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Editor
Raphael Faé Baptista
Editoração:
Felipe Sellin
Colaboram nessa Edição:
Felipe Sellin
Laísa Emanuelle
Marcus Vinicius de Azevedo Braga
Raphael Faé Baptista
Vanessa Lima
Interaja conosco, sua opinião
é muito importante para nós:
criticaespirita@gmail.com
Edição n° 43—Julho de 2018
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Editorial Inicialmente, pedimos desculpas pelo atra-
so na edição, aliás, o primeiro nesses anos
que estamos juntos. Como todos sabem,
somos um projeto voluntário e, nessa qua-
lidade, padecemos das mesmas dificulda-
des do voluntariado em geral, como a falta
de recursos materiais, financeiros e huma-
nos, assim como o assomo de demandas
pessoais e profissionais.
Porém, comprometidos a fazer espiritismo
dialético e a levar ao público sempre o que
há de melhor e mais avançado em termos
de reflexões espíritas sobre o mundo e a
sociedade.
Em “Política”, Marcus Braga expõe sobre
os riscos de se utilizar o espiritismo para
defender ou atacar partidos políticos e can-
didaturas a cargo eletivo – quaisquer que
sejam –, e deixamos à inteligência dos lei-
tores e das leitoras apreciar as razões do
autor.
Na seção “Feminismo”, Vanessa Lima, uma
das participantes do I Fórum Social Espíri-
ta de Vitória, traz as valiosas reflexões so-
bre espiritismo e feminismo abordadas
durante o evento.
Em “Temas Filosóficos”, Laísa Emanuelle,
outra participante do I Fórum Social Espí-
rita, compartilha o que foi abordado no
Grupo de Discussão por ela conduzido,
discorrendo sobre a natureza científica e
filosófica do espiritismo.
Por fim, em “Sociedade”, Raphael Faé,
mais um participante do Fórum, também
coloca à disposição dos leitores parte de
seu estudo no Grupo de Discussão sobre
filosofia e religião no espiritismo.
Ao final, um ponto importante. Num mo-
mento em que recrudescem a violência e o
sectarismo, quando o fundamentalismo
político e religioso estão, mais uma vez,
dando formas sociais específicas aos medos
e às apreensões sociais num tempo de ins-
tabilidade e de incertezas, mais do que
nunca devemos estar atentos aos sinais dos
tempos e à moral em que afirmamos ade-
rir.
O caráter radical da moral de Jesus é a da
resistência não-violenta. O “não resistir ao
mal”, ou seja, o pagar o mal com o bem,
mostra-se com todo o seu esplendor numa
época em que o ódio assume diversas face-
tas políticas.
Esse é o momento em que somos chama-
dos ao autoconfronto, entre aquilo que
queremos acreditar com o que efetivamen-
te acreditamos, entre aquilo que defende-
mos da boca para fora com o que realmente
habita o nosso coração. São nessas ocasiões
em que precisamos vencer resistências e
avançar, progredir, perceber o quanto de
mosaico, de olho por olho, de carrasco, de
sede de sangue, de farisaico ainda está den-
tro de nossa moral e de nossa afetividade,
pois é aí que a passagem evangélica “e por
se multiplicar a iniquidade, o amor de mui-
tos esfriará” (Mt, 24, 12) assume caráter
existencial e histórico.
Desse modo, em meio a um cenário social
tão complexo e perigoso – com tantos inte-
resses em jogo –, o nosso convite é o de
reflexão e de amor, de posicionamento e de
benevolência, de luta e de indulgência.
Vivemos num planeta de provas e expia-
ções, e é dever de todo o espírito encarnado
concorrer para a regeneração. Os caminhos
são variados e não há uma história pronta.
Ela está em construção a partir de nossas
escolhas e atitudes individuais e coletivas.
E o que mais precisamos são de inspirações
e de uma nova linguagem política do amor
e da caridade.
Portanto, uma vez contrários ao ódio e à
violência, não se pode “jogar o jogo” do
ódio e da violência. Os valores básicos da
democracia e da dignidade da pessoa hu-
mana são essenciais. Posicionar-se, sim.
Lutar, sim. Opor-se às injustiças, sim. Mas
nunca recorrendo aos processos violentos
que caracterizam seres e povos atrasados e
ignorantes.
Boa Leitura,
Raphael Faé e Felipe Sellin
3
POLÍTICA
As redes sociais tem um potencial de
aproximar pessoas, de trazer ideias e opi-
niões para uma grande e enviesada ágora
(1), na qual se constroem opiniões, se
destroem reputações e ascendem ideias,
ídolos, símbolos, grupos, sendo hoje, de
longe, estas organizações virtuais os mai-
ores formadores de opinião, superando a
família, a igreja e a escola, que tradicio-
nalmente desempenharam essa função.
