View
4
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
A desinformação anti-positivista no Brasil
(Segunda versão) 3.VIII.2005.
Arthur Virmond de Lacerda Neto
PREFÁCIO
“...nada é mais cômico e patético do que
ver com quanta gravidade transmitiram-se, de uma
geração a outra, as caricaturas mais grotescas das
posições de Comte, feitas por alguns
investigadores que julgam mais por rumores do
que por discernimento intelectual”. (Kenneth
Thompson, Augusto Comte, p. 10).
“E de muitas das críticas da filosofia
positiva poder-se-ia dizer o que disse o professor
Huxley das críticas ao darwinismo: não valem o
papel em que foram escritas”. (Lauro Sodré,
Crenças e opiniões, p. 73).
“Seria tarefa interminável tentar-se corrigir
as falsas interpretações das opiniões positivistas
que os ignorantes repetem” (Frederico Harrison,
Revista Ocidental, 1897, t. I, p. 268-9).
Muito do quanto se escreveu no Brasil, nas últimas décadas, sobre o Positivismo,
enferma de ignorância, tolice, desonestidade ou preconceito, separada ou
conjuntamente.
Há incompreensões, de quem não entendeu a letra nem o espírito de Augusto
Comte; há preconceitos, de quem o verbera sem o conhecer, na repetição de certos
lugares-comuns; há desinformações, de quem o conhece de segunda mão, sob o efeito
de interpretações que o distorcem; há desonestidades, de quem o ataca para o
desmoralizar, a qualquer custo.
Há afirmações infundadas, que o próprio Comte previu e às quais contra-
argumentou e cuja formulação corresponde à confissão de que o crítico ou não leu
Comte ou não o leu de todo. Ex.: a acusação de que a lei dos três estados é errada
porque a positividade, a metafísica e a teologia muitas vezes coexistem, quando Comte
afirmou exatamente isso e explicou porque é assim.
Há afirmações ignorantes, como a de que o Positivismo é determinista ou
fatalista, ou seja, concebe uma ordem inalterável, quando Comte enunciou,
dogmaticamente, a maior modificabilidade dos fenômenos, quanto mais complexos
sejam eles, máxime os sociais .
Há afirmações levianas, de quem atribui ao Positivismo intenções que lhes são
alheias. Por exemplo.: ele é autoritário porque pretende uma ditadura republicana,
quando a este conceito corresponde regime garantidor de todas as liberdades.
Há afirmações ideológicas, de quem, no Positivismo, seleciona o que lhe
convém para o atacar. Por exemplo: ele corresponde a um ideário burguês, quando se
caracteriza pela sua vocação pelas classes necessitadas.
Há afirmações desonestas, de quem, conhecendo os fatos, acusa o Positivismo
apesar deste conhecimento. Por exemplo: Antonio Paim, que responsabiliza os
positivistas por haver o Brasil tardado a criar universidades e que cita, na sua
bibliografia fonte (aliás excelente) que desmente exatamente isso (a fonte é “A
ilustração brasileira e a idéia de universidade”, de Roque Spencer Maciel de Barros).
Há afirmações fantasiosas, destituídas de um mínimo de realidade. Verbi gratia:
“Apelo aos conservadores” de Comte representaria golpe destinado a manterem-se as
estruturas de dominação.
Há, finalmente, ignorância, de quem sabe nada do que anda a falar e bosteja. Por
exemplo: algum pessoal jurídico, mesmo professores, ataca o normativismo, doutrina
jurídica criada por João Kelsen e impropriamente nominada de positivismo jurídico,
que, vezes muitas, confunde com o Positivismo de Augusto Comte.
Verifica-se no Brasil autêntica mistificação anti-positivista, entendida como
distorção (por ignorância ou má-fé) e hostilidade, em meio em que decaiu
acentuadamente a qualidade da produção intelectual: sintoma desta decadência apura-se
no cotejo da produção brasileira com a estrangeira, ao menos em matéria de
Positivismo.
Quanta diferença entre as imbecilidades dos escrevinhadores pátrios, e a
profundidade, a lucidez, o acerto, das análises dos europeus e dos norte-americanos! Da
parte dos estrangeiros, consulta das fontes originais, pesquisa bibliográfica extensa,
meditação profunda, afirmações ponderadas; da parte dos brasileiros, uma leviandade
que se permite e uma desinformação que prevalece: instalaram-se a ignorância e a
deturpação, que se mantêm por ausência de controlo, da parte de pessoas minimamente
preparadas e honestas, que aponte os extravios de quem os pratica. Se houvesse tal
controlo, por meio da crítica da produção intelectual, os respectivos produtores
acautelar-se-iam e exerceriam sobre si próprios vigilância de que se privam, certos de
que ninguém será capaz de examinar o que produzem que, assim, prevalece, por mais
estúpido que seja. E quanta estupidez publica-se à volta do Positivismo, no Brasil !
Rareiam, entre nós, quantos conhecem o Positivismo e abundam quantos se
acham na situação oposta: pontificam, os primeiros, nos cursos superiores e nos textos
impressos, em que asneiram desenvoltamente, na certeza de receptividade acrítica.
Assim como existe impunidade criminal, por ausência de aplicação da lei, existe
impunidade intelectual, por ausência de crítica, no sentido de avaliação e até de
confutação.
Certos livros e certas afirmações, em matéria de Positivismo, não valem o papel
em que se imprimiram: os que se aventuram a julgá-lo e mesmo apenas a descrevê-lo,
devem impor-se a obrigação, elementar, de estudarem-no a sério, de lerem Augusto
Comte e os seus continuadores, de entenderem-nos, ou seja, de capacitarem-se, a sério.
Não existe o direito de julgar-se o que se ignora ou que se conhece
superficialmente; o livre exame e a liberdade de pensamento não equivalem à faculdade
de ajuizar-se fora de condições mínimas de competência para fazê-lo, máxime no
âmbito intelectual, em que o esforço de conhecimento e de entendimento são
especialmente imperiosos. De tais esforços, muitos brasileiros dispensam-se: daí as
ignorâncias e as deturpações, e a sua propagação por entre alunos e leitores, que
creditam a certos professores e a certos autores autoridade que, na verdade, lhes falece.
Os pedantes mistificam os ingênuos; os que presumem saber, viciam os que
desejam saber, em desfiguração do Positivismo, cujo resultado consiste no espetáculo,
deprimente, do despreparo, da superficialidade, da distorção, da leviandade, da mentira,
presentes na vida intelectual, acerca daquela doutrina, a cujo respeito a contribuição
brasileira, fora dos seus próprios adeptos, é modestamente aproveitável e
freqüentemente desprezível. Excetuei os positivistas porque esses, dada a sua adesão ao
Positivismo, estudam-no movidos pela ânsia de entenderem-no, ou seja, cumprem com
a condição indispensável de toda aplicação intelectual minimamente séria, como é o
meu caso, que lhe aderi quando o conheci (aos meus dezoito anos de idade): conheci-o
diretamente na sua fonte, ou seja, nas obras do próprio Comte.
Fartei-me de tanta porcaria à solta, nas livrarias, nas universidades, nos cursos
livres, nas gazetas. Fartei-me das distorções, das mentiras, das desonestidades, dos
erros, e resolvi reagir: que não fique sem esclarecimento nenhuma confusão, que não
fique sem resposta nenhum ataque, que não fique sem denúncia nenhuma
desonestidade. É-me indiferente a conotação ideológica, política, confessional, ou de
qualquer outra natureza, do erro ou do respectivo autor: todos os erros são-me iguais na
medida em que é imperioso erradicá-los.
Eis porque este é livro de combate e de ciência. É de combate, porque nele
denuncio o anti-positivismo brasileiro e profligo-lhe alguns aspectos; é de ciência,
porque nele corrijo algumas desinformações e informo o leitor. Distingo o que
corresponde ao Positivismo do que se lhe imputa, por modo a render justiça a uma
doutrina injustiçada.
Um consolo há, para os brasileiros: o de que a ignorância não é deles, apenas,
nem das gerações atuais. Em 1895, Luciano Momenhein, em artigo na Revista
Ocidental1, exclamava: "Sinais dos tempos! Augusto Comte está em voga [...] a obra e o
nome do filósofo são correntemente citados e fazem parte da bagagem de
conhecimentos que todo homem, ao nível da sua época, deve possuir". No entanto,
observava o estado de ignorância dos que escreviam sobre o Positivismo: "A meditação
pessoal geralmente falta, as informações são de segunda mão, os julgamentos tomados
de empréstimo geralmente a Stuart Mill, a Littré, ao padre Gruber e a leitura da própria
obra de Comte limita-se, quase sempre, a alguns excertos, retirados com mais ou menos
felicidade, do começo ou do final das suas obras".
Notava o agravante da falta de independência intelectual dos autores, que
adaptavam as suas produções à mentalidade dos seus leitores: "Enfim, o cuidado muito
acentuado de não melindrar as convicções do público especial de cada escritor, deixa
subsistir entre as premissas e a conclusão uma inconsequência freqüentemente bem
pouco dissimulada".
1 O Positivismo e a opinião, Revista Ocidental, 1895, segundo semestre, p. 408.
Após corrigir os erros grosseiros de Emílio Faguet2, o autor do artigo concluía,
que este, no seu ensaio "ficou, realmente, abaixo da sua tarefa, por duas razões: a
primeira é que ele tomou conhecimento superficialíssimo e incompletíssimo do
Positivismo e que, a seguir, a orientação do seu espírito não lhe permitiu assimilar
suficientemente o que há de original e de novo na obra de Augusto Comte, condição
indispensável para poder formular um julgamento motivado sobre uma das maiores
tentativas de que se possa honrar o espírito humano".
Em suma: conhecimento superficial, repetição de segunda mão, crítica
infundada, má vontade, os mesmos vícios presentes no Brasil atual e no de décadas
passadas.
I
BESTIÁRIO
Recolho aqui alguns exemplos, colhidos aleatoriamente e sem pesquisa
sistemática, das estupidezes em circulação no Brasil, acerca do Positivismo. Elas
servem de comprovação, em concreto, do quanto afirmei, em abstrato, no prefácio.
1- Na História do Direito Processual Brasileiro, de Jônatas Luiz Moreira de
Paula (Editora Manole, Barueri, 2002), lê-se: “Os primeiros passos do positivismo no
Brasil se deram ainda no tempo do Império, com o comtismo como doutrina científica
através da Academia Militar, instituição cujos moldes era inspirada no pombalismo. A
posterior transformação em filosofia positivista foi propiciada pelo castilhismo rio-
grandense, porque mais se aproximava do ideário de Pombal”. (Página 316)
Terá o leitor notado o erro, crasso, de concordância em “era inspirado”’; trata-se,
aliás, de livro mal escrito na sua generalidade. Quanto ao fundo, é caricato: nele
distingue-se o positivismo do comtismo, que depois transforma-se em filosofia
positivista mercê do castilhismo, porque mais se aproximava do ideário do Marquês de
Pombal. Ora, o positivismo que ingressou no Brasil, pela escola militar (e não só),
correspondia ao comtismo; a filosofia positivista correspondia a esse mesmo comtismo;
2 Emílio Faguet asneirou sobre o Positivismo na Revista dos Dois Mundos, número de julho e agosto de
1895.
portanto, um não se transformou no outro: encarnavam ambos a mesma doutrina. O
castilhismo não transformou o comtismo em filosofia positivista: ele representou a
aplicação política do Positivismo, e isto porque Júlio de Castilhos aderiu-lhe, e não
porque mais se aproximasse do ideário de Pombal, que nada tem que ver,
absolutamente, com o castilhismo.
Parece piada alguém tratar como doutrinas diversas o comtismo, o positivismo
que ingressou na Escola Militar, a filosofia positivista; afirmar que o castilhismo
transformou o comtismo em filosofia positivista e que tal “transformação” deveu-se à
afinidade do castilhismo com a filosofia positivista.
Parece piada, porém não o é: é confusão e ignorância.
2- O mesmo livro, na página 317, exprime: “Expressão máxima da Filosofia
Positivista, foi a inserção dos dizeres “Ordem e Progresso” na bandeira nacional.
Como bem esclarece Manoel Bonfim, a ordem destinava [sic: faltou o “se”: destinava-
se] a combater tiranias, atacadas no regime de outrora. Com isso, concebia-se o dogma
da autoridade, cultuando-se o prestígio da autoridade”.
A inserção do lema Ordem e Progresso não correspondeu à expressão máxima
do Positivismo, e sim a um resultado da sua influência na organização da república
brasileira. Ordem e progresso correspondem a conceitos que, até hoje, vários escritores
brasileiros não entenderam e cujo conteúdo até ignoram: a ordem significa as condições
de existência das sociedades, os elementos que as compõem; o progresso significa estes
mesmos elementos em atividade. A ordem corresponde à estática social, e o progresso, à
dinâmica social; trata-se de conceitos científicos, que Comte aplicou aos fenômenos
sociais, equivalentes aos de anatomia e de fisiologia em biologia, aos de harmonia e de
melodia em música e que se verificam no estudo de qualquer fenômeno, ao
reconhecerem-se os elementos que o compõe e como eles atuam ao longo do tempo.
A ordem, portanto, não se destina a combater tiranias, nem, em decorrência dela,
concebia-se o dogma da autoridade, tampouco se cultuava o prestígio da autoridade. A
ordem, da bandeira nacional, não corresponde aos poderes políticos constituídos, à
autoridade governamental, à obediência política, `a manutenção do status quo
socialmente desigual e injusto. (Da mesma forma, o progresso jamais correspondeu ao
desenvolvimento capitalista; o progresso não é sinônimo de progresso capitalista).
Parece piada um livro profir tais asneiras. Porém não é piada: é ignorância.
3- O mesmo livro, nas páginas 318 e 319, contém isto: “E quanto à ordem,
também inserido [sic, por inserida] na bandeira nacional, ela só se mantinha mediante
sucessiva decretação [sic, por sucessivas decretações] de estados de sítio e a
intervenção nos estados considerados politicamente mais fracos”.
Neste passo, a ordem, que no seu sentido verdadeiro indica as condições
estáticas de existência das sociedades, de qualquer sociedade, figura, deturpadamente,
como a imposição reiterada do estado de sítio e da intervenção de certos estados
brasileiros sobre outros. Ou seja, o livro atribui à ordem significado liberticida e de
prepotência política, e converte-a em equivalente de opressão. Uma nota ao cabo da
frase remete à fonte: o Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro, nas
suas unidades V e VI, da autoria de Ricardo Vélez Rodriguez, relativas ao pensamento
político do Positivismo.
Já agora, não parece piada: é o resultado da desinformação e do anti-positivismo
peculiar à fonte em questão: as referidas unidades do tal Curso constitui um dos
expoentes do que pior já se produziu contra o Positivismo, no Brasil, nas décadas mais
recentes.
Assim é que, introduzida a falsidade em um livro, ela se propaga por imitação
dos autores que dela se servem acriticamente.
4- O mesmo livro, na sua página 317, excerta Antonio Carlos Wolkmer e
Manoel Bomfim. O primeiro refere-se ao “positivismo jurídico nacional”; o segundo, ao
Positivismo e, nominalmente, a Augusto Comte. Trata, o primeiro, do normativismo de
Kelsen e é explicito ao designa-lo por “positivismo jurídico”; o segundo, do Positivismo
e é explícito ao nominar-lhe o criador.
Ora, o autor do livro não apenas não os distingue, para esclarecimento do leitor,
como cita Bonfim e Wolkmer um em seguida ao outro, o que confunde o leitor, que
afinal, ou identifica o Positivismo com o normativismo, como se ambos
correspondessem ao mesmo, ou percebe que o autor incorreu nesta identificação,
absolutamente equivocada.
Parece piada, porém não o é: é exemplo de que o pessoal jurídico, os professores
e, por culpa deles, os alunos, confundem, grosseiramente, o Positivismo com o
normativismo, impropriamente designado de positivismo jurídico, ou seja, duas
doutrinas que entre si nada apresentam, absolutamente, em comum, salvo o nome, que,
na de Comte, corresponde à sua designação legítima, na de Kelsen, a alcunha imprópria.
Certa vez, aluno de Direito (em 1989, na Universidade Federal do Paraná), ouvi um
professor de Filosofia (da PUC PR) afirmar que o positivismo ingressou no Brasil pela
Escola Militar do Rio de Janeiro, na pessoa de Benjamin Constant: o positivismo
jurídico, quis ele dizer, o apedeuta !
5- No Manual de Sociologia, de Delson Ferreira (Editora Atlas, S. Paulo, 2ª
edição, de 2002), encontra-se esta asserção, relativa à lei dos três estados: “O último dos
estados da Teoria da História comteana seria o positivo [...] Esse estágio encontraria
sua expressão na sociedade capitalista moderna” (página 37).
Não: segundo a lei dos três estados relacionada com a atividade, esta é militar
conquistadora, depois, militar defensiva e, por fim, pacífica e industrial. Por industrial
entenda-se o prevalecimento da ação da Humanidade sobre o meio em que ela existe, e
não mais a expansão guerreira de certas populações sobre outras, ou a contenção de
umas pelas outras.
Indústria, em Comte, equivale à atividade do homem no meio social e natural.
Em momento algum, ele identificou o estado pacífico-industrial com o capitalismo de
que encarnou, ao contrário, crítico no que ele continha, ao seu tempo, de desregrado e
de negativo para os trabalhadores. Comte foi explícito em protestar a necessidade de se
organizar moralmente a indústria, no interesse social, o que envolvia o atendimento das
reivindicações proletárias, como foi explícito em censurar o egoísmo que regia o
capitalismo do seu tempo.
O Manual distorce o Positivismo, em sentido marxista.
6- O mesmo Manual, na página 39, afirma que o “positivismo aceitava como
natural a ordem de dominação burguesa em processo de consolidação [...] A liberdade
era válida e aceita nesse contexto até o ponto em que não se tornasse ameaça o desafio
à dominação burguesa, expressão final da ordem pública”. Tudo isto é mentira.
Em momento nenhum, Comte reputou natural a dominação burguesa; em
momento nenhum ele condicionou a liberdade às conveniências e aos interesses da
burguesia; em momento nenhum, considerou a “dominação burguesa” como expressão
final da ordem pública. Nenhuma destas três afirmações encontra-se no Positivismo, em
que se acham proposições a elas antagônicas, que correspondem a distorções
tipicamente marxistas e que omitem, por ignorância ou por deliberação, os aspectos da
doutrina que as desmentem.
Ao invés de justificar a “ordem burguesa”, o Positivismo contraria-a, na medida
em que a) proclama a função social da propriedade, b) subordina o capital a fins sociais,
c) recomenda regulação moral do uso da riqueza, em que sobre os proprietários pesem
deveres face à sociedade, d) reputa o possuidor como depositário da riqueza, por ser
empregada em benefício da coletividade, e) concebeu a responsabilidade social,
atualmente em voga, f) julga um dos problemas magnos da modernidade, a
incorporação social do proletariado. Nada disso visa a consolidar o papel econômico ou
social da burguesia.
Ao invés de aceitar a liberdade enquanto conviesse à burguesia, o Positivismo
consagra todas as liberdades, civis, políticas, de expressão, de opinião, de reunião, de
associação, de crítica, de imprensa, de pensamento, como condições de existência
social, independentemente da sua organização econômica e, desta arte, da dominação
burguesa ou de quem seja. O Positivismo é doutrina de liberdades, e não de liberdades
convenientes a certa classe social. Pretender em contrário, é mentir: o Manual mente.
7- Na introdução ao excelente Crenças e opiniões, de Lauro Sodré, o introdutor,
Geraldo Mártires Coelho, professor universitário, escreveu isto: “Tal era a concepção
da Religião da Humanidade professada por Littré, contrária à dos positivistas
ortodoxos”.
Ora, Emílio Littré, discípulo de Comte no Sistema de Filosofia Positiva,
dissentiu da religião da Humanidade, que, portanto, não professava e que rejeitou
abertamente, fato sabidíssimo na história do Positivismo. A concepção da religião da
Humanidade não era contrária à dos positivistas ortodoxos: era exatamente a que os
tornava ortodoxos, porque eles aceitavam-na, fato obviíssimo no Positivismo.
Novamente, parece piada que alguém escrevesse tais despautérios. Não é piada:
é ignorância.
8- Na mesma introdução, encontra-se esta passagem: “’[...] o Positivismo
valorizava o organismo militar como parte necessária ao ordenamento da sociedade
positiva [...]”.
O Positivismo jamais valorizou o organismo militar como parte necessária ao
ordenamento da sociedade positiva. Ao invés disto, segundo Comte, o destino histórico
dos exércitos, há séculos, vem sendo o de representarem elementos crescentemente
alheios ao funcionamento das sociedades e, portanto, cada vez menos necessários; ele
afirmou a conveniência da extinção dos exércitos e o caráter anômalo das guerras, na
civilização constitutivamente pacífica e industrial que é a da modernidade.
O asserto em causa contraria diretamente o que de mais explícito se contém no
Positivismo. Que um lente universitário escrevesse-o, não é piada: é ignorância.
9- Ainda a referida introdução, contém o seguinte período: “A sociologia
comteana, tendo como cenário de observação e como laboratório de estudo a França,
dominada pela poderosa burguesia da Monarquia de Julho, tenderá a espelhar,
profundamente, o imobilismo e o controle impostos à sociedade pelas forças que
controlavam o governo burguês e autoritário de Luis Felipe”.
A sociologia comteana teve como cenário de observação a história inteira da
Humanidade (a antigüidade, a idade média, a modernidade) e como fontes, livros e
concepções anteriores ao regime de Luis Felipe, que não interferiu, em nada, na
constituição dos capítulos do Sistema de Filosofia Positiva e do Sistema de Política
Positiva consagrados à concepção da estática e da dinâmica sociais, que, assim, em nada
espelham nem o imobilismo nem o controle impostos à sociedade pelo regime de julho.
O leitor já sabe: é ignorância.
10- Em O Espírito das Revoluções, de José Osvaldo de Meira Penna, lê-se
“Auguste Comte, um neurótico nos limites da paranóia” (pg. 501).
Ora, qualificar alguém como o fez aquele autor, corresponde a emitir um
diagnóstico de natureza psiquiátrica, de extrema gravidade e que ninguém,
sensatamente, permitir-se-ia formular se não fosse psiquiatra, médico ao menos, com
base em fatos cuidadosamente averigüados. O autor em causa não é psiquiatra, nem ao
menos médico; nas dezesseis páginas de bibliografia do seu livro, não figura nenhuma
obra de Augusto Comte nem nenhuma biografia sua: ele, portanto, não exerceu controlo
pessoal e direto nem sobre o pensamento de Comte, tampouco sobre a sua vida:
conhece-as de segunda mão, por “ouvir dizer”, o que não o inibiu de emitir aquele
conceito, demasiadamente grave para formular-se com a leviandade com que o fez.
Já isto, não é ignorância: é calúnia, é chingamento reles.
11- Em Para compreender a ciência (de várias autoras, Editora Espaço e
Tempo, Rio de Janeiro, 1992), enuncia-se que o “ideário positivista esteve, e talvez
ainda esteja, presente no Brasil: nas idéias que pregam [...] a necessidade dos
militares como um poder moderador,’[...] nas idéias que, portanto, acabam por
privilegiar a força sobre a lei. E acima de tudo, tais idéias estão representadas até hoje
no lema da bandeira brasileira – Ordem e Progresso”.
É absolutamente falso que o Positivismo pregue a necessidade dos militares
como poder moderador, que privilegie a força sobre a lei e que a tais idéias
correspondam o lema do pavilhão nacional.
Ao contrário disto, Comte é explícito e abundante em frisar que o poder
moderador deve ser moral (correspondente às convicções, às opiniões em circulação, às
idéias em agitação no meio social e político) e calhar à opinião pública, cuja liberdade
de expressão o Estado deve respeitar escrupulosamente, como garantia da ordem, sem
conferir a mais mínima função às forças armadas, em que reconhece significado cada
vez mais secundário no funcionamento das sociedades modernas. Da mesma forma, não
existe, em nenhuma formulação positivista, a priorização da força sobre a lei; tampouco
os conceitos de ordem e de progresso equivalem, absolutamente, nem à necessidade dos
militares como poder moderador, nem ao prevalecimento da força sobre a lei.
Isto não é piada: é mentira e distorção.
