira cantando
Em compasso assustador
Faz gosto brigar comigo
Porque sou bom cantador
Enquanto o rifle trabalha
Minha voz, longe, se espalha
Zombando do próprio horror. (SANTOS, p. 29-30)
Rogel Samuel (1985) em estudo de crítica literária assinala as apreciações
sociológicas de Goldmann e Lukács, para os quais “[...] a superestrutura ideológica do texto
veicula uma ideologia (uma visão de mundo) que não é exclusividade do escritor, produtor do
texto, mas que provém de certa classe social, cuja voz o texto traduz” (p. 189). Os cordelistas
têm essa certeza de que trazem a voz do povo, de que são seu representante e de que lhes
refletem os anseios. Há nesses poetas uma consciência de que o texto já existe, está pronto e
de que eles apenas lhe dão forma, trazem-nos a público, rumina-os, sintetiza-os, traduzem-
nos. No texto que segue, o poeta José Costa Leite é enfático:
[...]
Todo mundo já conhece
Sua história e seu passado
186
Porém existe um detalhe
Que ainda não foi contado
E o poeta popular
Se apresenta pra contar
Deixando o povo informado. (COSTA LEITE, p. 1)
O poeta Manuel D’Almeida Filho também dá provas de como o texto se constrói a
partir de fonte que já existe:
[...]
Entre os fatos mais falados
Pelas plagas do sertão,
Temos as grandes façanhas
Dos cabras de Lampião
Mostrando as quadras da vida
Do famoso capitão.
Em diversas reportagens
De revistas e jornais,
Com testemunhas idôneas,
Contando os fatos reais,
Coligimos neste livro
Lances sensacionais.
[...]
São casos que ainda hoje
Não temos quem os conteste
Porque ficaram gravados
Nas entranhas do Nordeste
Com sangue, com ferro e fogo,
Como maldição da peste.
[...]
Acreditamos que tenham
Existido outros bandidos,
Mortos ou ainda vivos,
Que não foram conhecidos
Nem lembrados pelo povo
Ficaram assim esquecidos.
Tudo que aqui narramos,
Dos cabras de Lampião,
Lemos ou nos foi contado
Por pessoas do sertão,
Não temos culpa se houve
Erros na informação.
Aos meus admiradores
Levo uma história concreta
Manipulada com fatos
Em cada fonte correta,
Inserida no sertão,
Dos cabras de Lampião,
A narração mais completa. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 1 e 48)
Atente-se para uma prática comum aos cordelista: o autor encerra a legitimidade dos
seus versos com o uso de acróstico.
187
Os textos acima transcritos nos dão a cabal ideia da intertextualidade que o poeta,
efetivamente, buscou no próprio povo que tem seus textos orais guardados na memória. O
poeta praticou o que Roger Samuel aponta das afirmativas de Luckács e Goldmann: “todo
texto revela uma luta de classes, reflexo especular de infraestruturas (Luckács), homologia de
relações sociais (Goldmann) em que o que se passa no texto é o que se passa na coletividade”.
(ROGEL SAMUEL, 1985, p. 189).
Na literatura de cordel, segundo proposta do olhar épico, essa coletividade autoral se
dá tanto do ponto de vista da coletividade, naquele sentido mesmo da tradição popular e
folclórica, quanto pela intertextualidade, na medida em que há a colagem, o diálogo com
textos anteriores e até contemporâneos, algo que se dá talvez intuitivamente, mas não menos
interessante para a construção literária do cordel.
Em Encontro de Lampião com Adão no paraíso, cujos versos ilustram os últimos
parágrafos acima, Manoel D’Almeida Filho faz menção aos cordéis, respectivamente, A
chegada de Lampião no inferno e Debate de Lampião com São Pedro, ambos de José
Pacheco, em ponto de contato nos seguintes versos:
[...]
Falando de Lampião
Não temos nenhum receio,
Pois quem viveu no Nordeste
Sabe bem de onde ele veio;
Do tempo dos coronéis
Foi um produto do meio.
Depois de morto, os poetas
Versaram diversos contos
Mostrando muitas proezas
Nos mais diferentes pontos
Com gracejos que os leitores
Às vezes ficavam tontos.
Quando foi para o inferno
O diabo não aguentou
Sem ninguém poder dar jeito
Lá todo bicho apanhou;
Só foi embora depois
Que o conjunto incendiou.
Foi debater com São Pedro,
Porém correu grande risco
Porque do céu foi expulso
Por efeitos de um corisco
Que caiu do quinto andar
“Jogado por São Francisco”. (D’ALMEIDA FILHO, p. 1)
Em a Chegada de Lampião no inferno, José Pacheco narra:
188
Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Em certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal-assombrado.
E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O inferno nesse dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar.
[...]
