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Arquivo de jornal, arquivo de jornalista: uma reflexão sobre a preservação de periódicos a partir do caso do semanário O Eco1
Marcos Paulo da SILVA2
Resumo
O objetivo do presente artigo é contribuir, no debate acadêmico, com reflexões a respeito da prática de arquivamento de jornais e suas consequentes significações. Na concepção de Philippe Artières (1998), a atividade de guardar e arquivar objetos e documentos não é estanque, resultando, necessariamente, de escolhas guiadas por intenções sucessivas e às vezes contraditórias. Ao introduzir esta discussão no campo do jornalismo (e, necessariamente, dos arquivos jornalísticos), ganham corpo questões sobre as lógicas – individuais e coletivas – por trás da preservação desses “vestígios” históricos. Parte-se, na prática, do caso do semanário O Eco, fundado em 1938, em Lençóis Paulista, cidade localizada a 300 quilômetros a oeste de São Paulo, que recebeu significativas influências da imigração italiana. Além de localizar o periódico na história da imprensa paulista, este trabalho tem como finalidade levantar questões a respeito das significações envolvidas na preservação dos exemplares históricos do semanário, bem como, a partir das reflexões de Michel de Certeau e Philippe Artières, sobre uma possível intenção autobiográfica relacionada ao arquivo por parte de seu fundador e responsável por décadas.
Palavras-chave: Jornalismo; jornalista; arquivo; preservação; O Eco
1 Trabalho encaminhado ao Grupo Temático “História do Jornalismo” do VII Encontro Nacional de História da Mídia, em Fortaleza (CE), de 19 a 21 de agosto de 2009. 2 Jornalista e Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Bauru (SP). Doutorando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: silva_mp@uol.com.br
Para situar o debate
O objetivo do presente artigo é contribuir, no debate acadêmico, com reflexões a
respeito da prática de arquivamento de jornais e suas consequentes significações. Na
concepção de Philippe Artières (1998), a atividade de guardar e arquivar objetos e
documentos não é estanque, resultando, necessariamente, de escolhas guiadas por intenções
sucessivas e às vezes contraditórias. Ao introduzir esta discussão no campo do jornalismo (e,
necessariamente, dos arquivos jornalísticos), ganham corpo questões sobre as lógicas –
individuais e coletivas – por trás da preservação desses “vestígios” históricos. Parte-se, na
prática, do caso do semanário O Eco, fundado em 1938, em Lençóis Paulista, cidade
localizada a 300 quilômetros a oeste de São Paulo, que recebeu significativas influências da
imigração italiana. Desta maneira, pretende-se relacionar aspectos da prática jornalística – e
as significações a ela relacionadas – com as significações da prática do arquivamento.
Para Tania Regina de Luca, o conteúdo de um periódico não deve ser analisado de
maneira estanque, “dissociado do lugar ocupado pela publicação na história da imprensa” (DE
LUCA, 2006, p. 139), mas no interior de um processo de articulação com os poderes
estabelecidos. Busca-se, assim, além de localizar o jornal O Eco na história da imprensa
paulista, levantar questões a respeito das significações envolvidas na preservação dos
exemplares históricos do semanário, bem como, a partir das reflexões de Michel de Certeau e
Philippe Artières, sobre uma possível intenção autobiográfica relacionada ao arquivo por
parte de seu fundador e responsável por décadas.
O Eco: origem e características
O Eco, inicialmente chamado de E’cho, nasceu em um ambiente de relativa descrença
com o jornalismo local na região de Lençóis Paulista. O semanário foi fundado em 6 de
fevereiro de 1938 pelo jornalista Alexandre Chitto, o secretário Vicente de Paula Ferraz e o
professor Alcides Ferrari, este último desligado do veículo antes mesmo da circulação da
primeira edição. Apesar do envolvimento dos três colaboradores na fundação do jornal, foi
Alexandre Chitto que ocupou desde o início o cargo de diretor do veículo, constituindo o
grande responsável pelos rumos do noticiário. Antes de sua fundação, todos os outros jornais
que o antecederam na região de Lençóis Paulista tiveram duração máxima de um ano. O
próprio Chitto, em uma de suas publicações, descreve sucintamente o clima gerado com a
criação do jornal: “O Eco surgiu numa época duvidosa, de pessimismo, quanto a existência de
jornais na cidade. Poucos acreditavam no sucesso deste semanário. Ventilava-se, mesmo, em
1938, que não chegaria até a sexta edição” (CHITTO, 1978, p.71).