12- Por último (porém não por fim, porquanto seria fácil estender esta
amostragem3), em Cartas. Nísia Floresta e Auguste Comte (Editora Mulheres,
Florianópolis, 2002), a anotadora, Constância Lima Duarte, expendeu, na página 78, ao
referir-se ao conceito positivista de Humanidade, informa que ela “é formada apenas de
homens, uma vez que as mulheres são consideradas seres inferiores”.
Ora, a definição de Augusto Comte, da Humanidade é a de “conjunto contínuo
dos seres convergentes”, sem distinção entre homens e mulheres e sem a exclusão
destas, definição que se encontra mais desenvolvida no Catecismo Positivista, como o
“conjunto dos seres humanos, passados, futuros e presentes”, novamente sem distinção
entre homens e mulheres e sem a exclusão destas, que, ao contrário, reputa o
“representante mais perfeito” da Humanidade (Catecismo Positivista, edição do
Apostolado Positivista do Brasil, pg. 120) que, por sua vez, o Positivismo representa,
plasticamente, por uma mulher de trinta anos, com o seu filho aos braços (idem, pg.
145).
3 É indispensável completar este bestiário com certas passagens de Sérgio Buarque de Holanda, no seu
Raízes do Brasil e na História Geral da Civilização Brasileira.
O dogma fundamental do Positivismo ortodoxo, completo, consiste na idéia de
Humanidade, sucessora da idéia de divindade. A Humanidade, o Positivismo a
representa por uma mulher – mulher, note bem.
Talvez a anotadora esteja acostumada com certos discursos presidenciais em que
se distinguem “brasileiros e brasileiras”, ou com certos livros em inglês, em que se
emprega a fórmula “she/he”, para evidenciar-se que o autor refere-se aos homens e às
mulheres também, inovação norte-americana própria de tempos recentes e que inexistia
na França de Comte, em cujas obras inexiste a exclusividade masculina que se lhe
imputa.
Isto não é piada: é ignorância, muita, e cretinice, muita. Por esta e por outras,
aconselho à Editora Mulheres que recolha urgentemente a tiragem do livro em causa,
que a destrua e que o republique, expurgada das suas desastrosas introdução e notas.
Conclusões científicas, ou seja, fundamentadas na observação dos fatos: para, no
Brasil, escrever-se acerca do Positivismo e de Augusto Comte, basta uma de duas
condições, de fácil compreensão e pronto atendimento:
1-ª desconhecer-se um e outro, que estudá-los, a sério, é muito trabalhoso, ou
2ª- conhecê-los porcamente, que mais não é preciso.
Atendida qualquer uma destas exigências, ambas ao alcance de todo indivíduo,
notadamente dos que se dedicam à vida intelectual, a pessoa achar-se-á inteiramente
capacitada para deitar falação em aulas e para publicar livros, artigos, notas,
introduções, prefácios, cursos, ensaios e mais textos que enriquecerão o cabedal
brasileiro de lixo impresso.
Setembro de 2005.
II
Desinformação de velha data: a loucura de Augusto Comte
Curitiba, 24. IX.2003.
Em certos livros (como O Jardim das Aflições, de Olavo de Carvalho) encontra-
se a afirmação de que Augusto Comte, nos derradeiros anos da sua vida, teria padecido
de uma perturbação mental e sob ela teria morrido. Em Augusto Comte e o Positivismo,
de João Ribeiro Júnior, tal informação acha-se multiplicada e exagerada em “crises de
desequilíbrio mental que se repetirão até o final da sua vida”, decorrentes de um
“complexo relacionamento” do filósofo com os seus familiares, que ter-lhe-ia deixado
“marcas profundas”, sob a forma daquelas crises.
Tudo isto é falso. Augusto Comte não morreu louco nem sofreu nenhuma
espécie de alteração mental que justificasse tal asserto, cuja origem é perfeitamente
identificável. Da mesma forma, o seu relacionamento com os seus familiares não lhe
deixou marcas profundas que lhe provocassem crises demenciais que repetiram-se até o
cabo da sua existência.
A patranha da loucura de Augusto Comte resultou da recusa, da parte da sua
viúva, do seu testamento, em que legava ao seus discípulos o seu arquivo pessoal, que
compreendia os manuscritos das suas obras e a sua correspondência passiva, dentre a
qual incluíam-se as dezenas de cartas recebidas de Clotilde de Vaux, por quem A.
Comte apaixonou-se em 1845, e as cópias das que lhe enviou. Por disposição
testamentária, A. Comte determinava aos seus discípulos que publicassem a
correspondência enviada a Clotilde e a dela recebida, bem como o próprio testamento,
em que a viúva era depreciativamente referida, por apodos como “indigna esposa”.
Dez dias após o trânsito de Comte, Carolina Massin, sua viúva, promoveu a
venda, em leilão público, dos objetos da afeição do morto, das suas vestes e dos seus
livros, ao mesmo tempo em que o procurador dela anunciava a sua recusa do
testemento, como obra de um “ateu, louco e libertino”.
O que interessava à viúva era, obtendo a anulação do testamento, receber os
arquivos do filósofo e, segundo divulgou, selecionar o que publicar-se-ia e o que não.
Seu intuito velado era o de destruir o epistolário relacionado com Clotilde de Vaux.
Para evitar tal desfecho, os testamenteiros, encabeçados por Pedro Laffitte,
promoveram o depósito dos manuscritos em notário público.
Em 1870 a viúva intentou uma ação judicial contra eles, em que pleiteava a
publicação das obras de Comte segundo o seu exclusivo critério, a interdição aos
testamenteiros de publicarem o testamento, a supressão de uma sua adição
comprometedora do passado de Carolina e das expressões que reputava injuriosas à si, a
posse dos arquivos do filósofo e sobretudo a anulação integral do testamento. Justificou
este pedido alegando que A. Comte ensandecera nos últimos anos da sua existência e
que redigira aquele documento sob os efeitos da insanidade mental.
Desenvolvidos em fevereiro daquele ano, concerniram os debates judiciários às
particularidades propriamente jurídicas do testamento, à validade das suas
determinações e aos direitos de propriedade conferidos por lei à viúva.
Na defesa de Carolina, o seu advogado, Griolet, procurou demonstrar a alegada
insanidade mental de Comte, achincalhando certas das suas concepções contidas no
Sistema de Política Positiva (1851 a 1854) e na Síntese Subjetiva (1856). Referiu-se aos
“desatinos” do seu autor, verberou o amor dele por Clotilde como uma “paixão
extravagante”, invocou a “insanidade de espírito” de Comte, aludiu-lhe à “doença
mental”, à “imaginação doentia”, sob cuja ação teria ele redatado o seu testamento.
Em momento algum apontou sintomas da suposta loucura de Comte, nem lhe
indicou as manifestações, jamais diagnosticou-a do ponto de vista clínico nem alegou a
opinião de nenhum médico em abono da sua tese, que se limitou a alegar sem nada
demonstrar.
Para as suas alegações, reportou-se inúmeras vezes ao livro de Littré (“Augusto
Comte e a Filosofia Positiva) que Allou, o defensor dos testamenteiros, impugnou
também repetidamente, desvendando os móveis inconfessados da viúva: “Para a
senhora Comte, trata-se de dividir em duas partes a vida de seu marido: a primeira, em
que ela esteve associada à sua existência, razoável, digna, laboriosa, fecunda, brilhante
pelos seus grandes trabalhos; a segunda, em que Augusto Comte ficou sozinho
[abandonado por sua esposa] ,em que ele criou outras afeições, outras ternuras, e que ela
quer sacrificar e aniquilar. Para ela, estes últimos anos são os anos da desordem e da
demência”. (R.O., 198).
“O que espanta-me mais é este atrevimento de sustentar que lá onde o senhor
Littré abandona Comte [Littré dissentiu do Sistema de Política Positiva], a loucura e a
insensatez começam no pensador. É isto que o senhor Littré diz bem alto e é bem lá que
ele se aproxima da senhora Comte”. (R.O., 198).
“...para a senhora Comte, em um sentimento irritado e ciumento, trata-se de
conservar da existência do seu marido somente o tempo em que ela viveu junto dele e
de expulsar, como alucinações de demência, as afeições da última parte da sua vida
[Clotilde de Vaux]” (R.O., 198).
Referindo-se à Carolina: “Você compreende Augusto Comte com o senhor
Littré, com as vossas cóleras, com os vossos rancores, contra a lembrança de Clotilde de
Vaux” (R.O., 223).
Após reproduzir o testemunho escrito de 9 médicos, atestando a mais perfeita
sanidade mental de A. Comte, exclama aquele causídico: “Onde está então a loucura?
Senhores, meu adversário colocou-a no próprio testamento, no ato apenas, em nada
mais do que nele! Então como?! A vida foi sensata, a administração da pessoa e dos
bens inteligente, e o testamento sozinho bastará para atestar a demência?” (R.O., 226).
“O testamento de Augusto Comte, desligado do que é a sua doutrina, a sua fé , a
sua religião, não apresenta nada de estranho; ele regulamenta a impressão das suas
obras, deixa aos seus amigos o cuidado de pagar as suas dívidas e de continuar a pagar a
pensão à sua mulher [...] Ele organiza um grupo de treze executores testamentários. Ele
não quer na sua derradeira hora cerimônia católica. Não aprecio estes desafios ao
sentimento público, mas muitos outros quiseram assim também. Ele pediu que fosse
enterrado ao lado de Clotilde de Vaux. É ainda isso loucura?” (R. O., 229).
Denuncia novamente os motivos escusos do processo: “O que o senhor Comte
temia, aconteceu. A senhora Comte litigou não pela propriedade das obras do seu
marido, mas para a destruição e a supressão dos livros e dos escritos que não convém ao
senhor Littré” (R. O., 381).
“Onde está a relação entre o testamento, em que o senhor Comte encarrega os
seus executores testamentários de publicar as suas obras, e a desordem da sua
inteligência?” (R. O., 382).
“ Quando o senhor Comte diz: temo uma espécie de aliança entre a senhora
Comte e o senhor Littré; quero que o meu pensamento chegue inteiro ao exterior, quero
que a minha correspondência seja publicada e encarrego os meus testamenteiros de
levar a cabo a minha obra – não estaria lúcido quando o diz? Seu pensamento é
claríssimo e é nele próprio que deveis procurar o que constitui a monomania; ainda uma
vez, é isto uma idéia de louco?” (R. O., 382).
Referindo-se o promotor público, d’Herbelot, à concepção de Augusto Comte,
de uma religião atéia, sem sobrenatural, “puramente natural, normal, racional, científica,
humana”, sem mistérios, sem revelação, sem vontade sobrenatural, indaga-se: “É isto
uma loucura? Não o creio” ( R.O., 399). Recorda a seguir que o próprio Littré aceitara,
de início, a religião positivista: “...pode-se dizer que um sistema filosófico ou religioso
diante do qual o senhor Littré terá, fosse por um só instante, inclinado o seu espírito
poderoso e tão seguro, pode bem ser um erro, mas não seria uma loucura” (R. O., 399).
Quanto ao testamento, assere que nele “não se encontra traço, índice, prova de
loucura” (R. O., 401); ele “não é o de um louco” (R. O., 402).
Em 25 de fevereiro sentenciou-se a causa:
“Quanto ao mérito:
Considerando que a viúva Comte ataca o testamento no seu conjunto,
sustentando que ele porta a marca de insanidade de espírito do seu autor,
Considerando que as disposições de Augusto Comte são conformes aos
pensamentos que ocuparam os últimos quinze anos da sua vida,
Que, ao criticar o testamento do seu marido, a viúva Comte quer, na realidade,
atingir as doutrinas que foram a última forma do pensamento do filósofo;
Considerando que a viúva Comte limita-se a sublinhar as contradições entre as
disposições que contém o testamento e os princípios professados em outras épocas da
sua vida pelo testador;
Considerando que esta demonstração não basta para revogar um ato
testamentário;
Que, sem examinar o alcance da obra, a natureza das idéias emitidas por Comte,
ou a forma mística do estilo, é certo que o testamento porta a marca de uma vontade
inteira e livre;
[...]
Que não cabe então anular em seu conjunto o testamento.”
Determinando a supressão da quarta adição testamentária, relativa à vida pré-
matrimonial e matrimonial de Carolina, e a das expressões injuriosas concernentes a ela,
o tribunal julgou-a “mal fundamentada” nas suas demais pretensões, que recusou,
ordenando, ao mesmo tempo, a entrega dos arquivos de Comte aos seus testamenteiros.
Vitoriosa em aspectos secundários da sua demanda, fracassou a viúva no que lhe
era essencial, a anulação do testamento, porque o motivo, aliás único, invocado para tal,
a loucura do testador, não se demonstrara.
Analisemos os testemunhos presentes na bibliografia concernente a Augusto
Comte, relativas aos seu estado mental.
Em sua alentada obra, Littré foi o primeiro a cogitar de uma alteração psíquica
do filósofo, como causa da sua mudança de método, do objetivo para o subjetivo (que,
aliás, ele não compreendeu).
Reproduziu Littré uma epístola de Comte a João Stuart Mill, de 27 de junho de
1845, em que o missivista alude a uma sua “grave doença nervosa”, caracterizada,
segundo o próprio Comte, por “insônias teimosas, com melancolia doce, mas intensa, e
opressão profunda, por muito tempo mesclada a uma profunda fraqueza”. Na data da
redação da carta, o seu autor achava-se já “em plena convalescença”.
A insônia corresponde a um fenômeno comuníssimo e normalíssimo, capaz de
provocar abatimento físico e moral, fraqueza do corpo e melancolia do espírito. Nada
disto basta para configurar uma loucura qualquer. Com exagero Comte adjetivou-a de
doença nervosa, e grave, sem supor o uso maligno que desta adjetivação far-se-ia em
décadas posteriores.
O próprio Comte identifica a origem da sua falta de sono: a “primeira retomada”
da sua composição filosófica. É compreensível que o esforço de meditação, a
concentração intelectual, a preocupação com a tarefa por empreender, lhe provocassem
algum nervosismo e este, alguma insônia.
O segundo testemunho corresponde ao de quem teria todo o interesse em
achincalhar a memória de Comte e a respeitabilidade da sua obra: o padre jesuíta
Hermano Gruber, autor de “Augusto Comte. Sua vida, sua doutrina”, publicada em
tradução francesa em 1892.
Já o prefaciador do livro, Leão Ollé-Laprune, assevera que em Comte há
“singularidades, não é à loucura que se deve atribuí-las, mas simplesmente a que, mais
do que outros filósofos, ele quis traduzir a sua doutrina em seus atos”(Gruber, XII).
Relatando o processo judicial, diz o jesuíta: “Mais tarde, a senhora Comte, com
o apoio e sob o conselho de Littré, promoveu um processo para obter a resilição do
testamento, sob o pretexto de que o testador estava louco. Para ela, tratava-se, antes de
tudo, de apossar-se da herança literária do seu marido. A todo custo ela queria impedir
que os escritos relativos a Clotilde, sua rival, e certos documentos penosos para si
própria, caíssem em mãos dos positivistas que, sem dúvida, não teriam deixado de
publicá-los.” (pág. 324).
“Como era de prever, o tribunal rejeitou a acusação de loucura” (pág. 324).
E denuncia a origem do mito da insanidade de Comte:
“É a partir deste momento que, mesmo nos círculos dos livre-pensadores, a
opinião acreditada foi a de que, durante o segundo período da sua vida (depois de 1845),
Augusto Comte fora atingido de alienação mental” (pág. 326).
De Jorge Dumas, professor de Psicologia na Universidade de Paris, provém o
testemunho seguinte, lançado reiteradas vezes no seu “Psicologia de dois messias
positivistas. Saint-Simon e Augusto Comte”.
Assim exprime-se, aludindo ao processo judicial: “A senhora Comte reclamava a
anulação integral do testamento, sob o pretexto de que o testador estava louco e a
propriedade dos papéis e manuscritos; ela escolheria, dizia, com o concurso de Littré, os
que mereciam ser publicados; na realidade, ela queria sobretudo impedir a publicação
do testamento injurioso para ela e da correspondência amorosa do seu marido com
Clotilde de Vaux.
O seu advogado, Griolet, invocou a loucura com argumentos extraídos, na maior
parte, do livro de Littré [...] “
Quanto ao papel dos defensores dos testamenteiros e do procurador imperial:
“Um e outro demonstraram sem dificuldade que o testamento incriminado não
testemunhava nenhuma tara mental.
O tribunal, decidindo neste sentido, rejeita a acusação de loucura, declara o
testamento válido no que não lesava os direitos da senhora Comte e fez restituir aos
executores testamentários os manuscritos do seu mestre” (página 125).
“Malgrado este julgamento, difundiu-se a partir de então, a crença de que, na
última parte da sua vida, Augusto Comte tinha sido acometido de alienação mental.
[...]
Hoje é uma opinião corrente a de que Augusto Comte morreu louco” (página
126).
Após analisar detidamente certas concepções polêmicas de Comte, assevera:
“Não hesito então em dizer que ele não deu sinal de loucura nem na sua fé messiânica,
nem em seu orgulho, nem nas concepções religiosas às quais chegou” (página 251).
Ainda: “Não se pode dizer que Augusto Comte tenha sido louco após 1826” e,
considerando as particularidades do temperamento dele, remata: “[...] mas nada disto é
loucura” (página 253).
Quanto à origem da alegada perturbação psíquica de Comte: “Eu não quis, neste
momento, senão destruir a lenda, tão levianamente forjada por Littré, de uma crise
nervosa [em Comte] que trouxe subitamente a incoerência e o erro neste admirável
pensamento [o sistema positivista].
As diversas crises nervosas que sucederam-se em Augusto Comte não tiveram,
então, sobre o seu pensamento abstrato, influência perturbadora; o sistema positivista
não foi jamais falsificado nem modificado por estas causas mórbidas. Se se quer
compreender o estado mental particularíssimo do filósofo, deve-se renunciar
resolutamente a esta psicologia fácil que apela a crises mentais, a revoluções súbitas,
quando conviria, ao contrário, analisar as razões profundas de um desenvolvimento
contínuo”( página 174/5).
O terceiro testemunho provém de oito médicos que, tendo privado com o
filósofo, acompanharam-lhe os últimos tempos e cuja sanidade proclamam: “Os
médicos abaixo-assinados: Ricardo Congreve, de Londres, Audiffrent, de Marselha,
Bazalgette, de Paris, Segond, agregado na Faculdade de Medicina, Sémerie, ex-interno
do asilo imperial de alienados de Charenton, Carré, de Triel (Seine-et-Oise), Delbet, de
Ferté-Gaucher (Seine-et-Marne), Sauria, de São Lotão (Jura), Robinet, de Paris, todos
tendo conhecido Augusto Comte durante os últimos anos da sua vida, de 1850 a 1857, e
tendo-o visto durante este tempo, uns diariamente e outros por intervalos, certificam que
jamais perceberam nele, em suas conversações, em seus atos nem nos seus escritos
quaisquer, o menor traço de desarranjo intelectual e moral, de alienação mental ou de
monomania de qualquer natureza que fosse, que jamais eles observaram nas pessoas que
o cercavam nenhuma notoriedade nem a menor suspeita a este respeito e que, ao
contrário, Augusto Comte pareceu-lhes sempre como usufruíndo e tendo usufruído, até
o último momento da sua vida (sem falar da sua genialidade incontestável) da mais
completa lucidez, da mais extensa e mais bem ordenada memória, do mais sadio
julgamento, da mais direita razão, da calma mais constante, da mais firme perseverança
e do mais generoso desinteresse, que são os caracteres intelectuais e morais mais
opostos aos da loucura” (Dumas, página 155).
O quarto testemunho decorre do também esculápio Semérie, segundo quem, na
época em causa, Augusto Comte desfrutava de uma inteligência completamente senhora
de si própria (R.O., 226).
O quinto testemunho pertence a Jorge Lewes, que, tendo recusado certos
aspectos do Positivismo, repelia também a pretendida loucura do filósofo: “Pode-se
rejeitar o Sistema de Política Positiva, mas nela ver a prova de um cérebro perturbado
pela doença, é um erro tão grosseiro quanto todos quantos se acham nesta obra”
(Dumas, 173).
O sexto testemunho é o meu próprio, que li no original a totalidade da obra de
Augusto Comte, inclusivamente os oito volumes do seu extenso epistolário, que abrange
a íntegra das suas cartas recolhidas, a partir de 1814 até 1º de setembro de 1857, quatro
dias antes do seu trânsito.
Em nenhuma das suas obras, tampouco em nenhuma das suas missivas
pertencentes aos seus últimos anos de vida, encontrei o mais mínimo indício de
desordem mental, de ausência de senso da realidade, de incoerência lógica, da presença
de idéias fixas, de obsessões, de qualquer elemento mórbido do ponto de vista da sua
afetividade, da sua inteligência ou da sua atividade. Encontrei sempre, ao contrário, um
autor perfeitamente dentro da mais completa normalidade mental, observação
particularmente visível nas suas cartas, que permitem acompanhar-lhe quase
diariamente a existência privada e os pensamentos de ordem pessoal e de cariz
doutrinário. A par de um estilo elegantíssimo, verdadeiramente modelar, o seu acervo
epistolográfico revela, até a derradeira carta, um homem cada vez mais senhor do seu
sistema e cada vez mais procurado pelos seus discípulos, que, confiantes no seu critério,
consultavam-no quanto a decisões pessoais ou à hexegese da doutrina, o que não
aconteceria se se tratasse de um demente.
Para mais destes testemunhos, jamais se comprovou a alegada insanidade mental
de A.Comte. Jamais nenhum médico, nenhum observador, nenhum memorialista,
nenhum contemporâneo seu, nenhum dos seus inimigos, nenhum dos seus adeptos,
nenhum dos indiferentes à sua filosofia, em suma, jamais ninguém, fosse quem fosse,
apontou nenhum indício, nenhum sintoma, nenhuma manifestação da tal loucura. Nunca
ninguém jamais a diagnosticou, sequer hipoteticamente.
Augusto Comte não morreu louco nem a sua obra decorre de qualquer sua
alteração mental mórbida. Ao contrário, ele produziu-a dentro da mais completa lucidez
e da sua genialidade própria. A sua pretensa loucura não passa de uma balela insinuada
com argumentos, aliás, risíveis, por Littré, explorada pela sua viúva, no intuito de
suprimir o seu epistolário com Clotilde de Vaux e o seu próprio testamento, adotada ao
tempo pelos ingênuos e pelos inimigos do Positivismo e repetida ainda hoje pelos mal
informados.
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. É realizações: São Paulo.1999.
DUMAS, George. Psychologie de deux messies positivistes. Saint-Simon et Auguste
Comte. Paris, 1905.
GRUBER, Hermann. Auguste Comte. Sa vie, as doctrine. Paris, 1892.
LITTRÉ, Emilie. Auguste Comte et la philosophie positive. Paris, 1877.
REVUE OCCIDENTALE, tomo XI, Paris, 1895.
RIBEIRO JÚNIOR, João. Augusto Comte e o Positivismo. Campinas: Edicamp, 2003.
III
Desinformação de direita: o autoritarismo positivista. Getúlio Vargas positivista?
1964 positivista?
A segunda desinformação deturpa completamente o significado do pensamento
político do Positivismo, mediante o expediente simplíssimo da repetição de uma
fórmula lingüística fora do seu contexto original e desacompanhada de qualquer
explicação que a elucide: a ditadura republicana.
De larga aceitação nos meios castrense e civil nos fins do século XIX e até
meados do seguinte, o Positivismo, em sua vertente política, formula o conceito de
“ditadura republicana”, que a bibliografia brasileira, com certa freqüência, associa a
totalitarismo, a despotismo, a tirania. É corriqueira, nos historiadores, nos sociólogos,
nos articulistas, a asserção de que os positivistas aspiravam a uma ditadura republicana,
asserção que os autores desacompanham da mais mínima explicação do seu significado,
por ignorância ou por consciente má-fé, o que sugere ao leitor, de modo sub-reptício,
aquela equivocada associação e, de conseqüência, ojeriza pelo Positivismo.