Lampião pegou um seixo
E o rebolou num cão
A pedrada arrebentou
A vidraça do oitão
Saiu um fogo azulado
Incendiou-se o mercado
E o armazém de algodão. (PACHECO, pp. 1 e 7)
Ainda no que tange a essa intertextualidade de Manoel D’Almeida Filho com os dois
folhetos relacionados acima, vejam-se os trechos abaixo do encontro de Virgulino Ferreira no
céu com São Pedro, porém em acalorada desavença que termina por envolver todos os santos
para expulsar o cangaceiro:
[...]
S. Paulo estava na quinta-feira
Mas ouvindo a discussão
Apertou o cinturão
Botou a faca na cinta
Encontrou Santa Jacinta
Que já vinha no caminho
E disse Santo Agostinho
Arretorcendo o bigode:
Arreda, que tu não pode
Eu pego o cabra sozinho.
Porém antes de pegar
Desceu um grande corisco
Jogado por S. Francisco
Da porta do quinto andar
Num tremendo rebombar
Um trovão também desceu
O espaço escureceu
Veio até um pé de vento
Lampião nesse momento
Dali desapareceu. (PACHECO, p. 8)
Afonso Romano de Sant’Anna (1988) cita Foucault e Jacques Derrida como aqueles
que trabalharam bastante a questão da intertextualidade, já que argumentavam “que o texto é
189
algo sempre em movimento, que há correlação entre as diversas escritas, e que a única
maneira de se aproximar o quanto possível de certa verdade é estar preparado para ler todos
os artifícios que os textos nos preparam” (p.72). Nesse sentido, podemos afirmar que
cordelistas correm juntos na feitura de seus textos com a releitura de outros em tear que exige
sempre mais fios. O movimento de que falam Foucault e Derrida está em ser o texto uma
instância de todos e não um tecido particular. Particular é a originalidade que daí emana.
Luiz Gonzaga de Lima escreveu A chegada de Lampião no purgatório e, seguindo os
passos de José Pacheco, com o texto deste estabelece contato nos seguintes versos: “Lampião
não sendo aceito/ No inferno nem no céu”.
De José Pacheco se lê:
[...]
Leitores vou terminar
Tratando de Lampião
Muito embora que não possa
Vos dar a resolução
No inferno não ficou
No céu também não chegou
Por certo está no sertão. (PACHECO, p. 8)
Em A volta de Lampião ao inferno, de Manoel D’Almeida Filho, se dá a
intertextualidade novamente com Pacheco: “Primeiro foi ao inferno/ Onde não foi recebido”.
Em A chegada de Lampião no inferno, se lê como um cangaceiro que volta desse mesmo
lugar narra a chegada de Lampião por lá, e como este foi recepcionado:
[...]
O vigia foi e disse
A Satanás, no salão:
- Saiba vossa senhoria
Que aí chegou Lampião,
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou ingresso ou não.
- Não senhor, Satanás disse,
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Estou até com vontade
De botar mais da metade
Dos que tem aqui pra fora! (PACHECO, p. 3)
Ao tratar do processo de intertextualidade, assegura Tomasello:
Quando utilizadas em atos de comunicação, [...] habilidades sociocognitivas servem
para criar símbolos linguísticos entendidos intersubjetivamente e perspectivamente,
os quais podem ser usados para convidar as outras pessoas a conceptualizar
fenômenos de alguma das várias perspectivas, simultaneamente, disponíveis. A
internalização de tais atos de comunicação simbólica cria formas de representação
cognitiva especialmente flexíveis e poderosas e essas, então, mais tarde, na
190
ontogenia, permitem pensamentos metafóricos, dialógicos e reflexivos.
(TOMASELLO, 2003, p. 11)
É nessa perspectiva que trabalham os poetas populares: diálogos que resultam de
releituras, e que, por seu lado, transmudam em novo texto. Na literatura de cordel, são
inúmeros os exemplos desse fenômeno da intertextualidade. Nela há textos deveras originais,
mas o são, porque saídos de diálogos e reflexões sobre como construir seu próprio texto a
partir de outros, sem ter de necessária e piamente imitá-los. Aliás, ressalte-se, o processo de
intertextualidade está além, bem além do de imitação:
[...]
Tudo que aqui narramos
Dos cabras de Lampião,
Lemos ou nos foi contado
Por pessoas do sertão,
Não temos culpa se houve
Erros na informação. (D’ALMEIDA FILHO, p. 48)
Esses procedimentos, embora, de certo modo, intuitivos, nos levam a crer que a
poética do cordel se dá não só pela inspiração, mas pelo trabalho e consequente transpiração
na busca da linguagem, na escolha das palavras, no processo da rima, na busca pelo ritmo.
Inspiração e suor são as argamassas da construção desse texto.
