Notas sobre um “dizer humano” – fragmentos e reverberações na/da política dos afetos

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CLIMACOM CULTURA CIENTÍFICA ‐ PESQUISA, JORNALISMO E ARTE |

ANO 02 ‐ VOLUME 02

Notas sobre um “dizerhumano” – fragmentose reverberaçõesna/da política dosafetosDIZER‐INCERTO

Ao receber o convite para falar sobre “como problematizar o humanona relação com as mudanças climáticas”, não consegui mais parar depensar naquilo que me fez eco: como problematizar o humano… Foiessa a entrada ou a “jogada” que resolvi fazer no I Encontro da Sub‐Rede Divulgação Científica e Mudanças Climática, que aconteceudurante a exposição Aparições realizada no MIS‐Campinas.

Inicialmente, pensei em fazer uma apresentação mais formal, a partirdaquilo que tenho desenvolvido nos Grupos de Pesquisa e Laboratórioque coordeno[1]. Mas logo esse planejamento duro foi desfeito. Aomesmo tempo, percebi, quase intuitivamente, que o modo comoorganizo meus escritos e falas passa, necessariamente, por um estadode receptividade, que seria uma espécie de possibilidade política de serafetado por tudo aquilo que acontece no evento antes de minhaapresentação.

Permiti, portanto, a configuração de um estado de “agenciamento” emque o contato com as demais falas me puseram a dúvida, me puseram apensar que talvez eu estivesse incorrendo na armadilha de fazer umafala meramente informativa, um dizer‐informativo.

Então me permiti e resolvi compartilhar – ao invés de informar – aquiloque tem se configurado para nós, dos Grupos de Pesquisa Rasuras eGrafias, como afeto e como mobilização, e que vai desde os aspectosconceituais e metodológicos, mas que passa também pelos aspectos dasensibilidade em face de algo que denominamos: “a potência criativada linguagem na estética‐política das imagens”.

Dito de outro modo, tomamos o mundo como uma potência criadora e

criativa para suas – muitas – grafias e dizeres. Isso seria, por assim

dizer, tomar o humano como nos termos do poeta Manoel de Barros

(2013), o humano como “esticador de horizontes”. Nesse movimento,

tenho compreendido e incorporado dentro do meu lugar conceitual de

origem, a Geografia, a perspectiva que toma como possibilidade

analítica quaisquer obras da cultura, pois as entendemos como gestos

políticos de ação no mundo (VATTIMO, 1992), e que estão por realizar,

de alguma forma, uma “grafia” do espaço. Preocupa‐nos, portanto, o

dizer espacializado e, nem tanto, a ideia de um espaço que diz.

Nas palavras da geógrafa inglesa Doreen Massey, o modo como

imaginamos o espaço produz ou promove, por sua vez, uma imaginação

do político que lhe é correspondente. Em suas palavras, a imaginação

espacial “afeta o modo como entendemos a globalização, como

abordamos as cidades e desenvolvemos e praticamos um sentido de

lugar” (MASSEY, 2008, p. 15).

Nosso esforço de investigação diz respeito à tentativa de buscar

entender os desdobramentos dessa política do olhar que ora se constitui

diante daquilo que tem sido considerado como “as novas políticas da

espacialidade” (MASSEY, 2008). As chamadas “mudanças climáticas”,

por exemplo, é uma delas.

Mas antes, é importante destacar o quão revolucionário é, se

pensarmos numa ciência fortemente assentada no viés materialista e

economicista, cogitar algo nos termos de uma “imaginação espacial” e

seus desdobramentos na efetividade do político. Estamos, portanto,

diante de um cenário conceitual contemporâneo que toma a

efetividade da linguagem e da sensibilidade como mediadoras da

imaginação e da experiência (LYOTARD, 2013; PELLEJERO, 2009;

RANCIÈRE, 2009, 2014), ou seja, do nosso modo de nos colocarmos no

mundo e, ao mesmo tempo, constituí‐lo.

