29
Sumário 05 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 12 09 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 22 32 18 25 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 39 46 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 51 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 64 02 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Revista Cores Reportagens

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Reportagens diagramadas para a revista Cores, produto da disciplina Jornal Laboratorio, UFC.

Citation preview

Page 1: Revista Cores   Reportagens

Sumário05 Ibh esed tions acil

euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

12

09 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

22 32

18 25Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

39

46 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

51

Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

64

02 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma

Page 2: Revista Cores   Reportagens

O garoto por trás dos doze1

Negro, 1,70 m de altu-ra, bastante franzi-no, daqueles em que as costelas saltam

aos olhos e a magreza notória afunda até mesmo a maçã do rosto, Rafael (nome fictício) não se deixa suplantar pela sua aparente fragilidade física. O jovem P.S.F.S., iniciais da ver-dadeira identidade de Rafael, aos 21 anos, já é um dos prin-cipais vendedores de droga da comunidade da Vila Cazumba, na zona sul de Fortaleza, próxi-mo à Cidade dos Funcionários. Como de praxe, por sua “fun-ção” dentro da comunidade, Rafael tem prestígio e impõe respeito e medo, mesmo sem querer, a muitos dos mora-dores. “Às vezes, noto que uns e outros me olham meio de rabo de olho2, com medo ou sei lá o quê”, diz Rafael. E completa: “Mas a maioria me trata bem, na limpeza3”.

Por Arthur PiresForos de Chico Célio

A comunidade da Vila Ca-zumba, onde Rafael nasceu, cresceu e vive até hoje, começou a surgir entre o fim da década de 70 e o início dos anos 80, quando o Tancredo Neves, fave-la vizinha e uma das maiores de Fortaleza, já apresentava barra-cos apinhados, colados uns aos outros, que se expandiram rapi-damente para os lados de forma inconsequente e não planejada. Dessa expansão do Grande Tan-credo Neves surgiram comuni-dades à sua volta, como as fave-las do Gato Morto, do Tasso, do Vila Verde e da Vila Cazumba.

É nessa realidade que vive Rafael. O jovem é o terceiro de uma família de quatro irmãos, criados por dona Aparecida, sua mãe. Perdeu o pai, seu Abreu, ainda muito novo, aos cinco anos, mas nem por isso deixou de ter uma figura pater-na que o inspirasse e influísse na sua escolha de vida. Seu tio,

Ricardo, que morreu há pouco mais de dois anos e era irmão de seu pai, o criou como um fil-ho, pois morava vizinho ao ga-roto. Em periferias, é bastante comum que famílias de irmãos morem próxi-mas umas das outras.

Page 3: Revista Cores   Reportagens

“Ele foi mesmo que um pai: brigava comigo, me batia, mas me ensinou muita coisa tam-bém”, afirma o jovem. “Eu acho que ele gostava também muito de mim porque só tinha filha mulher; eu era o sobrinho que ele mais gostava, eu acho, né!”, completa, saudoso.

Ricardo ‘Rolão’, como era conhecido o tio de Rafael, foi por muitos anos o principal vendedor de drogas da Vila Ca-zumba e um dos principais do Grande Tancredo Neves. Não queria que o sobrinho seguisse o caminho do tráfico, mas tam-bém não fazia esforço em es-conder do ainda menino, e dos outros familiares, que a ativi-dade que sustentava a família era o comércio de drogas. Pelo contrário, a venda era feita a céu aberto, na porta de casa. “Ele era muito respeitado pelos mo-radores aqui da Vila; não tinha como esconder da gente que ele arrepiava4, pois os caras vin-ham aqui direto pegar (drogas)”, explica Rafael, que desde cedo, através do exemplo de seu tio, viu no tráfico de drogas um caminho real e perfeitamente possível de ganhar dinheiro fácil.

Como na grande maioria dos casos, Rafael foi mais um garoto de periferia que escolheu essa sina espelhando-se em exemp-los próximos à sua volta. No seu caso, o tio, mesmo sem nunca tê-lo incentivado, foi um mod-

elo a ser seguido. “Eu via que só fazendo aquilo ele sustentava a família dele e ainda ajudava a gente também”, explica. E foi exatamente após a morte de ‘Rolão’, assassinado por trafi-cantes do Tancredo Neves, que Rafael decidiu entrar de vez para a guerra.

Segundo ele, não foi muito difícil arrumar um “canal”5 para comprar a droga em grande quantidade para, então, repassá-la. Contudo, prefere não revelar o local. No começo,

conta, “só vendia maconha, mas o que tava (sic) ganhando era muito pouco, não dava quase nada pra mim”. Os papelotes de maconha, ou as ‘balas’, como são comumente chamadas, são vendidos a dois reais cada, o que gera uma receita muito pequena para quem trafica. Percebendo que o lucro gerado com a venda de maconha não estava sendo suficiente, o jovem decidiu começar uma empre-itada mais perigosa, porém com lucros que chegam, em média,

dependendo de circunstâncias específicas - como o tamanho da clientela e a quantidade de mercadoria - a 400%, 500% do investido inicialmente: a venda de crack.

O crack é um subproduto da cocaína que está completa-mente disseminado nas perife-rias brasileiras e avança tam-bém, a passos largos, em direção à classe média. Estudos e pes-quisas de diversos órgãos que lidam com drogas têm mostra-do que, nas clínicas de reabili-

tação particulares, em média, 50% a 60% dos pacientes estão internados por dependência ao crack. Nas clínicas públicas, esses índices beiram os 90%. Dessa forma, fica claro que para qualquer traficante que se utilize da venda dessa droga, que custa cinco reais uma unidade, tem-se a certeza de usuários em poten-cial aos montes. Outro fator que faz ser moda entre os traficantes a venda do crack é que o usuário dessa droga não se contenta com apenas uma, pois esse sub-

Page 4: Revista Cores   Reportagens

produto da cocaína tem efeito rápido e altamente viciante. “Já teve dia de maluco gastar mais de mil reais só aqui comigo; outros já deixaram televisão, som de carro, DVD, relógio, anel de prata, cordão de prata, de ouro, um monte de coisa”, conta Rafael.

O jovem diz, com sinceridade e desleixo, não se incomodar por estar vendendo uma droga com alto poder destrutivo ao usuário: “Nem penso nisso, se o cara vem até aqui pegar, é porque ele quer; só estou fazen-do o meu adianto”6. Uma vez por semana, vai até seu “canal” e adquire uma nova remessa de crack. A quantidade varia de uma semana para outra, de-pendendo do quanto ainda tem disponível no estoque, mas em média, compra semanalmente entre 40g e 50g da droga. Para clarear as ideias, 5g de crack são vendidos, em média, a 120 reais. Quando comprada em grande quantidade, esse valor diminui para 100 reais. Portan-to, o jovem Rafael, que estudou até o 1º ano do Ensino Médio e nunca trabalhou com outra coi-sa que não fosse o tráfico de dro-gas, administra, por mês, uma quantia que varia entre 3.200 e 4.000 reais. Muito? Rafael solta uma espontânea gargalhada, se recompõe e esclarece que não: “É uma micharia7! Tem doze lá no Tancredo que tem é casa du-

plex, carro, dinheiro no banco”. A maioria da clientela do jo-

vem é formada pelos próprios moradores, mas, segundo ele, os clientes mais lucrativos são os “playboy”8, que normal-mente compram a droga em grandes quantidades. Durante a entrevista, feita no local onde sempre “despacha”9, diver-sos usuários surgiram, sem cerimônia. O garoto negocia a

droga com a mesma naturali-dade de um comerciante que vende laranja na feira. O tráfico na favela não pára. Segundo ele, o movimento é intenso durante todo o dia, inclusive no decor-rer da madrugada. Para Rafael, o pior de vender “pedra”10 é ter que ficar acordado durante toda a madrugada, “hora em que aparecem os bruxos”11. Por conta dessa rotina, diz que acorda somente depois do meio-dia para “trabalhar”.

O jovem, obviamente, não é o único traficante da Vila Ca-zumba. Mas, como gosta de dizer, “é o que está arrepiando mais na área”, orgulha-se. No entanto, diz que os outros não

sentem inveja, relaciona-se bem com todos. Pelo menos no momento, os traficantes da co-munidade convivem num clima respeitoso. O grande problema mora ao lado. Mais especifi-camente, cruzando a Avenida José Leon, que marca a divisão entre a Vila Cazumba e o Tan-credo Neves. Historicamente, os traficantes das duas comu-nidades vivem numa guerra

pelo controle do comércio de drogas na região. Há momen-tos, meses até, em que impera o armistício, mas é preciso apenas uma “mancada”12 de um dos lados para a batalha recomeçar a pleno vapor. Essa disputa já ocasionou várias vítimas fatais, entre elas o tio de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que, como dito anteriormente, foi morto por traficantes do Tan-credo Neves. Fogos de artifício rasgam o céu da região quando há a morte de algum traficante, seja da Vila Cazumba, seja do Tancredo Neves. Os fogos são uma espécie de ritual que eles incorporaram a essa guerra insana. “Já perdi uns cama-radas13, mas é isso mesmo”, resigna-se Rafael, num misto de frieza e tentativa de apagar da memória as lembranças dos amigo perdidos.

Assim como com os tra-ficantes do Tancredo Neves, o relacionamento com a polícia é difícil. Rafael conta que a cor-poração sabe que o comércio de drogas ocorre na favela, e por conta disso, “come o troco”14 de muitos traficantes. Aquele que não paga o suborno aos policias, corre seriamente o ris-co de ser preso e ter seu negó-cio fechado, derrubado. “Se não pagar o troco aos homem15 (sic), a casa cai”16, diz o jo-vem. Os policiais passam no dia combinado e saem recolhendo

Page 5: Revista Cores   Reportagens

os subornos; em contrapartida, fazem vistas grossas ao comér-cio de drogas que acontece co-tidianamente na favela.

Quando indagado se também faz uso da droga que vende, se surpreende e é enfático: “Tu é doido? Traficante que usa pe-dra, tudo o que ganha vai só pra alimentar o vicío”. Mas admite que fuma maconha e, “de vez em quando, no fim de semana”, cheira cocaína. O fato gritante é que a maioria esmagadora dos jovens de periferia recorre às drogas pela facilidade de acesso que encontram.

