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7/27/2019 Blimunda N.º 15 - agosto 2013
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Que é, afnal, a realidade? o que e quem
sou eu, afnal, nisso que me ensinaram
a chamar realidade? Um livro existe,deixará de existir, existirá outra
vez. Uma pessoa escreveu, outra
assinou, se o livro desapareceu,
também desapareceram ambas? E se
desapareceram, desapareceram de todo,
ou em parte? Se alguém sobreviveu,
sobreviveu neste, ou noutro universo?
Quem serei eu, se tendo sobrevivido,
não sou já quem era? José Saramago
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l e i t u r a s d o m ê s
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Casas-Museu de escritores
Durante o mês de Julho, a jornalista Raquel Ribeiro, do Público, andou por Portugal em visita a casas-museu devários escritores. O resultado pôde ser lido no jornal di-ário, em papel e na versão digital, e pelo menos uma dasreportagens está acessível aos não-assinantes (dedicada
a Aquilino Ribeiro). Os escritores em destaque oram Eça de Queirós,Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, José Régio, Aquilino Ribei-ro, Ferreira de Castro, Guerra Junqueiro, Miguel Torga, Júlio Dinis eFernando Namora, sempre com artigos construídos a partir dos espa-
ços outrora habitados e agora legados em jeito de memória patrimonial,o que permitiu conhecer alguns hábitos e obsessões (como a colecçãode crucixos de José Régio), bem como integrar algumas das obras his-tóricas da literatura portuguesa no lugar onde oram criadas, quer naintimidade da casa, quer na identidade da paisagem humana e naturalcircundante. E na prosa tão atenta ao grande ângulo como ao ínmodetalhe de Raquel Ribeiro, as palavras dos autores e as descrições dosespaços encontram uma harmonia capaz de lançar novas anidadespara com os livros que cada escritor assinou. Numa época em que a im-prensa escrita parece reduzir o seu espaço para artigos de maior ôlego,
baseada na premissa (pouco compreensível) de que na era da rapidezos leitores não querem ler textos longos, é de saudar que o Público tenhaaberto as páginas a uma série como esta. Que venham mais.
lg Casas-Museu
Ferreira de Castro
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f u n d a ç ã o j o s é s
a r a m a g o
T h e j o s é s a r a m a
g o f o u n d a T i o n
c a s a d o s b i c o s
O n t m O
W t O f n
ua d o s Ba ca l h oe i r o s, L i s b oa
te l : ( 3 5 1 ) 2 1 8 8 0 2 0 4 0
w w w. j o se sa ra a g o. o r g
i o. p @ j o se sa ra a g o. o r g
C O m O C
t t n
me r o u b wa y te r re i r o d
o Pa ç o
( L i ha a z u l B l ue L i e )
u o ca r r o s B u se s
2 5 , 2 0 6, 2 1 0,
7 1 1, 7 2 8, 7 3 5, 7 4 6, 7 5 9, 7 7 4
,
7 8 1, 7 8 2, 7 8 3, 7 9 4
S e g u n d a a S e x t a
M o n d a y t o F r i d a
y
1 0 à s 1 8 h o r a s
1 0 a m t o 6 p m
S á b a d o
S a t u r d a y
1 0 à s 1 4 h o r a s
1 0 a m t o 2 p m
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l e i t u r a s d o m ê s
Narrativas contemporâneas
Recentemente estreada na internet, a revista Anfbia querser um espaço de partilha de narrativas onde se cruzamo olhar jornalístico com o cronístico, dando especial des-taque ao espaço argentino e latino-americano, mas semechar as portas a outras geograas. Criada pela Univer-
sidad Nacional de San Martín, com o apoio da Fundación Nuevo Perio-dismo Iberoamericano, a Anfbia propõe refexões sobre o mundo con-temporâneo que, ainda que centradas num determinado território, nãodeixam de oerecer matéria para pensar globalmente. É o caso de tex-tos como «Mandela: de la cárcel al tatuaje», onde a historiadora MarisaPineau analisa o processo de apropriação de uma reerência histórica,política e social como Nelson Mandela pela cultura popular, ou de «Lacámpora del Papa», assinado por Gustavo Ludueña, onde se refecte so-
bre a relevância de o novo Papa ser argentino para o posicionamento daAmérica Latina no mundo e sobre o impacto que a recente visita papalteve num Brasil atravessado pela contestação nas ruas.
Como se lê no texto de apresentação da revista, «Lo anbio es el crucede los discursos del periodismo hacia las ronteras académicas y de losdiscursos de la teoría y el análisis hacia las nuevas narrativas. Pretendeser el elemento sintético de dos lenguajes que, al dialogar, entran en crisis.En ese sentido, Anfbiano es sólo una revista: es un ámbito experiencial.»
Esse âmbito conrma-se quando se passa os olhos pelos títulos em desta-que no site da revista, percebendo-se a multiplicidade de abordagens e demodos de contar, pensar, discutir e propor leituras do mundo. A partir deagora, conrmando que as propostas editoriais mais arrojadas surgemrequentemente ora do espaço tradicional da imprensa em papel, valeráa pena azer desta revista uma leitura regular.
lg Anfíbia
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l e i t u r a s d o m ê s
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Lisboa no Ano 3000
Areerência imediatamente associada ao nome de Cân-dido de Figueiredo é um dicionário da língua portu-guesa publicado em 1899 e regularmente reeditado atéhoje. Ao dicionário juntam-se os estudos de lologia elinguística e, menos conhecidos, alguns textos de crí-
tica e cção. É sobre um destes textos, Lisboa no Ano 3000 (que pode serlido em edição da Frenesi), que Nuno Fonseca escreve na Orgia Literá-ria, chamando a atenção para o acto de o volume constituir a primeiraincursão conhecida da literatura portuguesa pelos caminhos da cçãocientíca. Publicado em 1892, a obra «dedica-se mais ao passatempo na-cional do comentário social e político com pezinho de humorista, do que
às aventuras do seu protagonista. Mas nela encontramos algumas ideiasuturistas engraçadas: a Austrália como centro do mundo civilizado e oczar Russo como líder de uma Europa em Ruínas; máquinas voadorasem orma de Dragões e uma biblioteca gigantesca, onde os livros sãoenormes rolos que podem ser lidos com ajuda de um sistema automa-tizado», tal como explica Nuno Fonseca. Produto de uma época em queo desenvolvimento tecnológico e cientíco permitiu antasias e projec-ções uturistas de enorme qualidade, o livro de Cândido de Figueiredonão será uma obra-prima do género, mas o seu interesse reside, segun-do o autor do texto, no que dá a ler sobre a relação entre a sociedade e a
cultura portuguesas da época e a divulgação de novas invenções, técni-cas e possibilidades. O acto de ser o primeiro livro português de cçãocientíca acaba por ser um pormenor, mais interessante para bibliógra-os (e caçadores de ‘primeiras vezes’) do que para a generalidade dosleitores. Já agora, ca o registo de que a Orgia Literária vai estrear, emSetembro, uma revista digital, pelo que se recomenda atenção ao site.
lg Ficção Científca
A melhor língua
A ideia de uma versão mais correcta, pura ou verdadeirade qualquer língua é comum em muitos alantes, inde-pendentemente da geograa linguística. Se os alantestiverem crescido numa região onde o dialeto corres-ponde à norma culta da sua língua, é quase certo que
acreditarão que apenas os alantes de outras regiões da mesma línguaapresentam ‘sotaque’, sendo a sua orma de alar isenta deste traço. Naverdade, estas são impressões e opiniões motivadas por actores de or-dem social e cultural, sem undamento linguístico mas com enorme re-percussão na identidade de cada comunidade. Na Colômbia, primeiropaís de língua castelhana a criar uma Academia da Língua, a crença de
que o modo de alar nacional é ‘o melhor’ pode motivar algumas discus-sões mais acesas com habitantes de outros países, mas é também um
bom ponto de partida para um debate aberto sobre a língua. Foi comesse objectivo que a investigadora Ana Beatriz Chiquito, da Universi-dade de Bergen (Noruega) e do Instituto Tecnológico de Massachusetts(MIT), passou alguns dias na Colômbia para avaliar os dados resul-tantes de um inquérito sociolinguístico realizado em cidades da Amé-rica do Sul e de Espanha. Juan David Torres Duarte, jornalista do El Espectador , acompanhou a visita da investigadora num artigo que podeser lido on-line e onde vários preconceitos sobre línguas e dialectos se
quebram de modo claro (por exemplo, nas palavras que Víctor Garcíade la Concha, da Real Academia Española de la Lengua, proeriu em2005: «Colombia sí habla un muy buen español. Pero, de ahí a que sea elmejor, bueno... Esa rase es cierta, pero hay que matizarla porque yo nocreo que haya versiones de mejor español. Lo que sí quiere decir es queColombia tiene una tradición histórica de preocupación por la lengua,desde su propia independencia».