Dito isso, penso ser importante evidenciar, nos termos dessa nossa

aposta política, os “fragmentos e tempos incertos” que me foram

trazidos, antes mesmo do início do evento; quando ainda à caminho do

hotel, algumas memórias me vieram e me fizeram pensar em como os

“modos de dizer” agenciam pensamento, linguagem e sensibilidade.

Como um humano que diz, não poderia deixar de considerar tais

aspectos. Penso também que todos aqueles que ali estavam, na ocasião

do encontro da sub‐rede, de alguma maneira partilhavam do mesmo

gesto: o de inventar outros “modos de dizer e sentir”. E foi assim que

eu comecei a pensar no “humano”, como um…

Passar por estradas

Que nunca é, simplesmente,

Materialidade.

Há sempre

Um sorriso e uma lágrima

Que escapam

Que ficam no aqui

Apenas esperando

O tempo sublimado

E, paradoxalmente,

Uma chegada

Que é, também,  partida

Ou ainda…

…Um humano que não se contenta, um humano perenizado pelainquietude, a exemplo do que fala Gonçalo Tavares em diálogo comBachelard, quando diz que:

Descer ao porão é sonhar

Devemos olhar para a linguagem

Como se olha para um objecto – para umamesa, por exemplo

E ver, por vezes, a linguagem de baixo paracima

[…]

Observar depois um perfil da palavra

Depois outro;

Ver os sapatos da palavra e o seu chapéu

A sua nuca e o seu rosto.

Porque pensar

Também é mudar de posição relativamente

À própria linguagem.

Não olhar sempre da mesma maneira para aspalavras.

(Gonçalo Tavares, 2013)

 

DIZER‐SENSÍVEL

Interessa‐me, portanto, aquilo que escapa, que se configura como um

duplo que é e não é, que pode e não pode, ao mesmo tempo. É uma

aposta no dizer‐sensível, a exemplo daquele contido na poética de

Manoel de Barros quando diz que:

tudo aquilo que não nos leva a coisa nenhuma

serve para a poesia.

tudo aquilo que a nossa civilização rejeita

pisa e mija em cima

serve para poesia

(do livro “Matéria de Poesia”)

Isso ficou fortemente marcado em mim quando, na apresentação do

Prof. Leandro Belinaso Guimarães, ele fala de um livro que achou no

lixo. Ao se dispor e ao considerar o lixo, Leandro fez‐se estado de

poesia. Ou seja, fez‐se diante daquilo que foi “jogado fora”. Talvez isso

só tenha sido possível na medida em que se viu o mundo para além da

sua materialidade, a partir do seu horizonte sensível posto em

vibração.

Esse, talvez, seja nosso maior desafio, principalmente se pensarmos

num contexto de mundo que nos coloca diante de palavras e imagens

que povoam os muitos horizontes que nos cercam, “informando” mais e

“entoando” menos. O fato é que talvez estejamos nós obedientes

demais a elas, palavras e imagens que autorizam, sedutoramente, “o

que podemos” e “como podemos”. É o tal do “lirismo bem

comportado” de que fala Manoel Bandeira (Poética).

Por isso aposto numa “gramática‐desobediente”, que busca promover

rasuras e rupturas nos entendimentos de mundo já consolidados. Ela

nos “autoriza” a inventar, a ficcionar cosmologias e imaginações de

toda a ordem. E o modo como resolvi fazer isso tem amparo conceitual

e imaginativo, e seria importante compartilhar aqui:

– Primeiro, em Jacques Rancière (2009), quando ele diz que “Escrever é

uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação”.

– Segundo, em Clarice Lispector (1998), quando diz que: “Bem atrás do

pensamento tem um fundo musical Mas, ainda mais atrás, há o coração

batendo Assim o mais profundo pensamento É um coração batendo”

Entre o coração batendo e um sensível como campo de possibilidade,

ou seja, campo político, acalenta‐me também a perspectiva de

Bachelard, quando fala que a imaginação é a “potência maior da

natureza humana” (BACHELARD, 1993, p. 18). E se, para ele, o ato

poético é a “chama do ser na imaginação”, então me vem a questão: o

que temos apagado, o que temos silenciado, o que temos negligenciado

diante do nosso “dizer o mundo”?