Rafael conta que a mãe, dona Aparecida, sabe da atividade dele, mas não o recrimina, pois

ele tem a ajudado nas despe-sas domésticas, apesar de não morar mais com ela. Hoje, tem seu próprio barraco, que divide com suas “namoradas”. Fenôme-no comum a essas comunidades é o poder de sedução que os tra-ficantes exercem nas garotas da periferia. Para elas, namorar um traficante é sinônimo de poder, de status dentro da comuni-dade. Semelhante encantamen-to ocorre com as crianças, que vêem na figura do traficante um exemplo a ser espelhado, tendo em vista que aqueles estão sem-pre com roupas novas e tênis de marca, relógios caros etc. Essa idolatria que se deposita sobre eles é também um dos moti-

vos que os fazem continuar na atividade ilícita, pois, após con-seguir esse prestígio, é muito difícil se desvincular dele. “As cumades17 só faltam pular em cima de mim”, orgulha-se Rafael, abrindo um sorriso sarcástico e com um ar pouco modesto.

Entretanto, antes de ser um traficante de drogas, Rafael é um jovem de 21 anos e, como qualquer outro, tem seus gostos, suas vontades e seus amigos, com quem gosta de “jogar fute-bol e tomar umas geladas”18. Torce para o Flamengo e para o Fortaleza. Não vai aos jogos do seu time porque a atividade não o permite. “Os jogos são sempre domingo ou quarta, e aí são dias

bons aqui pra mim”, confessa. Sorridente, simpático e brin-calhão, o jovem é o contrário do estereótipo do traficante, aque-le de fisionomia carrancuda, au-toritário, violento e prepotente. A atividade que exerce ainda não o embruteceu tampouco o fez perder o espírito de ga-roto. Durante a entrevista, fez várias brincadeiras com quem passava pelo local. As estatísti-cas deterministas provam que comumente a vida no tráfico aponta para dois caminhos: a morte ou a prisão. Rafael parece não pensar muito nisso; vai le-vando a vida como um garoto e, sem saber, como gente grande. Ele é um exemplo clássico de

que muitos dos que exercem a atividade ilegal do tráfico não a fazem por escolha, como se fosse uma entre ser médico, jor-nalista ou traficante, mas por uma equação muito simples: o meio em que você nasce aliado com a falta de oportunidades de conhecer outro mundo, senão aquele em que nasceu. Não que Rafael seja um exemplo de vida, não que se Rafael tivesse nasci-do numa família de classe média teria um futuro promissor, mas Rafael nos ensina, mesmo sem querer, a ter sempre um sorriso no rosto, espírito de jovialidade e atitude perante desafios, não importa em que situação nos encontramos.

Page 6: Revista Cores   Reportagens

Glossário da periferia

1_Doze Gíria para traficante, que advém do Art.12 do Código Penal brasileiro que versa sobre tráfico de drogas

2_Olhar de rabo de olho Olhar desconfiado

3_Tratar na limpeza Tratar bem, tra-tar com educação, com respeito

4_Arrepiar Traficar, vender bem, vender bastante

5_Canal Local (ou pessoa) onde os traficantes compram a droga em grande quantidade para revender

6_Adianto Serviço, trabalho

7_Micharia Pouco dinheiro, quantia insuficiente, pequena quantidade

8_Playboy Jovens de classe média

9_Despachar Vender, negociar

10_Pedra Crack, tem essa gíria porque é vendida em pedrinhas envoltas em sacos plásticos

11_Bruxos Viciados crônicos, geral-mente os mais impulsivos pela droga

12_Mancada Vacilo, erro

13_Camaradas Amigos, parceiros

14_Comer o troco Subornar

15_Homem Policial

16_A casa cair Ter seu negócio fecha-do e/ou ir para a prisão

17_Cumade Mulher, garota

18_Gelada cerveja

“Rafael nos ensina, mesmo sem querer, a ter sempre um sorriso no rosto, es-pírito de jovialidade e atitude perante desafios, não impor-ta em que situação nos encontramos”

Page 7: Revista Cores   Reportagens

Histórias de Becoquando a poeira assenta, entrevemos rostos,

punhos e corações

Reportagem e ilustrações por May Araújo

Page 8: Revista Cores   Reportagens

Pesquisava a relação entre programas policiais, ditos pop-ularescos, e seus espectadores que se reúnem despretensiosa-mente ao redor de tvs em bares quando, tão aleatoriamente quanto eles, fui levada a revisi-tar, com olhos de pesquisadora, o espaço que sempre cruzei desde menina: o Beco da Poe-ira. Adentrei-o e ali me quis es-tabelecer. Mudei de tema.

O Centro Comercial de Pequenos Negócios ou Centro de Pequenos Negócios de Ven-das Ambulantes, chama-se, na verdade, Beco da Poeira, situa-do entre as praças da Lagoinha e José de Alencar, no centro de Fortaleza. Um dos maiores, senão o maior centro de comér-cio popular do Estado. As três grandes tendas em ferro e ami-anto abrigam em torno de 2.050 boxes, organizados em 22 es-treitas galerias, subdividas por gêneros comercializados: fru-tas e verduras, eletrônicos, mi-udezas e importados, calçados

e a grande maioria: confecções em jeans e as chamadas “mod-inhas”, blusas, saias e vestidos em malha fria ou radiosa.

Não recordo a primeira vez em que estive no Beco. Provavel-mente me deveria guiar o pun-ho seguro de minha mãe, apres-sada, cruzando as vielas de tecidos; meus olhinhos infantis decerto turvos da correria e de obstáculos inúmeros: roupas, calçados, pessoas. Barulho, multidão, cores rompendo o gris bolorento dos boxes e um único norte: a destra materna.

O Beco como é conhecido hoje nasceu junto comigo. Não a estrutura, inaugurada em 1991, mas a idéia, a decisão primeira: à tarde do dia 4 de novembro de 1987, na sede do Banco do Nor-deste, a prefeita em exercício, Maria Luiza Fontenele, se reunia com sua equipe e acertava a re-forma do terreno à época con-hecido por beco da poeira para receber o “feirão popular”, ain-da de frutas e verduras. Horas depois, na madrugada daquele mesmo dia, eu nasci – Mayara Carolinne Beserra de Araújo, filha de funcionário público e

costureira, destinada a cruzar tantas vezes, anos depois, o co-mércio erguido sobre o terreno negociado àquele dia.

A tarde fortalezense é quente e abafada. Os meses ini-ciais do ano trazem as chuvas de São José e, por isso, o bafo morno e impróprio do asfalto entope-me as narinas. Compro um lanche qualquer no Shop-ping Metrô e cruzo a rua, intrigante comparar o quarteirão do shopping com as fotografias da hemeroteca: eram meados dos anos 80 quando ali hab-itava As Brasileiras. Enquanto Hebe Camargo estrelava, sorri-dente, os cartazes publicitários da grande loja de departamen-tos, o verdadeiro beco subsis-tia do outro lado da rua, a con-tradição estampada, barracos de madeira e alvenaria forma-vam becos estreitos, abrigos de 15 famílias e sustento de out-

Page 9: Revista Cores   Reportagens

senhora prefeita esse mes a senhora vai pagar ros 52 “locatários”: desem-pregados donos de biroscas imundas; cafetinas, gigolôs, prostitutas velhas e muito novas; vendedores de lanche, frutas, verduras e carnes, cu-jos restos – vísceras, bagaços, miúdos – tomavam o chão das vielas. Uma latrina em forma de tosco labirinto a céu aberto. O beco da poeira era o lar dos excluídos, dos descui-distas, bêbados, putas. Sob a névoa da poeira habitavam os esquecidos.

Às duas horas de uma tar-de quente em que há pouco chovera entrar no Beco re-quer antes certo preparo psi-cológico para a experiência sensorial de uma brusca mu-dança de ambiente, é quase como ser trancado em um fosso, um calabouço de teto rebaixado, quente e úmido. Se o espaço urbano por si só possui tempo e espaço diferenciados, no Beco, am-bos sobrem nova subversão: há outra correria, outros modos, o tempo passa mais depressa, a passada aperta e os olhos correm vertigi-nosos. É dessa forma que as

pessoas tornam-se não mais que vultos e as conversas, fórmulas repetidas – Quanto custa? Que cores tem? Que tamanhos? Tem desconto? Qualquer comportamento que fuja a essa dinâmica é encarado com estranheza. Minha presença inquisidora, curiosa e relaxada é quase ofensiva. Isso era o que eu pensava antes de conhecer os meus primeiros amigos de Beco.

Só quem escreve assim, em primeira pessoa, sabe o que é submeter-se a esses relatos. Mas quem nunca es-creveu? Diários, cartas de amor, quem nunca contou um segredo? Falar sozinho é tão mais fácil por que até nosso idioma - honesto - ex-plica que dizer é sinônimo de afirmar e então quando se diz algo, para alguém ou um papel que seja, é como con-firmar, tornar tudo verdade. Dói e amedronta expor assim sentimentos meus e de out-ras pessoas, mas é para isso que os jornalistas estão no mundo, não? Para expor. Não gosto de ver as coisas deste

modo, mas não se pode ig-norar isso. Como gosto de ver o jornalismo? Eu vou dizer: jornalismo, para mim, é a arte de fazer amigos. Os teóricos já diziam como é preciosa e tênue a relação que criamos com as fontes, repare: chego em um lugar, apresento-me, digo ser de uma empresa jornalística ou de alguma universidade de comunica-ção, digo que vou fazer uma reportagem e o entrevistado diz-me, às vezes, muito mais do que preciso saber sobre sua vida. Baseado em que? Um crachá? Uma promessa de reportagem? Que louca é essa relação de extrema confiança entre estranhos e que maravilhosa ao mesmo tempo, sobretudo quando ao final de uma conversa de, sabe-se lá, 15, 20 minutos, fazemos amigos. Por que eu faço jornalismo? Por paixão a essa bendita sensação de fazer amigos pela confiança, pela honestidade, ainda que concom itantemente não saiba quase nada sobre este novo conhecido; por poder chegar às fontes não

Page 10: Revista Cores   Reportagens

esquerda, duas vendedoras conversavam, uma delas ol-hava o chão absorta, sentada em uma das pernas, trazia a bolsa à tira-colo, onde pudesse ver; mais à frente, mais duas vendedoras conversavam; à direita, um vendedor loiro ol-hava o movimento e à frente três moços concentrados, con-sertavam relógios. Rabiscava

a vendedora absorta quando as coisas começaram a mudar: notei uma certa movimenta-ção curiosa em torno de mim, os vendedores cochichavam entre si e me olhavam descon-fiados. Não demorou para que eu entendesse: estavam com medo de eu estar desenhando os modelos de suas roupas. Decidi simplesmente não fazer

nada, não havia o que temer e estava ansiosa para saber como acabaria aquilo, quando percebessem que os estava re-produzindo.