Figura 1 – Capa da primeira edição do semanário O Eco (antes grafado E’cho) Fonte: CHITTO, 1978, p.72.
De modo geral, o semanário se manteve, em seus primeiros anos de atuação, dentro
das características do jornalismo local (BUENO, 1977; LOPES, 1998). Composto e impresso
em tipografia própria, de maneira semi-artesanal, com uso de tipos e clichês, o jornal circulou
ininterruptamente nos anos iniciais com edições que variavam de quatro a seis páginas. Neste
período, com tiragem aproximada de 100 exemplares, o jornal conjugava em suas páginas
notas informativas sobre os acontecimentos da cidade (alistamento militar, datas festivas,
falecimentos, esportes, entre outros assuntos), notas sociais (núpcias, aniversários e festas),
reproduções de poesias e outros textos assinados, editais oficiais e publicidade. Devido ao
modo de composição das páginas na tipografia, o semanário não mantinha critérios
estabelecidos de diagramação – característica comum a outras publicações jornalísticas do
período. Desta forma, os poucos elementos com lugar fixo nas páginas do jornal eram a
logomarca e o editorial, ambos ocupando sempre a primeira página.
Diretor desde seu início e voz predominante nos destinos e na linha editorial do
semanário O Eco, o jornalista Alexandre Chitto, assim como sua família, teve em sua
trajetória de vida uma relação muito peculiar com a Itália. O percurso da família Chitto com
descendência em Lençóis Paulista tem início em 1872, em Isola Dovarese, na província
italiana de Cremona. Em 24 de novembro daquele ano, filho de César Chitto e de Anunciata
Chitto, nascia Mauro Chitto, patriarca da família que anos depois teria influência no
comércio, na política e na comunicação de Lençóis Paulista. Aos 15 anos, Mauro ingressou
no serviço de telégrafo italiano e, aos 18, foi convocado para o exército, onde chegou à
patente de sargento. Na última década de século 19, serviu na África Oriental. Condecorado
pelos serviços militares, decidiu se mudar para a América. Escolhendo o Brasil como destino,
viajou junto de um primo, deixando a família na Itália. Na época, Lençóis Paulista já possuía
uma considerável colônia italiana, sobretudo das regiões de Treviso e Cremona. Em Lençóis,
Mauro Chitto conheceu Santina Lazzari, uma imigrante da mesma cidade italiana da qual ele
partira. Com ela se casou, fixando residência em um bairro rural formado essencialmente por
imigrantes italianos, onde teve seus três primeiros filhos – entre eles, Alexandre Chitto.
Com o passar dos anos e a entrada dos filhos na adolescência, Mauro Chitto resolveu
voltar definitivamente com a família para a Itália. Viveram cerca de dois anos no país, mas a
Primeira Guerra Mundial, que eclodiu na Europa em 1914, influenciou a trajetória da família.
Preocupada com uma possível convocação dos filhos adolescentes, Santina Lazzari teria
convencido Mauro a voltar com a família ao Brasil. Os Chitto retornaram a Lençóis Paulista e
passaram a residir na cidade, iniciando um representativo papel na comunidade local. Mauro
Chitto foi presidente da Sociedade Italiana de Mutuo Socorso Stella D’Itália, criada no
município pela colônia italiana como forma de mútua assistência aos estrangeiros e
descendentes. A sociedade, que durante um longo período de tempo foi o único clube de
Lençóis Paulista, foi fechada durante a Segunda Guerra Mundial. Mauro Chitto foi ainda
Representante Consular Italiano na cidade e vice-prefeito, eleito em 1922, ocupando o cargo
de chefe do Executivo por quase um ano em substituição ao então prefeito Elias Rocha. Neste
período, em 1924, recepcionou na cidade o General Pietro Badoglio, representante oficial de
Benito Mussolini em visita ao Estado de São Paulo.
