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RESUMO
Esta pesquisa consiste em analisar experiências no ensino de arte para crianças, de 05 a 12
anos, realizadas em escolas da Rede Estadual de Ensino – Diretoria de Ensino Campinas
Oeste, no município de Campinas, de 2010 a 2014.
Ao relatar um conjunto de aulas, selecionadas dentro do contexto de minhas experiências,
procuro estabelecer uma união da prática e da teoria através da criação, propondo, desta
maneira, um encontro entre o professor de arte e o artista. Relacionando os relatos das aulas
em interlocuções com obras de artistas e com diferentes autores, situados principalmente no
campo de conhecimentos da Psicologia Junguiana, desenvolvo temas como a autobiografia
e a memória presentes na construção de propostas de ensino da arte, a origem e os
caminhos possíveis de interpretação das imagens criadas dentro e fora de sala de aula, as
contribuições viabilizadas por histórias e personagens em propostas que abordam a
imaginação das crianças, bem como os embates e os confrontos entre ser professor e ser
artista na escola.
A partir destes diferentes temas, procuro refletir e discutir também alguns sentidos para a
docência e para a ação artística, expondo os encontros do professor e do artista em um
caminho marcado pelo autoconhecimento.
vii
9
ABSTRACT
This research consists of an analysis of experiences in art teaching for children between 05
and 12 years old. It was conducted in public schools of the state education network
(RedeEstadual de Ensino) – regional section of West Campinas, in the city of Campinas,
from 2010 to 2014.
Reporting a set of classes, selected from the context of my experiences, I seek to establish a
link between theory and practice through creation, therefore proposing, a meeting between
the art teacher and the artist. Connecting the reports from the classes with interlocution with
artists works and different authors, mainly situated in the field of the Jungian Psychology, I
develop themes such as autobiography and the memory present at the construction of art
teaching proposals; the origin and the possible ways for interpretation of the images created
inside and outside the classroom; the contribution provided by stories and characters in
proposals that use children's imagination; as well as clashes and confrontation of being both
a teacher and an artist at school.
Based on these different themes I also pursue reflection and discussions about the meaning
of teaching and artistic action, exposing the encounters and places visited by the teacher
and the artist on a pathway marked by self-knowledge in search for another expressive
being.
ix
11
SUMÁRIO
O HOMEM DO CHAPÉU 21
Tecituras do Chapéu 23
O Homem do Chapéu 25
ESCRITOS DO HOMEM DO CHAPÉU 65
O que sou chamado a dizer a vocês? 69
Memórias de um artista tornando-se de artes professor 75
ENCONTROS COM A ARTE E COM A DOCÊNCIA 83
Outros da Escola. Outros da Arte. 85
Encontro com a docência 93
Encontro com a criação: o autobiográfico como tema 95
Confluência de caminhos 104
DEFINIÇÕES E INTERPRETAÇÕES 111
Gigante com Flores 113
O Penélope 131
Mar do Japão 139
BIBLIOGRAFIA 157
xi
15
AGRADECIMENTO
À minha família, pai e mãe, especialmente minha vó, que foram essenciais para o meu
bem-estar durante todos esses anos de estudo. Meu muito obrigado!
Ao meu irmão, Paulo, que me fez enxergar a emoção em uma origem.
À minha orientadora, profa. Dra. Ana Angélica Albano, a Nana, que aceitou o desafio desta
pesquisa, pelo acolhimento e pela paciência. Por ter acreditado em mim, permitindo-me
procurar, entre a vigília e o sonho, por uma expressão e por minha própria voz neste
trabalho. Pelos silêncios de nossos encontros e pelas tempestades no confronto de nossos
sonhos. Nós sabemos o que fizemos!
À Dra. Salete Biagioni, minha terapeuta, que fortaleceu o caminho e a espera de minha
busca. Sem nossas sessões, esta pesquisa não teria sido possível.
Aos professores Dra. Rosvita Bernardes Kolb e Dr. Guilherme Val Toledo, pelo olhar
generoso e pelas contribuições de suas leituras para o meu texto de qualificação.
À Kathlyn Bernadete Bittencourt e à professora Dra. Simone Cintra, pelas leituras, ideias e
sugestões para o meu texto.
Ao Dr. Roberto Gambini, por ter me acolhido em seu consultório e ter me orientado com a
“documentação secreta do Vaticano”.
Às doutoras Ana Cláudia Cerávolo de Oliveira e Amélia Herig.
Às escolas, aos meus alunos e às professoras. Especialmente à professora Juliana Gomes
Santos.
À Faculdade de Educação e ao grupo Laborarte.
A todos aqueles que me acolheram em suas casas ou que delas me expulsaram.
Ao desconhecido.
xv
23
TECITURAS DO CHAPÉU
Alguns nomearam de estúdio do “Diabo do teatro de sombras” e de “Fabriqueta de
perfis” ou ainda, como prefere um amigo filósofo, “Gabinete da Alegoria Platônica”. Eu
prefiro ateliê. Bem apropriadamente: ateliê de um jardim secreto de sujeitos e de
personagens. Lugar este onde escolhi para criar – com o coração de um cosmólogo
apaixonado e com as mãos do marceneiro mais antigo da cidade.
Neste meu reino, eu não sou Gepetto, mas estou muito próximo de um. Porém, o que
gosto mesmo é de inventar histórias. Não que eu seja um bom narrador. O bom contador
de histórias sabe qual é a história certa, para as pessoas certas, para os momentos certos.
Não tenho tal habilidade. Sei, no entanto, lançar flechas, para, em seguida, pintar os
círculos de muitos alvos. Para os passantes, dou a impressão de ter acertado o centro de
todos eles, o que me torna um bom arqueiro, quase sempre orgulhoso e esperto. Mas
não. Trabalho entre a ficção e o real, simplesmente porque gosto de criar para escutar a
dúvida:
Este mundo existe ou é invenção?
Para mim, o mundo está muito próximo do mundo dos sonhos. Anoto todos, com
cuidado, em um caderno e, mais tarde, transformo-os em coisas mais ou menos reais.
Nós precisamos ter muito cuidado com os nossos sonhos, porque eles podem se tornar
realidade! Acho melhor então que eles sejam reais na arte. Dia desses, sonhei com um
homem – um Velho Sábio, um Zé Pilintra, um Bossa Nova, um Preto Velho, um Gorro
Freudiano, um Bonitão de Cinema, um Beuysiano, um Dom Juan... – que veio trazer,
aqui no ateliê, a encomenda de uma escultura de seu próprio chapéu. Resolvi fazer dele
uma aquarela. E desta aquarela, resolvi criar uma história, que apresentarei, para os
senhores, nas páginas seguintes.
Nas tecituras1 deste chapéu de feltro, encontrei um professor de arte, lançado na
realidade mais dura de uma escola em um lugar não muito bom. Como não estou
convencido de quem é quem nesta história, porque às vezes penso que sou eu mesmo me
projetando, espero que os senhores entrem em meu mundo. Ou no mundo do Homem do
Chapéu e desta escola.
Espero ainda que a minha história possa tocar em cheio o coração dos senhores, como
estou convencido de que ela vem me tocando.
1 Tecitura se refere ao conjunto dos fios que se cruzam com a urdidura. Comprimento do tear e por entre os
quais se passa a trama ou fio. Palavra oriunda de tecer.
67
EXPERIÊNCIA ESCOLAR IV
(DIÁLOGO PSICOTEOLÓGICO – CONTINUAÇÃO)
Professor: Você precisa cair nalgum enredo e ser capaz da medida
humana.
Menino: Está bem! Mas eu quis contar e não soube. Não pude
contar. Se eu conto algo estarei contido pelo que conto. História
quer dizer claustrofobia.
Professor: Ah, menino! O teu alvo é deixar de ser insano. A
história é o único abrigo humano.
Menino: E se houver um espaço mais livre para onde eu possa
fugir? E se o desamparo for um abrigo melhor? E se ele for a
medida real?
Professor: Ah! Você está querendo me dizer (novamente) que é
deus e que pretende escapar da prisão do mundo?
Menino: Não. Eu estou querendo te dizer que eu sou ninguém e
que, talvez, o ninguém seja o homem.
JULIANO GARCIA PESSANHA
69
O QUE SOU CHAMADO A DIZER A VOCÊS?
Se imaginarmos que cada sujeito vem a este mundo trazendo uma mensagem, tão
individual quanto universal, e que cada de um de nós representa um lugar do mundo
interior – ainda à espera e desconhecido no outro –, então seremos obrigados a questionar:
Quem ou o quê quer se pronunciar?
Eu quero encontrar um lugar para falar diretamente a vocês. Sendo assim, eu não
seria honesto caso falasse somente de minhas aulas nas escolas públicas, expondo os
problemas e as condições precárias que combinam muito bem com estas escolas. Não é isto
o que me mobiliza a estar aqui. Penso que devo dizer sobre como eu, um artista que abriu
as portas de um quarto escuro, consegui falar com as crianças. Assim como eu descobri
coisas fazendo arte, eu também descobri, dando aulas, lugarzinhos secretos do mundo
interior. É do sagrado da imaginação que quero falar aqui. E para falar deste lugar, nós
precisamos ir até lá. E o meu convite e o meu chamado é que vocês caminhem hoje em
outra via...
Portanto, fiquei me lembrando de um lugarzinho real, que possa aproximá-los do
que estou tentando travar em minha própria vida, seja diante de meu caderno de desenhos
seja dando aulas. Hoje vocês irão me acompanhar até o meu jardim secreto, que fica em
meu sítio, lá em Ituverava, cidade onde nasci. Sempre quando estou lá, eu costumo sair da
casa da sede do sítio, atravesso a cerca e vou até as terras do fundo. Sento-me ao lado de
um “corguinho”, para falar sozinho. Ninguém sabe disto. Creio que vocês serão os
primeiros. Quero então me pronunciar a partir desta origem, que não é nem mineira nem
paulista, mas que marcou como fogo o timbre de minha voz... que é falar pouco querendo
dizer muito. Quero estar com vocês no mesmo estado em que me encontro quando estou
lá...
É por lá onde as coisas acontecem... Todas as vezes que estou em meu jardim
secreto, eu travo uma briga voraz com deus, com o sagrado, com o mistério, com o
desconhecido, com a fé, com a vida e com a condição humana. Eu visito a morte,
lembrando-me das gerações mais próximas de minha família e fico curioso imaginando
rostos de pessoas pulverizadas no tempo. Eu piso na terra (literalmente) dos meus
ancestrais, dos meus mortos. No lugar onde eles moraram. Eu converso diretamente com
deus, ao lado deles... E todas as coisas do mundo se findam e ganham o seu devido lugar. E
todas as coisas são diferentes neste lugar: o sol parece brilhar mais intenso na grama e nas
árvores, e o céu parece mais azul... E esta não é uma sensação intelectualizada. A mim,
70
basta saber que estou inteiramente dentro de minhas questões, que são por sua vez
profundamente pequenas e grandes, ao mesmo tempo.
Os meus ancestrais me dão suporte, eles não estão mais nas minhas costas, mas o
passado vem aqui pra frente e converso com o ar junto com eles, acuado em que me
encontro na hipótese de um futuro e no mais ameaçador que o mesmo possa vir a
representar para o destino de cada ser humano. É deste outro lugar que quero falar, insisto.
Então, uma das minhas dúvidas apresentadas ao deus desconhecido é: Como ele se
apresenta a nós, como ele se mostra e se revela nas tramas das coisas, do dia-dia, e como
foi possível tantas gerações passarem e não temos certezas ainda de nada? A voz do mundo
me diz que devo permanecer pouco tempo neste lugar. Ele é tão perigoso, tão sem razão e
tão incerto... Mas não há escolhas: ou nós vamos até lá ou seremos estancados pelo medo!
Para falar deste lugarzinho secreto, quero também ir trazendo as imagens das
minhas aulas, das certezas e inseguranças, das brigas e do brilho dos olhos comovidos que
brotou em mim. Não há rigidez neste lugar, não há instituição. Vou tentar não atrapalhar
tudo e acabar com tudo, raciocinando sobre o que é certo e o que é errado, sobre o mais
bonito e o mais feio de ser falado. Gosto de fazer perguntas, mesmo que elas desapareçam
no ar, assim como um sentimento e uma emoção. Para mim, foi uma emoção muito grande
quando eu descobri as crianças...
E a primeira questão foi: Como falar com elas? Eu estava com um problemão:
Como vou falar com estas crianças, meu deus? Você me colocou no meio desta história, o
que eu vou fazer?
Na última vez em que estive em meu sítio, atravessei a cerca. Desta vez, não fui
sozinho, mas com o outro de mim, que apareceu sem ser chamado. Ele veio, enlaçou os
meus ombros, dizendo: “Você não está sozinho. Estarei junto com você nesta caminhada.
Nós vamos até lá, porque é preciso fazer alguma coisa.” Chorei muito. E nós entramos
juntos... Brigando em alta voz com os ancestrais, perguntando o que cada um deles havia
feito dentro da casa. Percebi que seria preciso inventar gigantes, amigos invisíveis e a
fantasia dos contos de fadas. Foi o que aconteceu quando fui dar a minha primeira aula para
as crianças. Diante daquela tarefa nova, sem também ser requisitado, veio-me um gigante.
O “Seu Gigante” me telefonou na primeira aula, conversou comigo, dando-me orientações
de como fazer e começar tudo, como dar aulas de arte... Seria através da imaginação que eu
falaria com as crianças. E durante as aulas, assim como eu discuto com o deus no meu sítio,
o Gigante foi dando notícias, enviando cartas para os alunos, dizendo sobre sua existência,
sobre o lugar onde morava... E o sorriso das crianças foi sendo uma resposta de vida para
mim.
71
Diferente do deus mudo do meu jardim secreto, transmutado para as coisas da
natureza, as crianças falavam comigo. E queriam saber mais, brincar... Lembrei-me das
vezes em que fui até o jardim secreto na minha infância. As coisas deviam ter mais ou
menos o mesmo peso e suavidade, mas faltaram as palavras do adulto para o
reconhecimento do terreno. A criança não fala como o adulto, não pensa como o adulto,
mas há as sementes do que virá a ser no futuro, de como será mais tarde. Volto a pensar – lá
no meu jardim:
Onde deixei a minha criança? O que fizeram da minha criança?
As crianças me ajudam a entender este processo todo com a infância, com a vida
que vive encerrada dentro de nós mesmos. Quando me questionei como elas funcionam,
precisei religar as coisas da brincadeira. Como é brincar? Estar com as crianças foi como
retomar este lugarzinho secreto – seja da brincadeira, do diálogo com deus, com a memória,
com a fantasia, com o mundo interior, com a vida e morte, seja com a poesia... A poesia nos
leva para os lugares onde tudo começou.
Por exemplo, fiquei pensando no esconderijo de infância do psicólogo suíço Carl
G. Jung, que era o sótão da casa de seus pais. Ele ia até lá, conversava com um boneco de
madeira feito por ele, inventando os seus mais profundos segredos... Tudo era muito
precioso. E o próprio Jung falou mais deste mesmo lugar quando já era um dissidente das
ideias de Freud. Ele trouxe o Filemón como um pai espiritual. Pensando em outro exemplo,
que tanto me identifico em minhas raízes mineiras, nós temos o Chico Xavier. Ou o Chico
inventava o Emmanuel, ou ele continuaria indo no padre e tudo não passaria de coisa do
demônio. De certo modo, o drama bíblico do homem confabulou o mesmo: ou ele
inventava Jesus Cristo ou ele continuaria indo no Deus maldoso de Jó.
Certamente, estas são questões religiosas, embora eu não seja um religioso. Eu
estou interessado em mais perguntas:
Como permanecer dentro de minhas ideias e potências? Como conseguir inscrever
este lugar poético no mesmo grau de profundidade em que ele me toca? Quando se vive
uma experiência do sagrado, o chamado interior exige uma entrega à vida, excluindo o que
não faz sentido. Sendo assim, como permanecer ainda no mundo? É no tudo e com todos
em que as coisas acontecem. A relação com os outros é o canal de ouro...
Como permanecer tão fechado para a vida se não sabemos o que tem dentro dela?
Creio que a tarefa do professor seja transformar rotas, fazer com que cada aluno
encontre o seu lugarzinho próprio, o seu lugar sagrado, a sua pedra de diálogo interior...
coisas estas que o nosso mundo perdeu tanto. Uma vez negligenciadas, é difícil retomar.
É preciso, pois, cultivar sempre, molhar, chover, plantar de novo...
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Life isn’t something you can give an answer to today. You should
enjoy the process of waiting, the process of becoming what you
are. There is nothing more delightful than planting flower seeds
and not knowing what kind of flowers are going to come up.
MILTON H. ERICKSON, M.D., 1979.
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MEMÓRIAS DE UM ARTISTA TORNANDO-SE DE ARTES PROFESSOR
Uma vida é um tanto de confusão e um tanto de esclarecimentos. Como a de tantos
outros, a minha vida é o resultado de recortes e retalhos, que provocaram mudanças em
meus caminhos e em minhas visões de mundo. Como eu não tenho oitenta anos, não tenho
uma vida toda para contar. Mesmo assim, narrarei um pouco minha jornada, tentando
esclarecer mais e atrapalhar menos, para, desta maneira, desfiar o que faz do artista um
professor e tecer o que faz do professor um artista.
Marcado pela voz do interior, é ela quem me acompanha no mundo das memórias.
E esta voz, na timidez que lhe é própria, vai se transformando na voz de meus pais, na voz
de meu irmão, na voz de meus professores em sala de aula, na voz de meus colegas de
turma, até se transformar na voz da chuva e do vento...
Quem me acompanha, neste lugar, tem muitos nomes e muitos rostos.
Começo minhas memórias pela primeira casa onde morei. Ela ficava na Rua
Constância Jesus Galize, em Ituverava. Era uma casinha popular, portanto muito pequena,
mas com um jardim e um quintal enormes.
No quintal, o meu pai cultivava uma horta e criava galinhas em uma caixa feita de
gambiarras. Era o seu lugar predileto em nossa casa, quando não estava trabalhando ou
viajando. Já o meu lugar era o jardim, onde eu brincava com os caramujos, enquanto minha
mãe, que era professora, fazia as “coisas da escola”, e o meu irmão brincava na rua com os
nossos vizinhos.
