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Editorial 3
Lista de autores publicados 68
Créditos e contato 69
a imagem de capa e as fotos ao longo da edição são de Marcel Fernandes
Matheus Hatschbach
52ensaio
fotográfico deVanessa
Carvalho
63
Miriam Adelman
14
Carla Kinzo
36
Julia de Souza
5Thiago
Ponce de Moraes
10
Lucas Perito
31
Jimena Arnolfi em tradução de
Lubi Prates
57
Marcia Pfleger
41
Marcos Vinícius Almeida
20
Nove.Abrimos o editorial escrevendo um número por
extenso, assim como quem olha o tanto de caminho
que já ficou para trás. Talvez (certamente, aliás) já te-
nhamos usado essa metáfora da estrada várias vezes,
mas somos viajantes deslumbrados, desculpem.
Nesta edição, carregamos mais um pouquinho nas
mochilas. Trazemos presentes de poetas, contistas,
tradutores e fotógrafos gentis em dividirem conosco
impressões de suas próprias viagens.
Já houve quem perguntou o porquê de nunca fa-
larmos muito sobre os materiais aqui. Pode parecer
desculpa, mas deixamos que falem por si nas próxi-
mas páginas. São vozes lindas.
Por fim, o que não pode ser ignorado: lançamos
esta nona edição em meio a tragédias. Calaram-se
tantas vozes. Calaram-se pessoas, calaram-se animais,
calou-se um rio. Calou-se Mariana, Paris, o mundo. E
tantos e tantos mais têm sido calados. Que não se cale
a razão.
os editores
5
Julia de Souza[díptico]: um artista precisa de problemas concretosEle chegou com cheiro de cerve-
ja. Ela fez chá. Ele disse que sua casa era
bonita. E que gostava muito de hoteis. To-
alhas limpas, muitas tolhas, sempre ali,
à mão. Ela concordou, falou dos lençois
brancos e sempre esticados. Ela não po-
dia ter concordado, não devia. Falaram
do dia, de como tinha sido o dia de cada
um. Ela tinha tido um dia cheio. Ele tinha
tido um dia de artista. Um dia improdu-
tivo como deve ser o dia de um artista. Ele
contou de suas andanças e dos hoteis que
conheceu. Nem sempre eram hoteis, às
vezes eram albergues pulguentos em Chi-
natown. Ela perguntou se ele era famoso.
Ele disse que os artistas não podiam ser
famosos. Ela disse que podiam. Mas não
deviam. Ela disse isso para discordar. Ele
disse os poetas, então. Não existem poe-
tas famosos. Ela disse existem. Arrã, ele
disse. Ela perguntou da sua vida. Da vida
que ele tinha deixado para trás. Ele res-
pondeu sem querer e depois disse vamos
falar de você. Ele disse que ela fazia mui-
tas perguntas. Perguntas demais. Ele dis-
se que gostava de estar distraído. Disse
que se alguém chega perto demais, blo-
queia sua visão. E assim não se pode es-
tar distraído. Ele disse que era tudo uma
questão de perspectiva. Um artista preci-
sa ver o mundo, caso contrário, não exis-
te. Ele disse que gostava de tudo, do im-
pressionismo, do modernismo, do poema
concreto. De tudo. Que tudo no mundo
era muito parecido. Ela foi irônica e disse
6
você poderia me dar uma aula de perspectiva. De Renascença.
De tudo. Ela não foi irônica. Ela pensou no verso do Drummond
como são tristes as coisas quando consideradas sem ênfase. Ela
pensou mas não disse. Ela devia ter dito. Ela devia ter admitido
que roubou esse verso uma vez porque ele tem tudo a ver com
desejo, com a falta de desejo. Mas dizer a palavra desejo seria
demais. Seria demais falar de desejo, mesmo que fosse para fa-
lar na falta dele. Certas palavras não devem ser ditas. Não a pro-
nuncie. Ele poderia ter dito isso. Porque bloqueiam a visão. Ela
não se lembra dos detalhes. Não se lembra que roupa ele usava
ou a cor da sua camisa. O desejo bloqueou sua visão. Lembra
apenas que ele chegou, passou duas horas sentado em seu sofá,
e foi embora. E que tinha gestos ambíguos, que eram pontes
nunca atravessadas, que eram movimentos para frente e para
trás, que repeliam qualquer coincidência, como quem não quer
chegar nunca ao fim do poema.
* * *Ele chegou com cheiro de cerveja. Eu fiz chá. Ele dis-
se que minha casa era bonita. E que gostava muito de hoteis.
Toalhas limpas, muitas tolhas, sempre ali, à mão. Eu concordei,
falei dos lençois brancos e sempre esticados. Eu não podia ter
concordado, não devia. Falamos do dia, de como tinha sido o
dia de cada um. Eu tinha tido um dia cheio. Ele tinha tido um
dia de artista. Um dia improdutivo como deve ser o dia de um
artista. Ele contou de suas andanças e dos hoteis que conheceu.
Nem sempre eram hoteis, às vezes eram albergues pulguentos
em Chinatown. Eu perguntei se ele era famoso. Ele disse que os
artistas não podiam ser famosos. Eu disse que podiam. Mas não
deviam. Eu disse isso para discordar. Ele disse os poetas, então.
Não existem poetas famosos. Eu disse existem. Arrã, ele disse. Eu
perguntei da sua vida. Da vida que ele tinha deixado para trás.
Ele respondeu sem querer e depois disse vamos falar de você. Ele
disse que eu fazia muitas perguntas. Perguntas demais. Ele disse
que gostava de estar distraído. Disse que se alguém chega perto
demais, bloqueia sua visão. E assim não se pode estar distraído.
Ele disse que era tudo uma questão de perspectiva. Um artista
precisa ver o mundo, caso contrário, não existe. Ele disse que
gostava de tudo, do impressionismo, do modernismo, do poema
concreto. De tudo. Que tudo no mundo era muito parecido. Eu
fui irônica e disse você poderia me dar uma aula de perspectiva.
De Renascença. De tudo. Eu não fui irônica. Eu pensei no verso
do Drummond como são tristes as coisas quando consideradas
sem ênfase. Eu pensei mas não disse. Eu devia ter dito. Eu devia
ter admitido que roubei esse verso uma vez porque ele tem tudo
a ver com desejo, com a falta de desejo. Mas dizer a palavra de-
sejo seria demais. Seria demais falar de desejo, mesmo que fos-
se para falar na falta dele. Certas palavras não devem ser ditas.
Não a pronuncie. Ele poderia ter dito isso. Porque bloqueiam a
visão. Eu não me lembro dos detalhes. Não me lembro que rou-
pa ele usava ou a cor da sua camisa. O desejo bloqueou minha
visão. Lembro apenas que ele chegou, passou duas horas senta-
do em meu sofá, e foi embora. E que tinha gestos ambíguos, que
eram pontes nunca atravessadas, que eram movimentos para
frente e para trás, que repeliam qualquer coincidência, como
quem não quer chegar nunca ao fim do poema.
7
privilégioesse ano farei cinco anos em um ele disse quem fica parado morre lembre é preciso matar
um leão por dia e há leões de cinco cabeças ele disse cinco cabeças em um leão ele disse engole o
choro isso é coisa da sua cabecinha você é um homem ou um animal para de olhar as nuvens para
de olhar o chão para de ler poesia chuva de estrelas cadentes não há não vai correr a maratona
se não o bicho come esquece o dorso fraturado do tigre ele disse um pouco de suor não faz mal
imagine conselho bom não sai de graça mas hoje estou de bem com o mundo não há de quê mas
por favor sai sai sai desse vão de escada vê só esse pé direito que privilégio e você aí debaixo desse
vão de escada.
8
dois sonhos maus ou autobiografia
I.Os ninjas chegavam todas as noites. Pulavam o portão
da casa e iam a seu quarto violá-la enquanto dormia. O estupro
tinha o único objetivo de contaminá-la com o vírus da Aids. De-
pois de algumas tentativas fracassadas, disseram ter finalmente
conseguido transmitir a doença. Os ninjas não eram verdadei-
ros ninjas, isso se sabia, mas vestiam-se como tais, todos de pre-
to e com gorros que deixavam só os olhos de fora. Havia mulhe-
res no bando. Quando soube que estava contaminada, resolveu
tomar providências. Foi a um posto de saúde, que mais parecia
um laboratório ou um centro veterinário. Contou o ocorrido à
mulher do balcão e ela imediatamente lhe ofereceu um antído-
to. Uma só dose que reverteria de pronto a contaminação, mas
a deixaria careca.
Julia de Souza tem 28 anos, nasceu e vive em São Paulo. Formou-se em
Letras pela USP, onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado so-
bre a prosa de Hilda Hilst. Em 2013 lançou seu primeiro livro de poemas,
Covil, pela editora 7Letras. Publicou poemas em diversas revistas, como
Piauí e Pessoa e também o conto “Moinho” pelo selo digital Formas Breves.
Trabalha como preparadora de texto para algumas editoras.
II.Está ela ainda criança no banco de trás de um automóvel
de passeio. Nos bancos da frente, seu pai e sua mãe – não há
regra quanto a qual dos dois é o motorista, eles se revezam ar-
bitrariamente. De repente, os bancos da frente se esvaziam: não
há mais pai nem mãe, não há mais um condutor no automóvel,
que assim mesmo segue rodando pela cidade. Ela não possui
meios de saber qual será a rota escolhida pelo carro autômato, e
tampouco qual o destino final. Ela sente um desespero estranho
e abafado, mas se mantém calada e sem cinto-de-segurança: da
janela vê a cidade familiar se transformar aos poucos em uma
paisagem que é sempre nova.
10
Thiago Ponce de Moraesolhopela janela através do vidro baço
o escuro da noite a estender seu limiar
para aqui e adiante sua caligrafia torpe enquanto
tenciono escrever a pressa os gestos da mudança
no que vejo e risco algumas coisas outras
deixo ao papel estrelas estelas cheias de inscrições
enquanto tenciono esta caligrafia baça este vidro fino torpe
tenciono escurecer a noite e suas pequenas janelas de luz pontos até o limiar
até a fúria com que vejo o aqui e o adiante a se aproximar
a fúria em que arrisco não mais ser mas escurecer
ou escapar às pressas com a caligrafia
que o esforço ruidosamente espessa
com a caligrafia que esgarço para
pela janela escrever seus riscos luzes sua fúria
escura tormenta a avançar a noite o risco as estrelas
aqui enquanto algumas coisas esqueço
outras vidros gestos noites adiante
cesso
traço
teço
11
Meu olho se abre como ferida,
Abre-se como tua boca incerta,
Porto íntimo em tua fronte.
Abre-se em falhas e lágrimas,
Abre-se em fenda, chaga impossível,
Abre-se de tua cicatriz, como um livro,
Abre-se como tuas pernas
Que me apertam inconsútil
Até que cedo e me achego cego
Em derradeiro afã
À fonte que ao se dar
Me suga por completo,
Que me sutura vivo
Da noite até de manhã cedo.
Quando balbucias tuas sílabas
E eu te devolvo a noite,
Estás em minha boca e tua língua
É minha língua.
Quando fremem os teus lábios
E eu os toco com a carne,
Estou já sobre teu corpo e teu corpo
É meu corpo.
Quando impera o silêncio
E meus olhos os teus tão perto,
Estamos juntos entre as pernas, existimos,
Somos nossos.