Figura 2 – Marechal Pietro Badoglio visita Lençóis Paulista, em 1924. Fonte: Arquivo Alexandre Chitto
Segundo filho de Mauro Chitto, o jornalista Alexandre Chitto nasceu em fevereiro de
1901 no bairro italiano da Rocinha, em Lençóis Paulista, onde passou a infância e parte da
adolescência. Após morar cerca de dois anos na Itália durante a adolescência, Alexandre,
junto de sua família, voltou a Lençóis onde começou a trabalhar no comércio. Em fevereiro
de 1938, fundou junto de dois companheiros o jornal O Eco. Em 1939, Chitto fez estágio de
jornalismo na capital paulista, recebendo o Certificado de Jornalista Profissional, registrado
no Departamento do Trabalho. Um ano após fundar O Eco, assumiu sozinho o veículo.
Passou a cumprir as funções de administrador, repórter e redator, noticiando fatos da cidade.
Ficou na função de diretor até meados da década de 1980, quando vendeu a empresa3.
3 O jornalista faleceu em 1994 e está enterrado no Cemitério Municipal de Lençóis Paulista.
Figura 3 – Alexandre Chitto, em 1932 Fonte: Arquivo Alexandre Chitto
Localizando O Eco na história da imprensa: a questão do arquivo
Fundado em 1938, poucos meses após a implantação do Estado Novo por Getúlio
Vargas, o semanário O Eco, como já ressaltado, manteve-se, em seus anos iniciais, com as
características da imprensa local (BUENO, 1977; LOPES, 1998). Sua compreensão enquanto
objeto da pesquisa acadêmica, contudo, vai além e deve passar por novas questões, como a
reflexão a respeito da natureza do arquivo.
Nos termos da “operação historiográfica” de Michel de Certeau (1982), ou seja, numa
perspectiva epistemológica, constata-se que toda pesquisa historiográfica se articula em um
local de produção sócio-econômico, político e cultural. Para o teórico francês, que resgata as
críticas estabelecidas pelo alemão Raymond Aron ao redor da “história objetiva”, a prática
historiográfica está inteiramente relacionada à estrutura da sociedade – da seleção e reunião
dos objetos de estudo ao processo de redação das obras.
Analisando uma “dissolução do objeto” (R. Aron), tirou o privilégio do qual [a história objetiva] se vangloriava, quando pretendia reconstituir a “verdade” daquilo que havia acontecido. A história “objetiva”, aliás, perpetuava com essa
idéia de uma “verdade” um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem; contentava-se com traduzi-la em termos de “fatos” históricos. (...) Agora, sabemos a lição na ponta da língua. Os “fatos históricos” já são constituídos pela introdução de um sentido de objetividade. Eles enunciam, na linguagem da análise, “escolhas que lhes são anteriores, que não resulta, pois, da observação – e que não são nem mesmo “verificáveis”, mas apenas “falsificáveis” graças a um exame crítico.(CERTEAU, 1982, p.67).
Na perspectiva de Certeau (1982), entende-se que a prática histórica, de modo geral, e
os próprios objetos da historiografia, num plano particular, devem ser observados e
localizados no âmbito de seus lugares sociais. Em outros termos, reconhece-se como premissa
o fato de a prática historiográfica depender, necessariamente, dos vestígios (que não são
inertes, mas carregam representações) deixados pelas sociedades às gerações subseqüentes.
Por sua vez, a escolha do que deve ou não ser guardado por cada sociedade, retomando as
palavras de Max Weber (apud CERTEAU, 1982, p.68), não admite outra justificativa senão a
subjetiva.
Neste sentido, voltando às reflexões sobre o semanário O Eco, na tarefa de esboçar
uma identificação de seu arquivo enquanto objeto de pesquisa, torna-se necessária a
localização do periódico na evolução da imprensa interiorana paulista. Imprensa, esta, que
teve seu início na primeira metade do século XIX e apresentou uma série de peculiaridades no
decorrer de seu desenvolvimento.