191
4.3. A CONSTRUÇÃO: “TIJOLO COM TIJOLO NUM DESENHO MÁGICO”
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
(“O operário em construção”, Vinicius de Moraes)
Em conformidade com a poesia popular, é usual a construção em versos que se dá com
cinco sílabas, as chamadas redondilhas menores, e com sete, tidas por redondilhas maiores.
Na literatura de cordel e noutras modalidades de poesia popular, como as da cantoria do
repente, são usadas métricas que foram consagradas desde finais do século XIX, por todo o
XX e até os dias atuais.
Na Antologia ilustrada dos cantadores (1982), Francisco Linhares e Otacílio Batista
são precisos em suas informações acerca da construção silábica, rímica e rítmica da poesia
popular, especificamente, em versão cantada e de improviso, embora o estudo se enquadre,
igualmente, na poética da literatura de cordel. Alegam os autores que, entre as criações dos
poetas clássicos, que vieram a ser usadas pelos nossos cantadores, estão a quadra, a décima, a
sextilha em decassílabo com rimas cruzadas, e sua variante (Cf.: LINHARES e BATISTA, p.
13).
Há algo que devemos perceber ao longo da história da poética popular: os textos
clássicos ou migraram naturalmente para essa poesia ou foram espontaneamente adotados por
seus poetas. É possível que isso se dê por ocasião de o poeta popular absorver o clássico
como aquilo que já está pronto e pode ser adaptado à sua realidade de autor. Percebe-se, a
partir dessa perspectiva, que o poeta popular, de posse dessas informações poéticas, se sente à
vontade para se dirigir a seu povo com espírito mais galante.
Ao mencionar a décima como de origem clássica, os autores da Antologia ilustrada
dos cantadores alegam ser “um estilo muito apreciado, desde os primórdios da poesia
popular” (LINHARES e BATISTA, p. 19). Comumente, a décima clássica se dá da seguinte
forma: ABBAACCDDC, em versos com rimas consoantes, em que o primeiro rima com o
quarto e quinto; o segundo, com o terceiro; o sexto, com o sétimo e o décimo, e o oitavo, com
o nono. Costumam as décimas serem de sete sílabas poéticas.
192
Em termos de ilustração, seguimos a Linhares e Batista para trazermos à tona um texto
provavelmente do século XIX, de autoria do paraibano, da Serra do Teixeira, berço da
cantoria brasileira, Antônio Ugolino Nunes da Costa, de alcunha Ugolino do Sabugi, tido
como primeiro cantador nordestino e brasileiro. O texto é glosado segundo o mote: As obras
da natureza:
[...]
As obras da natureza
São de tanta perfeição,
Que a nossa imaginação
Não pinta tanta grandeza!
Para imitar a beleza
Das nuvens com suas cores,
Se desmanchando em louvores
De um manto adamascado,
O artista com cuidado
Da arte aplica os primores. (LINHARES e BATISTA, p. 19)
Quanto à sextilha, informam os referidos autores:
Talvez, por ser mais fácil, seja o gênero preferido pelos nossos repentistas,
principalmente no início das apresentações. A sextilha é uma estrofe com rimas
deslocadas, constituída de seis linhas, seis pés ou seis versos de sete sílabas, nomes
que têm a mesma significação. Na sextilha rimam as linhas pares entre si,
conservando as demais em versos brancos. (LINHARES e BATISTA, 1982, p. 13)
Dessas estrofes de seis versos, pode-se afirmar que se distribuem da seguinte forma:
AABBCC, AABCCB, ABABAB (a mais comum aos cordéis), ABABCC, ABACBC,
ABACCB, ABBAAB, ABBABA, ABBCAC, ABCABC, ABCBAC.
Informa Câmara Cascudo:
[...] o povo não cultivou as formas cultas do soneto nem os versos de 12 sílabas. [...]
A sextilha, verso de seis pés, é a forma popular dos “desafios” e dos romances
publicados em todo o Brasil, comentando assuntos novos ou velhos, líricos ou
guerreiros, políticos, gerais ou locais. (CASCUDO, 1978, p. 351)
Os exemplos são os mais vastos. Um deles é a transcrição de um suposto desafio entre
os poetas populares Passarinho e Melquíades Literatura oral no Brasil, (1978) em que,
inclusive, explicam o processo de sua poética, embora com pequenas irregularidades na
distribuição silábica, entre seis e sete e até oito:
Eu/ não/ ve/jo/ quem/ me a/fron/te
Nes/tes/ ver/sos/de/ seis/pé;
Pe/gue o/pi/nho/, com/pan/hei/ro,
E/can/te/ lá/ se/qui/sé...
Qu’eu/ mor/do e/ be/lis/co a is/ca
Sem/ ca/ir/ no/ ge/re/ré.