12
As cores mudam
Nos céus acima de nossas cabeças
Mudam
As estrelas e
A maneira pela qual
Emitem luz
Muda
O que víamos e o que vemos
Nos fissura
Nos sentimos
Nos tocamos
As campanas
Nossas trompas
Entre as coxas
Nossa música
Sob um timbre de arrepios
Mudos
Passado e promessa
Se encontram
Aqui
Enquanto
O agora
Vigora
Thiago Ponce de Moraes é poeta e tradutor. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006) e De gestos lassos ou nenhuns
(Lumme Editor, 2010), além do livro de ensaios Remos e Versões (Multifoco, 2012) e Agora sim... talvez seja eu e mais alguém:
específica experiência da leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA, 2014). Faz parte do Conselho Editorial da Revista de Poesia e
Debates – Zunái e foi editor da Revista Confraria de Literatura e Arte. Atualmente, é doutorando em Literatura Comparada
na Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). As peças aqui publicadas
fazem parte de seções distintas de sua terceira compilação de poemas: Dobres sobre a luz. No ano de 2015, participa de dois
festivais: 31º Festival Internacional de Poesia de Tróis-Rivières (Canadá) e XX Encontro Internacional de Escritores (México).
14
Miriam AdelmanVida VirtualDesça do preto e branco
ônibus da vida. Aqui você,
não importa quem for
nem para onde ia, terá seu
lugar para brilhar, aquela foto
a cores que encontrou seu melhor
ângulo, apagou a inadequada sombra,
e poderá ser visto –
enquanto a página não rolar
muito para baixo, e se
as configurações permitirem –
por um navegante solitário
em Beijing ou na Croácia,
esse pequeno sorriso seu que será
para alguém, o mais intrigante
mistério.
15
ExpectativaQuando chegar a primavera
não irei me surpreender
com o sol repentino
ou tua mão fria
posando na minha nuca.
Nas estradas que um dia
amanheceram brancas
haverá apenas a esperança
sutil
de um calor que dure mais um pouco
de cores pequenas que despontem
do jasmim ou dos juncos que crescerão
na terra molhada,
e eu terei mudado em alguma coisa
desde o lugar onde hibernei
com meus ursos mansos
no oco de uma árvore, apenas sugando
amoras doces e alguns cenas da vida,
e se por acaso houver alguma
aprendizagem,
será apenas das mais simples, com
as patas no barro escuro e fresco,
sabendo das chuvas e dos caminhos
enganosamente infinitos.
16
Só quisSó quis estar no mundo.
Era muito simples.
Ouvir muitas línguas,
olhar nos olhos
pegar um trem ou andar no vento,
ou até num grande navio que
- se navegasse para uma ilha
de promessas de cor esmeralda, eu iria -
mas se afundasse, também ia
dar as últimas braçadas e
entregar-me as salgadas ondas
por não querer para mim
o triste destino
de sobrevivente.
Algum segredo procurava
mas sabia que eram todos mentira,
que a chave era apenas o mais simples
repetido de outra maneira
com ar de interessante ou triste
como passar uns dias de pão e água.
Qual a raiz e o quê é supérfluo?
Há apenas a busca, apenas a esperança
que o gesto conte.
FrescoClamava pelo pai
mas foi a mãe que veio.
As muralhas da cidade
pintadas de vermelho-sangue.
Cenas de destruição em toda parte
famílias engolindo
sua última cena, um campo regado
a ossos de javali e codorniz,
jarras que o inimigo despedaçou
e todo sobre um mesmo chão
(isto foi antes que inventaram
perspectiva).
Finalmente, a visão:
um escuro corredor em caracol
e um só átrio,
banhado em luz.
17
Fábula III, ou “as formas da coragem”.Para Joyce, Hettie e Diane. E para as que vêm chegando...
Era apenas uma menina
e o mundo, um lugar lotado
de criaturas com sonhos baratos.
Pegava todos os dias, de manhã
o bonde que descia a ladeira,
seu coração dando saltos no ponto
onde a curva sugeria uma fuga
onde a mão do condutor podia
vacilar por um instante e perder
o rumo.
Noitezinha, na hora da sopa
a mãe chamava
para ela colocar na mesa
os pratos azuis, os guardanapos de pano
amarelados, as grandes colheres,
e ela obedecia,
mansinha, as unhas de esmalte
de uma semana
guardando seu segredo escarlate.
Quando lá fora chovia, como de
costume, gotas misturando-se com
poeira e através da janela suja
todas as formas
alongavam-se, encurtavam-se,
ela via figuras
dançando na água ou nas chamas
da noite e sabia que
em algum lugar o caminho bifurcava
e seria só o rumo que ela conseguisse
vislumbrar quando todo mundo parasse
de lhe falar, de lhe indicar com
as mãos ou apontar com os dedos
o enferrujado dever, ou quando ela
não mais escutasse.
Os meninos pulavam
os vagões do trem ou as
ondas mais altas, e o tempo todo ela
sabia que isso não era para ela
porque não era longe o suficiente
ou talvez porque ser
apenas uma triste
fêmea da espécie
não lhe permitisse um lugar
entre os que desafiavam
18
os mares, a Bruxa de Novembro
ou o Chinook. Enquanto isso
os garotos saiam e voltavam à casa.
Ela ouvia suas histórias e percebia
como esticavam suas meia-verdades
sobre a bruma, as baleias, os
adversários com suas espadas,
ou as armas comuns do bandido
da esquina.
Dançava sozinha frente ao espelho,
diante dos escuros olhos ciganos,
examinando a curva dos seus braços,
o quadril que se alargava, os
pequenos seios que endureciam sob
um fino tecido, as pernas que embora
curtas pudessem carregá-la muitas milhas.
Sentia então um estranho tipo
de medo-coragem
que lhe dizia coisas inteligíveis:
que poderia dormir ao relento,
construir um provisório
abrigo, aprender as línguas de
humanos e tigres, ser nômade
como qualquer uma
ou como nenhum outro.
And then she went...
Miriam Adelman, nas-
cida nos EUA, mora em
Curitiba desde 1991. É pro-
fessora da UFPR, da área
de sociologia, desde 1992,
e hoje atua também como
professora da pós-gradu-
ação de Letras dessa ins-
tituição. Além dos traba-
lhos acadêmicos, escreve
crônica e poesia, e se dedi-
ca à tradução (acadêmica
e literária). Um dos seus
projetos em andamento
diz respeito ao estudo e
tradução das escritoras da
Geração Beat, ainda pouco
conhecidas no Brasil.
20
Marcos Vinícius AlmeidaFoliaEra tempo de frio e o pai gostava de ver os velhos tocando.
Primeiro a missa, depois a cachaça. O padre leu o Eclesias-
tes e falou do mundo. De ponta-cabeça — dias contados —,
fim de tudo. Os velhos subiram na carroceria do caminhão e
começaram.
João lambuzava a boca na canjica. Viu o padre encostar no
balcão da barraca de lona e virar meio copo e morder uma las-
ca de churrasco. E homens fedendo a quentão passando. Olhos
de brasa. Apertavam as ancas das mulheres que riam, giran-
do, ali de frente do palco. O churrasquinho chiando na chapa
e as crianças lá na frente tacando copos descartáveis na foguei-
ra. Cacos de brasa avançavam no rumo do céu, num riscado. E
sumiam.
21
Vamos lá perto, perguntou para a mãe se podia.
Leva, disse o pai, sem desviar os olhos dos velhos na carroce-
ria do mercedão amarelo.
A mãe pegou a mão do menino e foi no rumo do fogo. Os
tocos de lenha bem maiores que aqueles que usavam em casa.
Eucalipto, a mãe explicou. D. Joana e d. Rosalvina também olha-
vam o fogo. Falavam que naquele tempo a fogueira era maior.
Tinha mais gente. Naquele tempo era melhor.
Naquele tempo era como um lugar, donde as pessoas tinham
sido empurradas. Sempre tinha alguém falando naquele tem-
po em tom contrariado — à maneira dos desterrados, há muito
exilados, há muito tempo longe de casa.
Os moleques catavam tudo o que fosse e atiravam no fogo.
Uns faziam feixes com espetinhos de churrasco. Outros joga-
vam latinhas e garrafas pet. A maioria, copos descartáveis. Res-
tos de guardanapo sujo.
Podia ir mais perto? Igual aos outros?
Perigoso.
Mas então passava o Rafinha, Baiano, Bareta, todo mundo jo-
gando latas de cerveja na fogueira.
Igual aos outros?
A mãe olhou para trás e disse sim. Só um pouquinho. João
soltou da mão dela e correu. Andou ao redor da fogueira, olhan-
do as línguas tremulando pontudas. E como eram grandes as
brasas. Igual gelo de fogo. Brasa era gelo de fogo. Tirou a blu-
sa e amarrou na cintura. Se chegasse mais perto, ia derreter o
rosto igual aquela cabeça de boneca velha que jogou no fogão
uma vez. Viu uma latinha no chão. Mirou no meio da fogueira
e jogou. A latinha bateu no toco e a fogueira cuspiu faíscas que
escalaram um riscado vermelho. E apagaram.
Os moleques ali pouco falavam. Corriam, pegavam e jogavam.
João ia andando, meio a esmo. Queria outra coisa, alguma
coisa grande. Só parou quando viu um galho caído, enroscado
no canteiro. Pegou o galho e tentou puxar, mas não conseguiu da
primeira vez. Culpa dos braços miúdos e finos. Soltou e encarou
as coisas, procurando um jeito. Precisa comer mais tutano, o pai
sempre dizia. Puxou outra vez, com força, mas pouco adiantou.
Foi aí que Irís e Rafinha chegaram. Agora vai dar. Agora é fácil.
O galho deu um estalo. E as folhas verdes chiavam enquanto
arrastavam. O pai não gosta de folia. Os outros moleques come-
çaram a gritar. E se amontoaram feito procissão de Sexta-Feira
Santa: misto de enterro e festa — arrastando um santo de gesso
ou célebre cadáver falso. Os moleques batiam na rabeira do ga-
lho. Chutavam. E todo mundo olhava. Perto da fogueira, como
se tivessem treinado antes, fizeram uma manobra e jogaram o
galho lá dentro, de uma veizada. Espirrou um chumaço de fa-
ísca. Sob os estalos da folhagem verde, a coluna crescia em go-
mos, cada vez mais fartos. Que cabeça! Onde já se viu? Crescia
no rumo da rua, mas depois foi virando, virando na direção do
mercedão amarelo. Fumaça não pensa, mas era quase isso. A co-
luna se deitou de uma pancada sobre os velhos.
***A lavareda que subia na trempe do fogão tinha diminuído.
Palha e sabugos consumidos. João achou melhor ajeitar o fogo.
Pegou um toco de lenha, mas devolveu no lugar. Precisava esco-
lher direito. Precisava de um toco melhor. Pegou outro. Virou o
toco no fogo e foi se sentar no rabo do fogão.
22
O pai entrou logo depois. Passou direto para a pia levando
a vasilha cheia de mandioca fresca, ainda suja de terra. Foi no
rumo do fogo. João só olhou. Só olhou como se já soubesse. O pai
sacudiu a cabeça, não é certo. E puxou o toco de lenha e mostrou
que não pode enfiar as costas do pau no fogo. Não é certo. Levou
lá fora, bateu a brasa. Voltou com o toco virado — do jeito certo.
E enfiou na boca do fogo.
Por quê?, João perguntou.
Zanga com a vida, disse o pai.
***Nada mais do que a faísca de um impulso arrastou os três
bons samaritanos, praticamente juntos — impelidos por neces-
sidade de ordem, embora não muito conscientes disso —, ar-
rastavam o galho para fora da fogueira, para fora da praça, só
que não sem resistência. Iam sob a zombaria de meia dúzia de
moleques — distribuindo chutes secos, gritando — na rabeira
do galho. E foi a sanfona a voltar primeiro, depois a viola. Já ha-
via música outra vez. Mas aquilo resistia no ar, enfraquecida,
diante do palco e dissipando-se à maneira das horas de espera.