O Eco na linha do tempo da imprensa local paulista
Em um levantamento sobre a história da imprensa paulista, Gisely Valentim Vaz
Coelho Hime (1998) relata que foram tantas as dificuldades encontradas para o
estabelecimento da imprensa no Estado, que o primeiro periódico paulista sobre o qual se tem
registro data de junho ou julho de 1823, ou seja, quinze anos após a circulação do Correio
Braziliense, considerado o primeiro jornal brasileiro, apesar de editado ainda na Inglaterra. O
primeiro veículo realmente impresso na província de São Paulo aparece somente em fevereiro
de 1827, quando o Rio de Janeiro já contava com nove jornais e sete outras províncias
somavam juntas outras duas dezenas de periódicos (HIME, 1998, p.14).
A história da imprensa no interior de São Paulo começa ainda mais tarde, em
Sorocaba, no dia 27 de maio de 1842, com a fundação do jornal O Paulista, por Diogo
Antonio Feijó4. O Paulista, de Sorocaba, ganhou vida quinze anos após a fundação, em
fevereiro de 1827, do O Farol Paulistano, o primeiro jornal impresso na capital do Estado, e
34 anos após o início do primeiro jornal impresso realmente no Brasil, a Gazeta do Rio de
Janeiro, que foi às ruas em setembro 1808.
Segundo Fernando Ortet (1998), no período entre o surgimento da Gazeta do Rio de
Janeiro e a fundação do periódico O Paulista, em Sorocaba, os jornais já chegavam a então
Província de São Paulo, “mas em um número que mal dava para satisfazer as necessidades de
leitura dos moradores do centro administrativo da região, quanto menos para alcançar as
povoações do interior” (ORTET, 1998, p. 121). O autor ressalta que o surgimento da
imprensa no interior paulista acompanhou o desenvolvimento econômico dos nascentes
municípios.
O surgimento dos primeiros jornais no interior de São Paulo (Revista Comercial, Santos, 1849; O 25 de Março, Itu, 1849; e A Aurora Campineira, Campinas, 1858) esteve estreitamente vinculado ao desenvolvimento econômico, industrial, sócio-cultural, político e urbanístico de cada uma das cidades. (..) Refletia paralelamente a necessidade das classes dominantes de manifestarem pontos de vista sobre cada aspecto da dinâmica do desenvolvimento local. (ORTET, 1998, p.122)
Para Wilson da Costa Bueno, citado por Ortet, no passado a imprensa do interior
também se caracterizava por ser uma “imprensa mais opinativa do que informativa, que
discute todos os problemas, intromete-se nos bastidores da política, provoca os adversários,
denuncia, reclama e, principalmente, fofoca” (BUENO apud ORTET, 1998, p.123). Neste
sentido, não é difícil compreender a importância da imprensa do interior na formação e no
crescimento das cidades e sua influência no rol de relações sociais localmente estabelecidas.
A região na qual o presente trabalho se foca, delimitada pela porção centro-oeste do
Estado de São Paulo, mais especificamente no território que compreende as cidades de
4 Também há referências de que o jornal tenha sido fundado pelo francês Antoine Hercule Florence.
Botucatu e Bauru, onde se localiza Lençóis Paulista, fortemente marcada pela colonização
italiana, evidencia a importância de um estudo detalhado das relações sociais locais. A própria
fundação dos primeiros jornais impressos na região leva a crer que a formação da imprensa
nesta porção do interior paulista foi influenciada pelo desenvolvimento econômico e pelo
processo de urbanização dos municípios.