A minha infância foi solitária...
Inventando o mundo, eu desenhava linhas entrecortadas e chamava aquelas formas
de mapas. Ao criar territórios inexistentes, eu desejava que os meus desenhos fossem iguais
aos de meus Atlas. Provavelmente, estes desenhos foram os meus primeiros projetos de
arte. Além deles, eu costumava construir tocas, com tijolos e pisos abandonados, para onde
levaria os porquinhos-da-índia, que eu mesmo roubaria de minha vizinha. Eles se pareciam
com coelhos, mas não eram coelhos.
Em 1988, comecei a estudar na EMEI João Antonio Macedo, mesma escola onde
minha mãe e minha tia lecionavam. Comparando com os colegas de turma, isto me dava
algum tipo de privilégio. Eu conhecia uma escola muito diferente daquela que eles
imaginavam. Naquele tempo, nós passávamos os finais de tarde na casa de vó Alzira,
quando as irmãs se encontravam entusiasmadas! E assim eu tinha acesso ao panorama
atualizado de tudo o que estava acontecendo na coxia da escola, das funcionárias à diretora.
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Concordava com a minha avó, quando ela dizia: “Professora é um bicho muito fofoqueiro e
maria-vai-com-as outras”. Tudo o que eu sempre soube de escola, de ser professor, de ser
aluno, nasceu destas primeiras observações. Lembrando-me daqueles dias, não consigo
hoje separar a escola da presença de minha mãe.
De certa maneira, o trabalho dela acabou se transformando em um modelo para
mim. Ao terminar o Ensino Médio, eu não sabia qual profissão seguir. Foi assim que
surgiram os cadernos de desenhos feitos por minha mãe em sua juventude, provavelmente
feitos na escola. Eles foram meus companheiros durante anos. Encapados com papel xadrez
e desbotado, os cadernos eram formados por imagens diferentes daquelas que chegavam
através da televisão, das ilustrações de livros ou das histórias em quadrinhos. Imagens que
eram principalmente representações de mulheres nuas e paisagens. Eu imitava os desenhos
antigos dela. Debruçado sobre eles, eu então me perguntava sobre as aulas de arte que ela
havia tido, nas quais a professora exigia que fizessem margens. Como a professora de
minha mãe também foi minha professora nos anos iniciais do Ensino Fundamental, estar
com aqueles cadernos era revisitar aquelas aulas de que eu mais gostava na escola. Além
disto, eu chegava a me questionar, um tanto inquieto, os motivos que levaram minha mãe a
abandonar os desenhos, uma vez que eu os achava muito bonitos.
A única resposta, a que mais me incomodava, era supor que ela havia deixado de
seguir os seus próprios sonhos depois de ter se tornado professora. Acredito que o meu
interesse por arte surgiu mais ou menos aí nesse período, entre 9 a 13 anos.
Às vezes, não são os livros ou as escolas que fazem o caminho de uma pessoa. Em
meu caso, foi esta revelação diante dos cadernos antigos de minha mãe. Pensava: “Deve
valer a pena desenhar os próprios sonhos!” Mais tarde, ao contar esta história dos cadernos
para um amigo, ele veio a confirmar o que eu já sabia: “Se há uma vontade, há um
caminho”.
A partir destas percepções, decidi procurar um dos poucos artistas plásticos de
Ituverava. Este foi um movimento inimaginável e transgressor para o adolescente tímido
que eu era. O Marozo foi o meu primeiro professor de pintura. Era um negro alto e forte.
Suas mãos eram simples e generosas, mas cheias de um gesto pronto, que ele dizia ser
resquício de um acidente de carro. Foi o primeiro professor a ensinar a lidar com os
materiais, mostrando como eu devia apontar um lápis 6B e como utilizar a tinta à óleo,
depois de criar um esboço na tela. Passávamos a tarde juntos, um do lado do outro,
analisando as tonalidades das árvores atrás do muro do ateliê. No entanto, o nosso diálogo
se fazia na pintura. O mais curioso é pensar que o Marozo me dava total liberdade, mas não
pontuava a necessidade de criar algo próprio. Eu fazia muitas cópias, principalmente de
pinturas de revistas de artesanato, compradas em bancas de jornal. Eram sim cópias de
“pinturas de artesanato”, mas eram verdadeiras e compreensíveis dentro dos limites de
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minhas referências. Hoje sei que a existência de um Marozo em uma cidade do interior
como Ituverava é um milagre! Foram estas pinturas, realizadas nos fundos de uma
papelaria, que me iniciaram no universo da arte.
Lembro-me de buscar livros de arte na Biblioteca Municipal de Ituverava. Nela,
encontrei apenas dez livros catalogados em uma estante perdida entre muitas de literatura.
Dez livros que me diziam alguma coisa desconhecida. Espécie de presságio do que estaria
por vir? A capa de um livro me chamou então atenção: “Quem é esta figura debruçada
sobre si mesma?” Tratava-se de Narciso, uma pintura de Caravaggio.
Além dos poucos livros da Biblioteca, vim a ler três biografias, que foram
marcantes para aquilo que eu estava querendo fazer de minha vida – seguir além das
fronteiras de uma cidade do interior. Sem o saber, estava construindo perspectivas e criando
a minha própria mitologia. Olga, Cazuza e Chatô me deram algumas indicações...
apontando mundos desconhecidos e comportamentos diferentes daqueles conhecidos por
mim.
Em 2002, resolvi me dedicar para o vestibular. Entre muitas dificuldades pessoais
e restrições na formação – de um ensino fundamental todo feito em escolas públicas –, fui
aprovado no curso de Educação Artística no Instituto de Artes na Universidade Estadual de
Campinas.
A minha vinda para Campinas significou tudo. O universo se abriu para mim.
Talvez eu tivesse me permitido menos se continuasse em Ituverava. Sinto a alegria da
conquista de um lugar na universidade, mas principalmente a alegria por ter saído de casa –
assim como a jornada das personagens das minhas leituras e das biografias de todos aqueles
que eu passaria a conhecer. Não sei dizer tudo o que vivi em minha mudança para a cidade
grande. Precisaria passar outra vez por estes lugares, reconhecendo a marca e as
lembranças. Penso que a mudança é um lastro, nunca é esquecida. Conhecer o MASP, pela
primeira vez, foi uma emoção. Se abrir para o mundo é uma emoção. Para um garoto vindo
do interior, ser retirando no vazio do desconhecido, é abraçar todas as possibilidades de si
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mesmo e do outro. Tal qual o jovem do lado enamorado por sua imagem, na pintura de
Caravaggio, eu estava tateando um outro... querendo saber qual era a dele.
Depois do Marozo, os professores na faculdade foram os meus “pais artísticos”.
Eles entendiam o caminho e tinham a paciência da espera. Alguns deles me marcaram
profundamente, como por exemplo o Tuneu, nosso professor de pintura. Em nossas aulas,
ele me provocava com diversos questionamentos. Não orientava gostos, nem mesmo
demonstrava a melhor forma de se fazer arte. Entre outras coisas, sensações e pensamentos,
ele nos dizia da importância de termos um trabalho autoral.
No primeiro semestre de aula, encontrei, por acaso, um livro muito especial,
“Tarsila, Tuneu e outros mestres”. Sabia que sua autora se tratava de uma professora da
licenciatura da Faculdade de Educação. Eu queria, através deste livro, entender as
provocações feitas pelo Tuneu durante as nossas aulas. Eu queria também conhecer como
havia sido a sua relação com a Tarsila. “Alguma coisa ali seria parecida com minha relação
com o Marozo ou mesmo com os professores da UNICAMP?”, perguntava-me. Por alguma
razão, o Tuneu nada dizia da Tarsila. Era um mistério ele ter sido pupilo de uma das
maiores artistas do Brasil e nada falar sobre o assunto. Suponho que ele nunca tenha tirado
proveito de quem participou de sua formação, o que poderia se confundir com estar “em
cima do muro”. Sua ética e sua postura, entretanto, podiam ser sentidas. De fato, ele era o
Tuneu e não a Tarsila! “Era isto o que ele tentava me dizer?”
Tínhamos um arsenal de referências em nossas mãos, mas era preciso construir um
trabalho pessoal. Apesar disto, muitos artistas ocupavam a minha imaginação. Eu mantinha
diálogos frequentes com as obras de van Gogh, Leonilson, Francis Bacon e Iberê Camargo.
Naquela época, o caos do ateliê do artista Francis Bacon, assim como a sua obra, havia me
impressionado muito. Certamente, para criar, eu imaginava que era preciso estar envolvido
por aquele mesmo tipo de caos. Entre algumas fotografias de meus guardados, revi imagens
de um dos meus quartos. Tive a sensação da atmosfera desestabilizadora em que vivia. Em
meio à terebentina e ao querosene, as paredes eram sujas de tintas e carvão. Não existia
cama – assim havia mais espaço para a produção... Esta era a forma “assustadora” com que
eu me aproximava dos artistas, achando estar no centro do processo de criação, tal como o
artista Francis Bacon fazia. Eu acreditava verdadeiramente na desordem, achando ser ela o
princípio da criação. Em um segundo olhar, no entanto, este quarto me pareceu muito
estético e nada natural. Uma desordem, para ser real, precisa acontecer normalmente. “Será
que estaria tudo em ordem?”
79
Ateliê do artista Francis Bacon e o meu próprio quarto-ateliê, quando ainda estudante de artes
plásticas na Unicamp, em 2007.
Em outra foto, deparo-me com um retrato de Carlos Drummond de Andrade e com a
colcha de retalhos feita por minha bisavó – a vó Tieta. Apesar de serem elementos
diferentes em um espaço tão confuso, gosto de imaginar que eu estava sendo protegido
pelo olhar tranquilo do poeta e pela lembrança dos meus antepassados mais próximos.
Tenho a impressão de que a Arte me ajudou a ser alguém no mundo. Eu não
estava construindo – ou desconstruindo? – um trabalho de arte, tampouco uma profissão,
mas o próprio João. O período da Graduação foi também o período da descoberta do sexo,
do namoro, das amizades, das sessões de análise... Tudo ao mesmo tempo... Esta foi a
minha entrada no mundo.
No último ano de Graduação, em 2007, as mudanças pareciam ter se assentado,
quando outro momento perturbador e de grande explosão interna aconteceu. Foi quando a
escola, os alunos, a minha formação, voltaram a compor os meus questionamentos. Eu
havia me esquecido de que a escola era a extensão de minha casa... Enquanto no Instituto
de Artes, nós direcionávamos nossa atenção para a produção artística, o propósito das
aulas de licenciatura na Faculdade de Educação revirava nossas expectativas. Eu não
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queria ser professor. No entanto, nas aulas de estágio supervisionado da professora Ana
Angélica Albano – a autora do livro que eu havia lido sobre o Tuneu! –, sentia que era
possível fazer um encontro entre o artista e o educador. Não sei dizer exatamente o quê
acontecia em nossas aulas. A Nana abriu muitos caminhos para mim, primeiro como leitor
de seu livro e depois como aluno. Suas provocações me fizeram e me fazem pensar no
quão difícil é reconstituir um período recente. Ela foi a sereia sedutora na beira da praia,
apontando o fundo do mar... Nós podíamos ir até lá e fazer a ponte... Estávamos
autorizados.
Em 2008, fui para São Paulo. Coloquei-me à disposição de outro lugar
desestabilizador. O lugar do risco. Fui trabalhar em um ateliê no centro da cidade, ao lado
do Edifício Copan e do antigo Hotel Hilton. Era uma região deteriorada, onde moravam
travestis e traficantes. Junto dos gritos nas ruas, das buzinas, dos tiros, eu escutava Nina
Simone, Tom Waits e Carla Bruni. Eu era chamado de “alemãozinho” pelas travestis,
talvez porque eu fosse a flor azul entre as britadeiras... Mesmo tendo conhecido
Campinas, nada sabia do mundo. Naquele lugar, a hipocrisia não entrava e a ingenuidade
sim... Vi muitos pais de família, de várias classes sociais, indo ali satisfazer as suas
fantasias. Em nosso ateliê, uma das travestis, a Valéria, posou em uma sessão de nu para
nossos desenhos. Para surpresa de todos, ela tentava esconder seu órgão genital. Senti que
havia uma pessoa atrás daquela fantasia. Uma violência, que deixou ela passar, talvez
porque se sabia que a pessoa nasceria no dia dela, tentando encontrar um lugar de
dignidade, assim como todas as pessoas que habitavam aquele submundo. As pessoas, o
mundo interior, passaram assim a ter outro sentido. Era algo visceral e diferente de tudo o
que eu havia vivido até então. Acredito que esta experiência foi um dos presentes mais
estranhos e impossíveis de serem transcritos agora com todos os detalhes. Antes do ateliê,
costumo dizer que eu desenhava sempre o mesmo desenho, pois este era o ponto em
comum com a linguagem do mundo que inventei ao ir para Campinas. São Paulo
devolveu minha identidade. E pude descobrir vários lugares adormecidos em mim.
A Nana esteve presente neste processo. Morando em São Paulo, muitas vezes eu
a visitei em sua casa. E nossa relação cresceu a partir daí. Em outro lugar, bem distante da
universidade. Eu levava muitas dúvidas e questões para ela. Tudo o que vivia em São
Paulo, no ateliê ou com o Rubens – meu professor artista do ateliê – eram discutidos com
ela. Recordo-me de como nossa conversa se dava. Falávamos, principalmente, sobre a
relação mestre-discípulo e de suas projeções. Ela me apresentava sua casa e ia contando
histórias, fazendo observações, pautadas na aula, na docência, no tempo e nas pausas.
Naqueles dias, o silêncio trazia mais dúvidas e exigências. Responsabilidades. Nossas
pausas tinham o tempo do reconhecimento da dor. Todos os gestos e as palavras tinham
um peso diferente.
81
Mesmo tendo ganho um prêmio em um Salão de Arte Contemporânea, tendo
participado de exposições importantes, tendo reencontrado a minha identidade, resolvi
abandonar o ateliê. Era impossível me manter naquele lugar de risco. Eu precisava fazer o
retorno. “Estaria abandonando o ateliê, a arte, em nome do quê? De uma vida sem tensão
e sem questionamentos? Estaria eu repetindo uma história?”
Eu não queria, e não podia, ser professor, mas eu sabia que teria de ser professor.
Eu tinha muito medo do que poderia acontecer. “Estaria eu indo ao encontro do que
verdadeiramente sou?” Tudo o que havia construído para mim se desfez. “Estou fazendo a
coisa certa? Estou sendo verdadeiro comigo mesmo?”
Se a escola é a extensão de nossa casa, decidi voltar para Campinas. E comecei a
trabalhar em escolas estaduais, na periferia da cidade.
Passei pelo processo de atribuição de aulas. Ao chegar à escola, fui atendido
então por um senhor pequenininho, que me abriu o portão. Na secretaria, enquanto
aguardava a diretora na antessala, escutei a conversa entre ela e a secretária: “– Tem um
moço aí, ele pegou as aulas de Artes.” A diretora disse: “– Por que mandaram ele para
cá?” A secretária deve ter feito algum sinal, mostrando que eu estava ali próximo. Muito
sem graça, ela veio e me apresentou a escola. Em seguida, outra vez, caminhando com a
secretária, ela me diz: “– Professor, fique à vontade!”
Até aquele dia, eu havia sido chamado de artista, de estudante, de
“alemãozinho”, mas nada disto construiu tanto sentido quanto a palavra “professor”.
Imediatamente, esta denominação me deu um lugar.
Foi assim, quase que de repente, que me tornei então de artes professor...
85
OUTROS DA ARTE. OUTROS DA ESCOLA.
Antes de apresentar minhas experiências no ensino de arte para crianças, de 5 a
12 anos, em escolas estaduais de Ensino Fundamental2, localizadas na cidade de
Campinas, proponho-me a descrever estas mesmas escolas, nas quais lecionei e venho
ainda lecionando, com o objetivo de abordar, e assim introduzir, as reflexões e as
interpretações, que serão desenvolvidas, por sua vez, mais a frente.
Nestes quatro anos, como professor de arte, acabei me tornando mais uma
testemunha da realidade das escolas estaduais do que um propagador de transformações
de todas as suas realidades. Apesar de não me desfazer do “sentimento social” que, de
uma forma ou de outra, as escolas públicas nos impõem, o lugar que elegi para estar, nesta
pesquisa e na prática docente, encontra os caminhos da arte, uma vez que estou
interessado na criação e no autoconhecimento que acredito ser possível através da arte.
O sentimento social é mais um dentre os sentimentos, da indignação à inquietação,
que me preocupam e me ocupam. Compreendo a hipótese de que o social responda boa
parte das perguntas que venhamos a fazer sobre os motivos que levam a escola pública a
não ser uma escola ideal. Entretanto, a meu ver, esta escola ideal não existe além dos livros
e das teorias.
Existem, contudo, experiências isoladas, que deram certo e que foram de fato
transformadoras. São estas mesmas experiências que ainda nos fazem crer na educação
como um campo de possibilidades. Com certezas fugazes, no argumento social, há sempre
mais especulações e debates do que um verdadeiro enfrentamento de problemas. É preciso
admitir que as crenças da Educação não foram suficientes para tudo o que ela mesma
prometeu cumprir. Caso assim admitisse, a responsabilidade poderia, então, retornar ao
educador, dando a ele o espaço transformador que lhe pertence em sala de aula, sem
redimi-lo ou transferir a culpa para outros, quase sempre invisíveis e desconhecidos.
Acredito que não há a amplitude externa e coletiva do social, quando o sujeito-professor –
ou o ser humano – não dá conta das questões mais essenciais de sua própria existência e
de seu mundo interior. E este não é um posicionamento avesso às condições delimitadas
pela miséria, tão presente em nosso país. Este é, porém, um apontamento que considero
necessário, antes de apresentar os meus questionamentos.
2 Assim como não cito nomes de pessoas, decidi por não incluir nomes de instituições, pois as
experiências narradas ocorreram em mais de cinco escolas diferentes, pertencentes à Rede Estadual de
Ensino de Campinas, Diretoria de Ensino Campinas Oeste.