Ainda com Bachelard, temos que a imaginação é “[…] uma dádiva da

consciência ingênua. Em sua expressão, é linguagem criança”

(BACHELARD, 1993, p. 4). Parafraseando (Bachelard), seria o mesmo

que dizer assim:

Tornar imprevisível a palavra,

o pensamento, a linguagem,

(a Geografia, a Comunicação, a Ciência)

não seria um ato de liberdade?

Que encanto a imaginação poética

Encontra para zombar de censuras!

Antigamente, codificavam licenças.

Mas a poesia

Ao colocar a liberdade

no próprio corpo da linguagem

Passa então a se constituir

como um fenômeno de liberdade.

(Adaptado de Bachelard, 1993)

E tem sido libertador reconhecer a escrita, a linguagem e o fazer

científico como “um produto direto do coração” (BACHELARD, 1993, p.

2), que se assume como uma imaginação criadora: Bachelard diz que

“não há poesia se não houver criação” (BACHELARD, 1993, p. 15) e

porque não dizer: não há Geografia, Ciência, Arte, Vida, Humano, se

não houver criação.

 

DIZER‐OUVIR

Gostaria de ressaltar que essa aposta não é a instituição de um

marcador de poder, um ato normativo, mas, sim, o delineamento de

um horizonte, ainda que anuviado, de possibilidades. É um alento, é ummodo carinhoso de dizer: 

— Filho?

— Sim, pai.

— Lembra‐se que eu lhe dizia para inventar

histórias? Pois invente uma agora.

—Não tenho força.

— Tente.

— Pior que não saber contar histórias, pai,

…é não ter ninguém a quem

as contar.

— Eu escuto a sua história

(Mia Couto, 2009)

É diante desse cenário – “não saber contar histórias e não ter ninguém aquem contar” – que eu chego em meu último apontamento sobre odizer‐poesia.

 

DIZER‐POESIA

O que pode o humano?

O que pode um humano?

 

O que pode um

Dois

Três

?

 

E o que não pode um,

Pode três?

 

Pode dizer com afeto?

Pode fazer, corpo ereto?

Pode querer, meio incerto?

 

Mas

 

Quem pode?

Quem diz?

Quem faz?

Quem quer?

Quem quer o que?

Um dizer outro

Atravessado, provocado:

 

– Pelo rasgo do verbo

– Pelo choro do substantivo

– Pelo silêncio do adjetivo

 

– Pelo ensejo da palavra quando hesita

E se precipita:

 

– Num hífen, numa vírgula, num ponto:

Fora do lugar

 

Ali nasce o fazer‐sentido

Quando compreendido como o

Fazer‐sentir

Um fazer‐sentir inventivo

Comprometido com

A potência criativa

Que está no efetivamente aberto

 

No rascunho

No fragmento

Na rasura

No que “jogamos fora”

 

DIZER‐LINGUAGEM

O tópico anterior deveria ser último movimento de minha fala, mas não

poderia. Ao revisar meu texto, outras companhias se fizeram presentes

e me puseram a pensar sobre o dizer‐linguagem e, mais ainda, sobre o

que fazemos com isso. Primeiro, considero importante evidenciar que

tem sido cada vez mais difícil o pensar em linguagem dissociado de

experiência. Segundo, a quase impossibilidade de tomar, nesse sentido,

linguagem‐experiência que não seja entendida nos termos da

“desobediência” (SKLIAR, 2014; LARROSA, 2015). Para Carlos Skliar, a

linguagem desobedece quando:

Já não há o que dizer e se anuncia aos ventos onome do mundo, um mundo desvairado que semove e se enreda no próprio som de suafalácia, até cair exausto; quando o ar é pouco ea palavra que descreve o ar é mais nula ainda(SKLIAR, 2014, p. 15).

Mas tão importante quanto a sua própria desobediência, é o fato da

linguagem, enquanto uma forma estabelecida de estética‐política, se

permitir ser desobedecida. Talvez nem seja uma permissão e sim uma

tomada de poder daqueles que fazem dela seu lugar de liberdade e

emancipação. Daqueles que ora desconfiam, ora desconhecem e, por

isso mesmo, fazem atuar o indefinido como efetiva abertura do

possível, dos possíveis.