Pas/sa/ri/nho/, te/pre/pa/ra
Pa/ra/ le/var/ uma/ pi/sa;
193
Se a/jo/e/lhe em/ meus/pés,
Ti/ran/do/fo/ra a/ ca/mi/sa,
Na/po/e/si/a /de/se/te
Ver/se/vo/cê/ im/pro/vi/sa. (p. 351)
O outro responde na poesia de sete, que corresponde, no texto, tanto ao verso de sete
sílabas quanto ao de sete pés, a setilha, simultaneamente, pela resposta do outro:
Mel/quí/a/des/,nes/te/sis/te/ma
É/co/mo/ pás/sa/ro/gor/jei/a;
Co/me/ça/ na/ lua/-no/va,
Ter/mi/na/ na/ lua/-chei/a,
A/fi/ne a/ sua/ vi/o/la
Pa/ra/ se/ me/ter/em /so/la
E/ de/pois/ ir/ pra/ca/dei/a! (p. 352)
As variações silábicas se dão nos versos 5.º, da primeira estrofe, com seis sílabas; 2.º e
3.º da segunda, com seis; 1.º e 2.º, com oito; 3.º, 4.º e 5.º, com seis, na terceira estrofe.
Francisco Linhares e Otacílio Batista (1982) citam uma memorável sextilha de
Leandro Gomes de Barros em que este explica seu fazer poético entre o metalinguístico e a
lição moralizante, o que se dá segundo exemplo abaixo:
Meus/ ver/sos/ in/da/ são/ do/tem/po
Que as/ coi/sas/ e/ram /de/gra/ça:
Pa/no/ me/di/do/ por/ va/ra,
Ter/ra /me/di/da/ por/bra/ça,
E um/ ca/be/lo /da/bar/ba
Era uma/ le/tra/ na/pra/ça. (p. 15)
Na estrofe, percebe-se a irregularidade das sílabas métricas, também chamada de pé
quebrado, o que ocorre no 1.º, 5.º e 6.º versos, com sílabas métricas fora de propósito no 1.º
verso, com oito sílabas; no 5.º, com seis e no 6.º, com cinco. No primeiro verso, se o pronome
possessivo –meu estivesse no singular, também fugiria ao setessílabo, comum à construção
da poesia popular. Leia-se: Meu/ ver/so in/da é/ do/ tem/po. O 5.º e 6.º versos escapam às
propostas tão caras ao cordel.
Essas oscilações até ocorrem, mas os poetas têm o cuidado de evitá-las, já que
primam, tradicionalmente, pela métrica. Das sextilhas que seguem, sirvamo-nos dos versos de
Expedito Sebastião da Silva em Trechos da vida completa de Lampião, cordel em que o poeta
se utiliza da devida separação das sílabas poéticas:
Pa/ra ti/rar/ o/ lei/tor
Du/ma/ Du/vi/da ou em/ba/ra/ço
A/qui/ de/ta/lha/da/men/te
Li/gei/ro um/ re/su/mo/ fa/ço
So/bre a/ vi/da/ do/ fa/mo/so
Lam/pi/ao/, rei/ do/ can/ga/ço.
194
Da/ vi/da/ de/Le/ só/can/to
Tre/chos/ que/ cha/mam/ a/ten/ção
De a/cor/do /[com] /o/ que ou/vi
Com/ta/do/ pe/lo/ ser/tão
E/ ba/se/a/do/ no/ li/vro
“Fa/çan/has/ de/ Lam/pi/ão”. (SILVA, p. 1)
Setessilábicos, os versos apresentam uniformidade clássica, exigência dos que
propõem trabalhar o verso segundo uma métrica que a tradição dita tanto aos repentistas
quanto aos poetas cordelistas.
De acordo com Linhares e Batista, as estrofes de sete linhas ou versos já são uma
criação brasileira, conforme citação abaixo:
O cantador alagoano Manuel Leopoldino de Mendonça Serrador fez uma adaptação
à sextilha, criando o estilo de sete versos, também chamado de sete linhas ou de sete
pés, rimando os versos pares até o quarto, como na sextilha; o quinto rima como o
sexto, e o sétimo com o segundo e o quarto. (LINHARES e BATISTA, 1982, p 15)
A estrofe de sete versos se dá da seguinte forma: AABCBBC, ABBACCA,
ABABCCB, ABACBAC, ABACDCD, ABBAACC, ABBACCA.