86
Estando as minhas referências localizadas na Arte, não é o repertório da história
da Educação, com todos os seus educadores e teóricos, que vem ao meu encontro. Mas
sim o repertório amplo de imagens, obras e criações – das artes plásticas à literatura.
Paralelo a tudo, também encontro as minhas reflexões em meu processo individual de
criação, com pinturas e desenhos. Em constante interlocução com o mundo interior do
artista, a arte tem dimensionado o mundo interior do professor, que vai ganhando formas e
um repertório próprios.
Para dar início às descrições das escolas, escolho a imagem do mar, por ser um
dos símbolos que mais apareceram em meu processo criativo nestes últimos anos. Além
desta imagem, escolho também a embarcação, uma vez que o navio, o barco, a balsa, e a
jangada, levam-me a refletir sobre as minhas incertezas como educador e no aprendiz que
ainda sou. Aprendiz que me torno no ato mesmo de interpretar e de avaliar a minha
própria prática docente e artística. Eu estou aprendendo a navegar na arte, nas aulas e na
escola, assim como tenho aprendido a navegar no mundo interno e no mundo externo – da
superfície ao possível lugar mais profundo.
Imaginando os diferentes lugares em que me autorizei a criar e a ocupar nesta
minha viagem, no mundo interno e no mundo externo: muitas vezes, eu estive na proa da
embarcação, como um observador privilegiado da rota, e também nos conveses ou
deques, navegando junto dos capitães, ora cumprindo ordens ora propondo mudanças
pertinentes à viagem. Fui desde capitão a tripulante mais cobiçado e, quase sempre, o
mais indesejado. Fui operador de máquinas, como também aquele que lançou a âncora
quando não havia nada a ser feito. Combati dragões, tubarões, raias e seres desconhecidos,
tornando-me até mesmo um salva-vidas. Também fui parar nos porões, onde ali me
enclausuraram devido às rebeldias de meu espírito aventureiro de artista, então
confundido com a alma de um pirata. Na popa da embarcação, das vezes em lá estive,
perguntei-me:
Qual o verdadeiro sentido de estar na escola e não em outro lugar?
Como um colonizador, encontrei o destino desta viagem. Não com o ranço do
navegante que anota os dados de sua “pesquisa de campo” ou do capitão que traz da
universidade e do mundo as respostas prontas para todas as perguntas. Reconheci, e ainda
reconheço, o cenário desta minha narrativa, com todos os seus autores e com todos os seu
lugares, com as referências do artista. Não posso definir onde o artista começa ou onde o
professor termina, embora em meu processo exista um diálogo que está mais em busca de
uma negociação do que propriamente por uma definição baseada em exclusões. É o artista
que se coloca, primeiramente como narrador, e é ele quem descreve, com certo
despojamento, os espaços e as visões de mundo com os quais o professor se deparou. Em
seguida, é o professor que busca soluções para o artista, procurando um lugar para ser e
87
para agir na arte, possivelmente com uma reflexão teórica criativa e, ao mesmo tempo,
sensibilizada pelas imagens criadas por seus alunos.
Observando a comunidade, tive a impressão de estar dentro das pinturas de Pieter
Bruegel, o Velho, ao me lembrar das cenas de seus trabalhadores. Diferentemente dos
personagens das aldeias de Bruegel, a população ao redor das escolas se compõe, em sua
maioria, de trabalhadores que abandonam o lugar onde moram em busca de sobrevivência
no centro da cidade e nos bairros mais ricos de Campinas. Neles não encontro, entretanto, a
placidez dos retratados de Bruegel, nem mesmo algo parecido com as representações
humanas da tradição europeia, que surgiram na arte depois do Renascimento. Pensando em
uma possível aproximação com a arte e os rostos da população – rostos marcados por
expressões de cansaço, esperança, inocência, simplicidade, restrições e por toda a sorte de
mazelas que conhecemos –, encontro as pinturas de Diego Velázquez e de Caravaggio ou
mesmo as gravuras expressionistas de Kathe Kollwitz. Porém, os retratos feitos por estes
artistas não dizem tudo diante do que sou provocado a considerar na essência deste meu
encontro.
Obras de Peter Bruegel, Kathe Kollwitz e Caravaggio.
88
Continuo assim a esboçar um retrato da população, tal qual os retratos do povo
brasileiro feitos por Lasar Segall, artista que se naturalizou no país. Atrás de seu cavalete,
que demarca a distância de uma origem também estética, Lasar pintou muitos retratos –
talvez abrindo o coração e os sentidos no confronto direto entre culturas diferentes.
Confronto este que as pinturas de Almeida Júnior não compartilham, ainda que a formação
do artista tenha sido predominantemente europeia. Almeida Júnior retrata, por sua vez, o
brasileiro do interior, o famoso “caipira”, ainda presente na periferia de Campinas e em
várias regiões do país. Caipira que convive ao lado das transgressões, visíveis nas
pichações e nos “carros de som”, com suas músicas influenciadas pelos subúrbios cariocas
e americanos. Este mesmo homem das pinturas de Almeida Júnior ainda se reúne nas
calçadas, nos bares, mantém suas fofocas e intrigas em dia, ajuda o vizinho naquilo que for
preciso, conta causos e fala sobre a vida...
Acima, pinturas de Lasar Segall e Almeida Júnior, respectivamente.
89
Comparando – ou estetizando? – vou criando desenhos dos lugares, dos rostos,
com o objetivo, talvez, de não perder o artista e, desta maneira, provocar o professor a
pensar sempre através da arte e da poesia. Com a arte aprendo a ver melhor, questionando
o que sinto e o que presencio.
Como fui aluno de escolas estaduais, este retorno levou-me a reencontrar um
passado e a revisitar uma “família inteira”, no sentido mesmo de uma expiação,
caracterizada pelo pressentimento do risco de um esfacelamento, como se eu portasse um
“segredo” descoberto longe das sombras e das ilusões projetadas nas lousas de uma
educação tradicional. Fui encarado com estranheza e desconfiança, não sem razão,
embora a estranheza fosse da mesma curiosidade provocada pelo desconhecido.
Desconhecido que, acima de tudo, constrói perguntas: “Quem é este outro que está aqui?
O que ele quer? Por que mandaram ele pra cá?” Frente a estas dúvidas, elaboro uma
pergunta:
O que seria a arte senão um encontro com um outro desconhecido?
Como um estranho ou como um pirata saído dos porões, fui assim ensinando –
pretensamente? – o princípio da arte. Ou me tornando um espelho propício ao
autoconhecimento e acontecimento do outro?
No conjunto de expiações e de imagens, entre memórias, lembranças e embates
com minha própria origem, com os seus fantasmas, sombras e personagens, muitas vezes
reais e fictícios, compreendi que qualquer erro significaria a morte e a aniquilação
completa de algo ainda em construção: Uma ideia sobre mim mesmo? Uma
intelectualidade forjada em um país em que não se pode ler, não se pode fazer arte, não se
pode ter cultura, em que não se pode conhecer além do conhecido e dos territórios
padronizados de reconhecimento do outro?
De onde viria autorização para tanto, senão dentro da própria escola?
Neste cenário, as velhas pedagogas voltaram a reinar e a rondar. Não somente
uma, mas várias, no mesmo espaço de tempo e no mesmo cenário de confabulações e de
fantasias...
Sinto que devo fazer um relato do outro, em vez de descrever os espaços, a
estrutura e a organização das escolas, contando destes outros imaginários. Outros que
definem uma origem e um presente atual. Relato em que a origem e o presente não
estancam a busca, nem mesmo retomam exatamente o passado.
90
Lucian Freud
Reflexão (Autorretrato)
Óleo sobre tela,
56,2x 51,2 cm, 1985
Caberia aqui um retrato com a mesma paixão das pinturas de Lucian Freud ou
com a mesma visão ingênua das pinturas de Henri Rousseau? Andando com estes pares da
Arte, penso em uma fala3 do também pintor Francis Bacon, que trago aqui de memória:
“É mais fácil falar da pessoa do que falar da obra. A pessoa é o que é, mas pode mudar,
enquanto a obra nunca vai mudar.” Discordo do artista, uma vez que a obra de uma pessoa
caminha junto do que ela é. Inocência é acharmos que o sujeito que faz a obra será
diferente dela. Pra pior ou pra melhor. Nós somos o que fazemos de nossas vidas, como
somos aquilo que o trabalho nos representa.
Refletindo sobre a união da teoria com a prática, em que a criação surge como
fundamento de fazeres distintos, vou ao encontro das pessoas da escola, com a esperança
de que o trabalho – a prática, a teoria, a criação – encontre um foco no mundo interior.
Desejo este que se estende a mim, pois no despojamento que significou esta minha
viagem às escolas estaduais, não passei incólume a estas equações dos relacionamentos
com o outro.
Neste meu retrato, portanto, é impossível precisar uma característica, geral e
única, ainda que eu analise todos os sujeitos, compondo um empasto de vernizes em
diferentes camadas. Há mais coisas que nos atravessam. Uma vez que estamos
sintonizados com o mundo interior, sabemos que há uma distância daquilo que somos e
3 Refiro-me a um trecho do livro Entrevistas com Francis Bacon, publicado pela primeira vez em 1975, que
conta com nove entrevistas cedidas ao crítico de arte David Sylvester, entre 1962 e 1986, em que há um
relato praticamente completo do processo de criação de Francis Bacon. As entrevistas abrangem dados
biográficos do artista, além de serem testemunhos das transformações que ocorreram na arte no século XX.
Henri Rousseau
Eu mesmo, retrato, paisagem
Óleo sobre tela,
143x110 cm, 1890
Henri Rousseau
Eu mesmo, retrato, paisagem
Óleo sobre tela,
143x110 cm, 1890
Henri Rousseau
Eu mesmo, retrato,
paisagem
Óleo sobre tela,
143x110 cm, 1890
91
daquilo que o outro é. Nas miragens, nas ficções, nos horizontes nublados, vislumbro
contornos... rarefeitos e desfeitos... traçados e negligenciados...
Em “Psicologia e Alquimia”, Carl G. Jung afirma:
“O trabalho analítico conduzirá mais cedo ou mais tarde ao
confronto inevitável entre o eu e o tu, e o tu e o eu, muito além de
qualquer pretexto humano; assim pois é provável e mesmo
necessário que tanto o paciente quanto o médico sintam o
problema na própria pele. Ninguém mexe com fogo ou veneno
sem ser atingido em algum ponto vulnerável; assim, o verdadeiro
médico não é aquele fica ao lado, mas sim dentro do processo.”4
Entre o veneno, o fogo, o lodo e os lastros de uma origem – no diálogo em que
me situo nesta afirmação de Jung –, deixo-me ser tocado pela jovem professora, ainda
com cheiro de alho nas mãos, pela professora de sotaque politizado das ciências sociais,
pela professora em estado de meditação profunda, pela professora religiosa, que guarda
um fervor aceso atrás de seus óculos de menina séria, pela montanha-mulher histérica,
pela professora que revela com suas piadas uma dor dilacerada, pela professora mãe-
dedicada, pela professora bem-vindo-ao-jardim-de-infância, pela professora de voz doce
terminantemente azeda, pela psicopedagoga repetindo as palavras dos livros e dos
teóricos...
No canto da sala, bom-moço e bonzinho, um flamingo alemão, paralisado e
silenciado... É o professor de arte, que começa a criar:
O que ela pensa? O que ela sente? O que ela vive?
4 JUNG, Carl G. Jung. Psicologia e Alquimia. Traduzido por Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro:
Editora Vozes Ltda, 2009, p. 19.
93
ENCONTRO COM A DOCÊNCIA
Destes encontros na escola e na arte, estabeleço reflexões através de alguns
relatos de aulas, selecionadas como importantes no contexto de meu ensino de arte e de
minhas experiências em escolas da Rede Estadual de Ensino de Campinas, nas quais
tenho lecionado desde 2010, para alunos de 5 a 12 anos, em turmas de 1º a 5º anos do
Ensino Fundamental.
Buscando as primeiras ideias que encenaram o meu universo de preocupações na
docência, revisito, entretanto, os meus primeiros dias na escola, por acreditar que a origem
de um trabalho apresenta as intenções suficientes para até mesmo defini-lo em seus
desenvolvimentos.
Por não saber como seriam as crianças, de que forma elas reagiriam ou se elas de
fato me acolheriam como professor, ou ainda como aconteceriam as nossas aulas, julgo
que o início da docência foi um momento primário. Havia mais perguntas do que roteiros
traçados. Um “teatro” sem os diálogos decorados, com nenhum texto pronto das
personagens, menos ainda passos demarcados no “palco” da sala de aula. Apesar das
incertezas, comuns a qualquer iniciante, alguns esboços de minha futura prática docente
puderam se formar, e se encontrar, com as aulas de licenciatura, que ocorreram em 2007,
na Faculdade de Educação, na UNICAMP, então ministradas pelas professoras Dra. Ana
Angélica Albano e Dra. Simone Cristiane Silveira Cintra5.
Em artigo relacionado, especificamente a estas aulas, as autoras afirmam:
“Alunos que se preparam para suas primeiras experiências
docentes encontram-se, também, às voltas com os conhecimentos
que foram e estão sendo apreendidos em diálogo, e em conflito,
com a ação educativa a ser construída e colocada em prática.
Encontram-se, portanto, na eminência de se tornarem professores
e ávidos por subsídios que os auxiliem na conquista dessa tarefa.”6
5 As aulas de estágio estavam sob a supervisão da professora Dra Ana Angélica Albano, com
acompanhamento da professora PED Dra Simone Cristiane Silveira. Além das aulas de licenciatura,
também desenvolvemos com a Dra Simone Cintra vivências em teatro, tendo sido este construído a partir de
nossas narrativas e memórias pessoais. 6 CINTRA, Simone C. S.; ALBANO, Ana Angélica. Memórias de Artistas e de Futuros Professores de
Arte: Um diálogo pertinente?. In: Congresso Ibero Americano de Educação Artística: Sentidos
Transibéricos, 2008, Beja. Actas do Congresso Ibero Americano de Educação Artística: Sentidos
Transibéricos. Porto: Associação Professores Expressão e Comunicação Visual., 2008. v. 1. p. 1-11.
94
Diferentemente da maturidade de um professor experiente, eu criaria algo sem
um conhecimento estabelecido na prática. Em situações como estas, o professor é guiado
por suas vivências anteriores, por suas ideias do que possa vir a ser uma aula de arte e,
principalmente, do que seja uma criança. Em meu caso, não havia experiências em sala de
aula com crianças, que pudessem proporcionar um caminho, uma vez que eu nem mesmo
conhecia o trabalho de outro professor em sala de aula. Havia, porém, a minha própria
infância e as minhas memórias da escola, que eram o único referencial a indicar um
possível fazer docente, , juntamente com os aprendizados de minha formação, vivenciados
no curso de artes plásticas no Instituto de Artes e nas aulas de licenciatura, com os
estágios de observação e de supervisão.
Orientados pela professora Dra. Ana Angélica Albano, os estágios de licenciatura
pontuavam, por sua vez, a importância de não reproduzirmos as práticas vividas enquanto
estudantes, passando a questioná-las em busca de um fundamento. Fundamento este que,
em nossas aulas, propunha uma futura ação docente subsidiada, especialmente, por nosso
próprio processo de criação em arte e por nossas memórias:
“(...) o trabalho com a memória, mais especificamente, a
rememoração de experiências vividas como estudantes em
diferentes níveis de escolarização, aparece como uma forma de
subsidiar uma prática reflexiva e pessoal, pautada em experiências
reais – individuais ou coletivas. Experiências, talvez, esquecidas
em meio a tantas outras, mas que retornam com força
impulsionadas pelo ato de rememorar em consonância com a
necessidade de construir algo novo e importante, algo de muita
responsabilidade, que amedronta ao mesmo tempo em que os
coloca em movimento, os faz refletir, fazer escolhas, reafirmar
convicções e procurar maneiras de dar forma a elas.”7
No processo de rememoração presente nas aulas, explicitado acima pelas autoras,
cada aluno era chamado a falar das memórias de sua vida escolar, ao mesmo tempo em
que eram trazidas dúvidas, questionamentos e relatos de seus próprios estágios8. Uma vez
que o meu processo de criação estava focado na construção de um trabalho
autobiográfico, a rememoração presente nas aulas veio ao encontro de meus esforços em
unir as minhas histórias e minhas lembranças em meus desenhos. Portanto, ao iniciar a
docência, estes aprendizados foram reestabelecidos e entretecidos pelo sentido também
autobiográfico de meu processo de criação.
7 Idem. 8 Os meus estágios foram realizados no Museu de Arte de São Paulo – MASP e em oficina de ateliê criada
por mim para professoras de arte de minha cidade, em Ituverava.
95
Em seguida, desenvolvo algumas ideias gerais sobre o tema da autobiografia
presente nas obras dos artistas, mostrando como os seus trabalhos me influenciaram e
como se originou o meu processo de criação, que pôde então fundamentar e subsidiar o
meu caminho docente.
ENCONTRO COM A CRIAÇÃO: O AUTOBIOGRÁFICO COMO TEMA
Apenas podemos falar daquilo que vivemos. Estou pensando na união de uma ação
com uma teoria. Quando a teoria não corresponde à prática ou quando a prática não
corresponde à teoria, creio que não há uma totalidade das intenções. Desta maneira, ao
retomar o meu processo na arte, faço-me perguntas: Como falar de um processo de criação
quando este mesmo processo encontra-se disperso em vários desenhos e pinturas,
espalhados, por sua vez, em diferentes cadernos, pastas de arquivo e caixas? Como
encontrar algo, entre trabalhos reunidos e perdidos, que possa me caracterizar como artista?
Como o meu processo de criação não foi feito de caminhos lineares, mas sim de caminhos
serpenteados e curvos, tentar definir a minha ação na arte não deixa de ser uma avaliação
de meu próprio percurso, tirando-o assim do lugar da teoria.