Se a língua (os dizeres e suas grafias) não desobedecesse e não fosse

desobedecida, enfatiza Skliar (2014, 17), “não haveria filosofia, nem

arte, nem amor, nem silêncio, nem mundo, nem nada”. Do mesmo

modo, Jorge Larrosa (2015) fala de como ele tem se engajado diante do

desafio de pensar em “como deixarmos de ser o que somos para ser

outra coisa, diferente do que vimos sendo” (LARROSA, 2015, p. 5).

Ao fazer isso, o autor coloca “a experiência e não a verdade”

(LARROSA, 2015, p. 5) como aquilo que dá sentido aos nossos atos

estético‐políticos. Em suas palavras,

A vida, como experiência, é relação: com o

mundo, com a linguagem, com o pensamento,

com os outros, com nós mesmos, com o que se

diz e o que se pensa, com o que dizemos e o

que pensamos, com que somos e o que fazemos,

com o que já estamos deixando de ser. A vida é

a experiência da vida (LARROSA, 2015, p. 74).

Nestes termos, problematizar o humano, penso, passa necessariamente

pelo problematizar a vida enquanto atributo do dizer, enquanto

atributo da conexão linguagem‐experiência: Dizer‐Vida…

Que cala e sente

Que fica e vai

Que faz e deixa fazer

Que inventa e cria

Que nasce e faz nascer

Como? É possível? São perguntas recorrentes. Elas me chegam a todo o

momento por meio daqueles que tem a certeza como sua cartilha.

Como? É possível? Por muito tempo pensei no sim como resposta. Nem

havia percebido que ao fazer isso, ao dar essa resposta, estava criando

outro tipo de aprisionamento, outro caminho a ser seguido. Não quero

isso. De modo algum. Como? É possível? A resposta eu tirei de Larrosa:

não e talvez…

A pergunta “de que outro modo”

Não pode ser outra coisa que uma abertura.

Para o que não sabemos.

Para o que não depende de nosso saber

Nem de nosso poder

Nem de nossa vontade.

Para o que só pode se indeterminar

Com um quem sabe,

Como um talvez.

(LARROSA, 2015)

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEM, G. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Trad.Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BACHELARD, G. A Poética do Espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi.São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013.

COUTO, M. Antes de Nascer o Mundo. São Paulo: Companhia dasLetras, 2013.

LARROSA, J. Tremores: escritos sobre a experiência. Trad. CristinaAntunes e João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeira: Rocco, 1998.

LYOTARD, F. O pós‐moderno. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio deJaneiro: José Olímpio, 2013.

MASSEY, D. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Trad.Hilda Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2008.

PELLEJERO, E. A Postulação da Realidade: filosofia, literatura,política. Trad. Susana Guerra. Lisboa: Vendaval, 2009.

RANCIÈRE, J. A Partilha do Sensível: estética e política. Trad. MônicaCosta Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.

______. O Espectador Emancipado. Trad. Ivone C. Beneditte. SãoPaulo: WMF Martins Fontes, 2014.

TAVARES, G. Atlas do Corpo e da Imaginação: teoria, fragmentos eimagens. Alfragide, PT: Caminho, 2013.

SKLIAR, C. Desobedecer a Linguagem: educar. Trad. Giane Lessa. BeloHorizonte: Autêntica, 2014.

VATTIMO, G. A Sociedade Transparente. Trad. Hossein Shooja e IsabelSantos. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

 

Recebido em: 20/07/2015

Aceito em: 20/07/2015

[1] Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas(Unicamp). Professor do Departamento de Geografia da UniversidadeFederal do Espírito Santo (Ufes). Professor Permanente do Programa dePós‐Graduação em Geografia na UfesGrupo de Pesquisa RASURAS –Imaginação Espacial, Poéticas e Cultura Visual(https://www.facebook.com/pesquisarasuras) e GRAFIAS – Laboratóriode Geografia Criativa.

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