lg Língua
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l e i t u r a s d o m ê s
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Há publicações que marcam gerações de leitores e es-critores, deixando herdeiros duradouros mesmo de-pois do seu desaparecimento, e outras que são baró-metros imprescindíveis paranos orientarmos no imenso
caos da produção literária contemporânea,não apenas pela qualidade das suas escolhas,mas igualmente pelo que oerecem de diálogoe descoberta a nível internacional. A Granta
está nesse patamar, ou não osse ela a revistade eleição naquelas situações em que, estandoum leitor numa livraria estrangeira, tentadopelas lombadas e pela oerta temática, per-cebe que não terá moedas que cheguem parareunir todos os livros que gostaria sobre a li-teratura do país onde se encontra, acabandopor levar a revista que lhe permite ter umaideia do que se anda a escrever por aquelasparagens. Depois de décadas de ausência que
nos aziam sentir ora provincianos, quandoelogiávamos as Grantas alheias, ora armadosem modernos que acham que tudo o que de
bom há além-ronteiras tem de existir tam- bém por cá, quando lamentávamos não haveruma edição portuguesa, ora, ainda, gratos porpartilharmos o idioma com o Brasil, o que nospermitia ler os textos que por lá saíam nos
últimos tempos (ainda que com um custo de importação elevado), aGranta chegou a Portugal.
O eito deve-se à editora Tinta da China e ao jornalista Carlos VazMarques, que assumiu a direcção da revista, e o nú-mero 1 conrmou as altas expectativas que uma bemmontada campanha de marketing online alimentoudurante semanas. A primeira Granta portuguesa temo «Eu» como tema central e contribuições de autoresportugueses e não só. Para além de Dulce Maria Car-
doso, Hélia Correia, Aonso Cruz, Ricardo Felner, Val-ter Hugo Mãe, Rui Cardoso Martins e Valério Romão,podem ler-se textos de Saul Bellow, Rachel Cusk, Si-mon Gray, Ryszard Kapuscinski e Orhan Pamuk. Aostextos juntam-se ilustrações de Vera Tavares (respon-sável pelo design da revista) e um portólio otográcode Daniel Blauuks (que também assina a otograade capa), para além da edição crítica de um conjuntode sonetos inéditos de Fernando Pessoa, da responsa-
bilidade de Jeronimo Pizarro e Carlos Pittella-Leite. A
selecção é de luxo, equilibrando autores consagradose mais recentes, recuperando textos há muito publi-cados em diversas edições da Granta e colocando bemalta a asquia de qualidade para a edição portuguesa.
Já se sabe que vale a pena esperar ansiosamente pelosegundo número. Sara Figueiredo Costa
Granta
VVAAGranta
Tinta da China
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Cristóvão Silva e Manuel Mendes de Morais
Jogos tradicionais PortuguesesMinistério da Educação Nacional/Direcção-Geral do Ensino Primário, 1964
Tomaz Ribas
Danças do Povo PortuguêsMinistério da Educação e Cultura/Direcção-Geral da Educação Permanente,
2.ª ed., 1974 (1.ª ed., 1961)
Livraria Utopia, Porto (8€ cada volume)
Oelogio de edições publicadas durante os anos do as-
cismo tende a ser mal interpretado em alguns círculos, algo quese compreende tendo em conta o que oi a ditadura de Salazar, masque merecia ser repensado à luz do valor intrínseco de cada docu-mento. Os dois livros encontrados na Livraria Utopia são um deentre muitos exemplos de como vale a pena respigar em alarra-
bistas para encontrar edições bem eitas e livros imprescindíveispara se compreender melhor a época em que oram produzidos.
Jogos Tradicionais Portugueses, de Cristóvão Silva e Manuel Mendesde Morais, e Danças do Povo Português, de Tomaz Ribas são duas edi-ções impressas na década de sessenta com a chancela do Ministério
da Educação Nacional, organismo que publicou centenas de livros decarácter didáctico e inormativo sobre os mais variados temas, muitosnão escondendo a vertente ideológica, mas muitos, também, oerecen-do contributos inigualáveis para a xação e a síntese de dierentes áre-as do conhecimento. O primeiro livro reúne a descrição detalhada, comimagens, de vinte e cinco jogos tradicionais, todos apresentados comogenuinamente portugueses (a vertente ideológica nunca alhava), maslogicamente resultantes de infuências culturais que transcendem opatriotismo mais chão, até porque não é diícil encontrar os seus ecos
a l f a r r a b i s t a
Sara Figueiredo Costa
noutras tradições. Os jogossão apresentados ora sobre aorma narrativa, com peque-
nas histórias contextualizan-do as regras, ora de um modomais descritivo, listando ma-teriais, posturas e objectivos.Chinquilho, malho, pelota ou
jogo do pau integram o elencode um livrinho que, desconta-dos os tiques do regime (onde
se incluem os habituais louvores ao exercício ísico e a condenação dasreuniões em tabernas), constitui um óptimo repertório para uma pri-
meira aproximação ao universo dos jogos tradicionais.Em Danças do Povo Português, Tomaz Ribas elabora um percursopelas dierentes regiões do país a partir das danças tradicionais decada uma delas. Curioso é notar, logo na introdução, que Ribas contra-ria a ideia de unidade nacional de modo tão discreto como veemente,armando a heterogeneidade das tipologias da dança relativamente aoterritório. Conhecedor proundo da matéria sobre a qual se debruça, oinvestigador e coreógrao descreve cada dança seleccionada com por-menor, acrescentando a pauta com a música respectiva, ilustrações de
bailarinos em plena unção e comentários que, em muitos casos, oe-
recem ao leitor inormações sobre trajos, instrumentos e outras tradi-ções para além da dança.Em ambos os casos, os livrinhos em ormato de bolso, resultantes
de um cuidadoso plano nacional de educação com mais ervor ideoló-gico do que inormativo, constituem aquisições preciosas para qual-quer biblioteca interessada em guardar para o uturo recolhas bemdocumentadas sobre as práticas tradicionais das dierentes regiõesportuguesas. O que o presente e o uturo azem e arão com elas nãotem de dever nada à má herança dos anos da ditadura.
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Sara Figueiredo Costa
Fotografias de Mário Pires
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à hipocrisia institucional que escolhe ajudar umas vítimas e não outrasem unção da conjuntura. E nem os atos usados pela banda, um cru-
zamento entre o alaiate da Abelha Maia e as ardas dos operários deuma qualquer central nuclear, retiram seriedade à unção.Antes dos Dubioza Kolektiv, Baloji também não aastou a ci-
dadania da sua actuação. Nascido no Congo e vivendo na Bélgicadesde criança, o cantor que mistura hip-hop e soul sem que se ve-
jam as costuras sonoras andou pelo meio do público e ez questãode explicar que a crise política que az as notícias internacionaissobre o Congo não é dierente da que se vive na Nigéria, Costa doMarm, no Níger, no Mali ou em Angola. A corrupção e os negó-cios obscuros envolvendo instâncias de vários países não têm es-pecial apreço por ronteiras e ca a sugestão de que um problemaglobal só se resolverá com uma resposta global.
Sobre Angola refetiram os Batida, o projeto musical, poético e vi-sual de Pedro Coquenão que echou a noite de sábado cruzando rit-mo, poesia e alguma sátira. No compasso do kuduro e dos sons daeletrónica, deslaram convidados cujas participações musicais e dedança, acompanhadas por imagens de vídeo (algumas reconhecí-
veis do documentário É Dreda Ser Angolano, assinado em 2003 porFazuma, o colectivo ao qual pertence Pedro Coquenão), traçaramum retrato duro da Angola governada por José Eduardo dos Santos,mostrando que resistir é mais diícil quando a palavra democracia éapenas um eneite, mas que ainda assim vale a pena o esorço.
Antes dos Batida, JP Simões protagonizou um concerto que
podia ter sido a senha para uma espécie de depressão coletiva,não osse o cantor um exímio transormador de derrotas em mo-
mentos a que vale a pena brindar, porque pelo menos estamos vi-vos. Nas letras de JP Simões a decadência torna-se estiva e nem aconsciência de estarmos a bater no undo (ou de ainda não termoschegado ao undo e não sabermos quanto tempo alta para isso)apaga a vontade de sambar, beber um copo e celebrar o tombo.Os números do desemprego, a crise que todos os dias se vê televi-sionada, os descritivos da nossa miséria coletiva entre velhos comome e gente que quer ugir sem ter para onde, não altou nada àcelebração, porque se isto «é o Carnaval dos horrores/ a marchados implacáveis», mais vale que nos apanhe prontos para celebrara vida.