Ora, nos meados do século XIX, quando Comte produziu a sua obra, o termo
“ditadura” não apresentava o cariz depreciativo e odioso de que passou a revestir-se
depois. Ao tempo, ninguém o vinculava com regimes liberticidas, com a supressão das
liberdades de expressão, de imprensa, de reunião, de protesto, de parede. Ao contrário,
ele achava-se vinculado sobretudo à ditadura romana, regime em que alguém ascendia a
uma magistratura poderosa pela qual enfrentasse uma situação socialmente excepcional,
que requeria uma excepcional e transitória concentração de autoridade em quem a
exercia. Longe de encarnar um déspota, o ditador romano correspondia a uma
autoridade consentida e legítima.
Comte não adotou o vocábulo ditadura como equivalente de totalitarismo porque
não foi este o seu intuito e porque, se o tivesse feito, não teria sido entendido assim, não
o poderia ter sido, dado que então a sua acepção não era esta. É claro que ele não
poderia ter adivinhado que, com o andar dos tempos, o significado desta palavra
cambiaria para o atual. Com efeito, segundo Pedro Laffitte, sucessor de Comte, ele “não
dá de modo nenhum à palavra ditadura o sentido de poder pessoal absoluto que se lhe
atribui” (LACERDA, 2003: 29).
O “dictare” latino (ato de enunciar palavras que alguém escreve), empregado em
sentido figurado, originou o verbo ditar, ato de prescrever, ordenar, impor algum
mandamento. Ditador é quem dita e ditadura é a ação de ditar, independentemente do
regime político e da forma governativa correspondentes: são igualmente ditaduras os
governos presidencialistas, parlamentaristas, republicanos, monárquicos, despóticos,
fascistas, democráticos e quaisquer outros. Tenha o nome que tiver, consista em um
único indivíduo ou em uma assembléia, esteja ou não distribuído por entre os chamados
poderes legislativo e executivo, há, sempre, um órgão que emite determinações de
cumprimento obrigatório por toda a sociedade, ou seja, em todos há uma fonte do
ordenamento jurídico. Tal fonte encarna o ditador e portanto todo governo é ditadura e
todo governante é ditador, ou seja, no vocabulário próprio de Comte, ditadura é
sinônimo de governo e ditador, de governante.
Neste sentido figuram o substantivo e o adjetivo ao longo de toda a obra de A.
Comte e na dos seus discípulos, como, por exemplo, no relatório do presidente da
Sociedade Positivista de Manchester, C. G. Higginson, relativo às suas atividades de
1890: “Chamo a atenção dos nossos monarquistas ingleses para a instabilidade da
monarquia hereditária e convido-os a cessar de prodigalizar as suas loas a monarcas
que reinam porém não governam e, ao contrário, prestar justiça aos verdadeiros
ditadores ingleses, os nossos primeiros-ministros, que governam porém não reinam”
(Revista Ocidental, vol. 24, Paris, 1890).
Carlos Jeanolle, antigo presidente da Sociedade Positivista, fundada pelo próprio
Comte, assim explica: “O ditador, no seu pensamento [de Comte] não é o monstro
imaginário, de que os nossos bons democratas falam com tanto horror, espécie de
bicho-papão que pode fazer tudo quanto lhe apraz e dispor, à discrição, da fortuna e
da vida dos cidadãos aterrorizados. Inexiste, na história, nenhum exemplo bem
autêntico de semelhante onipotência, mesmo nos piores imperadores romanos.4
Augusto Comte chama de ditador todo chefe político que, tendo uma função
determinada que cumprir, sob condições bem definidas e plenamente efetivas de
responsabilidade, possui toda a iniciativa com que cumprir a sua tarefa especial.
Parece evidente, com efeito, que aquele que tem a responsabilidade deve ter a iniciativa
e, reciprocamente, que aquele que tem a iniciativa deve suportar a responsabilidade
correspondente. O problema do governo consiste, no fundo, em conciliar a
responsabilidade com a iniciativa”.5
Dado que a palavra ditadura assumiu, após Augusto Comte, conotação
liberticida e odiosa, Jeanolle prossegue: “o que Augusto Comte chamava de ditadura
chamaremos, por consideração a preconceitos irracionais porém numerosos, de poder
pessoal responsável”.6
4 Carlos Jeanolle escreveu-o em 1891. Teria excetuado José Stalin, se lhe conhecera o regime, e o de
outros tiranos comunistas. 5 Revista Ocidental, número 24, 1891, página 182.
6 Idem, página 184.
Também positivista ortodoxo, o brasileiro Alfredo Severo dos Santos Pereira
propôs a substituição de ditadura por empireocracia, termo que “melhor designa a
preponderância do governo prático sobre o teórico”.7
Contudo, nem toda ditadura é republicana, nem toda ditadura corresponde à
concepção positivista. A ditadura republicana significa um governo 1) republicano e não
monárquico, 2) uma república presidencialista e não parlamentarista, 3) um
presidencialismo temporal e não espiritual.
Do primeiro ítem decorre a substituição das monarquias, forma de governo de
base teológica (pois o monarca representa a divindade) e resquício do regime de castas
(pois a família real encarna uma casta política); do segundo resulta a abolição das
assembléias parlamentares, e o derradeiro justifica o prevalecimento de todas as
liberdades públicas.
Na ditadura republicana não há câmara parlamentar, porém tampouco há
despotismo: ao invés de as leis fazerem-se em assembléias, fazem-se mediante a
participação de toda a sociedade: apresenta o ditador o projeto de lei à sociedade em
geral, que manifesta-se livremente, protestando contra ele, censurando-o, emendando-o,
apoiando-o, enaltecendo-o. Após três meses, o ditador avalia as manifestações e retira,
reforma ou mantém o projeto, tendo em vista o bem público. Em qualquer dos casos,
submete a sua decisão à maioria dos votos do eleitorado das capitais. Aprovado o
projeto, converte-se em lei. Há, pois, uma democracia direta, muito mais ampla do que a
dos regimes parlamentares.
Uma câmara de eleição popular elaborará a lei de meios e fiscalizará a gestão
orçamentária do governo.
Característica fundamental da ditadura republicana, sem a qual não há
verdadeira república, ainda menos a positivista, traduz-se na instauração, na palavra do
positivista ortodoxo Teixeira Mendes, “do mais vasto sistema de liberdades públicas a
que jamais se possa aspirar” (LACERDA, 2003:73), mediante a separação dos poderes
temporal e espiritual. Ou seja, o Estado administra o bem público, sem a mais mínima
compressão das liberdades de expressão, de imprensa e de reunião. E mais as de
associação, de ensino, de sindicalização, de parede e mesmo de insurreição, se
7 Alfredo Severo dos Santos Pereira, “O conhecimento do homem”, Rio de Janeiro, 1938.
necessário! A ditadura republicana respeita-as, não as comprime e não interfere em
questões de consciência, pertinentes à esfera do pensamento, em qualquer das suas
formas.
Por isto “a Ditadura Republicana não originou nenhuma forma de autoritarismo,
muito pelo contrário, combateu, combate e combaterá sempre a todas elas, venham de
onde vierem, da direita e da esquerda”, assevera o positivista ortodoxo Luis Carlos
Corrêa da Costa (LACERDA, 2003: 32).
Segundo ele, “nem a Ditadura Republicana, nem o Positivismo, nem Augusto
Comte têm nada a ver com o autoritarismo, e aqueles que responsabilizam o
Positivismo pelos arreganhos autoritários que abalaram o mundo, o fazem por
ignorância ou má-fé” (idem).
Augusto Comte: “uma plena liberdade de exposição e mesmo de discussão é
indispensável como garantia permanente contra a degeneração de uma ditadura
empírica em uma tirania retrógrada” , “como garantia da ordem” (itálicos meus)
(LACERDA, 2003: 84/5).
Longe de a ordem positivista equivaler à “ordem” policialesca, ao Estado
autoritário e repressivo, no Positivismo ela identifica-se com todas as liberdades.
Apesar disto tudo, criou-se no Brasil o mito de que o Positivismo apresenta
índole autoritária, de que equivale a um quase-totalitarismo e de que os regimes de
Getúlio Vargas e de 1964 foram positivistas, como aplicações nacionais dos preceitos
positivistas. Em nada disto há o menor fundamento.
2 Se Getúlio tivesse sido positivista de fato, jamais ter-se-ia convertido em tirano
em 1937, jamais teria, sobretudo, criado um departamento de propaganda e censura para
benefício seu, em que o temporal assumiu funções espirituais ao mesmo tempo em que
coibiu as liberdades tão caras ao Positivismo.
Assim exprime-se o positivista gaúcho Mozart Pereira Soares, aludindo a
Getúlio: “Muitos, equivocadamente, arrolam-no como positivista ou, no mínimo,
simpatizante. A verdade é que nem isso ele o foi. [...] Foi um permanente
revolucionário, opondo-se às diretrizes de Comte. [...] Com ele, a influência política do
Positivismo se extingue no Estado” (SOARES, 1999: 176).
Atente-se: com ele, a influência política do Positivismo não se prolonga, não se
mantém, não se afirma, porém, ao contrário, extingue-se! Desta extinção teria resultado
que o Estado Novo correspondeu à aplicação, em âmbito nacional, da política
positivista? É evidente que não.
Outro positivista, ortodoxo, Rubem Descartes de Garcia Paula, assim se
exprime, referindo-se ao Estado Novo: “Regime que o velho Getúlio e seus escribas
insinuavam como sendo inspirado no Castilhismo e, conseqüentemente, no Positivismo.
(Bobagens, ainda hoje repetidas por outros “desconhecedores da história” e que não
passam de patranhas) [...] sobretudo a partir de 1937, quando assumiu a ditadura
fascista-integralista, Getúlio renegou, esqueceu-se do que sabia do Positivismo e das
ligações que tivera com a obra de Castilhos.” (itálicos meus) (PAULA: 1982:68).
Exceto a sua obra trabalhista, esta sim, de inspiração positivista, devida à
influência do positivista Lindolfo Collor, o estado novo “não passou do ramerrão
narcisista; ora obscurecido pela opressão, ora sacudido pela violência da repressão! O
que não impedia seus partidários – como ainda hoje repetem tardios escribas- de
dizerem que a ditadura estado-novista se inspirava ou equivalia à Ditadura Republicana.
O que, conforme com o acima exposto, é incontestavelmente falso!”. (idem, 69).
No governo de Getúlio Vargas, instaurado em 1930, havia três positivistas: 1) o
gen. Manoel Rabelo, interventor em S. Paulo até 1932 e que, em 1935, em nome da
maioria do exército, recusou o aumento de soldo que Getúlio oferecera à corporação, 2)
Lindolfo Collor, que, Ministro do Trabalho, abandonou a pasta ao, em 1932,
empastelar-se o “Diário Carioca”, em atentado à liberdade de imprensa congeminada
com o beneplácito presidencial, e 3) o gen. Tasso Fragoso, que demitiu-se de Chefe do
Estado Maior do Exército ao receber ordem presidencial de bombardear a cidade de S.
Paulo. Não há memória de que qualquer dos três haja sido o mentor, o autor ou o
apoiador de nenhum ato liberticida praticado por Getúlio.
Tendo a revolução de 1930 revogado a constituição vigente, despontou o
movimento pela reconstitucionalização do país, do qual foi um dos cabeças o positivista
general Lauro Sodré. Pela restauração de uma Carta Maior no Brasil, pegou em armas
contra Getúlio, em 1932, ninguém menos do que o positivista Borges de Medeiros,
sucessor de Júlio de Castilhos e de quem Getúlio fora secretário de Estado. Este reagiu
prendendo-o e desterrando-o em Pernambuco por dois anos.
Se a estes positivistas animassem inclinações autoritárias, teriam apoiado a
ausência de uma constituição, ao invés de pugnarem pela sua instituição, cujo efeito foi
o de regulamentar os poderes presidenciais, tornando-os, de arbitrários e ilimitados, em
circunscritos e legais, o que correspondia exatamente aos seus propósitos, ou seja, aos
de evitar o despotismo.
Mais: durante o Estado Novo não havia nenhum positivista nos quadros de
confiança do regime, ou seja, dentre o pessoal propriamente político, responsável pela
orientação do regime. Havia, ao contrário, um anti-positivista militante, o general Góes
Monteiro, que anelava pelo afastamento, do Exército, da mentalidade pacifista e
libertária do Positivismo e que, não por acaso, foi um dos mentores da instauração da
tirania em 1937.
Logo após o término da insurreição constitucionalista de São Paulo, deflagrada
em 9 de julho de 1932, o positivista ortodoxo Amaro da Silveira proclamou, em
opúsculo, a necessidade das seguintes “inadiáveis providências”:
1ª) Urge restabelecer legalmente a organização republicana, decretando desde
logo, para esse fim, as medidas indispensáveis ao imediato restabelecimento da
Constituição da República, promulgada em 24 de Fevereiro de 1891, como base de
todo o aperfeiçoamento futuro de nossa organização política;
2ª) Urge decretar também a sumária derrogação de todas as leis e atos públicos
violadores do regime republicano e federativo, consagrado por essa Constituição;
3ª) Urge, finalmente, decretar uma anistia ampla a vencidos e vencedores, sem
distinção das causas que abraçaram e das classes e posições que ocuparam, em
relação aos diversos abalos revolucionários, verificados a partir de 1922”.
Ele exortava à reposição da constituição de 1891 que, de marcante inspiração
positivista, assegurava as liberdades públicas, face ao regime que a abolira; exortava
mais, à supressão das medidas anti-republicanas adotadas pelo governo (a exemplo da
instituição do ensino religioso obrigatório, em 1931, violador da liberdade de
consciência, ao que, aliás, reagiram prontamente os positivistas Agostinho Gomes de
Castro e Jurandir de Castro Pires Ferreira, mediante a organização da Cruzada
Republicana, que recolheu milhares de adesões pelo país afora); exortava, por fim, à
pacificação por meio do perdão geral.
Ora, se o regime de então, o de Getúlio Vargas, encarnasse a ditadura
republicana em âmbito nacional, Amaro da Silveira não exortaria à sua modificação,
mediante a restauração da legalidade interrompida com a abolição, em 1930, da carta de
1891; tampouco advogaria a sumária derrogação de todas as leis e atos que haviam
infringido a república federativa, instituída por aquele diploma. Ele, ao contrário, calar-
se-ia ou aplaudiria o regime, que, ao invés disto, tacitamente desaprovou com a sua
exortação. Desaprovou-o, como positivista, porque o regime de Getúlio, antes de 1937,
não representou, de longe sequer, a ditadura republicana, como também não a
representou com o Estado Novo a partir daquele ano.
Referindo-se ao Estado Novo, assim se exprime o positivista Jefferson de
Lemos: “Infelizmente, uma revolução que sobreveio em 1930 [...] aboliu a Constituição
de 91, impondo uma ditadura ao mesmo tempo revolucionária e retrógrada, pois que
infringia gravemente as liberdades públicas, e além de tudo, sob uma inspiração exótica
fascista, que enfeixava nas mãos do Chefe de Estado todos os poderes [...] A nossa
continuidade histórica foi assim quebrada.”
Atente-se: ele qualifica o regime de Getúlio de ditadura revolucionária e
retrógrada, apreciação pejorativa que certamente não formularia se o Estado Novo
representasse o Positivismo ou o Castilhismo em âmbito nacional. Longe de naquele
regime vislumbrar qualquer influência positivista, nela enxerga uma inspiração fascista,
que, ao contrário da ditadura republicana, “enfeixava nas mãos do Chefe de Estado
todos os poderes”, o que rompeu a continuidade histórica ao invés de afirmá-la, ou seja,
à carta de 1891 - de marcada presença positivista no que tange às liberdades –
substituiu-se uma realidade política liberticida e portanto anti-positivista.
Prossegue Lemos: “O caminho a seguir neste momento [escrevia em 1946], afim
de restabelecer a nossa continuidade histórica, está assim indicado: manter a
concentração do poder central sem impedir a autonomia dos Estados; República
federativa e presidencialista, nos moldes da constituição de 1891; e, principalmente,
manter integralmente o art. 72 desta Constituição, que atende a todas as liberdades
públicas e ainda o seu artigo final, que a fecha com chave de ouro, pois que deixava
margem a todas as medidas que um governo progressista desejasse empreender no
sentido do bem geral, sem infringir seus princípios fundamentais: “A especificação das
garantias e direitos expressos na Constituição, não exclui outras garantias e direitos
não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos
princípios que consigna” (negritos de Lemos).
Em 1945, a propósito da eleição presidencial, disputada pelo gen. Eurico Gaspar
Dutra, candidato getulista, e pelo oposicionista brigadeiro Eduardo Gomes, o positivista
ortodoxo Carlos Torres Gonçalves, antigo quadro de confiança de Borges de Medeiros,
assim escreveu: “Entre os concorrentes admissíveis, nossa preferência tem de ser pelo
que professe maior número de postulados republicanos: [entre os quais] mais respeito
pelas liberdades civis e políticas.
Neste momento, dos dois candidatos, um sendo corresponsável do regime
liberticida estabelecido em 1937, está excluído pelos princípios republicanos.
O outro, dando-nos a esperança da restauração de nossas tradições de
liberdade [...] é o que desperta a nossa simpatia” (itálicos nossos).
Leia-se “O Estado Nacional”, de Francisco Campos, autor da constituição de
1937: não se encontra ali nenhum traço do positivismo. Consulte-se a História do Brasil,
de Pedro Calmon, no capítulo referente às linhas doutrinárias do Estado Novo:
encontrar-se-ão alusões ao fascismo, ao corporativismo italiano, ao paternalismo, à sua
origem polaca, porém nenhuma referência ao Positivismo nem à ditadura republicana.
Ler-se-á, ao invés, esta passagem lapidar, concernente a Getúlio: “Quem se desse à arte
de interpretar-lhe, à luz da biografia, a conduta reservada e hábil, acharia o seu segredo
no castilhismo rio-grandense, sem a sistemática positivista”.
Sem a sistemática positivista! Getúlio positivista!? O Estado Novo como
expressão nacional do Positivismo, da Ditadura Republicana ou do Castilhismo ?!
Quem o afirma são os ignorantes do Positivismo e os seus caluniadores, a despeito da
palavra expressa dos seus adeptos e dos intérpretes isentos. Por que os primeiros
exprimiriam a verdade dos fatos mais do que os segundos ou os terceiros ? Por que as
afirmações daqueles gozariam de mais autoridade do que as negações destes?
Instaurado o Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, quatro dias depois o
positivista confesso Antonio Reis Carvalho escrevia: “Os republicanos, os verdadeiros
republicanos, os republicanos sociocratas não podem estar plenamente satisfeitos,
porque o Presidente Vargas perdeu mais uma ocasião oportuna de instituir em toda a
sua plenitude a ditadura republicana”. Ele não se rejubila pela adoção do regime
positivista, senão, ao contrário lastima que ele não fosse instaurado. “Diante dos boatos
alarmantes e das manifestações ostensivas dos fascistas verdes, os chamados
integralistas [...] o que esperavam aqueles republicanos era o péssimo e foram
surpreendidos apenas pelo mau, ou, talvez, com mais justiça, pelo sofrível, e que é bem
melhor do que tudo que se anunciava e do que tudo que existia”.8
Em 1938, Reis Carvalho, positivista confesso, missivou ao então presidente
Getúlio Vargas, com data de 13 de março. Na sua carta, dizia-lhe: “Para evitar a praga
do Estado totalitário – bolchevista, ou fascista – e corrigir os erros da democracia, a
solução é combinar a ditadura com a liberdade, organizando o regimen ditatorial
republicano [...] caracterizada acima de tudo pela separação dos poderes, pela mais
ampla liberdade espiritual [...]”9.
A iniciativa da carta deveu-se a que Getúlio ordenara a censura de críticas, nas
gazetas, do “bolchevismo ocidental, que dá pelo nome de fascismo”, enquanto, por
outro lado, permitiam-se ataques ao “fascismo oriental, que dá pelo nome de
bolchevismo”. Reis Carvalho pugnava pela liberdade de expressão, com inexistência de
censura à imprensa, peculiaridade própria do regime preconizado por Comte. Remata-a
“confiante que, por um Ato Adicional, antes do Plebiscito, modifiqueis a Constituição
de 10 de Novembro, no sentido de ser, não mais o que essencialmente é – uma
Constituição Ditatorial, mas o que deve ser – uma Constituição Republicana, de sorte
que o governo do Brasil seja de fato uma Ditadura – o que aliás tem sido sempre com
ou sem sufrágio universal, com ou sem Parlamento – mas Ditadura Republicana – o
que nunca foi e ainda não é”.
Atente-se às distinções que adota entre o que o regime era e o que não era: era
ditadura, porém não republicana, não a positivista.
Exatamente dois meses mais tarde, em nota enviada a Getúlio Vargas, Reis
Carvalho exprime o seu anelo porque o Estado Novo transforme-se em “Estado
verdadeiramente republicano que deve ser, onde se observe integralmente o Princípio
da Separação dos Poderes, onde reine a mais ampla liberdade espiritual, e não seja
mais um Estado semi-fascista, onde persiste a confusão dos poderes, onde vive
cerceada a liberdade espiritual”.
8 A constituição de 1937 revogou a de 1934.
9 Por separação de poderes, referia-se aos poderes temporal, à autoridade política, e ao espiritual, à autoridade moral.
Em primeiro de julho daquele ano, Reis Carvalho dirigiu-se por carta, em texto
comum, ao Ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, e ao Ministro da Marinha,
almirante Aristides Guilhen, pela qual ofereceu-lhes exemplares do seu livro “A
Ditadura Republicana” em que, explica-lhes, demonstra “que a Ditadura Republicana
não é Ditadura no sentido vulgar do termo, não é governo discricionário, não é
governo despótico, mas, ao contrário, é o mais constitucional, o mais liberal de todos
os governos”.
Roga10
o missivista aos chefes das Forças Armadas que “intervenham perante os
seus chefiados para que o Exército e a Armada colaborem eficazmente com o
Presidente Vargas, afim de que, conservado e melhorado o Estado Novo, este não seja
apenas ditatorial, como tem sido, mas também republicano, como deve ser, e realize
afinal a combinação integral da ditadura com a liberdade, segundo o voto de Hobbes,
cumprido espontaneamente por Frederico e sistematizado por Aug. Comte”. Prossegue:
“estou certo, repito, que o Presidente Vargas só aguarda a colaboração decisiva das
forças armadas para instituir definitivamente o regimen ditatorial republicano [...]
Para realizá-lo o Estado Novo Ditadorial Republicano, basta o Presidente Vargas
modificar a Constituição de 10 de Novembro, antes do Plebiscito prescrito no art. 187,
por um Ato Adicional, no sentido de poder ser ela precedida deste
Artigo fundamental – O Estado Novo adotado nesta Constituição, só
tem por fim exclusivo manter a ordem material e garantir a liberdade espiritual.
Donde proibição absoluta de agir contra quaisquer idéias, e também contra quaisquer
atos que não violem essa ordem, sejam quais forem os perigos sociais que daí
provenham ou se presuma possam provir, todos combatíveis unicamente pela ação
mental e moral. No domínio espiritual só lhe cabe agir facultativamente, sem nenhuma
ação repressiva, e ainda assim na falta de órgãos espirituais.”
Apoiar Getúlio Vargas na organização final do regime consistia no “principal
dever das classes armadas”, ou seja, Reis Carvalho atribuía-lhes o dever de sustentar a
ação do Presidente da República na instauração completa da liberdade de expressão.
Ao regime militar brasileiro de 1964, Garcia Paula qualifica de
“Ditadura fascista que reapareceu como fruto maligno do golpe militar de 1º de março
10
É o verbo que emprega.
de 1964”. Atente-se à sua adjetivação: ditadura fascista que reapareceu como fruto
maligno em 1964, e não ditadura republicana que tivesse reaparecido como fruto
benigno naquele ano. O mesmo autor alude também ao “clima de obscurantismo e de
terrorismo, forma de subversão contra o povo, implantada em nossa Pátria, sobretudo
como efeito do 2º golpe –o de 1968 – e seu famigerado AI-5!” (idem, 61). Não teria
julgado nestes termos o regime militar se este exprimisse a ditadura republicana.
Não entro no mérito de se o movimento de março de 1964 veio a propósito ou a
despropósito, se o seu anti-comunismo era louvável ou não. O que me importa
caracterizar é a falsidade da filiação entre o Positivismo e a supressão das liberdades
verificada durante o regime militar instaurado então.