Durante o curso de artes plásticas no Instituto de Artes da UNICAMP, ao mesmo
tempo em que estávamos preocupados em criar um trabalho pessoal, havia também uma
preocupação com a aquisição do próprio repertório de conhecimentos da Arte. O início de
meu processo criativo foi então marcado por encontros com muitos artistas, conceitos,
teorias, ideias e preceitos artísticos, assim como por encontros com diferentes linguagens,
procedimentos e suportes. Acredito, no entanto, que a lembrança mais forte de meu
processo de criação foi a busca por um tema e por um gesto pessoal.
Se pensarmos que o tema da obra de um artista é o sentido de sua própria
existência, eu iniciei no curso de artes plásticas uma busca por um sentido de vida.
Sentido este que dialogava com o sentido encontrado pelos artistas em suas obras. Quando
me interrogava, fazendo perguntas do tipo: “Sobre o que vou falar? Qual a mensagem de
meus desenhos e de minhas pinturas? Sobre o que estou tratando?”, consequentemente eu
me questionava: “Qual é o meu gesto? Qual é a minha voz? Qual é o meu tema? Quem
sou eu?”
Desta maneira, o curso de arte me permitiu abrir as portas de uma jornada
individual de autoconhecimento. Ao rever os meus cadernos, mais de setenta em minha
estante, percebo a entrega pessoal que significou estar na Universidade e o significado de
96
minha procura por uma intenção na arte. Eu escrevia e desenhava obsessivamente,
tentando me compreender e compreender os outros, para, desta forma, compreender o
mundo. A melhor imagem que representa este período de busca e que mostra, por sua vez,
o meu modo de fazer e criar é o processo de criação de Alberto Giacometti e Iberê
Camargo, artistas que, também obsessivos, pintavam e apagavam, reparavam,
reconstruíam e pintavam outra vez... É como se, ao ver as suas pinturas, lembrando-me
deste passado e me localizando no presente, uma voz distante me dissesse: “Não sei ao
certo qual é a imagem que tenho buscado, mas sinto que ela está lá, em algum lugar... à
espera.”
Em minha primeira aula de pintura com o professor Tuneu, ele disse: “Comece
pelo início!” Comecei então desenhando tudo e qualquer coisa que encontrava pelo
caminho, desde objetos, paisagens a retratos de colegas de turma. Entre nós estudantes,
como a grande maioria não conhece arte quando ingressa na universidade, o espanto geral
com as linguagens “diferentes” nos levava a comparar a arte acadêmica com “tudo” o que
veio depois dela. Eram poucos alunos, entretanto, que conseguiam atravessar a ideia da
representação para de fato passarem a questionar a natureza de um desenho e de uma
pintura, acima dos ideais criados pelo Renascimento. Nunca me senti exatamente
confortável nesta posição, que definia as obras de um jeito muito técnico, ora como
bonitas ora como feias. Eu queria entender os porquês que situavam as obras modernas e
contemporâneas como arte, ainda que a representação de imagens fosse para mim uma
exigência importante para a construção de um desenho.
Os artistas Alberto Giacometti e Iberê Camargo pintando no ateliê. A criação das pinturas
exigia o apagamento das imagens e uma posterior reconstrução. Processo lento e demorado,
feito de muitas camadas.
97
Através de biografias e de entrevistas, o próprio testemunho dos artistas foi me
ensinando arte. A minha relação com eles era estreita e imediata. Da mesma maneira
como lia tudo sobre Van Gogh, eu lia também tudo sobre Francis Bacon. Eu pressentia
algo muito poderoso, muito potente, que dava contornos às pinturas. Olhando os seus
trabalhos, eu ia percorrendo a tela, até me dar conta de que toda aquela coisa era uma
organização tão emocional quanto racional. Discussão esta que comecei a travar em meus
trabalhos. Ao desenhar ou pintar, eu sentia que algo escapava de meu controle e acabava
caindo no apagamento total da imagem9.
9 Estas imagens de meu processo pessoal não existem mais. Algumas se perderam com o passar dos anos,
outras foram destruídas no processo mesmo de criação.
Durante aula de pintura, no
ateliê dos alunos de artes visuais.
Instituto de Artes, UNICAMP,
2004
Vincent Van Gogh
Pintor na estrada para
Tarascon, 1888
Óleo sobre tela,
48 x 44 cm
Francis Bacon
Estudo para retrato de
Van Gogh, 1957
Óleo s/tela.
98
Entretanto, fui compreender uma qualidade gestual diante da pintura quando
estive em uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, em 2003. Eu
conheci alguns trabalhos representativos da obra de José Leonilson. Assim como as
pinturas de Leda Catunda, Ciro Cozzolino e Sérgio Romagnolo, importantes artistas da
chamada Geração 80, as pinturas de Leonilson, expostas na ocasião da mostra,
apresentavam o mesmo colorido, a mesma alegria e o retorno ao figurativo, características
pelas quais o grupo de jovens artistas acabou ficando conhecido. Associados pela mídia
aos ideais do movimento da Transvanguarda Italiana, teorizada pelo crítico Achille Bonito
Oliva, e incentivados pelo crítico brasileiro Fernando Moraes, as obras destes artistas se
contrapunham e dialogavam com a arte conceitual existente no país desde o
neoconcretismo. No entanto, o que distinguiu Leonilson de outros de seu grupo não foi
tanto a pintura mas as obras criadas nos últimos anos de sua vida, que demarcavam, por
sua vez, uma visível divisão no conjunto de suas obras na exposição do MAM.
Realizadas sobre grandes lonas sem chassis e isentas de quaisquer cuidados com
a forma e com o suporte, as pinturas coloridas se diferenciavam dos bordados e dos
desenhos, que passaram a explorar o vazio da composição, tornando os trabalhos menos
gratuitos e mais introspectivos. O mesmo vazio, por sua vez, sugeria a lembrança das
imagens e o silêncio causado pela falta delas. Combinando o espaço vazio com a escrita,
Leonilson dava às palavras uma sonoridade gráfica. Recurso que já aparecia nas pinturas,
não com a mesma potência presente nos bordados, que abriram uma fissura dentro de sua
obra. Ao conhecer estes trabalhos do artista, as figuras e as representações estavam
começando a desaparecer de meus desenhos. De uma forma muito intuitiva, a escrita de
Pintura de Leonilson
Rios de palavras, 1987
Acrílica s/ lona
196 x 103 cm
99
Leonilson me permitiu encará-la como uma possibilidade narrativa ou mesmo como um
elemento organizador.
Mais tarde, reencontrei-me com Leonilson em “São tantas as verdades”, livro com
ensaios sobre sua produção plástica e com entrevistas realizadas um pouco antes de sua
morte, em 1993. Desta vez, chamou-me atenção o testemunho do artista, que
contextualizava o processo de criação de cada obra com acontecimentos de sua vida
pessoal. Acometido pela Aids, Leonilson explicava a mudança de suportes, das lonas aos
tecidos, e a mudança de atitudes frente às criações, devido, principalmente, à debilidade
causada pela doença10. A partir desta interpretação, constatei o sentido de uma intenção
poética enraizada na vida de um artista, em que as soluções plásticas e os materiais da obra,
além do tema, eram definidos por sua biografia. Compreendi que a resposta que eu vinha
procurando em meus desenhos tratava-se desta mesma união da vida com a arte, por meio
da qual eu poderia contar as minhas próprias histórias. Histórias que as memórias seriam
capazes de abranger, fazendo dos desenhos uma crônica ou mesmo um diário íntimo.
10 Conceito elaborado e compartilhado pela crítica de arte Lisette Lagnado, que fez as entrevistas com o
artista e escreveu a maioria dos ensaios de “São tantas as verdades”.
Leonilson
Para quem comprou
a verdade, 1991.
Bordado s/ voile
39 x 35 cm
Leonilson
El Puerto, 1992.
Bordado s/ tecido s/
espelho
28 x 18 cm
100
Ao considerar a escrita e a narrativa autobiográfica como lugares de intenção em
meu processo de criação, comecei a procurar artistas que faziam semelhante união entre
vida e arte, identificando neles, primeiramente, a presença da escrita. Embora a escrita não
tenha sido um elemento expressivo de igual importância no contexto das questões debatidas
pela arte, encontrei artistas tão pontuais e poéticos quanto Leonilson. Descobri possíveis
interlocuções nas frases inscritas nas pinturas de Frida Kahlo, na cosmologia dos bordados
de Arthur Bispo do Rosário, bem como nas gestualidades de Cy Twombly e Basquiat, e,
muito tempo depois, nas fotografias de Duane Michals. Todos eles artistas que usaram a
escrita, compondo uma relação com as imagens, como se fosse um fluxo de consciência de
um diálogo interior.
Página de diário e caderno de
desenho pessoal. O Vulcão
Acorda, guache s/papel, 2003.
Momento em que a escrita
começou a surgir em meus
desenhos.
Diário de Louise
Bourgeois. Sem título e
sem data.
101
Na página anterior, imagens de trabalhos dos artistas Cy Twombly e Jean-Michel Basquiat, e imagens de
meus desenhos, realizados em 2005.
Ao mesmo tempo em que estas referências influenciavam plasticamente os meus
desenhos, alimentando as minhas investigações a cerca das obras dos artistas, entrei em
contato com a Arte Conceitual, por indicação de professores, que consideravam os
conceituais a porta necessária para fazermos um trabalho contemporâneo. Segundo o que
os artistas conceituais defendiam, entre outras coisas, a arte não deveria estar nos museus,
mas sim na vida, de modo que o artista estava livre para pensar e criar “ideias em vez de
obras”. Como eles também determinavam que os diários, os manuscritos, as cartas, os
esboços e os registros de obras futuras dos artistas eram um “produto final”, eu achava
que o meu interesse pela escrita poderia ser fundamentado a partir destes materiais do
processo de criação, sob a perspectiva de suas ideias. Acredito, porém, que a
racionalização dos conceituais tornou inflexível muito de meu processo – no sentido
contrário do que eu havia conhecido com os expressionistas –, uma vez que eu me sentia
mais propenso a pensar do que criar. Em vez de simplesmente desenhar e pintar, eu
102
buscava organizar um fio condutor temático para os meus trabalhos. Processo este que
não prezava o mundo interior do artista, muito menos a emoção e o sentido
autobiográfico, por estar atado somente às questões da linguagem. Como a natureza de
minha personalidade não é esta, junto a uma busca obsessiva por explicar tudo, eu criei
uma censura interna, tentando me encaixar naquilo que deveria ser um trabalho de arte
contemporâneo, que é, a meu ver, mais teórico e filosófico do que material ou
representado por imagens.
Apesar disto, fui procurando brechas nos trabalhos destes mesmos artistas
conceituais, até descobrir as obras do artista alemão Joseph Beuys. De sua obra, porém,
considero essencial para as minhas discussões a maneira como o artista lidou com a sua
própria biografia, ao transformar dados reais em ficção. Piloto na Segunda Mundial, de
acordo com o que o próprio artista escreveu, ele teria sofrido uma queda de avião na
Crimeia, tendo sido resgatado pela população local, que supostamente curou as suas
feridas com sebo e feltro. Estes materiais, mais tarde, vieram a compor os seus trabalhos,
tanto plasticamente como conceitualmente. Beuys desenvolveu um discurso único na pós-
modernidade, assumindo um lugar poucas vezes ocupado pelos artistas: intelectual,
artista, pedagogo e um grande orador público. Sua arte se pautou por uma ação político-
social, que ao unir a vida e a arte, deveria estar no mundo, através de uma ação
pedagógica, seguindo os princípios formulados por ele mesmo. Beuys foi o criador do
Partido Verde e de uma universidade na Alemanha, em que qualquer pessoa poderia se
matricular para o curso de arte. Ele acreditava na ideia de que “todos são artistas”.
Beuys em uma de suas
conferências-performances.
Ao fundo, a lousa, na qual o
artista registrava seus
conceitos de arte, desenhando
e escrevendo ao mesmo
tempo.
A infiltração
homogênea para piano,
1966, em que o artista
Joseph Beuys utiliza o
feltro, um dos materiais
que aparecem em sua
biografia.
103
Conforme ficou comprovado, a biografia escrita por Beuys era fictícia. Ele teria
inventado diferentes dados biográficos, estreitando assim a relação entre vida e arte.
Geralmente, as obras autobiográficas – como qualquer outra obra – não entregam ao
espectador o quê exatamente das biografias induziu o artista a fazer as suas imagens,
provocando questionamentos sobre a natureza confessional e, ao mesmo tempo, velada de
seus trabalhos. Entre o público e o privado, as obras revelam da mesma forma como
ocultam os seus autores, criando muitas vezes um discurso emblemático, em que o
espectador se vê diante de seu próprio repertório e desejos individuais. Com a imprecisão
na análise e na interpretação das obras, a “sinceridade” do artista esbarra na dúvida do que
seria real e do que seria ficção. Porém, assim como ocorre com Beuys11 e Leonilson12 –
este inspirado provavelmente por Beuys –, a vida não se separa da arte, mas é a arte que
define os contornos necessários à vida ou à mitologia que esta mesma vida impõe13.
Mas estas são questões apropriadas para a teoria e para a história da arte. Legado
que a arte conceitual proporcionou ao meu processo, a ponto de silenciá-lo na prática,
com a confusão de que eu estava criando quando não estava criando... Contudo, se os
desenhos não aconteceram mais com a mesma urgência presente no início do curso de
artes plásticas, considero o término da graduação e o período posterior como uma espera,
em que a revisão pessoal de todo este caminho pôde se dar.
11 Em recente biografia sobre Joseph Beuys, Beuys – Die Biographie, 2013, o autor Hans Peter Reigel
polemiza ao discutir a biografia fictícia do artista, afirmando que Beuys mentiu sobre sua origem humilde e
que teria escondido do público as suas alianças com o nazismo, o qual chegou a patrocinar a sua obra.
Controvérsia que não retira, entretanto, o status de Beuys como um dos artistas contemporâneos mais
importantes do século XX. 12 Muitas das interpretações que a obra de Leonilson recebeu estão associadas à poética homoerótica ou ao
anúncio da sexualidade. Questiono-me, entretanto, se estes scripts criados pela história da arte e pela crítica
não delimitam uma leitura dos valores plásticos e sensíveis da obra. Ao nos desfazermos destes mesmos
scripts, questiono o que colocar no lugar deles, uma vez que nem sempre estamos preocupados em construir
uma visão pessoal das obras, preferindo reproduzir ou repetir teorias consagradas. Da mesma forma, parece-
me que interpretar Leonilson apenas pelas alegorias e metáforas criadas para a doença também não deixa de
ser limitante ou mesmo mórbido. Entrego assim a pergunta diretamente aos críticos de arte: O que de vida a
crítica de arte aborda? Mesmo soando simples, esta pergunta retorna a mim, talvez pelas costas. No entanto,
do interior dela, são as imagens e os sonhos evocados pelas obras que me fazem citar estes artistas e
discordar, por sua vez, de uma possível incoerência em meu discurso. 13 Sobre a leitura e a interpretação de uma obra, é interessante conhecer o confronto de opiniões de Sigmund
Freud e Carl G. Jung sobre a análise que o primeiro fez da pintura de Leonardo da Vinci, “Madonna, o
menino e a Santana”. Jung acusou Freud de ter cometido uma fantasia arquetípica, ao deduzir a “dupla
descendência” do artista através da pintura, sem mesmo conhecer outros artistas que pintaram o tema.
Sabendo que Freud acreditava na psicologia individual e que Jung situava as imagens sob o contexto de um
inconsciente coletivo, o embate se estende, assim, ao nascimento das imagens, que atravessam o sujeito, indo,
segundo a Psicologia Junguiana, ao encontro de um sentido mais universal e ancestral de símbolos.
Inconsciente este próximo do mundo vivido pelos povos primitivos, e que as crianças, por sua vez, vivem
imersas, por não apresentarem ainda o pensamento desenvolvido de uma cultura. A melhor maneira para
conhecermos uma obra de arte, isentos de preconceitos e teorias, é, segundo o que penso, pedir para que uma
criança a interprete. (JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Traduzido por Dora Ferreira da
Silva. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda, 2013, p. 78.)
104
CONFLUÊNCIA DE CAMINHOS
Retomando as aulas de estágio em licenciatura, ministradas pela professora Dra
Ana Angélica Medeiros Albano, em um de nossos encontros, ela veio a nos questionar:
“Embora saibamos que criança não faz arte, estamos pondo em
movimento alguma coisa que pode se expressar através da pintura,
através do desenho, do vídeo. Mas, o que é que estamos pondo em
movimento? Essa é a pergunta que eu coloco para vocês todos.
Para que pintar? Por que vocês pintam?”14
Para a pergunta, naquele momento da aula, eu vim a responder, conforme trecho
transcrito em mesmo artigo citado:
“É muito difícil a gente responder porque a gente faz arte. O que
nos autoriza fazer arte? A partir do momento que você se
questiona o que te autoriza a fazer arte, chega a abrir um espaço
dentro da gente que é sem definição. É sem definição a ponto da
gente não conseguir dar um nome. O único nome que a gente dá
para isso é arte, é fazer arte. O movimento que a gente faz é pintar,
é esculpir, é fazer uma instalação, ou seja, tem um ‘lance’ aí de
mediar alguma coisa. O que é essa alguma coisa que a gente
media? É uma coisa subjetiva, é nossa, é do mundo, é da
realidade, o que é isso, é da vida, é da pessoa humana?”15
Tanto uma intenção poética quanto um gesto autoral dependem de uma ação
constante no processo de criação. É o nosso próprio trabalho que nos autoriza estar na arte
e fazer arte. Assim como um gesto e uma imagem, um tema não é definido por uma razão
qualquer da consciência. Embora o silêncio seja favorável para a reflexão e análise de um
processo, somente a ação dá coerência e contorno ao trabalho. Com a espera, os desenhos
foram me mostrando as imagens e outra ordem de relação com a criação, que coincidiu, e
que pôde ser estabelecida, com o fato de ter me tornado professor de crianças.
Situando uma ordem das coisas – “Comece pelo início!” –, as crianças me
autorizaram a acolher as imagens vivenciadas em minha imaginação, de modo que a 14 CINTRA, Simone C. S.; ALBANO, Ana Angélica. Memórias de Artistas e de Futuros Professores de Arte:
Um diálogo pertinente?. In: Congresso Ibero Americano de Educação Artística: Sentidos Transibéricos, 2008,
Beja. Actas do Congresso Ibero Americano de Educação Artística: Sentidos Transibéricos. Porto: Associação
Professores Expressão e Comunicação Visual., 2008. v. 1. p. 1-11.