As estrelas não tombam
Num estival como o de Sines, o enómenoda estrela musical que garante a presen-ça do público não tem cabimento. Mes-mo que haja bandas ou intérpretes mais
conhecidos, não é exclusivamente poreles que o público ruma ao FMM. Aindaassim, talvez Hermeto Pascoal tenha as-segurado algumas presenças, dispostas
a ouvir os outros intervenientes da noite, sim, mas porque o mes-tre brasileiro tocaria nessa sequência.
s i n e s , o c o r a ç ã o d o m u n d o
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de caminhar para a conclusão, mas Hermeto, intempestivo, per-cebeu o aviso como uma ordem para acabar abruptamente a esta.
Foi o descalabro, com direito a insultos ao FMM em rente a umaplateia atónita. Alguns minutos depois, Hermeto regressou com a banda e o músico que terá percebido mal a indicação da produçãoexplicou-se, apresentando um grand fnale para sanar a zanga. Emparte, conseguiu azê-lo, mas não deixou de car no ar um certoambiente de mágoa. Apesar disso, quem assistiu ao concerto nãoesquecerá a oportunidade de ter visto e ouvido um dos músicosmais geniais da nossa era, um daqueles casos em que os adjetivoselogiosos não são gratuitos nem exagerados.
O FMM para além da música
Os concertos no castelo ou no CentroCultural compõem a parte mais visíveldo Festival Músicas do Mundo, mas aprogramação que se oerece em Sines émuito mais vasta. Instalada na Capelada Misericórdia, mesmo ao lado da igre-
ja matriz, a eira do livro e do disco com-pletava da melhor orma o cartaz musi-
cal. De um lado, os discos de quase todas as bandas e intérpretesque passaram pelos palcos, do outro, uma seleção de livros cui-dadosamente elaborada por Joaquim Gonçalves, o livreiro da Adas Artes. Situada na Avenida 25 de Abril, a livraria A das Artes
Os DakhaBrakha, quarteto ucraniano que cruza as sonoridadestradicionais da sua região (inventando algumas e apropriando-se
de outras, como nos alertou o jornalista Gonçalo Frota, do Público,conhecedor proundo do universo a que as discográcas gostam dechamar world music) com infuências oriundas dos quatro cantos domundo e de muitas cronologias dierentes, tinham acabado de dei-xar o público de Sines em êxtase quando o momento mais aguarda-do da noite teve início. Hermeto entra, ocupa-se do seu piano e az
brilhar à vez cada um dos membros da banda que o acompanha,apresentando-os pelo nome e permitindo-lhes longos solos, antesde brilhar ele próprio. O concerto transorma-se em perormanceperipatética, com os músicos trocando de lugar e até de instrumen-to conorme as indicações do maestro. E Hermeto Pascoal é ummaestro com o corpo todo. Salta e o piano acompanha-lhe o movi-mento sem alhar. Depois canta, grita e o público acompanha comprecisão, mesmo quando a melodia é errática e a letra uma espéciede glossolália tropical com ecos jazzísticos. Com a plateia rendida,agarra numa chaleira e az dela um instrumento de sopro, pedin-do réplica. E quando já se tornou claro, mesmo para quem pudesse
não conhecer Hermeto, que qualquer objeto ou corpo pode trans-ormar-se em instrumento, segue-se um copo: «Agora, como Por-tugal é a terra do vinho mais maravilhoso do mundo, eu vou azerum improviso tocando no copo de vinho». E toca, virtuoso.
No momento em que o concerto devia aproximar-se do m, al-guém da produção terá avisado um dos músicos que era tempo
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desdobrou-se, nestes dias, em dois espaços, e quem passou pelacapela pôde ver o livreiro de Sines em acção, recomendando livros
entre novidades e undos de catálogo e alando das suas leiturasmais recentes, reveladoras de uma vontade admirável de oereceraos clientes a inormação personalizada que se espera de um bomlivreiro. Para além de recomendar livros, Joaquim Gonçalves oiigualmente o dinamizador de várias sessões com escritores con-vidados para participarem no FMM conversando com o públicopresente na capela. Paulo Moreiras, Aonzo Cruz , Ana Margaridade Carvalho e Paulo Campaniço oram os escritores convidados,todos lidos e anotados pelo livreiro que, em conversa com a Bli-munda, alou dos livros de cada um deles com a paixão que só osgrandes leitores podem demonstrar.
Se parte considerável da assistência queacompanhou os concertos de cada noiteaté ao m passou as manhãs a recuperar ashoras de sono perdida, houve muita genteacordada nas manhãs de Sines. Para esses,
e sobretudo para os mais novos, o FMMprogramou vários ateliês com músicos queactuaram no estival. Bassekou Kouyaté &
Ngoni Ba, do Mali, Barbez, dos Estados Unidos da América, ouAsi Ali Khan, do Paquistão, oram alguns dos compositores e in-térpretes que partilharam com as crianças inscritas nos ateliês o
seu conhecimento e práticas musicais, cumprindo uma das un-ções que se espera de um estival como este: a ormação de públi-
cos. Se os participantes nestes ateliês não puderam acompanharconcertos como o dos Batida ou dos Dubioza Kolektiv até altas ho-ras da madrugada, puderam, em compensação, beneciar de umaexperiência que nenhum dos notívagos conheceu.
No Centro de Artes de Sines, uma exposição de José M. Ro-drigues, Improvisos, acompanhou os dias do FMM. Houve aindasessões de teatro, histórias contadas em voz alta, cinema, sessõescom DJ’s. Para o ano, depois de um número redondo, espera-se oregresso do mundo ao uracão estival de Sines.
Nota: os artigos que saíram no Público, assinados por GonçaloFrota, sobre a edição de 2013 do Festival Músicas do Mundo po-dem ser lidos aqui http://www.publico.pt/estival-musicas-do--mundo. Não será prática corrente uma publicação recomen-dar a leitura de publicações alheias sobre um mesmo tema, masvale a pena quebrar as regras da ortodoxia jornalística para se
aconselhar boa prosa.
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andreia britesinfantil e juvenil
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No mês em que as aldeias
reganham vida efémera, cheias de
carros, romarias, feiras e festas,
recuperamos esse momento em
que o mundo rural se começou a
esvaziar e as crianças ganharam
idade e transformaram os sonhos
em partidas. Através da leitura
da obra juvenil de António Mota,
caminhamos por montes, penedos
e vales, e encontramos lugares
no tempo em que ainda ecoavam
muitas vozes. Com Manuel António
Pina, aprendemos a ler, segundo
a tese de doutoramento de Sara
Reis da Silva. Juntamo-nos aqui à
cruzada de legitimar a literatura
infantil e juvenil portuguesa.
Fotografas de Jorge Silva
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criança, pelo pai, e se tornou no seu animal de estimação e na suaprincipal responsabilidade doméstica, aparece como Pernas Tor-tas em A Terra do Anjo Azul . Aquela que tão eliz az Henriquinho,
que sonha com o dia em que a cabra há de dar leite, é também umpouco a cabra que o escritor teve na inância e da qual tantas vezes
já alou. Na ternura ácida do discurso oral, reconhece-se o escrito,ambos conscientes e tranquilos com o lugar de cada um no mun-do, e com as suas próprias contingências. Henrique tem pena dePernas Tortas, quando a vai vender, velha e cansada, à Feira, sa-
bendo que a amiga irá para lugar distante, sozinha e com destinotraçado. Mas aceita-o com a sabedoria que a intimidade com os
elementos da natureza lhe dá. Saudade, pena, ternura coexistemcom o odor das violetas que as mulheres e raparigas de várias no-velas usam como perume, tanto quanto com as moscas varejeirase os cheiros das cortes.
Apesar de se alterarem algunselementos no retrato amiliar,com casas mais acanhadas ou
mais espaçosas, de chão deterra ou cimentado, com paisou mães mais aáveis ou vio-lentos, haverá sempre a gu-ra de um ancião, seja ou nãoo avô, que passa a sua sabe-
doria com a tranquilidade e a segurança de que o jovem de 10 ou
12 anos tanto necessita. Adrianinho, o contador de histórias entre-vado, de O Rapaz de Louredo, é disso exemplo paradigmático. Asguras emininas são por norma ortes, havendo mães solteiras,
mulheres que guardam amores secretos e não correspondidos,avós que ainda ditam as regras de uncionamento da casa, tias quesubstituem mães, e sobretudo mães que trabalham a terra e ze-lam pelos lhos, completando as tareas que o pai não conseguerealizar, pelos trabalhos avulsos que vai arranjando aqui e ali. Asdescrições dos aazeres domésticos emparelham com a jorna docampo, entre a pastorícia de algumas cabras ou uma vaca e a cria-ção de ovelhas, porcos, galinhas e coelhos, e a rega, a sementeira,
a lavra.Nas pequenas rotinas antecipa-se toda uma economia pobre,
que se resume praticamente à venda de gado, muitas vezes supor-tada por serviços à jorna na época das colheitas, essencialmentemanual, e que coexiste com a gestão dos recursos imediatos daterra: os ovos, as papas de arinha e pão, o queijo, a ruta. Nos diasestivos, o coelho ou o galo. Uma vez por ano, a matança do porco ea conserva das carnes, que ajudam a alimentar amílias de quatro,
cinco, seis elementos. Ainda os pequenos luxos que se compramnas Feiras, os principais atrativos lúdicos das comunidades: umanel, um pano para uma blusa, os tamancos, um chapéu, ou unssapatos…
Os detalhes leem-se no fuir dos acontecimentos narrativos edão a cada personagem a densidade de uma personalidade, umpapel que nunca é linear. Não há pessoas boas nem pessoas más,
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mesmo quando os protagonistas as veem com medo, com curiosi-dade, com distância. Há tareas denidas, uma organização que
estas crianças aceitam e reconhecem. Só assim podem procurar oseu lugar, e questionar se o desejam, ou se preerem uma alterna-tiva que é, sistematicamente, partir para a cidade.