Aconteceu logo, em cerca de quinze minutos, uma das moças levantou-se várias vez-es, caminhava para além da minha cadeira e me olhava, eu a percebia sobre meus om-

bros. Todas as vezes que fazia este trajeto, voltava ao box com uma novidade, em pouco tem-po os relojoeiros já também me olhavam curiosos, todos sabiam o que se passava, mas ninguém dizia nada, até que a mesma vendedora levantou-se uma última vez, olhou-me por cima dos meus ombros e per-guntou: “posso ver o outro de-

senho que você fez?”Estava desmoronada a mu-

ralha do silêncio, da impessoal-idade e, a partir dali, decantara a poeira do Beco: os rostos não eram mais vultos, mas pessoas, com suas histórias, tempera-mentos, humores, e quanto humor! Logo fui incluída, ver-dadeira algazarra em torno dos desenhos, todos querendo

como certos jornalistinhas que agem como se as pessoas tivessem a obrigação de lhes ceder informações, mas com uma tranqüilidade curiosa de quem quer, quando possível, ainda que brega, parodiar Roberto Carlos e perguntar: “Como vai você?” Se o fíga-do de alguns jornalistas não fosse todos os dias comido pelo tempo, feito Prometeu , conheço muitos que adorari-am pôr isto em prática.

Voltando aos meus ami-gos de Beco, estes me mostr-aram quão grande é aquele lugar sem que eu precisasse caminhar pelos corredores, levaram-me a pensar como são tantas pessoas difer-

entes convivendo embaixo daquele amontoado de ami-anto. Deixe-me começar do começo: estava seguindo duas atendentes de plano de saúde que entravam no Beco conversando sobre namora-dos, vizinhas, coisas quais-quer. Interessei-me pela con-versa e logo estava em um corredor ainda desconhe-cido pra mim, era a principio estreito e depois mais largo, com uma lanchonete, cadei-ras e mesas ao fundo. Pensei: “perfeito para desenhar, não precisarei tomar o lugar de ninguém e vou poder agir discretamente”. Sentei-me, retirei lápis e borrão e me pus a observar o cenário. À

Sob a nevoa da poeira, a multidao de sombras se mexe

Page 11: Revista Cores   Reportagens

se reconhecer: “ah, mas eu não sou feio assim!”, disse irmão Toninho, “olha que essa aqui é fulana!”, “esse é ciclano!”... E me mostraram o desenho da Paiz-inha colado no alto da coluna. Uma boneca de longos cabelos, desenhada a lápis e com os diz-eres: “Procura-se viva ou mor-ta, recompensa R$ 0,50”. Ah, mas estava errado uma boneca tão feia, “Manda chamar a Paiz-inha que a menina desenhista vai ter que desenhar ela!” Man-daram chamar Maria da Paz. Enquanto desenhava a moça dos longos cabelos loiros e cac-heados, de repente, aquele es-forço a que nós jornalistas nos submetemos certas vezes para

obter algumas repostas caiu por terra, foi nocauteado pela brincadeira dos rabiscos, e logo lá estava eu entrevistando e sendo entrevistada: o que você faz? De onde é? Você compra no Beco? E ainda me quiseram pagar pelo desenho: R$ 2,00! Recusei, óbvio. Tão mais val-iosa fora aquela experiência.

Dias depois retornei para, de fato, escrever minha report-agem. E eu que me dizia, com ares de pesquisadora: “vou apreender as performances dos vendedores”, conclui que só uma pessoa foi performer ali: eu mesma. Se havia alguma intervenção, era minha, com um lápis, um borrão amarela-

do e, àquele dia, um gravador. Com a espessa poeira da es-tranheza decantada, surgiram rostos. Descobri que estava no corredor dos evangélicos e que ali, naquela vizinhança, eram todos amigos há três ou cinco anos. Rita de Cássia é a mais nova, tem 18 anos, tra-balha pela manhã até a tarde e estuda à noite, prestará ves-tibular para Serviço Social. Rita foi a primeira que se dispôs a falar. “Desenrolada”, a pequena contou-me que está ali há três anos, cuidando do Box da mãe. Os primeiros dias de vendedo-ra do Beco foram um tanto difí-ceis, era tímida, envergonhada e, como Rita mesmo diz, para

trabalhar ali é preciso “swing”, molejo. Hoje fez amigos, de-clara que aquela é a parte mais divertida do Beco, gosta do que faz e prefere estar ali a vender em feiras livres, onde se sen-tia insegura e o trabalho era mais pesado. Quanto à segu-rança, não só Rita como os out-ros vendedores que estavam por perto confirmaram que

se sentem seguros no Beco, os malandros da praça volta e meia estão por lá, mas pouco se escuta de furtos. Quem assusta mesmo é o “rapa” em busca de CDs piratas.

Mas nem tudo são flores, se o Beco hoje representa oportu-nidade para centenas de per-missionários, o preço que se paga por ela não é barato: para

além das taxas de manuten-ção quitadas mensalmente, os vendedores se submetem a péssimas condições de tra-balho. A estrutura é precária, já diversas vezes condenada pela vigilância sanitária. Em tem-pos de chuva como os de agora, a água imunda dos banheiros volta pelos ralos. Fedentina, calor e sujeira são companheir-

os inseparáveis de um Beco es-quecido pelas autoridades.

Ainda que o Beco da Poe-ira seja um diferencial da capi-tal cearense (tanto que certos turistas chegam a pagar guias para visitá-lo nos meses de ja-neiro e julho), os permission-ários reclamam que não há nenhum tipo de divulgação por parte da prefeitura. “Nós só

queríamos ser reconhecidos, entende?”, disse-me João Pau-lo, o Loiro, questionando-me quantas vezes eu tinha visto alguma propaganda do Beco da Poeira na televisão. Jamais, Loiro, eu mesma nunca vi. E apesar disso, como ele mesmo disse, possivelmente mais da metade das lojas de confecção de shoppins da região Norte

A vendedora ia absorta,

mas a bolsa do dinheiro, essa trazia presa ao corpo

Page 12: Revista Cores   Reportagens

são abastecidas com roupas “made in” Beco da Poeira. A verdade é que ali se lucra por quantidade e os maiores compradores descem aos montes na rodoviária fortalezense e têm outros sotaques.

João Paulo de Souza, o Loirinho, tem 23 anos e deixou o trabalho na roça, em Morrinhos (município a 208 quilômet-ros da capital), sua cidade natal, pra tentar a vida em Fortaleza. Foi camelô na Washington Soares e outras aveni-das da cidade, vendia calculadoras, con-troles remotos, mas a vida de ambulan-te também não rendia. Loiro já pensava em voltar pra roça quando um primo, fabricante de confecções, convidou-lhe para trabalhar no Beco. Atualmente, João cuida do Box do primo há 5 anos e afirma – com segurança – que se lhe oferecessem um emprego na Otoch ou na C&A em pleno Iguatemi, recusaria prontamente.

Muitas histórias se entrecruzam, tan-to quanto os corredores do complexo, a vizinhança, os grupos a cada corredor fazem da grande feira uma Fortaleza em proporção menor, com bairros, ruas, esquinas, quarteirões, casas e vizinhos. No Beco, há engarrafamento, polícia, prefeito, ele consiste, portanto, em mais um núcleo organizado dentro da cidade que absorveu dela suas característi-cas. E assim como em uma cidade, não vivem do Beco somente os permission-ários, mas outros tantos, que ao redor da dinâmica da feira inauguram outro movimento, são dezenas de ambulantes às portas do Centro Comercial, ou ent-

rando e saindo de suas galerias, vendil-hões que alimentam o comercio infor-mal e, por meio dele, dão de comer a si mesmos e a suas famílias. O Beco, saído das entranhas da diversidade de uma praça pulsante e viva como sempre fora a José de Alencar – que se reinventa e repovoa, apesar das tentativas higieni-stas das gestões municipais de varrer “vagabundos” e ambulantes –, herdou dela a avidez de quem precisa ganhar

a vida a todo custo. Os vendedores ca-dastrados do Beco não divergem dos informais da praça, aproximam-se, oferecem, insistem, “chegam junto” do freguês, cada passante é um potencial consumidor. Loiro é um dos que con-firma a tese, contou-me que, em seu primeiro dia de trabalho, acostumado com a vida difícil de ambulante, chegou “arrepiando”: chamava o cliente, anun-ciava os produtos no gogó, oferecia a

mercadoria e recebia em troca, muitas vezes, desprezo. Ali o “não” é comum, mas não frustra os vendedores, a con-corrência mora ao lado e por isso a ne-cessidade de manter certa disposição constante, apesar do cansaço, e o mais importante, como disse Rita de Cássia, manter o jogo de cintura. Se não há pro-vador, com dois panos, faz-se uma cor-tina; se não cabe, aperta; se a perna da calça é grande, uma dobra, um ponto e

tudo está resolvido. O Beco da Poeira é o mercado do “jeitinho brasileiro”, con-stituído não só pelos permissionários, mas por marmiteiros, tapioqueiros, cafezeiras – nome popularmente dado às mulheres vendedoras de cafezinho -, malandros, catadores, artistas. Nessa dinâmica, entre as galerias, além dos visitantes, dezenas de isopores, tab-uleiros e até bicicletas desafiam a estre-iteza dos caminhos, ganhando a vida à custa do ganha-pão de outros tantos.