15 Idem., p.6.
105
dinâmica do mundo interior, com as suas imagens e personagens, visões e fantasmas,
pudesse ser respeitada e então dimensionada sob outra perspectiva.
Noto que o meu processo foi uma maneira de conhecer o mundo, de me conhecer
e de me reconhecer no outro. Ao buscar por um gesto pessoal e por uma intenção em meio
a estas interlocuções com a arte e com muitos artistas, com os meus professores e com os
meus colegas de turma, eu inaugurei, como disse, um processo de autoconhecimento e de
busca por um sentido de vida.
Sinto que a minha busca sempre foi encontrar um lugar próprio em que eu
pudesse me expressar. Lugar que pode ser desde um “estilo pessoal”, um suporte ou uma
linguagem adaptadas ao que sou, a um procedimento que me caracteriza em uma
totalidade.
“(...) só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da
minha vida através dos quais o mundo eterno irrompeu no mundo
efêmero. Por isso falo principalmente das experiências interiores.
Entre elas figuram meus sonhos e minhas fantasias, que
constituíram a matéria original de meu trabalho científico. Foram
como que lava ardente e líquida a partir da qual se cristalizou a
rocha que eu devia talhar.”16
Com esta fala das memórias de Carl G. Jung, confirmo e compreendo a união da
vida interior com uma prática e com uma teoria. E assim começo a escrever uma pequena
contribuição para a educação e para a arte, definindo sentidos para a existência do artista e
para a existência do professor de arte.
Existências que cumprem, a meu ver, um sentido para fazer nascer um “outro
expressivo” – seja o outro expressivo da obra seja o outro expressivo dos alunos. Ao
procurar por um tema ou por um gesto autoral, o sujeito procura um outro expressivo
ainda não manifesto, construindo, por sua vez, uma jornada pessoal de autoconhecimento.
Com este sentido, não é o desaparecimento que importa, mas o quanto conseguimos
administrar a nossa própria busca. A busca faz sentido por ela mesma. E o quanto fomos
capazes de fazer brotar das profundezas da alma um contato mais humano com a vida.
Considero, assim, a premissa de que o autoconhecimento gera criação e de que a
criação gera autoconhecimento. Enquanto desenha, o sujeito se conhece... ao se conhecer, o
sujeito desenha... Tudo me leva a pensar na figura do professor de arte como um sujeito,
que encontrou os fundamentos de seu fazer docente na criação de sua própria vida através
da arte. Assim como posso pensar na figura do artista, que não vive mais estancado sozinho
16 JUNG, Carl G. Memórias Sonhos Reflexões. Traduzido por Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1975, p. 20.
106
em seu ateliê, mas que conseguiu fazer do outro um porta-voz de sua própria obra. Ou o
canal para o mundo interno de tantos outros – ainda desconhecidos.
Na primeira imagem, o artista americano Jacob Lawrence, que ministrava aulas de pintura para
crianças, no Lincoln School, em Nova Iorque. E ao lado, o pintor Josef Albers em ação, como
professor na Bauhaus. Dois artistas que souberam unir os seus processos criativos com a docência, sem
exclusões e sem perder os caminhos impostos por cada um deles. Em seguida, algumas pinturas
realizadas por mim já como professor de arte.
108
Pinturas, guache e aquarela s/ papel, tamanhos variados entre 15 x 10 cm, realizadas entre 2010 e 2014.
113
GIGANTE COM FLORES
Ao criar uma aula, nós nunca sabemos a extensão de nossas propostas. Entendo
que um planejamento requer generosidade, tanto para atender as demandas das crianças
como para atender as particularidades do conteúdo que será trabalhado, não esquecendo
ainda do universo de símbolos e imagens do professor de arte, que realiza um trabalho de
interlocução com o artista que ele mesmo é. Somam-se a estas preocupações alguns
“fatores” externos às aulas. O professor deve ao menos conhecer tais fatores, que não
estão em um local específico, mas que se encontram dispersos em vários lugares. Na
maioria das vezes, há muitos atritos relacionados à organização da escola e aos sujeitos
que nela convivem.
Para uma primeira aula, eu considerava que o mais certo era que as crianças
pudessem criar os seus próprios desenhos com muita imaginação. Eu via nisto uma
possibilidade e não uma certeza. Era uma intuição e não um conceito fechado. Talvez a
imaginação seja o principal objetivo de minhas aulas, uma vez que define uma dentre
muitas de minhas propostas na escola. As minhas ideias e os meus objetivos estão sim
sujeitos às intervenções do ambiente escolar, porém, mesmo sofrendo adequações e
adaptações, o núcleo central, para o qual convergem as minhas intenções, permanece
sendo o de conduzir as crianças ao encontro de suas imagens internas a serem expressas
em seus desenhos.
E aqui se movem os meus maiores questionamentos. Considerando o meu
processo de criação pelo autobiográfico e a premissa de que a criação gera
autoconhecimento e de que o autoconhecimento gera criação – que é a chave de minhas
próprias imagens –, estabeleço a dúvida: Sendo o autoconhecimento um fundamento para
toda criação, como trabalhar com a ideia de um autoconhecimento com as crianças,
partindo de uma proposta autobiográfica?
Penso que as crianças estão construindo na escola o tempo de suas próprias
vivências e memórias, que mais tarde poderão ou não ser motivos para a criação de uma
imagem pessoal ou mesmo de uma personalidade criativa. Não sou contrário a uma
proposta estritamente autobiográfica, em que as crianças construam e narrem as suas
histórias, pois seria uma contradição. A minha preocupação está, porém, nos
procedimentos do próprio professor, que deverá saber lidar com os dramas das crianças.
Suponho que as histórias das crianças exigirão, por sua vez, cuidados e intervenções, de
modo que as respostas dadas e orientadas pelo professor não interfiram na vida do sujeito
que as relata.
114
Quando tratamos da vida de um sujeito, uma criança ou mesmo um adulto, não
devemos esperar pelo conhecido. Este é um processo que requer um envolvimento
completo, porque, em suma, este é o propósito de um processo educativo, que preza pelas
diferenças e que defende o desenvolvimento de um sujeito único no mundo, em que o
professor não fica ao lado mas está dentro de um processo de construção. Acima de tudo,
é papel do educador conhecer e reconhecer os lugares desconhecidos e não mapeados que
as histórias de vida podem abranger. Em uma aula de arte, “com cinquenta minutos e com
mais de trinta alunos por turma, é impossível destinarmos tal cuidado e tal atenção”.
Argumento que refuto, porque desconsidera ou desqualifica o envolvimento do professor
com o seu próprio trabalho. Na verdade, trata-se de um argumento rasteiro e semelhante
àquele que determina apenas a “alegria” como um guia das ações de todos os professores
na escola – “senão a gente não aguenta!”
Como vivenciei na arte um caminho oposto a este, em que trabalhar com aquilo
que somos, ao nos envolver com o princípio de uma procura pela dor e por aquilo que
verdadeiramente nos representa no mundo, não compreendo tais opiniões que
predominam na escola, uma vez que elas me parecem algo como um “alheamento” ou um
tipo de “negligência cheia de desculpas”. Parece-me que, como professores, nós nunca
podemos trabalhar com o que somos. E assim erramos o alvo. Pensamos a partir dos
conteúdos e dos programas estabelecidos e nunca a partir de nossas próprias questões. De
nossas próprias histórias e debates internos. Erramos ainda mais quando as nossas
desculpas recaem sobre as crianças. Elas não são culpadas de absolutamente nada.
Assumo assim o risco ao dizer que a busca por expressão e pelo
autoconhecimento é a responsabilidade maior de todo ser humano nesta existência, acima
de quaisquer conteúdos e subterfúgios que a escola vem defendendo atualmente. Não há
um processo de educação quando o educador se encontra dissociado. O esforço do
professor deve ser pelo “‘homem total’ oculto e ainda não manifesto, que é também o
homem mais amplo e futuro”17. Ao propor uma totalidade, não estou interessado na
educação como um compartimento, quando uma gaveta nada sabe do que a outra contém.
Entretanto, ainda pergunto: É possível considerar a autobiografia como um ponto
de partida de nosso trabalho com as crianças na escola?
Podemos trabalhar com a experiência do presente, acreditando que algo possa
acontecer no futuro. A existência do professor está fatalmente marcada pela espera e pelo
desaparecimento completo de nossas intenções educativas na passagem do tempo. Não
desprezo uma proposta de uma aula autobiográfica, uma vez que sou formado por este
17 JUNG, Carl G. Psicologia e Alquimia. Traduzido por Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro:
Editora Vozes Ltda. 1991, p.20.
115
lugar18, mas entendo que o território das aulas na escola pública exige a solução de outras
questões. Mas quais questões? A arte me ensinou que, apesar das precariedades e das
limitações, nós podemos ainda criar e nos expressar. Apesar de tudo, nós podemos falar
de nossas questões mais essenciais. Não há limitações e delimitações exatas, nem mesmo
uma criação impossível de acontecer. Neste embate, vivo com as questões: Se não posso
trabalhar com o que é mais importante para a vida de um ser humano, onde estaria o tema
de minhas aulas? Se não posso trabalhar com o lugar mais sensível, que é a alma humana,
qual o sentido de minha prática docente em arte?
A chave é: criando e apenas criando através da arte... Arte esta localizada em
uma prática docente, que compreende e que respeita as crianças por aquilo que elas são. E
aqui é relevante situar minhas provocações: a ideia de uma totalidade se refere ao
professor e à escola, não se refere às crianças, embora elas estejam incluídas naquilo que
me proponho a fazer, que é construir uma união entre o mundo interno e o mundo externo.
Surgem assim mais contradições – enquanto professor, todo o meu discurso se desfaz em
sala de aula, pois compreendo que as coisas têm momento e hora para acontecer. Com
estas interrogações, acredito que talvez o ponto de encontro entre uma coisa e outra seja o
acolhimento das crianças, que, em meu caso, coincide com o acolhimento das próprias
educadoras. Embora esta não seja tarefa do professor de arte, ele deve saber negociar a
crença geral que acomete a educação. Nenhum conhecimento pode ser adquirido se o
sujeito não se debater primeiro com as suas próprias perguntas.
Outro tema que também buscava solucionar no início da docência, ao lado do
acolhimento que mencionei, era quanto à atmosfera da aula. Neste sentido, eu chegava a
imaginar a possibilidade de uma energia desconhecida ou de uma atmosfera de
imaginação para as aulas. Na arte, faço uma aproximação desta energia com o momento
vivido durante a criação. Se observarmos um artista trabalhando, perceberemos que nada
mais existe ao seu redor, uma vez que toda a sua concentração se encontra nele reunida.
Somente quem, alguma vez, tenha entrado neste lugar de criação sabe do que se trata. Por
ser um lugar tão particular quanto sério, ele pretere a presença de qualquer estranho.
Em sala de aula, segundo as minhas ideias, cabe ao professor, então, pensar e
agir, para que este mesmo estado de criação aconteça, não nos moldes que marcam o
silêncio e a solidão do artista em seu ateliê, nem mesmo nos moldes da alegria defendida
pela escola, mas pela maneira com que as crianças nos desafiam a estabelecer uma relação
com os espaços da escola. Contudo, é tarefa do professor compor uma energia e uma
18 Acompanhando, como professor PED, em 2014, as aulas de estágio na Faculdade de Educação, orientadas
pela professora Dra. Angélica Albano, observei um encaminhamento consciente de todo o processo
proposto pelo recurso das memórias. Os alunos, conforme o semestre se desenvolvia, iam descontruindo
imagens e reconstruindo imagens de si mesmos, através de um processo que os levava ao encontro de uma
criança interior. Criança esta que se perdeu no contexto de um ensino tradicional e que não teve mais
chances de expressão. Princípio que também estava presente em minhas próprias aulas na licenciatura.
116
concentração em sala, mesmo que ele atue ou jogue. São as palavras proferidas, são as
sonoridades destas mesmas palavras, bem como a dimensão física do corpo emocional e
sutil do professor, que podem atingir o ambiente de uma aula, provocando assim uma
comoção. Creio que há também mais coisas sendo ditas além das palavras. O fato de estar
consciente dos lugares da emoção, que são por sua vez invisíveis, é, para o professor, um
caminho para a sua atuação. Na escola, “estando mais de cinco horas na escola”, a
emoção vive em corda bamba. Saber onde estamos e falar o essencial é, para mim, uma
exigência para que possamos escutar o outro, para assim definir, através dele, a nossa
prática docente.
Para criar este lugar de atuação, eu fui elaborando procedimentos e
procedimentos. Descobri, com uma escuta atenta ao outro em sala de aula, que o som de
uma música desconhecida e uma pintura nova na parede, por exemplo, têm o poder de
provocar silêncios e questionamentos. São gestos muitos simples, mas diferentes na rotina
da sala de aula, que imediatamente alteram a rotação de energia do lugar, dissipando a
tensão que ali se tornou “problemas de disciplina”. Com estas minhas intervenções, eu
notei que as crianças não ficam emudecidas, mas estão em um silêncio criativo. As
sensações podem fazer surgir outra natureza de atuação, oposta àquela que estamos
acostumados na escola, que é, geralmente, dada como a mais correta. Pensando na
indisciplina, as generalizações não deixam espaço. E o controle, o suposto equilíbrio, as
atitudes automáticas e as revistas “Nova Escola” a tiracolo, fazem da corda bamba da
poesia da emoção um fio de aço que se transforma em navalha...
Em minha primeira aula, ao pensar nesta atmosfera de imaginação, sugeri então
que nos organizássemos em uma roda. Ali seria desenvolvido o tema e a proposta de
nossa aula. Alguns questionamentos me deixavam mais cauteloso:
“Qual seria a linguagem adequada às crianças para explicar o que aprenderíamos
em nossas aulas? Como expor uma proposta sem cair na tarefa rotineira?”
Foi a partir destas perguntas que apareceu a imagem de um gigante, que veio
representar toda a imaginação que eu buscava para os desenhos das crianças e para as
aulas. Em vez de interpretar e elaborar sentidos para a imagem, esperei que ela própria se
manifestasse. Eu não queria manchá-la com pensamentos ou então destruí-la com
significados19. Decidi então que eu atenderia a um telefonema do Seu Gigante, durante a
minha apresentação, de modo que a cena fosse representada para os alunos. Pensava que o
personagem atingiria a imaginação das crianças, embora resoluto de que seria somente um
pretexto, um álibi ou um motivo destinado à primeira aula.
19 Esta é a principal mudança que ocorreu em meu próprio processo de criação quando comecei a lecionar.
Sem antes passarem pelo fluxo de um pensamento que tenta explicar tudo e todas as coisas, na perspectiva
de uma criação racional, as imagens puderam nascer, então com menos impedimentos e censuras.
117
Ontem tivemos nossa primeira aula. Sentamos em roda:
"Meu nome é João, e vou ser o professor de arte de vocês. Tudo
bem com vocês? Vocês conhecem arte? Já tiveram aula de arte?
(Alguns levantaram a mão...SIM...NÃO) Que bom! o que a gente
pode falar que é arte? (Brincadeira, atividade, pintura, ... desenho)
Isto, em nossas aulas a gente vai desenhar, pintar, fazer tudo que a
gente quiser, que estiver nas nossas ideias, pensamentos, sensações.
Então, antes de vir para cá, ontem à noite, recebi um telefonema de
um amigo meu. Ele me ligou - atendi ao telefone, como
se conversasse com ele - e... “Quem fala”? Aqui é o seu Gigante!
Seu Gigante? AH, sim o seu Gigante!Tudo bem, seu Gigante?!
Tudo bem, professor João?Amanhã o senhor vai estar na escola
Campo Grande? Vou sim, por quê, seu Gigante? Porque eu gostaria
que o senhor levasse uma coisa para aquelas crianças. Mas o que o
senhor quer? Eu quero que leve arte para eles. Arte, seu Gigante?
Sim, arte... Mas, seu Gigante, o que é arte? Na arte, a gente pode
fazer tudo o que a gente quiser. Mas na escola, seu Gigante, a
gente não pode bagunçar, como vamos fazer? AH, professor João,
vá até lá e leve arte para eles...fale o que eu disse." Então, estou
hoje aqui, e daí fiquei pensando muito nisto que o seu Gigante disse
para mim... e fiquei mexendo nas minhas coisas lá em casa. Fui
pegando uns objetos que tinham a ver com arte. (Todos escutavam
com muita atenção a história!) Daí peguei a minha mala, vejam só:
e trouxe algumas coisas: (perguntam: o que tem ai dentro?) Vamos
ver o que tem aqui dentro? Olha, a primeira coisa que achei foi um
lenço - abri o lenço e estendi pelo chão - e fui retirando as coisas,
fazendo barulho na maletinha. Olha, achei uma estrela toda
colorida, achei uma latinha de sopa (falam: uma latinha de sopa? o
que tem dentro? - respondo: está vazia!óh..), achei também dois
pincéis, achei um livro de um artista famoso (perguntam: é o
Portinari? - resp.: O Portinari também é um artista famoso, mas este
aqui é o Van Gogh, já ouviram falar dele? Não...nas nossas aulas a
gente vai aprender sobre ele) , achei também, vejam só!, um lápis,
uma caneta, a cabeça de um homenzinho feito em argila...olha que
legal! (Professor, isto parece cimento!) ... Mas daí fiquei pensando,
eles não vão acreditar que sou amigo de um Gigante...como vou
provar que sou amigo de um Gigante? Ah, então me lembrei do
presente que o seu Gigante deu para mim: e daí trouxe para vocês
verem: um vidrinho onde ele guardou a asinha de uma borboleta!
