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Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

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Houve um engano, segundo Gilles Lipovetsky: não estamos na pós- modernidade, mas na hipermodernidade. O primeiro termo, que pautou as discussões durante anos, era ambíguo e sugeria uma superação da modernidade pela pós-modernidade. O segundo termo, ao contrário, indica que a modernidade não acabou: chegou ao seu extremo. Aceleração total, velocidade máxima, sociedade do excesso. A fórmula encontrada pelo filósofo para caracterizar o hipermoderno é simples e eficaz: o mais e o menos ao mesmo tempo. Nunca se buscou tanto a magreza e nunca se teve tantos obesos. Nunca houve tanta liberdade para a expressão dos desejos e nunca houve tanta depressão.Nunca se buscou tanto o prazer e nunca se sofreu tanto por não se conseguir uma vida lúdica.

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Page 4: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

Título do original em francês: La Société de DéceptionCopyright © Éditions Textuel, 2006

Tradução: Armando Braio AraGraduado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP

Especialista em Lingüística e História Moderna da EuropaTradutor especializado nas áreas de Religião, Filosofia, Psicologia e História

Revisão técnica: Juremir Machado da Silva

Doutor em Sociologia, escritor, tradutor, pesquisador do CNPq e coordenador do Programade Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS

Projeto gráfico: Departamento Editorial da Editora Manole

Imagem da capa: www.sxc.hu. Fotógrafo: David RitterImagem detalhada de um muro coberto de cartazes publicitários antigos em Seattle, EUA.

Dàdos Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

"--,-------------_._-_.- _._-~.•._. -

Título original: La société de déceptionISBN 978-85-204-2563-3

Lipovetsky, Gilles, 1944- .A sociedade da decepção / Gilles Lipovetsky; entrevista coordenada por

Bertrand Richard; [tradução Armando Braio Ara]. -- Barueri, SP: Manole, 2007.

I. Lipovetsky, Gil1es, 1944- - EntrevistasI. Richard, Bertrand. 11.Título.

07-3549

lndices para catálogo sistemático:I. Análise sócio-cultural: Entrevista:

Sociologia 306

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquerprocesso, sem a permissão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.

Edição brasileira - 2007

Direitos em língua portuguesa adquiridos pela:Editora Manole Ltda.

Avenida Ceci, 672 - Tamboré06460-120 - Barueri - SP - Brasil

Fone: (lI) 4196-6000 - Fax: (11) [email protected]

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

CDD-306

Gilles Lipovetsky, nascido em 1944, é professor de filosofia em

Grenoble, França. L'ere du vide, publicado na França em 1983, é o seuprimeiro livro [tradução para o português publicada pela EditoraManole com o título A era do vazio - Ensaios sobre o individualismo con­

temporâneo]. Depois, em 1987, publicou pelas Éditions GallirnardL' empire de I' éphémere. La mode et son destin dans les sociétés modernes

["O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades moder­

nas"]. Nessa obra, dando continuidade às suas observações sobre asedução, o efêmero e a diferenciação marginal nas sociedades

democráticas, o autor mostra que a "moda perfeita" poderia ser um

instrumento de consolidação das sociedades liberais, veículo inédito do

Iluminismo e da dinâmica modernizadora. Em 1992 publicou Le cré­

puscule du devoir. L' éthique indolore des nouveaux temps démocratiques,

lançado no Brasil pela Editora Manole como A sociedade pós-moralista,

no qual demonstra que a revitalização dos "valores" e o espírito deresponsabilidade que nossa época ostenta não poderiam mascarar a

ausência do "retorno da moral" tradicional - rigorosa e categórica -,uma vez que, ao contrário, assistimos à emergência de uma culturainédita que difunde mais as normas do bem-estar do que as obrigaçõessupremas do ideal, de maneira que agora o rótulo ético está em todos os

lugares e a exigência de se dedicar não aparece em lugar nenhum.Em 1997publicou La troisieme femme. Permanence et révolution du

féminin ["A terceira mulher. Permanência e revolução do feminino"],

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vi A sociedade da decepção

obra em que se interroga a respeito da subsistência, no âmago do

avançado da pós-modernidade, de um elemento maior em sua alteri­

dade: o feminino. Elemento que revela o quanto a dinâmica democráti­

ca não apenas se mantém ligada ao passado histórico como tambémnão vai até o extremo de si mesma.

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I

I

Sumário I---- ---------,--i------"---- -----[---I

Prefácio

Apresentação de Juremir Machado da Silva

ix

xv

A espiral da frustração 1

Conhecemos as culturas do "aviltamento" e da "culpabilidade': No II

entanto, o hedonismo contemporâneo se conjuga com um clima de !

ansiedade e violência no relacionamento social, dando origem a um I

verdadeiro punhal de decepção. Os indivíduos se deparam com imposi-I

ções contraditórias, que se somam à histeria e à excitação provocadas II

pelo hiperconsumismo. Ao contrário da suposição comum, a decepção iI

atinge mais intensamente os desejos não materiais. O que estaria na raiz I

desse fenômeno? I!

Consagração e descrédito da democracia 35 'I'O estilo de vida consumista invadiu também a esfera política. Paralela- I

mente, o êxito da democracia liberal não demonstra essa tendência. Daí!emerge uma questão inédita: será a democracia um bem de consumo j

como outro qualquer? Gilles Lipovetsky analisa nossa cidadania hiper-I

moderna, capaz de combinar o absenteísmo mais leviano com os mais Isinceros surtos de indignação, sempre que houver motivos para se sus- iI

peitar de alguma investida contra os princípios do direito e da liberda- i

de. Reflexão sobre o código genético da sociedade democrática contem-I• Iporanea. I

II

I

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viii A sociedade da decepção

Uma esperança sempre renovada 63

O arrojo da investida hiperconsumista, que integra e absorve os maiselevados anseios do gênero humano, determina uma reviravolta em

todos os parâmetros morais tradicionais que, há menos de cinqüentaanos, ainda pautavam a nossa conduta. Com isso, a tentativa de comba­

ter frontalmente o capitalismo consumidor, além de ineficaz, resulta

quimérica. Será na base da "paixão contra paixão" que conseguiremosfazer recuar a hidra consumista.

Prefácio--",,-- ------_._._------_. __ ._-_.-.-------_.

1 Este romance de Huysmans contém a essência da filosofia do Simbolismo. Consa­gra o primado da imaginação, concebendo-a como a rainha das faculdades huma­nas, segundo a definição de Baudelaire. O conde des Esseintes, figura idealizadapelo autor, é emblemático da época: vive em sua casa como se vivesse em um mos­teiro, e sonha com a progressão contínua dos males no decurso das eras. A perso­

nagem se retrai, hermeticamente, do contato com o mundo, não ousando nemmesmo sair em viagem, com medo de decepcionar-se com a realidade. (N. E.)

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x A sociedade da decepção

Lipovetsky, um especialista em hipermodernidade, estaria apenas

dando continuidade ao percurso trilhado há mais de um século por

analistas diversos, intentando desvendar as várias etapas do mesmomal-estar social, como fazem, em nossos dias, os estudos de Cioran ou

de Houellebecq?