Quem não está nas redes sociais, não
existe. Essa é uma verdade que se afirma
cada vez mais e nos faz ver nestas um
reflexo do mundo dito físico, mas que
também influencia esse sobremaneira.
Quase um plano espiritual... O filme
“Jogador Nº 1”, de Steven Spilberg
(2018), descreve bem esse mundo não tão
distante... de pessoas imersas no virtual e
dessas relações ditando o mundo real,
com os mesmos conflitos de poder que
assolam a civilização desde a sua gênese.
E diante de fatos relevantes, como catás-
trofes, descobertas científicas e pleitos
eleitorais, essa plenária de cegos, surdos,
retransmissores e oniscientes se agita,
capitaneada por influenciadores digitais
amplos ou segmentados, com mãos que
abrem portas e dão destaques a certas
coisas em detrimento de outras, nos fa-
zendo repensar essa ideia da internet co-
mo um utópico campo livre, percebendo
esta como loteada por forças e grupos,
como um reflexo da sociedade, com a
diferença que os canais de comunicação
agora podem ser mais controlados e mo-
nitorados.
Nesse cenário, que em poucos anos se
instalou e mudou a nossa forma de se
comunicar e de se viver, nos defrontamos
mais uma vez em um pleito eleitoral, com
a diferença de termos polarizações dife-
rentes dessa vez, a ascensão de temas
antes ocultos, e uma selvageria nas rela-
ções e nos posicionamentos, uma decor-
rência do ringue político que se transfor-
maram as redes sociais, nas quais cida-
dãos se digladiam com memes e agressões
verbais, levando essas lutas (na sua maio-
ria inférteis) para a família, a escola, o
trabalho e... o ambiente religioso.
Sim, nosso sagrado foi invadido por essa
polarização político-partidária sem parti-
dos definidos, agressiva e que traz associ-
ada a si uma patrulha de palavras e de
gestos, transcendendo em muito as ques-
tões sociais típicas. Fomos incompetentes
para blindar nossa prática religiosa dessa
onda que veio das redes sociais, e que nos
assaltou, e agora me refiro ao nosso caso
especial, as casas espíritas, as palestras,
os eventos e os sites.
Da cor da sua camisa, ao adesivo do carro
parado na porta da casa espírita, no pri-
vado se questiona o post do palestrante
sobre um assunto político. Afinal, ele
também é um influenciador de opiniões, e
tem que ver bem o que ele pensa. Um
cenário foucaultiano de vigilância e de
classificação em tipologias, cada um com
seu espírita ideal pairando na mente, ne-
gando a nossa diversidade como espírito
encarnado, e as nossas construções, e
influências, que transcendem apenas o
nosso papel social como espírita.
Por uma banda, enquanto ideologias ne-
gam conquistas de Direitos humanos e
trazem uma meritocracia descontextuali-
zada, trazemos esse viés para nossos tra-
balhos assistenciais, vendo nossos irmãos
menos favorecidos como vagabundos. De
outra mão, pairam ideologias que pros-
crevem o trabalho profissional, como fon-
te de alienação, e isso vira uma ode a ina-
ção nas tribunas da casa espírita. Seria
tão frágil o nosso conjunto de conheci-
mentos, que se permite ser derrubado
assim por uma brisa de polarizações ideo-
lógicas?
Nos vimos pressionados a nos posicionar
Não nos interessa em quem você vai votar
4
como movimento, como palestrantes,
como articulistas, como trabalhadores,
patrulhados pelas nossas falas como cida-
dão, dado que nas redes somos isso tudo
ao mesmo tempo. E nisso surgiu uma tê-
nue e arriscada tentação. A de alegarmos
que nesse debate devemos buscar a coe-
rência do espiritismo com as polarizações
políticas, entendendo que podemos esta-
belecer consensualmente que o candidato
A, ou o partido B, não é coerente com as
ideias espíritas, e por conseguinte, não faz
sentido um espírita, lato sensu, esposar
essa opção. Um frio na barriga...
Ora, ora...essa é uma manobra arriscada.
De criarmos uma bula do que pode ou não
pode o espírita em matéria política (ou
esportiva, ou artística(2), ou de outros
aspectos), na sua condição de cidadão,
escolher como caminho. Isso resvala no
temido “irmão vota em irmão”, ou ainda,
na sedutora ideia de se direcionar o nosso
pensamento como um rebanho, e isso vale
para todas as matizes ideológico-políticas
que pululam por aí... Afinal, somos um
grupo pequeno, na formalidade do Censo
do IBGE, mas grande no potencial de in-
fluência.