Tão insistente quanto o fígado e a alegria daqueles homens e
seus copos, olhos de brasa, atarracados à cintura das mulheres.
Gargalhavam, giravam — imunes àqueles que arrastavam o ga-
lho. Homens bons. Sérios. E, a certa altura, apenas três vultos
recortados sob a dobra de uma esquina, largando um rastro de
fumaça no ar.
Tudo doido, disse a mãe.
Então apareceu um sujeito da barba amarelada, exalando
quentão, com um chapéu na cabeça. Tinha na roupa a sujeira
de quem tivesse passado do serviço direto para o balcão. Cum-
primentou o pai e disse que fazia muito tempo. E o pai disse que
fazia tempo demais. O homem de barba amarela tinha as per-
nas moles e um copo amassado na mão. Passou a mão na cabeça
de João. E da última vez que tinha visto o rapazinho, o rapazi-
nho era um cisco de gente. Cabia na palma da mão. E mais uma
vez o homem disse que fazia muito tempo. E mais uma vez o pai
disse que fazia mesmo tempo demais.
Tempo é doido, disse a mãe.
Só aí o pai perguntou como ia o Toninho Esperança, primo
do homem de barba amarela. E aquele nome mudou a cara do
homem de barba amarela. Bebeu um gole e disse que tinha
acontecido desgraça demais, mas que agora ele tinha achado
sossego. Toninho Esperança tinha ido levar uma imagem de São
Jorge para d. Maria do Bilé reformar. Era uma surpresa para a
mulher, devota do santo. Toninho Esperança vinha a cavalo no
rumo do Estreito, com o santo embrulhado num saco. Na altura
da porteira, onde tem um grande descampado, foi atingido por
um relâmpago. O raio estourou na testa do cavalo e o Toninho
Esperança voou no chão. E o cavalo veio por cima. Das pernas. O
diabo. Partiu os ossos. E foram umas doze horas caído até o dia
seguinte, já que ninguém passava por lá. Do santo não sobrou
nem o caco. Abriram o saco e era uma farinha só. O ar ainda
fedia pelo sapecado. E o doutor constatou que as pernas do Toni-
nho Esperança tinham apodrecido. Não cortasse fora, Toninho
Esperança ia morrer. Depois que acordou, Toninho Esperança
parou de falar. Todo mundo na expectativa e esperando uma
piada, uma frase embolada e retorcida, igual esse povo que en-
torta a cara e enrola a língua. Mas não. Nenhum gemido. Nada.
23
Em casa, ele ficava só no quarto. Não queria comer e era indife-
rente a visita. Não tiveram jeito de pagar ninguém para ajudar,
e só havia a mulher. Falava-se muito da coragem dos parentes
da mulher, de como os Oliveira tinham se erguido naquelas
terras do nada. Igual peste. Seu bisavô Oliveirinha foi um dos
primeiros a chegar àquelas terras, a destocar aqueles pastos to-
dos na mão, abrir caminho na enxada e cavar poço da largura
de rio. Mas não. Ela era diferente do povo dela. No começo, era
comum ver a moça cantar na beira do tanque, ou disparar uma
gargalhada depois que um prato se espatifava no chão. Pelejava
para o Toninho Esperança tomar banho, cortar o cabelo e trocar
as fraldas. Mas a dureza do homem era doutra natureza. Uma
fé ao contrário. E ela não aguentou as birras, a falta de força do
marido, entregue a um mundo só dele. Ela mesma ia se con-
taminando daquela tristeza, ia amuando também. Foi embora
morar de novo na casa dos pais. O homem de barba amarela
tentou muitas vezes falar com a mulher. Convencer a mulher
que não era direito abandonar. Fosse de modo contrário, Toni-
nho Esperança não arredava. Esperanças. Nada adiantou. A mu-
lher repetia que só ela entendia a realidade da situação. Estava
ali todo dia. Na visita, é fácil julgar. E não tinha como garantir,
só na ideia, que o Toninho Esperança não fizesse igual. Só na
ideia é fácil. Só na ideia é mentira. Na ideia todo mundo é bom.
É quando o calo dói dia por outro que a gente compreende — e
muda. Fez o que fez. E nada além. Era livre. Tinha que tocar a
vida. Mas a culpa não é dele, o homem de barba amarela tentou
explicar. E a mulher riu: onde cai desgraça, há culpa. E bateu a
porta da casa. O homem de barba amarela sonhou por uns dias
em furar o bucho da mulher. Furar e colocar tudo para fora, ali
mesmo no chão — lugar de bicho de sangue ruim. Bicho de san-
gue frio. Mas é preciso muito esforço para alimentar um senti-
mento. No ódio carece de cuidar tanto quanto de amor. Às vezes,
até mais. E as necessidades práticas da lida com o irmão eram
tantas, que ele não teve escolha, sentenciou a mulher ao esque-
cimento. E mesmo quando a encontrou no mercado, atarraca-
da com um mulatinho mais novo que ela, o homem de barba
amarela sentiu pena daquela desgraçada. O homem de barba
amarela coçou a barba e bebeu mais um gole. Olhou os homens
no mercedão, antes de continuar. A família se reuniu. E depois
de muita discussão, ficou decidido que eles iam fazer uma es-
cala. Cada dia era um. No começo deu certo, dia sim, dia não.
Mas mesmo assim era custoso demais. Nem todo mundo tinha
paciência e jeito com a coisa. E cada um tinha seus próprios pro-
blemas. Era isso ou aquilo. A própria vida já é um pecado dana-
do pra ajeitar. E no fim das contas o homem de barba amarela
ficou sozinho. E sozinho ele não dava conta de trocar fraldas e
forçar Toninho Esperança a comer uma sopinha de fubá que
fosse. Tinha de trabalhar. E minha mulher tava de saco cheio
dessa coisa de dormir longe de casa, disse o homem de barba
amarela, antes de beber um gole. O resto da família nem liga-
va. Aproveitavam da boa vontade dele. Era um bobão. E real-
mente era complicado aguentar aquilo tudo sozinho. Por que
não fazia igual aos outros? Se pelo menos o Toninho Esperança
reagisse, xingasse, praguejasse contra Deus ou seja lá o que fos-
se. Se tivesse pelo menos raiva da vida e da mulher. Sei lá. Mas
não. Toninho Esperança só calava. Então ele chegou defronte de
Toninho Esperança munido de ameaças. Ameaças de verdade.
Decidido. Se Toninho Esperança não fizesse nada, ia embora. E
24
Toninho Esperança ia acabar com fome e com a calça cagada. Ia morrer seco e caga-
do, naquela cadeira de rodas. Era um esqueleto com pele costurada por riba do osso,
disse o homem de barba amarela. O espírito tinha escapado. Naquela mesma noite, o
homem de barba amarela acordou com um barulho. Na cozinha, encontrou Toninho
Esperança. A cadeira de rodas jogada para trás, com o pneu ainda girando em falso.
Um cheiro forte de urina que escorria pelo chão. E o fio da tomada do rádio, amarrado
na torneira da pia. O homem de barba amarela bebeu outro gole — olhou na direção
do palco, os velhos cantavam animados — e se calou.
A culpa não é sua, disse a mãe.
O homem de barba amarela abanou a cabeça, ameaçou umas palavras que emper-
ram na boca. Abanou a cabeça e disse que qualquer hora eles se encontravam para
fazer qualquer coisa. Apertou a mão do pai, passou a mão na cabeça de João. E saiu.
E beberagem resolve?, disse o pai, olhando o homem de barba amarela rodopiar já
longe. Se beberagem resolvesse, dono de bar era santo.
A mãe não disse nada. Passou a mão na cabeça do menino.
João olhava o homem de barba amarela.
Tinha parado em frente a uma moça, o homem. Baixou o chapéu e fez um cumpri-
mento desses de quadrilha, inclinando o corpo, baixando a cabeça. A moça sorriu. O
homem rodou o chapéu no ar, pegou, enfiou na cabeça. Numa folia só. Depois virou
o resto do copo, lançou no chão. E já saíram rodopiando, numa dança endoidada, su-
mindo no meio dos outros casais.
João riu.
Ninguém sabe nada, disse o pai. E já foi apontando a testa no rumo de casa.
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O último jogoReinaldo era conhecido peladeiro, o terror dos campi-
nhos de terra empenada, mas ninguém acreditava que ele daria
conta de jogar num campo de verdade. Fora do jogo, tinha fama
de lerdo, meio atrasado. Tinha problemas com p e b e com m e
n. Complicava-se com questões de direita e esquerda. Esquema
tático não entra numa cabeça tão concreta.
Mas bastaram dois treinos para o menino desmentir os mais
pessimistas. Duas conversas demoradas com desenhos riscados
com tijolo no muro do vestiário com seu Lazinho — velho do
nariz afundado, meio gago, constantemente com pressão alta.
Havia treinado o único juvenil decente a pisar naquele campo
por volta de 76. E agora, de volta ao comando do time, esticou
uma corda na ala esquerda do campo e disse ao Reinaldo que
ele só podia correr naquela faixa — avançar quando o time ti-
vesse a bola e grudar no camisa 7 quando a bola estivesse com o
adversário. Já na estreia, contra o Cruzeiro do Sul, fora de casa,
um jogo que terminou empatado, Reinaldo desbancou um ma-
grelo de chuteira amarela, meio metro mais alto, titular absolu-
to, para o banco de reservas.
E foi por essas e muitas outras coisas que o Reinaldo foi o me-
lhor lateral esquerdo e um dos melhores jogadores no juvenil
do Atlético Campo Grande, nos jogos escolares de 1996. Seu Chico
Azulão, a mais antiga e respeitada sumidade futebolesca daque-
las bandas, achava tudo aquilo um horror. “O moleque tem um
diabo em cada perna”, resmungava, quando Reinaldo disparava
com a bola. “É o jogador mais escandaloso que eu já vi.” E as ar-
rancadas do Reinaldo eram mesmo coisa de outro mundo.
Escombros, um rastro de destruição: zagueiros caindo, bu-
fando, como prédios em ruínas, completamente perturbados.
Volantes batendo cabeça contra cabeça — um bando de cabras-
-cegas. E a cena termina com a triste figura do goleiro esmur-
rando o vazio, soltando gritos incompreensíveis, contemplando
o fundo do gol.
Um horror. Escândalo. Espetáculo.
***Reinaldo tinha um irmão mais velho — um branquelo da
testa larga e cavanhaque torto, chamado Regis. E Regis vivia ro-
deando o campo em dias de treino e jogo, embora não gostasse
de futebol. Regis era um desses caras de alma enfezada. De se-
gunda a sexta, com o cigarro de palha que mais parecia um cha-
ruto no canto da boca, não fazia outra coisa a não ser dirigir um
caminhão basculante nas vielas da pedreira, levando entulho
de um lado a outro. Mas era bater sexta depois do expediente,
ele se enfurnava num bar e destampava a beber. Alguma coisa
ruim que vivia lá dentro escapava. Ele vidrava os olhos e saía
no tapa com quem fosse. Falava-se em coisa de espírito. Da vez
que andou quebrando as coisas em casa, jogando a televisão no
chão e dando de querer avançar no pai, a vergonha foi tanta que
Regis chegou a tomar uns passes. E realmente durante aquele
tratamento espiritual as encrencas cessaram, mas não porque
se comprovasse a tal mediunidade. Por determinação do men-
tor, ele tinha cortado a cachaça. Óbvio: sem cachaça, não havia
confusão. Mas foi passar a vergonha, ele voltou ao copo. E vira e
mexe o pai tinha outra vez que buscá-lo na delegacia, isso quan-
do a polícia não o deixava em casa. Regis chegou a enfrentar,
26
sozinho, cinco caras, durante uma festa no Campo do Meio.