Essa é a vida de Francisco Antonio da Silva, 22 anos, mais conhecido como Pastel-menino. Francisco recebeu esse apelido do oficio de vendedor de pas-tel e suco, ele percorre aquelas galerias há 5 anos, oferecendo pastel e espe-rando ansioso alguém gritar “Pastel, menino!”, indicação de mais um cliente garantido. Pastel-menino mora na Praia

menina Rita pra vender no Beco, tem de ter

jogo de cintura:

Page 13: Revista Cores   Reportagens

do Futuro, acorda 5 e meia da manhã e deixa o serviço às 5, 6 da tarde, quando o Beco fecha as portas. Ao contrário do que, em geral, se pensa, Francisco não é autônomo nem tem a liberdade de en-trar e aproveitar o movimento do Beco como bem entenda, ele é contratado para vender os pasteis e, para que ele possa caminhar pelos corredores, seu patrão paga mensalmente uma certa quantia ao sindicato, Pastel-menino

não sabe quanto. Manter em ordem a venda ambu-

lante, contudo, não é uma novidade do sindicato. Na verdade, a reorganização do centro de Fortaleza, ou revitalização, foi meta de vários gestores fortalezens-es. Chega a ser engraçada a contradição de batizar como revitalização o ato de expulsar ambulantes do centro. Perce-ba: revitalizar não é restaurar, repor a vida? E quem disse que as praças estão desabitadas, vazias? A praça ferve do movimento de passantes, que param em círculo para ver os artistas ganha-rem a vida com malabares, cantorias e palhaçadas. Seus bancos estão reple-tos de pessoas, desde consumidores do centro, cansados da caminhada, até desempregados, ambulantes, boêmios e prostitutas. As praças do centro não estão vazias para precisarem de repo-

voamento, a não ser que as pessoas que as habitam hoje não sejam considera-das dignas, merecedoras, de estar ali. Fica a pergunta: quem, afinal, os ge-stores municipais querem ver povoar as praças do Centro?

Fundado em 1991, na gestão do pre-feito Juracy Magalhães, o Centro Com-ercial de Pequenos Negócios fora antes um projeto do programa de revitaliza-

ção do centro, iniciado por Maria Luiza Fontenele. Atualmente, na gestão da prefeita Luizianne Lins, mais uma ten-tativa é feita, desta vez motivada pela construção da Estação Lagoinha do Metrofor – projeto de metrô de Fortale-za -, cuja sede será onde hoje está situa-do o Beco da Poeira. Segundo prefeitura e governo do Estado até o fim deste ano a obra necessita estar pronta, gerando novos sentimentos de apreensão e ex-pectativas nos permissionários do Cen-tro Comercial, que se preparam, depois de 18 anos no mesmo estabelecimento, para uma provável mudança definitiva.

Pouco antes, em 2004, esta apreen-são e expectativa de mudança fora plantada uma primeira vez no seio dos vendedores. Um terreno fora comprado num acordo entre prefeitura, sindicato e construtora para que fosse inaugura-

do o novo Beco da Poeira. A esperança virou decep-ção: meses depois, a obra foi embargada e o din-heiro, milhões aliás, desa-pareceu.

Agora os jornais anun-ciam: “De zero a 10 está em nível 8 o fechamento da aquisição da antiga te-

celagem Tomaz Pompeu, na avenida do Impera-dor, para ser a futura sede do atual mercado do Beco da Poeira” . No-vamente, expectativa e desconfiança, esperança e descrença mesclam-se entre os permissionári-os. A tecelagem, avaliada em 7,4 milhões de reais, dispõe de muito mais es-paço do que o “esquele-to” erguido em 2004, que atualmente, para receber o Beco da Poeira necessitaria do terreno de mais 10 a 13 imóveis do entorno, segundo José Nunes Passos, secretário

:Loro de Morrinhos voce ja viu propaganda do Beco na TV?

Page 14: Revista Cores   Reportagens

do Centro. A mudança para a Aveni-da do Imperador gera especulações, os vendedores questionam se será, de fato, amplo e organizado como prometem. “Vai ter ar-condicionado, praça de alimentação...”, comentou Loiro, empolgado, seguido de um “Menos, Loiro, menos!”, do irmão Toninho. Mas o que os permission-ários reivindicam não passa de condições melhores de trabalho: boa instalação elétrica, espaço mais amplo entre os boxes, um sistema de ventilação adequado, banheiros dig-nos. Quanto aos ambulantes do Beco, como Pastel-menino, a situação é um tanto mais preocupante, já que eles não sabem se, em uma nova estru-tura, inaugurada como exemplo da eficiência da aliança prefeitura-gov-erno do Estado, haverá a possibili-dade de ambulantes circulando nas galerias novinhas. Francisco está um pouco mais tranqüilo por que, com

ou sem Beco, continuará vendendo seu pastel, já que no Centro não fal-ta freguesia, mas sente por outros vendedores que não trabalham no mesmo “esquema” que ele. “A gente não sabe se eles vão deixar o pessoal andar lá dentro, nem se vão poder colocar barraca do lado de fora, vai que tem lanchonete lá dentro aí a gente fica sem saber como fazer...”, admite Francisco.

A tarde cai tão rápido quanto chega. Será que, na tecelagem fecha-da, será possível distinguir o dia da noite, como debaixo dessas tendas? É hora de despedir-me com uma úl-tima pergunta: o que levam desse lugar, caso realmente se mudem? Do que terão saudades? Rita se adianta e diz “De nada, não tenho apego por esse lugar.”, mas concorda, aliás, to-dos concordam, de certa forma, com a resposta de Loiro: “Vou sentir falta dos meus amigos, por que lá a escol-

Page 15: Revista Cores   Reportagens

ha dos boxes vai ser por sorteio, então não sei se a gente vai ficar junto, é muito difícil. Os meninos aqui já são meus amigos dentro e fora do Beco, a gente é tudo evangélico, então vai pra igreja junto, sai junto e lá eu não sei como vai ser a nova vizinhança.”

Quando penso que irmão Toninho, Loiro, Rita de Cássia, Paizinha, Pastel-menino, e out-ros tantos, carinhosos e acolhe-dores, não são sequer um décimo da população da grande feira, re-spiro fundo e entrevejo na poe-ira um caminho longo de outros vultos que se tornarão rostos, pessoas, punhos firmes como os de minha mãe, a me guiar por aquelas galerias, em encontros sucessivos de histórias de vida.

E me vou embora, às 17:40 da tarde quente e abafada, cru-zando as vielas de verdadeiros contabilistas a calcular os lucros e a recontar estoques no fim de mais um dia de batalha, alguns fecham as malas para guardá-las nos boxes minúsculos, out-ros para levá-las à praça da Sé e lá enfrentar a feira livre que já já começa e vira a noite até o raiar de um novo dia, em que todas aquelas pessoas, histórias de vida, se reúnem novamente. Deixo o Beco com a sensação de acompanhar uma história em marcha, mas, desta vez, não na margem, mas completamente imersa no rio da vida. E vou-me feliz, plena de imagens, relatos, grávida de tudo.

Page 16: Revista Cores   Reportagens

Prenúncio

Conto da Casa do PortuguêsPor Emanuele SalesFotos de Chico Célio

O

Page 17: Revista Cores   Reportagens

No dia em que foi embora para sem-pre da casa, Violeta Sanches acordou

cedo, como era de costume, e apressou-se em verificar a caixa de correspondência. Bateu com o sino na grade da cama quatro vezes; como a criada não acudisse, resolveu descer sozinha ao jardim. Era a segunda vez em treze anos que lhe ocorria levantar-se da cama, fazer a toalete e sair da casa sem que os empregados ou o marido estivessem por perto. A primeira havia sido um mês depois do acidente, e ela nunca mais a esqueceu, embora julgasse o contrário: caíra da cama como se fosse uma criança de mãe descui-dada, tombara de bruços amolecendo um dente. O dia estava claro, havia um vento seco adentrando os cômodos, diferente da aragem úmida que percorre toda cidade li-torânea. Ela mesma pensava que algo estranho acontecia, a começar pela lembrança do acidente. Havia tempo Vio-leta Sanches não pensava no passado, achava que tivesse enterrado as lembranças com o marido morto, mas, agora quando aconteceria o improvável, ela se detinha.

O quarto não mudara em nada depois que Anto-nio morrera. A cama onde o

marido fora encontrado ar-quejando sua última angús-tia era onde Violeta Sanches dormia todas as noites desde que entrara na casa, e o espe-lho do toucador, presente da sogra, estava no mesmo lugar há treze anos, como tudo lá estava. Por isso, não era de se espantar que a vizinhança chamasse o imponente e sin-gular casarão de “a casa mal assombrada”. Mas Violeta Sanches preferia associá-lo a uma espécie de memorial, um tributo ao que se passou: ela e o marido recém casa-dos; ela entrevada na cadeira de rodas entrando na casa pela primeira vez, subindo de carro a enorme rampa; os fil-hos que nunca teriam; o filho que tiveram e perderam.

Do lugar de onde vis-lumbrava o amanhecer, não chegava a confrontar os raios solares, antes os entrevia tol-dados pela gaze das cortinas e impelidos pelo concreto dos arcos. Os arcos da varanda, estes sim, eram a primeira visão de cada dia. Adorme-cia olhando para o teto, como se ali houvesse um enigma, o talhe reto, e nessa posição despertava, nunca inclinava a cabeça. A janela do quarto dava para a confluência entre dois dos sete arcos da varan-da lateral, de modo que só eram vistos por quem virasse

à direita, encarando a vidra-ça. Antonio fizera questão de mandar construir sete arcos em ambas as laterais e três defronte, em cada pavimento – dizia que seriam para cada um dos sete filhos que viriam ao mundo. Mesmo sem ol-har pra eles, Violeta Sanches os via todas as manhãs, ao acordar.

Chamava-se Alísio o filho, tinha o nome do bisavô por-tuguês. Contava três anos de idade quando Antonio o trouxera à casa, embora as freiras do orfanato não soubessem ao certo a data do nascimento. Era um rapaz de feições indecisas a andar pe-los jardins, sempre com um livro na mão. Àquela época pendia-lhe um buçozinho que o pai insistia em chamar de bigode. Gostava de es-crever cartas, mas ninguém conseguira descobrir quem era o destinatário. “Nosso filho já é homem”, Antonio segredou a Violeta Sanches, um dia em que entrara no quarto de Alísio sem bater à porta. Levantava cedo e ia a escola, ao retornar almoçava e permanecia nos jardins ou na varanda até o anoitecer. Não saía de casa sem que es-tivesse sozinho, não se tinha notícias de amizades suas. O pai oferecia-lhe carona até o colégio, mas ele recusava

Page 18: Revista Cores   Reportagens

enquanto podia: “São só alguns passos”.