A doutrina, como uma chave do pensa-
mento libertador, nos dá elementos para
construirmos as nossas convicções, sem
que precisemos de alguém que nos diga,
em um pacotinho hermético, o que deve-
mos fazer nessas escolhas. O estudo, como
valor, e o diálogo como prática, são a força
do espiritismo que permite o alicerce para
que cada um conduza a sua encarnação
com a coerência que lhe for possível, den-
tro de suas faixas de amadurecimento,
respondendo pelas suas obras, dentro de
suas limitações.
A história nos mostra que quando caímos
nesse caminho direcionador, ganhamos
de presente a hipocrisia, a manipulação, a
predominância de interesses materiais.
Rótulos, prescrições, levam a tochas e
foices, e pouco ao crescimento espiritual.
Não me recordo nesses quase trinta anos,
de precisarmos de representantes na esfe-
ra política. Exercer a religião é um direito
que a democracia nos faculta. A todas as
crenças! Como dizia um sábio... a César o
que é de César.
Fugir disso é abrir um portal para que
nossos eventos, nossos textos, nossas falas
nas casas espíritas, incorporem a venda
do peixe que aprouver aos nossos dirigen-
tes locais, ou mesmo em instâncias mais
amplas, legitimando uma pauta que até
agora, como segmento religioso, consegui-
mos nos blindar razoavelmente. Um valor
que nos é caro, de entender que essas lu-
tas passam, mas as nossas questões como
espíritas, como grupo que esposou essas
ideias trazidas por Kardec, continuam.
Até por que, nessa selva de receptores e
transmissores, onde surge o conceito de
pós-verdade, pouco sabemos do que foi e
menos do que será. Defender pessoas já
levou a religiões caírem do cavalo, com
desculpas e retratações. Ídolos de pés de
barro não são uma exclusividade religiosa,
com vários na política. Ao divino, este
sabe quem é quem, e cabe ao espiritismo a
nos robustecer para atravessar essa selva
desvairada, com uma espiritualidade que
liberta, e que nos permite andar com as
nossas próprias pernas.
O espírita desempenha outros papeis,
como cidadão, como familiar, como pro-
fissional. Ele tem um compromisso de
coerência com ele mesmo nesse sentido,
mas que não pode ser imposto por fora.
Sendo mais específico, se a Doutrina se
posiciona contra o aborto e a pena de
morte, e ele quer escolher um candidato
nesse viés, é uma opção dele dentro do
que se apresenta no cenário político, e do
que ele entende na sua convicção, na per-
cepção dos problemas sociais de que se
ocupa essa política. Mais um pouco, só
casaremos com espíritas, só consumire-
mos filmes e músicas desse segmento,
daremos preferência a funcionários afins a
essa ideia e... bem, já vimos esse filme de
homens postiços.
Nós, como movimento, ao invés de nos
engajar em lutas legislativas sobre a lega-
lização ou não de coisas, que se refletem
em discussões eleitorais, nas suas pautas,
devemos nos preocupar com entender os
problemas humanos a luz da doutrina, e
na tribuna, no texto da revista, trazer esse
entendimento para reflexão, não para
regular friamente, mas para amparar e
esclarecer, para educar cada um em uma
dimensão profunda, na construção de um
homem de bem de raiz, e não de discur-
sos. Não queremos o homem de bem de
memes.
De forma conclusiva, a simplificação de
espírita não pode votar em A ou B, como
uma postura aceita e incentivada, é uma
arriscada armadilha, que abre portas para
outros tipos de intromissão e que mudam
o ethos do espiritismo, e que trazem atre-
lados a si coisas como precisarmos de
gurus que nos orientem, de verdades in-
questionáveis e da necessidade de um
gabarito oficial da religião para as deci-
sões que nos cabem na vida encarnada. E
que não são simples, e nos responsabiliza-
mos por elas, individual e coletivamente.
Sob o risco de ser taxado de isentão ou
omisso, esse texto é uma tentativa de pro-
vocar a reflexão sobre essas posturas, pen-
sando o futuro e a sustentabilidades do
nosso movimento.
NOTAS:
(1) Assembléias em praças públicas na
Grécia antiga.
(2) E a mesma ideia espírita que proscreve
o Carnaval, mas não ataca outros tipos de
festejos.
Marcus Vinicius de Azevedo Braga,
articulista espírita.
5
FEMINISMO
O machismo está entranhado em tudo e
em todos. Está na raiz da sociedade que
vivemos, está na estrutura das nossas
relações, está na publicidade, na política,
na arte, na educação... e também está no
espiritismo.