A resposta comporta matizes. Evidentemente, o autor de A Era do

vazi02 não ignora que a decepção em relação à vida, em todos os perío­

dos históricos, sempre corresponde a uma ausência do sentido de ser, a

uma insatisfação existencial cujos tentáculos se estendem a todos os

campos da atividade humana. Mas a decepção moderna se radicalizou,

assumindo proporções indiscutivelmente inéditas em toda a história do

Ocidente. Qual a causa disso? Acaso seríamos dotados de uma disposi­

ção de espírito mais propensa ao meta físico, mais dada ao spleen3 do que

nossos antepassados? Certamente não. Em contrapartida, cada um de

nós vive em um mundo à parte. A moda, o hedonismo, o nomadismo

tecnológico e afetivo, o individualismo avassalador são coisas que a filo­

sofia do consumo sustenta e promove a cada instante, e que servem

como fio condutor ao trabalho de Gilles Lipovetsky e como chave inter­

pretativa de nossa modernidade. O que importa saber é que esses fenô­

menos nos tornaram mais responsáveis por nossa própria felicidade,

assim como mais submissos aos seus ditames, um tanto impositivos e

bem moldados pelo marketing. Quanto mais amplas e indefinidas são

as nossas possibilidades de escolher um futuro individual, mais inima­

gináveis os recursos disponíveis para criar novos estilos de vida, mais o

ideal de harmonia parece estar ao nosso alcance, e mais a privação des­

ses meios ecoa como algo inadmissível e frustrante. Eis no que consiste

o império da decepção: liberdade estendida a todos os domínios da vida

humana, sobre um fundo de liberalismo áspero e falta de convicção. Daí

"o cansaço de si mesmo", os elevados índices de suicídio, a depressão, as

diversas dependências ...

2 Gilles Lipovetsky, A era do vazio: ensaios sobre o individualismo. Editora Manole;2005.

3 Em inglês, sentimento vago de melancolia ou de vazio de alma. (N. E.)

Prefácio xi

Dessa configuração particular das coisas provém uma tendência não

exatamente cínica, mas um questionamento constante (embora mur­

cho e abatido) do significado das próprias atitudes, o que nos transfor­

ma em crianças mimadas pela sociedade de abundância material. Comessa mania de consumo cada vez mais intensa, acabaremos consumin­

do até o nosso legado de bens materiais e espirituais que sucessivas gera­

ções de seres humanos aspiraram constituir. Por um lado, desperdícios

de toda espécie; por outro, notório desinteresse pela vida pública demo­

crática: talvez não sejamos verdadeiramente dignos das conquistas de

nossos antepassados. Todavia, não se encontrará em Gilles Lipovetsky

uma leitura moralizanté ou metafísica desta era da decepção. Revela, ao

contrário, uma aguda percepção inspirada em Pascal, que pretende dis­

tinguir as molas propulsoras, as contradições, os rumos insuspeita dos

de nosso tempo. Com efeito, estamos tentados a incriminar apenas a

exacerbação desenfreada do consumismo em meio a uma onda decep­

cionante como a nossa, de modo a reproduzir a oposição clássica entre

um materialismo malvado e a salvação decorrente dos bens da alma e

do espírito ... além de esconder a necessidade de se fazer um exame cri­

terioso e metódico de outros aspectos de nossa época.

Dentr9 de uma lógica puramente depreciativa da modernidade,

cOI]}o.-J:(darcom o extraordinário surto de iniciativas sociais e associa­

ções beneficentes? É por isso que hoje, conforme observa Gilles Lipo­

vetsky, não é de bens materiais que estamos mais desprovidos. Um refri­

gerador, por exemplo, é certamente um bem de consumo que preenche

todos os requisitos necessários, sendo essencialmente o mesmo em suas

regras básicas de funcionamento e não podendo, por si, nos decepcio­

nar. Talvez o desapontamento teria origem na comparação que, natural­

mente, somos levados a fazer entre as nossas posses e as posses alheias.

Mas essa também é uma suposição falha, pois é possível que alguém

tenha prazer com a posse de um automóvel popular tanto quanto um

outro com seu veículo de alto padrão. Tampouco essa sensação proviria

dos serviços públicos, das denominadas produções culturais - houve

tempo em nos dizíamos "desapontados" com a sofrível qualidade de um

filme ou de um livro - ou dos insondáveis mistérios do amor, da sexua­

lidade, a intensidade vibrante freqüentemente contrariada de nossas

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xii A sociedade da decepção

existências. Assim, acabamos por deduzir que nossa fonte de desconfor­

to são fatores menos palpáveis, mais especificamente humanos, queencontram no decorrer da vida momentos dignos de lágrimas.

E como não se sentir desiludido, chocado, penalizado diante das

diversas modalidades de democracia liberal, supostamente inspiradasna observância aos direitos humanos, mas que permitem tanto sofri­

mento impunemente? É por esse emaranhado de mazelas que GillesLipovetsky nos conduz, sempre evitando cuidadosamente o ato de jul­gar. É certo que essepensador original, à margem das controvérsias con­ceituais, que não gosta dos sistemas e se aborrece com os refinamentos

do pensamento puro, procura principalmente nos fatos o delineamen­to de nossa existência real. Nestes últimos tempos, seu método aparece

conjugado a uma inegável sensibilidade a tudo que fracassa, a tudo queé falho, a tudo que torna a vida mais melancólica - tal o anelo de Lipo­vetsky, tantas vezes acusado de ser um otimista incorrigível.

É verdade que, quando ingressou no mundo da escrita, em 1983,pre­tendeu opor-se (para contrabalançar) às idéias cheias de desconfiança

muito em voga quando cursava filosofia. Também é verdade que, graçasa seu espírito de fruição da vida, que se compraz em deambular pelascidades examinando os cartazes de publicidade, o comportamento dasmulheres, as oscilações da moda, as formas variegadas de prazeres deuns e outros, ele sempre defendeu a tese de que, nas escolhas e nos

rumos que adotamos, está presente um grau de liberdade infinitamen­

te maior do que querem reconhecer os hermeneutas da dominação. Emtodo caso, seu trabalho consiste atualmente em apresentar os pormeno­res muitas vezes contraditórios de nosso dia-a-dia, sem se importarcomo o palavreado teórico de estilo.

É evidente, segundo o autor, que a era do consumo, ou do "hipercon­sumismo", modificou muito mais a nossa vida do que todas as corren­

tes filosóficas do século XX reunidas, tanto para o bem quanto para omal. Para o bem, em sua opinião, porque concorreram muito mais para

o funcionamento da máquina liberal do que todas as manifestações dosagitadores públicos que tentam nos desalienar da ditadura das grifescom as organizações de baixo custo. Para o mal, porque hoje tudo (ouquase tudo) é considerado com base em esquemas típicos do consumo:

Prefácio xiii

as relações preço/qualidade, prazer/desconforto, competitividade/des­crédito. E isso não nos propicia uma dose maior de felicidade.

Todavia, se para Gilles Lipovetsky o "fim da História" é algo que cate­

goricamente não poderia existir, resta o direito de trabalhar para que afebre consumista, justamente nos excessos que a caracterizam de modo

mais específico,não passe de uma afecção transitória do gênero humano.

Bertrand Richard

Coordenador da entrevista

//

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__......_""..__"."__~,______""_..__.,..-.!\prç~çº!.ª_ç.i:i.ª__j ....A sociedade da (in)comunicação

e da (in)diferença

Gilles Lipovetsky é um pensador alegre.

Um pensador da vida como ela é e como ela se dá a ver.

Algo muito raro entre os sempre tão sombrios intelectuais. Como pen­

sar quase sempre significa pôr algo em crise, abalar certezas, os intelectuais

acabaram por se tornar tristes. São homens e mulheres, muitas vezes, ver­

gados pelo peso de um saber pessimista e rabugento. O conhecimento

torna-se para eles um fardo. Quase não há espaço para a leveza no pensa­

mento de muitos analistas do vivido. O pior é que quase não há espaço

paF<KYVi~idono pensamento sistêmico de muitos intelectuais renomados.