A morte está sempre presente, seja numa memória, seja no de-correr da diegese. Como uma das grandes contingências daquelasvidas: a morte ronda, como ronda a partida, como se instala a po-
breza.A morte do avô Zeerino, em Os Sonhadores, algures nos montes
depois de enlouquecer, ou simplesmente ter cado esclerosado; amorte de Amélia, a mãe de Marta, atropelada, em Cortei as Tran- ças; o Tio Alberto que se enorcou em O agosto que nunca esqueci ; oChico da Juliana, morto de doença ou morte natural, em A Terra do Anjo Azul , são apenas alguns exemplos. Faltam os cães para quemé preciso azer uma cova, ou as ninhadas de gatos recém-nascidos.E os coelhos e os galos que se sangram para o arroz. A morte é umainevitabilidade. Algumas choram-se, outras cumprem-se. As quemais doem nos protagonistas são a da mãe de Marta, que a deixaresponsável pela casa e sem rumo na vida, como deixa a tia Zul-mira com mais um desgosto no coração, e a de Chico da Juliana, oamigo secreto de Henrique, o artista a quem queria oerecer umapreciosa perna do galo morto em honra de ter passado no exameda quarta classe. Ninguém está vivo sem conviver com a morte,ninguém cresce sem ela. A morte é um dos momentos essenciais
da cosmogonia que António Mota cria, a partir de todos os rag-mentos que constituem a memória, e que não têm norte até serem
contados. A morte, mais próxima ou mais distante, antecede umamudança, o clímax de cada narrativa, que obriga a qualquer coi-sa de novo, uma espécie de renascimento necessário. Mesmo quenão seja imediato, ou que não tenha uma relação de causa-eeitonarrativo (nunca a tem), a morte não escapa à narrativa, e os pro-tagonistas não escapam à mudança.
Os sonhos são miúdos, ao nível do
que se conhece. As crianças cedoaceitam uma de duas coisas: carãona aldeia, trabalhando o campo ouaprendendo um oício, ou partirãopara a cidade, onde também traba-lharão nos serviços ou num oício.Não há, entre adultos e crianças,grandes esperanças em estudar
muito. O exame da quarta classe aparece em O Rapaz do Loure-do, A Terra do Anjo Azul, O agosto que nunca esqueci como marcoiniciático. Acabado o 1.º ciclo, os rapazes sabiam que iam traba-lhar e muitos ansiavam por isso. N’Os Sonhadores, Hermenegildocontinua os estudos até ao 5.º ano do liceu, longe de casa, a vivernum quarto em Amarante, e isso vale-lhe um lugar administrati-vo na secretaria de uma Escola. Essa é a perspetiva de migração
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geográca e social, o elemento mais duro, surpreendente, chocan-te até, dos livros. Como não imaginar outro caminho? AntónioMota constrói claramente essa barreira, sem nunca alardear que
ninguém, ou quase ninguém, se permitia sequer sonhar tão longe.A limitação da ruralidade oi também essa: uma limitação pesso-al, interior. Ao mesmo tempo, a cada nal, o leitor ca suspenso,imaginando como terá sido a vida de David ou Henrique quandochegaram ao Porto, com doze anos, para começarem a trabalhar,vivendo em quartos com o apoio de um parente com quem nãotinham contacto próximo. Ou a vida de Jorge, que atrás da ilusãodo pai, abandona, com a mãe e os irmãos a casa pobre de Louredo
para se instalar numa barraca, algures em S. Mamede de Inesta,num dos muitos bairros clandestinos que prolieraram nas déca-das de 70 e 80.
Mas há outros quadros, comoem Heróis do 6.ºF , narradonoutro tempo, a que já po-demos chamar de presente.Também Marta, que vive na
Vila de Campelo e abandonaa escola no início do 3º ciclo,poderia existir hoje. Aqui asperspetivas são outras, mas
não deixam de estar ensombradas por um desinteresse que abrecaminhos distintos daqueles que nos habituámos a considerar osmelhores. Marta descobre, no nal da novela, que a sua vocação
é ser eletricista, e decide aprender a prossão com o irmão maisvelho. Essa epiania revela-se a chave para a sua realização, para asua elicidade. E espanta o leitor que espera um desecho consen-
tâneo com regras sociais que tantas vezes colidem com a realiza-ção pessoal e os sonhos de cada um.
Se há elemento que dene a ausência de moralismo ou didatis-mo na obra de António Mota, é este. Conseguir deender, na vozdas personagens, os seus sonhos, os seus planos, mesmo que emnada se aproximem do enriquecimento, do prestígio ou do reco-nhecimento social é deender uma ética de dignidade, mais do queapenas e tão só retratar as limitações do mundo rural. Senão, e
tendo em conta o pendor biográco das novelas, aria sentido quetambém estes jovens estudassem, à imagem do que aconteceu como escritor.
É evidente que as condições económicas da maioria das a-mílias retratadas nos livros, assim como o peso do isolamento,constituem argumentos incontornáveis para muitos destinos que,embora sem que seja armado explicitamente, estão à partidacondicionados. Mas aqui trata-se de observar essa realidade por
dentro para chegar aos sonhos dos protagonistas. Se esses sonhosnascem já, em grande parte, barricados pelo contexto adverso,não deixam de valer a pena, tanto como outros sonhos quaisquer.
A emigração habita igualmente as narrativas que se desenro-lam nas décadas de 60, 70, até 80. Já se relatam episódios cómi-cos das visitas dos emigrantes à aldeia, com os carros reluzentes,as modas e o comportamento voyeurista dos autóctones. Todavia,
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acentua-se a uga, sempre de noite, com o auxílio de um passador.Foge-se por amor, oge-se para escapar da guerra colonial, oge-se
para arranjar orma de sustentar a amília que se deixa. As cartasrevelam que os emigrantes continuam ligados à terra, trabalhan-do como assalariados em quintas mecanizadas, longe dos grandescentros urbanos.
Para além dos que partiam para a vila mais próxima, onde -cava o caé central, a costureira e se montava a Feira, e que era odesejo das raparigas casadoiras, havia quem tivesse partido paraa cidade grande ou para a sua perieria. O Porto aparece como
principal reerência urbana das aldeias do Douro, mas Penael, S.Mamede de Inesta ou o Barreiro também constam nesta geograaem movimento. A migração já deixava marcas nos anciãos, que serecusavam a abandonar a sua terra.
A emigração e a migração caminham a par com a nostalgiapelo terrunho, a melancolia dessa identidade e a culpa por, napartida, contribuir um bocadinho para a sua morte. As mães, re-sistentes aldeãs, cam com os velhos a ver os lhos, as lhas e
até os maridos, partirem. Assim era na realidade, mas também oé nesta simbologia que alberga uma moral social de época e umcerto panteísmo.
A partida dos protagonistas é também simbólica. Há, a par como crescimento que transorma o adolescente, uma amplicação deum espaço que se torna pequeno. A ideia de um outro tempo, dis-tante, que parece quase onírico, atravessa o corpus do autor:
«Nesse tempo, eu pensava que o Souto era uma grande terra,que a torre da igreja, com a sua cruz de erro lá no ciminho, tinha
um tamanho gigantesco, que a residência paroquial, sempre bran-ca como as açucenas que medravam nos canteiros do jardim, to-dos bordados a murta e com passeios empedrados, era a casa mais
bonita do vale, e que a Vila, era o centro do mundo.» ( A Terra do Anjo Azul , 6.ª ed., Gailivro, 2007, p. 47) ou «Nesse tempo, eu pensa-va que Vilares era uma terra grande, o centro do mundo. Achavaque o rio que passava ao undo do casario era bem largo e bastanteundo. No entanto, o leito do rio era tão estreito e tão seco no ve-
rão que se podia acilmente atravessar sem haver necessidade demolhar os pés» (O agosto que nunca esqueci , 5.ª ed., Gailivro, p. 15 ).