Quando já estava cercado, sacou um capacete de motoqueiro
que estava sobre o balcão. Até então armados com tacos de si-
nucas e canivetes de cabo curto, os cincos sujeitos terminaram
desmaiados. Dois deles com nariz estourado, o terceiro com o
braço torto e o quarto caiu duro no chão, com as costelas fratu-
radas. Não fosse a mulher do dono do bar entrar na frente — ia
terminar em enterro de caixão lacrado.
Na casa de Regis e Reinaldo, a maioria das vozes vinha da
televisão ou de algum aparelho de som.
Regis chegou meio de fogo, num domingo à noite, e topou
com Reinaldo deitado no sofá da sala, assistindo ao jogo da se-
leção. Sentou-se no sofá menor, acendeu um cigarro e ficou
olhando o irmão. O pai tinha saído. O cheiro inundava o ar. A
mãe preparou uma lasanha de frango e tinha comprado uma
Coca-Cola de dois litros. Ela entrou na sala com um prato esfu-
maçado e entregou a Reinaldo.
“Que vida, hein?”, disse Regis, com a voz embargada.
A mãe baixou os olhos e Reinaldo nem olhou para o lado. É
sempre assim que resolve. Então a mãe saiu para servir outro
prato. A travessa farta, o queijo escorrendo nas bordas. Tinha
feito quantidade que sobrasse para o marido e o filho coloca-
rem na marmita.
Regis havia saído de casa cedo e provavelmente não havia
comido nada e ela colocou três pedaços no prato dele. Quando
ela girou a tampa do refrigerante, ouviu o barulho dos cacos do
prato nopiso.
Reinaldo continuava sentado, na mesma posição que antes,
olhos voltados para os cacos no chão. Se tivesse a oportunidade
de tocar o braço do filho, teria sentido o quanto ele tremia. E se
tivesse olhado direito, teria visto a mancha avermelhada no ros-
to dele.
Regis estava de pé, olhos esbugalhados e as calças respinga-
das de molho.
“Na sua idade eu já me sustentava”, disse.
A mãe começou a tremer. Recolheu-se contra a parede.
O pai, cujo espírito tinha para si que toda conversa era em
si mesma um pouco de conversa fiada, saía de casa antes que o
sol apontasse e voltava só à noite, cansado demais para qualquer
coisa que não fosse um banho, comida e cochilar no sofá diante
de um programa de televisão com anões de fralda levando ras-
teiras, extintores de incêndio, testes de DNA que terminavam
em choro e ranger de dentes. A mãe, sempre ocupada demais
com roupas ou panelas, estava resignada com aquilo e com mui-
tas outras coisas. Ainda há pouco, aqueles dois meninos corriam
juntos pela rua, sentavam juntos para comer. Quando a situação
lhe vinha à cabeça, ela dizia, em conversas sussurradas ao apa-
gar das luzes, que o caso daqueles dois meninos era de coisa de
vida passada.
“É Deus que dá oportunidade de a gente vir junto com um ini-
migo, pra aprender o perdão”, ela dizia ao pai dos meninos, que
não retrucava. “Quando o caso é custoso, vêm gêmeos, e até gru-
dados, que é pra aprender de uma vez.”
Fosse como fosse, agora aqueles irmãos não se davam.
“Mãe, a senhora viu minha chuteira?”, perguntou Reinaldo, já
de saída para o jogo mais importante daquela temporada.
“Tá no mesmo lugar”, respondeu a mãe, sem desgrudar os
olhos da panela.
27
Ele deixou as chuteiras secando no varal, junto com o par
de meias. Deixou os dois lá, tinha certeza, mas carregava só as
meias, encontradas caídas na terra. Não fazia sentido. Ele ba-
teu a terra das meias e procurou as chuteiras debaixo da cama,
entre as roupas recolhidas do varal, debruçado sobre as caixas
entulhadas na garagem. Procurou até dentro do velho Fusca do
seu pai, há anos parado, juntando ferrugem e atraindo ratos.
Reinaldo estava quinze minutos atrasado para o jogo quando
pensou que talvez o cachorro as houvesse carregado para algum
canto. Assoviou e chamou. Não demorou muito e uma moita
de capim se mexeu antes que o bicho saltasse e viesse em sua
direção. Mas ele rastreou aquelas moitas todas e mais não sei
quantas vezes — tudo em vão.
O único lugar que não procurou foi o galinheiro. Seu pai dei-
xava o lugar sempre trancado. Uma das coisas que enervava o
homem era chegar do serviço e topar com as galinhas — festei-
ras — devastando a beleza das couves. Ninguém mexia naquele
galinheiro sem as ordens do pai. Reinaldo chegou a dar uma
espiada por fora da tela — uma das sete galinhas se mexeu no
ninho, olhando de lado — e isso foi tudo.
Ele calçou as meias e depois um par de tênis e chegou ao ves-
tiário no meio da reza, com o time já uniformizado. Vestiu o
calção e a camisa número 6 e molhou o cabelo com o time sain-
do já sob o som de fogos. O Flamengo da Ponte Baixa estava em
campo, se aquecendo.
“Cadê a chuteira?”, perguntou seu Lazinho.
Fedendo a conhaque, usando sua típica camisa de botões
marrons com duas faixas cinza verticais, cheias de flores, seu
Lazinho olhou para os pés de Reinaldo.
“Assim não dá”, puxou um molho de chaves barulhento do
bolso e abriu o velho baú de madeira no canto do vestiário. Pu-
xou umas camisas com números desbotados que pareciam ras-
tros de verdadeiros números já não existentes, uma velha som-
bra presa ao tecido, listras pretas e brancas — restavam furos
do tamanho de golas e o cheiro de pano podre —, até que surgiu
uma chuteira de couro fosco, cadarços duros, que parecia ter
sido transportada de outro século.
“Se sobrar, coloca duas meias.”
Reinaldo calçou três meias e seus pés pareciam ter encolhido,
porque ainda havia espaço demais lá dentro. Ele corria como se
corresse atrás da própria chuteira, que parecia estar um pas-
so à frente. Não tinha equilíbrio para lançar ou participar das
triangulações e contra-ataques e acabou passando o primeiro
tempo próximo da linha lateral, sem avançar — um terceiro e
falso zagueiro, compondo uma linha empenada, procurando o
limbo do campo.
Sem o apoio de Reinaldo, as jogadas de ataque de seu time
acabaram restritas às tristes e inofensivas investidas pelo meio-
-campo. Aquele time do Flamengo da Ponte Baixa era bem or-
ganizado e logo os dois volantes mais um meia-direita recuado
criaram uma linha de três homens, uma barreira que minou
praticamente todas as ofensivas do Atlético Campo Grande no
primeiro tempo. Já beirando os quarenta, em um contra-ataque
articulado no espaço deixado por Reinaldo, o camisa 11 avançou
em diagonal e acertou uma pancada da intermediária.
Cebolinha, o goleiro, que era fanho, até que tentou, mas ou-
viu apenas o barulho da bola escorrendo na rede.
O sol estava forte e seu Lazinho parecia ter lustrado a testa
28
numa lata de gordura. Havia manchas de suor sob os braços e
nas costas. Não era um técnico muito sofisticado, principalmen-
te nos momentos de crise. Suas especialidades restringiam-se
aos fundamentos, ali estavam todos os problemas e soluções do
futebol. Pediu que os marcadores marcassem e os atacantes se
movimentassem e chutassem para gol, que todos passassem a
bola com mais precisão e procurassem os vazios do campo. E
também aos reservas que arrancassem as chuteiras e as ofere-
cessem a Reinaldo. Mesmo constrangido — afinal, nem todos ali
estavam satisfeitos com aquilo —, Reinaldo calçou e tirou cinco
pares de chuteira até que um deles assentou firme nos pés.
“É só jogar”, disse o treinador, passando a mão na cabeça do
menino.
O Flamengo da Ponte Baixa voltou ainda mais motivado para
o segundo tempo. A cada dividida, o time todo gritava junto, in-
clusive os reservas e a meia dúzia de pais e mães na arquiban-
cada. Essa onda de motivação logo no início deixou o Atlético
Campo Grande ainda mais nervoso. Acuados pela marcação sob
pressão e sem encontrar espaços para avançar, começaram a
tentar lançamentos da defesa diretamente para o ataque. O que
agravava a situação era que não conseguiam vencer nenhum
dos rebotes. Cada lançamento resultava em uma nova ofensiva
do Ponte Baixa.
Uma dessas jogadas terminou em escanteio. Como sempre
fazia, Reinaldo se posicionou no primeiro poste, para bloque-
ar um possível cruzamento fechado. Antes que o juiz apitasse,
ainda espiou a movimentação dos jogadores adversários na pe-
quena área, perseguidos pela fúria dos marcadores. Reinaldo
se agarrou à trave e ficou de olho na bola. Mas a trajetória era
imprecisa. Veio alta, descrevendo um arco de parábola que cru-
zou a rota do sol, girando e sem mostrar pistas de onde ia cair.
Reinaldo soltou a trave e começou a caminhar para trás, tenta-
do se defender das rajadas do sol com a mão sobre a testa. Mas
a bola havia desaparecido. Ele continuou a caminhar de costas,
procurando sinais, qualquer coisa no vazio do céu. Quando deu
por si, o goleiro gritava e era tarde demais. A bola caiu diante
dos seus olhos, Cebolinha tentou rebatê-la, jogou-se contra Rei-
naldo, mas o camisa 11 do Ponte Baixa chutou para o gol.
Reinaldo bateu a grama da roupa sob os gritos e lamentos de
Cebolinha, as expressões negativas dos zagueiros, o tapinha nas
costas do capitão Valdinho. Enquanto o time tentava se recom-
por para soltar a bola, ele viu seu Lazinho ao longe, enxugando a
testa, fazendo gestos indecifráveis. Olhou para a arquibancada
e avistou seu irmão sentado sozinho, com uma lata de cerveja.
Enquanto meia dúzia de pais e mães gritava olé, o Flamengo
da Ponte Baixa trocava bola de um lado para o outro, segurando
o resultado. Seu Lazinho até que tentou. Fez três substituições,
colocou mais dois atacantes e resistia à beira do campo gritan-
do calma, reclamado do juiz, cantando as jogadas de ataque.
Mas na confusão que tinha se tornado o Atlético Campo Grande,
o camisa 11 do Ponte Baixa avançou com facilidade pelo flanco
esquerdo do campo. O primeiro zagueiro terminou deitado de-
pois de ser ludibriado pelas pedaladas. Quando chegou à linha
da grande área, o camisa 11 levou uma voadora por trás, soltou
um grito de dor e caiu rolando no chão. Pela violência do grito,
parecia ter partido algum osso. Os jogadores se amontoaram e
no meio da confusão o juiz tirou o cartão vermelho e apontou o
vestiário para Reinaldo.
29
Ele caminhou sem olhar para trás. Tinha um bolo queiman-
do na garganta e as lágrimas iam caindo, à medida que ia dei-
xando o campo. Os gritos em comemoração ao terceiro gol che-
garam abafados nas escadas e não havia ninguém no vestiário.
Tirou o uniforme de qualquer jeito e calçou seu velho tênis. Por
que as coisas tinham dado tão errado? A água do chuveiro era
fria e ele ainda sentia frio enquanto ia para casa.
O pai assistia à televisão e não perguntou nada sobre o jogo.
Embora não tivesse sede, Reinaldo foi à cozinha e bebeu dois co-
pos d’água como quem procura algum consolo. Ele andou pelo
quintal e olhou para o céu muitas vezes, mas não havia nada de
diferente no céu nem na terra. Quando voltou para a casa, viu as
chuteiras dependuradas no varal. Como se tivessem sido lava-
das ainda há pouco, tinham um cheiro de água sanitária mistu-
rada com alguma outra coisa que ele não conseguiu identificar.