Violeta Sanches esforçou-se para amá-lo como se tivesse nascido dela, como Antonio o amava. A bem da verdade, o sentimento era recíproco, mãe e filho o compreendiam. No

começo, tinha compaixão do menino de olhos atentos, sem família nem passado. Depois, nos primórdios da adolescên-cia, Alísio cada vez mais lhe fig-urava um estranho, não por ele ser totalmente imune às mar-cas da convivência, que acaba

deixando as pessoas que vivem juntas parecidas, mas pela ma-neira como a olhava. Houve um tempo em que até mesmo a pre-sença dele à mesa gerava-lhe incômodo. Foi então que, num acordo tácito, ambos passaram do esforço cínico à displicência

ensaiada. Evitariam encontros casuais no mundo que era a casa.

Uma tarde, enquanto as criadas ajudavam-na durante o banho, ouviu alguém camin-har no quarto. Tinha a audição bastante apurada, percebia a

mínima intensidade de um som, fosse numa conversa barrada por paredes, fosse numa nota musical destoante. Pensou que Antonio es-tivesse no quarto, mas lembrou-se de que o marido havia ido ao ar-mazém fazia pouco tempo. Os pas-sos aproximavam-se da porta, não era Antonio, ela estendeu o braço

inabilmente e girou a maçaneta. As moças que a banhavam soltaram um grito de horror ao ver Alísio de pé, no limiar. Violeta Sanches apenas o encarou, enxergando nele um sem-blante de serenidade. Pediu às em-pregadas que jamais comentassem o episódio. À noite, durante o jantar, Alísio não sentou-se à mesa.

No dia seguinte, enquanto toma-va ar defronte à entrada principal, Violeta Sanches escutou novamente os passos da tarde anterior, des-sa vez vinham de cima. Olhou em direção ao céu e viu Alísio sobre o teto jardim. “Ele não deveria estar na escola?” – pensou sem tirar os olhos do rapaz. Depois, não pensou

Page 19: Revista Cores   Reportagens

em mais nada, revelou para si que aquela só podia ser a imagem de um anjo. Cartas de amor espalha-vam-se sobre o terreno, levadas pelo vento, pareciam brotar dos pés de Alísio, todas endereçadas a ela. “São só alguns passos, min-ha amada” – disse ele com a voz mansa, olhando a como nunca, e atirou-se ao chão.

Os meses seguintes até a morte de Antonio foram para Violeta Sanches uma provação divina, diferentes do tempo atual. Agora, ela ria quando a brisa fazia cóce-gas em seu nariz, tocava piano uma vez por semana e deixava-se ficar todas as manhãs no portão, a observar o movimento na avenida que ganhava cada vez mais au-tomóveis. Sentia-se jovem ainda; era, de fato, das que resistiam muito ao peso dos anos. Corre-spondia-se com uma irmã de An-tonio que vivia na França em com-panhia do irmão caçula, e decidira aceitar o convite para morar com os dois. Combinaram a ida, ambos viriam buscá-la. Na manhã em que foi embora para sempre da casa, lembrou-se exatamente de checar o correio para saber da chegada dos cunhados, quando a sua vida ressurgiu, silenciosamente, pois

estava apenas escondida.Ao cabo de cinco minutos,

que para Violeta Sanches signifi-caram mais de dez anos, a criada atendeu-lhe o chamado. “Leve-me até o jardim”, ordenou. “Mas assim, senhora?”, espantou-se a criada. “Imediatamente”, disse sem hesitar. Cruzou todo o pa-vimento de olhos fechados, só ousou abri-los quando estava na frente da caixa de correspondên-cia. Ali mesmo conferiu as cartas, não havia nada informando a chegada dos parentes, somente pacotes com revistas de moda que a cunhada lhe mandava. Es-forço inútil, agora tinha de voltar e viver de novo. Virou-se e con-templou a enorme construção diante de si. Aquela casa tinha sido feita para ela: os arcos, os jardins, a rampa, o destino de quem ali habitasse; desde os pi-lares fora planejada para uma in-válida, antes mesmo do acidente

– um mau agouro. Tudo na casa recendia ao que vivera e o que estava ainda por ser vivido, mas fora abortado. Nesse instante a verdade tornou-se clara. Era preciso romper.

Subiu a rampa com a força dos próprios braços até chegar ao teto jardim. Lançou um úl-timo olhar sobre a cidade e as pessoas, como se estivesse a despedir-se do que não tinha sido seu. Experimentou o ven-to quente ressecar-lhe a pele e embaraçar-lhe o cabelo. Uma lágrima desceu-lhe aos lábios. De súbito, sentiu sobre si um olhar curioso, ouviu passos que lembravam os de Antônio e uma voz doce, quase idêntica a de Alísio: “Bonjour, cunhada! Preparada para a viagem?”.

Page 20: Revista Cores   Reportagens

Este

con

to é

um

a na

rrati

va

ficci

onal

bas

eada

em

hist

ória

s ou

vida

s a

resp

eito

do

casa

rão

na A

veni

da J

oão

Pess

oa,

5094

. M

uito

se

fala

sob

re a

Ca

sa d

o Po

rtug

uês,

mas

pou

co

se sa

be a

o ce

rto

sobr

e a

vida

de

quem

ali

mor

ou, s

alvo

pes

qui-

sas

acad

êmic

as e

regi

stro

s hi

s-to

riogr

áfico

s do

anti

go B

airr

o Da

mas

, re

duto

de

soss

ego

na

Fort

alez

a qu

e cr

esci

a ao

iníc

io

do sé

culo

XX.

Pa

ra a

esc

ritur

a de

ste

con-

to, f

oram

leva

dos e

m c

onsid

er-

ação

som

ente

dad

os re

fere

ntes

à

estr

utur

a da

cas

a, a

o m

o-m

ento

em

que

foi c

onst

ruíd

a e

seus

prim

eiro

s ano

s, o

u se

ja, a

s dé

cada

s de

195

0 e

1960

. Par

a ta

nto,

tom

aram

-se

prec

auçõ

es

dura

nte

a pe

squi

sa. P

rocu

rou-

se n

ão a

dent

rar

dem

ais

o te

r-rit

ório

da

real

idad

e pa

ra n

ão

perd

er o

mot

e da

cria

ção

base

-ad

a em

nar

rativ

as c

olhi

das

em

anda

nças

pel

o Da

mas

. A q

uem

po

ssa

inte

ress

ar a

bus

ca p

or

regi

stro

s hi

stor

iogr

áfico

s, s

eg-

uem

alg

uns a

pura

dos d

e in

ício

: o

prim

eiro

don

o do

pré

dio

se

cham

ava

José

Mar

ia C

ardo

so,

port

uguê

s, n

egoc

iant

e de

ma-

deira

pa

ra

a co

nstr

ução

de

fe

rrov

ias

no C

eará

, era

cas

ado

e tin

ha u

m fi

lho.

A c

asa

foi i

n-au

gura

da e

m tr

eze

de ju

nho

de

1953

, com

tam

anho

que

ain

da

hoje

tem

, ape

sar

de n

unca

ter

sido

ocup

ada

por

com

plet

o ne

m m

esm

o pe

las s

ete

fam

ílias

qu

e lá

resid

em so

b au

toriz

ação

do

s leg

atár

ios.

Hoje

o p

rédi

o é

tom

bado

pe

la F

unda

ção

de C

ultu

ra, E

s-po

rte

e Tu

rism

o de

For

tale

za

(Fun

cet)

, so

b ju

stific

a e

de-

scriç

ão in

tegr

ante

s do

pro

ces-

so:

“Edi

fício

em

blo

co ú

nico

, de

form

a re

tang

ular

, de

dim

en-

sões

33m

x 1

4m, p

ossu

i qua

tro

pavi

men

tos

e es

tá a

o n

ível

da

rua,

no

cent

ro d

o te

rren

o, c

om

afas

tam

ento

de

cerc

a de

18m

da

via

prin

cipa

l e c

om r

ecuo

s la

tera

is.

É co

ntor

nada

pe

la

ram

pa e

m fo

rma

de fe

rrad

ura,

qu

e te

m p

rese

nça

mar

cant

e no

con

junt

o e

que

dá a

cess

o a

todo

s os

pav

imen

tos.

Pad

rão

dife

renc

iado

par

a a

époc

a, q

ue

reve

lava

os

va

lore

s de

um

a

clas

se s

ocia

l em

asc

ensã

o, tr

a-du

zido

atra

vés

da m

onum

en-

talid

ade,

da

esté

tica

exóti

ca e

do

por

te d

a es

trut

ura

de c

on-

cret

o (..

.) Re

ssal

te-s

e a

adeq

ua-

da im

plan

taçã

o da

res

idên

cia,

qu

e fa

vore

ce a

ilu

min

ação

e

venti

laçã

o do

s vá

rios

ambi

-en

tes,

sob

retu

do n

as v

aran

das

e em

tod

a a

área

de

laze

r no

s do

is úl

timos

pav

imen

tos.

Por

to

dos e

sses

asp

ecto

s cita

dos,

a

edifi

caçã

o ai

nda

hoje

con

stitu

i m

arco

visu

al n

o en

torn

o, d

is-tin

guin

do-s

e da

s dem

ais.”

A ar

quite

tura

in

com

um

cham

ou a

tenç

ão d

os ó

rgão

s pú

blic

os p

ara

a im

port

ânci

a da

ca

sa c

omo

patr

imôn

io m

ate-

rial,

mas

o im

agin

ário

pop

ular

fa

z te

mpo

a e

tern

izou

relíq

uia,

da

quel

as

que

se

cont

empl

a te

ntan

do a

divi

nhar

o p

assa

do.

Não

é d

ifíci

l and

ar p

elas

imed

i-aç

ões

da A

veni

da J

oão

Pess

oa

e en

cont

rar q

uem

fale

da

Casa

do

Po

rtug

uês

nom

eand

o-se

te

stem

unha

ocu

lar

da h

istór

ia

do

imóv

el

– Fo

rtal

eza

tem

de

sses

per

sona

gens

mai

s fa

n-tá

stico

s do

que

reai

s.