Mais: comparando tal regime, do Brasil, com as tiranias de Napoleão, de
Mussolini, de Hitler e de Salazar, afirma: “de todos os países em que a odiosa ideologia
grassou e grassa; aquele em que ele – o fascismo- causou menos desgraças foi aqui.[...]
Mas por que foi o fascismo aqui menos brutal? Dentre outras razões [...] porque [...] o
Brasil foi aquele em que, por contrapartida, o Positivismo exerceu e, conquanto
diminuída, exerce uma benéfica influência moderadora.” (idem, 63/4; itálicos nossos).
É de lembrar também os inúmeros protestos do Clube Positivista contra os atos
liberticidas praticados pelo regime de 1964, protestos muitos deles formulados por
Ruyter Demaria Boiteux, positivista ortodoxo e general do Exército brasileiro.
Também positivista ortodoxo, David Carneiro, o moço, travou, em 1990, acesa
polêmica no Centro Positivista do Paraná, ao declarar que o movimento de 1964 fora
obra da “parcela mais atrasada do exército”, referindo-se à supressão das liberdades
públicas que encarecia.
Ouçamos o positivista ortodoxo Vice-almirante Alfredo de Morais Filho: “A
partir do golpe de Estado, dado por Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, que
instituiu o Estado Novo, aumentou a tendência a se considerar o positivismo uma
doutrina autoritária, ou melhor, despótica.
Depois de outra revolução, a 1964, os sociólogos brasileiros, em suas
apreciações, ligaram os dois movimentos à mesma doutrina, o castilhismo.
Estas apreciações, são, porém, falsas, decorrentes do desconhecimento da
doutrina política positivista.
O Estado Novo foi uma aplicação do fascismo para resolver, naqueles anos, a
complicada situação brasileira, proveniente das várias revoluções e envolvida pela
difícil situação internacional.
Quanto à revolução de 1964, também foi inspirada no nazi-fascismo [...] nada
tendo com a nossa doutrina. Ambas agiram contrariando princípios fundamentais
positivistas” (itálicos meus).
Refere-se ainda à “lamentável injustiça dos críticos do positivismo, quando
consideram Júlio de Castilhos o avô e Getúlio Vargas, o pai do autoritarismo”.
E pergunta-se: “Como podem os intelectuais brasileiros distorcerem a nossa
doutrina, procurando os de esquerda, apresentá-la como fascista e os de direita, como
comunista?”. E responde: “O que há, é má-fé e ignorância” (itálicos meus).
Rubem Descartes de Garcia Paula, David Carneiro, Ruyter Boiteux e Alfredo de
Morais Filho, todos quatro positivistas ortodoxos e oficiais de alta patente os dois
últimos, à unanimidade reprovaram os atos liberticidas do regime de 1964, em cuja
conotação autoritária não se pode, com verdade, enxergar nenhuma origem positivista.
Após 1964, houve um único positivista no governo, o Almirante Ernesto de
Mello Batista, ministro da Marinha do governo do Marechal Castelo Branco. Não foi
ele nem o autor, nem o mentor dos atos liberticidas verificados após o mandato de
Castelo Branco. Encarnou, ao contrário, o único atingido pelo Ato Institucional de
número 17 (de 1969), que permitia ao presidente da república transferir,
provisoriamente, para a reserva, os oficiais que melindrassem o regime... Houve outro,
ministro do Supremo Tribunal Militar: o general Pery Constant Bevilacqua (neto de
Benjamin Constant), que, “legalista imprevisível e destemido”, “condenou os inquéritos
policial-militares por meio dos quais a nova ordem julgava os adversários políticos do
antigo regime”. Removido, por força do Ato Institucional de número 5, daquele
tribunal, onde pugnou pela anistia política – o único a fazê-lo por então -, “anos depois,
tornou-se um dos líderes da campanha pela anistia”. “Graças a ele, o Exército brasileiro
pode dizer que um dos seus generais teve a coragem de falar em anistia na época em
que a palavra parecia ser um estigma” (Elio Gaspari).
Legalista destemido, advogado da anistia, general: méritos de um positivista.
A inclinação pela anistia, pelo apaziguamento, pela convivência harmônica das
correntes políticas, pela fraternidade, caracterizara já as exortações de Teixeira Mendes,
que, face ao célebre levante dos dezoito do forte de Copacabana, em 1922, apelava ao
governo em intervenção estampada no Diário do Congresso Nacional: “Inspirando-se,
pois, quer na fraternidade universal republicana extreme de qualquer preocupação
teológica, quer na caridade católica, os vencedores nas lutas fratricidas, civis ou
internacionais, em vez de decretarem o chamado estado de sítio, devem decretar, logo
após a vitória, uma fraternal anistia, amparando todas as vítimas, sem distinção das
ligações destas com vencidos ou vencedores”.
Na sua exortação já excertada, referindo-se à revolta constitucionalista de S.
Paulo, Amaro da Silveira frisava a urgência de se decretar uma anistia ampla a
vencidos e vencedores, sem distinção das causas que abraçaram e das classes e
posições que ocuparam, em relação aos diversos abalos revolucionários, verificados a
partir de 1922”.
Em 7 de setembro de 1933, em novo opúsculo, o mesmo autor reiteraria a sua
exortação, apelando aos nossos atuais dirigentes e para o conjunto dos nossos
concidadãos, a fim de que sejam respeitados os princípios republicanos e federativos
que fizeram a glória de nossa Pátria e restabelecida, enfim, a fraternidade cívica,
mediante uma anistia ampla a vencidos e vencedores, envolvidos nas lutas políticas, a
partir de 1922, como as únicas soluções capazes de corresponder, neste momento, aos
generosos destinos da Pátria brasileira.
Quem pleiteia a anistia não partilha de nenhum autoritarismo. Quem concita ao
perdão, invocando a fraternidade entre vencidos e vencedores, adota um credo: o da
ditadura republicana positivista. Quem a taxa de autoritária ou de quase totalitária, não
sabe o que diz ou mente.
Ao contrário do que propala o sr. Miguel Reale, o encerramento do Congresso
Nacional pelo então presidente Geisel, com base no Ato Institucional de número 5, no
fito de promover a reforma do Poder Judiciário, tampouco se deveu a qualquer
inspiração positivista: na ditadura republicana o presidente não baixa pura e
simplesmente os diplomas legais, em virtude da sua vontade pessoal e exclusiva; ele
produ-los após a oitiva ampla da população, pelo tempo de três meses, durante os quais
a opinião pública, fiscal e reguladora do poder executivo, manifesta-se livremente, o
que não se verificou no ato em questão.
Ao contrário de perniciosa, como escreveu aquele jurisconsulto, a influência
positivista na política brasileira induziu constantemente ao respeito da legalidade, das
liberdades e da fraternidade. Funesta foi a sua ausência nos momentos em que ela teria
sido desejável e providencial, para bem inspirar fossem os governantes, fossem os
governados. Ouça-se, novamente, Amaro da Silveira: O conjunto das intervenções
positivistas, desde a conversão de Miguel Lemos, em fins de 1878, [...] demonstram os
esforços de Miguel Lemos e todos os que se gruparam em torno dele, para dissipar, no
povo brasileiro, a opinião democrática e o sentimento democrático, acerca da
LEGITIMIDADE E DA EFICÁCIA do recurso às insurreições; bem como para
extinguir, nos que ocupam os postos de governo, a tirânica opinião e o tirânico
sentimento, acerca da LEGITIMIDADE E DA EFICÁCIA dos golpes de Estado e dos
atentados do governo contra as liberdades civis.
Se persistira o influxo positivista na mentalidade e na vida políticas do Brasil,
teríamos tido uma história política menos atribulada e mais patriota, mais dedicada ao
bem público, mais eficaz na convergência fraterna de todos em prol do país, fora dos
golpes de força que várias vezes determinaram o antagonismo entre o poder executivo e
a nação.
Os atos autoritários dos regimes de 1937 e de 1964 e de todos os momentos em
que, na história pátria, eles verificaram-se, deveram-se à mentalidade própria dos seus
autores, da qual o Positivismo achava-se ausente de todo em todo e com os quais ele é
radicalmente incompatível.
A mistificação que atribui o autoritarismo de certos civis e militares pátrios ao
Positivismo, corresponde a uma forma de eximí-los da responsabilidade pelos abusos
dos regimes de 1937 e de 1964. Elegendo o Positivismo como bode expiatório,
inculpando-o como o inspirador da repressão às liberdades civis e políticas (cassações,
torturas, continuísmo, censura etc.), conotando-o com o odioso de qualquer
totalitarismo, alguns intérpretes intentaram exculpar os mentores daqueles regimes e os
autores das suas violências: fizeram obra ideológica no sentido marxista, ou seja,
conceberam uma formulação deliberadamente falsa, deturpadora do Positivismo, com
que justificassem não o que o Positivismo prega e o que os seus adeptos aplaudem,
porém exatamente o inverso disto.
Refiro-me em particular (e a eles já Rubem Descartes aludia) às produções de
Antonio Paim e de Ricardo Veléz Rodriguez, anti-positivistas brasileiros, em que se
encontra, nas do primeiro, ignorâncias muitas, nas do segundo, verdadeiro fanatismo,
nas de ambos, o ânimo de infamar o Positivismo à custa de má-fé e de equívocos
grosseiros, em que se distorce a doutrina para achincalhá-la e despertar no leitor
desprezo e repulsa por ela, como um ideário alegadamente ultrapassado, justificador da
tirania e liberticida. Modelos de desinformação, as obras de ambos desfiguram a
doutrina e a sua militância no Brasil, apresentando-as sob a forma de grotescas
caricaturas. Calunie, calunie: alguma coisa sempre fica, aconselhava Carlos Marx...
CALMON, Pedro. História do Brasil, vol. VI. Rio de Janeiro, 1961.
CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. Senado Federal, Brasília, 2001.
CARVALHO, Antonio Reis. Cartas sobre o Estado Novo. Rio de Janeiro, 1938.
COSTA, Luís Carlos Corrêa da. O autoritarismo e a ditadura republicana, in Anais da
V reunião de positivistas: Belo Horizonte, 1982.
GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo, 2003.
________. A Ditadura Escancarada. São Paulo, 2003.
GONÇALVES, Carlos Torres. República e democracia. Rio de Janeiro, 1945.
JEANOLLE, Carlos. Da conciliação entre a Humanidade e a Pátria, in Revista
Ocidental, XXIV. Paris, 1891 (em francês).
LACERDA NETO, Arthur Virmond de. A república positivista, 3ª ed.: Curitiba, Juruá,
2003.
LEMOS, Jefferson de. Condições fundamentais de ordem e de progresso necessárias à
organização da pátria brasileira. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Cultura
Positivista, 1946.
MORAES FILHO, Alfredo de. O autoritarismo, o positivismo e a república, in Anais
da VIII reunião de positivistas, Rio de Janeiro de 1986.
PAULA, Rubem Descartes de Garcia. O Positivismo, o Anti-Positivismo e o Fascismo,
in Anais da V reunião de positivistas: Belo Horizonte, 1982.
PEREIRA, Alfredo Severo dos Santos. O conhecimento do homem. Rio de Janeiro,
1938.
REALE, Miguel. O Positivismo no cultura brasileira, in Notícia Bibliográfica e
Histórica, número 185. Campinas, 2002.
SILVEIRA, Amaro da. A solução da actual crise política e o verdadeiro regimen
republicano. Rio de Janeiro, 1932
_________. A data nacional brasileira e a fundação da República no Brasil. Rio de
Janeiro, 1933.
SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil. Porto Alegre: Editora da
Universidade do Rio Grande do Sul, 1999.
IV
Explicação doutrinária
Aos 8 de dezembro de 1904, o positivista ortodoxo Raimundo Teixeira Mendes,
estampou no “Jornal do Comércio”, do Rio de Janeiro, artigo em que elucidava o
significado histórico e doutrinário da ditadura republica , republicado sob forma de
opúsculo em 1933, pela Igreja Positivista do Brasil, de que reproduzo as passagens
capitais.
“Uma retificação. A ditadura republicana e o positivismo
No discurso proferido pelo Sr. Senador Rui Barbosa [...] lê-se o seguinte: [...]
Houve até quem chegasse a formular em projeto essa aspiração favoneada por certa
escola filosófica e radical. [...] é que aquela ditadura, composta de homens que
aborreciam a ditadura [...]
Esta referência visa claramente a propaganda do Apostolado Positivista. Por
outro lado, o mesmo discurso faz supor que toda ditadura é sinônimo de despotismo ou
governo absoluto e arbitrário. Daí poder-se-ia inferir:
1º, que a ditadura republicana aconselhada por Augusto Comte, como o único governo
capaz de assegurar a plena liberdade que caracteriza a situação moderna, é um
despotismo, ou, pelo menos, pode degenerar em despotismo mais facilmente do que as
chamadas monarquias e repúblicas representativas, isto é, mais ou menos parlamentares;
2º, que o Governo atual das repúblicas e monarquias representativas, como o do Brasil,
desde 1822, ou melhor, desde 1820, não é ditadura;
3º, que esses governos são os únicos capazes de garantir as liberdades políticas.
[...]
Começaremos observando que a afirmação do Sr. Senador Rui Barbosa, de que a
ditadura que fundou a República era composta de homens que aborreciam a ditadura, só
é exata dando à palavra ditadura a significação de despotismo. Porque, se entender-se a
ditadura com o sentido que Augusto Comte lhe deu, de acordo com sua significação
histórica, desde os Romanos até hoje, a afirmação de que se trata deixa de traduzir a
realidade.
[...]
Isto posto, cumpre notar que [...] as nações modernas estão sob o regime da pura
ditadura, desde que se dissolveu a organização católico-feudal, isto é, a partir do XIV
século. Porque a ditadura é o governo que resulta exclusivamente do predomínio
político da força material, desconhecendo a livre supremacia de uma autoridade
espiritual independente.
[...]
Portanto, quer a força material esteja concentrada, real e legalmente, em um
homem, como no caso da realeza chamada absoluta, quer se distribua por uma ou
várias assembléias, como nas chamadas monarquias e repúblicas representativas, a
verdadeira natureza do regime político não muda: é ditadura.
Assim, desde o princípio do XIV século, o que há no Ocidente, -queira ou não
confessá-lo os preconceitos democráticos e aristocráticos, - são ditaduras de diversas
espécies e denominações, isto é, puros governos materiais, mais ou menos conciliáveis
com a liberdade, conforme propendem, ou para o tipo do despotismo do vulgo dos reis e
presidentes da república, ou para o tipo do liberalismo anunciado pela ditadura de
Cromwell, Frederico II, e Danton, sistematizado por Augusto Comte.
E esta situação é fatal, porque resulta da circunstância do Ocidente haver perdido
a unanimidade da fé, desde os fins da Idade Média, e ainda nenhuma outra fé ter
adquirido essa unanimidade, que caracterizou a situação ocidental do século V ao XIII.
[...] Desde que não há fé unânime, não pode haver autoridade espiritual unanimemente
reconhecida. Nestas condições, os chefes temporais, que são puros representantes da
força material, queiram ou não queiram, não podem senão seguir as suas vontades, que
se inspiram fatalmente em uma das infinitas frações em que se decompõe a opinião
pública do seu tempo.
Em tais circunstâncias, os meios de convencer e persuadir desaparecem para um
número de casos cada vez maior [...] Isto é, o governo torna-se fatalmente ditadura.
[...]
Examinando, pois, a constituição dos governos pelo que eles são efetivamente, e
não pelo que eles se dizem ser, reconhece-se que o único meio de evitar o despotismo
consiste na instituição sistemática da SEPARAÇÃO DOS DOIS PODERES TEMPORAL E
ESPIRITUAL, inerentes a toda sociedade. É o que só se consegue, por um lado, tirando ao
governo temporal todas as atribuições de decidir em matéria de opiniões e, portanto, de
confiança dos cidadãos; e, por outro lado, tirando a todos os cidadãos os meios de
imporem as suas opiniões e, portanto, o seu crédito, seja a quem for.
Dessa dupla condição resulta logo a instituição de todas as liberdades públicas,
ficando o governo temporal essencialmente reduzido a promover as obras gerais de
utilidade pública que não forem espontaneamente realizadas pela iniciativa particular, e
à polícia, para impedir as perturbações da ordem material.
Isto posto, é fácil de reconhecer que o suprasumo do regime liberal é hoje
justamente o que Augusto Comte denominou ditadura republicana.
[...]
Vê o público que tal ditadura, salvo o nome, é o regime de liberdade e de
fraternidade pelo qual todos ansiamos [...]”.
V
Fontes de desinformação: as obras de A. Paim e de Ricardo V. Rodriguez
Uma obra intelectual de valor é a que conhece a matéria de que se ocupa, que a
entende, que a esclarece para o leitor ou que a interpreta honestamente. Ela envolve
conhecimento, esclarecimento ou análise, caracteres ausentes nas obras de Antonio
Paim e de Ricardo V. Rodriguez, quando tocam no Positivismo e no Castilhismo. Ao
contrário, neste particular, exibem elas ignorância, desentendimento e deformação
empregados na crítica sistemática daquelas doutrinas, mercê de equívocos primários, da
manipulação dos fatos, de distorções evidentes, da malícia constante.
De fato, as referências das obras em causa ao Positivismo, à sua atuação no
Brasil, ao seu fundador e à sua vertente política encarnam, quase invariavelmente, uma
distorção (perante a qual o leitor bem informado exclama: “Não é bem assim!”), uma
falsidade (diante da qual o mesmo leitor exclama : “Não é assim!”), um achincalhe ou
uma nota pejorativa e, de modo geral, animadversão maniqueísta. Suas desinformações
revelam puerilidade (por exemplo: a visita de Alberto Einstein ao Brasil representou a
derrota do Positivismo), ignorância (verbi gratia: Augusto Comte reputava a ciência do
seu tempo completa e acabada), desonestidade (a exemplo de que devido aos
positivistas tardou o Brasil a ter universidades; note-se que a Universidade do Paraná,
hoje federal, contou, dentre os seus fundadores, com três positivistas: Nilo Cairo da
Silva, João Pernetta e Benjamin Batista Lins de Albuquerque, os três de assinalada
atuação na vida paranaense), gratuidade ( como: no Brasil houve um ciclo de
pensamento positivista-marxista) ou parcialidade (por exemplo: o Positivismo é
autoritário).
Ora, isto não é fazer obras sérias que acrescentem valor à inteligência pátria, é,
confundindo os leitores, parasitar uma doutrina ao adotar os ataques a ela como o
critério único das suas atitudes diante dela, e transformar a vida intelectual na destruição
sistemática da obra alheia, ao invés de produzir criações originais. Apedrejar sempre é
mais fácil...
Propagando-se, tais livros apresentam o efeito deletério de incutirem nos leitores
destituídos de especial preparação (é a maioria) uma imagem depreciativamente falsa do
Positivismo. Quantos brasileiros não passaram a repudiar a obra de Comte, quantos
deixaram de procurar conhecê-la por outras vias, quantos não a condenam sem exame
das fontes positivistas, em decorrência da leitura acrítica daqueles autores ? São vítimas
de uma autêntica “lavagem cerebral”, cujo desiderato é precisamente o de aniquilar o
Positivismo, custe o que custar. Obras deste feitio em nada concorrem para um
conhecimento mais exato ou mais perspicaz da doutrina e dos seus efeitos entre nós, das
suas implicações e dos seus méritos; elas limitam-se a infamá-la, a negá-la, a denegrí-la,
a destruir sem nada construir. São manifestações de mesquinhez intelectual.
Quem pretender conhecer o Positivismo a sério, deve refugir delas ou lê-las
somente após a inteligência de outras, que permitam conhecer o que ele é de fato.
Cotejem-se as produções daqueles autores com as de outros, como (para citá-los
algo de memória e em nominália desatualizada e incompleta) Raymundo Teixeira
Mendes, Miguel Carlos Corrêa Lemos, Ivan Monteiro de Barros Lins, Luís Hildebrando
Horta Barbosa, Luís Bueno Horta Barbosa, Júlio Caetano Horta Barbosa, Cândido
Mariano da Silva Rondon, Manoel Rebelo, Venâncio de Figueiredo Neiva, Alberto
Pizarro Jacobina, Nilo Cairo da Silva, Luís Pereira Barreto, Lauro Sodré, Júlio de
Castilhos, Luís Felipe de Castilhos Goycochêa, Mozart Pereira Soares, Licurgo de
Castro Santos, Paulo Trajano de Berrêdo Carneiro, Joaquim Bagueira Leal, Jefferson de
Lemos, Sílvio Vieira Souto, Amaro da Silveira, Manoel de Almeida Cavalcanti, Alfredo
Severo dos Santos Pereira, Angelo Torres, Aarão Reis, Paulo Augusto Antunes Lacaz,
Joaquim Luís Osório, Othelo Rosa, João Pernetta, Augusto Beltrão Pernetta, Augusto
Ximeno de Villeroy, Agostinho Raimundo Gomes de Castro, Vicente Licínio Cardoso,
Roque Spencer Maciel de Barros, Agliberto Xavier, Antonio Reis Carvalho, David
Carneiro, o velho e o moço, Jefferson de Lemos, Alfredo de Moraes Filho, Henrique
Batista da Silva Oliveira, Benjamin Constant Botelho de Magalhães Neto, Paulo da
Silveira Santos, Ruyter Demaria Boiteux, Jurandyr de Castro Pires Ferreira, Luis Carlos
Corrêa da Costa, José Feliciano de Oliveira, Rubem Descartes de Garcia Paula, Carlos
Torres Gonçalves, Regina Celi Pinto, João Ribeiro Júnior, João Neves da Fontoura,
Guilhermino César, Pedro Calmon, Renato Lemos, Alfredo Bosi, José Guilherme
Merquior, Manoel Duarte, Heitor Lyra, Hélgio Trindade, João da Cruz Costa, José
Murilo de Carvalho, Tocary Assis Bastos, Azevedo Amaral, o autor destas linhas, etc.,
no Brasil; no exterior, Pedro Laffitte, Emílio Littré, Raimundo Aron, Rogério Mauduit,
João Luís Destefanis, João Lacroix, Alain, Mário Aldo Toscano, João Stuart Mill,
Pedro Arnaud, Paulo Arbousse-Bastide, Pedro Ducassé, Jorge Dumas, Angela Kremer-
Marietti, Luciano Levy-Brhul, Ana Petit, Tiago Muglioni, Jorge Lewes, Jorge
Audiffrent, Norberto Elias, Antimo Negri, Ikutaru Shimizu, Francisco Sidney Marvin,
Emanuel Lazinier, Eduardo Beesley, Fernando Catroga, Teófilo Braga, Jorge
Canguilhem, Leopoldo Zea, Ricardo Congreve, Júlio Ferry, Frederico Harrison,
Eugênio de Roberty, Carlos Robin, Gregório Wyrouboff, Jorge Deherme, Antonio
Baumann, P. Grimanelli, Ronaldo Fletcher, Henrique Gouhier, João Henrique, Jorge e
Luís Lagarrigue, Fabiano Magnin, André Poey, Eugênio Boudet, Carlos Vicuña
Fuentes, G. Tarozzi, José Vitorino Lastarria, Eugênio Robinet, José Lonchampt, Annie
Petit, Mirella Larizza, Mary Pickering, Maria Donzelli, Abdelwahbab Bouhdiba, etc.,
filiados ao Positivismo ou a ele alheios, brasileiros ou alienígenas: cotejem-se, dizia, as
obras destes autores com as que aqui desmascaro e facilmente comprovar-se-á o
quanto afirmo e que, com elas, o conhecimento daquela doutrina degradou-se à
adulteração sistemática e a desinformação alcançou uma das suas culminâncias.
Muito produziu-se de recomendável, de honesto e de sério no Brasil e no
exterior, em matéria de Positivismo, em opúsculos, livros e revistas, da autoria de
positivistas e de estudiosos daquela doutrina. Quando comparo tais produções com as
obras em questão, quando considero que algumas delas publicaram-se, com mau
critério, sob a égide da Universidade de Brasília e que já excederam a primeira edição,
concluo que, no concernente a elas, é o Brasil o país em que menos se conhece o
Positivismo, em que sobre ele circulam como verdades acriticamente aceitas o que
escandalizaria qualquer pessoa minimamente bem informada e em que a qualidade da
produção intelectual é simplesmente vergonhosa.