Quando chegou à porção centro-oeste do Estado, a imprensa interiorana já dava
mostras de um tímido desenvolvimento. Conforme levantamento elaborado por Gastão
Thomaz de Almeida (1983), depois de Sorocaba, Santos, Itu e Campinas, a imprensa passou
para o Vale do Paraíba, onde teve início em Guaratinguetá, chegando também em Taubaté,
Pindamonhangaba, Bananal, Areias e Caçapava. Do Vale do Paraíba, a imprensa interiorana
foi para outras regiões paulistas, chegando a Amparo, Lorena, Mogi-Mirim e Rio Claro, em
1872. Naquele ano, começaram a surgir novos jornais em várias cidades. Praticamente a cada
ano novas comunidades passavam a conhecer a imprensa que penetrava então em Queluz,
Silveiras, Tietê, Bragança Paulista, Capivari e Itapetininga, entre outras (ALMEIDA, 1983, p.
35).
Em Botucatu, o primeiro jornal – denominado A Gazeta de Botucatu – foi às ruas em
1887. Seguindo o avanço territorial, surgiram nos anos que se passaram os primeiros jornais
de Jaú (O Jahuense, em 1889), São Manuel (O Município, em 1894), Lençóis Paulista
(Correio de Lençóis, em 1895), Bauru (O Bauru, em 1906), Agudos (Gazeta de Agudos, em
1927) e Marília (Correio de Marília, em 1928).
Ainda em Lençóis Paulista, antes da fundação do semanário O Eco, em 1938, outros
veículos impressos ganharam as ruas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do
século XX. Nos últimos anos do século XIX circulou na cidade o primeiro semanário: o Fiat
Lux. O veículo era dirigido pelo padre italiano José Magnani, personagem presente nas
páginas políticas e um dos responsáveis pelo fortalecimento dos núcleos de imigrantes
italianos na cidade. O Fiat Lux foi posteriormente substituído por outro veículo chamado
Imparcial, também com a direção de Magnani. Ambos eram impressos no gabinete do
pároco, no cruzamento de duas das principais ruas de Lençóis Paulista (15 de Novembro e
Coronel Joaquim Anselmo Martins). Circularam ainda em Lençóis Paulista no início do
século XX alguns panfletos e jornais reivindicativos. Entre eles, destaca-se O Trovão, que
trazia o subtítulo “quem não deve não teme”. (CHITTO, 1978, p.70). Não há, no entanto,
além de memórias registradas, vestígios do veículo, o que impede o detalhamento de suas
características e a identificação de seus responsáveis.
Entre os primeiros jornais e a criação do semanário O Eco, outros veículos de menor
duração também foram impressos em Lençóis Paulista. Em 1923, foi lançado o jornal O
Imparcial, veículo que não passou de poucos meses. No ano seguinte, também sem trajetória
duradoura, ganhou às ruas o veículo O Indicador, voltado exclusivamente à publicidade. Em
1928, editou-se na cidade o Jornal de Lençóes. Em 1936, foi criado outro veículo também
intitulado O Imparcial, não chegando ao sexto número (CHITTO, 1978, p.70).
O histórico dos anos antecedentes fez com que O Eco nascesse em um ambiente de
relativa descrença com o jornalismo local. Sua longevidade (e a conseqüente longevidade de
seu arquivo) relaciona-se, desde as primeiras edições, com as diferentes estratégias de
sobrevivência trazidas à tona por seu responsável, o jornalista Alexandre Chitto. O sucesso de
tais estratégias, que merecem uma exploração mais detalhada, somado à legitimação do
veículo pela sociedade lençoense e a posterior configuração do semanário como empresa,
permitiram ao O Eco, diferentemente dos outros veículos de menor duração que o
antecederam na região, a preservação de seu arquivo com o passar das décadas.
Arquivo do O Eco, arquivo de si?
Ao prezar – dentro de suas limitações – pelas características do jornalismo5 elencadas
pelo teórico alemão Otto Groth (BUENO, 1972), sobretudo pela periodicidade, o semanário O
Eco criou desde o início um elo muito particular com a comunidade de Lençóis Paulista. Sem
deixar de circular em uma única semana sequer, o jornal criou a cultura na comunidade
lençoense de esperá-lo aos sábados – muitas vezes com a formação de filas em sua sede.