Essa mudança, que marca como ritual ini-ciático o nal da inância e o início da vidaadulta, é tão abrupta e radical que levaos rapazes, tão novos ainda, a saírem doninho para um mundo desconhecido e
gigante. Tal como as roupas deixam deservir porque o corpo cresce e muda, talcomo se desperta para si e para o outro,assim se desperta para o mundo. A curio-
sidade é, também ela, intemporal, e a adolescência é o seu tempo,por excelência. As histórias que se ouvem já azem outro sentidoe o pensamento ganha uma velocidade que o leva para caminhos
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desconhecidos, por explorar. O desao interior ganha orça entreos medos, as angústias, as separações. Seja qual or, é enorme, e
todos os adolescentes o sabem, no seu íntimo.É certo que é preciso ser-se um leitor competente para ler as
obras juvenis de António Mota. O escritor não condescende ummilímetro na temática, nem tão pouco na construção literária. Osregionalismos e o léxico especíco da agricultura (entre utensíliose tareas), da geograa e da fora não se descodicam imediata-mente nem todos por igual. Contudo, essas marcas discursivascaminham a par de coloquialismos nos diálogos e em certos co-
mentários do narrador-protagonista que aproximam o texto daoralidade. O eeito de proximidade que tal estratégia introduz éreiterado pelas rases curtas e pela narração em primeira pessoa,cuja ocalização interna permite acompanhar com interesse epi-sódios marginais à ação principal, assim como analepses que setransormam noutras narrativas encaixadas. A sensação de que oprotagonista nos está a contar uma história permite que o tempodo texto se aproxime do tempo da leitura, o que também constituium elemento acilitador.
O leitor adolescente tende a escolher as suas temáticas entredois polos opostos: a experiência real, vivida por alguém como ele,e a antasia exótica de um outro mundo. De alguma orma, os li-vros de António Mota, centrando-se no primeiro eixo, oerecemuma pitada do segundo, por se passarem em território inexplo-
rado. A ruralidade tem sido, recentemente, apontada como umcliché a que se recorre para catalogar o autor e a sua obra juvenil.
Todavia, não podemos incorrer num erro antagónico, que é esque-cê-la ou ignorá-la. A ruralidade é o principal alicerce destes livrose da biograa do escritor. Se não osse por ela, não haveria vera-cidade nestes textos, nem património social, nem memória. Nãohá por que negligenciar essa identidade e sim lê-la para além darepresentação de um quadro, como acontece com a boa literatura.
Esta ruralidade tem alma, dimensão psi-
cológica imanente nas personagens,poética. Para além de um sentido cine-matográco, há nesta escrita uma ex-plosão sensorial, que extravasa, mode-radamente mas em continuidade, a cadamovimento, a cada pensamento, a cadapalavra do narrador. A ruralidade con-unde-se com a espacialidade e a interio-
ridade das personagens, e dá-lhes essa qualquer coisa que os azalar diretamente à emoção do leitor.
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Pardinhas
«Bem cedinho, saímos de
casa. E eu, que era o mais ve-
lho, levava às costas uma saca
de linho que a minha mãe fize-
ra com os bocados de um len-
çol roto.
Dentro da saca iam duas lousas novas, dois ponteiros também delousa, duas pontas de lápis, e um livro de leitura, tudo comprado na loja
de Antoninho Foguete. O Lucindo levava uma saquinha com a merenda,
que era nesse dia, nunca posso esquecer, um pedaço de broa e sardi-
nhas fritas.
A escola ficava longe, por trás da serra.»
Postais da Terra
Nos livros juvenis de António
Mota, recupera-se um quoti-
diano perdido de jovens pro-
tagonistas, habitantes de
aldeias do interior, entre os
anos 60 do século XX e a
atualidade. Cada obra está
repleta de descrições e
retratos que marcam ro-
tinas, expectativas, re-
lações e sonhos.
Cortei as tranças
«Nesse tempo, rapariguinhas cheias de
sonhos e nada satisfeitas por vivermos em
terra tão deserta, eu e a Amelinha começá-
mos a pedir a tua avó que nos deixasse ir
aprender uma arte.
Para dizer a verdade toda, não era só a
arte que nos seduzia. O que nós queríamos
era deixar Reixela e ir para Campelo. Andar
todos os dias com uma enxada nas mãos, guar-
dar gado, cortar erva nos
lameiros e aturar cãesnão era modo da vida
que nos conviesse.»O Lobisomem
«Muitas vezes a imaginação
é mais importante do que a rea-
lidade. Por isso, aquele pedaço de
tábua, com a forma de uma pêra e
um buraco no meio que lhe deu muito trabalho a fazer, e
seis arames fininhos tirados da rede do galinheiro, atadosa pregos e fazendo as vezes de cordas, era para o peque-
no Joaquim um violão verdadeiro, capaz de acompanhar as
cantigas que ele assobiava enquanto o gado retouçava, pou-
co incomodado com as fantasias do pastor.»
O Rapaz do Louredo
«O Alexandrinho fala-me de coisas
que nunca tive oportunidade de ver, con-
ta-me as aventuras que viu nos filmes do
cinema, das peças de teatro que gostou,fala-me da praia e do mar, dos eléctricos,
das manifestações. Fala-me agora de coisas
que nunca vi. Mas ele não sabe tudo. Ficou
de boca aberta quando lhe contei como vi
nascer os cabritinhos, cheio de pena por não
estar presente…
–Era bem capaz de fazer um desenho
para mostrar aos meus amigos ouaté de pedir a máquina fotográfica
ao meu pai para tirar algumas foto-
grafias, disse desconsolado.»
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Filhos do Montepó
«O meu padrinho Sebastião nunca gostou de trabalhar na terra. Quem nos con-
tava isto era a minha mãe, nas noites frias e intermináveis dos meses de Inverno, ou
quando andávamos a trabalhar nos campos.Sebastião não quis ser barbeiro, nem carpinteiro, nem trolha, nem pedreiro.
Meu avô não compreendia aquele filho, nascido duas horas antes de minha avó
morrer. Ele pensava que os filhos de Montepó deviam trabalhar na terra até ao fim
da vida. Ou então que aprendessem um ofício que lhes desse o
sustento de cada dia.»
Os Sonhadores «Chovia muito nessa noite, e eu não fui jantar. Saí do quarto sem
guarda-chuva e pus-me a caminhar ao acaso pelas ruas de Penafiel.
Não me importava saber para onde ia nem tinha vontade de falar
com ninguém. E pouco me estava importando que dona Sabina es-
crevesse à minha mãe. Eu estava farto de estar sozinho, estava farto
de ser alto e andar mal vestido, estava farto de ter nas-
cido na aldeia, estava farto de não saber do paradeiro
do meu pai, estava farto de sentir a pobreza do Plamei-
ro, estava farto das lascas de bacalhau e dos pedaços
de broa, estava farto de não ter um amigo verdadeiro.
Estava farto de ser Hermenegildo, estava farto de ser o
menino da dona Sabina.»
A Terra do Anjo Azul
«Pelo menos uma vez por ano, meu pai dava-
-nos a prenda mais apetecida. Num sábado, mal
anoitecia, saíamos de casa com uma lanterna acesa
para desviarmos os pés dos buracos e dos regosde água e, bem vestidos e bem lavados, andávamos
ligeirinhos em direcção à Vila.
Era na Vila que estava o Café Central, cheio de
mesinhas quadradas, com tampos de fórmica bran-
ca. Cada mesinha tinha quatro cadeiras e numa pa-
rede havia uma caixa castanha com uma tampa de vidro na frente
que se chamava televisão e um papel que dizia ‘O empregado que
fiava foi-se embora’».
O Agosto que nunca esqueci
«De noite, antes de adormecer, lia a carta e ficava à espera do
sono, imaginando como seria a cidade do Porto, como seria viver
sem ter junto de mim o meu avô, a minha mãe, a Adélia, toda a
gente de Vilares.
Sim, era melhor eu ir-me embora. Que é que eu estava a fazerem Vilares? Partir sempre foi uma bela aventura.
De manhã acordava e lia a carta. E se eu não gostasse do emprego? Além de
ler, escrever e fazer contas, de saber cortar erva para os animais, de cortar lenha
e mato, de saber cavar e semear, eu não sabia mais nada. E isso angustiava-me
imenso.»