No I Fórum Social Espírita de Vitória-ES,
quando nos propomos a discutir Feminis-
mo e Espiritismo, tínhamos em mente a
pergunta: “Por que eu posso ser espírita e
ainda assim feminista? Essas duas ideias
podem andar juntas?”. Não só podem,
como devem. O feminismo, como luta
pela equidade entre os gêneros e por uma
sociedade mais justa, respeitosa e empáti-
ca, deveria andar de mãos dadas com uma
doutrina que prega a equidade universal
entre os espíritos.
Do ponto de vista do espírito imortal, não
há nenhuma justificativa aceitável para as
diferenças sociais e econômicas que per-
duram até hoje. Não há justificativa para
as estatísticas vergonhosas de violência
contra a mulher, para a não equiparação
salarial, para o abandono paterno e expec-
tativas massacrantes da maternidade,
para a objetificação da mulher desde a
infância/adolescência e para tantas outras
feridas abertas por uma sociedade de uma
tóxica dominância masculina.
O espiritismo, com sua lei de igualdade,
abre um novo olhar sobre as relações hu-
manas, dando total validação para as lutas
feministas que já em 1857 levantavam
suas pautas. O próprio Kardec, na Revista
Espírita, nos lembra que a igualdade da
mulher é um direito fundado nas próprias
leis da natureza.
Nem tudo são flores. Remontando à
tradiçao mosaica, o cristianismo é uma
religião de origem patriarcal, como tantas
outras. A revelação cristã foi trazida por
um homem, com apóstolos homens, num
contexto de um clero tradicional mascu-
lino. Às mulheres do cristianismo, mesmo
com toda sua força e importância, histori-
camente foi legado apenas um papel
secundário. Suas histórias foram coloca-
das em segundo plano, suas vozes foram
silenciadas na versão “oficial” do Evan-
gelho, e até mesmo o título de “prostituta”
foi atribuído àquela que foi considerada
subversiva demais pelo posterior clero
católico.
O espiritismo chega como “revelação” em
1857 trazendo as mesmas características.
Uma figura central masculina, espíritos
da codificação majoritariamente se
apresentando na figura masculina, papel
secundário legado às mulheres. É com
essa raiz e carregando também os precon-
ceitos de cada época, que o espiritismo
chega aos conturbados dias atuais ainda
carregando o machismo de que como so-
ciedade até hoje padecemos.
Quando vemos no livro Nosso Lar, de
André Luiz, frases como “A mulher não
pode ir ao duelo com os homens, através
de escritórios e gabinetes, onde se reserva
atividade justa ao espírito masculino”,
sabemos que ainda há muito a descon-
struir. Precisamos ter em mente que os
espíritos encarnados e desencarnados que
foram responsáveis pelas obras que hoje
são tidas como referências para o mo-
vimento espírita atual, são seres imper-
feitos e em evolução como todos nós. O
próprio Kardec, como homem de sua
época, também foi responsável por falas
racistas e machistas ao longo da codifi-
cação, próprias de um homem branco do
Séc. XIX. Ninguém é isento das influênci-
as e linhas de pensamento do seu tempo, e
não devemos nos esforçar em procurar
justificativas que amenizem a responsabi-
lidade dessas falas.
Nosso esforço hoje, como espíritas que
lutam por um mundo mais justo, deve ser
o de reconhecer as falhas, abandonar pa-
drões de comportamento atrasados, atu-
POSSO SER ESPÍRITA E AINDA ASSIM FEMINISTA
6
alizar e/ou contextualizar as bibliografias
que utilizamos, e buscar um movimento
espírita mais de acordo com o progresso
das ciências humanas, especialmente as
ciências sociais. Um espiritismo que de-
fende desigualdades, preconceitos e per-
petua violências é, por si só, uma inco-
erência. Esse tipo de fala e pensamento
não só não caminha com o
pensamento crítico
espírita, como tam-
bém não respeita a Lei de
Amor cristã.
Dessa forma, o Fórum
se deu como um respirar
profundo dentro de um con-
texto sufocante de ignorância e intolerân-
cia. Poder discutir espiritismo fora das
caixinhas silenciadoras e controladoras
que muitas vezes encontramos no mo-
vimento, foi inspirador. Inspirador tam-
bém foi ter estado numa sala analisando o
machismo que perpetua no espiritismo e
vendo que o feminismo deve sim entrar
nas pautas espíritas por uma questão de
lógica com os princípios básicos da
“doutrina”.
A ansiedade dos presentes na discussão
de temas espinhosos, como o aborto, nos
faz pensar o quanto o debate livre tem
sido abafado em muitas casas com a justi-
ficativa de serem “agitadores” e
“desarmonizantes”. Não há como uma
“doutrina” que se fundamentou no pen-
samento crítico e revolucionário pra sua
época se deixar afundar num mar de
plácida aceitação e silenciamento. Se en-
titular hoje “espírita progressista”, por se
dispor a dialogar o espiritismo com o Séc
XXI, atualizando-o e renovando-o, é uma
redundância. Não há espiritismo sem um
viés progressista, uma vez que o próprio
se fundamenta na Lei de
Progresso.