Vou passar para vocês verem! E pensei assim, o que vamos fazer
hoje? Vocês querem desenhar? SIMMm... Então, vamos desenhar
118
estes objetos, mas vocês também podem desenhar qualquer coisa
que vocês quiserem. Entreguei as folhas, sentaram todos no chão,
e sempre iam e chamando para ver o desenho, a bolsa, o caderno
novo, o que eles tinham acabado de desenhar... TIO, TIO... e
desenharam e foi bom! Mas,/ um dos meninos não desenhou. Olhei
para o lado e ele tinha dobrado a folha, assim como o amigo, e
estavam fazendo o som com o novo instrumento. Daí, pensei, mas o
que eles estão fazendo? Eles estragaram tudo... Não, era isto o que
eles queriam fazer. Fui até eles e perguntei o que tinham feito? Eles
disseram que queriam fazer som o papel. Eu disse que não sabia
como fazer, mas que tinha gostado do que tinham feito. Passou
mais tempo, todos desenhando, o mesmo menino estava do lado do
armário de aço, escondido debaixo da mesinha, e fazendo toc-toc...
Se eu chamar atenção, não vai adiantar! "Pessoal, vocês estão
escutando este barulho. O que é isso? Será que é lá fora? O que é?
(É ele tio!...) Mas, parece que parou o que é isto? Cadê o barulho?
(ele fez mais alto) O que é isto? Ah, é um fantasma, tio! Um
fantasma? Sim, será que é um fantasma... (nesta hora, todos eles
pararam de desenhar e muito atentos começaram a dar risadas)... o
Juan veio e pegou o pé. “AHHH, então era você”!" Terminei a aula,
com outra roda, quando perguntei se tinham gostado, que eu estava
feliz de estar lá e de ter conhecido eles, e que na proxima aula, vou
ia conversar com o Seu Gigante, e ver o que ele queria mais. O Juan
perguntou: "O Gigante existe?" "Existe sim!" "Ah...(torcendo o
nariz) !)...ele é como o Gigante do Pica-Pau?" "É sim, é parecido
com ele...vou ligar para ele e ver o que ele quer." Pessoal, até
amanhã! "Tio, foi muito legal!" "Tio, você vai voltar amanhã?”
22 de fevereiro de 2010.
Ao analisar e procurar sentidos para a imagem do personagem Gigante, muito
tempo depois da aula ter acontecido, entre outras possíveis leituras, encontrei a
interpretação de Marie-Louise von Franz, em que a autora narra um sonho do psicólogo
Carl G. Jung:
“O sonho de Jung ilustra algo que se pode encontrar em inúmeras
lendas medievais nas quais as mais belas igrejas e catedrais, os
mais lindos monumentos, foram construídos por gigantes;
edifícios imensos que um santo soubera convencê-los a erguer. Os
santos não têm a força física necessária para empilhar as pedras
que constroem a catedral! Precisam de um gigante que os ajude.
Assim, se o gigante for domado, se estiver sob controle, será então
119
um auxiliar de grande serventia em todo trabalho criativo. Se você
conseguir que um gigante faça o trabalho por você, isso é
maravilhoso! É só uma questão de tê-lo sob controle!”20
Em outra referência, desta vez do próprio Jung, encontrei um “equivalente” da
imagem do Gigante. E aqui me parece que a própria interpretação de Jung amplia a
imagem para o que ele diz ser o Grande Homem ou o Homem Velho. Provavelmente esta
interpretação é um desdobramento da imagem do Velho Sábio, aquele que, assim como
um pajé ou um xamã em uma tribo, espera e deve ser escutado, pois “o Homem Velho de
dois milhões de anos, ele deve saber de alguma coisa”. Jung diz:
“Se quiserem conhecê-lo, vão até os primitivos, olhem para eles,
falem com eles e então verão a coisa em ação. (...) Quando falo do
Grande Homem ou de algo equivalente, eles entendem. Sabem
que estão se confrontando com poderes. Mas nós que moramos
nas cidades acreditamos que não há poderes – ou sim – a polícia
ou os comunistas ou a Rússia, algo nesse sentido. De outro modo,
ele é sempre superior. (...) Há um Grande Homem em nós e é isso
que chamamos de inconsciente.”21
Desta forma, entre outras imagens, a figura do Gigante é, a meu ver, este mesmo
inconsciente que Jung afirma existir em cada um de nós, que, na verdade, trata-se de um
conceito mais amplo da ideia de um mundo interior, ainda que o inconsciente possa se
referir também a um espaço aquém da consciência de uma personalidade ou de uma
história pessoal. A meu ver, nesta primeira aula, é o inconsciente que demarcou a sua
presença. A representação mais direta desta relação com o mundo interior é a imagem do
telefonema, que demonstra, com uma linguagem simples e próxima do universo das
crianças, a “ligação” com o inconsciente ou mesmo um diálogo com a voz interior.
Para mim, o que se mostra de essencial é que a escolha de um Gigante revela a
natureza de meus sentimentos e as incertezas que a docência trouxe, talvez por saber – e
por não saber – que somente um Gigante seria capaz de realizar o trabalho da docência.
Assim como a comparação feita pela autora Marie-Louise von Franz, um professor
precisa ser suficientemente grande, tal qual um gigante, para estar no processo de
aprendizagem das crianças. Com o personagem, com a visão das crianças para ele, pude
resignificar, e dialogar com, as minhas próprias imagens, revendo as minhas memórias e
20 FRANZ, Marie Louise von. Mitos de Criação. Traduzido por Maria Silvia Mourão. São Paulo:
Paulus, 2003, p. 247. 21 JUNG, Carl G. Sobre sonhos e transformações: sessões de perguntas de Zurique. Traduzido por Lorena
Richter. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda, 2014, p. 44 e 45.
120
compreendendo, finalmente, que poderia ser professor de crianças. Através dele, eu pude
reconhecer o meu cuidado e a minha delicadeza.
Reaparecendo em outras aulas, o Gigante foi uma ponte entre a imaginação e a
criação, cumprindo o sentido maior do inconsciente que faz as suas ligações entre o
mundo externo e o mundo interno. Fui assim criando histórias, inventando situações e
circunstâncias, nas quais o personagem pudesse participar, tendo em vista as imagens que
as crianças criariam e as hipóteses e as dúvidas despertadas por sua figura, que certamente
para as crianças era misteriosa.
É interessante destacar onde as crianças então buscaram as suas imagens de
gigantes. Elas recorreram ao gigante da história do João Pé-de-Feijão e ao gigante que vez
ou outra surge nos episódios do antigo desenho animado Pica-Pau22. Em outros momentos
da docência, mais de uma vez, confirmei que realmente são estas as primeiras imagens
que acompanham as lembranças das crianças quando falamos de gigantes.23
Seguem algumas das perguntas e hipóteses construídas pelas crianças:
“– Professor, o Seu Gigante mora no céu? Se mora no céu, ele
é Deus...”
“– O Seu Gigante é você, né, professor?”
“– Tio, você é professor João-Seu Gigante.”
“– Ah, tio, você não parece o gigante do Pica-Pau, ele é
diferente, eu sei como é o gigante!”
“– Você não é o Seu Gigante, mas é igual o Seu Gigante!”
“– Você é o João do Pé de Feijão!”
Analisando as perguntas e as afirmações das crianças, um dado importante é esta
não separação entre mim, o professor e o Gigante. Neste sentido, qualquer interpretação e
elaboração das crianças eram aceitas e bem recebidas. O Gigante poderia ser eu mesmo ou
não ser! Quando pequenos, verdadeiramente os adultos são gigantes e estão mais
próximos das coisas do alto... Realmente os adultos conhecem todos os segredos e sabem
22 Em nenhum momento, as crianças chegaram a desenhar tais imagens. 23 Coincidência ou não, surgiram muitos filmes e obras, como a refilmagem do clássico “As viagens de
Gulliver” e “Jack, o matador de Gigantes”, depois de terem se passado mais ou menos dois anos quando
estas aulas aconteceram.
121
muito mais do que nós mesmos, tal qual um xamã e um pajé, que são aqueles que fazem a
união das coisas do alto com as coisas terrenas.
Em “O Desenvolvimento da Personalidade”, Jung afirma:
“O mesmo tipo de relacionamento se dá no homem primitivo: ele é tão carente de
consciência como a criança. A falta de consciência é que origina a indiferenciação. Ainda
não existe o “eu” claramente diferenciado do resto das coisas, mas tudo o que existe são
acontecimentos ou ocorrências, que tanto podem pertencer a mim como a qualquer outro.
É suficiente que alguém se sinta afetado ou tocado por isso. A extraordinária força
contagiante das reações emocionais já se encarrega de que todos os que porventura se
encontrem por perto sejam igualmente envolvidos. Quanto mais débil é a consciência do
“eu”, tanto menos importa considerar quem propriamente foi afetado, e igualmente tanto
menos está o indivíduo em condição de proteger-se contra o contágio geral.”24
Em nenhum momento, por sua vez, precisei levar uma imagem para ilustrar o
Gigante. Seguindo minha intuição, eu supunha que as próprias crianças fariam as suas
associações.
Certa vez, contando um mito esquimó sobre a criação do mundo, uma aluna me
perguntou: “Professor, você não vai mostrar as figuras da história?” Eu respondi à
Amanda que se tratava de uma história muito antiga, não havia imagens e que, por este
motivo, ela mesma seria a inventora das figuras daquela história. Lembrei-me desta aula,
porque a pergunta da Amanda nos esclarece o quão profundamente as crianças estão
acostumadas na escola com ouvir uma história e em seguida visualizar as ilustrações.
Não foram poucas as vezes que, andando pelos corredores, presenciei esta cena
acontecendo dentro de sala. Parece óbvio e muito certo que as crianças precisam ver
tudo. Para mim, prefiro que elas imaginem e que criem as suas imagens, tirando as suas
próprias conclusões, embora eu entenda que as crianças possam – entre a imagem e o
texto – iniciar um processo de alfabetização. Mas esta é uma percepção da criança
encontrando os seus caminhos quando está aprendendo a ler. Eu estou preocupado
exclusivamente com a construção das imagens internas das crianças, que é o meu foco
de trabalho nas artes plásticas.
Quanto às primeiras associações das crianças, os gigantes do João Pé-de-feijão
e do Pica-Pau, faço um paralelo com a afirmação da autora Jette Bonaventure: “(...)
24 JUNG, Carl G.. O desenvolvimento da personalidade. Traduzido por Frei Valdemar do Amaral, com
revisão técnica de Dora F. Silva. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda, p. 37. Nesta pesquisa, esta afirmação
de Jung reúne a um só tempo minhas reflexões sobre a interpretação das obras dos artistas, que explicitei
anteriormente, bem como define, no interior de minha prática docente, as percepções da linguagem das
crianças para o mundo.
122
infelizmente os filmes da Walt Disney têm influenciado muito a imagem que as crianças
têm da Bela Adormecida e da bruxa, da Branca de Neve, do Pequeno Polegar, e assim a
criança não tem espaço para criar as suas próprias imagens”.25 Apesar destas imagens,
vindas da cultura popular, terem se unido à figura do Gigante, não vejo problema algum
nisto. Considero que as crianças fizeram um caminho semelhante, que nós adultos
fazemos, quando estamos diante de uma pintura ou de um monumento em um museu.
Muito diferente seria se, antes de imaginarem e criarem as suas hipóteses, as crianças
recebessem uma informação visual, perdendo a fase de reconhecimento das imagens de
seus universos. Poderíamos afirmar, em contrapartida, que a figura de um Gigante não é
tão conhecida como os personagens citados pela autora, o que o afastaria do apelo das
imagens da cultura popular, trazendo à tona um processo interno que não restringe a
imagem, mas que desperta a riqueza de outras imagens. De algum modo, os
pensamentos são entrelaçados às imagens, independentemente se elas são conhecidas.
Imagens não pedem licença, não pedem permissão, porque imagens significam vida e
porque têm uma dinâmica própria de acontecimento. Ou elas são acolhidas ou elas são
mortas desde o início.
Ao representarem o personagem em seus desenhos, eu me perguntava ainda se
não estaria ocorrendo um direcionamento das criações das crianças com as propostas das
aulas. Entretanto, os seus desenhos traziam elementos e conteúdos diferentes daqueles
apresentados. É o caso, por exemplo, do desenho do Gabriel, em que o Seu Gigante é
representado lutando contra um vampiro. Do que me recordo, sequer havia mencionado
um vampiro em nossas aulas. A escolha por este vampiro e esta luta travada com o
gigante é uma imagem da criança, mesmo que o pretexto para que ela ocorresse tivesse
sido lançado por mim ou tivesse nascido em mim. Portanto, o desenho do Gabriel revela
uma imagem pessoal, que pôde ser criada através da transformação de uma imagem
externa a ele. A minha imagem dialogou com as imagens das crianças. E neste sentido, a
imagem não se perdeu, mas pôde se ampliar em diferentes perspectivas, significados e
interpretações.
Em outro desenho, este mesmo processo de transformação fica mais evidente. O
Rafael também faz uma representação do Gigante, mas de um Gigante com catapora
(segundo o que a própria criança relatou). Sabemos que apenas as crianças têm catapora.
A partir da imagem e desta constatação, podemos supor o quão impressionantes devem ter
sido para o Rafael as pintinhas vermelhas causadas pela doença, de tal maneira que elas
surgissem em seu próprio desenho. Algo se colou à imagem do Gigante. E este é um
processo inteiramente da criança, que está em um profundo diálogo com todas as coisas e
com todas as pessoas ao seu redor; o que confirma a assertiva de Jung citada acima. Não
25 Encontros de psicologia analítica / Maria Elci Barbosa Spaccaquerche (org.), - São Paulo: Paulus, 2010.
– Bonaventure, Jette. Por que os Contos Populares falam a todos?, p. 26.
123
houve intervenções ou falas que direcionassem a aparição e o acontecer destas imagens.
Não houve censuras ou quaisquer proibições. As crianças estavam livres, até mesmo para
serem autobiográficas.
E proponho assim uma resposta para a pergunta que eu mesmo formulei no início
deste texto, uma vez que não necessariamente o autobiográfico advém de uma proposta
autobiográfica. Se os alunos podem dizer e contar sobre si mesmos, eles estão sendo
autobiográficos e estão em sintonia com os seus universos e conteúdos mais primordiais.
Esta é, porém, uma noção refinada do autobiográfico. E é fundamental porque, a meu ver,
dimensiona a linguagem mesma do que seria um trabalho autobiográfico, que é dizer de si
dialogando com o mundo. Vou mais adiante, afirmando que todas as representações do
Gigante feitas pelas crianças foram autobiográficas, porque eram, em princípio,
projeções26.
Entretanto, em diferentes situações, pude presenciar leituras e interpretações para
o Seu Gigante. Na maioria das vezes, as crianças o liam de uma maneira completamente
oposta dos adultos. É preciso dizer que as minhas interpretações estavam imersas nas
leituras feitas pelas crianças, com as quais eu compartilhava, de certa maneira, o mesmo
nível de sentido da imagem. Enquanto as crianças compreendiam o Gigante como um
amigo invisível e que morava em um castelo, os adultos o faziam de um modo bastante
compreensível, senão equivocado. Para explicar sobre o que estou tratando, em outra aula,
pedi, com a minha inexperiência, que as crianças desenhassem o que havia dentro delas,
26 “Projeção significa a expulsão de um conteúdo subjetivo para um objeto; é o oposto de introjeção. Nesse
sentido, é um projeto de dissimilação (v. assimilação) por meio do qual um conteúdo subjetivo se torna
alienado do sujeito e, por assim dizer, é incorporado ao objeto. O sujeito se livra de conteúdos dolorosos,
incompatíveis, ao projetá-los, assim como de valores positivos que, por um motivo ou outro – por exemplo,
a autodepreciação – lhe são inacessíveis. A projeção resulta da identidade arcaica entre sujeito e objeto, mas
só é corretamente chamada dessa maneira quando a necessidade de dissolver a identidade com o objeto já se
manifestou. Essa necessidade aparece quando a identidade se torna um fator de perturbação, quer dizer,
quando a ausência do conteúdo projetado é um obstáculo à adaptação, e o recolhimento para dentro do
sujeito se torna desejável.” (JUNG, Carl G.. Obras Completas de C. G. Jung, vol. 6.)
124
que fizessem uma imagem do “mundo interior”... Eu esperava que desenhassem os seus
personagens preferidos ou aquilo que as motivava, como princesas, príncipes,
personagens de desenhos animados da televisão, brinquedos, etc. Havia uma gama
ilimitada de imagens que poderiam ocorrer. Estas imagens também aconteceram.
Chamou-me atenção, no entanto, o desenho do eufórico João Pedro, em que garatujas e
riscos não formavam qualquer imagem. Eu conhecia os seus outros desenhos, sabia que
ele era capaz de formar imagens, levando-me então a questionar: “O que você fez, João
Pedro?” Ele respondeu: “Aqui é o coração, tem sangue aqui, osso, mais sangue e muita
veia!” Certamente, o desenho do João Pedro não estava errado. Ele desenhou o que havia
compreendido do enunciado da proposta. Não foi um desenho inocente ou equivocado,
mas um desenho dentro dos limites de compreensão da criança.
Apesar de inventar histórias, propondo diferentes significados para os seus
trabalhos ou para as obras de arte, quando estão diante delas, a criança fica sensibilizada
com a imagem completa. Imagem esta que constrói todo o sentido.