No repente e na literatura de cordel, a mais comum das estrofes em sete pés é a que
segue, do poeta José Cordeiro, com o texto A visita de Lampião a Juazeiro:
Lei/tor, vou/ nar/rar/ um/fa/to
Le/gal/men/te/ ver/da/dei/ro
Do/que/ Lam/pi/ão/ fi/ze/ra
A/ vin/te/ de/ fe/ve/rei/ro
E a/ vi/si/ta/ que/ fez
Em/ mar/ço a/ 4/ do/ mês
Ao /pa/dre/ do/ Ju/a/zei/ro. (CORDEIRO, p. 1)
Note-se que os versos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º apresentam sete sílabas. O 5.º é de pé quebrado
e o 6.º, ao apresentar o dia do mês em algarismo arábico, aparentemente, não teria as sete
sílabas esperadas. Entretanto, vertido para a palavra, isto é, ao ser escrito, o numeral quatro
converte o dito verso em setessilábico: “em/mar/ço a/qua/tro/do/ mês”.
Outro recurso de que os poetas populares se utilizam é o enjambement ou
cavalgamento, técnica de origem medieval que se aplica à poesia popular e à erudita.
O poeta Antônio Cícero, em seu blog (<http://antoniocicero.blogspot.com.br>),
informa a esse respeito em apurado estudo:
Os poetas modernos usam mais o enjambement do que os clássicos. De fato, com o
verso livre, a importância expressiva do enjambement aumentou. Querendo dar um
exemplo disso, lembrei logo de alguns versos de um livro que iluminou minha
adolescência, "A Rosa do Povo", de Carlos Drummond de Andrade, mestre absoluto
do enjambement. Do poema "Consideração do Poema", por exemplo, lembrei dos
seguintes:
195
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakóvski.
O fenômeno do enjambement, encadeamento ou cavalgamento, para Amador Ribeiro
Neto, se dá “quando um verso continua no seguinte sintática, semântica e ritmicamente.” [...]
“Este tipo de verso transmite a ideia de continuidade, envolvimento, de sequência.”
(RIBEIRO NETO,< http://portal.virtual.ufpb.br>).
Um dos exemplos mais criativos de enjambement na poesia popular vem de Severino
Lourenço da Silva Pinto, de alcunha Pinto do Monteiro, considerado até os dias atuais como o
maior poeta do gênero. Se o texto se deu em décima, sob o mote “Quem foi aroeira outrora/
quem está sendo hoje em dia”, o poeta glosou da seguinte forma:
Eu mesmo já fui um dos
Que vi muito gado aqui
Tudo com o ferro de
Doutor Artur Santa Cruz
Onde se avistava os
Grandes rebanhos que havia
Gado de solta e de cria
Dentro da fazenda e fora
Quem foi aroeira outrora
Quem está sendo hoje em dia. (PINTO, apud PEREIRA, 2006, p. 25)
Do poeta Gonçalo Ferreira da Silva sobre Gandhi há o seguinte verso, em que foi
necessária a utilização da técnica do enjambement:
Dia trinta de janeiro
De quarenta e oito, o guia
Espiritual da Índia
Três balaços recebia,
Quando o dia agonizava
Mahatma Gandhi morria. (SILVA, apud PEREIRA, 2006, p. 25)
Carlos Drummond de Andrade em um de seus tantos metapoemas escreve que “Lutar
com palavras/ É a luta mais vã/ Entanto, lutamos/ Mal rompe a manhã” (2001, p. 243).
Os poetas populares têm o dom de lutar com as mesmas palavras, embora muitos
deles, senão a maioria, não teve nem manhãs nem tardes nem as noites em que pudessem lidar
com o saber escolar. Parte considerável deles tem apenas rudimentos de saber aprendidos e
apreendidos em cartas de ABC, em pequenas leituras de jornais, em leituras na própria
literatura de cordel. Esse é o que constitui o depoimento de quase todos. Sua poesia brota da
terra, do chão, da natureza. De suas experiências autóctones vêm o saber, a observação, a
sensibilidade para lidar com as coisas, com os bichos, com as plantas, todos a constituir motes
196
para a poesia. É desse chão que brotaram o vaqueiro, o gado, as águas, os rios, a valentia, o
cangaceiro. Ali nasceu uma poesia da terra.
Os textos que nasceram e nascem desse olhar e que abordaram e abordam a temática
do cangaço são os mesmos em que há metalinguagem, intertextualidade, pesquisa a fontes
escritas e orais, diálogo com o leitor, técnica legada pela tradição: escansão, ritmo, conteúdo
(a que eles chamam de oração), rima, silabação, todos a se dar espontânea e intuitivamente,
num quase divino criar, mas também num humano e consciente criar.
Num texto em que se comemoram os supostos cem anos de literatura de cordel no
Brasil, o poeta Geraldo Amâncio Pereira (2006, pp. 37 e 39) alude a um título tornado um
clássico, o Romance do pavão misterioso, de José Camelo de Melo Resende, (? – 1964)
publicado em 1959 e tido como um dos maiores exemplos dessa poética. O texto é construído
sob um mote dado por Antônio Klévisson Viana, que diz: O cordel completou um
centenário/Viajando nas asas do pavão. Ao partir dessa ideia, o texto é todo um metapoema:
A maior expressão do menestrel
Não há força que atinja seu alcance
O campônio conhece por romance
Ou então por folheto de papel.