Quando Franklin Félix propõe, no seu
artigo para a Carta Capital*, que a atual-
ização do lema de Kardec para os dias
atuais seria “Fora da justiça social não há
salvação”, precisamos entender que não
existe justiça social enquanto nossa socie-
dade se apoiar na ideia e na prática de um
sexo frágil, subserviente, silenciado, vio-
lentado e tolhido durante tantos séculos.
Infelizmente, não podemos afirmar que
“machistas não passarão” porque eles
estão passando todos os dias, nas nossas
vidas e em nossas casas espíritas, mas é
nosso dever o rompimento com as es-
truturas machistas que nossas falas
e atitudes tantas vezes apoiam, e a
construção de um espiritismo cada vez
mais feminista.
Vanessa Lima, oceanógrafa, feminista e
espírita.
* https://
www.cartacapital.com.br/
blogs/dialogos-da-fe/fora-
da-justica-social-nao-
ha-salvacao
7
TEMAS FILOSOFICOS
No Primeiro Fórum Social Espírita, pro-
pus o seguinte debate: afinal, o que é o
espiritismo? O grupo de debate denomi-
nou-se “Espiritismo, ciência e filosofia: o
pensamento crítico como instrumentali-
dade de transformação”. Esse nome pre-
tensioso poderia ter sido substituído pela
pergunta “afinal, o que o espiritismo?”,
sem que tal mudança ocasionasse a perda
da problematização a ser debatida. Aqui,
buscarei resumir alguns pontos aborda-
dos.
O espiritismo se intitula como uma ciên-
cia, como uma filosofia, dirão alguns:
filosofia com consequências éticas, ou
segundo outros religião. O objeto propos-
to no Grupo de Debate era clarificar esses
conceitos, compreendendo suas dimen-
sões analíticas.
Para tanto, empreguei a definição de ciên-
cia de Karl Popper. Popper, epistemólogo
austríaco, assevera que toda ciência ou
todo conhecimento – lembrando que ci-
ência em sua raiz etimológica grega signi-
fica conhecimento – nasce de uma igno-
rância, de um problema em busca da ver-
dade. O método científico não seria outro
senão a busca pela solução desses proble-
mas, a busca pela verdade. Mas, podemos
perguntar: o que é verdade? Para Popper,
a verdade científica é a correspondência
dos fatos tais como eles se apresentam.
Essa definição permitiu compreender a
verdade como um campo aberto ao per-
manente desenvolvimento. A mesma ci-
ência, em épocas diferentes, avançando
em si, ou seja, com novos meios técnicos-
metodológico, poderá apresentar “novas
verdades” sobre um mesmo fato. A histó-
ria cientifica do átomo exemplifica as
diversas verdades em diferentes épocas.
O átomo em Demócrito era indivisível,
em Joseph Thomson descobriu-se o elé-
tron, Planck, Borh e Heisenberg adentra-
ram descortinaram o mundo subatômico.
A verdade científica, assim, também é um
constructo histórico-social.
O espiritismo é ciência porque originou-
se da análise de fatos em uma tentativa de
compreensão desses mesmos fatos. As
mesas girantes, assim como todos os fe-
nômenos físicos são experimentos que
podem ser repetidos e observados reitera-
das vezes. A ciência espírita na época de
Kardec conseguira comprovar dois fatos:
a existência dos espíritos e sua comunica-
ção com nosso mundo.
Afinal, o que é o espiritismo?
8
Da possibilidade da comunicação com
espíritos decorreu o segundo aspecto do
espiritismo, que é a filosofia. Os espíritos
trouxeram uma gama de conhecimentos
de natureza revelatória, tais como: a exis-
tência do mundo espiritual, a pluralidade
do mundo habitáveis, a existência de uma
Fonte Criadora Suprema.
É necessário clarificar que tais conheci-
mentos, por sua natureza revelatória e
sua impossibilidade de serem submetidos
à análise fática, determinam-se como
crenças, jamais podendo ser considerados
uma verdade científica. Nós cremos em
Deus, nós cremos na existência de colô-
nias espirituais, mas não conseguimos
comprovar tais fatos. A verdade científica
deve ser, necessariamente, a correspon-
dência dos fatos tais como se apresentam.
Grande parte da ridicularização que nós,
espíritas, sofremos nos meios especializa-
dos, deve-se a nossa incapacidade de se-
parar o que é fato do que é crença. Não há
problema em crer, todavia, não podemos,
sob pena de uma auto-ilusão, denominar
de fatos, aquilo que é apenas crença.