“Seu pai achou lá dentro do ninho”, disse a mãe. “Tinha um
ovo quebrado por dentro e eu tive que usar muita Q-boa.”
Marcos Vinícius Almeida nasceu em 1982, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, mas viveu
desde sempre em Luminárias, interior de Minas Gerais. Morou também em São João del-Rei
(MG), onde cursou Filosofia, sem concluir, e em Porto Alegre (RS) por um tempo. Hoje, vive
em São Paulo e cursa o último semestre de jornalismo. Publicou textos de ficção em revistas e
jornais, como a revista Cult, Suplemento Literário de Minas Gerais, entre outros. Também em
algumas antologias. Foi um dos laureados no Prêmio Ufes de Literatura, em 2010. É autor do
romance Inércia (Multifoco, 2009). E da coletânea de contos Quebranto (e-Galáxia, 2014). Blog:
http://quebracorpo.blogspot.com.br/
***O pai acordou na mesma hora de sempre e colocou o café
para coar. Ele calçou as botas e foi até o quintal carregando uma
lata com milho e ração. Ainda havia estrelas e o canto de galos
próximos e distantes. Estranhou o silêncio. Havia casos de co-
bras que bebiam ovos, também das últimas matilhas de lobos e
cães selvagens que atacavam no meio da noite, saruês famintos
e também vagabundos que agem quando menos se espera. Mas
estava tudo trancado e não havia buracos na tela e o cachorro
dormia na casinha, no lugar de sempre. Abriu o portão do gali-
nheiro e caminhou devagar. O sol vinha lento ainda escondido.
Só a preguiça de uma mancha cinza surgindo ao longe, e o escu-
ro daquela hora ainda era o mesmo escuro da noite. Ele girou o
bocal e a luz caiu sobre as galinhas. Imóveis. Pescoço quebrado,
recolhidas no ninho.
Debaixo de cada uma delas, os ovos ainda estavam quentes.
31
Lucas Perito Quatro Formas de Eros
(Fragmentos)À Diana
IPerder a si mesmo como
Um encontro ansiado
IIQuando nua doura a negra noite
Que guardas em teu olhar
IIIA comunhão nasce da morte de nossos filhos
Que tu usas como alimento.
Aos que não nascem
Tu dás repouso no meu desejo;
Engole-os como bebo seus felinos olhos.
IVNão temos fronteiras.
32
O DespertarNum entrever de águas pesadas, o nado se torna denso, lerdo,
[perto
Nada é torpor, um pulmão que abre e fecha frente o vento que chega
Uma montanha de curvas sobre o salgueiro que freme a luz que entra nesse íntimo espaço
É um membro que cresce na vista que mais branca se torna
O algodão ao lado, o ato em cima,
A constatação do terrível despertar dos sentidos.
Do Escrever Sobre uma Raposa É uma presa que marca
Em traços rubros em meio a folhas virgens
Agudo passar entre árvores anêmicas
Todo belo se encontra nesse andar
Incerto traço que rasga a mata
Que freme e fere
Uma marca na presa.
33
Em Noites de SolEm tempos revoltos, onde, longo, parece o caminho, perece o ser de entendimento.
Locais, onde não se encontra o mal, pois oposto não é dado.
Caminham homens, com olhos arados entre mulheres que não caçam.
A música não mais ouvida faz sombra como seres ou objetos.
Espalham o suspiro dormente do momento que se repete.
Para assim se ver, em ilhas de húmus e pétalas, que desfolham o teu lugar.
Observa-se desonesto caminho dos desterrados ou envergonhados,
Que aqui, não encontram seu lar nem sua morada.
Não procures as faces dos destemidos - que aqui não os verás.
Os dias de trabalho, longos são, enquanto eterno sol brilhar.
É na escuridão, longe da intrusa e dentro da noite que luzes se formam.
Há caminhos que sempre contaram, mas que contados nunca foram.
Adeus - frente a bandos de vaidosos discursos magros,
E se os sinos tocarem espera-se que dias melhores virão.
34
A UngarettiComo aquela pedra de S. Michele,
Dura, ainda que natural
A mim se aproxima
Sua gélida face;
Cinza e amorfa
Confunde-se com que se tem
De inverso;
Distingue-se, pois figura eternidade.Nasceu em São Paulo
em 1985. É graduado
em Comunicação em
Multimeios pela PUC-
SP. Trabalhou na editora
Empresa das Artes, es-
crevendo livros ligados a
história e fotografia, fa-
zendo os textos de acom-
panhamento para o li-
vro fotográfico Caminhos
da Mantiqueira (2011) de
Galileu Garcia Junior.
Tem alguns poemas pu-
blicados na Revista Zunái,
na Revista Diversos Afins,
na Revista Benfazeja, na
R. Nott Magazine e no
Caderno-Revista 7 Faces.
36
Carla Kinzo
I.não mora no tijolo a casa
ou no barro
não está na porta a saída
ou no escuro o medo
o caminho não é o que afirma
o papel
o mapa
não é o terreno
não depende da palavra amor
o amor
nem toda confissão nem todo metro
é poema
como nem toda água salgada é lágrima
ou mar
37
II.às vezes é dentro de um gesto o dia
mesmo quando o dia é mais pesado
que o gesto
às vezes é também como o amor num anel
sem marca de início sem marca de fim
muitas vezes é numa capela o clamor pela vida
outras numa esquina
profana
algumas vezes é longe de casa o adubo
pra raiz sob os pés
na maioria das vezes é no espaço da planta de um pé
o cimento da casa
ou como quando encontramos
na planta do anel na volta de um gesto
o caminho mais breve
ao lado leve da cama
III.É talvez na linha
que divide a água e o ar
no exíguo espaço de um copo
Ou mesmo no fio de concreto
que separa a calçada dos carros
Na cena em que você se equilibra num meio
fio às seis da tarde
há muita gente na rua
você não me vê do outro lado
olhando esse quadro com a sede
que não se mata com a água
do exíguo espaço de um
copo
É ali que resisto bebê-lo,
equilibrista,
para tentar inscrevê-lo no espaço fatal
de uma palavra
38
IV.Seus dedos
na direção do meu rosto
a pinçar um cílio caído
sobre as maçãs
são os únicos,
meu amor,
capazes de suspender
o derramado
dos dias
39
V.Riscar o grafite na superfície da folha
com a mão leve como quem rouba
o negativo do verbo de outros tempos
de outras mãos
ainda que sejam as mesmas as mãos
sobre o papel há muito esquecido
Dar voz ao que se calou
mas restou como réstia
vaga impressão
de sílabas
dores
e abraçar um sentido contrário
como quem atira fogo
ao próprio corpo
pra buscar alguma luz
Carla Kinzo nasceu em São Paulo, em 1980. Publicou os livros Matéria
(7letras), ao lado de Caetano Gotardo e Marco Dutra e Cinematógrafo
(7letras). Trabalha em seu novo livro, Cartográfico, contemplado com um
ProAC de Criação Literária em Poesia. É mestre e doutoranda em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP. Seu primeiro
livro infantil, Grão, fica pronto nesse semestre pela Pólen Livros.
41
Marcia Pfleger
A ânfora de ouro“E eis que em meio à palha
descobre o bom agouro:
encontra o fazendeiro
um maciço ovo de ouro!”
Deitado na cabana – que apesar de muito velha me há
de ultrapassar – recordo a passagem, em minha vida, da ânfora
de ouro. Na verdade, nenhum um dia é gasto desta triste sina,
sem voltar a lembrá-la.
Os primeiros ventos do Outono sopravam prenunciando
chuvas. O rio estava barrento, as árvores, desbastadas. As favas
verdejantes amarelavam nas ramas e o mundo inteiro parecia
uma grande ruína sob a luz de um continuado crepúsculo.
Naquele dia, voltei cedo à cabana. Gelados os pés e as mãos
machucadas na horta, ansiava pelo calor do fogão a lenha. A
gaita de boca e o chimarrão eram as únicas companhias.
Um toc-toc na porta espalhou uma surpresa naquele calor de
aconchego, que era quase de temeridade. Abri a porta cautelo-
samente e um velho franzino, de olhar afável, pediu-me pouso.
A ventania enrolava sua longa barba. Tinha as roupas puídas,
um alforje encardido e um par de sandálias de couro ressecadas.
Não gosto de abrigar desconhecidos. Não gosto de abrigar
seja quem for, nem mesmo um cão faminto, portanto já ia me
desvencilhar do inconveniente quando um grande relâmpago –
que o Céu não perde o vício bíblico de anunciar desgraças – fez
desabar a tempestade.
42
Nessas condições, a contragosto, consenti que o velho entras-
se e rapidamente cerrei a porta à chuva torrencial.
De início fui avisando que não tinha nenhum guisado. A re-
feição seria pão, banha e café amargo. Não gastaria com o velho
nem queijo, nem mel. Ele disse que aquilo seria suficiente. Na
verdade, comia pouco, falava também pouco, na mesma contra-
partida em que eu olhava muito, observava muito.
Percebi, entre outras coisas, que o alforje do velho tinha algo
de peso – um volume que retinia como metal. Não me contive:
- Que é isso aí que leva em seu alforje?
- Ah, sim, isto aqui...é uma ânfora. Veja.
E tirou de dentro uma pequena ânfora de metal barato, vazia,
fosca, sem adornos ou marcas. Tinha uma tampa, razão pela
qual eu ouvira o sonido dos metais.
- E o que leva aí dentro?
Ele disse com naturalidade:
- Não levo nada; Deus é que coloca aqui dentro para mim.
Um pedinte de esmolas, deduzi. A ânfora devia fazer as vezes
do chapéu...
No mais, não carregava um dinheiro sequer - pude conferir
porque, na madrugada, enquanto um pesado sono o acalentou,
revistei-o cuidadosamente.
Na manhã seguinte, como é hábito no Sul, o tempo conti-
nuou instável. A chuva parecia ceder e, de repente, recomeçava
com bravura. Ao longe, ouvi o fragor do rio e imaginei-o borbu-
lhante sobre as margens. Não tive escolha senão permitir que o
forasteiro ficasse por mais tempo.
- É nos momentos de grande necessidade que as almas
generosas se revelam - ele disse agradecido, com sua voz baixa
e rouca.
Por conta disso, retirou do alforje a pequena ânfora, deposi-
tou-a no chão e com a mão direita sobre a tampa, exclamou:
- Seja o meu mérito com este repartido.
E assim que levantou a tampa, a ânfora estava cheia de mo-
edas de ouro!
Dei um salto para atrás, estupefato com aquela mágica. Ele
me entregou as moedas, agradecendo a hospitalidade. Segurei-
-as com as mãos em garra, os olhos luzidios refletindo o brilho
das moedas e as chamas que crepitavam no fogão de pedra.
- Como...como fez isso? - perguntei assombrado.
- Nada faço. Deus faz.
Imediatamente ocorreu-me que não poderia deixá-lo partir.
Não ainda, pelo menos. Era imperativo descobrir o segredo da
ânfora de ouro.
Nunca fiquei tão satisfeito com a intemperança do clima. A
chuva vinha em grandes golfadas contra a janela e fazia capri-
chosos canais no solo. A noite chegara mais cedo e foi então, que
me ocorreu a ideia...
Desta vez, servi ao velho também leite e queijo. Disse-lhe que
estava maravilhado com o milagre que presenciara e que eu era
homem muito temente a Deus. Roguei-lhe que me contasse o
prodígio da ânfora de ouro.