É o

hom

em d

e ba

rba

bran

ca

no e

xpre

sso

Para

ngab

a -

Mu-

curip

e qu

e br

ada

ter c

onhe

cido

o

“ben

dito

por

tugu

ês”,

tinha

m

sido

até

amig

os n

a ju

vent

ude!

; é

o vi

zinho

qua

se c

ente

nário

, qu

e ve

ndeu

os

azul

ejos

Kab

-lin

usa

dos

no r

eves

timen

to d

a co

zinha

da

casa

; é a

moç

a qu

e pa

ssa

em

fren

te

quas

e co

r-re

ndo,

ao

reto

rnar

da

esco

la,

tem

endo

o p

rédi

o “m

al-a

ssom

-br

ado”

. Tod

as t

este

mun

has

de

suas

pró

pria

s hi

stór

ias,

doc

u-m

ento

s da

lem

bran

ça o

u de

-va

neio

, cad

a qu

al c

om u

ma

ex-

plic

ação

óbv

ia p

ara

cons

truç

ão

de u

ma

casa

tão

gran

de p

ara

a fa

míli

a pe

quen

a do

por

tugu

ês,

para

a ra

mpa

em

det

rimen

to d

a es

cada

, par

a os

arc

os q

ue c

on-

torn

am o

s pa

vim

ento

s, p

ara

o te

to j

ardi

m q

ue c

oroa

tod

a a

estr

utur

a. S

ão e

sses

os a

pont

a-m

ento

s tr

espa

ssad

os p

ela

sub-

jetiv

idad

e do

nar

rado

r qu

e se

pr

ivile

gia

no c

onto

– r

egist

ros

da m

emór

ia e

da

imag

inaç

ão

que

cons

titue

m a

pro

va d

e qu

e a

men

te h

uman

a se

apr

opria

do

inex

plic

ável

.

Ade

ndo

ao

Con

to O

Pre

nci

o

Page 21: Revista Cores   Reportagens

Hospício glob-al. Esse termo, lançado para o mundo num dos

livros mais vendidos do Brasil, o Vendedor de Sonhos, parece representar bem a realidade em que vivemos atualmente. Talvez por isso, o livro com um título tão inusitado esteja suscitando tanta curiosidade entre leitores brasileiros.

Buscando enquadrar-se no sistema, homens e mulheres es-condem-se por trás de roupas de grife, carros do ano, sorri-sos vendidos. Mantendo a falsa ilusão de serem felizes. Como resultado a tanta pressão, jo-gos de aparência, luta pelo poder, cresce uma população cheia de medos e marcada por distúrbios mentais, como a de-pressão, e a esquizofrenia. Sem falar nos transtornos de humor e ansiedade.

A Loucura que margeia Fortaleza

Por Lívia NunesFotos de Chico Célio

Page 22: Revista Cores   Reportagens

Como atestam os psicólo-gos, a loucura anda junto com a normalidade. Nos dias atuais, a linha que separa esses dois mundos parece estar ainda mais tênue. A prova disso está nas ruas, nas praças, nos becos, nas calçadas ou escondidos em quartos escuros.

Andar nas ruas de Fortaleza – no centro da cidade em es-pecial – nos dá uma dimensão dessa realidade. Esbarrar com “loucos” já não é uma cena in-usitada. Os números confir-mam essa tendência mundial a doenças mentais. Estima-se que 15% da população mun-dial (975 milhões de pessoas) precisem de atendimento em saúde mental. No Brasil, 28,3% milhões sofrem de algum tran-storno mental, conforme dados do Ministério da Saúde.

Um dado preocupante é o número de jovens que apre-sentam sintomas de doenças mentais. De acordo com pes-quisa realizada pela Associa-ção Brasileira de Psiquiatria, estima-se que existam, aproxi-madamente, 12,6% brasileiros, entre 6 e 17 anos, com doenças

mentais. O que equivale a 5 mil-hões de jovens.

Em Fortaleza, ainda não ex-iste uma pesquisa que demon-strem esses números. Mas considerando os dados da Or-ganização Mundial da Saúde que afirma que cerca de 3% da população, em qualquer lugar do mundo, está sujeita a de-senvolver transtornos mentais. Podemos estimar que existam cerca de 750 mil pessoas em Fortaleza propensas a desen-volverem algum transtorno mental.

Segundo a psiquiatra Nara Fabíola Costa de Brito, os dis-túrbios mais encontrados em Fortaleza são depressão e tr-anstornos de ansiedade em geral. “O transtorno depressivo é muito comum e a prevalên-cia estimada durante a vida é de 15%. O transtorno afetivo bipolar tipo I é estimado em 1%, semelhante às taxas para esquizofrenia”, informa. Outro distúrbio com grande incidên-cia são as fobias, entretanto, por desconhecerem os sintomas, os indivíduos portadores desse tr-anstorno não procuram auxílio

para superá-los.Para a psiquiatra, esses

números refletem “os males da vida moderna, sobre uma so-ciedade competitiva, que pres-siona cada vez mais o indivíduo a ser o melhor”. Outro fator que explica o aumento dos casos de transtornos mentais é o fato das pessoas estarem mais aten-tas à divulgação das informa-ções pela mídia e ao progresso da psiquiatria nos últimos anos. “Encontra-se mais porque sim-plesmente procura-se mais”, destaca.

Já a psicóloga e coordena-dora do Caps xxx, Daniela xxxx, acredita que esse aumento é em resposta a um grande vazio existencial, que possibilita que essas crises eclodam. “Eu ficar falando apenas de crise exis-tencial é um pouco burguês demais, porque nós temos out-ras questões também, como a pobreza, a falta de freios. Mas nada disso é determinante soz-inho. Temos que considerar a historia da pessoa, como ela viveu, como ela se estruturou, para ver se ela vai ter um surto ou não. Qualquer um de nós

pode ter um adoecimento emo-cional”, enfatiza.

Quanto a ligação entre po-breza e loucura, a psiquiatra Nara, vê a miséria como um fator estimulador na deflagra-ção de distúrbios mentais. “A pessoa pode ter uma vulnera-bilidade específica, que quan-do influenciada por um fator estressor importante permite que os sintomas se desenvol-vam”, observa. A miséria é uma delas! Já para uma das co-ordenadoras da Rede de Saúde Mental de Fortaleza, a psicóloga Raimunda Felix, as pessoas po-dem enlouquecer em qualquer classe. “O determinante social tem uma influencia, mas não é a causa. Não pode ser vista como a causa primeira”, rebate.

Já a coordenadora do Caps acredita que a história de vida, o histórico familiar, o contex-to em que se vive pode propiciar ou não a eclosão de doenças

mentais, e isso vai da classe social alta a classe social mais baixa. “Essa coisa do determin-ismo é complicada (...) Não é porque a pessoa é pobre que ela vai ter o transtorno. Precisa de uma série de fatores. Tem morador de rua que não tem o transtorno mental. O que vai determinar isso é a estrutura de cada um”, destaca.

Contudo, estima-se que as doenças psiquiátricas têm grande chance de se desen-volver na pobreza, onde va-lores humanos são esquecidos e massacrados pela dor, fome e rejeição. “Nenhum antidepres-sivo vai aliviar a dor de não ter o que comer, o que vestir, de viver inseguro, com medo da violência urbana (...). A questão é puramente social e não de

saúde pública”, critica Nara.

Para Dan-iela xxx,

e s s a

Page 23: Revista Cores   Reportagens

realidade de dor e medo é vi-venciada no cotidiano dos Caps, aonde, diariamente, chegam várias pessoas - trazidas por amigos, familiares ou vizinhos -, buscando ajuda após tentar o suicídio.

Desmistificando a idéia de que a pessoa com distúrbio mental é perigosa para a so-ciedade. Nara alerta: “É tão perigoso quanto qualquer pes-soa dita “normal”. De acordo com a psiquiatra, o psicótico ou neurótico só irá se defender - segundo a lógica dele, é uma defesa, não um ataque – das pessoas que a mente delirante dele considere como um pos-sível perseguidor. Raimunda Felix também defende a mesma opinião. Para ela, essas pessoas são como qualquer outra.

Para ajudar a desconstruir o imaginário popular de que essas pessoas são perigosas, a Secretaria da Saúde Mental de Fortaleza está promovendo encontros, rodas de conversa e atividades socioterápicas, e fechando parcerias com out-ras secretarias – Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Secretaria de Meio Ambiente -, a fim de inserir os pacientes dos CAPS em trabalhos solidários.

De acordo com o Relatório de Gestão de Saúde Mental 2008, entre 2005 e 2008, di-versas ações foram executadas visando mudar o quadro de

abandono em que se encon-tram as pessoas com transtor-nos mentais. A contratação de equipes de saúde mental, a es-truturação dos serviços, a qual-ificação profissional, o incentivo ao controle social e a discussão, o planejamento e avaliação do pro-cesso de implantação da Reforma Psiquiátrica em Fortaleza, que visa a desinstitucionalização e a inclusão social, são algumas dessas ações.

Como parte do plano de d e s i n s t i t u -cionalização, os hospitais psiquiátricos estão sendo substituídos, e seus antigos pacientes estão sendo trata-dos em CAPS, R e s i d ê n c i a s Terapêuticas e hospitais gerais. As mudanças nos tratamentos têm resultado boas médias. Somente em 2008, houve uma redução de 200% na média de permanência das inter-nações psiquiátricas em hospi-tais gerais. Antes, os pacientes passavam, em média, 40,6 dias nos hospitais psiquiátricos, agora, sendo tratados em hos-pitais gerais, a média caiu para 13,3 dias.

Segundo dados fornecidos pelo Relatório, ao longo de 2008, a SMS fez um investimen-to financeiro de R$ 8.380.775,59 com a Rede Assistencial de Saúde Mental. Dos quais, R$ 1.926.401,79 foram destinados a parcerias com instituições que produzem serviços espe-cializados, como formação de pessoal e consultorias em saúde

mental. No que diz respeito à assistência farmacêutica, houve um inves-timento total de R$ 1.072.358,34 para compra de psicotrópicos.