VI
Ordem e Progresso
Conceitos fundamentais no Positivismo, aos de ordem e de progresso atribui-se,
no Brasil, uma conotação equivocada, notadamente em relação ao primeiro, que se
associa ao poder governamental, ao seu exercício repressivo, a autoritarismo, à força no
sentido maligno de opressão dos poderes públicos sobre (e mesmo contra) o cidadão.
Menos comentado, o conceito de progresso padece menos de distorções,
porquanto, ainda que entendido em dissidência do seu significado original, o progresso
corresponde a um aspiração humana, o que poupa-o de críticas e de deturpações, ao
menos comparativamente com o de ordem.
Seja como for, desconhece-se, entre nós, a acepção legítima deste binômio, ou
seja, aquela que lhes conferiu Augusto Comte e com os quais introduziu-o ele no mundo
do pensamento humano. Para desfazer as deturpações existentes, evitar novas,
esclarecer os mau informados e informar o leitor em geral, apresento a seguir a própria
palavra de Comte, a respeito, com a supressão de períodos acessórios, em que o estilo
dele abundava e que não contribuiriam para o objetivo das transcrições que seguem.
“Todo o princípio filosófico de um tal espírito reduzindo-se, necessariamente, a
conceber sempre os fenômenos sociais como sujeitos a verdadeiras leis naturais,trata-
se de fixar o caráter próprio destas leis.Para este fim, é necessário, antes de tudo,
estender ao conjunto dos fenômenos sociais uma distinção científica verdadeiramente
fundamental, que estabeleci e empreguei em todas as partes deste Tratado, e
principalmente em filosofia biológica, como radicalmente aplicável, por natureza, aos
fenômenos quaisquer, e sobretudo aos que podem apresentar os corpos vivos,
considerando-se o estado estático e o estado dinâmico de cada assunto de estudos
positivos.Na biologia, ou seja, no estudo general só da vida individual, esta
decomposição propicia distinguir-se entre o ponto de vista anatômico, relativo às
idéias de organização, e o fisiológico, próprio às idéias de vida. Em sociologia, esta
decomposição deve operar-se de uma forma perfeitamente análoga,distinguindo-se, a
respeito de cada assunto político,entre o estudo das condições de existência da
sociedade e o das leis do seu movimento contínuo. Esta diferença permite-me prever
que o seu desenvolvimento espontâneo poderá originar à decomposição habitual da
física social em dois ramos, sob os nomes de estática social e de dinâmica social.
Para melhor caracterizar esta decomposição, creio essencial notar que um tal
dualismo científico corresponde, com uma perfeita exatidão, no sentido político
propriamente dito, à dupla noção de ordem e de progresso. Porque é evidente que o
estudo estático do organismo social deve coincidir com a teoria positiva da ordem, que
consiste em uma justa harmonia permanente entre as diversas condições de existência
das sociedades humanas:vê-se, ainda mais sensivelmente, que o estudo dinâmico da
vida coletiva da humanidade constitui necessariamente a teoria positiva do progresso
social que, afastando todo vão pensamento de perfectibilidade absoluta e ilimitada,
deve reduzir-se à simples noção deste desenvolvimento.
Segundo esta concepção fundamental, definindo o conjunto das leis puramente
estáticas do organismo social, o princípio filosófico que lhe é próprio parece-me
consistir na noção geral do consenso universal que caracteriza os fenômenos dos
corpos vivos e que a vida social manifesta no mais alto grau. Assim, esta espécie de
anatomia social que constitui a sociologia estática, deve ter por objeto o estudo das
ações e reações mútuas que exercem umas sobre as outras todas as partes do sistema
social”.(Filosofia, IV, 230 e seguintes).
“Toda inteligência organizada e preparada saberá escrupulosamente evitar a
noção científica de uma ordem espontânea com a apologia sistemática de toda ordem
existente, que, nas suas relações com o homem, apresenta graves e numerosos
inconvenientes, modificáveis, até certo ponto, por uma sábia intervenção humana. Em
virtude da sua complicação superior, os fenômenos sociais devem ser os mais
desordenados, ao mesmo tempo em que são os mais modificáveis. Bem longe de
repudiar a intervenção humana [o Positivismo] provoca-lhe, ao contrário,
eminentemente, a sábia e ativa aplicação, ao representar os fenômenos sociais como
sendo os mais modificáveis de todos.”(Filosofia, IV, 247 e 249).
O consenso corresponde “ à evidente harmonia que sempre tende a reinar entre
o conjunto e as partes do sistema social. É claro que não somente as instituições
políticas propriamente ditas e os costumes sociais de uma parte, os costumes e as idéias
de outra, devem ser, sem cessar, reciprocamente solidários; mas, além disso, todo este
conjunto liga-se ao estado correspondente do desenvolvimento integral da
humanidade” (Filosofia, IV, 243).
A noção de consenso origina a da “correspondência geral entre o regime
político e o estado simultâneo da civilização”(Filosofia, IV, 245/6).
“...a íntima ligação que, em tal assunto, deve existir entre a teoria da existência
e a do movimento ou, sob o ponto de vista político, entre as leis da ordem e as do
progresso” (Filosofia, IV, 261).
“O verdadeiro espírito geral da sociologia dinâmica consiste em conceber cada
um dos estados sociais como o resultado do precedente e motor do seguinte. A ciência
tem, nesse sentido, por objeto de descobrir as leis que regem essa continuidade. A
dinâmica social estuda as leis de sucessão, enquanto a estática procura as da
coexistência: de maneira que a aplicação da primeira é a de fornecer à política prática
a teoria do progresso ao mesmo tempo que a segunda forma a da ordem” (Filosofia,
IV, 263/4).
“Esta distinção geral entre as leis de assimilação e as leis de sucessão foi
sobretudo empregada neste Tratado sob uma outra forma mais usual, distinguindo-se o
estudo estático e o estudo dinâmico de um assunto qualquer, encarado, quanto à
existência e quanto à atividade. [...] Gradualmente desenvolvido pelas partes
superiores da filosofia natural só o estudo dos corpos vivos, de onde esta distinção
emanou evidentemente, pode manifestar suficientemente os seus caracteres, segundo a
distinção entre a organização e a vida. Contudo, seu estabelecimento não pode ser
completado senão na ciência sociológica, que, manifestando no mais alto grau uma tal
divisão, a ela ajunta uma alta destinação prática, fazendo-a exatamente corresponder
ao contraste elementar das idéias de ordem face às de progresso.”(Filosofia, V, 58ª
lição).
“deveis conceber esta grande ciência [a sociologia] como composta de duas
partes essenciais: uma estática, que constrói a teoria da ordem; a outra, dinâmica, que
desenvolve a teoria do progresso”, de que a primeira “considera sobretudo a natureza
fundamental” da sociedade, e a segunda, os seus “destinos sucessivos”. (Catecismo
positivista, 8º colóquio).
“Seja qual for o assunto, o espírito positivo leva sempre a estabelecer uma exata
harmonia elementar entre as idéias de existência e as idéias de movimento; daí resulta
[...] a correlação permanente das idéias de organização com as de vida e, em seguida,
mediante uma última especialização própria do organismo social, a solidariedade
contínua das idéias de ordem com as idéias de progresso.” (Discurso sobre o espírito
positivo, Martins Fontes, página 55).
“Estática e dinâmica são as duas categorias centrais da sociologia de Augusto
Comte. A estática consiste essencialmente em estudar o que se chama de consenso
social. Uma sociedade é comparável a um organismo vivo. Da mesma forma que é
impossível de estudar o funcionamento de um órgão sem o remeter ao todo do
organismo vivo, é impossível estudar a política e o Estado, sem os remeter ao todo da
sociedade em um momento dado. A estática social comporta, então, de uma parte, a
análise anatômica da estrutura da sociedade em um momento dado, e, de outra parte, a
análise do ou dos elementos que determinam o consensus, ou seja, fazem do conjunto
dos indivíduos ou das famílias uma coletividade, da pluralidade das instituições, uma
unidade. Mas, se a estática é o estudo do consensus, ela conduz-nos a pesquisar quais
são os órgãos essenciais de toda sociedade, então, a ir além da diversidade das
sociedades históricas, a fim de descobrir os princípios de toda ordem social.
Assim, a estática social, que começa como uma simples análise positiva da
anatomia das diversas sociedades e dos laços de solidariedade recíproca entre as
instituições de uma coletividade particular, resulta, no tomo II do Sistema de política
positiva, no estudo na ordem essencial de toda coletividade humana.
A dinâmica, no seu ponto de partida, é simplesmente a descrição das etapas
sucessivas percorridas pelas sociedades humanas. Porém, partindo do conjunto,
sabemos que o devir das sociedades humanas e do espírito humano é comandado por
leis. Porque o conjunto do passado constitui uma unidade, a dinâmica social não se
assemelha à história dos historiadores que colecionam fatos ou observam a sucessão
das instituições. A dinâmica social percorre etapas, sucessivas e necessárias, do devir
do espírito humano e das sociedades humanas.
A estática social desvendou a ordem essencial de toda sociedade humana; a
dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou esta ordem fundamental,
antes de resultar no termo final que é o positivismo.
A dinâmica subordina-se à estática. É a partir da ordem de toda sociedade
humana que se compreende o que é a história. Estática e dinâmica enviam aos termos
de ordem e progresso que figuram nas bandeiras do positivismo e do Brasil: o
progresso é o desenvolvimento da ordem.
No ponto de partida, estática e dinâmica são simplesmente o estudo, de uma
parte, da coexistência, e de outra parte, da sucessão. No ponto de chegada, elas são o
estudo da ordem humana e social essencial, de suas transformações e do seu
desabrochar.”(As etapas do pensamento sociológico, R. Aron, página 105 da edição
francesa, Gallimard, 1967).
A ordem corresponde à natureza tal como ela se apresenta ao homem; ela
equivale a uma situação de fato, às leis naturais dos diferentes tipos de fenômenos,
desde os matemáticos até os psicológicos, do ponto de vista da sua maneira de ser. O
progresso corresponde ao funcionamento da natureza, às leis naturais dos diferentes
tipos de fenômenos, desde os matemáticos até os psicológicos, do ponto de vista da sua
atividade.
O “Catecismo positivista”, o “Discurso sobre o espírito positivo” e “As etapas
do pensamento sociológico” acham-se traduzidas no Brasil e são encontradiços. Nada
justifica, pois, a incompreensão dos conceitos aqui examinados, porquanto todo
examinador pode, facilmente, aceder a tais fontes, ao mesmo tempo em que, em parte
nenhuma de nenhuma obra de Comte e dos seus discípulos, encontra-se o que se imputa
ao conceito de ordem: a hipertrofia do Estado, o despotismo, a prepotência política, a
redução das liberdades individuais, a coação de seja lá quem for sobre seja lá quem for.
Quem a interpreta em qualquer destas acepções ou em outras, similares, não sabe o que
diz e carece de, urgentemente, estudar Augusto Comte, para cessar de lhe distorcer as
palavras, de enganar o seu semelhante e de pensar que sabe o que, na verdade, ignora.
7.IX.2005.
VII
Desinformação de esquerda: o Positivismo burguês (“Sociologia Comteana”)
“Sociologia Comteana” corresponde à tese de doutoramento de Lelita Oliveira
Benoit, em Filosofia Política, na Universidade de São Paulo, em que a autora pretende
caracterizar a gênese da sociologia de Augusto Comte (o fundador do Positivismo),
pensador que, segundo o livro, para elaborar aquela ciência, transitou sucessivamente da
economia política para a história e desta para a biologia, antes de finalmente constituir a
religião da Humanidade.
Abundante em citações de Comte, o estudo apresenta a virtude inegável de
amparar-se na letra do próprio autor que explora, o que permitiu-lhe à autora um
controle direto das fontes primárias, evitando a intermediação de terceiros e destarte,
interferências que poderiam eventualmente comprometer a originalidade do seu
pensamento, predicado virtuoso em se tratanto de um autor inédito em português e de
leitura freqüentemente difícil em suas duas principais obras, o Sistema de Filosofia
Positiva e o Sistema de Política Positiva.
Outro mérito a assinalar, radica em que, documentando a argumentação
desenvolvida com a letra de Comte, o livro permite despertar a atenção do leitor para os
ricos aspectos do pensamento positivista, pouco lembrados no Brasil atualmente. Neste
sentido, “Sociologia Comteana” funciona, até certo ponto, como obra de divulgação e
como incitação a novas pesquisas.
De quem, todavia, serviu-se da obra do próprio Comte e de alguns de seus
explicadores mais lúcidos, como P. Laffitte, F. Magnin, Miguel Lemos, Raimundo
Teixeira Mendes, Robinet, Luis Pereira Barreto e outros, era de esperar-se produto
melhor do que este. Com efeito, ao longo do texto acumulam-se os problemas e as
surpresas, a começar pelo prefácio (da professora Isabel Maria Cordeiro), segundo o
qual o Positivismo tende à exclusão de “qualquer pretensão de sociedade justa”
(BENOIT, 1999:11), rasgo hermenêutico dos mais singulares, e colabora a tese no
combate ao “pensamento conservador” (BENOIT, 1999:12).
Ambas afirmações insinuam o que se patenteia ao longo de todo o livro, a saber,
a sua conotação ideológica, que, sob inspiração marxista, enxerga em A. Comte o que
nele prefere enxergar ou o que, nele procurando, acaba por encontrar, em um
procedimento seletivo que, ao enfatizar o que convém e ao obscurecer o que se acha no
caso oposto, presta-se à demonstração de qualquer tese, por mais falaciosa que seja.
Assim, por exemplo, à página 85, o livro reconhece em certo artigo de Comte
uma “defesa aberta das teses político-liberais e do interesse privado”, desatenta a que,
independemente ou não de assistir-lhe razão, cuida-se de texto que o seu autor, na
maturidade, reputou prematuro, cujos originais chegou mesmo a destruir e que, de
conseqüência, é significativo não daquilo que Augusto Comte adotou, porém, ao
inverso, daquilo que abandonou.
Ainda ilustrativamente, à página 192, a “Sociologia Comteana” entende que
A.Comte pretendia o fim da liberdade de pensamento, o que basta para transformá-lo
em um totalitário odioso, a cuja doutrina ninguém ousaria aderir. É esta mesma doutrina
que, no entanto, protestou sempre pela necessidade imperiosa da mais ampla liberdade
espiritual, ou seja, de pensamento e de opinião, “por mais desregrado que se torne, dizia
Comte, o movimento espiritual”, cabendo aos poderes públicos respeitá-lo
escrupulosamente, limitando-se a manter a ordem pública. A tal entendimento
correspondeu sempre a atitude dos positivistas durante o regime militar instaurado no
Brasil em 1964.
Considerado o livro na sua generalidade, averigüa-se que à sua autora moveu o
intuito de caracterizar o Positivismo como uma filosofia burguesa, vocacionada a
convencer o proletariado a aceitar-lhe a dominação, a justificar ideologicamente o
autoritarismo e a “impedir a revolução em prol da igualdade e outras exigências da
vontade geral do proletariado” (BENOIT, 1999:384), fito que teria levado A . Comte a
constituir a Religião da Humanidade como instrumento desta dominação.
Tal ilação é tendenciosa e falsa.
Ela é tendenciosa porque decorre de uma posição ideológica da autora, que ao
enfocar o Positivismo como guardião da economia de mercado, da propriedade privada
e dos interesses da burguesia contra o proletariado, submeteu-se aos esquemas de
pensamento peculiares ao marxismo, que limitaram drasticamente a percepção da autora
e portanto a sua interpretação da doutrina.
Ela é falsa, ao ignorar consistir em preocupação basilar do Positivismo e dogma
da Religião da Humanidade, a “incorporação social do proletariado na sociedade
moderna”, na expressão de Comte, tão reiterada entre os seus adeptos, sobretudo
brasileiros e que simboliza, quer uma atitude de solidariedade fraterna face aos
excluídos (para empregar um vocábulo caro aos próprios marxistas) , quer uma prática
persistente visando à sua inclusão na sociedade em que eles, segundo Comte, acham-se
“acampados” e não instalados, material e culturalmente.
Como conciliar a visão de um Augusto Comte contrário às exigências do
proletariado, se em favor dele erigiu em princípio doutrinário a morada própria (com
sete aposentos), a instituição do salário mínimo e a obrigação estatal de propiciar-se-lhe
instrução primária gratuita?
Como justificar um Augusto Comte campeão da propriedade privada no sentido
egoísta, se adotou como princípio o da sua função social, ou seja, a sua subordinação às
necessidades sociais?
Como enxergar na obra de Augusto Comte uma doutrina indiferente à sorte dos
desfavorecidos, se proclamava como princípio político a “obrigação fundamental de
dirigir toda a existência social em direção ao bem comum, duplamente relativo à massa
proletária”? ( COMTE, Política, I, 136).
Como admitir o Positivismo como filosofia da dominação burguesa do
proletariado, se na sociedade concebida por Augusto Comte, pertence-lhe o papel de
formador da opinião pública contra “as tendências dos grandes e dos ricos ao egoísmo e
à opressão que prejudicam principalmente aos proletários”? (COMTE, Política, I, 138).
Como reconhecer na obra de Augusto Comte uma doutrina destinada a submeter
as classes obreiras, se preconiza ela “severos deveres sociais” dos “fortes aos fracos”,
reconhecendo-lhes o direito à greve e mesmo à insurreição? (COMTE, Política, I,
16,168,181).
Como apodar o Positivismo de “conservador”, se a Augusto Comte deve-se o
axioma de que “o capital sendo social nas suas origens, deve receber aplicações
sociais”?
Como, finalmente, imputar às doutrinas de Comte tal qualificativo, se ele
próprio sentenciou: “O Positivismo é socialismo sistemático e o socialismo é
Positivismo espontâneo” ? (COMTE, Correspondência geral, V, 49. Socialismo figura
aí como anti-individualismo, e não no seu sentido clássico, de apropriação estatal dos
meios de produção ou controle governamental da economia).
Todos estes aspectos patenteiam um Positivismo, seja filosófico, seja religioso,
de marcada inclinação social, preocupado com o bem estar material e espiritual das
classes desabonadas, preocupação que não encarna privilégio do marxismo nem do
pensamento progressista e cuja presença naquela doutrina a “Sociologia Comteana”
ignora, em um exercício de maniqueísmo que a deforma em uma caricatura grotesca do
que ela de fato representa.
Na Inglaterra, Frederico Harrison, discípulo de Augusto Comte, exerceu por
anos a fio as funções de secretário perpétuo daquilo que se pode considerar
representativo dos interesses dos obreiros: o Partido Trabalhista inglês; na França, à
Sociedade Positivista de Paris, fundada pelo próprio Comte, incorporaram-se
marcineiros, sapateiros, relojoeiros e outros mecânicos, todos, como se vê, proletários;
na residência de Raimundo Teixeira Mendes, ardoroso discípulo de Augusto Comte no
Rio de Janeiro e incansável em verberar o “egoísmo burguesocrático”, os criados da
casa compartilhavam das refeições com os patrões, à mesma mesa. São exemplos de
que a prática positivista não apenas encarnou uma atitude de acolhimento face aos não
possuidores, como atraiu-os a si.
Às solicitudes relativas ao bem estar material dos trabalhadores, à distribuição
justa da riqueza, à ação governamental zelosa dos interesses dos necessitados,
acrescenta o Positivismo uma motivação afetiva, de fraternidade humana, e um sentido
moral, de dever social dos que possuem mais, em favor dos que possuem menos. Trata-
se de valores absolutamente fulcrais no Positivismo e cuja ausência em “Sociologia
Comteana” invalida-lhe irremediavelmente as conclusões e o mérito científico.
Para transitarmos do teórico ao prático, do preceito à sua aplicação,
consideremos alguns casos da ação do Positivismo sobre situações específicas no Brasil:
1) Debatia-se em 1883 se a abolição da escravidão deveria ou não acompanhar-
se de indenização finaceira aos que, com ela, tornar-se-iam ex-senhores de escravos,
isto é, proprietários expropriados.
Presidente do Centro Positivista do Rio de Janeiro, Miguel Lemos, em artigo
estampado no Jornal do Comércio, pontificava: “Não, mil vezes não! Como
indenização, nem o ar que respiramos podem (os senhores de escravos) reclamar”
BOSI, 1992: 399).
Decorreria tal ponderação de uma doutrina “conservadora”, fiel ao mais ativo
dos interesses burgueses, o relativo ao direito de propriedade?
Três anos antes, os positivistas Raimundo Teixeira Mendes, Aníbal Falcão e J.
E. Teixeira de Souza conceberam e divulgaram um projeto de lei abolicionista que, para
mais da extinção imediata da propriedade humana, previa a conversão dos escravos em
trabalhadores remunerados, a fixação de um limite, por determinar-se, do turno laboral,
a folga hebdomadária, a criação de escolas de instrução primária, a serem mantidas às
custas dos proprietários, além da moralização do convívio dos escravos, pela adoção do
casamento monogâmico em lugar da promiscuidade em que muitos se encontravam.
Bateu-se, pois, o Positivismo, frontalmente em oposição aos interesses –
burgueses- dos senhores de escravos, no caso da indenização, e francamente a favor dos
interesses materiais, culturais e morais do proletariado escravo, mediante uma sugestão
legislativa manifestamente mais completa e melhor – para os escravos- do que a adotada
em 1888, que se os libertou, abandonou-os à própria sorte.
2) No dia do Natal de 1889, apresentou Teixeira Mendes ao governo da novel
república, um projeto de legislação laboral, propondo a adoção (a) de um salário
mínimo, (b) de turno laboral de sete horas diárias, com quinze dias de férias anuais,
além de um dia hebdomadário de descanso, (c) de licença remunerada por motivo de
saúde, (d) de justificativa das faltas ao serviço por luto, gala de casamento, socorro a
enfermo na família e nos dias santificados na confissão do operário, (e) de estabilidade
no emprego, (f) de garantia de salário mínimo vitalício, aos maiores de 42 anos de
idade, (g) de uma pensão por desemprego, (h) de uma pensão por invalidez, (i) de
aposentadoria aos 63 anos de idade, (j) de uma pensão à família do operário, no caso do
seu trânsito, além de outras medidas menores.
Iniciativa revolucionária para a época, teria ela sido possível no âmbito de uma
doutrina destinada a comprimir os anseios do proletariado, como pretende a “Sociologia
Comteana”?
3) Ao longo de aproximadamente três décadas, o Partido Republicano Rio
Grandense governo o Rio Grande do Sul, pelas pessoas de Júlio de Castilhos e de
Borges de Medeiros. Tanto aquela agremiação política, quanto estes dois governadores
inspiravam-se no Positivismo, que adotaram como ideário político.
Examinando as premissas teóricas do Positivismo, expende Bosi:
“ ...foi...do positivismo social de Comte que fluiu uma primeira vertente
ideológica voltada para retificar o capitalismo mediante propostas de integração das
classes a ser cumprida por uma vigilante administração pública dos conflitos. A sua
inspiração profunda é ética e, tanto em Saint-Simon, quanto em Comte, evoluiu para um
ideal de ordem distributivista” (BOSI, 1992:282).
Na mesma página:
“Um dos princípios liberais que Comte julgava particularmente funesto seria o
de conceber os processos de produção, circulação e consumo de mercadorias somente
em função dos interesses individuais. A absolutização do desejo de lucro, aceso
egoisticamente em cada agente da vida social, tende a gerar um estado de anomia ou de
violência desenfreada que tão-só uma prudente e enérgica administração pública
consegue evitar”.
Ao descrever a prática a que o Positivismo conduziu o P.R.R., acentua o mesmo
autor alguns aspectos, dos quais destacamos três:
(a) A “socialização dos serviços públicos”, fórmula de Augusto Comte, que, nos
termos de Borges de Medeiros, “aconselha a subtrair da exploração particular,
privilegiada, tudo quanto se relaciona com o interesse da coletividade: é a socialização
dos serviços públicos (itálicos de Borges de Medeiros) , servindo esta designação
genérica para exprimir que a administração de tais serviços deve estar a cargo
exclusivamente do poder público, em que pese aos preconceitos econômicos
dominantes ainda em certas classes sociais”. (BOSI, 1991:290).
Seria este princípio o de uma doutrina “conservadora” e solidária apenas aos
interesses privados ?