Ele mostrou-se reticente. Apenas me contou que era curandeiro,
vagava pelo mundo tratando de pessoas pobres e ajudando os ne-
cessitados como podia. A ânfora era um presente de Deus para que
pudesse dispor de seus tesouros com generosidade e compaixão.
43
Apertei as moedas de ouro que trazia em meu bolso. Como
seria bom vê-las multiplicadas! Coloquei a segunda parte do
plano em ação.
- Nada como um bom trago nestas noites frias - disse pegan-
do um garrafão de vinho que guardava. Enchi dois copos e servi
um ao guardião da ânfora.
- Não bebo, muito obrigado.
Já esperava, portanto não me intimidei:
- Ora, um copo de vinho não vai fazer mal. O vinho é bebi-
da sagrada. Experimente, é de boa safra. Não vai me fazer essa
desfeita.
Para ser gentil, aceitou. Fiquei olhando sua mão magra levar
o copo até os lábios e beber lentamente, no mesmo molde de
quem toma um café quente.
Estendi a prosa até tarde, pois é sabido que o cansaço e o ál-
cool fazem soltar a língua mesmo do mais carola.
Ele terminava de tomar o copo de vinho e, na distração, eu
o enchia de novo. Foi ficando sonolento, porém o sorriso já lhe
chegava fácil. Percebi a hora correta, quando comentava sobre
a importância da fé, e entrei no assunto:
- Admiro quem tem uma fé assim, como a sua. E acredito que
seja genuína. O milagre da ânfora é para calar os mais descrentes.
Ele mordeu a isca e apanhou a ânfora, olhando-a com admi-
ração. Então, contou:
- Este milagre me veio num sonho... Um anjo do Senhor apa-
receu e me entregou a ânfora. Disse que minha mão direita se-
ria abençoada e todos os dias poderia repartir meu mérito com
alguém que eu achasse generoso. Quando acordei, encontrei
essa ânfora ao meu lado.
Tomou mais um gole de vinho e suspirou reflexivo:
- Uma coisa maravilhosa isso que aconteceu comigo...
A lenha crepitava no fogo e a chuva agora apenas tamborila-
va de leve nas telhas.Eu mal respirava para não perder uma só
palavra do que dizia.
- Já faz alguns anos que a tenho. Não para riqueza própria,
mas para repartir com quem necessite. Então, coloco minha
mão direita sobre a tampa da ânfora e invoco a frase que o anjo
me ensinou...
Eu lembrava e citei:
- “Seja o meu mérito com este repartido”.
- Sim, isso mesmo, isso mesmo... - e bebeu mais um gole de
vinho.
- Por que não guarda algumas moedas para você? - perguntei.
Ele me olhou surpreso, como se fosse óbvio:
- Para quê? Eu tenho a ânfora de ouro!
Preparamo-nos para deitar. O ancião estava acomodado
numa rede no fundo da cabana. O fogo quase se extinguira e
alimentei-o com algumas achas. Olhei sorrateiramente para o
velho, que já dormia tranquilo, e com um grosso pedaço de le-
nha nas mãos, acertei-o sem piedade. Matei-o.
Ah, mas eu não seria tolo de dar um fim ao corpo, sem tomar
algumas providências!
Ciente de tudo o que me havia revelado, com o machado que
usava para cortar lenha, decepei-lhe a mão direita. Mão e ânfo-
ra estavam agora em meu poder, prontas para me fazerem um
homem rico, muito rico.
Nessa empreitada, meio atordoado pelo vinho e pelo afã do
44
crime, acabei derrubando o machado e
ferindo minha perna. Do talho abaixo do
joelho brotou um sangue escuro e grosso.
Derramei um pouco de aguardente e en-
faixei o local sem cerimônias.
Já amanhecia com uma garoa fina.
Embrulhei o corpo do velho na rede onde
dormira e joguei-o no rio. A violência das
águas revoltas pelas chuvas o arrastaria
para longe, para nunca mais...
Lavei numa bacia a magra mão dece-
pada e pensei em guardá-la junto à ânfo-
ra sob uma tábua solta do piso, na escura
despensa. Mais tarde, trataria de salgá-la
para que fosse preservada.
Estava um pouco febril e minha perna
doía, mas mesmo assim, em lugar de dei-
tar, não contive o impulso de conjurar o
encantamento que me traria mais ouro.
Segurando a mão do velho sobre a
tampa da ânfora, invoquei:
- Seja o meu mérito com este repartido.
Abri cautelosamente a ânfora. Estava
vazia.
Fiquei cismando por um dia inteiro o
que teria dado errado. A obsessão deu
trégua quando o mal-estar, causado pelo
ferimento da perna, foi tomando espaço.
Nenhum chá, unguento ou curativo re-
vertia a ferida que se alastrava. Arrastei-
-me até o cavalo e toquei para a cidade. O
vento era cortante e grandes poças cor de
café com leite pontilhavam a estrada.
Para pagar o médico, o remédio e o
que mais fosse - e principalmente para
não deixar o dinheiro na cabana, tal o
apego que me incinerava - levei todas as
moedas de ouro comigo.
O doutor me deu injeção, fez curativos,
receitou medicamentos e recomendou
que ficasse em repouso. Não aceitou pa-
gamento - dado o meu aspecto, imaginei
que não desconfiava que eu era um ho-
mem rico, dono de uma ânfora de ouro!
Perguntou onde eu morava e garantiu-
-me que iria lá no dia seguinte, para ver
se eu melhorara.
Na volta, tive de descer do cavalo por-
que havia chovido mais e a lama alta na
estrada dificultava a passagem. Escorre-
guei diversas vezes. Numa dessas, em al-
guma parte do trajeto, acabei perdendo
as moedas de ouro que trouxera comigo.
Ao dar falta da pequena fortuna, voltei
atrás, a pé, arrastando-me, chafurdando
na lama, procurando desesperadamen-
te as moedas, sem encontrá-las. Urrei de
frustração e ódio.
Foi quando me veio o que julguei ser
uma revelação.
- Seja meu mérito com este reparti-
do...com este repartido...Repartir com al-
guém... É isso!
O médico iria até a cabana pela ma-
nhã, então, eu invocaria a graça afortuna-
da para repartir com ele as moedas. Não
daria tudo para o doutor, como o velho
fez comigo - daria somente uma moeda
(e já era uma boa paga) e as outras seriam
minhas. Era esse o segredo da ânfora. E
assim faria, sucessivamente, até que ti-
vesse um tonel de ouro!
O pensamento me fez sentir bem, sen-
tir-me generoso e sentir uma certa ale-
gria em ser generoso. A perna até parara
de doer, tanto o sentimento de esperança
é abundante em suas dádivas.
- A sua perna não está nada boa. É melhor
que fique uns dias no hospital - disse o
doutor, apreensivo.
Eu mal escutara sua recomendação,
afoito que estava para ver de novo uma
pequena soma em ouro em minhas mãos.
Tivesse vasculhado o sentido de suas pa-
lavras, saberia que minha situação era
precária... Mas a lembrança do ouro me
deixava febril.
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- Doutor - disse ofegante - eu quero lhe
pagar...
Apesar de sua objeção, entrei claudi-
cante na despensa da casa, cerrei a cor-
tina e tirei das tábuas do chão a ânfora
de ouro e a mão (que eu já havia salgado).
Murmurei o encantamento:
- Seja o meu mérito com este repartido...
Abri a ânfora.
Vazia.
Falei mais alto:
- Seja meu mérito com este repartido.
A ânfora continuava oca, surda ao
meu apelo.
Repeti várias vezes, com lágrimas de
frustração, até bradar em alta voz:
- Seja o meu mérito com este reparti-
do! Seja o meu mérito com este reparti-
do!
...
Há, há, há, há...! A ânfora, a maravi-
lhosa ânfora de ouro, estava vazia, vazia
para sempre...
O doutor me encontrou chorando na
penumbra. Arrastou-me até o leito e dis-
se que meu estado febril havia piorado.
Levou-me ao hospital onde fiquei alguns
dias. Curei-me. Voltei para casa.
No entanto, a ferida retorna após
algum tempo. Após algum tempo, a per-
na vai ficando pior, obrigando-me a per-
manecer deitado. Já nem procuro mais o
médico. Sou um homem condenado...
Os poucos recursos que tinha, esta
invalidez precoce acabou por diluir, dei-
xando-me mais miserável.
A mão do velho queimei nas cha-
mas do fogão de pedra, pois me causava
pesadelos.
Só restou, encostada num canto da ca-
bana, a ânfora vazia, cujo metal barato,
assim como meu coração, parece nunca
ter conhecido brilho...
46
Crepúsculo solferino
(Uma continuação inspirada no conto
“Venha ver o pôr do sol”, de Lygia
Fagundes Telles)
A tarde estava silenciosa. Nenhu-
ma criança brincava de roda nos arredo-
res, como da última vez. Ao longe, casas
esparsas e, mais além, alguns casarões
antigos, remanescentes de um tempo de
glória da região, que há muito havia ter-
minado.
Ricardo caminhava vagarosamente.
Mas não andava à toa, como quem pas-
seia aproveitando a erma quietude do lu-
gar. Tinha destino certo.
Chegou ao grande portão do imenso
cemitério abandonado. “Vivos e mortos,
desertaram todos, meu anjo”, lembra ter
dito a Raquel. De fato, as lápides racha-
das, cobertas pela hera, denunciavam
que o cemitério fora desterrado ao es-
quecimento: essa morte que é maior que
a própria morte.
O dia estava abafado e um vento lú-
gubre agitava as árvores, parecendo sus-
surrar mensagens fúnebres. Ricardo
avançava para o interior do cemitério,
seus passos ecoavam estranhamente no
cascalho. Por um momento pareceu in-
deciso. Percorreu com os olhos a imen-
sidão dos túmulos em ruínas, a tristeza
dos mausoléus que se recortavam contra
o céu gris. Reconheceu o caminho e, bem
devagar, recomeçou a andar, a cabeça
baixa, os olhos apertados.
Um frêmito nervoso percorreu-lhe o
corpo quando avistou a capela. Ali embai-
xo, na catacumba secular, há mais de um
ano, trancara a amante infiel. Como esta-
ria o corpo?, pensou tomado de uma ex-
citação mórbida. Ricardo não fazia ideia
do que sobrava de uma pessoa após um
ano de sua morte. Ele teria desejado vol-
tar lá antes, bem antes, enquanto Raquel
estivesse moribunda, frágil, já sem um
pingo de arrogância. Então, então ele lhe
falaria de seu imenso amor, de como ela
havia destruído seus sonhos, de como ela
merecia expiar essa pena tortuosa... Mas
não podia. Muito arriscado. O marido a
procurava, a polícia, com certeza, havia
dado uma busca pelo desaparecimento.
E, se por um acaso remoto, a descobris-
sem? E se ele estivesse lá? Não. Muito ar-
riscado. Corria um boato sobre transfor-
mar as velhas edificações e outras ruínas
do local em patrimônio histórico. Não
lhe agradava a ideia de que outros que-
brassem aquela paz, profanassem o que
estava fadado a permanecer no esqueci-
mento. E se entrassem na velha capela, e
se descessem as escadas fantasmagóricas
da catacumba? E se o interrogassem?
Ele fora impecável. Ninguém jamais
descobriria. Ninguém o conhecia nas re-
dondezas. Convidara Raquel “um último
encontro, por favor”, e ela viera escondi-
da de tudo e de todos. “Vou lhe mostrar
o mais belo pôr de sol de sua vida”, pro-
metera. Viera sozinha, pousando os pés
incautos sobre uma teia invisível de ara-
nha. “Este é o local que você gostaria de
me mostrar?”, zombara ela quando en-
traram no cemitério. Ela sempre zomba-
ra dele, lembrou com raiva. Zombara de
seu amor, de sua paixão, trocando-o por
outro homem. “Ele é riquíssimo”, contara
para espezinhá-lo.