Só depois veio o nome de cordel,
Que em feira era exposto num cordão
Ou então numa lona pelo chão
E um poeta a cantar feito um canário
O cordel completou um centenário
Viajando nas asas do pavão.
Registrando o passado e o presente,
Para tudo o cordel tem sempre espaço:
Pra amor, pra política, pra cangaço,
Romaria, promessa, penitente.
Retirante, romeiro, presidente,
Seca, fome, fartura, inundação...
Qualquer um que quiser informação,
Nele encontra o melhor documentário,
O cordel completou um centenário
Viajando nas asas do pavão.
Dos cordéis, elegeu-se o mais famoso,
Entre métrica, oração, rima e estilo,
O segundo lugar é de João Grilo
E o primeiro, o Pavão misterioso,
A história de um pássaro formoso
Misturando real e ficção.
O enredo imortal de uma paixão
Imprimiu-se no nosso imaginário,
O cordel completou um centenário
Viajando nas asas do pavão.
197
Ao buscar no cangaceiro o personagem que represente seu povo, o poeta o faz herói da
narrativa numa dura epopeia da vida em meio à cruel realidade do enfrentamento às volantes,
aos coronéis, aos valentes de todos os naipes, à seca, à fome, ao perigo, à vizinhança com a
morte, e, inclusive ao medo, mas também ao destemor de tudo.
É imprescindível lembrar que Carlos Drummond de Andrade, admirador desses poetas
populares, em texto sobre o mais importante deles, Leandro Gomes de Barros, afirma em
crônica intitulada O poeta:
Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por
maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a
má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes
de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela
revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do País, onde suas obras
alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de "Ouvir Estrelas". [...] E aqui
desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará
sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros.
Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesa média; o outro, planta
sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros
admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este espalhava seus
versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos
nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão. (Jornal do Brasil, 9 de
setembro de 1976)
Continua o poeta de Sentimento do mundo:
A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona limitada de
bem estar social, bebia inspiração europeia e, mesmo quando se debruçava sobre
temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o sistema de poder
político, econômico e mundano. A de Leandro, pobre de ritmos, isenta de lavores
musicais, sem apoio livresco, era o que tocava milhares de brasileiros humildes,
ainda mais simples que o poeta, e necessitados de ver convertida e sublimada em
canto a mesquinharia da vida [...]. Não foi príncipe de poetas
do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em
estado puro. (Jornal do Brasil, 9 de setembro de 1976)
Manuel Bandeira, afeito igualmente à poesia popular, depois de ouvir uma
apresentação dos irmãos repentistas Otacílio e Dimas Batista e outros, escreveu o poema
Cantadores do Nordeste, cuja temática aborda a poética dos repentistas.
Para Carlos Nogueira (<seer.ufrgs.br/organon/article/view/>), “com Cantadores do
nordeste, o poeta explora a técnica da literatura popular em verso, nomeadamente o ritmo
próprio da cantoria e da correspondente poesia de cordel, atualizando assim os seus propósitos
programáticos de realização de todos os ritmos, sobretudo, os inumeráveis” (p.3).
No texto referido há o reconhecimento do poeta de Estrela da vida inteira à inspiração
dos cantadores: “Caíam rimas do céu”, mas também há a referência ao trabalho e à
198
transpiração como parte do processo de construção: “Saltavam rimas do chão! /Tudo muito
bem medido/ No galope do sertão.” A homenagem sincera e humilde do poeta de Pasárgada
foi lançada, primeiramente no Jornal do Brasil de 11 de dezembro de 1959, para depois
constar do Estrela da tarde, (1960), além de compor Estrela da vida inteira (1966), na seção
chamada Louvações:
Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste.
Cantando em competição,
Vi cantar Dimas Batista
E Octacílio, seu irmão.
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João.
Um, a quem faltava um braço,
Tocava cuma só mão;
Mas como ele mesmo disse
Cantando com perfeição,
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
A força não está no braço:
Ela está no coração.
Ou puxando uma sextilha
Ou uma oitava em quadrão,
Quer a rima fosse em inha,
Quer a rima fosse em ao,
Caíam rimas do céu,
Saltavam rimas do chão!
Tudo muito bem medido
No galope do sertão.
[...]
Saí dali convencido
Que não sou poeta não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação,
Como faz Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão;
Como faz qualquer violeiro
Bom cantador do sertão,
A todos os quais, humilde,
Mando a minha saudação! (BANDEIRA, 1986, pp. 237-238)
Os poetas populares, especialmente os cordelistas, na busca por um ideal mítico para o
seu povo, fizeram e fazem do cangaceiro o herói de suas narrativas.