(b) “...a política social seguida por Borges de Medeiros como presidente cinco
vezes reeleito do Rio Grande se pautaria por dois princípios complementares”,
encarnando-se um deles no “que, no contexto do Brasil oligárquico, se poderia chamar
progressista”, consistindo “em acolher e sancionar com a autoridade do Executivo certas
reivindicações tópicas dos trabalhadores urbanos que já demandavam redução da
jornada, melhores condições de vida na fábrica e salários menos vis”, “sabendo-se que
Borges procurou, mais de uma vez, atender aos reclamos dos operários”, veiculadas por
meio de greves, particular no qual “a atitude do governo do PRR afastava -se do
tratamento sistematicamente feroz que as oligarquias de outros estados davam então às
greves operárias” (BOSI, 1992: 294 e 295).
“Entre nós, quase tudo o que houve de sistemático em termos de Direito do
Trabalho, portanto no plano do Estado, ou visando à sua intervenção, recebeu o selo
positivista”. ( BOSI, 1992:296).
“No programa do Partido Republicano Histórico redigido por Júlio de Castilhos
constaram os seguintes ítens: regime de oito horas de trabalho nas oficinas do Estado e
nas indústrias; regime de férias aos trabalhadores; proteção aos menores, mulheres e
velhos; direito de greve; tribunal de arbitragem para resolver os conflitos entre patrões e
empregados; aposentadoria. Em síntese, é uma agenda de leis sociais a cargo de um
Estado previsor que não quer deixar ao arbítrio do capital decidir sobre as condições dos
novos assalariados egressos do cativeiro” (BOSI, 1992:297), referindo-se às condições
de trabalho a propiciar-se ...aos ex-escravos!
(c) A extrema valorização de um ensino fundamental gratuito e leigo, viva
preocupação de Augusto Comte no intuito de capacitar-se o proletariado em termos
intelectuais e morais. “Entre nós, as estatísticas comparadas mostram que nenhuma
administração estadual dedicou maior atenção à escola primária e ao ensino técnico-
profissional do que o Rio Grande borgista e castilhista” (BOSI, 1992: 301).
Tornar a educação gratuita e ao alcance de todos constitui, na expressão de
Comte, a dívida sagrada da sociedade face aos proletários, merecedores de participarem
das riquezas espirituais acumuladas ao longo dos séculos. A pensar nisto, constituiu a
célebre Biblioteca Positivista, que de começo nominou Biblioteca Proletária, acervo de
cento e cincoenta títulos nas áreas de filosofia, história, ciência e literatura, que
deveriam representar leituras habituais destinadas a petrechar culturalmente toda a
massa humana, que, segundo o filósofo, deveria poder usufruir de conforto material,
apropriar-se da riqueza cultural e desenvolver-se moralmente, programa vocacionado à
melhoria das condições de vida da gente obreira e tão estimável, senão mais, do que
todo o progressismo em voga no Brasil hodierno.
“Em prol do proletariado clamaram Miguel Lemos e Teixeira Mendes sem
cessar. Os seus apelos e advertências encerram, em germe, toda a legislação trabalhista
atualmente em vigor. Sob muitos aspectos, as reivindicações do Apostolado (Positivista
do Brasil) ultrapassam de muito as garantias até agora asseguradas às classes
trabalhadoras. Em matéria de moradia, educação, lazer, amparo à mulher e à criança, as
medidas propostas pelo Apostolado ainda hoje constituem audaciosas antecipações. Os
deveres dos ricos em relação aos pobres e o destino social de toda fortuna privada ou
pública, foram, por seu lado, temas constantes da pregação de Miguel Lemos e de
Teixeira Mendes” (LINS, 1967: 427; itálicos nossos).
Ouçamos o positivista Jefferson de Lemos: “...é certo que nenhum governo
subsistirá mais no Mundo, se não tiver no seu programa efetivo o princípio social
comunista [o da função social da propriedade]. E é este o melhor resultado de sua ação
cívica, o haver reagido, como ainda hoje reage, sobre as classes capitalistas e os
governos, obrigando-os ao cumprimento de seu dever ineludível: a incorporação do
proletariado à sociedade contemporânea.” Pertencem os itálicos a Lemos, que
prossegue: “E, para terminar, lembremos que não foi C. Marx nem Leão XIII na sua
famosa encíclica que levantaram no Mundo o problema do proletariado. Há mais de um
século, o Fundador da Política Positiva [Augusto Comte] proclamou ser esse o mais
grave dos problemas modernos e o que exige mais urgente solução”.
Dentre as centenas de folhetos e opúsculos publicados por ambos, dos quais a
maioria acha-se, mesmo atualmente, disponível na Igreja Positivista do Brasil, a autora
de “Sociologia Comteana” consultou apenas dez relatórios de Miguel Lemos, sobre os
fastos do Positivismo no Brasil entre 1881 e 1892, e três monografias de Teixeira
Mendes, uma acerca do papel das mulheres na sociedade, outra sobre o divórcio e a
terceira constituindo-se em uma recolha de textos de Augusto Comte. Não examinou
nenhuma, nenhuma das dezenas de publicações em que ambos, sobretudo o segundo,
versavam sobre a incorporação social do proletariado, em que, geralmente, após
transcreverem a letra do Mestre, derramavam-se em considerações sobre a sua aplicação
à realidade do momento.
Tal lacuna de fontes, inaceitável, antolha-se-me atribuível somente a um
verossímel ânimo da autora de enxergar no Positivismo apenas o que lhe convinha para
o seu argumento, por mais que os fatos o contradissessem.
Em suma, “Sociologia Comteana” contribui apenas para engendrar ou fortalecer
um preconceito anti-positivista. Como todo preconceito, ele deforma a realidade
pejorativamente ao invés de analisá-la com a imparcialidade que se espera de uma
investigação que pretenda o respeito dos isentos e dos bem informados. Qual será a
origem de tal preconceito? Certamente (a) a consagração da propriedade privada como
inerente à ordem social, (b) o entendimento de que a sociedade moderna é por natureza
industrial, (c) a rejeição do comunismo, todos princípios do Positivismo.
A conclusão do livro, de que a Religião da Humanidade visava a obstar a “que a
revolução permanente continuasse o seu curso ininterrupto no sentido da igualdade e de
outras eventuais exigências da vontade geral do proletariado” (BENOIT, 1999:384),
aberra da letra de Augusto Comte, do espírito da sua obra, da interpretação e da
aplicação que dela fizeram os seus fiéis.
Ao conhecimento do Positivismo, o livro em apreço nada acrescenta e à sua
hexegese filosófica, nenhum ponto de vista respeitável introduz. No tocante ao exame
das implicações sociais da doutrina, rege-se por uma indesculpável cegueira. Enquanto
achega científica ao saber humano em geral, ele encarna mais um exemplo do
condicionamento empobrecedor a que leva a sujeição da cognição aos esquemas
ideológicos de pensamento. Obra, em suma, de ideologia e não de ciência, porcaria
propriamente dita, findei-lhe a leitura recordando-me de Olavo de Carvalho, que
denunciou a mediocrização da vida intelectual brasileira nas décadas mais recentes,
notadamente nos meios universitários, por conta da sua vinculação marxista.
“Sociologia Comteana” é um livro que alcançou já duas edições e empalmou o
prêmio Jabuti, êxitos devidos não ao seu valor intrínseco, à originalidade das suas
demonstrações, a uma qualquer agudeza nas suas análises, ao seu mérito científico. Ao
contrário, eles devem-se apenas a que ele exprime certos conceitos marxistas,
laboriosamente difundidos na sociedade brasileira sob a forma de consensos, que
tornam as pessoas dóceis a qualquer teorização que com eles guardem afinidades ou
identidades abertas. Livro embusteiro, convenceu a um público já predisposto a aceitá -
lo, e só o convenceu por isso mesmo.
BENOIT, Lelita Oliveira. Sociologia Comteana. Primeira edição. São Paulo: editora
Discurso Editorial, 1999.
BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. Primeira edição. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
COMTE, Auguste. Système de Polique Positive.Terceira edição. Paris, 1881.
COMTE, Auguste. Le prolétariat dans la société moderne. Paris, l946. Textos coligidos
e prefaciados por Rodolfo Paula Lopes.
LACERDA NETO, Arthur Virmond de. A república positivista. Terceira edição.
Curitiba: Juruá, 2003.
LEMOS, Jefferson de. Condições fundamentais de ordem e de progresso necessárias à
organização da pátria brasileira. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Cultura
Positivista, 1946.
LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. Primeira edição. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1967.
TORRES, Angelo. O léxico de Augusto Comte. Inédito, Rio de Janeiro, 2000.
SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil. Primeira edição. Porto Alegre:
editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.
VIII
Apotgema
“Escrever cousas taes revela ou muita má fé ou muita ignorância” (Lauro Sodré,
Crenças e Opiniões).
IX
“O Jardim das Aflições” de Olavo de Carvalho: erros e coincidências
Em seu “O Jardim das Aflições”, Olavo de Carvalho dedica alguns parágrafos a
Augusto Comte e à sua obra, acerca dos quais desinformou os seus leitores, certamente
de forma inconsciente e involuntária. Conquanto intelectualmente honesto, revela
superficial conhecimento do Positivismo.
O autor associa a iniciativa de Comte de “fundar um novo culto, incumbência
que lhe fora aliás atribuída por ele (sic) mesmo”, à frase que imediatamente a segue:
“Não é preciso dizer que morreu louco”.
A suposta loucura de Augusto Comte não é de uma obviedade tal, que dispense
demonstrações e cuja veracidade se comprove com a sua simples afirmação ou com a
sua afirmação após outra, em que o autor escarnece do suposto demente. Não, Augusto
Comte não morreu louco, segundo largamente demonstrei no ítem primeiro deste
ensaio.
A fundação do novo culto não resultou de nenhuma patologia daquele filósofo,
tampouco de uma sua iniciativa leviana ou extravagante: ela resultou de uma vasta
apreciação histórica (muito mais ampla, aliás, do que a que brilhantemente executa o
prof. Carvalho no seu livro), da qual resultou, em Comte, a averigüação de que (a) as
religiões são realidades inerentes às sociedades, (b) as sociedades desenvolvem-se no
sentido da sua progressiva laicização, ou seja, do abandono crescente da teologia e de
tudo quanto dela decorra, (c) no âmbito desta secularização, as religiões teológicas
tornaram-se obsoletas e (d) conservando-se a religião enquanto produto humano, deve
ela assumir uma conotação humana, e não mais sobrenatural. Tratou-se, para Comte, de
instituir uma religião laica, terrena, livre de todo componente misterioso, transcendente,
divino, em uma palavra, teológico, na qual o dogma correspondesse aos conhecimentos
humanos; o culto, à exaltação dos sentimentos altruístas, e o seu regime, à atividade
pacífica, fraternal e socialmente útil.
Denominou-a de religião da Humanidade, definindo o substantivo como o
conjunto dos seres humanos, homens e mulheres, convergentes, a saber, úteis e
benéficos ao seu semelhante, do passado, do presente e do futuro. Nela tudo é racional e
demonstrável e dela exclui-se todo sobrenatural, qualidades que lhe mereceram altos
encômios de João Stuart Mill e de Raimundo Aron, tanto mais credíveis porque nenhum
dos dois adotou-a.
Por que seria uma obviedade que tal concepção se associasse a alguma loucura
do seu criador, loucura, aliás, inexistente ?
Dispensando-se de examiná-la, de situá-la nas intenções do seu criador, de
entendê-la, sequer mesmo de apenas descrevê-la e portanto informar o leitor do seu
conteúdo, o autor limita-se a menoscabá-la implicitamente, argumentando com a
“obviedade” de uma perturbação que somente existiu na desinformação biográfica de
Comte.
Neste particular, “O Jardim das Aflições” difunde uma falsidade e,
subrepticiamente, infunde no leitor desprezo por uma concepção que não apresenta. No
primeiro caso, desinforma; no segundo, não informa.
A seguir, o livro aponta três alegadas características principais da religião da
Humanidade:
1) “Seria uma religião do Estado: o homem dos novos tempos serviria ao
Estado”. Isto é asserção manifestamente falsa, redondamente absurda e que não se
encontra em parte nenhuma de nenhuma obra de Augusto Comte (incluíndo-se os oito
volumes do seu epistolário) nem explícita nem tacitamente, como tampouco em obra
nenhuma de nenhum dos seus discípulos; ela encarna um delírio.
A religião positivista não se vocacionava a ser oficializada nem os seus adeptos
seriam servidores do Estado. Ela destinava-se a ser o credo de quantos, convencendo-se
dos seus méritos, a ele aderissem espontaneamente, professando-o com inteira
independência face aos poderes públicos.
Constitui premissa fundamental da política positivista a separação dos dois
poderes, ou seja, a inteira independência dos assuntos materiais, governamentais, numa
palavra, temporais, face aos espirituais, relativos aos pensamentos e aos sentimentos, às
religiões e às doutrinas quaisquer.
Ainda que, por hipótese, os governantes e os governados perfilhassem todos tal
confissão, jamais os seus adeptos seriam servidores do Estado, proposição que jamais
formulou nenhum positivista em parte nenhuma do mundo e que não se encontra em
parte alguma das obras de A. Comte.
Idêntica adulteração encontra-se em “O que é justiça?”, de João Kelsen, na
página 164 da edição brasileira (Martins Fontes, 1997): “...cada membro da sociedade
futura será um funcionário público, um funcionário do Estado”.
Junto do substantivo “Estado” acha-se o número 97 que remete a uma nota
indicativa da fonte correspondente: Curso de Filosofia Positiva, VI, página 482. Ora, no
lugar apontado lê-se: “... il faut d’abord écarter entièrement la distinction vulgaire entre
les deux sortes de fonctions respectivement qualifiées de publiques et privées. [...] Dans
toute societé vraiment constituée, chaque membre peut et doit être envisagé comme une
véritable fonctionnaire publique, en tant que son activité particulière concourt à
l’economie générale suivant une destination regulière, dont l’utilité est universallement
sentie”.
Ou seja: “... é preciso, em primeiro, afastar inteiramente a distinção vulgar entre
as duas espécies de funções respectivamente qualificadas de públicas e de privadas. [...]
Em toda sociedade verdadeiramente constituida, cada membro seu pode e deve ser
considerado como um verdadeiro funcionário público, na medida em que a sua
atividade particular concorre com a economia geral, conforme uma destinação regular,
cuja utilidade é universalmente sentida”.
Todo indivíduo pode e deve ser reputado como um funcionário público na
medida em que exerça uma função, desempenhe um papel no meio social, perante a
sociedade, em meio ao povo que integra, face ao público formado pelos seus
contemporâneos; papel útil, que concorra para o funcionamento da sociedade no seu
conjunto. Ninguém vive isoladamente, à parte ou a margem de uma coletividade: o
exercício de uma atividade que gere efeitos perante o próximo, corresponde a uma
função que, desenvolvendo-se no seio de certo povo, é pública.
Comte empregou a expressão “funcionário público” em sentido sociológico;
Kelsen inteligiu-a como jurista que não entendeu o que leu. O que significava atividade
vantajosa à sociedade, sem qualquer vinculação com o Estado, transformou-se em
serviço prestado a este; o que correspondia a indivíduo útil ao seu próximo, passou a ser
o empregado dos poderes públicos, em uma deturpação flagrante da letra de A. Comte,
que assim se desnaturou, fazendo, falsamente, do Positivismo um estatismo,
precisamente o que o positivista Alfredo Severo dos Santos Pereira increpava, sob o
título de “estadocracia”, na antiga União Soviética. Daí porque atribuir-se ao
Positivismo uma idealização do Estado, não passa de balela e de mistificação, própria
de quem não leu A. Comte ou o tresleu.
2) “Para marcar sua ruptura com a era anterior, ela instituiria um novo
calendário, com ritos festivos dedicados aos “grandes homens”, cujo advento a este
mundo marcara as etapas decisivas do “progresso histórico”.
Substituindo o júlio-gregoriano, o novo calendário, mais correto
matematicamente e mais realista astronomicamente do que ele, visava a marcar a
continuidade histórica entre o passado humano e o seu futuro, entre o tempo anterior à
religião da Humanidade e aquele em que ela já existe. Por isto, o novo calendário, de
natureza histórica, intitulava os meses com os nomes de figuras maiores da humanidade,
conforme o seu âmbito de ação, a fase histórica e certo aspecto da vida social
(Aristóteles: filosofia antiga; Gutemberg: indústria moderna, etc.), exprimindo que,
longe de repudiar o passado, a nova religião pretendia-se a sua continuadora.
Comte: “[...] o calendário histórico tem sobretudo uma destinação moral, a de
reanimar o sentimento de continuidade [...]” (Política, IV, 401). “Esta comemoração
sistemática de todo o nosso passado é sobretudo destinado a desenvolver profundamente
[...] o espírito histórico e o sentimento de continuidade” pois “importa muito cultivar o
mais possível o instinto familiar da continuidade histórica”, graças à “aptidão
característica” do Positivismo a “glorificar todas as fases humanas” (Correspondência
geral, V, 298/299).
Qualquer afirmação de que a religião da Humanidade vocacionava-se a romper
com o passado e de que o calendário histórico marcaria tal suposto rompimento,
denunciam, da parte de quem a produz, a mais tenebrosa ignorância. Não se alegue, em
sustentação da tal ruptura, com a nova datação dos anos, a partir de 1789 (pela qual, por
exemplo, 2004 corresponde ao ano de 226) ou de 1855: trata-se de assinalar a contagem
do tempo segundo certas etapas da espiritualidade humana, jamais de sublinhar um
repúdio dos tempos transactos, atitude, aliás, que a religião da Humanidade estigmatiza
severamente.
Os ritos festivos, mais exatamente festas, na expressão de Comte, sob a forma de
comemorações, voltam-se a homenagear a Humanidade (entendida como o conjunto dos
seres humanos úteis aos seus semelhantes, do pretérito e do presente), os laços humanos
(o casamento, a paternidade, a filiação, a fraternidade, a domesticidade), as grandes
etapas do desenvolvimento histórico (o feiticismo, politeísmo, o monoteísmo, a
modernidade), recordadas pelas suas instituições características e pelas suas
individualidades capitais, e as funções sociais (as vidas afetiva, contemplativa, ativa, e o
poder prático).
Tais festas consagravam a Humanidade nos seus aspectos estático, relativos à
sua estrutura, e dinâmico, atinentes às modificações que historicamente experimentou a
espécie humana. Nos dois casos, substituem-se as ficções da teologia pelo
conhecimento das realidades humanas, em uma tripla função, cultual, cultural e
educativa, que caracterizam a religião da Humanidade como um humanismo cuja
sabedoria excede o horizonte espiritual dos seus criticadores.
3) “A nova religião assinalaria o ingresso da humanidade na etapa decisiva de
sua evolução temporal – a “era positiva”, marcada pelo predomínio da ciência e da
técnica, após a “era mítica” inicial”.
Na filosofia da história de Comte, inexiste uma “era mítica inicial”. Há, sim,
uma fase teológica da história humana, caracterizada, em recuados tempos, pela
predominância das crenças no sobrenatural e por uma uma certa organização social e
política.
A nova religião assinalaria, de fato, o ingresso da humanidade em uma nova
etapa, porém não sob o aspecto temporal (entenda-se político e governamental), e sim
do ponto de vista espiritual, concernente à mentalidade predominante das pessoas. Tal
mentalidade não seria a, já obsoleta, da teologia, nem a, transitória, da metafísica: seria
a positiva, aquela em que a forma predominante do pensamento fundamenta-se na
observação dos fatos, observação que permite conhecer a realidade, entendê-la e atuar
sobre ela, em lugar da imaginação, nota distintiva das formas anteriores de cognição e
de reflexão.
Expressões típicas da mentalidade positiva, da positividade, são a ciência, que
averigüa os fatos, que apura a realidade, permitindo ao homem conhecê-los, e a técnica,
que permite empregar tal conhecimento. Note-se que a positividade e a técnica são
elementos tão antigos quanto a própria humanidade; elas sempre existiram e graças
também a elas é que o desenvolvimento humano processou-se. Enquanto antes a sua
presença concorria com a teologia e com a metafísica, ela torna-se predominante na era
positiva.
Na religião da Humanidade, no entanto, a positividade como critério da
cognição, a ciência como produto refinado desta e a tecnologia como emprego da
ciência, completam-se com critérios morais: todo o conhecimento e toda a sua aplicação
devem adotar por escopo a Humanidade e o seu serviço. A ciência e a tecnologia devem
existir e operar em função do ser humano e em seu benefício, única perspectiva em que
se justificam, o que exclui a tecnocracia em favor da sociocracia. Daí a regulação moral
da pesquisa científica e da sua aplicação. Por regulação moral entenda-se destinação
altruísta.
Ora, destes caracteres, que o autor de “O Jardim das Aflições” não
compreendeu, resultariam, segundo ele: (a) a identificação da lei religiosa com a civil, o
que é inteiramente falso, no que tange ao Positivismo, porquanto nele tais esferas não se
identificam; (b) o culto dos antepassados, o que também é interiramente falso, pois na
religião da Humanidade o culto não se volta aos avoengos genealógicos, porém aos
grandes homens, às superioridades humanas, àqueles que os tempos históricos
produziram de mais meritórios, de mais nobres, de mais inteligentes, de mais úteis ao
seus semelhantes, cujas atuações pessoais acrescentaram ao patrimônio moral, cultural,
científico, estético ou prático da espécie humana.
Consoante o livro em apreço, a nova religião “simplesmente dava expressão
mais detalhada à idéia hegeliana do Estado como sucessor da Igreja”. Ora, entre as
concepções de Hegel e as de Comte, não se verifica nenhuma relação de causa e efeito,
de antecedente e conseqüente, em que se possa reputar as do segundo um
desenvolvimento das do primeiro.
Cioso de, em suas obras, mencionar os seus antecessores intelectuais, Comte
refere-se a Hume e a Kant; a Condorcet e a de Maistre; a Bichat e a Gall; a Bacon, a
Descartes e a Leibnitz; a Tomás de Aquino, a Rogério Bacon e a Dante, finalmente, a
Aristóteles. Jamais aludiu a Hegel, exceto para confessar não o haver lido e para
exprimir o seu regozijo pela favorável acolhida que dele mereceu o seu “Plano dos
trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”, de 1822.
Pode-se conjecturar uma possível influência no sentido inverso, de Comte sobre
Hegel, contudo a afirmação recíproca é inteiramente gratuita e jamais figurou em
nenhum biográfo de Comte, como tampouco em nenhum dos seus examinadores. Trata-
se de uma asserção infundada, da mesma forma como também o é, e ainda mais
gravemente, a alegada sucessão do Estado à Igreja: longe de suprimir a igreja e
converter o estado em seu herdeiro, o Positivismo distingue enfaticamente um do outro,
afirmando, quer a existência de ambos, quer, sobretudo, a necessidade da sua
independência mútua, pelo célebre princípio da separação dos dois poderes, temporal e
espiritual.
Deve haver Igreja, poder espiritual, que atua sobre os indivíduos por meio das
suas convicções e sentimentos; deve haver Estado, poder temporal, que atua sobre as
coisas por meio da força material; devem ambos coexistir com plena independência:
nem é legítimo o Estado pretender impor convicções e doutrinas quaisquer, nem é
legítimo a Igreja tencionar exercer o mando político. No Positivismo, o Estado não é
sucessor da Igreja porque esta não desaparece e, destarte, não é sucedida por ninguém,
como a ambos reservam-se papéis próprios. Mais uma vez “O Jardim das Aflições”
desinforma, com uma assertiva absurda, inexistente nas obras de Comte, das quais não
decorre sequer longinquamente, e que desmente o que de mais expresso formulou o
filósofo.
Segundo o livro em causa, a religião da Humanidade foi adotada somente no
Brasil. Novo equívoco: ela foi adotada com mais evidência entre nós, e com igual fervor
na França, na Inglaterra, na Suécia, no Uruguai, na Argentina, no México, no Chile,
onde houve aderentes seus, dos quais muitos deixaram obra escrita e atuação útil nos
respectivos meios.