47
“Venha ver, Raquel, aqui nas catacumbas”, dissera-lhe naque-
la tarde, apontando o retrato em uma das gavetas fúnebres. “É
incrível como ela tem os seus olhos, Raquel”. E a tola – pensou
-, curiosa como o são todas as mulheres vaidosas, foi descendo,
um a um, os degraus de seu destino... Então, no momento em
que ela se inclinava à luz do fósforo para olhar o retrato amare-
lado da defunta, Ricardo trancou a porta gradeada, encerrando-
-a para sempre no interior do mausoléu. “Há uma frincha na
porta, meu anjo. Por ali, você verá o pôr de sol mais belo de sua
vida”, disse na despedida.
Os gritos de Raquel ainda ecoavam na lembrança: primeiro,
aterradores, embrutecidos; depois, distantes, quase ausentes; fi-
nalmente, na entrada do cemitério, apenas o fantasma de um
lamento. Seria o vento nas árvores que trazia esse som de preci-
pício? A cantiga de roda das crianças continuara...
Parou em frente à capela. Só para se certificar, correu a vista
ao redor: não havia ninguém. Tateou o bolso e retirou nervoso
o molho de chaves de onde balançavam um cortador de unhas,
um canivete e, entre outras, a chave que buscava. Uma chave
nova, da fechadura que dava acesso ao lôbrego recinto.
Abriu as portas da capela, cobrindo parte do rosto com a gola
do blusão, prenunciando miasmas putrefatos. “O que sobrou de
você”, murmurou com rancor.
Estava escuro, bem mais escuro que da última vez, pois a tar-
de, então, era ensolarada e não tinha esse aspecto cinzento, de
luto verdadeiro. À direita do altar, na semi obscuridade, a grade
que levava às sepulturas parecia inalterada. Um pensamento
louco, contraditório, nascido de uma tênue esperança, ocorreu-
-lhe: “E se estivesse viva?”... É claro que não. Se resistira ao terror
da situação, mesmo assim, não teria sobrevivido mais que pou-
cas semanas. Nada de água. Nada de comida. Nada de luz. Se-
pultada viva.
Girou a chave e lentamente empurrou a porta enferrujada.
Desceu apenas o primeiro degrau e esperou que seus olhos se
acostumassem à quase completa escuridão. Aos poucos, come-
çou a distinguir contornos, formas, detalhes. Lá embaixo, em
um canto, finalmente os olhos encontraram, com terror, o que
procurava. Então, um remorso agudo rasgou-o ao meio! “Raquel”,
gemeu. Dobrando os joelhos, Ricardo chorou convulsivamente.
Eram gritos desesperados, inumanos...
Alguns dias mais tarde, a milhares de quilômetros dali, a
mulher jogou o jornal sobre a cama. Estava tudo consumado,
pensou. E deu um sorriso. Embora o marido a tratasse com mi-
mos, enchendo-a de compensações, Raquel já estava sentindo
que viver na Europa estava sendo mais entediante do que pre-
vira. Agora, poderia voltar.
O marido a achava, às vezes, estranha, ausente. Desde aque-
le misterioso assalto, há mais de um ano, a esposa costumava
entrar num estado em que parecia totalmente ensimesmada.
(Nem o passeio de duas semanas ao Oriente a tinha feito esque-
cer o trauma). Em tais momentos, Raquel tornava-se pensativa
e, nesses devaneios, seus olhos verdes se escureciam, denun-
ciando um brilho cruel.
É claro que era cruel, sempre o fora. Não era a isso que de-
via tudo o que tinha conquistado, não era a isso que devia, até
mesmo, a própria vida? Não fora esse laivo de impiedade que
lhe deu a coragem? Não fora, sustentou Raquel para si mesma,
48
esse desprezo pela fraqueza – tanto alheia quanto própria – que
a salvou?
Ah, como havia sido ingênua, tola mesmo, ao aceitar aquele
convite. Um psicopata! E o pior: como foi que chegara a ter, veja
só, um romance com ele! Bem fizera trocando-o por outro, me-
nos debiloide e, além de tudo, milionário.
As sombras daquele cemitério ainda pairavam em seus
olhos. Só a perspectiva de que Ricardo pôde ser capaz de dese-
jar-lhe tanto mal, tanto, tanto, causava desconforto. Mas, agora,
estava tudo consumado. Recostou-se no parapeito da janela de
onde vislumbrava o mar e rememorou tudo minuciosamente.
Ela fora perfeita.
Fechou os olhos e se viu novamente na velha escada da cata-
cumba. Pela fenda da porta da capela, a luz irisada desaparecia,
os últimos vestígios de luz. A garganta doía-lhe de gritar e um
tremor de pânico se espalhava pelo corpo, como se mil tarân-
tulas lhe percorressem as veias. Por um instante, pensou des-
falecer. Agarrada às grades enferrujadas da porta, recusava-se
a descer onde repousavam as criptas. Logo, ela seria mais uma
naquela multidão de cadáveres do velho cemitério.
Mesmo sabendo ser inútil, ainda tentou sacudir as antigas
grades, onde a fechadura nova, trocada por Ricardo, reluzia nos
últimos respingos de luminosidade. Passou a noite ajoelhada e
agarrada às grades. Com desalento, recordou que ninguém sa-
bia onde estava. Ninguém jamais poderia imaginar. Ninguém
jamais a ouviria gritar. Ninguém entraria no velho cemitério.
Num instante, a escuridão ficou absoluta. Aqui e ali, aterro-
rizada, escutava ruídos. Nenhum lugar é completamente silen-
cioso à noite.
Já chorara várias vezes e, ansiosamente, suplicantemente,
aguardava a chegada do dia, quando teria ao menos um pouco
de luz para enxergar, sem que a imaginação projetasse horrores
na escuridão.
Nauseada, vomitou ali mesmo, no alto da escada, e a exaus-
tão que isso causou lhe trouxe até certo alívio. Depois, recostou
a cabeça na grade, resignada, já sem forças. Apenas esperava a
manhã.
Quando o céu foi perdendo o negrume e adquiriu aquele tom
de azul que permite certa visibilidade, percebeu que a aurora
se aproximava. Uma réstia de luz passava pela frincha da por-
ta. Imbuída de novo alento, outra vez sacudiu as grades, várias
vezes, diversas vezes. Com as mãos em forma de garra, tentava
puxar a fechadura, em vão.
Foi quando seus olhos, involuntariamente, sutilmente, desli-
zaram apenas um pouquinho, um átimo à direita da fechadura.
Então, voltaram... vagarosos, criteriosos, estudando a possibi-
lidade. Raquel deu um passo atrás, a respiração em suspenso.
Olhou da fechadura nova ao velho caixilho engastado nas pa-
redes de taipa e pedras. As pedras eram pequenas, ovaladas e,
talvez, algum dia tivessem sido brancas. Agora eram escuras,
manchadas, com fungos proliferando em algumas partes.
Quanto mais examinava, mais a ideia fazia sentido. Reme-
xeu afoitamente a bolsa à procura de algo apropriado. Foi adivi-
nhando o pente, as luvas, os cigarros, os óculos de sol, a carteira,
os fósforos (pegou os fósforos), um batom e, então, no fundo da
bolsa, achou a caneta de metal. Presente elegante de uma amiga
(nunca pensou que seria tão útil). Acendeu um fósforo e exami-
nou com os dedos delicados o caixilho e a parede. Quase os aca-
riciava, enquanto os olhos sondavam a expectativa. Enrolando a
suave echarpe de seda em torno das mãos, começou a apunhalar
49
devagar o sutil espaço entre o caixilho e a parede. Enfiava a ca-
neta nos ângulos, como se quisesse rasgar o estuque, golpeava
com firmeza, os cabelos em desalinho, os dentes cerrados.
No começo, pareceu-lhe que nada acontecia. A parede mostra-
va-se sólida. Com o tempo, aos poucos, um pedacinho começou
a esfarelar. Raquel estava totalmente concentrada, totalmente
presente no que fazia. Ao notar os progressos da empreitada,
chegou mesmo a sentir certo prazer naquilo tudo.
Súbito, a caneta entortou e as costas das mãos se arranharam
nas grades sujas. Começou o trabalho novamente, porém ficara
mais difícil; com a ferramente deteriorada, as pedras pareciam
irredutíveis. Bateu, bateu, bateu (as mãos já sangravam). Caiu
no choro e esfregou o rosto com as mãos feridas. Após um mo-
mento de autopiedade, o gosto do sangue na boca deu-lhe novo
ânimo, revitalizando-a como se fosse uma vampira.
“Calma, Raquel”, disse a si mesma. Recomeçou com calma,
calculando cada golpe. Começou a fazê-los um sobre o outro,
em um mesmo ponto, até que sentisse a taipa voltar a esfarelar.
Cerca de duas horas depois, conseguiu fazer um pequeno
buraco por onde enxergava a lingueta cintilante da fechadura.
Aproximou os olhos do buraco para observar o caixilho. Trata-
va-se de uma moldura inteiriça, com uma fenda retangular no
meio, por onde passava a tranca. A fenda era um pouco maior,
delatando que a antiga fechadura (a original) era mais robus-
ta. Isso dava uma pequena folga à porta, evidente quando a
chacoalhava.
Escavou mais um pouco, (a testa úmida de suor), mais ainda,
até que a tranca ficasse à mercê de seu vandalismo. Respirando
com júbilo, acendeu um fósforo e desceu à catacumba. Olhando
para o chão, encontrou o que precisava: um pequeno pedaço de
ruína, uma pedra que cabia inteira na palma da mão.
Subiu as escadas e com vigor golpeou a pedra no caixilho
enegrecido. Viu que não ia ceder. Uma ratazana passou corren-
do por entre suas pernas. Raquel levou um susto. Num canto,
viu os olhos miúdos do roedor brilharem. Certeira, esmagou-
-o dando várias estocadas com a pedra, descarregando toda sua
frustração. O animal guinchou.
Quando se voltou, ofegante, para o caixilho percebeu: pode-
ria entortá-lo com força no sentido do pequeno espaço cavado
na parede! E assim fez, golpeando metodicamente com a pedra.
O trabalho era lento, o ferro frio é difícil de malhar. Teve a ideia
de esquentá-lo, fazendo uma pequena labareda com alguns car-
tões que estavam na carteira, gastando quase todo conteúdo da
caixa de fósforos. Teve resultado...
Finalmente (as mãos doíam), terminou. A tranca da fecha-
dura poderia passar pelo caixilho violado. Tentou abrir, mas
não pôde! “Vamos, estou quase saindo”, instigou. Raquel sacu-
diu violentamente a porta meio desconjuntada. “Se a suspender
um pouco, quem sabe...”. Então, com uma sensação de regozijo,
conseguiu. Estava livre!
Abriu devagar a saída do cárcere macabro. Encaminhou-se à
porta da capela, perto das janelinhas empoeiradas, “já amanhe-
ceu...”. Girou o trinco e esta não estava trancada. Tão infalível
Ricardo achara seu plano, que nem se dera o trabalho de trocar
a fechadura desta!
Num longo hausto respirou o ar da liberdade. Ah, quão sutil
é a linha entre a vida e a morte! Às vezes, um pouco de determi-
nação e astúcia podem fazer toda a diferença.