O vivido é cheio de imprecisões, de incertezas, de contingência e de con­

tradições. Logo, para quem busca a pureza do conceito, é melhor deixar

tudo isso de lado, com os jornalistas, os cronistas, os comentaristas do

cotidiano e outros assim. O empírico horroriza os teóricos.

Muita gente classifica os pensadores, esses seres estranhos, como se

fossem vinhos, queijos, massas ou chocolates: por nacionalidade. Os

alemães seriam pesados e graves, altamente calóricos. Os franceses ten­

deriam para a nouvelle cuisine, leves (ou levianos?) e cheios de boas fór­

mulas diets ou com pouca substância. Fariam muita salada. Os ingleses

e os norte-americanos seriam pragmáticos. Mestres em receitas fáceis.

Especialistas em fast-food cultural eficaz. Difícil, claro, é encontrar dois

intelectuais de mesma nacionalidade que se entendam. O tempero de

cada um é sempre diferente. Já em vinhos e em queijos a questão danacionalidade é de fato determinante.'

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xvi A sociedade da decepção

A originalidade continua a ser o prato principal na mesa de um pen­

sador. A simples erudição não enche barriga nem satisfaz o apetite voraz

dos leitores. Mesmo a verdade é um ingrediente secundário, talvez até

mesmo a cereja sobre o bolo. Claro que a verdade é o ideal buscado e

desejado, o licor dos deuses reservado a poucos. Contudo, na lógica do

mercado das idéias, ser original, ser inventivo, ter algo novo dizer ou

dizer algo velho de uma nova maneira, é decisivo. A repetição enfastia.

O mesmo prato servido sempre da mesma maneira faz com que o leitor

queira esquecer o cardápio. O leitor é como qualquer consumidor e

principalmente como qualquer amante da boa comida, quer conteúdo

e bom gosto numa mesma receita. Pensar deve ser estimulante, picante

e saboroso. Ler também. O paladar intelectual não suporta falta de sal.

Gilles Lipovetsky é francês. Um best-seller no seu país. Vender e ser

lido provoca desconfiança. Vender, ser lido e ser alegre provoca ainda

mais desconfiança. Autor de livros como A era do vazio e A sociedade pós­

moralista (ambos publicados no Brasil pela Manole), O império do efê­mero, A terceira mulher e O luxo eterno, ele é um dos melhores analistas

dos paradoxos da sociedade atual, que já rotulou de pós-moderna e hoje

chama de hipermoderna. Nos últimos anos, dois pequenos livros de

Lipovetsky se destacaram pela clareza e pela precisão em tão pouco espa­ço: Metamorfoses da cultura liberal e este extraordinário A sociedade da

decepção, cujo título já é um achado sociológico indiscutível. O filósofo

põe o dedo em nossas qualidades e defeitos: nunca fomos tão livres social

e politicamente e tão submissos (ao consumismo, por exemplo); vive­

mos cada vez mais para o prazer e tendemos como nunca para a decep­

ção; saímos da era da moral do sacrifício e da obrigação do dever, que

valorizava a rigidez, e entramos no sacrifício pela felicidade e pelo dese­

jo. Somos, ao mesmo tempo, uma sociedade da diferença e da indiferen­

ça. Que fazer? Adaptar-se ou reagir?

Melhoramos muito. Pioramos bastante. Avançamos inacreditavel­

mente. Superamos tantas superstições e obstáculos. Iluminamos um

mundo antes dominado pelas trevas. Trocamos a moral pela ética e o

imperativo categórico pelos imperativos da felicidade. Lipovetsky é

intelectualmente herético. Não crê no terrível poder manipulador da

mídia. Acredita que cada vez mais as empresas praticam um marketing

Apresentação xvii

ético, comprometendo-se com a ecologia ou com o bem viver para fide­

lizar uma clientela sempre mais exigente. Talvez essa informação ainda

não tenha chegado a todo o Brasil. Segundo Lipovetsky, já não quere­

mos viver de maneira ascética, mas admiramos quem se doa aos outros.

Não queremos viver como Madre Teresa de Calcutá, mas estaríamos

quase sempre prontos a fazer doações e a participar de campanhas

beneficentes, o que é facilmente perceptível quando a televisão promo­

ve campanhas de arrecadação de fundos para causas beneficentes.

Há muito que Lipovetsky causa polêmica. Boa e necessária polêmica.

Combate de idéias e de fundamentos. Desde que ousou afirmar que a

moda é um fator de democratização. Ultimamente, tem defendido,

simultaneamente, a necessidade de lutar contra a miséria e de ver no

luxo um valor social legítimo. Mas ele não é um polemista tradicional.

Não se apresenta como alguém disposto a atacar os outros. Não agride.

Produz a sua visão de mundo com fartura de dados e um olhar aguça­

do e sem preconceitos em relação à novidade. O mundo tem sede de

diferença e de novidade. Só que, conforme Gilles Lipovetsky, não se

trata mais de um mecanismo de distinção. Agora, a motivação é outra:

a satisfação pessoal, estar bem consigo mesmo, gozar. Eis a máxima do

hipermoderno: gozar.

~9!JlOS complexos: queremos compromisso e independência ao

mesmo tempo. Talvez por isso os animais de estimação estejam em alta.

Nem Chico Buarque é tão amado pelas mulheres atualmente quanto os

cachorros. Se bem que, cada vez mais, com um homem ou com uma

mulher dá para "ficar" e seguir em frente. Cachorro é para sempre. Gil­

les Lipovetsky nada tem com isso. Segundo ele, há boas razões para ter

esperança no futuro. Só nos últimos 20 anos, argumenta, graças aos

benefícios da ciência, ganhamos em média mais três anos de vida. Em

contrapartida, as guerras continuam a matar em grandes doses nos

lugares mais variados. Um dos maiores'fatores da decepção atual, indi­

ca o filósofo, é o enfraquecimento da religião. Se, por um lado, multipli­

cam-se seitas, esoterismo, novas igrejas, por outro lado, cresce também

a descrença. Dados de uma pesquisa recente: somente 29% dos france­

ses acreditariam na vida eterna. Sem fé, as pessoas não têm referências

e, ao primeiro choque, caem num abismo de desamparo e frustração.

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xviii A sociedade da decepção

Filosófo dos paradoxos da sociedade contemporânea, Lipovetsky tem

uma especial capacidade para ler os antagonismos como elementoscomplementares. Numa era de racionalização, de descrença e de desins­titucionalização da religiosidade, indica, nada mais normal que o apa­recimento de seitas, movimentos de fanatismo, fundamentalismo e

integrismo. A falta geral de referência levaria uma parte das populações

de todos os cantos do mundo a apostar em referências extremas e dog­máticas. Faz sentido. O medo do vazio quase sempre leva à busca doexcesso de presença. Normalmente os intelectuais deixam de lado osparadoxos ou os examinam como marcas irônicas de um niilismoincontornável. Não é o caso de Lipovetsky.Durante muito tempo ele foi

acusado de ser demasiado otimista e de fazer a apologia de uma pós­modernidade nefasta, reacionária, brega e alienante. Cada vez mais ele

mostra que os seus críticos se enganaram radicalmente: equilibrar os

opostos é cada vez mais a sua arte. Arte da contradição.Houve um engano, segundo Gilles Lipovetsky: não estamos na pós­

modernidade, mas na hipermodernidade. O primeiro termo, que pautou

as discussões durante anos, era ambíguo e sugeria uma superação damodernidade pela pós-modernidade. O segundo termo, ao contrário,

indica que a modernidade não acabou: chegou ao seu extremo. Acelera­ção total, velocidade máxima, sociedade do excesso.A fórmula encontra­

da pelo filósofo para caracterizar o hipermoderno é simples e eficaz: omais e o menos ao mesmo tempo. Nunca se buscou tanto a magreza e

nunca se teve tantos obesos. Nunca houve tanta liberdade para a expres­são dos desejos e nunca houve tanta depressão. Nunca se buscou tanto oprazer e nunca se sofreu tanto por não se conseguir uma vida lúdica.