Ao pensar a palavra, ao buscar a expressão que mais bem represente o foco de sua
temática, ao tentar não só pensar, mas escrever sob a inspiração e a transpiração, o poeta
popular se faz herói de própria narrativa.
O chão que deu o cangaceiro produziu, igualmente, o poeta. O primeiro escreveu toda
uma história por linhas tortas; o segundo procura trilhar as linhas certas para escrever sua
199
matéria poética em luta cotidiana com as palavras que brotam de seu chão e lhe são
ferramentas indispensáveis no contributo à história e à memória de seu povo.
Se os cangaceiros são elevados a heróis de sua narrativa pelos cordelistas, são esses
mesmos poetas os heróis da escrita. Em ensaio abalizado sobre a literatura de cordel, Marlene
Castro (2010) revela idêntica heroicidade entre, por exemplo, a figura de Lampião como herói
e os poetas que o colocam nessa categoria:
Compor literatura de cordel, no Nordeste, de tal modo constituía motivo de
autoafirmação e razão de prestígio, que um folheto sobre Lampião inclui entre
outros atributos desse célebre cangaceiro o fato de que ele “foi sanfoneiro e poeta/
de primeira qualidade” – o que mostra a equiparação, na sensibilidade popular, do
dom da poesia e das virtudes heroicas. (CORREIA, 2010, p. 146)
Se poetas populares de todos os tempos têm um Carlos Drummond de Andrade, um
Manuel Bandeira, um Mário de Andrade, um Orígenes Lessa, um Ariano Suassuna, um
Manuel Diegues Júnior, entre outros, a lhes reconhecerem o trabalho “com o suor do rosto”,
para lembrar Cassiano Ricardo, devem ter a consciência de que sua poesia não é vã, que sua
labuta com a pena no “campo da poesia” só lhe dará frutos bons.
Desse modo, têm de ter em mente, sempre, que vale a pena lavrar, sulcar, rasgar e
regar esse campo.
Que vale a pena lutar com as palavras desde o amanhecer...
200
CONCLUSÃO
Os cangaceiros representaram o grito de boa parte do povo, justamente porque essa
parcela da população via-lhes como a marca da justiça que os poderes constituídos nunca
promoviam. Nesse ponto, o clamor por esse direito terminou por ser dirigido a quem
caminhava pela contramão da história: os próprios foras da lei. Desse modo, uma simbologia
de que o cangaço convergia para um ideal de justiça foi, aos poucos, tomando forma tanto na
visão dos poetas populares como na do povo. Na verdade, os poetas aglutinavam esse
imaginário no próprio povo, estivessem vivos ou não os cangaceiros.
Nesse caso, pôde-se, com este trabalho, cogitar a ideia de que o mito do cangaço se
voltava para o passado, se havia a referência aos mortos, a exemplo de um Adolfo Rosa Meia-
Noite, um Rio Preto, um Jesuíno Brilhante (o mais importante destes), entre outros, ou se o
mito estava ali, presente em meio ao povo, no bulício dos pequenos arruados, na ameaça aos
poderosos em favor dos pequenos como lenitivos para tantas dores. Não se deve olvidar ainda
da projeção que esse mito alcançou para além do seu tempo, embora sempre houvesse quem
fosse contrário a qualquer mitificação de bandoleiros. Conscientes da busca de identificação
de seus leitores ou ouvintes com o mito do cangaço, aos poetas cabia captá-lo, processá-lo e
devolvê-lo segundo a vontade de seu povo.
Ao perceberem esse imaginário popular, os poetas o alimentaram compilando histórias
herdadas da tradição oral ou escrita, refazendo-as, ou urdiram, eles mesmos, as narrativas com
base no que ouviam, liam ou porventura testemunhavam. A peculiaridade de terem vindo da
tradição oral, contada e cantada fez com que, ouvidas e guardadas, essas histórias um dia
viessem a ser redivivas, recontadas e atualizadas segundo o ambiente em que se adaptassem, e
com o público pronto a ouvi-las novamente. O olhar para a realidade ficcional ou não sempre
foi comum à literatura de cordel, pois os poetas populares filtram ao seu modo o que lhes
interessa e reinventam sem que se percebam o texto matriz, fato que se dá tanto com histórias
comprovadamente verídicas quanto no tocante àquelas estórias de caráter ficcional, lendário,
mítico.
Ficou evidente que, na matéria épica do cordel, principalmente a que ocorre de forma
pioneira, há um narrador em primeira pessoa a que chamamos de Eu-épico, devido à
201
proximidade no tempo e no espaço dos episódios narrados. Nesse caso, o narrador deixa de
ser o poeta e o agente da narrativa. O executor do fato narrado e tornado mítico passa a ser o
próprio personagem. O discurso dessa matéria épica é, portanto, do cangaceiro e não do poeta
que, nessas circunstâncias, não opina e fica de fora da matéria narrada.