Kardec nos concedeu um método para
análise do conhecimento revelatório, que
é o Controle Universal de Ensinamento
dos Espíritos – CUEE. Uma mensagem
espírita somente seria aceita como
“verdade” se corroborasse com três requi-
sitos. O primeiro requisito é dado por sua
racionalidade, a logi- cidade. Um
conhecimento espíri-
ta deve ser necessariamente racional. O
segundo requisito,
que esse
mesmo conheci-
mento deveria ser ditado
por vários
médiuns em
diferentes localidades e, por
último, esses ensi-
namentos deveriam
ser unânimes entre si.
O CUEE busca conferir uma
credibilidade aos ensinamen-
tos revelatórios, todavia, não é
um método científico, ante sua com-
pleta ausência de empiria. Não é possível
observar uma colônia espiritual. O CUEE
é um método capaz de determinar a ve-
rossimilhança do conhecimento revelató-
rio, jamais sua verdade.
Se a verdade é a correspondência dos
fatos tais como eles se apresentam, qual
então seria a definição de verossimilhan-
ça? O filósofo argentino, Luis Alberto
Warat, a conceitua: “A verossimilhança
são enunciados cuja verdade se desconhe-
ce ou não se obteve legitimamente, e que
se aceita devida a crenças generalizadas
ao nível popular e não científico. O veros-
símil não se submeteu-se à prova, mas
postula o caráter de ser provavelmente
verdadeira”.
O espiritismo é ciência, o espiritismo é
filosofia, mas sobretudo é uma ética vi-
vencial. Clarificar os conceitos do que é o
espiritismo permite desconstruir falsas
concepções para avançar sobre si. Mas,
categorizações e sistematizações são mo-
dificadas de tempos em tempos. É impos-
sível dissociar o espiritismo em um aspec-
to. Herculano Pires assevera que o espiri-
tismo veio contribuir para restabelecer a
concepção da unidade pitagórica.
Assim como a ciência objetiva compreen-
der a realidade para atuar sobre ela, o
espiritismo nos permite uma compreen-
são mais lata da realidade, com vista à
transformação dessa realidade, seja no
plano individual ou social.
Respon-
dendo à pergunta formulado no título,
pessoalmente eu creio que o espiritismo é
sobretudo uma vivência. Kardec asseve-
rou que o verdadeiro espírita seria reco-
nhecido pelo esforço de sua transforma-
ção, e, recorrendo novamente a Hercula-
no, não há transformação pessoal sem
transformação social e não há transfor-
mação social sem a correlata transforma-
ção pessoal.
Não seremos reconhecidos pelos tratados
filosóficos que por ventura podemos es-
crever, não seremos reconhecidos pela
experienciação fenomenológica que pode-
mos estudar, mas sim, por sermos o sal da
terra e a luz na escuridão e, segundo Je-
sus, não se ilumina sem se transformar-se
em um candeeiro, sem iluminar toda dor
e ignorância ao nosso redor.
Laísa Emanuelle é Advogada.
Referências
Pires, Herculano. Concepção Existencial
de Deus. São Paulo: Editora Paidéia, 1981.
___________O espírito e o tempo: in-
trodução antropológica do espiritismo.
São Paulo: Editora Paidéia,2013.
Popper, Karl. A lógica das ciências sociais.
Editora Universidade de Brasília: Rio de
Janeiro, 1978.
________ A lógica
das pesquisas científicas.
Editora Cultrix:
São Paulo, 2016
Warat, Luis Alberto. Introdução Geral ao
Direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade. Porto Alegre: Editora Ser-
gio Antonio Fabris Editor,
2002
9
SOCIEDADE
FILOSOFIA E RELIGIÃO NO ESPIRITISMO E AS
CONSEQUÊNCIAS PARA O PENSAR SOCIAL O título acima foi de um dos Grupos de
Debate, que conduzi no I Fórum Social
Espírita de Vitória. A necessidade desse
assunto é urgente e necessária. Sem saber,
e muitas vezes sem querer saber, o que é
filosofia e religião, o público espírita foi
reproduzindo ao longo do tempo concei-
tos atrasados, lógicas antiquadas e postu-
ras contestáveis, mais próximas do pensa-
mento mágico medieval do que do pensa-
mento crítico e científico dos séculos XIX,
XX e XXI.
Com isso, incapazes de dialogar com o seu
tempo, de fazer espiritismo dialético, cri-
ou-se uma cultura que, agora, mostra à
luz a sua face monstruosa: o espiritismo
só é pensado a partir do universo do reli-
gioso, e é concebido como válido somente
dentro de ambientes federativos. Aliás,
um dos maiores questionamentos daque-
les que não suportam mais viver dentro
de “caixinhas” e das atividades do modelo
federativo, é saber como se pode fazer
espiritismo fora do centro espírita.