Durante mais de duas décadas o veículo circulou sem concorrentes no município,
contribuindo para a fixação de sua marca na sociedade local. Somente em novembro de 1959, 5 Otto Groth sublinha quatro características fundamentais aos periódicos que auxiliam na compreensão do jornalismo convencional. A atualidade diz respeito à relação dos fatos com o tempo presente. A periodicidade se refere à repetição regular no tempo das diferentes edições de um periódico. A universalidade trata da abordagem dos mais diferentes campos do conhecimento humano efetuada por um veículo. E, por fim, a difusão coletiva diz respeito à circulação dos periódicos por diversificadas camadas sociais distribuídas cultural, econômica e geograficamente de modo heterogêneo (Bueno, 1972).
após 21 anos da criação do O Eco, é que passou a circular ininterruptamente na cidade outro
semanário: a Tribuna Lençoense6, fundada pelo jornalista Zanderlit Duclerk Verçosa, ainda
hoje o principal concorrente local do jornal O Eco.
Além da legitimação do periódico na sociedade local, quando se trata da preservação
do arquivo do O Eco, é preciso também considerar a figura do próprio Alexandre Chitto e sua
presença por mais de quatro décadas à frente do veículo. Seu modo de agir na sociedade
lençoense, sobretudo seu hábito de arquivar documentos, fotografias e outras antiguidades,
lhe assegurou o status de “memorialista oficial” da cidade. Não é a toa que o Museu Histórico
de Lençóis Paulista, idealizado por Chitto, ainda hoje leva seu nome.
É necessário reconhecer, contudo, que o hábito de “guardar” as coisas estabelecido por
Alexandre Chitto no decorrer da vida tramita, segundo a perspectiva de Certeau (1982, p.67),
em paralelo a um longo processo de triagem. Assim, com o passar dos anos e décadas, tempo
que lhe garantiu o estatuto de memorialista, Alexandre Chitto deparou-se, necessariamente,
com escolhas. Nas palavras de Philippe Artières (1998, p.10), tais escolhas são guiadas por
intenções sucessivas e às vezes contraditórias. Desta forma, pode-se admitir que o arquivo
histórico do semanário O Eco, apesar de não consistir (pelo menos à primeira vista) um
arquivo de registros pessoais, também passou pelo crivo da triagem do memorialista. Ou seja,
existem lógicas (individuais e coletivas) por trás desses “vestígios”.
No caso particular do arquivo do jornal O Eco, um outro questionamento ainda pode
ser levantado para debate futuro: por trás dos textos semanais assinados por Alexandre Chitto
e de suas práticas de arquivamento não há, para novamente citar Philippe Artières, uma
intenção autobiográfica? Trata-se de uma questão que merece reflexão. Para Artières (1998,
p.11), numa autobiografia (“a prática mais acabada desse arquivamento”), não somente são
escolhidos alguns acontecimentos, como eles são ordenados numa determinada narrativa.
Assim, a escolha e a classificação dos acontecimentos acabam por determinar o sentido que o
autor deseja dar à sua própria vida.
Infelizmente, desde que deixou às mãos de Alexandre Chitto, o arquivo histórico do
semanário O Eco não recebe a atenção necessária. O material encontra-se atualmente
6 Atualmente o veículo pertence à família Lorenzetti.
depositado nas próprias instalações da empresa jornalística responsável pela marca O Eco
(Editora e Jornal Folha Popular Ltda) e, apesar dos esforços recentes dos responsáveis, ainda
não goza de conservação adequada. Além disso, as técnicas de arquivamento do material
desde os primórdios do periódico (os impressos estão acoplados em pastas de madeira
divididas por períodos anuais) e as constantes de mudanças de sede da empresa fizeram com
que alguns exemplares fossem deteriorados e/ou rasgados, enquanto outros foram perdidos.
De todo modo, como aqui exposto, o arquivo – que compreende mais de sete décadas de
veiculação do jornal – oferece múltiplas possibilidades de pesquisa, caracterizando-se como
um potencial objeto de pesquisa historiográfica tanto sobre a imprensa do interior paulista
como, conforme destacado, sobre a própria biografia de Alexandre Chitto e seu hábito de
arquivamento.
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