Pode-se, num primeiro momento, inferir que, no auge do cangaço, o que se propunha
chamar de mito não fosse possível, devido à não cristalização na mentalidade da época desse
ideal. Se o cangaço era fato coetâneo, um ideal de mito ainda não se podia conformar tanto
pela proximidade no tempo quanto em relação ao objeto - cangaceiro -, e ainda no que
respeita ao poeta e ao povo, construtores desse ideal. Há também o agravante de que o
cangaço sofria natural rejeição por boa parte do povo, devido a ser vergonha a se erradicar do
Nordeste brasileiro.
Por outro lado, boa parte da população gritava por justiça, por melhores dias, por uma
sociedade mais igualitária, por um poder público comprometido com os anseios do povo, uma
vez que os políticos não davam importância aos seus concidadãos menos favorecidos. Ver o
cangaceiro como protetor dos mais fracos, adepto da justiça, da partilha em comum, da
distribuição do que é dos ricos para com os pobres passou a ser mote da lavra dos poetas.
Nesse contexto, foi nascendo e se forjando o mito.
A matéria épica do cordel nos leva a pensar num canto coletivo que se aproxima
daquilo a que se pode chamar de canto nacional, com a diferença de que os escritos épicos do
cordel remetem à afirmação do espaço local, que, no entanto, podem representar uma síntese
de afirmação do país. É importante lembrar que essa épica cangaceiresca não constitui canto
nacional, como deveria ser o canto épico, mas essencialmente é como se fosse, se se levar em
conta que a grande história não é feita senão de pequenas narrativas locais. A matéria épica do
cordel, com seu fazer, sua estrutura, seus agentes difere naturalmente da erudita, mas há algo
em sua construção que se assemelha ao caráter da épica clássica: a invocação, a proposição, a
sobrenaturalidade, a afirmação do mito, a realidade que lhes dá suporte e sua desrealização.
Se as narrativas de cordel traziam um Antônio Silvino embebido em perfumes
franceses, de cabelos bem penteados e com cheirosa brilhantina, vestido com elegantes ternos,
com anéis a abrilhantar-lhes os dedos, com o seu Winchester impecável e de quatorze tiros, de
punhal com cabo talhado em ouro e prata, com pistola Browning acompanhada de duas
cartucheiras repletas de balas, como representação do homem moderno, embora embrenhado
nos sertões, se mostrava sintonizado com seu tempo. Eis um verdadeiro herói e cavaleiro da
modernidade.
202
A sintonia com a modernidade, sobretudo no grupo comandado por Lampião, e a
consequente utilização do que ela tinha a oferecer fizeram com que os cangaceiros
entranhassem no povo a mítica com que ficam conhecidos. Ajudaram a configurar o mito dos
cangaceiros, entre outras características, seu acesso a recursos da modernidade e da tecnologia
como o uso do telégrafo, do telegrama, de armas modernas, do binóculo; a leitura de revistas,
de livros; a frequência, sempre que possível, ao cinema; o uso do automóvel; o gosto pela
fotografia, pelas bebidas importadas, o uso de lenços de seda inglesa, do zíper nas vestimentas
das cangaceiras.
Estratégias de guerrilha como o uso de chocalhos para fingir animais em bebedouros,
com consequente ataque às tropas volantes, o apagar os rastros na caminhada, o andar em fila
indiana para dar a impressão da pegada de uma só pessoa, o andar sobre as pedras ou por
riachos para não deixar vestígios, o eventual uso de sandálias invertidas entre outros, além das
vistosas indumentárias, dos luminosos chapéus, dos dedos salpicados de brilhantes, tudo isso
é transmudar um Carlos Magno em um Antônio Silvino; um Orlando em um Lampião, com
seus óculos de aros dourados e seu gosto pela novidade.
Se a modernidade chega aos cangaceiros, não há como manter um conteúdo tão
somente medieval em seu perfil. O que podemos elencar de medieval na temática dos
cangaceiros é sua natureza de cavaleiros andantes, soltos, livres, independentes de leis, ou seu
idealismo em favor dos fracos e seu pensamento voltado para o combate aos poderosos. Os
cordelistas tiveram e têm ciência do quanto foram e de como são importantes esses
“cavaleiros medievais” do sertão nordestino, porém ao jeito e ao gosto da modernidade.
O cordel épico, ao apresentar os feitos dos cangaceiros e seu heroísmo junto aos
leitores, o faz ao mesmo tempo como função didática, já que a própria narrativa pode levar o
leitor consciente a entender a lição do que se pode e do que não se pode nem se deve fazer,
pois o mito será sempre uma honesta e sincera narrativa exemplar.
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