Nossa sociedade é dominada pelo imaginário da comunicação. Esta­mos na era da mídia e na midiatização da vida. As novas tecnologiasinvadem tudo e geram uma obsessão de interatividade. É preciso estarsempre conectado. Privado e público se confundem. Cada vez mais,cada um quer ser protagonista e contar a sua vida num blog ou noutromecanismo de exposição o que antes era reservado à família, aos vizi­

nhos e aos amigos. O grande problema é que agora cada um sente-se naobrigação de se realizar, de fazer algo da sua vida, de ser bem-sucedido,

de dar um sentidosatisfatório ao próprio destino. Ficamos livres da

Apresentação xix

obrigação de conquistar o paraíso. Estamos cada vez mais livres do

pesadelo do pecado e do moralismo. Temos direito a uma opção sexual.Podemos, em tese, andar como quisermos. Mas, em contrapartida, que­remos estar na moda e somos prisioneiros de novas e terríveis obriga­

ções terrenas. Como diz Lipovetsky, com humor, cada um pode fazer oque bem entender e ser o que bem quiser, mas é quase impossívelencontrar uma mulher que queira ser gorda. A sociedade hipermoder­

na cria novas imposições e cobra novas posturas. A liberdade pode ter

um preço muito alto: a frustração.A decepção é diretamente proporcional ao desejo. Como diz a sabe-

doria popular, quanto maior a altura, maior o tombo. Quem tudo pode

desejar, tudo pode perder.A única forma de não perder, no entanto, é não participar do jogo.

Nos tempos hipermodernos, jogar faz parte da regra. Afinal, só a vitória

pessoal interessa.Jogar significa estar conectado.Estar no jogo significa existir.Só há existência na tela dos acontecimentos.Todo acontecimento representa uma novidade.

Não há verdadeira novidade sem moda.

Entra~:~9.&-lJ.umpresente perpétuo. Não. Deixamos de cultuar o futu­ro, mas' não paramos de saquear o passado. Gilles Lipovetsky não se

cansa de sugerir que vivemos o máximo da museificação e das comemo­

rações e, ao mesmo tempo, o máximo de vinculação presenteísta.Paradoxos, paradoxos, paradoxos ...Somos individualistas e há muito de bom nisso. Mas somos também

narcisistas e egocêntricos.

Segundo Gilles Lipovetsky, o tempo tornou-se para nós o elementodeterminante. Tempo comprimido e acelerado.

Temos futuro? Qual? Lipovetsky atreve-se a crer que a sociedade con­

sumista ficará para trás, pois, como lembra nesta entrevista publicadacomo livro, trata-se de uma manifestação histórica recente. Nem sem­

pre fomos assim. Alcançaremos, aposta, uma democracia pós-consu- <

mista, na qual liberdade, responsabilidade, fé, tolerância e autonomiaserão os alicerces sociais. Ingenuidade? Gilles Lipovetsky tem um bom

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xx A sociedade da decepção

contra-argumento: a humanidade chegará a isso não necessariamentepor virtude. Mas por necessidade. Para isso, no caso brasileiro, as fave­

las terão de deixar de ser apenas uma paisagem exótica de cartão postalnegativo no caminho dos aeroportos.

Por que não?Se a modernidade se caracterizava pela crença num futuro perfeito e

se com ela ruíram o mito do progresso e as utopias revolucionárias, ahipermodernidade tem os seus próprios mitos e as suas próprias uto­

pias: utopia do corpo perfeito, da saúde total, da alimentação natural,do politicamente correto, da vida simples e sofisticada, da realizaçãopessoal, da interatividade absoluta, da cirurgia plástica corretiva, da

moda como fator de satisfação democrática e da comunicação entre osdiferentes. Na sociedade da diferença, porém, a indiferença não teme serostensiva. Exibe os seus signos por todos os lados.

A hipermodernidade seria a exacerbação da diferença.Ilusão?

Seria o homem hipermoderno livre somente para escolher a sua pri­são metafórica, uma prisão do consumo?

Qualquer definição que elimine os paradoxos da situação atual seráredutora e incapaz de captar o essencial: o vivido é feito de contradiçõese de oposições complementares que a lógica não pode eliminar pordecreto.

O homem hipermoderno, nascido do excesso de modernidade,

hiperconsumidor e hiperativo, vai além dos objetos que adora e sem os. .. .

quals nem consegUIrIaviver.Só não pode ir além do seu imaginário.A decepção, portanto, mora ao lado.

Juremir Machado da Silva

Doutor em Sociologia, escritor,tradutor, pesquisador do CNPq e

coordenador do Programa de Pós-Graduaçãoem Comunicação da PUCRS

----------------------------------~---------~--A espiral

da frustração

~.._-----,-~-~-------------------_._-----~----_._------

»GilJes lipovetsky, não obstante o título de seu primeiro livro, A Era do

Vazio, parece que a crítica encarou os seus trabalhos como uma mensa­

gem preponderante de otimismo. Também houve quem assinalasse que

não teriam sido suficientemente realçadas as dificuldades da vida social

contemporânea. Contudo, em seus últimos ensaios - Les temps hypermo­

dernes 1 (Grasse)i e o Le Bonheur paradoxafl (Gallimard) -, emerge um tomde pessimisrnólatente, como se o curso atual das coisas lhe suscitasse

certos temores. O que você pensa a respeito?

Para fornecer uma resposta adequada ao problema, não será inútil fazer­mos uma remissão ao contexto intelectual em que escrevi A Era do

Vazio. No fim da década de 1970,princípio da de 1980,o marxismo estáno centro do debate intelectual. Asproblemáticas da "falsa consciência"3,

I Os tempos hipermodernos, publicado no Brasil pela Editora Barcarolla. (N. E.: notada edição brasileira.)

2 O paradoxo da felicidade, sem tradução em português. (N. E.)3 Segundo o jargão marxista (concepção de Althusser, sobretudo), a denominada

falsa consciência levaria à aceitação do sofrimento em nome de uma ideologia quelegitimava a dor. No entender de outros, atualmente, a falsa consciência consisti­ria em obliterar o próprio sentido de sofrimento. No primeiro caso, a alienaçãoficaria chancelada, enquanto, no segundo, a própria consciência da alienação seria <

supressa. (N. E.)

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2 A sociedade da decepção

da alienação e da manipulação mental dominam as atenções. Maistarde, graças a outros pesquisadores (Louis Dumont, Claude Lefort,

François Furet, Marcel Gauchert, Luc Ferry, Alain Renaut), esse pano­

rama de fundo foi se tornando cada vez mais impróprio para expri­mir o mecanismo das sociedades desenvolvidas. Nessa direção, a relei­

tura de Tocqueville desempenhou um papel determinante para mim,ao me proporcionar novos recursos de análise. Passei, então, a anali­

sar a sociedade democrática e individualista, não mais como um epi­fenômen04 sem consistência definida, ou seja, como pura expressão

da economia capitalista. Foi caminhando nessa esteira que me propusa descrever os novos delineamentos das sociedades democráticas,

transformadas profundamente por aquilo que denominei "segundarevolução democrática':

»Isso contrasta tanto com as análises de Foucault quanto com as dos situa­

cionistas, que insistem na programação tentacular dos corpos e das almas.