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Nota:os ragmentos reproduzidos respeitam a graa das edições consultadas
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Aprender a ler com
Manuel António Pina
Com a tese de doutoramento que agora se edita pela
Fundação Calouste Gulbenkian, Sara Reis da Silvapropõe-se descobrir e apresentar, de orma siste-matizada e cientíca, qual a Presença e Signifcado de Manuel António Pina na Literatura Portuguesa para a Inância e Juventude. É este o título da monograaque, cumprindo as regras académicas, logo desven-da o tema que se vai estudar, escalpelizar e acerca
do qual se esperam algumas conclusões.Depois de uma breve introdução metodológica, em que a autora
explana com clareza e mais proundidade o seu plano de investigação,observam-se alguns breves tópicos sobre os dois eixos teóricos centraisda tese: a competência literária e a intertextualidade. A razão, encon-tramo-la nas palavras de Sara Reis da Silva: «Em primeiro lugar, a par-tir da obra de MAP potencialmente recebida pelo leitor inantojuvenil,pretendemos refetir em que medida os processos do cómico e/ou as es-tratégias semânticas e ormais, em particular o nonsense e o absurdo,representam um ator de promoção da competência literária, hábito lei-tor e educação literária da criança. A segunda questão, que intentamosdebater e que será articulada com o primeiro tópico enunciado, resideessencialmente na análise das relações intertextuais, designadamenteda sua índole e da sua produtividade (em particular, no que diz respeito
às estratégias promotoras de cómico), no âmbito também, como men-cionámos, da ormação de leitores competentes e autónomos.»
O primeiro capítulo, de cariz contextual, traça uma revisão históri-ca da LIJ portuguesa até à viragem do milénio, sendo-lhe acrescentadoum enquadramento sobre a produção entre 2001 e 2006, com especialenoque para o aparecimento de novos projetos editoriais e para a signi-cativa expansão do picture story books, quer ao nível da tradução, querao nível da criação por autores portugueses. Destaca-se igualmente o
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boom que se viveu no panorama da ilustração e que terá contribuído emgrande medida para uma alteração de códigos pictóricos e narrativos.
Na segunda parte do volume, dedicada à obra de Manuel António Pina,Sara Reis da Silva analisa intensivamente os textos de receção inantojuve-
nil do autor, dedicando um capítulo a cada um dos seus vinte livros, entrenarrativa e teatro, com pequenas incursões pela poesia. A perspetiva deanálise segue a construção humorística, presente ora nas temáticas ora nalinguagem, e principalmente na intertextualidade que perpassa entre tex-tos, de orma mais ou menos explícita. É através da intertextualidade, tam-
bém, que se estabelecem novas linhas de humor, implicando uma leituramais abrangente não apenas da obra de Pina, como também dos contextosque a cercam.
No nal, a investigadora elenca algumas conclu-
sões que respondem positivamente ao papel dostextos literários do escritor na ormação de lei-tores competentes. Não sendo a competência li-terária em si o objeto desta tese, a autora não sealonga em enquadramentos psicológicos ou pe-dagógicos. Contudo, az notar a complexidade deprocessos a que responde um leitor competente,
seja ele uma criança ou um adolescente.Assim, a importância do alargamento de horizontes pela relação
imbricada entre a memória e o onírico, dois eixos paradigmáticos que
undam e abalam sucessiva e simultaneamente a identidade em cons-trução e provocam situações paradoxais, surpreendentes, irónicas e có-micas. A inância, o medo e a imaginação conerem consistência a esteselementos e jogam, precisamente ao nível da competência, com o queo leitor domina e aquilo que desconhece, estabelecendo equilíbrios deleitura. Já ao nível da intertextualidade, especialmente no que concernea alusões, paródias, citações e adaptações, não é líquido que o pequenoleitor consiga interpretar o texto na sua plenitude, desconhecendo as
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ontes originais (que variam entre um vastíssimo universo que vai des-de a Bíblia, a Alice no País das Maravilhas ou à poesia de Alberto Caei-ro). No entanto, estes lapsos não invalidam a leitura e consolidam ain-da mais a condição de Manuel António Pina enquanto autor dual, que
assumidamente escreve sem distinção de estilo, independentemente dequem venham a ser os seus leitores preerenciais.
E
sta tese abre novas linhas para a análise de um dosmais originais e relevantes escritores da literaturainantil e juvenil portuguesa, chamando sempre aatenção para questões essenciais quando se pensaeste pretenso subgénero ou o seu lugar no cânone daliteratura, tout court .
A edição de um volume teórico como este, é, por isso,
um passo relevante para encurtar esse caminho, quetem tradicionalmente relegado a literatura inantil e juvenil para um guetoa que não pertence.
Sara Reis da SilvaPresença e Signicadode Manuel António Pinana Literatura Portuguesa para a Infância e JuventudeFundação Calouste Gulbenkian/
Fundação para a Ciência e Tecnologia
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Maria Keil
em Cascais
D e propósito – Maria Keil, obra artística é umaexposição sobre as quase oito décadas de tra-
balho da artista portuguesa (1914-2012) que oMuseu da Presidência da República apresentano Palácio da Cidadela, em Cascais, até 17 deoutubro. Aqui podem ser vistos, para além dedocumentos pessoais, pinturas, desenhos, pe-ças de mobiliário e decoração, azulejo, ilustra-
ção, trabalhos de publicidade, design gráco e tapeçarias, enquadradospor breves motes, recolhidos entre múltiplos testemunhos da autora.
Multiacetada tecnicamente, a artista da 2.ª geração modernista
portuguesa conere harmonia e contenção à grande maioria dos seustrabalhos. Retrato, paisagem, gurações e transgurações convivemneste vastíssimo espólio que acolhe cerca de 300 obras agora expostas,muitas delas pela primeira vez.
Na secção destinada à ilustração, apresentam-se diversos estudos,alguns aplicados em obras editadas, outros que caram por editar. Deentre as mais conhecidas, destacam-se as ilustrações para O PalhaçoVerde (texto de Matilde Rosa Araújo), Cançõezinhas da Tila (texto de Ma-tilde Rosa Araújo), A Noite de Natal (texto de Sophia de Mello BreynerAndersen), A Árvore que dava olhos (texto de João Paulo Cotrim) ou ain-
da para As Três Maçãs, O pau de fleira e Árvores de Domingo com texto daprópria Maria Keil.
Na diversidade de estilos e ormas, o visitante poderá reconheceruma identidade que preza a subtileza da emoção, cujos limites se en-contram em jogos cromáticos e cinéticos. A ironia e o humor caminhama par com sentido social e de justiça que sempre a caracterizaram.
in Litoral , n.º 4, outubro-novembro 1944
e m d e s t a q u e
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IBBY Compostela:
atas disponíveis
online
As atas do 32.º Congresso Internacional doIbby, realizado em setembro de 2010 emSantiago de Compostela, estão agora dispo-níveis no site do evento. Podem ser lidas oudescarregadas, em espanhol, inglês e porvezes em galego.
Dedicado à relação das minorias com aleitura, o livro, a edição e o escrito, o Con-
gresso contou com quatro conerências plenárias e diversas mesas re-
dondas. Dentro do magno tema mereceram especial destaque as mino-rias linguísticas, que se encontram em comunidades étnicas e culturais,entre emigrantes e reugiados. O multilinguismo, como consequênciadesta realidade cada vez mais transversal e comum que a mobilidadeglobal intensica, tornou-se também pretexto para se refetir sobre arelação com o escrito e as suas dierenças em relação à oralidade e àtradição oral. Logo na primeira Conerência Plenária, a investigadoraEmília Ferreiro discorre sobre todas estas matérias e o processo de al-abetização das crianças. Às minorias de género e aos leitores com ne-cessidades especiais oram dedicadas mesas redondas, com análises de
obras literárias e descrição de projetos de promoção da leitura. A ilus-tração ocupou outra mesa redonda, assim como a promoção da leiturapor si só.
Teresa Colomer, Piet Grobler, Teresa Duran, Gita Wol, Lygia Bo- junga ou Michèle Petit são apenas alguns dos nomes presentes.
A cidade do México acolherá o próximo congresso bienal do Ibby,no verão de 2014 com o tema «A Leitura como Experiência de Inclusão»
lg IBBY
O dia em que a
#biblioteca foi tão popular
como Lady Gaga*
Em 2009, Natália Arroyo, arquivista de Salamanca, ez--se uma pergunta: Quantos tweets seriam necessáriospara que as bibliotecas gurassem comotrending topic na rede social Twitter? A partir desse momento lan-çou o desao à comunidade de utilizadores para queno dia 10 de agosto ossem publicadas entradas coma hashtag biblioteca, desaando-os também a que emcada uma dessas entradas refetissem sobre o papel
destes espaços de cultura.
À quinta edição do dia da #biblioteca, através de uma rede que de-niu horários dierentes para os utilizadores consoante a sua localiza-ção geográca (Espanha, Portugal, Brasil, México, Chile e outros paísessul-americanos), oram mais de 39 milhões de reerências com a #bi-
blioteca as que oram publicadas no Twitter, colocando esta hashtag nalista dos assuntos mais comentados a nível global.