Entre nós, foram, segundo o mesmo livro, oficiais militares os que sonharam
com a adoção da ditadura republicana de Comte (expressão que, aliás, o livro menciona
sem a explicar): não, foram, antes de tudo, os civis, especialmente os apóstolos da
Humanidade, Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que infatigavelmente
exortaram o imperador a prevenir um golpe de força, proclamando ele próprio uma
república de feitio positivista, antes que outros o fizessem. Foram também outros civis,
os muitos que, por exemplo, compunham a bancada positivista na constituinte de 1891.
Foram também os militares, notadamente Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
Deixou o Positivismo, entre nós, uma infinidade de marcas, como,
acertadamente exprime “O Jardim das Aflições”: o dístico “Ordem e Progresso” na
bandeira; a laicização do Estado, com a introdução da liberdade religiosa, até então
inexistente; a secularização dos cemitérios, até então exclusivos dos católicos; a
introdução dos registros de nascimento e de óbitos, na esfera civil; inúmeros
dispositivos asseguradores das liberdades públicas na constituição de 1891; um espírito
de tolerância e de respeito face ao catolicismo e aos demais credos; uma exortação
constante pela fraternidade entre os países sul-americanos e pelo recurso ao
arbitramento nos seus desacordos; o despertar de uma consciência em favor da redução
das desigualdades sociais e da proteção dos trabalhadores; a primeira legislação
trabalhista da república; o repúdio às soluções de força na política interna e externa; o
tratamento pacífico e benevolente aos silvícolas; o esforço em prol da educação laica e
científica; o combate aos privilégios que na vida civil criassem diferenças indevidas
entre as pessoas; um senso de patriotismo sincero e dedicado; o reconhecimento dos
predicados morais das mulheres; a afirmação da fraternidade universal como critério da
política; a necessidade de submeter permanentemente a ação política aos valores
morais; o desenvolvimento do espírito público; a fundação da Universidade do Paraná
(com o concurso de terceiros); a afirmação das liberdades públicas e políticas como
integrantes do regime republicano e tudo quanto os difamadores do Positivismo sóem
silenciar, que de benéfico, de útil, de construtivo, de simpático os seus apóstolos e os
seus aderentes realizaram, cada qual dentro das suas possibilidades pessoais.
O que os positivistas não deixaram como marca, é o que “O Jardim das
Aflições” lhes imputa: “um inesgotável calendário cívico, que [celebra] as secretárias,
os motoristas, as mães, os pais, os namorados e tutti quanti”. Em si, as homenagens no
calendário às secretárias, aos motoristas, etc., nada contém de censurável. Ao contrário,
é construtivo que se dedique um dia do ano a evocar o papel útil que presta cada tipo de
profissional, para o bem estar dos seus patrícios. São úteis as secretárias a quantos delas
precisam, como o são os motoristas, que, dia após dia, transportam milhares de pessoas
ao seu local de trabalho e de volta à casa, de estudantes às escolas, de pessoas
destituídas de automóveis aos seus destinos.
Ninguém, sensatamente, negaria o mérito, ainda que relativo e ínfimo, de quem
atua em favor do seu semelhante, por meio do esforço de que é capaz, nem um certo
valor, nas homenagens que, de cada um, possam receber aqueles que nos merecem
estima, apreço e amizade. Longe disto, são formas de educação, por despertarem o
reconhecimento a quem seja útil, enquanto funcionário social, no dizer de Comte, e por
exercitarem a sociabilidade humana, que o Positivismo reputa um bem em si próprio.
Elas despertam, para empregar uma expressão muito em voga atualmente, um senso
comum reformado (Gramsci) no sentido altruísta.
Todas estas homenagens obedecem a uma inspiração positivista, no que contém
de fraternal, de expressão concreta dos sentimentos altruísticos que a religião da
Humanidade tanto encareçe. No entanto, ao contrário do que veicula o “Jardim”, a
oficialização de tais homenagens não partiu – que pena!- de positivistas.
Em suma, na parte relativa ao Positivismo, a obra em apreço enferma de
confusões e de más compreensões, o que parece inevitável face à sua bibliografia que,
embora vasta, não exibe os biógrafos confiáveis de Comte, nem as obras dos seus
discípulos, ao menos as dos que seria de rigor consultar, como Pedro Laffitte, Teixeira
Mendes, Miguel Lemos, Ivan Lins e tantos outros. Sequer figura “As etapas do
pensamento sociológico” de Raimundo Aron, que apresenta um excelente capítulo sobre
o tema e que há quase trinta anos acha-se disponível em traduções brasileiras. Não
figura sequer o próprio Augusto Comte, ausência imperdoável em livro que analisa as
suas concepções e que as critica de segunda mão, por “ouvir dizer”. Nem mesmo o
“Catecismo Positivista”, encontradiçíssimo no Brasil, em que, na coleção “Os
Pensadores”, recebeu várias edições de milhares de exemplares e cuja leitura
corresponde ao minimo minimorum de quem se aventure a dissertar sobre Comte e o seu
pensamento. Em suma: não consultou as fontes originais, não leu o próprio Comte, não
leu os seus explicadores, porém, certamente, os seus deturpadores. Não sabe do que
fala.
Brilhante, original, singular no seu conjunto, “O Jardim das Aflições” mostra-se,
no capítulo do Positivismo e do seu fundador, mal informado, mal informador e
desinformador. “Nenhum grau de talento e de espírito pode conferir, a quem quer que
seja, o direito de falar do que não conhece”, dizia José de Maistre (Do Papa)... A
influência do “Jardim das Aflições” é perniciosa e urge que o seu autor reforme o que
nele escreveu, acerca do Positivismo.
Todavia, nem tudo no “Jardim” são equívocos no tocante ao Positivismo: há
coincidências flagrantes, a demonstrar que o seu autor alcançou conclusões, algumas
idênticas às que chegara Augusto Comte século e meio antes, outras, muito próximas
das dele. Conquanto destituído de conhecimento direto da obra de Comte, embora
mesmo antagônico ao Positivismo, o autor do livro, por outras vias, acaba por
confirmar-lhe alguns aspectos fundamentais.
Assim, à página 301, aconselha Olavo de Carvalho: “...é preciso que, no novo
quadro mundial, cada homem empenhado na defesa do Espírito [...], mantenha afiado o
sentido crítico e saiba exigir do Império aquilo que se deve exigir de toda organização
social e política: que sirva ao sentido da vida, em vez de usurpá-lo numa nova idolatria.
Isto significa, rigorosamente, abster-se de qualquer tomada de posição ideológica [...] e
oferecer sistemática resistência à noção mesma – inerente a todas as ideologias- de que
algum regime político, bom ou ruim, deva ter sobre as almas humanas uma autoridade
espiritual comparável à de uma tradição religiosa”.
Na página seguinte: “Nenhum regime, nenhum Estado, tem o direito de agir
como intérprete soberano da verdade, subjugando as consciências individuais, pois é
nestas, e não nele, que vive e esplende o dom da inteligência”.
Deve o Estado, segundo o prof. Carvalho, abster-se de adotar qualquer doutrina:
exatamente, exatamentissimamente isto mesmo recomendava A. Comte, que erigiu tal
exigência no princípio político que denominou de separação dos dois poderes, espiritual
e temporal. Ouçamos o positivista ortodoxo Jorge Lagarrigue: “... o único meio de [se]
evitar o despotismo consiste na instituição sistemática da separação dos dois poderes
temporal e espiritual, inerente a toda sociedade. É o que só se consegue [...] tirando ao
governo temporal todas as atribuições de decidir em matéria de opiniões.” (“A ditadura
republicana”).
Ao caracterizar a ditadura republicana, Lagarrigue afirma a “necessidade da
liberdade espiritual, isto é, da abstenção por parte do Estado de toda ingerência no
domínio das crenças e das doutrinas” (idem). Mais: “A liberdade espiritual sendo, pois,
o fundamento essencial do progresso social, a ditadura republicana, ou verdadeiramente
progressista, deve constituir-se em sua principal guarda, e tomar as medidas necessárias
para assegurá-la em sua plenitude” (idem).
Dentre as inúmeras enunciações deste princípio pelo próprio Augusto Comte,
colhemos estas, ao acaso: “Só o Positivismo sistemático faz apreciar hoje o admirável
instinto que impeliu todos os homens eminentes da idade média a introduzir, entre o
poder moral e o poder político, uma divisão fundamental, obra prima da sabedoria
humana [...] esta separação necessária [...] não é atualmente compreendida e respeitada
senão pela nova escola filosófica”, a saber, a positivista. (Sistema de Política Positiva, I,
76).
“Princípio fundamental da política moderna, a separação normal dos dois
poderes essenciais”, é “igualmente indispensável à ordem e ao progresso” (idem, 77).
Na página 302, ao aludir à democracia capitalista vigente nos EE. UU. AA.,
avalia o “Jardim” que “os méritos do sistema norte-americano não são devidos à idéia
democrática enquanto tal, nem muito menos ao capitalismo como tal”, porém aos
“valores cristãos” que “serviram constantemente de balizas que limitavam e
disciplinavam os movimentos do Estado e do mercado, dando um sentido ético e até
espiritual ao que por si não tem nenhum”.
Augusto Comte proclamava exatamente que assim deve ser: os poderes públicos
e as forças econômicas devem submeter-se a uma disciplina moral, a critérios
axiológicos que, presentes na consciência ética das pessoas, funcionem-lhes como
reguladores espontâneos. “Dissipando toda discussão vã e tormentosa sobre a origem e
a extensão das posses, [o Positivismo] estabelece diretamente as regras morais relativas
à sua destinação social”. “Estas regras indispensáveis devem ser, quanto à sua fonte,
morais e não políticas”, devem radicar na mentalidade dos ricos, dos trabalhadores, dos
políticos, dos formadores de opinião, dos eleitores, das pessoas em geral, mercê da sua
educação, ao invés de corresponderem a um controle estatal, mercê da legislação. A
natureza de tais regras, “segundo o verdadeiro espírito republicano, consiste em fazer
sempre concorrer ao bem comum todas as forças quaisquer”, efeito para o qual
“cumpre determinar exatamente o que exige, em cada caso, a utilidade geral e
desenvolver por toda parte as disposições correspondentes” (idem).
Claro, entre os valores cristãos e os positivistas, há diferenças óbvias: enquanto
os primeiros vinculam-se ao sobrenatural e à teologia, os segundos prendem-se com o
humano e com a laicidade, coincidindo na afirmação do altruísmo (ainda que por modos
discrepantes).
O decisivo acha-se na necessidade de valores que as pessoas atribuam às vidas
política e econômica e que as disciplinem moralmente. Dada a secularização inevitável
das sociedades, os valores teológicos ou substituem-se por outros, de cariz humanista,
ou desacreditarão tudo quanto a que se encontram vinculados, averigüação em que,
aliás, Comte foi explícito e que, de certo modo, corresponde ao papel do Positivismo.
É inútil opor-se à laicização: ela encarna um fato inexorável e inerente ao
próprio desenvolvimento histórico da espécie humana, dentro do qual o sentido
histórico e a utilidade do Positivismo consistem em oferecer ele uma alternativa à
derrocada dos fundamentos teológicos dos valores, na medida em que lhes atribui
justificativas humanas.
Na página 307, o “Jardim” recomenda-nos a “lição” de Bertrando de Jouvenel,
“segundo a qual a religião e somente a religião, compreendida como portadora
simbólica de verdades universais e [de] valores objetivos, pode oferecer uma resistência
eficaz ao crescimento ilimitado do poder político”.
Religião não equivale a teologia e sim a síntese, a um conjunto de conceitos,
valores, idéias, práticas e sentimentos que, referindo-se à divindade nas confissões
tradicionais, volta-se, no caso do Positivismo, à Humanidade, conjunto contínuo dos
seres humanos, homens e mulheres, de todos os tempos, úteis ao seu semelhante.
Se o que assegura a contenção do poder temporal é a presença do poder
espiritual, tal eficácia, cada vez menor da parte das religiões teológicas, face à
laicização, caberá às fórmulas religiosas compatíveis com a própria laicização. Ora,
existe uma única fórmula nestas condições, ou seja, uma doutrina que, secular,
corresponda também a uma religião: tal é o Positivismo enquanto religião da
Humanidade.
É inútil lamentar-se o enfraquecimento dos valores cristãos; é retrógrado
empenhar-se no seu fortalecimento: eles acham-se fadados a desaparecer, não como
valores, porém como manifestações da teologia. Também é inconseqüente tachar-se o
positivismo de “moléstia espiritual” por negar o sobrenatural e ignorar as causas
primeiras e as finais: fazê-lo equivale a saudosismo que tenta restaurar mentalidades
obsoletas e que se ocupa de inutilidades e de ficções.
O que é eficaz, é inserir a ética no âmbito de uma religiosidade mundana, que
substitua a teológica, motivo porque a religião da Humanidade pretende-se como a
sucessora do catolicismo, assim como este, longe de encarnar uma verdade eterna, não
passou do sucessor provisório do politeísmo. Espontânea primeiro (feiticista), revelada
depois (politeica), a religião tornou-se revelada a seguir (cristianismo) para, por fim,
tornar-se em demonstrada com o Positivismo, faceta que o torna merecedor de uma
atenção muito mais detida e compenetrada do que aquela, chocarreira e frívola, que lhe
dispensou o “Jardim”. Um dos rasgos da genialidade de Augusto Comte e da sua
perspicácia, radica em haver considerado a religião como inerente às sociedades e
variável ao longo dos tempos: do seu estado atualmente mais difundido (teológico),
deve ela assumir natureza humana e demonstrável. Nisto acertou Érico Voegelin,
segundo quem a cura dos males da modernidade repousa em um fortalecimento da
religião, seja das tradicionais, seja de outras: a tal correspondeu o fito invariável e o teor
inteiro da obra de Augusto Comte, que, mais de um século antes de Voegelin, tendo se
apercebido da natureza espiritual dos problemas modernos, ofereceu-lhes um solução
também espiritual, no âmbito de uma espiritualidade altruísta, humana e realista, vale
dizer, positiva. Enquanto Voegelin restringiu-se a apontar a natureza do tratamento,
Comte elaborou diretamente a terapia, com prioridade e com brilhantismo contestados
apenas por quantos lhe ignoram a obra.
“Na ausência, prossegue o livro em causa, na página 307, de autoridade
espiritual, o poder é o único juiz. Democrático ou oligárquico, comunista ou capitalista,
monárquico ou republicano, social-democrata ou neo-liberal, ele será sempre o poder de
César, com um propensão incoercível a autodivinizar-se. E enquanto não
compreendermos essas coisas continuaremos a apostar neste ou naquele sistema
político não enxergando que os méritos de qualquer sistema político dependem
essencialmente de que ele saiba respeitar os limites que lhe são impostos pela
consciência religiosa do povo, vivificada pela presença da autoridade espiritual e
firmada em valores que antecedem de muito o nascimento desse sistema”.
Os limites do poder temporal acham-se 1) em valores 2) presentes na
consciência do povo e 3) afirmados pelos “homens em quem se manifesta de maneira
patente o espírito mesmo da religião”.
Neste passo, o “Jardim” coincide inteiramente com o Positivismo e com as
formulações mais explícitas de Augusto Comte, segundo quem 1) a opinião pública 2)
sob uma doutrina comum, ou seja, inspirada por certos conceitos e valores 3) veiculada
pelos formadores desta mesma opinião, o poder espiritual, que Comte designava por
filósofos ou sacerdotes, 4) deve fiscalizar o exercício do poder estatal e reagir-lhe.
“Apreciada em seguida na ordem política propriamente dita, dizia Comte, [...] a
força da opinião pública deve tornar-se a sua principal reguladora” (Política, I, 140).
“Esta [...] destinação [...] da opinião pública determina imediatamente as condições
essenciais da sua organização normal. Um tal ofício moral e político exige, em primeiro,
verdadeiros princípios sociais, em seguida um público que, tendo-os adotado, sanciona
a sua aplicação especial, e por fim um orgão sistemático que [lhe] dirije o uso diário”
(idem, 141).
Referindo-se à “íntima aliança” entre os filósofos e os proletários”, ou seja, entre
os agentes da autoridade espiritual e a massa populacional, aliança que forma a opinião
pública, segundo Comte o “principal melhoramento” a introduzir-se na sociedade
“consiste no nobre ofício social assim conferido diretamente aos proletários [vale dizer,
o povo em geral], doravante erigidos em auxiliares indispensáveis do poder espiritual”,
em uma cooperação que “não será política, mas moral” e referir-se-á ao “sábio
exercício” do poder (idem, 150/1).
No mesmo sentido Luis Lagarrigue: “A única soberania do povo, a verdadeira
democracia, consiste em formar a opinião pública [...] e transformar essa opinião
pública em força social capaz de sancionar, guiar e regular o comportamento dos
poderes temporais” (La propriedad).
Tais coincidências entre as conclusões do “Jardim” e alguns princípios do
Positivismo tornam o ilustre autor daquele livro um positivista perfeito, nisto ao menos.
Não se trata de coincidências de somenos, porém de identidades cruciais, em pontos
decisivos daquela doutrina que, digam o que disserem os seus detratores e os apedeutas,
é rica de percepções geniais, altamente úteis na compreensão do nosso tempo, no
diagnóstico dos seus males, nos remédios que nos oferece. A sua filosofia da história
descreve a marcha da espécie humana, do passado em direção ao futuro; o seu
entendimento da ciência permite julgar as doutrinas que o prof. Olavo critica (o
marxismo, o freudismo, o socialismo); a sua teoria da religião rende justiça aos serviços
prestados pela teologia e explica o inexorável da laicização. Dentre muitas outras,
correspondem estas a facetas que constituem o Positivismo enquanto corpo doutrinário
muito superior àquele positivismo adulterado, superficial, amesquinhado, de uso
popular, que muitos ocupam-se em hostilizar, alguns levianamente, na incapacidade de
compreenderem a obra de Augusto Comte na sua profundidade e no seu gigantismo.
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. É realizações, São Paulo, 2000.
COMTE, Augusto. Sistema de política positiva. Paris, 1851 a 1854.
_______________Correspondance générale, Paris, V, 1982.
LAGARRIGUE, Jorge. A ditadura republicana, in O ideal republicano de Benjamin
Constant. Rio de Janeiro, 1936.
LAGARRIGUE, Luis. La propriedad. Santiago do Chile, 1925.
VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa, 2000.
X
Desinformação jurídica: o “positivismo” jurídico
15.IX.2005
Desinformação freqüentíssima é a em que incorre o pessoal jurídico:
estudantes, doutrinadores e professores de Direito; advogados, juízes, promotores;
mestrandos e mestres, doutorandos e doutores em Direito, identificam o Positivismo
com o “positivismo” jurídico ou juspositivismo.
Positivismo significa a doutrina criada por Augusto Comte, que, autor
também do termo, empregou-o para designá-la. A ela pertence, legitimamente, este
vocábulo, que outras correntes adotaram, ou que lhes imputaram, como é o caso do
“positivismo” jurídico ou juspositivismo. Desta designação analógica, resulta que os
desavisados tratam a ambas como se correspondessem ao mesmo conteúdo, imputam ao
Positivismo o que pertence ao “positivismo” jurídico, atacam aquele por conta deste,
repugnam-se do primeiro por repugnarem-se do segundo.
A expressão “positivismo” jurídico designa uma concepção própria e
exclusiva do Direito, segundo a qual existe apenas o direito positivo, vale dizer,
legislado, enquanto norma emanada do Estado, pelo que, no intuito de evitar-se o
homonimato e a confusão que ele provoca, é aconselhável substituirem-se as
designações de positivismo jurídico e de juspositivismo, pela de normativismo, que
passo a empregar.
A confusão entre o Positivismo e o normativismo é grosseira: salvo o seu
infeliz homonimato, nada entre eles existe de comum, seja como doutrina, seja como
influência de um sobre o outro, exceto a rejeição do direito natural, e ainda assim, como
uma interpretação do primeiro e não como uma sua tese explícita.
O Positivismo corresponde a uma doutrina filosófica, concebida por
Augusto Comte, de que resultou a constituição do pensamento humano em estado de
positividade, a criação da sociologia, o estudo das condições de existência das
sociedades, a descrição da evolução histórica da Humanidade, a instituição de uma
religião humanista e um projeto de organização social.
O normativismo designa uma doutrina jurídica, constituída por João
Austin, segundo a qual o Direito equivale, exclusivamente, à norma legislada.
O Positivismo não se ocupa, absolutamente, do Direito, como norma,
como doutrina, como produto social, como objeto de estudo, de interpretação, de
doutrinamento. O normativismo ocupa-se, exclusivamente, do Direito, como norma e
como objeto de estudo.
O Positivismo corresponde à obra pessoal de Augusto Comte; o
normativismo, à de Austin, de Bentham, de Kelsen e de outros doutrinadores.
O Positivismo teve por precursores a filósofos e cientistas que Comte
nomeia, a saber: Hume, Kant, Condorcet, de Maistre, Bichat, Gall, Bacon, Descartes,
Leibnitz, Tomás de Aquino, Rogério Bacon, Dante, Aristóteles. O normativismo teve
por precursores a juristas, como Gustavo Hugo, Thibaut, Duranton, Aubry, Troplong;
teve por instituidor a João Austin e por epígono célebre, a João Kelsen.
O Positivismo constituiu-se com base nos escritos de Comte, que se
distribuem em três grupos: 1- o dos escritos de juventude, de 1819 a 1826, em que ele
dissertou sobre o Poder Espiritual, a evolução histórica da Humanidade, um livro de
medicina de Broussais, a reorganização social, os cientistas e as ciências. 2- o da fase
intelectual, correspondente ao Curso de Filosofia Positiva, que principiou a professar
em 1824 e que publicou de 1830 a 1842, em que trata da matemática, da astronomia, da
física, da química, da física, da biologia, da sociologia, da história da humanidade, do
estado das sociedades suas contemporâneas, da tendência de evolução delas. 3- o da
fase religiosa, em que publicou, de 1850 a 1856, o Sistema de Política Positiva, o Apelo
aos conservadores, o Catecismo positivista, o tomo primeiro da Síntese subjetiva, cujos
conteúdos correspondem à constituição da sociedade organizada segundo o seu
pensamento, ao estudo do poder espiritual, da linguagem, da propriedade, da família, do
governo, da religião, a uma súmula da religião da Humanidade, a um projeto de ação
política, à filosofia matemática. Em momento nenhum, em nenhuma das suas obras
tratou do direito enquanto doutrina, enquanto normas, enquanto legislação.
O normativismo constituiu-se com base no livro de João Austin, A
determinação do campo da jurisprudência; com base na escola da hexegese, encarnada
em Alexandre Duranton, Carlos Aubry, Frederico Rau, João Demolombe e Troplong;
com base nos livros de matéria jurídica de Bentham; com base na Teoria Pura do
Direito, de João Kelsen, e com base em outros autores. A produção jurídica de Bentham
data de 1802, quando Comte contava quatro anos de idade; a de Austin, de 1832,
quando Comte publicara os seus textos juvenis, em periódicos, e a filosofia matemática;
a Teoria pura do Direito nenhum traço de Positivismo apresenta; as obras da escola da
hexegese consistem na explicação do Código Civil francês do tempo. Jamais, em
momento algum, nem Bentham, nem Austin, nem Kelsen nem os mentores da escola da
hexegese, assumiram-se como discípulos de Comte, como tampouco, em toda a
bibliografia do Positivismo, existe a menor referência a eles, evidência de que trata-se
de doutrinas que não apenas não se influenciaram, como ainda ignoraram-se.
Comte jamais se ocupou de filosofia e da ciência jurídicas; o máximo que
se encontra nas suas obras, é a indicação da necessidade de substituir-se a noção de
direito, individual e egocêntrica, pela, social, de dever, sem que das suas palavras possa-
se deduzir, direta ou indiretamente, a doutrina do normativismo em qualquer dos seus
aspectos. Em parte alguma das obras dos seus discípulos encontra-se a mais superficial
manifestação de normativismo, a menos que se repute normativista quem reconheça a
necessidade de leis escritas, originárias do Estado e de obediência necessária: neste
sentido, é normativista mesmo o mais acirrado anti-normativista.
Percorram-se as obras de Miguel Lemos, de Teixeira Mendes, de Ivan
Lins, de Emílio Littré, de Gregório Wiroubouff, de Pedro Laffitte; percorram-se as
dezenas de volumes da Revue Occidentale: em momento algum, encontrar-se-á nelas
qualquer elemento normativista. De raro em raro, encontrar-se-á referências ao direito
enquanto noção a que o Positivismo contrapõe a de dever.