Uma novi-dade no que se refere ao trata-mento de doen-ças mentais é a Oca de Saúde C o m u n i t á r i a , inaugurada em 2007. Nela el-ementos sociais

e culturais da comunidade do Conjunto São Cristovão, como curandeiros, artistas populares, poetas são agregados, a fim de preparar o grupo para os de-safios do dia-a-dia e estimular a consciência social. Com um tratamento mais alternativo, que visa a prevenção e a cura, a Oca utiliza práticas de mas-soterapia, argiloterapia e relax-

amento. “A gente trabalha com o que o território apresenta de potencialidades”, ressalta Raimunda Felix.

Apesar dos avanços perce-bidos no tratamento de doen-ças mentais, há muito a ser feito. Como atesta o Relatório é necessária uma melhor articu-lação entre os serviços da rede assistencial, para reduzir inter-nações sucessivas nos hospitais psiquiátricos; garantir psicofár-macos de forma continuada e sistemática; capacitar profission-ais do SUS para exercitar a escuta e dar suporte ao sofrimentol; fortalecer o trabalho de inclusão produtiva, dentre outros.

De acordo com a psiquia-tra Nara Brito, o modelo ideal de assistência à saúde mental seria aquele em os portadores de transtornos mentais graves fossem tratados no CAPS e as-sistidos por uma equipe mul-tidisciplinar, compostas por psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, enfermeiro, assis-tente social, dentro de um pro-jeto terapêutico individual, de-senvolvido em conjunto com a equipe de referência e visando a reinserção social e a deses-tigmatização. Em momentos de crise, deveria ser assistido a nível hospitalar, de preferência em leitos psiquiátricos em hos-pital geral, por curtos períodos.

Para a psiquiatra, a idéia do CAPS é um pouco distorcida

As mudanças nos tratamentos têm

resultado boas mé-dias.Somente em 2008, houve uma

redução de 200% na média de permanên-cia das internações

psiquiátricas em hospitais gerais.

Page 24: Revista Cores   Reportagens

em níveis locais. “O CAPS nasceu como um serviço substitutivo às internações psiquiátricas, tendo como público-alvo psicóticos e neuróticos graves e não pacientes com transtornos leves que de-veriam ser atendidos em ambu-latórios de psiquiatria”, adverte. A médica, que não defende nem o modelo “CAPScêntrico” nem “hos-pitalocêntrico” – focados em CAPS e hospitais psiquiátricos respec-tivamente -, vê na diversidade dos equipamentos a melhor forma de tratar os pacientes.

A coordenadora do Caps xxx, Daniele, admite: “Casos leves, na realidade, não são para serem trat-ados no Caps. Caps é para trata-mento de casos graves e modera-dos, onde há interrupção de vida social. Só que a nossa rede ainda não está preparada para assumir essa responsabilidade”.

A coordenadora Raimunda afir-ma que embora ainda se conviva com os dois modelos, “o nosso ide-al seria aquele que não precisasse mais internar ninguém no hos-pital psiquiátrico, onde pudésse-mos dar conta disso nos hospitais gerais e nos caps. Mas isso é uma construção”.

A Rede de Assistência a Saúde Mental teve um grande avanço, porém, “a consolidação de uma política que tem em sua essência a transformação do modelo assis-tencial e da cultura não acontece em um curto período de tempo. Acredita-se que o caminho que

está sendo construído é o caminho da transculturação, no qual a so-ciedade mudará sua lógica na com-preensão e aceitação da loucura, como sendo inerente à natureza humana”, concluiu a Coordenação Colegiada de Saúde Mental.

Um sonho de liberdade

Ao todo em Fortaleza existem 14 CAPS, que, tecnicamente, dever-iam atuar em casos de transtornos moderados e severo. Entretanto, a carência de residências terapêu-ticas, postos de atendimento oca-siona a sobrecarga dos CAPS, que são obrigados a atuar em casos de transtornos leves. Em defesa ao fim dos manicômios e da reinser-ção dos pacientes na sociedade, através da convivência diária e da volta ao trabalho, os CAPS surgi-ram e vem se firmando como um importante meio de acolhimento e tratamento de pacientes com vari-ados tipos de psicoses e neuroses.

Cientes da difícil realidade das pessoas que procuram tratamento nos CAPS, os profissionais do CAPS XXX uniram-se aos pacientes, para juntos encontrar o melhor camin-ho para alcançar a realidade ou, pelo menos, chegar mais próximo dela. “Uma vez mergulhado numa crise, quem vai dizer aonde quer chegar são eles. A gente vai dando as ferramentas. Essa melhora é subjetiva em termo de retomada de vida”, adverte Daniela.

Envolvidos em atividades

terapêuticas, os freqüentadores do CAPS participam de grupos de conversa, oficinas, atendimento psicoterapêutico individual, ativi-dades de relaxamento, em que a arte, através da música e atividades corporais e manuais, é usada como terapia e forma de expressão.

Vindos de vários mundos, diferentes realidades e abatidos por múltiplas causas desencadead-oras dos transtornos, os pacientes do CAPS xxx encontram conforto e amizade entre novos amigos, com semelhantes delírios e vidas distintas, e médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, artistas, farmacêuticos, assistentes sociais, que juntos lutam por uma vida mais humana e igual.

Logo ao entrar no CAPS já se percebe que não estamos num lugar comum. Diferente do que poderíamos imaginar, é um lugar alegre, bonito e com variadas ro-tinas, sons e cheiros. Não é difícil encontrar um personagem ansio-so para falar de si e das suas idéias, por vezes, fantásticas. Mas mais ainda para serem vistos e ouvidos como pessoas pensantes e ricas de subjetividade.

Ansiando adentrar aquele mun-do em parte desconhecido, camin-hei e, entre um passo e outro, fui encontrando personagens vivos para essa matéria. Ocupados em uma das oficinas ofertadas pelo CAPS, encontrei quatro homens entretidos no trabalho de recu-peração de uma mesa. Sociáveis,

Page 25: Revista Cores   Reportagens

sorridentes e simpáticos, eles foram respondendo, entre risos, a uma e outra pergunta que os fazia.

Há dois anos envolvidos na oficina de marcenaria, onde a terapeuta ocupacional Fernan-da Maria Ramos Barbosa faz um trabalho de resgate da auto-es-tima, do poder de decisão e do equilíbrio, todos são unânimes ao afirmarem com um sonoro sim o prazer de participar dela. Fernanda observa que os bons resultados devem-se as de-cisões democráticas tomadas: “Tudo é feito com eles, com a participação deles”.

Segundo terapeuta, os re-sultados são positivos: “Muitas

pessoas vêm apenas para fazer a manutenção. Muitas pessoas se restabelecem e voltam a ter uma vida normal. Trabalham, estudam, namoram”, comem-ora. Segundo a coordenadora Daniele, alguns pacientes vêem muito mais significado nas tarefas que desempenham hoje do que quando trabalhavam. “Cada caso é uma caso. Cada caso é uma história”, pontua.

Apesar da curiosidade de saber um pouco sobre todos, minha atenção se deteve num homem de sorriso largo, dentes perfeitos e roupa social. Eraldo de Sousa Rocha, 40 anos, mo-rador do Montese, de pronto se destacou. Com português

Page 26: Revista Cores   Reportagens

correto, voz clara e detal-hada e algumas pausas para reflexão, ou mesmo pegar fôlego, Eraldo não se inibiu ao falar sobre si a uma curio-sa desconhecida.

Adorador de Deus e dos assuntos ligados à galáxia, o filho de mãe viúva e tio de 10 sobrinhos, disse que além de ler a bíblia, gosta de assistir ao jornal. “Eu gosto porque mostra a realidade”, comenta. Contraditório ou não, o certo é que ele seguiu falando de Deus. Entre uma conversa e outra, Eraldo disse que já traduziu uma bíblia do in-glês para português e que, nos momentos livre, gosta de fazer poemas evangélicos.

Mas esse jovem senhor, com alegria de criança, con-tinua surpreendendo. Ex-recepcionista de um hotel quatro estrelas de Fortaleza, Eraldo garante falar inglês e francês e engata um diálogo em francês, um pouco con-fuso, como nosso fotógrafo. Outra supressa foi a revela-ção de que mantém contato, via cartas, com a Sociedade Bíblica Trinitariana, na In-glaterra. O que garantiu brin-cadeiras e risos dos amigos. Porém, Eraldo não se inibiu e continuou respondendo às perguntas.

Mesmo preferindo ter cursado informática “para di-

vulgar a mensagem de Deus”, Eraldo elogia a profissão de jornalista e lança a perguntas que me deixa sem resposta: Você teria coragem de fazer uma reportagem na Faixa de Gaza? Não demorou muito para eu inverter a situação, ao perguntar sobre o grande amor dele. Eraldo soltou uma sonora gargalhada e limitou-se a afirmar: “tem que casar”.

O homem que prefere orar a rezar, faz casinhas porque parecem com igrejas e acred-ita que Israel dominará o mundo sofre de esquizofre-nia, mas parece não se in-comodar ou não perceber problema nisso. Alto astral, ele nos prestigia com alguns versos: “Adoremos a Deus em espírito e em verdade, pois a sua volta está próxima. O filho de Deus, Jesus Crido de Nazaré”.

Saiba Mais>> O perfil dos pacientes dos Caps são de pessoas que sofrem de tran-storno mental grave a moderado, como depressão, pânico e esquizof-renia. >> Compõem a Rede Assistencial de Saúde Mental de Fortaleza: 14 CAPS - 06 CAPS Gerais, para tran-

stornos mentais de um modo geral; 06 CAPSad, para pessoas que apresentam uso ou abuso de álcool ou outras drogas e 02 CAPSi, voltados para crianças e adolescentes;1 Residência Terapêutica; 1 Unidade de Saúde Mental em Hospital Geral, com 30 leitos; 1 Serviço Hospitalar de Referên-cia em Álcool e outras Drogas, com 12 leitos; 2 Emergências Psiquiátricas Especializadas e 09 Emergências Clínicas em Hospitais Municipais, 18 Equipes de Apoio Matricial em Saúde Mental, apoiando ações de saúde mental na Atenção Básica; 3 Ocas de Saúde Comunitária, que realizam atividades de pro-moção de saúde, com os grupos de resgate de auto-estima, e massoterapia.