Exatamente. Nesse momento, precisamente quando esses escritores,ao lado de outros, denunciavam o controle totalitário das existências

sob as máscaras de impostura da democracia liberal, eu destacava onovo papel assumido pelo indivíduo-protagonista social, bem como a

força de expansão do processo de autonomia subjetiva, impulsionadapela segunda modernidade - a modernidade do consumo, dos lazeres,do bem-estar de massa. Revelara-se inadequado caracterizar nossa

sociedade como um organismo programado, feito de compartimen­tos estanques e de condicionamento generalizado. Com efeito, a vida

privada e a vida pública foram assumindo uma feição mais livre, maisaberta, mas estruturada pelas escolhas e decisões individuais. Contra­

pondo-me à atmosfera de desconfiança reinante, procurei salientar o

processo de emancipação do indivíduo em face às imposições coleti­

vas. Foi algo que se concretizou na liberação sexual, na ruptura com

as obrigações morais, na ausência de compromisso ideológico, no

4 De modo geral, epifenômeno é um fenômeno acessório cuja presença não impor­ta na produção do fenômeno que se tem em vista. Por exemplo, o barulho ou a tre­pidação de um motor, em relação ao funcionamento do automóvel. (N. E.)

A espiral da frustração 3

estilo de vida à Ia carte. A ordem autoritária, disciplinar, moralista

fora profundamente abalada pelo hedonismo da sociedade de consu­mo. A Era do Vazio aventou uma hipótese interpretativa acerca dessa

"inspiração dominante", dessa "descontração" (o termo é de Giscard)que podia ser observada nos modos de ser, na educação, nos papéis

sexuais, na vida política. Daí a impressão de otimÍsmo que se despren­de desse primeiro livro e dos que se seguiram.

.'> Em suma, foi em contraste com essa atmosfera de suspeição que o seu

estudo acabou sendo caracterizado como otimista. Alguns chegaram a

dizer que se tratava de uma alegoria por demais simplificada a respeito da

modernidade.

Sim. O fato de ter rejeitado aquela velha cantilena sobre alienação e

controle programado da existência pelo capitalismo burocrático fezcom que me chamassem de otimista.

» Uma impressão distorcida, portanto?

Certamente não. Contudo, aos leitores mais perspicazes não terá pas­

sado despercebido que a revolução de cunho individualizante e narci­sista não foi totalmente positiva. Com efeito, se por um lado o avan­

ço democrático da liberdade trouxe um otimismo real, por outroimportava ressaltar que esse acontecimento beneficiava muito menos

o indivíduo do que se poderia supor ... Para certificar-se disso, basta lercom atenção as últimas páginas de meu estudo O Império do Efême­

ro.5 Sempre me opus ao canto de sereia das denúncias apocalípticas.O que são as diversas sociedades democráticas contemporâneas, nomeu entender, não é motivo suficiente para fazê-Ias objeto de execra­

ção. Pretendi esboçar um ensaio teórico sobre uma realidade plural,multidimensional, mas dificilmente vivida (inclusive pelos antagonis­tas declarados da modernidade) como se fosse um inferno absoluto.

Sem dúvida, nosso universo social contém elementos que, simulta­neamente, podem induzir-nos ao otimismo e ao pessimismo. Nada

5 L'Empire de /'éphémàe, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. (N. E.)

Page 14: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

4 A sociedade da decepção

disso é contraditório per se: tudo depende da esfera de realidade queestamos examinando.

Posto isso, a mudança de tom apontada no início de nossa conversa éinteiramente real, e justifica-se à luz de duas espécies de fenômenos.Primeiro, dissipou-se aquele frêmito de entusiasmo pela liberação:ninguém mais deseja ardentemente a emancipação dos indivíduos,

uma vez que tal conquista já é um bem adquirido, um terreno con­quistado. Em segundo lugar, a onda atual, caracterizada pela globali­zação e pelo culto à saúde e ao bem-estar, apresenta contornos aindamal definidos, estando cada vez mais eivada de dúvidas e incertezas.

O hedonismo foi despojado de sua aura triunfal: passamos de um

ambiente de euforia progressista para uma atmosfera de ansiedade.Antes, havia a sensação de que a existência se tornara um tanto menospesada; hoje, "tudo se contrai", endurecendo de novo. Este é o "para­doxo da felicidade": uma atmosfera de entretenimento e distensão

contínuos, de bem-estar consolidado, coexiste com a intensificaçãodos obstáculos para se viver e o aprofundamento do mal-estar subje­

tivo. Em meus livros, não estou tratando de filosofia pura - eis umponto que convém recordar. Minha única aspiração é procurar umaexplicação para as leis do pensamento, que estão por trás do encadea­mento de transformações ocorridas em nosso contexto social e histó­rico, numa perspectiva mais ampla. Não existe cultura individualistaestática nem sócio-antropologia democrática sem esquematização

dos problemas e demarcação do período histórico correspondente.Resumindo, a nova tônica da época levou-me a introduzir umamudança de tom em meus livros.

» Entretanto, será apropriado falar apenas em "paradoxo da felicidade"?

Não é verdade que estamos em presença de impulsos mais arbitrários,

que vão além de um simples "paradoxo"? Afinal. o que sentimos não seria

uma forma de decepção constante, no âmbito de um mundo monopolizado

pelo hedonismo do Homo festivus, tão bem descrito por um angustiado

Philippe Muray?

Com essa questão sobre a decepção, você toca o ponto central da vidasocial contemporânea. E já que a minha opinião a respeito foi solici-

A espiral da frustração 5

tada, eu gostaria de rever e aprofundar, com uma visão de conjunto,essa "vasta zona inexplorada" que, apesar de muito importante, aindanão foi estudada com a atenção necessária.Obviamente, a decepção, como qualquer outro sentimento, constitui

uma experiência universalmente conhecida. Enquanto ente de desejo

cuja essência consiste em negar aquilo que é - Sartre dizia que ohomem não é aquilo que ele é, sendo aquilo que não é -, o homem é

um ser que espera, e que, por isso mesmo, não pode evitar a decepção.

Desejo e decepção caminham juntos. A dicotomia entre a expectativae o real, princípio de prazer e princípio de realidade, criam um vazio

que muito dificilmente pode ser preenchido.No entanto, uma vez que a decepção é indissociável de nosso estado,

é forçoso observar que a civilização moderna (individualista e demo­crática) conferiu-lhe um alcance e um destaque preeminentes, e umamarcante notoriedade psicológica e social, sem precedentes. Do sécu­

lo XIX ao século xx, os filósofos pessimistas (Schopenhauer, Cioran)declaram não reconhecer a possibilidade de uma existência feliz, pois

consideram que a aspiração à felicidade, de um lado, e a vida, de

outro, só podem conduzir a uma interminável decepção. Toda a lite­ratura moderna - de Balzac a Stendhal, de Musset a Maupassant, deFlaubert a Céline, de Tchecov a Proust - é pontilhada pelos temas do

tédio, do rancor, da frustração, do fracasso, das "ilusões perdidas", das

agruras próprias à existência. Com efeito, que outra época poderiaproduzir esta memorável definição: "Infelizmente, a carne é triste! Eeu já li todos os livros" (Mallarmé)?Mas é preciso ir adiante. Para além do próprio reflexo da literatura,tudo leva a crer que a era moderna concorreu par!! acelerar as desilu­sões da classe média, fazendo aumentar o número dos descontentes,irritados com uma realidade social incompatível com os seus ideaisdemocráticos. Percorreu-se mais uma etapa complementar: doravan­

te, nenhum filão social está imune às decepções em série. Enquanto os

grupos ou categorias sociais vinculados às tradições conseguem har­monizar de forma mais ou menos bem-sucedida seus anseios respec­

tivos, restringindo assim a amplitude da decepção experimentada, os

grupos ou categorias sociais hipermodernos emergem como socieda-

Page 15: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

6 A sociedade da decepção

des de decepção inflacionada. Quando a felicidade é prometida a todos

e os prazeres são enaltecidos em cada esquina, a vida cotidiana está

passando por uma dura prova. Além disso, a "qualidade de vida" em

todos os campos da atividade humana (vida conjugal, vida sexual, ali­

mentação, moradia, meio ambiente, lazeres etc.) passou a ser o novo

horizonte das expectativas individuais. Quando se põe em destaque

um fantasioso conceito de "carência zero" generalizante, como é pos­

sível escapar do aumento da decepção? Quanto mais os imperativos

do bem-estar e do bem-viver são fIxados como meta imprescindível,

mais intransitáveis se tornam as alamedas do desapontamento.