Só neste momento Raquel se deu conta de que estava com sede
– mas isso não era importante agora. Ao lusco-fusco percorreu
50
depressa a via de cascalho que levava ao
portão do cemitério. “Escapei, maldito”,
pensou com fúria e alegria. Mas... e se ele
voltasse? Estacou. E se descobrisse que
fugira? E se Ricardo começasse a perse-
gui-la para terminar o intento assassi-
no? Não, Raquel não poderia chamar a
polícia, não poderia contar a verdade – o
marido, ciumentíssimo, iria querer satis-
fações do porquê fora se encontrar às es-
condidas com o ex-amante.
Começou a pensar. Ou melhor, a ide-
alizar. Ao esposo, diria que tinha sido as-
saltada e largada em um lugar distante. A
pretexto de trauma, pediria-lhe para não
envolver a polícia e nem tocar mais no
assunto. Quanto ao seu algoz... ah, Ricar-
do teria uma grande surpresa!
Olhou ao redor, o lugar era mesmo
deprimente e assustador. Lápides em
ruínas, mármores partidos, tudo, tudo
abandonado. Mas, tinha tempo. Ainda
mal amanhecera...
Com uma cruz de ferro caída de um
túmulo dirigiu-se novamente – assom-
brada com a própria audácia – para os
fundos do sinistro cemitério. “Acho que
será um bom instrumento para o que
preciso fazer depois”, pensou.
A primeira coisa seria desentortar o
caixilho, recolocar a tranca no lugar e os
pedaços de estuque na parede. Tinha cer-
teza de que Ricardo voltaria, afinal o vira
guardando as chaves. A porta deveria pa-
recer inviolada. Deixaria na catacumba
algumas coisas, entre elas, a bolsa (sem
dinheiro e documentos, é claro), o que
serviria também de álibi para o “assalto”.
Então, ao encontrar o que precisava em
um dos túmulos quebrados do cemitério,
arrumaria tudo, impecavelmente. A vin-
gança seria perfeita.
- O que está fazendo, querida?
Raquel abriu os olhos. Um crepúscu-
lo esplêndido, solferino, a surpreendeu.
A voz do marido a trouxera de volta ao
presente.
- Estou admirando o pôr do sol, sorriu
enigmática.
O esposo a abraçou e ficaram juntos
a contemplar o horizonte matizado, os
barcos que navegavam ao longe, sentin-
do a brisa marinha acariciar o rosto, em
completa paz.
Sobre a cama, a página aberta de um
jornal brasileiro trazia uma estranha no-
tícia... Em um ermo vilarejo, dentro de
um antigo cemitério abandonado, fora
encontrado um homem – morto recen-
temente. Ao lado do seu corpo estavam
uma bolsa e uma echarpe apodrecidas,
que não tinham identificação. Mas o que
realmente intrigava, eram as circunstân-
cias insólitas do suicídio. Os peritos ten-
tavam desvendar um mistério: por que
o homem se matara, cortando os pulsos,
abraçado apaixonadamente a um cadá-
ver centenário...
Marcia Pfleger (pronuncia-se Flêguer), é jorna-
lista e escritora. Nasceu em União da Vitória (in-
terior do Paraná), mora e trabalha em Curitiba.
Participou da edição 6 da Revista Parênteses
e da antologia Paralelos - Contos Fantásticos,
pela Editora Inverso, com o conto O Segredo do
Alquimista. Também integra o Dossiê Woolfiana
- Mulheres escritoras dos séculos XX e XXI, organi-
zado pela UFPR. É autora do blog Unha que risca
a lousa. Seu livro de estreia, Caneca de Café com
Versos, foi lançado em setembro deste ano pela
Editora 7Letras.
52
Matheus Hatschbach
A perpétua saudade daquele novembro caféNós éramos cicatrizUma chaga na pele de GaiaContorcionistas equilibrantes dosQuereres & carênciasContaríamos ainda mais uma vez as palavrasdos tântricos movimentos das nossas pregasde couro cru:-Um hiperorgasmo em latim- Umasaliva que não mata a sede- Eum veneno vencido no mar do jardim-Meu sangue te queria por completaempurrava minhas artériasCaçando o oxigênio das tuas inspiraçõesTodo o odor que percorria a casaEra um convite pra inércia teimosadaqueles corpos estendidos,a completarem-se entre os ácaros queespeculavam pelos fios do carpeteDesde que estive em você na perpétuamarca dos vales sedosos de novembro.
53
Quem sabese num café
te encontrar
lendo aquele
alérgico livro
blasé
de sempre
possa
olhar reto
sem despencar
na gravidade óptica
da suja orbita
sua.
54
Poesia sãoos teus brilhantes olhos
de ressaca
é o carinho disfarçado nas
pulgas dos cachorros de rua
é o cheiro
do creme hidratante
de frutas vermelhas
entrando intempestivamente
na minha pele
é você
sendo sem
mas
nem que
é você.
Poesia escrotaQuero uma antropofagia escrachada
Vomitada num beco atrás da tua esquina
Vulgarizar todos meus versos
Só para escandalizar esse comichão retrógrado que me puxa a
espinha
Amedrontar tuas regras das minhas linhas
Tuas métricas nas feridas
Por que elas não me deixam fechar
Quero apodrecer toda expectativa de uma lírica
Não sou teu poeta, meu bem
Quero explodir o mundo só para
O bem gozar do meu vagabundo
Não quero a arte,
Quero pintar o papel d’umas gotas de suor sangue e saliva
55
Aqui jaz um poetaTeimou tanto
Em ter o mundo
numa rima
Que terminou
Sem fundos
nem linha.
Matheus Hatschbach nasceu&-
cresceu inundado pela nebli-
na curitibana, com os pulmões
carbonizados pela cidade. Cursa
História e Direito e constrói o
Coletivo Invernáculo. Participou
dos livros Desnamorados e O Corvo.
Os escritos são publicados no blog
devaneiostropicais.wordpress.com.
57
Jimena Arnolfi porLubi Prates
HibernaciónEn tiempos de autopromoción constante
lo mejor es esconderse
hibernar como un animal
de sangre caliente
entrar en un sueño profundo
que el latido sea más lento
que la temperatura descienda
ahorrar energías
usar las reservas almacenadas
de los meses más cálidos
mutar en una refugiada,
invencible.
HibernaçãoEm tempos de autopromoção constante
o melhor é se esconder
hibernar como um animal
de sangue quente,
entrar num sono profundo
onde a batida do coração seja mais lenta
onde baixe a temperatura;
poupar energia
usando as reservas armazenadas
durante os meses mais quentes
se transformar em uma refugiada,
invencível.
58
Día del inquilinoLos días en la ciudad se parecen
a la escenografía de un teatro
una vez que termina la obra
ganarse la vida es arruinarla.
El tren es más mi casa que la casa donde vivo
todo el tiempo miro edificios
imagino torres de cuerpos acostados
uno encima del otro.
Siento un poco de alivio
cuando termino de crujir mis dedos
necesito que exista
una acción similar para la mente.
Podría renunciar a este trabajo
y recuperar la vida en general
pero no lo haré
debo, antes, pagar el alquiler.
Dia do inquilinoOs dias na cidade se parecem
com o cenário de um teatro
quando a peça já terminou,
ganhar a vida é arruiná-la.
O trem é mais minha casa que a casa onde moro
todo tempo olho edifícios
imagino torres de corpos estendidos
um acima do outro.
Me sinto aliviada
quando meus dedos param de ranger e
preciso que haja
a mesma ação para a mente.
Poderia renunciar a este emprego
e recuperar minha vida
mas não farei
devo, antes, pagar o aluguel.
59
httpAfuera, la luna creciente o menguante,
adentro, un brillo oscuro en la botella.
Colecciono redes sociales
para demorar la hora en la que me voy a dormir.
Estoy sola pero lleno la cubetera
para no despertar a nadie.
httpLá fora, a lua crescente ou minguante,
aqui dentro, um brilho escuro na garrafa.
Coleciono redes sociais
só para atrasar o horário de dormir
Estou sozinha, mas encho a forma de gelo
para não despertar ninguém.
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EstadísticasEstudios de mercado para saber
qué tipo de mente tenés
qué jabón o dentífrico usás
a qué político vas a votar.
Cuando suena el teléfono
y es una nueva encuesta telefónica,
miento en todas las respuestas.
Después, me siento bien
como si hubiera ganado algo.
EstatísticasEstudos de mercado para saber
que tipo de mente você tem
que sabonete ou creme dental usa,
em qual candidato vai votar.
Quando o telefone toca e
é uma nova pesquisa
minto em todas as respostas.
Depois me sinto bem
como se tivesse ganho um prêmio.
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MilitanciaEstoy a favor de cualquier cosa
que me haga pasar la noche.
La actitud que tomemos será crucial
para sobrellevar este clima de fin de época.
MilitânciaSou favorável a qualquer coisa
que me faça passar a noite.
A atitude tomada será crucial
para suportar este clima de fim de época.
Jimena Arnolfi nació en Buenos Aires, Argentina en 1986. Estudió
Comunicación Social. Sus escritos circulan en antologías, revistas y pu-
blicaciones online. Publicó Todo hace ruido (Editorial Pánico el Pánico,
2013), Metafísica (La Fuerza Suave, 2015) y el cuento Yo quería que lo ma-
tes en formato audiolibro (Grupo Alejandría, 2015). Tiene un blog:
www.elpoemadelmomento.blogspot.com.ar
Lubi Prates: nasceu em 86, em São Paulo. Estudante de Psicologia. Tem pu-
blicado o livro coração na boca (Editora Multifoco, 2012) e algumas par-
ticipações em revistas e antologias literárias nacionais e internacionais.
Escreve no blog coração na boca. Edita a Parênteses, revista literária virtual,
e traduz. Vive em Curitiba.
Vanessa Carvalho
Vanessa Carvalho nasceu em Recife, em 1995. Mantém desde 2013 o
projeto Reconhecendo-se em Desconhecidos, no qual, por onde anda,
fotografa pessoas que ela nunca viu. Também escreve e publica no
blog Filosofia de Quinta.
ensaio fotográfico de
Lista de autores já publicadosAlan Kramer, Ana Guadalupe, Ana Kehl de Moraes, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, André Oviedo, Andréa Del Fuego, Aníbal Cristobo, Barbara Mastrobuono, Bruna Beber, Bruno Palma e Silva, Cecilia Pavón, Daniel Francoy, Daniella de Paula, Déa Paulino, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Érica Zíngano, Fabiano Calixto, Fabíola Weykamp, Fabricio Corsaletti, Felipe Nepomuceno, Gabriela Ventura, Gertrude Stein, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno, J.F. de Souza, Juliana Amato, Juliana Krapp, Luana Vignon, Ismar Tirelli Neto, Jeanne Callegari, Julianna Motter, Laura Liuzzi, Leandro Jardim, Lielson Zeni, Lyn Hejinian, Leo Ventura, Leonardo Gandolfi, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luca Argel, Luci Collin, Ludmila Rodrigues, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marcos Casadore, Mariana Botelho, Marília Garcia, Marcia Pfleger, Mirella Carnicelli, Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Noemi Jaffe, Odile Kennel, Pierre Masato, Rafael Mendes, Raimundo Neto, Ricardo Domeneck, Rodrigo Garcia Lopes, Rubens Akira Kuana, Sergio Mello, Stephanie Borges, Tao Lin, Thiago tizzot, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer, Virna Teixeira, William Zeytounlian.
FotógrafosAdelaide Ivánova, Ana Kehl de Moraes, André Lasak, Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Daniela Feder, Edu Suppion, Julio Perestrelo, Marcel Fernandes, Mariana Caldas, Raphael Bernadelli, Rodrigo Sommer, Thany Sanches, Vanessa Carvalho.
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Edição Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
Fotos Marcel Fernandes
cargocollective.com/marcelfernandes
Projeto gráfico Bruno Palma e Silva
palmaesilva.com.br
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