Para este ano, propunha-se que se debatesse o papel e a importânciadas bibliotecas públicas, de acesso livre e universal, em tempo de cri-se. E também aqui a experiência redundou em sucesso. De publicaçõescom os artigos do Maniesto da UNESCO para as bibliotecas públicas a
opiniões de bibliotecários, de escritores, jornalistas e leitores, o que a 12de agosto cou escrito demonstra que as bibliotecas estão vivas e que asua deesa, diante de um conjunto de medidas que as tentam enraque-cer, talvez possa ser mais orte.
Resta esperar que experiências como esta tenham sequência no dia adia de quem constrói, alimenta e visita cada um destes espaços de cultu-ra e cidadania. * Reprodução de um dos tweets publicados no dia 12 de agosto.
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A Saramaguiana de agosto abre as suas páginas à crónica,
«uma das mais completas e acabadas expressões literárias»,
com um texto que junta o autor desta citação, José Sarama- go, ao cronista brasileiro Rubem Braga, quando se come-
mora o centenário do seu nascimento. Mas agosto na Sara-
maguiana é também mês da segunda parte do texto de José
Saramago sobre Lisboa, retirado de Viagem a Portugal,
e aqui acompanhado de imagens da cidade, captadas a partir do recém-inaugurado Miradouro do Arco da
Rua Augusta.
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parecer de pouca relevância, mas que virão a ser, porventura, os que mais undo hão-de penetrar no espíritodo leitor», apontou Saramago ao denir a crônica.
Esse ambiente intimista instiga o cronista a um diálogo pessoal com seu leitor. É o que acontece em Deste
Mundo e do Outro, livro (inédito no Brasil) que reúne crônicas publicadas por Saramago nos anos de 1968 e1969 no jornal A Capital . Ali, o escritor traz temas que décadas depois viriam a aparecer em seus livros e dia-loga com seus leitores sobre questões universais como o tempo, a história, a morte e a solidão. A cidade deLisboa, que posteriormente iria ser cenário de algumas de suas histórias, aparece continuamente nas crôni-cas. «Lisboa dorme. Dorme proundamente. Todas estas janelas echadas protegem a escuridão das casas. Elá dentro estão as mulheres e os homens desta cidade, mais as personagens vagas dos sonhos e dos pesade-los. Por sobre os telhados az-se uma grande permuta de guras e imagens. Lisboa é uma rede de transmi-
grações. Ninguém está seguro dentro do seu corpo», escreve na crônica «Três horas da madrugada».Das crônicas de Saramago se pode adivinhar – agora ca ácil, já tudo oi escrito – personagens e histó-
ria, relatos e metáoras que aparecerão em seus uturos e consagrados romances. Nos breves textos estãorecordações de pessoas comuns como um amigo sapateiro, o amolador de tesouras que invadia a rua de suainância e os avôs camponeses. «Por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada eimensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores
assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventas anos e o ogo da tua adolescência nuncaperdida: ‘O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!’. É isso que eu não entendo – mas a culpanão é tua», escreve Saramago ao recordar a avó.
Nesses textos, o escritor demonstra o que viria depois a deender na conerência já citada: «A crônica nãosó tem lugar na literatura como é, em muitos casos, uma das suas mais completas e acabadas expressões.»
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Dizia Armando Nogueira que mais diícil do que azer mil gols, como Pelé, eraazer um gol como os que Pelé azia. Tal máxima pode ser aplicada ao cronistaRubem Braga, que dedicou quase sessenta anos à escrever crônicas. Foram cer-ca de 15 mil, e de uma qualidade impressionante. Manuel Bandeira costumavadizer que Braga era sempre bom, mas que quando não tinha assunto era ainda
melhor. Foi a capacidade de tornar belo e poético qualquer sucesso cotidianoque ez do «Velho Braga», como auto apelidou-se ainda jovem, o maior cronistado Brasil depois de Machado de Assis. Contou em seus textos o simples e da ma-neira mais singela. Citava como espelho um texto de Camões, que para ele era
dos mais belos da língua portuguesa e, ao mesmo tempo, estava escrito com as palavras mais corriqueiras:«A grande dor das coisas que passaram». A melancolia e uma tristeza doce, serena, era uma das marcas deseus textos, que também estavam temperados de uma ironia inoensiva. Em uma de suas crônicas mais a-
mosas, Rubem Braga contou a travessura de um passarinho que roubou a medalha de um conde. «A minhavida sempre oi orientada pelo ato de eu não pretender ser Conde», escreveu. Os amigos o recordam comoum homem reservado, de pouco sorrir e que prezava muito as amizades. «Sou um homem quieto, o que eugosto é car num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umascoisas, umas coisas que nem valiam a pena lembrar», anotou certa vez.
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Fotografas de Vitor Nogueira
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Nascido em 1913, em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, Rubem Braga morreu aos 77 anos a causade um câncer. Antes, encomendou e deixou pago seu enterro e ez uma esta de despedida em sua mítica cober-
tura em Ipanema, onde cultivava o rondoso jardim que lhe rendeu o apelido de «o azendeiro do ar».Neste ano de 2013, por conta do centenário de seu nascimento, oram reeditados livros de e sobre o cronista,
além da realização de exposições e homenagens. Numa época de instantaneidade e ugacidade como a que pas-samos, o espaço da crônica parece ser um oásis do tempo, e a recuperação de textos de cronistas como RubemBraga, João do Rio e outros mestres da crônica é uma notícia a ser comemorada.
Se para muitos escritores a crônica serviu de preparação para o romance, para Rubem Braga ela era o
mais alto degrau, era m em si mesmo. Nunca escreveu romances simplesmente porque dizia não ter apti-dão para inventar histórias, mas sim para contá-las. «Há homens que são escritores e azem livros que sãoverdadeiras casas, e cam. Mas o cronista de jornal é como cigano que toda noite arma sua tenda e pela ma-nhã a desmancha, e vai», escreveu em uma crônica. E assim, errante e humilde, o «velho Braga» conseguiuentrar para o grupo dos grandes nomes da literatura brasileira.
lg Rubem Braga
R u b e m B r a g a , c r o n i s t a p a r a s e m p r e
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Está bom tempo em Lisboa. Por esta rua se desce ao jardim de Santos-o-Velho, onde umacontraeita estátua de Ramalho Ortigão se apaga entre as verduras. O rio esconde-se portrás duma ada de barracões, mas adivinha-se. E depois do Cais do Sodré desaoga-secompletamente para merecer o Terreiro do Paço. É uma belíssima praça de que nuncasoubemos bem o que havíamos de azer. De repartições e gabinetes de governo já pouco
resta, estes casarões pombalinos adaptam-se mal às novas concepções dos paraísos bu-rocráticos. E quanto ao terreiro, ora parque de automóveis, ora deserto lunar, altam-lhesombras, resguardos, ocos que atraiam o encontro e a conversa. Praça real, ali ao canto oimorto um rei, mas o povo não a tomou para si, excepto em momentos de exaltação políti-
ca, sempre de curta dura. O Terreiro do Paço continua a ser propriedade do D. José. Um dos mais apagados reisque em Portugal reinaram olha, em estátua, um rio de que nunca deve ter gostado e que é maior do que ele.
O viajante sobe por uma destas ruas comerciais, com lojas em todas as portas, e bancos que lojas são, e
vai imaginando que Lisboa haveria neste lugar se não tem vindo o terramoto. Urbanisticamente, que oi quese perdeu? Que oi que se ganhou? Perdeu-se um centro histórico, ganhou-se outro que, por orça do tempopassado, histórico se tornaria. Não vale a pena discutir com terramotos nem averiguar que cor tinha a vacade que oi mungido o leite que se entornou, mas o viajante, em seu pensar vago, considera que a reconstru-ção pombalina oi um violento corte cultural de que a cidade não se restabeleceu e que tem continuidade
Fotografas de Sérgio Machado Letria
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na conusa arquitectura que em marés desajustadas se derramou pelo espaço urbano. O viajante não an-seia por casas medievais ou ressurgências manuelinas. Verica que essas e outras ressuscitações só oram esão possíveis graças ao traumatismo violento provocado pelo terramoto. Não caíram apenas casas e igrejas.
Quebrou-se uma ligação cultural entre a cidade e o povo dela.
Deende-se o Rossio melhor. Lugar confuente e defuente, não se abre rancamenteà circulação, mas precisamente é isso que retém os passantes. O viajante compraum cravo nas foristas do lago e, virando costas ao teatro a que se recusa o nome deAlmeida Garrett, sobe e desce a Rua da Madalena para ir à Sé. No caminho assus-tou-se com a ciclópica estátua equestre de D. João I que está na Praça da Figueira,
exemplo acabado de um equívoco plástico que só raramente soubemos resolver:há quase sempre cavalo a mais e homem a menos. Machado de Castro explicou láem baixo, no Terreiro do Paço, como se az, mas raros o entenderam.