“Pecamos contra a imaginação sempre que perguntamos a uma
imagem por seu significado, o que requer que as imagens sejam
traduzidas em conceitos. A cobra enrolada numa esquina não pode
ser traduzida em meu medo, minha sexualidade ou meu complexo
materno sem matar a cobra. Não ouvimos música, tocamos em
esculturas ou lemos histórias com uma preocupação com sentido
na cabeça; mas pela imaginação.”27
O João Pedro desenhou o seu mundo interior da mesma forma com que as
crianças acolheram o Gigante. Não devia ter sido diferente, uma vez que a sua imagem
também me apareceu assim: um homem muito alto e medieval! A interpretação das
crianças me comove, porque ao mesmo tempo em que a Arte é salva por elas, elas
também de algum modo me retiram de uma leitura racional do mundo e mais restrita da
própria imaginação. Este é, portanto, o essencial de nossa fala com as crianças. Essencial
que nos separa do universo de nossas questões, como adultos, ao nos desafiar a ocupar o
lugar da poesia de todas as coisas, que apenas as crianças são capazes de ter, sem mesmo
estarem na escola. Compreendo assim que histórias, frases, palavras, personagens e
imagens são como fôrmas à espera do cobre.28
27 HILLMAN, James. Re-Vendo a Psicologia. Traduzido por Gustavo Barcellos. Editora Vozes Ltda, Rio de
Janeiro, 2010, p. 109. 28 “Precisamos resgatar o aspecto anjo das palavras, reconhecendo as palavras como independentes
portadoras de alma entre as pessoas. Precisamos lembrar que nós não inventamos palavras simplesmente, ou
as aprendemos na escola, e que jamais as temos sob nosso total controle. Palavras, assim como anjos, são
forças que têm força invisível sobre nós. Elas são presenças pessoais que têm mitologias: gênero,
genealogias (etimologias com relação à origem e criação), história e moda; e sua própria defesa, blasfêmia,
125
Diante do desconhecido, da imaginação e da linguagem, que as crianças nos
impõem a enfrentar o mundo, creio que somente a poesia pode nos dizer:
“(...) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis
nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o
Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais
importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar
medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas
pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos
motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas
medidas. Porém não sei se é um defeito do olho ou da razão. Se é
defeito da alma ou do corpo.(...)” 29
É a liberdade que deve nos guiar diante da linguagem com a criança, assim como
é a liberdade que deve nos guiar na arte, com as nossas próprias imagens e com as
imagens do mundo. Nenhuma interpretação é suficientemente boa para definir uma
existência, nem mesmo é capaz de abraçar a totalidade da alma humana. Uma das poucas
certezas que nós temos é que as crianças esperam ser elas mesmas. Sempre!
Como professores, nós somos pescadores de palavras, de sentimentos, de ações,
que buscam no outro – do desconhecido – a linguagem que estabeleça o que cada criança
é.
O outro é aquele que espera, a seu modo e a seu tempo, cantar e dançar a sua
própria música.
criatividade e efeitos aniquilantes. Pois as palavras são pessoas.” (HILLMAN, James. Re-Vendo a
Psicologia. Traduzido por Gustavo Barcellos. Editora Vozes Ltda, Rio de Janeiro, 2010, p. 55.)
29 BARROS, Manoel. Memórias Inventadas – A Segunda Infância, Editora Planeta do Brasil, São Paulo,
2006.
129
Minha lembrança mais antiga relacionada à minha atividade
artística é uma coisa de infância. Foi quando eu consegui
desenhar umas fileiras de bandeirinhas cruzadas no ar, com se
fossem uma perspectiva. Conseguir passar esta noção visual com
cinco anos me deixou muito espantado. Foi uma descoberta.
(Tuneu – Tuneu, Tarsila e outros mestres..., Ana Angélica
Albano)
Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida, diria que é
a biblioteca de meu pai”, Borges diria em seu Ensaio
autobiográfico. Com efeito, ele viria a considerar essa biblioteca
uma metáfora do solipsismo que o afligiu durante a maior parte
de sua vida.
(Borges Uma Vida, Edwin Williamson)
131
O PENÉLOPE
Uma vez que o desconhecido, as ações invisíveis, as palavras não ditas,
acompanham o desenvolvimento de uma aula, quando o professor reconhece estes
mesmos lugares, está formado o espaço necessário para as crianças criarem e expressarem
as suas ideias, as suas palavras, as suas compreensões de mundo e os seus gestos.
Pensando neste desconhecido que sobrevoa, paira e determina a nossa prática
docente, inventei uma narrativa, na qual o personagem Gigante faria uma viagem pelo
mar.
Na história, o Gigante, por um motivo ou outro, estava sem a sua própria
embarcação, o que o obrigou a construir um barco. No entanto, o material disponível era
jornal – que era, por sua vez, o único material disponível para esta aula. Sem alternativa, o
Gigante então construiu o seu barco com jornal, que, ao ser lançado no mar, acabou sendo
engolido pelas águas. Em uma segunda tentativa, entretanto, ele refez o barco ainda com o
mesmo material, desta outra vez assoprando palavras mágicas na embarcação de papel.
Finalmente, depois do contratempo e das alternativas encontradas, o Gigante pôde iniciar
a sua viagem.
Para esta aula, junto do jornal, que era o material “mais diferente” e “mais farto”
que havia na escola, levei também um tecido, que seria usado como tapete. Desde o início
da aula, entretanto, as crianças ficaram intrigadas. Elas mexiam, viravam, dobravam,
levantavam o tecido, em vez de ouvirem atentamente a narrativa construída por mim.
Imagino que, para as crianças, qualquer mudança no espaço da sala de aula mobiliza
ideias, percepções e novas sensações, que as levam, por sua vez, a um estado também
criativo.
Ao terminar de narrar a história, ouvindo as “exigências” das crianças e a minha
própria intuição, deixei que brincassem com o que elas mesmas descobriram sozinhas.
Com a minha autorização e com a minha participação, a brincadeira se instalou. E o tapete
se transformou em ondas do mar e o dentro do mar, de onde surgiram os golfinhos, os
peixes e os tubarões... Imagens construídas durante a brincadeira.
Como uma aula não depende de nossa própria dinâmica, mas da dinâmica com
que as crianças determinam a aula, a liberdade presenciada com esta brincadeira trouxe
para a proposta o mais essencial que podemos vivenciar com as crianças. É a brincadeira
pura simplesmente acontecendo. É a brincadeira próxima daquilo que elas simplesmente
vivem quando estão juntas na rua ou no quintal. Não há muitos segredos. Mas alcançar
esta dinâmica e confabular no interior dela é mesmo um segredo sem passos e trilhas para
132
ser repetido. Quando a brincadeira se instala, a ação transforma a aula e nos transforma,
professores e alunos, revelando mais sobre as crianças e mesmo de nossa capacidade para
estar com elas.
Nesta aula com o tecido, havia uma liberdade não verbalizada, que permitiu que
as crianças fossem elas mesmas. Elas foram acolhidas. Caso contrário, a narrativa teria
sido tão enfadonha quanto o restante da aula. Ainda na aula, propus às crianças que
construíssem barcos de jornal e, nele, assoprassem as suas palavras mágicas.
Diferentes momentos da aula: a narrativa da história, a descoberta do material e a transformação do mesmo
em um objeto de construção da própria aula, a instalação da brincadeira, com a participação e a autorização
do professor. Na página seguinte, imagens das crianças realizando os seus barcos e a finalização da aula.
133
Logo após esta aula, em que o tecido se transformou em mar, compreendi que,
para as crianças, o fazer arte podia estar associado ao brincar.
A partir desta constatação, comecei a procurar brincadeiras que estivessem
próximas do universo delas, mas que fossem brincadeiras vividas longe dos adultos. Veio-
me a ideia dos esconderijos secretos. Recordei-me de minhas próprias brincadeiras. Entre
elas, os esconderijos pareceram ser os momentos mais lúdicos, em que eu me colocava em
outro estado, em um lugar de fantasia, bem próximo do vivido com a criação.
Para confirmar estas ideias, vieram-me outras, encontradas na biografia e nas
memórias do psicólogo Carl G. Jung. Através de sua autobiografia, “Memórias Sonhos
Reflexões”, entendi que as brincadeiras de sua infância eram na maioria das vezes
brincadeiras solitárias, em que o mundo interior fazia os seus desenhos, propondo
perguntas e questões ao pequeno Jung.
“O menino Jung era religioso, ou melhor, no mito de Jung toda
criança é religiosa e vive, em longa extensão, mergulhada no
eterno. Para ele, na tarefa de construirmos um ego, todos nós
fomos separados de uma totalidade, de uma unidade. Assim,
134
religioso já era o menino Jung, um garoto solitário, que gostava de
brincar com fogo e nessa brincadeira de criança, na forma como
ele a fazia, era uma vivência do sagrado. Era sua atividade
predileta e durou dos setes aos nove anos.”30
Partindo das narrativas do próprio Jung, ao lado destas questões, que surgiram
com a aula do Gigante com o seu barco de papel, pedi que as crianças narrassem as
brincadeiras de que mais gostavam. As respostas foram as mais diversas possíveis.
Provoquei mais questionamentos, até que as brincadeiras com os esconderijos surgiram. A
maioria dos alunos contou e descreveu os seus esconderijos.
Usando o mesmo tecido da aula anterior, montamos um esconderijo dentro de
sala de aula e as crianças desenharam os seus próprios esconderijos brincando.
30 Encontros de psicologia analítica / Maria Elci Barbosa Spaccaquerche (org.), - São Paulo: Paulus, 2010. –
BEZINELLI, João. Jung e Sagrado, p. 55. Palestra proferida em outubro de 2002.
135
Em minhas memórias, as brincadeiras tinham um sabor diferente quando vividas
sozinhas. Eram sim algo muito teatral. E também muito secretas. Ao contrário de muitas
crianças, eu não tive um amigo invisível, mas vivi secretamente muitos personagens.
Lembro-me das fantasias, dos diálogos criados e da imitação. Existem muitas confusões
feitas neste lugar. A brincadeira sempre será brincadeira. E é bom que as crianças se
fantasiem, que se vistam com a camisa do papai, com o salto alto da mamãe e com a
peruca velha da vovó...
Acredito que estas manifestações integram traços da personalidade, são
processos construtivos e às crianças revelam que podem crescer e serem o que sonham.
Entre outros exemplos, escolhi trechos das memórias de três grandes pensadores,
nos quais a brincadeira fortalece a ideia de que a criança está construindo – na miniatura
da brincadeira – o seu próprio universo futuro, mesmo que isto seja um processo
inconsciente. Selecionei três exemplos, nos quais as profissões futuras se anunciavam por
meio das brincadeiras. O primeiro deles, trata-se do próprio Jung, o segundo de Santa
Teresa d’Ávila e o terceiro de J.L. Moreno.
“De vez em quando, com intervalos de semanas e unicamente
quando estava certo de que ninguém poderia me ver, subia às
escondidas até o sótão. Lá, junto às vigas, abria o estojo e
contemplava o homenzinho e sua pedra. Colocava então junto a
ele um rolinho de papel no qual escrevera antes, durante as aulas,
algumas palavras numa caligrafia secreta que inventara. Eram tiras
de papel, cobertas de uma escrita compacta, que eu enrolava e
entregava à guarda de um homenzinho. Lembro-me que o ato de
incorporação de cada novo rolinho tinha sempre o caráter de um
ato solene. Infelizmente não posso lembrar-me do que pretendia
comunicar ao homenzinho. Sei apenas que minhas “cartas”
significavam uma espécie de biblioteca para ele.”
136
(Memórias, Sonhos, Reflexões, Jung, Carl G., tradução de Dora Ferreira da
Silva, p.33 – São Paulo, Editora Nova Fronteira, 1975)
“Depois que vi que era impossível ir aonde nos matassem por
causa de Deus, planejávamos ser ermitãos. E numa horta que
havia nessa casa tentávamos, como podíamos, fazer ermidas,
erguendo umas pedrinhas, que logo caíam e assim não
encontrávamos remédio em nada para nosso desejo. (...) Gostava
muito, quando brincava com outras meninas, de brincar de
mosteiros, como se fôssemos monjas. E eu, parece-me, desejava
ser, ainda que não tanto quanto as coisas que disse.”
(Livro da Vida/ d’Ávila, Santa Teresa; tradução e notas de Marcelo Musa
Cavallari, p.39 – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010)
“Quando eu tinha quatro anos e meio, meus pais viviam numa
casa às margens do rio Danúbio. Num domingo saíram para fazer
uma visita, deixando-me sozinho no porão de casa com alguns
filhos dos vizinhos. O tamanho desse porão era cerca de três vezes
maior que o de um quarto normal. Estava vazio, com exceção de
uma grande mesa de carvalho colocada no centro. As crianças
propuseram: “Vamos brincar”. Um deles perguntou: “De quê?”
“Já sei, – disse eu – vamos brincar de Deus com os anjos”. As
crianças indagaram: “Mas quem é Deus?” E eu respondi: “Eu sou
Deus e vocês são os meus anjos”. Uma delas declarou: “Primeiro
devemos construir o céu”. Arrastamos todas as cadeiras que havia
nos vários quartos e salas da casa para o porão, colocamo-las
sobre a grande mesa e começamos construindo um céu após o
outro, atando várias cadeiras umas às outras num nível e pondo
mais cadeiras em cima daquelas, até alcançarmos o teto.”
(Psicodrama/ Moreno, J.L; tradução de Álvaro Cabral, p.51 – São Paulo,
Editora Cultrix, 2010)
Não podemos concluir nada sobre o futuro das crianças que desenharam as suas
imagens em nossas aulas. Apenas podemos acolher os seus desenhos como expressões do
momento que viviam. Nem toda brincadeira se torna vocação, nem todo desenho é um
presságio... Mas podemos incentivar o desenho, para que ele seja um caminho que
137
sustente ou que abra a imaginação para uma personalidade criativa. Um lugar para que a
criança se sinta livre para criar a si mesma, contando as suas memórias, as suas histórias e
fazendo as suas premonições. Nada é exatamente certo que não possa ser transformado...
Como professor, eu estou sempre à espreita dos desenhos que falam acima do conhecido.
Estou à espreita dos desenhos que podem predizer, que podem mostrar além do óbvio e do
comum. No entanto, estas são expectativas passageiras. Sabemos que, para as crianças, o
desenhar é semelhante ao brincar. Elas desenham brincando... Brincam desenhando...
Em todo caso, nestes três exemplos que citei, fica evidente a ação da brincadeira
sobre as personalidades e o ato de significar, através do recurso das memórias, que
elaborou e fortaleceu o que estas pessoas se tornaram. Em Jung, o boneco de madeira,
segundo as minhas ideias, estabelece o processo duplo presente no espaço da análise – do
paciente e do terapeuta –, enquanto em Santa Teresa propõe que desde cedo a sua
personalidade “previa” a reformadora de mosteiros que mais tarde se transformaria, como
também ocorre em Moreno, o qual afirma que a brincadeira da infância, em que ele se
passava por Deus, marcou o nascimento da teoria do Psicodrama. Estas aproximações são
feitas pelas memórias do adulto, em face de suas profissões ou das vocações já
amadurecidas. Quando as crianças desenham sequer imaginam o que irá acontecer. É um
ato momentâneo, que faz sentido na hora em que ganha vida. Não é um ato para o depois,
nem mesmo um ato para ser especificamente lembrado.
Ao trazer o Gigante para as minhas aulas, penso sobre qual teria sido a imagem
vivida que o provocou. Afirmo que esta imagem é o resultado de um processo de
formação, de um processo na arte, que se realizou na união do autobiográfico com o
trabalho. Se em meus desenhos havia um desejo pelo confessional, na educação, este
desejo se mostrou desta forma. Vejo que o autobiográfico determinou muitas de minhas
propostas em sala de aula: o Gigante, por comportar todas aquelas imagens bastante
expostas no capítulo anterior, assim como as outras imagens que apareceram no decorrer
da prática docente.
Voltando à questão das representações do Gigante feitas pelas crianças e ao fato
de revelarem em suas imagens elementos pessoais, vejo em meu próprio processo de
criação algo semelhante. Muitas vezes, ainda estudante de artes plásticas, eu fazia um
movimento parecido ao das crianças quando lia as biografias dos artistas. Antes do
Gigante, houve muitos gigantes! Só agora começo a entender que ao entrar em contato
com determinada obra ou com a vida de determinado artista, eu costumava imprimir neles
elementos também pessoais. Fosse isto uma vontade de me tornar igual, fosse isto um
desejo de aproximação, não importa. Importa é que podemos fazer estas impressões, ao
mesmo tempo em que estamos construindo ou escrevendo a nossa própria história.
Criando, desenhando, eu costumava beber drinks com Francis Bacon nos pubs ingleses,
desenhar com Mira Schendel em sua mesa de jantar, ver as pinturas de Jean-François
138
Millet ao lado de Van Gogh e adoecer junto de Leonilson, que, no decorrer de meu
processo, deixou de ser meu artista preferido.
O perigo destas aproximações, no entanto, é não conseguir atravessá-las e
não mais se encontrar... Fato é que para o artista vida e obra se confundem. Não há
separações. Porém, mesmo na escrita torta que estas aproximações criam, ainda sim elas
fazem algum sentido, inconsciente ou não. Nada é por acaso. Pensando nestas filiações ou
inspirações de outros sobre nós mesmos, observo também que isto não só ocorre com os
artistas ou com os escritores, mas com qualquer pessoa. Às vezes, quando crianças, somos
levados por alguma característica em um outro, que nos diz imensamente, convergindo as
nossas próprias buscas e o caminho das escolhas de nossa vida.
Tenho em minhas lembranças uma pintura de Charlie Chaplin estendida sobre a
parede de um quarto. Esta imagem foi decisiva para guiar os meus desejos e focalizar as
minhas energias, ainda que eu não conhecesse “Tempos modernos” ou “O Grande
Ditador”. Tudo o que fiz desde quando conheci aquela imagem e o contexto de sonhos
que ela evocava, desembocou em tudo o que sou e o que não sou hoje... Fato é que as
crianças imaginam e vão criando o seu mundo a partir destes encontros. Tudo é muito
secreto e sequer verbalizado, porque é antes de tudo um processo interior. Quem está de
fora não vê, por se tratar de uma escolha inconsciente, muitas vezes vinculada ao processo
de individuação de cada sujeito. Algo nos leva a estas imagens. Imagens que são
miragens, que somente irão se descortinar bem mais tarde, para nos tornarmos quem
realmente somos.
As imagens criadas pelas crianças para o Gigante também se uniram a
mim. As projeções acontecem todos os dias na escola e em todas as nossas aulas.
Algumas projeções são boas outras são ruins. Em termos de projeções, é o desconhecido
que está agindo. E neste lugar não há como fincar barreiras. Não sei o que as crianças
fizeram do Gigante ou se elas, um dia, o retomarão. Apenas sei que sua imagem provocou
e despertou outras imagens, que eram da ordem do pessoal e do intransferível de cada
criança. Não desejo que as crianças repitam o Gigante, mas espero que possam fazer de si
mesmas o cerne que fundamentou as características monumentais do personagem.
Seguindo este contexto das minhas memórias que criaram motivos para as
nossas aulas, há outro personagem, entre a realidade e a ficção. Trata-se de Nikia, uma
japonesinha.