Apequenando o espiritismo na religião e
num contexto institucional, essa cultura
gerou práticas que, por sua vez, retroali-
mentaram essa cultura. E chegamos até
aqui, num movimento espírita que afu-
genta mentes inquietas, críticas e capaci-
tadas, que tem aversão à pesquisa científi-
ca e filosófica, alimentou um religiosismo
barato e piegas, deu força aos discursos
pseudocientíficos, justificou as misérias
humanas pela lei de causa e efeito, deu
voz aos médiuns-gurus oniscientes e aci-
ma do bem e do mal, foi fartamente so-
berbo na concepção de que o espiritismo
seria suficiente para dar conta da condi-
ção humana e social e, como cereja do
bolo, gerou o novo fenômeno, em número
considerável, de pessoas que suportam,
no plano político, propostas e ideias fas-
cistóides, violentas, preconceituosas,
prontas a lamber a sola do sapato de po-
derosos e a massacrar os fracos, e isso
sem qualquer constrangimento.
Carentes de humildade, de autocrítica, e
de leitura crítica da realidade, com as de-
vidas exceções, exalando orgulho e sem
conseguir criar um movimento fora de
padrões hierarquizados, as lutas do movi-
mento espírita se resumiram a montar e a
fortalecer uma estrutura de poder federa-
tiva para justificar a incapacidade científi-
ca e filosófica a partir do religioso, e a
esconder vaidades e egolatrias sob o dis-
curso do amor.
Desse modo, no GD proposto, a discussão
foi um retorno a questões fundamentais
no espiritismo. Pressupondo que a tradi-
ção filosófica ocidental remonta aos anti-
gos gregos, e a tradição religiosa aos anti-
gos judeus, foi destacado que essas tradi-
ções se embasavam numa certa compre-
ensão mágica do mundo, de que o mundo
era habitado por forças cósmicas e as pes-
soas eram sujeitas aos seus poderes. Nes-
sa época, a religião tinha a pretensão de
dar conta de explicar toda a vida, e Deus
(no ocidente), era o garantidor e o funda-
mento de tudo.
10
A grande virada se dá na modernidade,
quando o pensamento científico e crítico
começa a despontar e a buscar um estatu-
to próprio para analisar a realidade.
É nesse momento – da ciência construin-
do sua autonomia para descrever o mun-
do, e da filosofia para refletir sobre o
mundo – que encontramos Kardec, que
buscou as reflexões mais avançadas de
sua época para, a partir delas, dialogar
com os espíritos e dar corpo ao espiritis-
mo. Questiona sobre panteísmo, materia-
lismo e deísmo, sobre teorias científicas
diversas, questões morais, etc., tudo de
acordo com o que havia disponível em sua
época, incluindo os preconceitos.
Consciente dos novos papéis atribuídos à
ciência e à filosofia, Kardec avança em
dois pontos.
O primeiro é sobre o lugar da religião
nessa nova ordem de coisas colocadas
pela modernidade. Kardec sabia que cabia
à ciência descrever a realidade, e à filoso-
fia refletir sobre essa realidade. Onde,
então, colocamos a religião? Diferente-
mente da rejeição do iluminismo francês à
religião, Kardec a localiza no compartilhar
pensamentos e sentimentos, com vistas ao
amor e à fraternidade.
Ou seja, Kardec não rejeita o sentimento
do religioso, do sagrado, do espiritual.
Dando nome aos bois, abre uma nova
perspectiva a essa dimensão humana,
reconhecendo que temos necessidades
racionais, mas também afetivas, que não
estamos sozinhos no mundo, e que esse
sentimento pode ser vivenciado, de modo
substancial, nas relações humanas de um
modo geral, independente das adesões e
dos ambientes religiosos.
No segundo ponto, Kardec também bus-
ca enfrentar um dos dilemas de seu tem-
po, na busca de uma sociedade justa e
fraterna. Equalizando as forças sociais e
os interesses de grupos atuando em sua
época, ele propõe uma solução pelo lema
mais conhecido do espiritismo: “fora da
caridade, não há salvação”. Por esse prin-
cípio moral, Kardec buscava superar tanto
o misticismo e o poderio da Igreja, quanto
evitar o individualismo crônico de algu-
mas doutrinas materialistas e niilistas.
Passados mais de 150 anos, com tantas
mudanças na concepção de deus, de uni-
verso, de experiências humanas e sociais
profundas, como duas guerras mundiais,
conflitos atômicos, corrida espacial, guer-
ra fria, liberação sexual, imperialismo,
capitalismo financeiro, sociedade de mas-
sa e de consumo, problemas ambientais,
etc., a pergunta é: afinal, o que o espiritis-
mo tem a dizer sobre as sociedades demo-
cráticas, multiculturais e complexas do
século XXI?