Ora, o normativismo adota como princípios: 1- deve-se tratar o direito
como fato e não como valor; 2- o direito vigora pela imposição, 3- o direito corresponde
a textos legislativos, 4- a norma corresponde a um comando imperativo, 5- existe um
sistema completo e coerente de normas, 6- a hexegese é meramente declaratória do
conteúdo da lei, 7- deve-se obediência estrita à lei. Nada disto se encontra nos textos de
Comte, nada disto corresponde aos seus temas.
Entre os temas de Comte e os do normativismo não existe nenhuma
coincidência: Comte escreveu sobre matérias alheias às dele, que ocupou-se de temas
alheios aos dele; sequer o uso do termo positivismo decorreu de uma analogia com o
Positivismo: a expressão “positivismo” jurídico resultou da obra de Gustavo Hugo,
“Tratado do direito natural como filosofia de direito positivo”, de 1798 (ano do
nascimento de Comte) e da qual João Austin adotou a expressão “direito positivo”,
como subtítulo (A filosofia do direito positivo) da sua obra.
Em suma:
1- inexiste qualquer influência do Positivismo sobre o
normativismo e vice-versa nem decorre o segundo do primeiro, direta ou
indiretamente; no máximo, poderá ter havido alguma influência meramente
individual, do primeiro, em obras de autores adeptos do segundo, porém jamais
quanto à doutrina própria deste, no sentido de aproximá-las,
2- resultou cada qual de predecessores e de instituidores diferentes;
3- tratam ambos de temas redondamente distintos;
4- não há identidades entre ambos, salvo na sua comum recusa do
direito natural;
5-coincidem ambos apenas em uma infeliz homonomínia, que cumpre erradicar
mediante a conservação do termo Positivismo para o seu legítimo titular e a
vulgarização da designação de normativismo, em substituição às expressões
“positivismo” jurídico e juspositivismo.
Autor de um excelente estudo histórico e dogmático do normativismo,
assim esclarece Norberto Bobbio: “A expressão “positivismo jurídico” não deriva
daquela de “positivismo” em sentido filosófico [...] em suas origens [...] nada tem a ver
com o positivismo filosófico – tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na
Alemanha, o segundo surge na França. A expressão “positivismo jurídico” deriva da
locução direito positivo contraposta àquela de direito natural” (O positivismo jurídico,
N. Bobbio, página 15), “embora no século passado [XIX] tenha havido uma certa
ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também
positivistas em sentido filosófico”, o que mantém a distinção entre Positivismo e
normativismo e, ao afirmar que alguns adeptos do normativismo eram-no do
Positivismo, assere, indiretamente, que nem todos os filiados ao primeiro, eram-no ao
segundo e vice-versa e que, portanto, inexiste uma relação de inerência entre ambos.
Aos temas do Positivismo acha-se ausente, de todo em todo, o direito,
enquanto regra, enquanto objeto de hexegese, enquanto objeto de doutrinamento,
enquanto objeto de legislação. As únicas referências, em toda a obra de Comte, ao
direito, são ligeiras, limitam-se a breves linhas e correspondem à afirmação da
necessidade de substituir-se o conceito de direito pelo de dever.
Esclarecedoramente, explica Bobbio, quanto ao normativismo: “O
momento ideológico tem, enfim, uma importância notável junto aos juspositivistas
alemães da segunda metade do século transcorrido, que sofreram a influência da
concepção hegeliana do Estado. Segundo esta concepção (dita do Estado ético), o
Estado não tem um puro valor técnico,não é um simples instrumento de realização dos
fins dos indivíduos (como é no pensamento liberal), mas um valor ético, é a
manifestação suprema do Espírito no seu devir histórico e portanto é ele mesmo o fim
último ao qual os indivíduos estão subordinados. É evidente que tal modo de entender
o Estado não é uma teoria, mas uma ideologia, visto que descreve não o Estado assim
como ele é, mas como se desejaria que fosse. Ora, tal concepção (que foi chamada de
estatolatria, porque é uma verdadeira adoração do Estado), encontra confluência no
juspositivsmo alemão que, desse ponto de vista, deve ser considerado também como
uma ideologia.”
Adiante: “[...] o positivismo jurídico foi considerado como uma das
causas que provocaram ou favoreceram o advento dos regimes totalitários europeus
e,em particular, do nazismo alemão.
É natural que uma crítica deste gênero, que queira denunciar as
conseqüências moral e socialmente negativas do juspositivismo (a este propósito se
falou polemicamente de uma reductio ad Hitlerum de tal doutrina), haja tido na opinião
pública uma ressonância muito maior do que a crítica conduzida contra o seu aspecto
científico”.
Atenção, pessoal jurídico e demais leitores: quem conduziu à
estatolatria, à adoração do Estado, aos regimes totalitários europeus, ao nazismo
alemão, foi o normativismo, o assim chamado “positivismo” jurídico, influenciado por
Hegel, e não o Positivismo de Comte, doutrina de liberdades, francamente contrária à
adoração do Estado e a todas as formas de totalitarismo.
Não confundam o normativismo com o Positivismo!
Saibam, de uma vez por todas, que o Positivismo não é o juspositivismo!
Aprendam, finalmente, que o Positivismo é uma doutrina sociológica e
filosófica, inteiramente alheia ao normativismo!
Quem acusa o Positivismo de exaltar o Estado, de impor submissão
incondicional à lei, de consagrar os despotismos, de haver conduzido ao nazismo, (a)
confunde, estupidamente, doutrinas diferentes, (b ) revela ignorância, (c) calunia,
odiosamente, a doutrina de fraternidade e de liberdade que é o Positivismo e (d) não
sabe o que diz.
Augusto Comte e João Austin conheceram-se pessoalmente, por
intermédio de João Stuart Mill, algumas semanas antes de 23 de dezembro de 1843,
segundo informação epistolar daquela data, em que o primeiro participava ao último
haver recebido visita do segundo. Ao retribuir-lha, o filósofo travou relações com a
mulher de Austin, Sara, com quem carteou-se várias vezes, em 1843 e 1844.
Certa passagem de uma das missivas de Sara Austin mereceu, de Comte,
reprodução no prefácio do tomo primeiro da Política Positiva (página 21). A missivista
tratava do papel atribuído pelo filósofo às mulheres, no seu Discurso sobre o conjunto
do Positivismo: “Sobre esse assunto, não há senão o senhor. Os outros, ou dão à
mulher uma posição subalterna, subordinada às necessidades materiais do homem, ou
atribuem-lhe uma fora da sua natureza e dos seus instintos. Só o senhor sabe combinar
a sua dignidade moral e intelectual como companheira, com a sua natureza física e
moralmente dependente. Enfim, o senhor concebe o laço conjugal , que encerra
submissão e ascendente, pureza e ternura”.
Aos 20 de julho de 1844, Comte escrevia a João Austin, sobre o seu “A
determinação do campo da jurisprudência”: “...li-o com um profundo interesse; além de
muito felizes apreciações parciais, entre elas a de Hobbes, observei nele,
especialmente, luminosas discussões sobre a doutrina da utilidade geral, sobre a
necessidade intimamente sentida de uma larga e sã instrução popular, sobre a exata
análise da soberania etc.;sem falar, aliás, do programa final que apresenta, pela
primeira vez, creio, sobre o corpo inteiro do direito, uma opinião judiciosamente
sistemática, cuja realização normal é muito lamentável que não haja ainda se
verificado. O sentimento contínuo de uma perfeita lealdade e de um verdadeiro amor
do bem público sustentam, aliás, facilmente, a atenção prolongada que exige tal
leitura.”
Dois dias após, escrevia à mulher do jurista: “Já testemunhei ao senhor
Austin o quanto satisfez-me esta interessante produção de um espírito direito, de um
caráter leal e de um coração devotado, em que encontram-se, a vários respeitos, tantas
discussões notáveis e judiciosas apreciações. É lamentável que o programa final, que
indica, pela primeira vez, creio, uma concepção tão felizmente sistemática do conjunto
do direito, não se haja ainda podido realizar convenientemente”.
Aludia à codificação, nos termos em que Austin a propunha. Embora,
portanto, Comte conhecesse a obra fundadora do normativismo e reconhecesse-lhe
méritos, não se tornou um seu adepto e, sobretudo, não incorporou à sua obra os
princípios dela.
Representaria o normativismo uma expressão do Positivismo? A resposta
é certíssima: não, porquanto pertencem a âmbitos heterogêneos do pensamento humano,
porque o teor do primeiro não decorre do conteúdo do segundo; porque este é
historicamente posterior àquele, quanto às obras de Bentham e de Austin; porque,
quando coevos, as obras normativistas e as de Comte versavam sobre temas
reciprocamente estranhos; porque o normativismo constituiu-se como corpo doutrinário
autônomo, que principiou antes de Comte principiar a produzir as suas obras e que
desenvolveu-se fora delas.
Representaria o Positivismo uma expressão do “positivismo”? A resposta
é certíssima: não; prova-o o conteúdo das obras de Augusto Comte. Quem duvidar da
resposta, leia-as.
Em suma: a associação, corriqueira no Brasil, entre o Positivismo e o
normativismo, simplesmente não existe.
O positivismo jurídico. Norberto Bobbio. Ícone Editora, São Paulo, 1996.
Revue Occidentale. Paris, 1898 e 1899.
X
O Positivismo atacado por Olavo de Carvalho
23.VIII.2003.
Em “O Globo” de 19 de julho de 2003, Olavo de Carvalho trata do que chama de
as seis interrogações básicas, cujas tentativas de resposta, articuladas em três eixos,
propiciam ao homem as coordenadas com que se oriente na sua existência. Tais eixos
são “origem-fim”, “natureza-sociedade” e “imanência-transcendência”, a propósito dos
quais o articulista identifica algumas correntes de pensamento que, por negarem ou
suprimirem a “estrutura do conjunto”, ao enfatizarem uma articulação em particular,
tacha de “doenças espirituais”, de “obsessões que nos encerram hipnoticamente no
fascínio de uma resposta”. As linhas de pensamento que assim capitula, são o
marxismo, o pragmatismo, a escola analítica, o nietzscheanismo, o freudismo, o
desconstrucionismo e o positivismo, que, segundo o autor, “ocupam o espaço inteiro do
ensino acadêmico” nacional.
Admito que as seis primeiras correntes ocupem, total ou parcialmente, o espaço
acadêmico brasileiro, porém a derradeira delas, o Positivismo, muito longe disto, acha-
se há décadas excluído da academia e quando nela recebe referências, são elas
geralmente depreciativas, ao mesmo tempo em que, fora das universidades, reinam a
desinformação e a inépcia.
Quanto ao primeiro eixo, relativo à origem e ao fim das coisas, como o próprio
Olavo de Carvalho assere, “ninguém jamais soube onde e quando o conjunto da
realidade começou nem como nem quando vai terminar”. Cuida-se, pois, de uma
questão insolúvel, de uma pergunta de resposta apenas conjectural, especulativa, senão
mesmo impossível. Qual o sentido em despenderem-se esforços com questões inúteis,
que não levam a nenhuma resposta real, útil, certa, construtiva? Por não reconhecer
sentido em especulações ociosas, o Positivismo delas prescinde e consagra o esforço, a
inteligência, o tempo humanos a fins justificáveis. Eis porque, ao invés de indagar de
onde viemos e para aonde vamos, cuida de averigüar como podemos melhorar a
existência das pessoas, quer material, quer espiritualmente. Ao exercício inútil da
inteligência, ele prefere a sua aplicação construtiva.
O segundo eixo, o da natureza versus sociedade, o Positivismo incorpora,
entendendo a natureza como o conjunto de leis naturais que regem os fenômenos, desde
os mais simples até os mais complicados. Neste particular, o Positivismo não comunga
do pessimismo de Olavo de Carvalho, segundo quem é impossível articular os termos
daquele binômio em uma equação: é possível articulá-los considerando a sociedade
como parte da natureza, como dotada de fenômenos próprios, regidos por leis
peculiares. Tais fenômenos, mais complexos que os de âmbito orgânico e biológico, são
os mais modificáveis e, destarte, mais sujeitos à ação humana, para o bem e para o mal,
ao mesmo tempo em que a sociedade distingue-se da restante natureza porque nela
apenas manifesta-se a cultura humana, aquilo que torna o homem um ser humano, e não
apenas o mais desenvolvido dos animais.
O terceiro eixo, respectivo à imanência versus a transcendência, é aquele em que
o Positivismo afirma-se como imanente, no sentido de não reconhecer um transcendente
sobrenatural ou divino. Neste sentido, ele é ateu (agnóstico, preferirão alguns),
naturalista e humanista. Em contrapartida, reconhece uma transcendência humana,
terrestre, positiva, para empregar um termo caro a Augusto Comte. À interrogação de se
há ou não algo a mais, para além da vida e da morte, superior a cada um de nós, ele
responde: sim, há a continuidade da ação construtiva dos indivíduos ao longo dos
tempos e através das gerações; há a transcendência da herança cultural do passado que o
presente recebe e lega ao futuro; há a transcendência da Humanidade, ser abstrato
porém real, superior a cada indivíduo.
Esta transcendência não é teológica, não se vincula ao sobrenatural, ao divino;
ao contrário, é, natural e humana. Não é imaginada, é averigüada, motivo porque é real
e não fictícia.
Prescindindo de uma questão ociosa para aplicar as capacidades humanas ao que
é humanamente útil; entendendo a sociedade como o âmbito da natureza em que o
homem exprime a sua humanidade; admitindo uma transcendência verificável, em que
seria o Positivismo uma doença espiritual, uma obssessão?
Doença espiritual não seria apegar-se a especulações insolúveis, e alienar-se do
que é humanamente proveitoso? Não seria cegar-se à capacidade humana de alterar a
realidade em que vive para melhorá-la ? Não seria divorciar-se de uma transcendência
que corresponde à existência histórica do próprio homem? Não seria orientar as
especulações humanas pela imaginação, ao invés de pela observação? Não seria deixar
de ser-se capaz de produzir soluções possíveis para problemas reais? Não seria perder-
se o senso de distinção entre a verdade e a mentira? Não seria apegar-se a postulados
doutrinários desmentidos pelos fatos? Nada disto pratica o Positivismo.
Demais, por que a ênfase em um dos “eixos”, com a negação ou a supressão dos
outros dois, corresponderia a uma doença espiritual ? Por que tomar como diferenciador
do “saudável” e do “patológico” a especulação sobre os três eixos em simultâneo? É um
critério, no mínimo, discutível.
Segundo Carvalho, “a modernidade preparou o advento das ideologias
totalitárias”. Não é o caso do Positivismo, visceralmente avesso a todos os
totalitarismos, sejam de direita ou de esquerda, e adepto, por definição, das franquias
civis e políticas, mercê do seu princípio da separação entre o espiritual e o temporal, que
o próprio Carvalho advoga no seu “Jardim das Aflições”, como profilaxia aos
autoritarismos, o que o torna em um perfeito positivista . A associação, corrente no
Brasil, entre o Positivismo e o totalitarismo, é daquelas falsidades que se transformam
em verdades à custa da sua repetição.
Não, o Positivismo não preparou nenhum autoritarismo, tampouco encarna uma
“doença espiritual”: ele corresponde a uma doutrina de liberdades, que afasta as
questões vãs do primeiro eixo, e resolve o segundo e o terceiro realisticamente.
XI
As obras de informação
A quem pretenda conhecer o Positivismo fora da desinformação e em obras
confiáveis, recomendo estas, atualmente encontradiças:
1) à maneira de introdução geral a ele: “Discurso sobre o Espírito Positivo”, de Augusto
Comte (Martins Fontes); “As etapas do pensamento sociológico”, de Raymond Aron
(Martins Fontes); “Idéias”, de E. Alain (Martins Fontes, 1993); “A ordem política e social
em Augusto Comte”, de J. L. Destefanis (Vila do Príncipe, 2003); “A sociologia de
Augusto Comte”, de J. Lacroix (Vila do Príncipe, 2003); “Crenças e Opiniões”, de Lauro
Sodré (edição do Senado); “O Positivismo no Brasil”, de M. P. Soares (Age, 1998), “O
Positivismo e Augusto Comte”, de J. Ribeiro Júnior (Edicamp, 2003), embora contenha
confusões e equívocos;
2) sobre o Positivismo no Brasil: “A república positivista. Teoria e ação no pensamento
político de Augusto Comte”, de Arthur Virmond de Lacerda Neto, que aborda detidamente
a ditadura republicana e a ação positivista na organização da república brasileira (3ª edição,
Juruá, 2003); “Dialética da colonização”, de A. Bosi (Companhia das Letras, 1992); “A
formação das almas”, de J. M. de Carvalho (Companhia das Letras, 1990);
3) sobre aspectos vários da doutrina: “Auguste Comte. Un philosophe pour le notre
temps” (Kimé, Paris, 1995), de J. Muglioni; “As falsas bases do comunismo”, de A. Pereira
(Vila do Príncipe, 2003); “O Positivismo. Teoria e prática”, aa.vv. (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 1999);
4) aos leitores de francês e de inglês, recomendo o sítio http://membres.lycos.fr.clotilde/
, onde se acha copioso material acerca do Positivismo; ao sítio da Igreja Positivista do
Brasil acede-se por www.arras.com.br/igrposit .
5) o sítio de Gustavo Biscaia de Lacerda, cuja ligação é
http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/, contém inúmeros ensaios e artigos do
próprio e de terceiros, de alto interesse e esclarecedores.
X
Aos intelectuais do Brasil
Leitor de Comte no original e na íntegra repetidas vezes, Alain abundava em
razão: para conhecê-lo, é preciso lê-lo, lê-lo no original e lê-lo por inteiro: os seis
volumes do Sistema de Filosofia Política, os quatro do Sistema de Política Positiva
(que inclui os opúsculos juvenis), o Catecismo Positivista, o Apelo aos Conservadores,
o Discurso sobre o Espírito Positivo e a Síntese Subjetiva; ao todo, catorze volumes. E
não basta percorrê-los: cumpre meditá-los, relê-los se preciso, e, sobretudo, desenvolver
um esforço de meditação ao qual resiste, com freqüência, o seu estilo abstrato. Para
mais destas obras, filosóficas ou políticas, deve-se ler ainda a correspondência de
Comte: mais oito alentados volumes. Disto tudo, há tradução para o português apenas
do Apelo, do Catecismo, dos dois primeiros capítulos da Filosofia e do Discurso sobre o
espírito positivo.
Quem pretenda capacitar-se do Positivismo, deter-se-á, ainda, nas obras dos seus
melhores explicadores, como Pedro Laffitte, Raimundo Teixeira Mendes, Luís
Lagarrigue, Robinet, L. Levy-Bruhl, P. Ducassé, e tantos outros, que, antes de
discorrerem sobre o pensamento comteano, cumpriram a exigência óbvia de
conhecerem-no diretamente na sua fonte.
É este conhecimento que falece a muitos intelectuais brasileiros, que não se
coíbem de pontificar sobre uma obra que não leram, cujos volumes jamais manusearam.
Falam do que ignoram ou do que apreenderam apenas superficialmente, repetindo,
quantas vezes!, de segunda, terceira, quarta mãos o que encontram em autores que, eles
próprios, repetem por sua vez a outrem ou que, se se abeberaram nos originais de A.
Comte, condicionam, com a sua interpretação pessoal, a de quantos tomam-nos por
fonte. Não basta louvar os méritos de seja lá qual autor e macaqueá-lo (“Como dizia o
saudoso Fulano de Tal”) ou macaqueá-lo sem lhe aludir: nada dispensa da leitura das
obras de que se fala, seja lá qual for a obra e o autor correspondente. Somente dentro
desta condição produz-se intelectualmente a sério, como também fora das distorções
provocadas pelo intuito de golpear uma doutrina, com razão ou sem ela, e daquelas
resultantes da parcialidade.
Enquanto o exercício da inteligência limitar-se à repetição de terceiros,
enquanto a vida intelectual traduzir-se por abordar um autor sem o seu conhecimento
direto, enquanto o ataque representar um desiderato e não um resultado, enquanto a
ideologia balizar a cognição, o resultado só pode ser o da ignorância sistematizada e o
dos erros impondo-se à guisa de expressão dos fatos ou de interpretação perspicaz.
Enquanto for assim, acerca de A. Comte e de qualquer outro autor, não contribuirá o
Brasil em nada para a elevação da cultura intelectual: ao invés disso, fortalecerá o
pedantismo como critério do conhecimento e da reflexão, vale dizer, para o aviltamento
de ambos.
Enquanto for assim, os nossos intelectuais, os nossos professores, os nossos
estudantes, os nossos leitores em geral, persistirão a pensar ser o Positivismo o que ele,
na verdade, não é; manter-se-ão na ilusão de certos lugares-comuns e de certas idéias
superficiais, grosseiras, estúpidas, falsas ou tolas, que sobre ele circulam no Brasil. Por
exemplo: A. Comte ensandesceu ao final da sua vida; o Positivismo é uma ideologia de
manutenção da "ordem" burguesa"; no Brasil, o liberalismo econômico aliou-se-lhe; o
Positivismo fundamentou o nazismo (esta é dos que confundem o Positivismo com o
juspositivismo); o Positivismo é fatalista; o Positivismo é autoritário; os positivistas
impediram a fundação de universidades no Brasil, etc.
Nos cursos de sociologia, ciência política, filosofia, das universidades públicas,
federais e estaduais, e privadas, ensinam-se as falsezas anti-positivistas e viciam-se
gerações seguidas, inculcando-se-lhes aversão ao Positivismo, bem entendido, a um
Positivismo falsificado, em que ao próprio termo positivismo imputam-se diferentes
significados, frequentemente sem relação com a obra de A.Comte, o que aumenta a
desinformação com a confusão semântica.
Enquanto for assim, todos eles prosseguirão ignorando temas de supina
relevância filosófica, a exemplo do conceito de positividade, de previsão racional, de
Humanidade, de síntese subjetiva, de filosofia primeira, de estática e dinâmica, da
preponderância do sentimento, de governo republicano, de liberdade espiritual, da
sociologia como totalidade do conhecimento, de educação integral que, estes e muitos
outros, podem contribuir para alargar as dimensões da reflexão nacional, enriquecendo-
as com temas inexplorados porque geralmente ignorados. Sequer o significado de
ordem e progresso sabe-se corretamente, não obstante o dístico do pavilhão nacional!
Enquanto for assim, continuaremos sendo o país do mundo que, devendo ao
Positivismo benefícios que negam somente os seus caluniadores e os mal informados,
mostra-se o mais ingrato face a ele; prosseguiremos encarnando o país que, dispondo
de fartos materiais com que se aquilatar as suas aplicações à vida social, é o em que o
seu conhecimento equivale ao dos (maus) manuais escolares de filosofia. Enquanto for
assim, cultivaremos as calúnias, a ignorância, a desinformação e a ideologia, porém não
a verdade, a sabedoria e a justiça; persistiremos na mesquinharia da crítica fácil e na
cultura da ignorância, ao invés de elevarmo-nos ao conhecimento da verdade pelo
caminho árduo do esforço intelectual honesto; seremos um país de produção intelectual
desprezível.
O empenho de muitos em golpear o Positivismo, de boa-fé ou sem ela, por vezes
obsessivamente, bem como a sua capacidade de suscitar adesões convictas e aplicações
meritórias, equivalem ao reconhecimento de que ele oferece muito, muitíssimo, ao
pensamento humano, de que porta mensagem riquíssima e aliciante: por isso desperta
antagonismos tão vivos, ataques tão desesperados e a necessidade de adulterá-lo para
feri-lo. É a forma como os seus críticos reconhecem, sem o confessar, a sua
profundidade filosófica, a sua envergadura intelectual, o seu valor no pensamento
humano, o certeiro das suas demonstrações, o convincente das suas propostas. É forma,
toda própria, como eles homenageiam-no.
Viva o Positivismo!
Arthur Virmond de Lacerda Neto é positivista ortodoxo,
adjetivo que significa adeso à totalidade da obra de A. Comte, à
sua parte filosófica e à religiosa, em que religião não é homônimo
de teologia, porém de sistema princípios intelectuais, de
inspirações afetivas e de práticas que orientam a pessoa e
engrazam os indivíduos.
Recommended