139
MAR DO JAPÃO31
Em 2011, eu desenvolvi uma série de aulas, em que apresentei às crianças contos
indígenas e mitos sobre o nascimento do mundo. Entre um deles, o mito esquimó que citei
anteriormente, para discutir a relação das crianças com as imagens na escola. Através das
histórias e das narrativas, eu procurava compreender de que forma a criança sintoniza o
seu universo com outros contextos e como dimensiona o tempo e o espaço. Em uma das
aulas, quando falamos sobre alguns países, as crianças imediatamente se lembraram da
destruição no Japão, ocasionada por um terremoto no primeiro semestre de 2011. Elas o
nomearam de “o país que fica do outro lado do mundo”. Imagem que acabou por
responder as minhas perguntas.
Durante estas aulas, entretanto, fui me recordando de cartas remotas vindas do
Japão, que chegavam a minha casa, quando eu devia ter mais ou menos 8- 9 anos. Eram
cartas endereçadas a uma tia. Lembrei-me dos envelopes e dos selos, do papel-arroz em
que as cartas eram escritas, das fotografias e da caligrafia. Estas memórias estavam
totalmente imersas e esquecidas. A partir destas lembranças, vinculei as imagens das
cartas à imagem do terremoto, relatadas pelas crianças, para assim criar outra proposta de
aula. Foi quando que surgiu a personagem Nikia, que associei à lenda japonesa dos mil
tsurus e à menina que teria feito os passarinhos em origami, depois de sofrer as radiações
provocadas pela bomba atômica na Segunda Guerra Mundial.
Com a proposta definida, cada turma recebeu uma carta da menina, que chamei
de Nikia Hokusai, fazendo uma alegoria ao gravurista também japonês de mesmo nome,
Hokusai. Na carta, Nikia narrava o terremoto, as consequências da destruição e também o
desaparecimento de seu gatinho de estimação, o Araka. Ao explicar a lenda dos tsurus às
crianças, eu propus que fizéssemos os mil passarinhos em dobradura, para ajudarmos
Nikia, para que ela pudesse ter a sua casa e reencontrar o gato. Este foi um projeto que
abrangeu todas as turmas de primeiro ano, nas quais eu lecionava.
31 Os títulos deste capítulo pertencem às obras do artista José Leonilson.
140
No desenvolvimento do projeto, procurei não focalizar o assunto da destruição,
mas preferi mostrar às crianças as muitas criações que a carta recebida propunha para
nossas aulas. Imaginei, primeiramente, que o processo de montagem das dobraduras, dos
origamis, seria difícil para as crianças. Em todo caso, eu acreditava que o envolvimento
delas seria suficiente para transpor as dificuldades. 32
32 Acreditava também que as professoras ficariam motivadas com o projeto, uma vez que nos ajudariam no
passo a passo das dobraduras. No entanto, uma ou duas delas estiveram presentes em sala de aula. Tentei
141
Apesar da construção difícil dos origamis, outra vez eu me questionava se estaria
direcionando a criação das crianças. Tratava-se de um fazer em que elas não criariam as
suas próprias imagens, mas repetiriam gestos e passos muito definidos. No entanto,
quando terminamos a montagem dos passarinhos, que exigiram três a cinco aulas, as
crianças então deixaram as suas marcas nas dobraduras, ao desenharem, pintarem e neles
escreverem. Nas imagens destes tsurus que receberam intervenções das crianças, percebo
que, ao registrarem as suas marcas pessoais, elas me mostravam o único espaço, por vezes
delimitado, que tiveram para si mesmas. E esta tem sido uma questão que vem me
acompanhando desde a primeira aula.
Não sabemos quando ou onde as nossas ações limitarão as criações dos alunos.
Muitas vezes, ao entregar total autonomia às crianças, elas não conseguem ultrapassar as
imagens padronizadas, que sempre retornam aos seus desenhos. Em propostas fechadas,
por sua vez, as crianças sentem a necessidade de ir além. Este é um mecanismo um tanto
imprevisível, mas é bom que o professor esteja livre da proposta e dos materiais, a ponto
de esperar por estes “acidentes”. A criança pode rasgar, recortar, furar, interferir,
destruir... Ao professor cabe estar atento para não criar barreiras, estando aberto para os
trabalhos que pedem um recomeço ou então que demandem novos percursos na proposta
original.
recorrer às outras professoras de arte da escola, que ao ouvirem minha exposição sobre o projeto, nem mesmo
o questionaram. Foi então um projeto apenas nosso.
142
Com os origamis finalizados, um elemento que queria trabalhar com as crianças
era a imagem do gato e, junto a isso, desenvolver brevemente a visão dos adultos sobre a
relação que as crianças têm com a morte e com a vida. Assim como as cartas, a Nikia
também enviou uma imagem do seu gato para as turmas. A sua pintura ficou exposta em
algumas salas, principalmente naquelas em que eu senti uma empatia maior dos alunos
pela imagem. Com esta imagem, novamente pedi uma tarefa direcionada aos alunos:
faríamos flores em homenagem ao gato. O Araka estava morto, mas a Nikia imaginava
que o mesmo estivesse desaparecido. Confidenciei isto às crianças, dizendo que este seria
um segredo, pois a Nikia não poderia saber, em hipótese alguma, que o gato havia
morrido no terremoto.
143
A minha intenção era mostrar que geralmente nós adultos não contamos tudo às
crianças e que, de algum modo, isto provoca muitas fantasias, já que elas precisam
preencher as suas dúvidas, os seus medos e anseios, com ideias às vezes bastante
equivocadas. De fato, todas as questões essenciais de nossa existência – desde a existência
de Deus, da vida após a morte, à sexualidade – nunca são discutidas abertamente com as
crianças. Há um receio em dizer a verdade, mas também uma dificuldade do adulto em
lidar com temas e afetos muitas vezes dolorosos e complicados, que trazem mais
perguntas do que respostas. Entretanto, eu sentia que a destruição e a morte não deveriam
ser aprofundadas diferentemente da maneira como foram abordadas33.
Continuando o projeto dos Tsurus, em uma de nossas aulas, também propus a
criação de bilhetes, que seriam enviados para o outro lado do mundo através de
barquinhos de papel, também em dobradura. Algo muito simples, feito com materiais que
podemos encontrar em qualquer aula de arte. O que diferenciava os barcos – feitos de
papel crepom e cartolina – eram os bilhetes e a intenção neles criados. Nota-se que as
crianças não questionavam estas ações – “está certo enviar um barco de papel pelo
oceano, seria a forma mais correta?” –, ao contrário, elas aceitavam a proposta com
poucas perguntas. Esta possibilidade de enviar um barco de papel pelo oceano, sem
questionamentos, acredito que tem a ver com o mundo impreciso das brincadeiras, no
qual as probabilidades são tão reais, ao passo que a realidade não significa exatamente um
obstáculo. Tanto que, neste jogo entre a realidade e a criação, um dos alunos me pediu
para ajudá-lo com a escrita de uma carta, que seria então enviada para um programa de
TV, em que as pessoas enviam cartas para ganhar uma casa. Observo assim uma
identificação desta criança com a personagem Nikia e penso sobre a potência do “fazer
acontecer” que as nossas aulas propuseram. Nos bilhetes feitos pelas crianças, encontrei
desde papeis se passando por dinheiro – certamente ela precisaria para a reconstrução de
sua casa – a mensagens de paz e de boa sorte.
33 Vejo a minha própria dificuldade em tratar do que eu mesmo me propus com estes temas. Algo
semelhante ocorreu em aulas em que levei imagens de obras. Com as crianças, muitas das certezas que o
discurso da história e da teoria da arte me proporcionaram anteriormente, para a leitura e a interpretação,
perderam sentido. Fui obrigado, pelas circunstâncias e pela “falta de cerimônias” das crianças, a avaliar e
repensar sobre muitas das obras que eu julgava conhecer.
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Bilhetes e barquinho construídos pelas crianças.
Para finalizar, construímos uma espécie de instalação, em que a imagem do gato
se tornava o porto das flores criadas, ao lado dos barcos com os bilhetes e dos tsurus. Com
os trabalhos todos reunidos, enviaríamos uma foto para a Nikia. Fizemos desta forma, mas
deixei que a resposta de Nikia chegasse somente nos últimos dias de aula.
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Conforme o meu planejamento, a resposta chegou. Não era uma carta escrita,
mas sim uma gravação em áudio, na qual Nikia dizia que estava feliz, por ter conseguido
146
a sua casa, sendo esta casa localizada ao lado de um ateliê de arte (algumas turmas que
receberam a gravação tiveram ateliês criados em sala de aula).
Para a gravação, entendia que a voz deveria pertencer a alguém que não havia
acompanhado o processo das aulas, mantendo um distanciamento necessário, para assim
demarcar o desconhecido existente entre destinatário e remetente. A pessoa, além de ter o
domínio do idioma e o registro de voz próximo das crianças, apesar do requisito de
distanciamento, deveria conhecê-las minimamente ou então saber atuar. A minha
preocupação era que a atuação não fosse convincente, uma vez que a voz de um adulto se
passando pela voz de uma criança de seis anos poderia cair no estereótipo – lembrando
que uma voz gravada sempre fica estranha ou mais grave no gravador.
Com a ajuda de uma amiga, que aceitou o meu convite, começamos a conversar
sobre a gravação – ela era a pessoa perfeita, primeiro porque era radicada no Brasil,
conhecia o idioma, e, segundo, porque também estava envolvida tanto com educação
quanto com crianças. Pedi a esta amiga que imaginasse o contexto da menina Nikia, mas
não enfatizei as imagens da destruição causada pelo terremoto, nem pontuei a perda da
casa ou do gato. Eu queria que a atenção dela se voltasse para o agradecimento,
permitindo que a alegria viesse ao encontro das crianças. Isto poderia dar certo ou não,
mas era um risco que deveríamos correr. Chegamos à ideia de uma música como forma de
agradecimento. Neste ponto, a Peggy teria toda a liberdade para selecionar e criar a
música, definindo a melhor solução para a mensagem que tinha em mãos. Fizemos a
gravação, um tanto improvisada, mas o resultado foi excelente. A Peggy soube transmitir
a mensagem, expressando uma oposição de sentimentos: da gravidade dos japoneses –
que demarcou o distanciamento necessário – à alegria de uma música popular japonesa –
que narrava a perda de um gatinho.
Em sala de aula, retomei a história de Nikia, sabendo da distância com a primeira
proposta. Mostrei a nova correspondência, esclarecendo que era uma gravação da própria
Nikia, o que despertou imediatamente a atenção das crianças. Caso fosse uma carta como
a outra, dificilmente elas acolheriam a mensagem recebida e a aula ficaria perdida entre
tantas outras. A minha voz não chegaria às crianças, lembrando que estávamos nos
últimos dias de aula – quando elas e todos na escola estão muito mais preocupados com as
férias. A gravação foi ouvida e, em seguida, fiz a tradução da mensagem, enquanto a
reescrevia em japonês na lousa. Antes disso, eu notara que as crianças têm o hábito de
copiar tudo o que o professor faz na lousa, mesmo que seja uma simples anotação – estas
anotações foram copiadas pelas crianças, como podemos observar nos desenhos em
seguida. Neste caso, eu queria provocar, ao lado do som intrigante e curioso da gravação,
o estranhamento por outro alfabeto. Era também, de certo modo, uma provocação e um
questionamento indireto às professoras e à escola. Diante de outro alfabeto somos
totalmente leigos. Não há nem mesmo um signo que possamos entender ou nos sustentar
147
– é assim que as crianças enxergam inicialmente tudo. E era isto acontecendo que eu
desejava que as professoras vissem, de modo que entendessem que até o aprender ler e
escrever pode passar pelo prisma do desconhecido e lançar uma semente à curiosidade
pela busca de conhecimento.
Não dirigi o que as crianças fariam depois disto tudo. Elas simplesmente
desenhariam. E foi esta a proposta. Elas estavam livres. Enquanto desenhavam, repeti a
mensagem de Nikia, ao passo que as crianças também foram cantando e se envolvendo
com a gravação. Não previ que isto pudesse acontecer, uma vez que a gravação era
incompreensível em nosso idioma. Com o outro idioma não temos imagens
estabelecidas. As palavras são ouvidas, mas não são decodificadas. A criança recebe a
voz, que é intrigante, criando as suas imagens a partir de um som e da música
localizadas em um contexto... O jogo para o nascimento das imagens estava assim
construído.
153
De uma maneira semelhante, assim como ocorreu nas aulas com a personagem
Nikia, as crianças também questionavam sobre a existência do Gigante. “A minha mãe me
disse que gigantes não existem, eu estou achando que o senhor está mentindo...” Ao
contrário das respostas que elas supostamente deviam esperar – “Você tem razão, o
Gigante não existe e a Nikia também não!” – eu alimentava a dúvida, na crença de que
mais imagens e hipóteses seriam criadas. Para mim, não importava se as crianças tivessem
alguém em casa dizendo que tudo não passava de ilusão e de que se tratava de uma
história bem contada, mas via nestes acontecimentos o despertar da imaginação, que
muitas vezes vive entulhada pela razão dos adultos e pela realidade difícil das crianças.
Fazendo uma reflexão sobre estes personagens, entendo que eles exerceram,
além de mediadores de uma ação das propostas, a função de tornar visível a imaginação.
154
A imaginação foi solicitada a participar, concretizando-se na imagem dos trabalhos
realizados em aula. As crianças preencheram as imagens recebidas, como também foram
criando uma síntese intuitiva dos personagens.
Em certo aspecto, eu fui o mediador físico destas figuras, que só puderam ser
acessadas pelas crianças através do corpo do professor, da fisionomia do professor e da
voz do professor... Lugares estes atuantes, por representarem aos alunos características e
elementos psíquicos envolvidos com os personagens. Grande parte da autonomia que
ganharam se deve ao contexto criado para cada um deles. Contexto trazido pelas
referências das crianças e por mim mesmo. Houve nestes contextos, nestes enunciados, a
intenção séria de verdade. No caso do Gigante, a “prova” estaria em um presente, o
vidrinho com a asinha de uma borboleta, e neste projeto dos tsurus, as cartas trazem este
mesmo conceito de verdade. Ao lado destas provas, o tempo demarcado para as
circunstâncias envolvendo os personagens era sempre o passado: “Ontem à noite, um
amigo me ligou” ou “viemos morar aqui (no Japão) quando eu nasci... Vocês sabiam que
o meu país passou por um terremoto?”. Estas falas pronunciam um tempo para os
acontecimentos e, ao mesmo tempo, um passado para a vida dos personagens. Quer dizer,
eles existiam antes de nossas aulas ocorrerem. Deste modo, e apenas assim, os contextos
puderam ser imaginados. As imagens puderam se construir com os detalhes
circunstanciais e com a intenção de dar aparência real à situação imaginária.
Ainda pensando sobre estes juízos ou sentenças de real, gosto da ideia de que
aquele que escreve uma carta, mesmo que esta carta traga em seus enunciados uma ficção,
esta mesma ficção provoque uma transformação de quem a escreveu. O sujeito que
escreve assume a ficção escrita e trabalha em prol da mudança ou da transformação de si
mesmo. Pois, escrevendo, dando aula, criando as propostas, eu mesmo estava me
transformando e dialogando com as minhas questões e com os outros que encontrava pelo
caminho. Na carta da Nikia, algo que passa geralmente despercebido, porque apareça em
um segundo plano, é a figura do pai da menina. O pai foi aquele que transcreveu as
palavras da criança. Sua figura tem papel fundamental, uma vez que, se não fosse ele, a
carta nunca teria sido escrita. Em contrapartida, sua presença tem o sentido de tornar mais
dissolvido ou mais filtrado o Eu que escreve a carta. Não é o pai, não é a menina, mas
também não é o professor, e sim todos estes Outros quem escrevem... Há uma travessia
aqui do que seria o verdadeiro autor da carta. Os destinatários também entram nesta
dissolução, já que não é uma única pessoa que recebe a carta, mas várias crianças ao
mesmo tempo. E a foto que deve ser enviada ao país situado no outro lado do mundo, é a
figura de um pai que nunca aparece verdadeiramente, assim como também é o professor,
que desaparece nestes trânsitos de um eu para o outro.
A presença dos personagens nas aulas trouxe para mim a questão da autoria. Ou
mais atentamente a (des) construção de um eu que se ficcionaliza em diferentes autores. É
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nesta cisão entre o enunciado sério da verdade e a mentira ou a fraude em que posso
discutir a natureza da criação. Pensando bem, a mensagem ou os contextos que abordam
os enunciados é o que nos comove e não o que é dito de fato! O que inquieta é a
mensagem atrás das palavras, não é a mentira, não é a ficção... Em outro aspecto, o termo
“verdade” tem significado diverso na ficção ou na obra de arte. Com frequência, a
verdade é definida levando-se em consideração a sinceridade dos sentimentos subjetivos
do autor, ou a verossimilhança aos fatos de sua biografia, não a adequação àquilo que
aconteceu realmente, mas àquilo que poderia ter acontecido. Neste sentido, não se pode
aplicar à ficção critérios de veracidade. Não é possível acreditar que as obras de Machado
de Assis sejam leituras exatas da realidade. Elas anunciam algo acima do que descrevem.
E este algo não pode ser verificado no real, mesmo que o autor traduza o mundo
fielmente. Falso seria se percebêssemos nos personagens e nestas circunstâncias criadas
padrões dos contos da carochinha... Ao encontro desta questão, a meu ver, estes
personagens estavam próximos dos contos de fadas, mundo onde tudo pode acontecer,
desde um animal que fala e pensa a um monstro que surge do lugar mais profundo do mar.
Na ficção, não é a decepção provocada pela mentira e pela fraude que nos
incomoda. Tanto que há uma conivência demarcada entre os envolvidos no jogo. A
criança, nas aulas, era um parceiro da empresa lúdica, por participar da “não seriedade” do
“faz de conta”. Fernando Pessoa dizia: o poeta finge mesmo a dor que deveras sente. A
ficção, antes de tudo, é forma viva e beleza. As aulas caminharam da verdade para a não
verdade. Caminharam na zona intermediária do nascimento possível da poesia.
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