Os valores hedonistas, a sobrecarga, os ideais psicoculturais, os fluxos

de informação, tudo isso deu origem a um gênero de indivíduo mais

introvertido, mais exigente, mas também mais vulnerável aos tentácu­

los da decepção. Após a "cultura do aviltamento" e "a cultura da culpa­bilidade" (que assim foram analisadas por Ruth Benedict), temos

agora o tempo das culturas da ansiedade, da frustração e da decepção.

A sociedade hipermoderna caracteriza-se pela multiplicação e pela alta

incidência da experiência frustrante, tanto no âmbito público quanto

no âmbito privado. Isso é tão verdadeiro que as pesquisas de opinião

estão se especializando em radiografar os diversos níveis de desapon­

tamento em nosso convívio social. A extensão dos domínios da decep­

ção acompanha o padrão estatístico do ânimo moral dos indivíduos,

com a quantifIcação periódica dos níveis de otimismo e de indisposi­ção de empresários e cidadãos, de assalariados e consumidores.

» Nessa perspectiva. pode-se afirmar que a sociedade da decepção sejauma evolução do desencanto moderno em relação ao mundo?

Sem dúvida. O outro grande fenômeno que fundamenta a idéia de

uma civilização frustrante consiste na desregulamentação e no enfra­

quecimento dos dispositivos religiosos de socialização nas sociedades

hiperindividualistas. Evidentemente, a religião jamais se mostrou

capaz de impedir a manifestação de todas as penas e amarguras a queestam os sujeitos. Todavia, ninguém ousará negar que, em sua verten­

te tradicionalista, efetivamente conseguiu representar um refúgio,

uma garantia, um ponto de apoio ou de consolação insubstituível,

A espiral da frustração 7

contrapondo-se às inevitáveis provações da vida diária e aos esterto­

res do sofrimento atroz. Ainda que a fé em Deus nunca possa ser

<.:xtinta, tudo indica que a religião deixou de desempenhar o papel

confortador que tivera no passado. Só 18% dos franceses crêem

"inteiramente" na existência do paraíso, e 29%, na vida eterna; só 20%

declaram fazer regularmente as suas orações, sendo que, na faixa entre

os 18 e 24 anos, o índice é de 10%. Em face da decepção, os indivíduos

já não dispõem dos hábitos de vida de piedade ou das convicções

"prontas e acabadas': que costumavam atenuar suas dores e mágoas.

De agora em diante, compete a cada pessoa procurar as próprias

tábuas de salvação, cada vez com menos suporte e alívio provenientes

da esfera do sagrado. A sociedade hipermoderna é propriamente

aquela que multiplica ao infInito as ocasiões de experiência frustran­

te, ao mesmo tempo que deixa de proporcionar os antigos dispositi­

vos "institucionalizados" para debelar esse mesmo mal.

Evitemos, porém, um equívoco. Quando falamos em sociedade da

decepção, não pretendemos insinuar que a desmoralização absoluta

seja a marca distintiva de nossa época. Se as frustrações são abundan­

tes, tampouco faltam motivos para se esperar. É sobre um fundo de cul­

tura que semeia um sem-número de projetos e deleites do cotidiano

que prolonga-se a triste experiência da desilusão. Certamente, quanto

mais se multiplicam as vivências frustrantes, mais numerosos são os

convites à reação e acessíveis as circunstâncias propícias à recreação e ao

gozo. Para enfrentar as contrariedades da vida, as sociedades de matiz

tradicional tinham à sua disposição instrumentos diversos de consola­

ção religiosa; já as sociedades hipermodernas, numa espécie de contra­

fluxo, valorizam o incitamento contínuo ao consumo, à fruição, à

mudança. Desse modo, as "técnicas" reguladas de forma comunitária

pelo mundo da religião deram lugar a "fórmulas paliativas", diversifica­

das e desreguladas, do universo individualista da livre-opção.

» Ouais são as grandes correntes teóricas de que dispomos para decifrar

a decepção própria dos Modernos?'

Dois pensadores de grande vulto, já no século XIX, deram realce à difu­

são e ao novo perfIl da decepção vigente nos tempos modernos. Na

Page 16: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

8 A sociedade da decepção

opinião do célebre Alexis de Tocqueville, autor de A democracia na

América,6 a abolição das prerrogativas de classe teve como efeito inci­

tar a aspiração de subir na vida, progredir na escala social, adquirir

sem cessar novos bens materiais - desde o engrandecimento da repu­tação pessoal até o incremento do poder. Assim, a igualdade de con­dições torna o culto da ambição um objetivo universalizante, a serperseguido infatigavelmente. No entanto, ao invés de se abriremnovas perspectivas de felicidade, as frustrações e os ressentimentos(oriundos das comparações invejosas) passaram a ter livre curso. As

mais insignificantes diferenciações entre os homens são hoje causa de

mágoas; já não se admite que o semelhante possa ter algo de que umde nós não disponha. Curiosamente, os deleites de ordem materialcresceram, mas os homens, na maior parte das vezes, sentem-se infe­

lizes em presença da fruição alheia. Segundo Tocqueville, a maisampla difusão dos bens materiais, em vez de diminuir o grau de insa­tisfação dos homens, tende a ampliá-Io. O descontentamento e a frus­

tração avolumam-se, ao passo que as desigualdades se expandem e asriquezas materiais se propagam pela sociedade. Por isso, nas socieda­

des da igualdade, "as esperanças e os desejos são freqüentemente frus­

trados, as almas são mais inquietas e as preocupações mais penosas"(De Ia démocratie enAmérique [1835-1840], Gallimard, t. I, vol.2).Émile Durkheim também acentuou o império da decepção e do des­contentamento nas sociedades modernas individualistas. Em virtude

da estratificação social mutante e da correlata ausência de leis, normas

ou regras de organização, isto é, da ano mia social, as pessoas já não

têm parâmetros adequados para medir a viabilidade de seus desejos.Nos antigos complexos sociais, os homens viviam em consonância

com sua respectiva situação social, só almejando aquilo que lhes pare­cia plausível de se obter. Com isso, os graus de decepção ou de descon­tentamento, naturalmente, tinham uma dimensão bem mais circuns­

crita. Já os modelos modernos de sociedade são diversos. Nestes, comefeito, os indivíduos sequer têm condições de avaliar a razoabilidade

de suas pretensões, distinguindo-as dos desejos desmesurados ou

6 De Ia démocratie en Amérique, publicado no Brasil pela Martins Fontes. (N. E.)

A espiral da frustração 9

meramente utópicos. Em suma, é muito comum, em nossos dias, as

pessoas "sonharem ardentemente com o impossível': Como já nãoexistem regras sociais estritas que inibam projetos mirabolantes ouinsensatos, as ânsias e volúpias desencadeiam-se livremente. De fato,cada indivíduo deseja ultrapassar o estado em que se encontra, tomarcontato com deleites e sensações continuamente renovadas. Quandoo homem fixa o seu projeto de felicidade numa realização muito lon­

gínqua, reivindicando sempre mais, arrisca-se a sentir mais vivamen­te os aborrecimentos e insuficiências do presente, sofrendo uma dor

cada vez maior pelos sonhos contrariados: "Trata-se de novas espe­

ranças que despertam e revivem, mas cuja realização não se efetiva,deixando atrás de si um rastro de forças exauridas e sensação amargade desencanto" (Le Suicide, PUF). Aquele mesmo desapontamento

que, em sua época, Tocqueville constata no interior de uma sociedadeque privilegia "os deleites menores e lícitos", Durkheim situa-o no"mal do infinito" (ibid.), nesse tipo de mal causado pela erosão do

poder de influência das normas sociais e que é gerador de um profun­do desapontamento.