Neste ponto, é necessário reconhecer que
o espiritismo, salvo as sempre honrosas
exceções, parou no tempo. Enquanto até
as religiões católica e protestantes evoluí-
ram e construíram uma rede de pensado-
res e de intelectuais (resultando em insti-
tuições como as PUCs e a Mackenzie), o
espiritismo permaneceu enredado nos
horizontes do século XIX. E é por isso que
nos vemos constantemente em meio às
mesmas questões e rodando em torno dos
mesmos pontos.
Feito esse aparte, a questão então é, nesse
momento de tamanhos retrocessos – de
ataques à laicidade do Estado e o domínio
político de grupos religiosos, da imposição
de uma agenda religiosa e retrógrada à
educação e à sociedade, do preconceito,
do fanatismo e do fundamentalismo reli-
gioso, etc. –, vemos como se mostra avan-
çada a proposta de Kardec, de retomar-
mos a ideia do religioso (do espiritual)
como comunhão de pensamentos e de
sentimentos, de encontrar essa dimensão
do sagrado nas atividades mais ordinárias
e comuns em nossa vida de relação, capaz
de unir a todos numa bandeira de senti-
mentos e de afetos verdadeiros, profundos
e transformadores, em lugar de continuar
insistindo no modelo falido pernicioso da
“religião espírita”, de espíritas e para espí-
ritas, vazia como toda religiosidade for-
11
mal, absoluta como todo sistema religio-
so, e desnecessária como toda estrutura
de poder religiosa. Com isso, poderíamos
ser um movimento que fizesse frente aos
falsos profetas e às mazelas da religião,
em lugar de abrigá-los.
E a ideia de salvação – numa época de
tamanha desesperança e fanatismo –,
somente poderá ter sua validade firmada
diante de uma sociedade tão complexa se,
ao lado do caráter moral, acrescentarmos
o caráter social e político da caridade co-
mo o fundamento de uma nova ordem
moral, social e política, de uma sociedade
regenerada, e não ficar insistindo nos
modelos existentes da sociabilidade de
provas e expiações, colocando remendo
novo em pano velho.
Assim, o único modo de fazer com que
esse lema tenha pertinência é reconhecer
que salvação não é o fim, mas o meio; não
é o ponto de chegada, mas o caminho; a
sua validade é pelo que está acontecendo,
e não pelo o que já aconteceu; não é só
sobre o indivíduo, mas sobre todos nós;
não é o céu, mas a terra; não é sobre ser
perfeito, mas sobre reconhecer que todos
integramos uma mesma humanidade
falível e imperfeita.
A salvação verdadeira fala do Samaritano,
que deixou de lado os processos impesso-
ais e a moral de sua época para ir ao en-
contro do seu irmão caído e machucado.
Apesar disso, nossa época é aquela que
prefere os processos impessoais farisaicos
em detrimento do humano concreto, sen-
do mais importante a mão invisível do
mercado do que a fome concreta de um
semelhante, mais importante a lei penal
abstrata do que as condições objetivas que
levam alguém a cometer crime...
Para finalizar, deixo uma reflexão. O me-
do do debate, a aversão à crítica, o mal-
estar com o pensamento verdadeiramente
científico e filosófico, o consenso imposto
a força, e a busca de poder gerou estragos
irreparáveis e perdas incalculáveis ao
espiritismo, em termos de gerar reflexões
mais avançadas sobre a condição huma-
na, de fomentar posturas mais propositi-
vas e atuantes, de ajudar a formar seres
humanos mais coerentes e conscientes de
si e do seu entorno.
Porém, o espiritismo é o que fazemos de-
le. Se você está incomodado com o que há,
se você quer um espiritismo que dialogue
com o nosso tempo e nossas questões,
então faça você o diferente. Existem inici-
ativas qualificadas e corajosas, como a
Universidade Livre Pampédia, com proje-
tos incríveis, além do próprio Jornal Críti-
ca Espírita e outros que, infelizmente, não
têm a devida visibilidade.
O I Fórum Social Espírita mostrou isso.
Uma ideia simples, lançada e acolhida
entre poucas pessoas, mas determinadas
a fazê-lo, sem recursos e sem apoios, con-
seguiu se materializar e reunir dezenas de
pessoas igualmente interessadas, mos-
trando não somente a sabedoria de Kar-
dec, ao dizer que 10 pessoas unidas num
ideal fazem mais que 100 dispersas, mas
também a dos espíritos, de que o mal
prospera pela omissão dos bons.
Raphael Faé é editor do Jornal Crítica
Espírita
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