À Sé pouco lhe altou para não sobreviver às remendagens dos séculos XVIIe XVIII, subsequentes ao terramoto umas, sem tento nem gosto todas. Reabilitou-se elizmente a ronta-ria, agora de bela dignidade no seu estilo militar acastelado. Não é certamente o mais belo templo que em
Portugal existe, mas o adjectivo cobre sem nenhum avor o deambulatório e as capelas absidiais, magnícoconjunto para que não se encontra ácil paralelo. Também a capela de Bartolomeu Joanes, em gótico rancês,merece atenção. E há que reerir o triório, arcaria tão harmoniosa que se cam os olhos nela. E se o visitantepadece do mal romântico, aí tem o túmulo da Princesa Desconhecida, comovente até à lágrima. Admiráveissão também os túmulos de Lopo Fernandes Pacheco e de sua segunda mulher, Maria Vilalobos.
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Até agora não alou o viajante do castelo dito de S. Jorge. Visto cá de baixo a vegetação quase o esconde.Fortaleza de tantas e tão remotas lutas, desde romanos, visigodos e mouros, hoje mais parece um parque. Oviajante duvida se o preeriria assim. Tem na memória a grandeza de Marialva e de Monsanto, ormidáveis
ruínas, e aqui, apesar dos restauros, que num princípio reintegrariam a ortaleza na sua recordação castren-se, acaba por ter signicado maior o pavão branco que se passeia, o cisne que voga no osso.
O miradouro az esquecer o castelo. Nem parece que naquela porta morreu entalado Martim Moniz. Ésempre assim: sacrica-se um homem pelo jardim dos outros.
Nem tem o viajante mostrado grande aeição pela arte setecentista, cujo maior fo-
rão é o chamado ciclo joanino, abundante em talha e grande importador de pro-duções italianas, como em Mara se viu. Logo parece pouco imaginativo, salvo serenada lisonja or, beneciar com nomes reais estilos artísticos em que os ditosreis não puseram dedo: têm os britânicos o isabelino ou o vitoriano, temos nós omanuelino e o joanino, só para dar estes exemplos. Mostra isto que os povos, ouquem por eles ala, ainda não se resolveram a passar sem pai e mãe, muito puta-tivos neste caso. Mas, enm, tinham os reis autoridade e o poder de dispor dos
dinheiros populares, e por via desta obsessão de paternidades temos de agrade-cer a D. João V, contente pelo nascimento do herdeiro, a construção da Igreja do Menino-Deus. Crê-se ser aplanta do ediício do arquitecto João Antunes, homem nada peco na sua arte, como se pode concluir olhandoeste magníco ediício. Não podia cá altar o gosto italiano, que em todo o caso não apagou o sabor da terra,patente na eliz introdução dos azulejos. A igreja, com a sua nave octogonal, é de um equilíbrio pereito. Mas
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o viajante, quando tiver tempo, há-de averiguar por que se deu a este templo o nada vulgar nome de Menino--Deus: descona que andou aqui imposição de Sua Majestade, ligando subliminalmente a consagração da
igreja ao lho que nascera. D. João V, pela sua conhecida mania das grandezas, era homem para isso.
O viajante ainda não descerá a Alama. Primeiro tem aqui a Igreja e o Mosteirode São Vicente de Fora, construídos, é o que diz a tradição, em terras ondeacamparam os cruzados alemães e famengos que deram a D. Aonso Henri-ques a mão necessária para conquistar Lisboa. Do mosteiro então mandadoconstruir pelo nosso primeiro rei não restam vestígios: o ediício oi arrasado
no tempo de Filipe II, e em seu lugar levantado este. É uma imponente máqui-na arquitectónica, pautada por uma certa rieza de desenho, muito comum nomaneirismo. Acusa no entanto uma personalidade clara ainda que discretana rontaria. O interior é vasto, majestático, rico em mosaicos e mármores, e
o altar barroco que D. João V encomendou de grande aparato, com as suas ortíssimas colunas e as grandesimagens de santos. Mas em São Vicente de Fora devem ver-se sobretudo os painéis de azulejos da portaria,
particularmente os que representam a tomada de Lisboa e a tomada de Santarém, convencionais na distri- buição das guras mas cheios de movimento. Outros azulejos, em silhares gurativos, decoram os claustros.O conjunto vem a ser algo rio, conventual naquele sentido que o século XVIII deniu e para sempre a elecou ligado. O viajante não recusa méritos a São Vicente de Fora, porém não sente comover-se uma só brado corpo e do espírito. Será culpa sua, talvez, ou está comprometido com outras e mais rudes vibrações.
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Qué buenas estrellas estaráncubriendo los cielos de Lanzarote?
José Saramago, Cuadernos de Lanzarote
A Casa José SaramagoAbierto de lunes a sábado de 10,00 a 14,00 h. Última visita a las 13,30 h.
(Open from monday to saturday, from 10 to 14 h. Last entrance at 13.30 h.)Tías-Lanzarote – Islas Canarias (Canary Islands)www.acasajosesaramago.com
F o t o g r a f a d e J o ã o
F r a n c i s c o V i l h e n a
a 11 15 SET ATé 2 SET ATé 19 25Ago
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ag
end
aju
lho
11A15 SETMoTEl X –FESTivAl in-TErnAcionAl
dE cinEMAdE TErrordE liSboA7ª edição do festival
de cinema de terror de
Lisboa, uma organização
do CTLX - Cineclube de
Terror de Lisboa, com a
presença do realizador japonês Hideo Nakata.
Cinema São Jorge,
Lisboa.
lg Motel
ATé
15 SETMiTologiASPor
ProcurAçãoExposição de 40 obras
do acervo do MAM-SP
escolhidas por um grupo
de artistas brasileiros
ligado à exposição
Mitologias, que a Cité
Internationale des Arts,
em Paris, mostrou em
2011. Museu de Arte
Moderna, São Paulo.
lg Mitologias
2 SETgrAndESEScriTorESnA PriMEirA
PESSoAO escritor uruguaio
Mario Benedetti é o
convidado da próxima
sessão dos Grandes
Escritores na Primeira
Pessoa. Casa da América
Latina, Lisboa.
lg Benedetti
ATé
1 SETMujEr. lAvAnguArdiA
FEMiniSTA dEloS AñoS 70Exposição que reúne
trabalhos de vinte e uma
artistas provenientes
da colecção Sammlung
Verbund, de Viena.
Circulo de Bellas Artes,
Madrid.
lg Mujer
19A25AgoAndAnçASFestival anual
de música e dança
populares que promove
a aprendizagem,
o intercâmbio deexperiências e o retomar
de hábitos como
os bailes populares.
Barragem de Póvoa e
Meadas, Castelo de Vide.
lgAndanças
Hideo Nakata Autorretrato de Flávio de Carvalho
Nação Vira Lata
ATé ATé 6 8 SET ATé ATéa
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ATé
8 SETcAnToScuEnToS co-
loMbiAnoSExposição panorâmica
da arte colombiana
contemporânea, com
instalações, vídeos,
fotografias, objetos,
performances e obras
acústicas. Casa Daros,
Rio de Janeiro.
lg Colombianos
ATé
14 SETTArdoS EPioPArdoSExposição de ilustração
da dupla Andy Calabozoe Nicolau. Galeria Dama
Aflita, Porto.
lg Dama Aflita
6-8 SETFESTA doAvAnTEFesta anual do Partido
Comunista Português,
aberta ao público emgeral. Música, teatro,
cinema, artes plásticas
e artesanato integram
o programa cultural.
Quinta da Atalaia, Seixal.
lgAvante
ATé
24 SETjoAn MirÓ.obrA
grÀFicAExposição de gravuras e
litografias de Joan Miró
pertencentes à colecção
da sua fundação.
Fundació Joan Miró,
Barcelona.
lg Miró
ATé
1 SETMAlbAFEdErAl.
rElAToSlATinoAME-ricAnoSExposição com mais
de meia centena de
obras de artistas latino-
americanos, desde as
vanguardas do início do
século XX até aos anos
2000. Museo de Artelatinoamericano, Buenos
Aires
lg Malba
ag
end
aju
lho
Autorretrato de Flávio de Carvalho Jorge EstebanMariem Hassan
Diretor
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Diretor
Sérgio Machado Letria
Edição e redação
Andreia Brites
Sara Figueiredo Costa
Design e paginação
Jorge Silva/Silvadesigners
FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO
Casa dos Bicos
Rua dos Bacalhoeiros, 10
1100-135 Lisboa – Portugal
blimunda@josesaramago.org
http://www.josesaramago.org
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