»Afinal. que fatores autorizam a diagnosticar. em nossos dias. essa maré

de decepção?

Na medida do histórico secular da modernidade, o momento con­

temporâneo tem como característica fundamental a ruína das utopiase o esvaziamento dos mitos, do ponto de vista da edificação do por­vir. A fase triunfal da modernidade identificara-se com um surto

colossal de otimismo, digno de figurar na História. Poderia ser con­

densada no seguinte: uma fé indestrutível na marcha irreversível econtínua rumo a uma "idade de ouro': augurada pela dinâmica daciência e da técnica, da razão ou da revolução. Nesse ângulo de análi­

se progressista, o futuro sempre foi concebido como algo superior aopresente. Assim, com base nas grandes filosofias da história - de Tur­

got a Condorcet, de Hegel a Spencer -, discorreu-se, com amplosdesenvolvimentos, sobre a tese de que tais sistemas atuariam decisiva-

7 O suicídio, publicado no Brasil pela Martins Fontes. (N. E.)

Page 17: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

10 A sociedade da decepção

mente no sentido de assegurar a liberdade e a felicidade do gênero

humano para sempre. Como sabemos, as tragédias que o século xxpresenciou, somadas aos novos desdobramentos dos perigos tecnoló­gicos e ecológicos, representaram um desmentido categórico dessainfundada convicção num futuro indefinidamente melhor. Foramessas incertezas profundas que suscitaram a idéia de pós-modernida­de, concebida em meio à perda de credibilidade dos sistemas progres­

sistas e desencanto com as ideologias. Entretanto, como as expectati­vas democráticas relativas à justiça e ao bem-estar subsistem, nossaépoca está impregnada dessa indescritível confusão e desse desenga­no, desconforto e angústia. E se o futuro se mostrar pior do que o pas­sado? Nesse contexto, a suposição de que as próximas gerações vive­riam num mundo melhor do que o atual não passaria de ardilenganoso. Em 2004, 60% dos franceses declaravam-se otimistas no

tocante ao próprio futuro, mas só 34% conservavam a mesma dispo­sição de espírito no que concerne ao futuro dos filhos. Tenhamos emmente, porém, que esse pessimismo não é irresistível: 80% dos norte­

americanos mostram-se persuadidos de que seus filhos viverão aomenos tão bem quanto eles próprios.

»A marca típica da época contemporânea consistiria, portanto, na morte

das grandes utopias futuristas. Mais do que nunca, não se deveria reco­

nhecer, como Raymond Aron, as "desilusões do progresso"?

Indiscutivelmente, a ciência e a técnica davam alento à expectativa deum progresso irreversível e contínuo. Agora, provocam ceticismo eapreensão, por causa da destruição dos grandes equilíbrios ecológicos

e dos riscos decorrentes das indústrias transgênicas. A queda do murode Berlim e o livre comércio em escala universal, na aparência, deve­riam trazer o crescimento, a estabilidade, a diminuição da pobreza.Em muitos casos - mas nem sempre -, a conseqüência foi o agrava­mento da miséria, a eclosão de crises econômicas e financeiras, como

aconteceu em muitas regiões da África, da América Latina e em outros

lugares. Já a rica Europa conheceu uma onda de desemprego emmassa, que demora a refluir, e uma desvalorização do mercado de tra­balho. Os direitos previdenciários representavam formas aperfeiçoa-

A espiral da frustração 11

das de proteção ao trabalhador. No momento atual, presenciamoslima crescente desconfiança em relação ao Estado-Providência, restri­

ções ao assistencialismo social, renovadas polêmicas em torno dosdireitos adquiridos. Julgava-se que as desigualdades diminuiriam embenefício de uma espécie de reconstrução da sociedade nos "padrõesde classe média". Em sentido inverso, as desigualdades se aprofundam,a mobilidade social retrocede, o elevador social está provisoriamente

enguiçado.Por todo lado, os extremos ressurgem e se consolidam. No caso dosmais desfavorecidos, e até de certas parcelas da classe média, nota-se a

sensação de certa exclusão social, de um depauperamento do padrãode vida, de uma nova marginalização ... Em substituição a um ímpeto

primeiro, em busca do "cada vez melhor", entram em cena a desorien­tação e a agitação dos espíritos, o temor generalizado, o desencanta­mento do "cada vez pior"! Por quase toda a Europa assoma a impres­

são de que as promessas relativas ao progresso não foram cumpridas.Na Ásia, a globalização vem conjugada a certa esperança de um futu­ro melhor. Essa não é a tônica que se verifica na Europa, especialmen­

te na França. Aqui, a política liberal de desregulamentação, inevitavel­mente, tem engendrado insatisfação e contrariedade crescentes,

insegurança e, por vezes, revolta.

» Em Le Bonheur paradoxal, o senhor formula esta observação incrível:

"O aspecto irônico dos tempos atuais reside no fato de que mesmo os

excluídos do consumo são, a seu modo, hiperconsumistas". Que conclu­

são se deve tirar daí? Será que o consumo desenfreado absorve, castra e

sufoca qualquer possibilidade de revolta?

O sentido atual de pobreza não corresponde àquilo que se pensava

antigamente. Durante muito tempo, os miseráveis eram assim consi­derados quase que por nascença. Hoje não é mais assim. Todos (ou

quase isso) estão sendo formados num contexto de apelos publicitá­rios que dizem respeito às necessidades e ao bem-estar; todo mundo

aspira a se integrar ao mundo do consumo, dos lazeres e das grifesfamosas. Ao menos enquanto intenção, todos se incorporaram ao rol

dos hiperconsumistas. Mas o que pensar dos indivíduos educados

Page 18: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

12 A sociedade da decepção

numa atmosfera consumista à qual, entretanto, não podem ter aces­

so? Sem dúvida, amargam um sentimento de frustração, de desquali­ficação interior e de insucesso pessoal. Solicitar auxílio a terceiros,

ficar na contingência de cortar gastos essenciais, privando-se de muita

coisa básica, viver na constante ansiedade de buscar um equilíbrio

(jamais alcançado) no orçamento ... No caso aqui figurado, a decepçãoé certamente mais penosa, porque vem conjugada com o inevitável

rebaixamento de si e com a marca infame do descrédito. A civilizaçãodo bem-estar de massa levou ao desaparecimento da miséria absolu­

ta, mas acrescentou ao estigma da miséria interior a sensação de sub­existência para aqueles que não participam da "festa" consumista pro­metida a todos.