>> Hospitais que fazem parte da Rede Assistencial Hospitalar:Hospital Nossa Senhora das Graças e Hospital Gonzaguinha da Barra do Ceará para o aten-dimento dos usuários através do internamento clínico e/ou psiquiátrico no HospitalClínico; Hospital Batista Memo-rial – Unidade de Saúde Men-tal Ana Carneiro/Instituto Dr. Vandick Ponte para internação psiquiátrica dos usuários dos CAPS.

Page 27: Revista Cores   Reportagens

Segundo a psicologia, a loucura ou insânia é a condição da mente hu-mana caracterizada por

pensamentos considerados anor-mais pela sociedade. As doenças mentais, comumente enquadradas como loucura, existem há cente-nas de anos. Entretanto, a história da loucura vai ganhando sentido e conotações diferentes conforme a época.

Se na Idade Média o louco era visto com certo misticismo, até mes-mo como sagrado, a partir do século XVII, o louco vai ser visto como per-turbador da ordem social, tornando-se um excluído, relegado ao confina-mento. Com essa mudança na forma de ver o louco, surgem os primeiros internamentos. Ao contrario do que poderia se pensar, os hospícios não foram criados para curar ou tratar e, sim, para evitar que os loucos ficas-sem vagando nas ruas das cidades.

Maus tratos, medo, preconceito, discriminação. São algumas das pa-lavras associadas aos manicômios. Visando desmistificar a idéia de loucu-ra e inserir pessoas com transtornos mentais na vida em comunidade, surgiram as Lutas Antimanicomiais nos anos 70, que deram início à Re-forma Psiquiátrica, definida pela Lei 10216/2001 (Lei Delgado). Nela um dos seus artigos diz que o Ministério Público deve ser comunicado até 72h todas as internações psiquiátricas,

com as devidas justificativas. Essa Lei tem impedido que mui-

tas arbitrariedades sejam cometidas. Quem nunca ouviu falar, nem que seja por meio das telenovelas brasileiras, casos de pessoas sãs ou com peque-nos surtos nervosos que foram inter-nadas por familiares de forma irre-sponsável ou maldosa. Muitas delas acabaram de fato perdendo a luci-dez e estão até hoje trancafiadas em muitos hospitais psiquiátricos que ainda existem Brasil a fora.

Com o objetivo de transformar esses hospitais em locais de passa-gem e, posteriormente, extingui-los, as lutas antimanicomiais propõem a reinserção desses pacientes aban-donados e esquecidos no tempo. Segundo a coordenadora da Rede Assistencial de Saúde Mental de For-taleza, Raimunda Felix de Oliveira, essa luta é defendida pelo municí-pio: “A gente aqui em Fortaleza tem a política municipal de saúde mental que é baseado no fim dos hospitais psiquiátricos e na substituição desse modelo por um modelo de atenção psicossocial”, observa.

Diferentemente de 30 anos atrás, as Lutas Antimanicomiais já alcan-çaram uma longa lista de conquistas. A reformulação do modelo de Aten-ção à Saúde Mental, que prega o fim da instituição hospitalar em prol de uma Rede de Atenção Psicossocial, estruturada em serviços abertos e comunitários, é um bom exemplo

disso. Somente nos últimos quatro anos o número de CAPS pratica-mente quintuplicou em Fortaleza. Pulando de três para 14.

De acordo com o Relatório de Saúde Mental e Cidadania 2008, da Secretaria de Saúde de Fortaleza, “a implantação de uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátri-co fundamenta-se nos princípios do SUS, da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial, da Política de Humanização”. Segundo Raimunda Felix, um dos serviços dentro desse modelo é a unidade de internação dentro do hospital geral.

Na proposta de desinstitucional-ização da loucura em Fortaleza está a criação das Redes Assistenciais Hospi-talares em substituição aos hospitais psiquiátricos e a garantia de acesso aos serviços comunitários, evitando a internação e a permanência de pes-soas com transtornos mentais em hos-pitais psiquiátricos.

Assim, a partir das Redes Assisten-ciais, usuários dos hospitais psiquiátri-cos de Fortaleza estão sendo transferi-dos para uma Residência Terapêutica, onde será iniciando um processo de ressocialização e de resgate da cidada-nia. “As residências são casas de mo-radias para as pessoas que não tem nenhum vinculo familiar, que são mo-radoras de hospitais psiquiátricos há muito tempo” explica Raimunda.

Como resultado da política An-timanicomial, entre 2005 e 2008, a

quantidade de usuários internados por transtornos mentais esquizotípi-cos e delirantes e transtornos do hu-mor (afetivo), em Fortaleza, reduziu em 24,07%. Conseqüentemente a essa redução, o valor total pago pe-las internações psiquiátricas refer-entes aos diagnósticos dessas doen-ças também diminuiu.

Em contrapartida, houve um au-mento de cerca de 280% no número de visitas domiciliares e institucio-nais e um acréscimo de aproxima-damente 590% do número de aten-dimentos individuais. Em relação ao número de atendimentos grupais e atividades comunitárias, houve um aumento de cerca de 390%, compa-rando os anos de 2006 a 2008. Para a coordenadora, esse aumento deve-se a abordagem aberta dos CAPS em contato direto com a comunidade.

Apesar das muitas conquis-tas alcançadas ao longo dos anos, é preciso criar ainda uma rede de saúde mental sólida e integrada em Fortaleza, que garanta atendimento de qualidade e o acompanhamento com profissionais qualificados e ex-perientes. A rede de saúde mental é basicamente baseada em hospitais psiquiátricos e CAPS. É necessário diversificar. “Precisa haver mais residências terapêuticas, CAPS, am-bulatórios de psiquiatria, centros de convivência, leitos de psiquiatria em hospital geral”, argumenta a psiquia-tra Nara Brito.

Lutas antimanicomiais anseiam o fim do isolamento

Page 28: Revista Cores   Reportagens

O mundo de imaginação do poético homem sem razão

Se antes as pessoas com distúrbios mentais mantin-

ham-se isoladas da sociedade, esta lógica está sendo invertida. É comum encontramos pessoas com transtor-nos mentais perambulando pelas ruas de Fortaleza. Abandonados, fu-gitivos? Não se sabe! O certo é que esses personagens inusitados perme-iam as entranhas da cidade, procla-mando frases soltas, brigando com o inconsciente ou dando respostas aos sofrimentos humanos.

Aos freqüentadores da pracinha da Gentilândia, no Benfica, não deve ter passado despercebida a presença de Nelson. Mesmo por trás de uma barba espessa, pele curtida pelo sol e vastos cabelos desgrenhados, perce-be-se um jovem, com pouco mais de 24 anos, de rosto sofrido e olhos ex-pressivos. Vestido com farrapos e de pés descalços, o antigo flanelinha, que hoje vive de ajuda, passa seus dias per-correndo a praça e proferindo frases, para muitos, incompreensíveis

Com passos firmes, ele transita entre os passantes, buscando, com olhar ávido, alguém que lhe dispense um pouco de atenção. Entretanto, os que passam, embora alimentem curi-osidades e se indaguem quem é essa pessoa? O que faz? Onde vive? Como chegou a esse estágio de loucura?

Parecem escolher permanecer na in-diferença, desviando o olhar quando confrontados.

O que se percebe, como observa-dor oculto, é uma tensão pairando no ar. As pessoas fingem conviver com naturalidade, com aquele homem em plena efervescência mental, mas fecham-se em si, a fim de evitar con-frontos, talvez com seus medos, pre-conceitos ou temores.

Os que conhecem o jovem, que dorme nos arredores do bairro, pro-tegido dos intempéries numa agência bancária das proximidades, afirmam: “Quando ele era bom (lúcido) sempre falava do sonho de voltar pra família”. Segundo Miltinho, homem conversa-dor que trabalha vendendo lanches numa das barracas da praça, Nelson sempre dizia que iria mandar uma carta para o programa do Gugu Lib-erato para que o ajudassem a voltar para família.

Contudo, anos passaram, sonhos passaram e com eles levaram a luci-dez de Nelson. O homem, meio bicho, meio criança, que hoje circula sem rumo pelas ruas do Benfica, encon-tra alegria mesmo nas coisas simples. Brincar de ligar e desligar o medidor do poste, tornou-se seu passatempo. Fazer ginástica no meio da praça e jogar bola com a garotada também faz parte das suas distrações.

Entretanto, nem sempre os dias

Perfil

O mundo de imaginação do poético homem sem razão

Page 29: Revista Cores   Reportagens

são bons, e nos momentos de raiva e agitação, descarregar as energias batendo, socando ou chutando um outro poste, torna-se a sua econômica e nem tão saudável válvula de escape. Mas Miltinho garante: Ele não é violento, ele não mexe com nin-guém!”.

Recordando o Nelson son-hador do passado, Miltinho e outras companheiras da labuta lembram como ele era diferente.

“Ele era muito zeloso. Andava todo arrumado, limpo”, acres-centa uma das moças. Longe do mundo real há quase quatro anos, o homem de pouco passa-do, que vive há 18 anos nas ruas, cruza despercebido pelos olhos das autoridades e da sociedade mascarada de “boas intenções”.

Tratando-se de Nelson, as informações mesmo reais pare-cem desencontradas. O amigo flanelinha, que prefere manter a

identidade preservada, diz que há 12 anos conhece Nelson e que em todos esses anos nunca apareceu nenhum familiar do colega. Entretanto, Nelson ga-rante que sempre viveu em For-taleza e que os familiares moram nas proximidades.

Querido por companheiros dos tempos de sobriedade e aju-dado por conhecidos, o homem cabisbaixo, mas de sorriso largo e vibrante, passa os dias camin-

hando sem rumo, parando às vezes para cantarolar alguma música ou ensaiar alguns pas-sos. Foi num desses momentos de passeio que, na tentativa de um diálogo, invadi o universo imaginário de Nelson e travei uma breve conversa. Desconfia-do, ele olhava, baixava a cabeça e mexia nos cabelos. Parecia es-tar vendo um ser de um mundo distante do dele. Falou pouco, sorriu e se foi.

Citando o poeta dos lou-cos, Raul Seixas, diria que esse homem, de um nome só, de in-disfarçável conotação, o tal Fil-ho de Campeão, Nelson, talvez pense: “Enquanto você se es-força pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual. Eu do meu lado aprendendo a ser louco. Maluco total, na loucura real... E esse caminho que eu mesmo es-colhi, é tão fácil seguir, por não ter onde ir...”.