Quanto ao conceito de revolta "castrada': a expressão aparece na déca­

da de 1960. Então, Marcuse já sustentava que o consumismo consegui­ra promover a integração da classe operária ao establishment, gerandoo perfil de um homem de uma só dimensão, que já não contestavamais a ordem de coisas da sociedade capitalista. Tal análise merecereparos. No início, vemos ressurgir novas denúncias radicais em rela­

ção ao mercado e à técnica. Em seguida, convém frisar que, embora aidéia de ruptura revolucionária tenha perdido a credibilidade, isso não

significa que o sentimento de crítica social esteja embotado. Na verda­

de, houve, de fato, uma vasta generalização desse estado de espírito,que passou a ter por objeto todas as esferas da vida social. Sintomas

manifestos: casamento entre homossexuais, difusão das drogas, mãesde aluguel, alimentação macrobiótica, modas típicas do consumismo,

mensagens televisivas de propaganda "libertária", problemas com o uso

do véu islâmico, unidade européia, trabalho aos domingos ... Enfim,qual o campo de atividade humana que, em nossos dias, não é recolo­

cado em pauta, por falta de consenso a respeito? Mesmo que a perspec­tiva revolucionária já não esteja na ordem do dia, sem dúvida não é a

unanimidade de impressões que ameaça nossa coesão social.

» Além das mágoas e dos dissabores infligidos pela escassez de consu­

mo, não seria o caso de afirmarmos que também o mundo do trabalho per­

mite constatar cabalmente a onda de choque da decepção?

A espiral da frustração 13

Não é difícil imaginar o grau de amargura e ressentimento experi­

mentado pelos jovens que permanecem inativos anos e anos a fio,valendo-se de pequenos trabalhos temporários, estágios e outrosexpedientes, sem garantir seu acesso à sociedade hiperconsumista e,decididamente, impedidos de ter qualquer espécie de auto-estima. No

outro lado do pêndulo da vida, em razão do insanável desempregodas pessoas com mais de 50 anos, observamos também uma situaçãonão menos decepcionante. De fato, como poderia um indivíduo nãosentir irritação quando se percebe "abandonado após ter sido sugado':"inaproveitável" para todos os efeitos, considerado inútil aos olhos da

sociedade? Diante disso, essas pessoas passam por uma sensação dehumilhação e de derrocada pessoal, quando, noutros tempos, situa­ções do gênero eram vistas como decorrência natural do próprio esta­do de vida. Agora, pelo contrário, êxito ou fracasso profissional sãoatribuídos à responsabilidade exclusiva de cada um. De repente, é avida em seu conjunto que assume o aspecto de uma grande confusão,inclusive com o sofrimento moral de não estar em condições de pro­

ver a si mesmo, ou de construir o próprio edifício da felicidade.Em suma, mesmo os que exercem algum trabalho não estão isentospor completo da crise da desilusão. Inumeráveis estudos descrevemagora gerentes acometidos de estresse, ceticismo, descontentamento,

• indiferença: são os novos desiludidos da empresa. Aqueles que obtêmI diplomas e títulos de pós-graduação estão muito distantes de ascen­

der a cargos condizentes com seus anseios e habilitações. Ao mesmotempo, os assalariados cada vez mais se queixam de não serem bemaproveitados pelo superior hierárquico, além de não receberem odevido apreço dos demais funcionários ou dos clientes. Nos dias

atuais, a "falta de reconhecimento" aparece em segundo lugar (logodepois das pressões em prol da eficiência e dos bons resultados) como

fator de risco para a saúde mental do indivíduo no trabalho. A escala­da da decepção não é, única e exclusivamente, conseqüência dasdemissões, das transferências de pessoal ou da gestão causadora deangústia em relação às potencialidades de cada um. Tem raÍzes tam­bém nos ideais individualistas de satisfação pessoal, veiculados em

grande escala pela sociedade hiperconsurnista. O ideal de bem-estar já

Page 19: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

14 A sociedade da decepção A espiral da frustração 15

"A SOCIEDADE HIPERMO-

DERNA É PROPRIAMENTE

AQUELA QUE MULTIPLICA

AO INFINITO AS OCASIÕES

não é meramente de teor material: interpenetrou na própria vida pro­fissional, que deve corresponder agora a uma realização pessoal. Hoje,já não basta trabalhar para manter-se; impõe-se a necessidade de umtrabalho que traga prazer, que seja denso em contatos e relaciona­mentos com os demais, que seja executado "numa atmosfera convida­

tiva".Daí o descompasso crescente entre os desejos de realização pessoale a realidade profissional, normalmente estressante, desgastante ou fas­tidiosa. Com efeito, à medida que abandonam os padrões tradicionais,a atividade profissional se torna uma esfera cada vez mais frustrante,

ainda que os assalariados não ousem confessá-lo. Destes, a maioria sedeclara "feliz no trabalho" e "confiante na empresa", mas, curiosamen­te, pensa que os outros devem estar infelizes e descontentes!

QUE DEIXA DE PROPORCIO-

TRANTE, AO MESMO TEMPO

NAR OS ANTIGOS DISPOSI­

TIVOS "INSTITUCIONALIZA­

DOS" PARA DEBELAR ESSE

MESMO MAL. , ,

"'> Você diria que a decepção tem origem na sensação de fracasso opera­

da pelos sistemas moralizadores da felicidade, mais do que propriamente

no enrijecimento do neoliberalismo com que os indivíduos são confronta­

dos?

Os dois fenômenos atuam conjuntamente e amplificam um ao outro.A exigência de se realizar e de ser feliz se intensifica pelas mesmasrazões que causam as dificuldades objetivas para subir de nível. Sob oefeito dessa confluência de fatores, a decepção torna-se uma experiên­cia particularmente forte.

» Não é só o liberalismo que motiva a decepção; também o sistema esco­

lar vigente contribui para isso. Dissemina-se a opinião de que os institu­

tos de ensino já não criam condições favoráveis para a ascensão na esca-

la social, ou seja, que os diplomas deixaram de representar a garantia de ,

um emprego de boa qualidade. E de fato, algumas vezes, quando o forman­

do provém de uma localidade problemática, os diplomas nem sequer per­

mitem a obtenção de um emprego puro e simples ...

Essa idéia não é tão verdadeira, já que os diplomados realmentegozam de possibilidades consideravelmente maiores de inserção navida profissional em relação àqueles que não têm qualificação nenhu­ma. Todavia, é inegável que, hoje em dia, contrariamente ao que seria

desejável, os diplomas são menos capazes de abrir portas a bons

FRUS-EXPERIÊNCIADE

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16 A sociedade da decepção

empregos do que durante as chamadas Trinta GloriosasB• Cada vez

menos se observa uma ajustada adequação entre o diploma e o nívelde emprego. Até as décadas de 1960-70, a instituição escolar republi­cana e o prolongamento do ano letivo incrementaram a promoçãosocial, estendendo-a também para as camadas menos favorecidas.Essa dinâmica estancou. O êxito escolar e a seleção das elites foramlargamente definidos com base no meio social de origem. Só umapequena parcela dos fllhos de imigrantes conseguiam entrar na uni­versidade. Daí a escassez de confiabilidade e as contínuas desilusões

perante os estabelecimentos escolares que não preparam conveniente­

mente os alunos (ou raramente chegam a atingir essa meta), no afã decorrigir as desigualdades, atuando como agentes de mobilidade social.Na base da escala social, muitos jovens se questionam acerca da utili­dade dos longos estudos, uma vez que estes não propiciam a obtençãode empregos que correspondam a suas expectativas, vendo-se relega­dos ao desemprego ou ao salário mínimo. As instituições de ensino,que anteriormente eram o veículo condutor de um projeto igualitárioe de promoção social, já não desempenham o mesmo papel. A cada

ano, 160 mil jovens saem dos estabelecimentos de ensino sem diplo­ma ou qualificação profissional. Dentre os alunos da sexta série, de 20a 35% são incapazes de ler ou escrever corretamente. A probabilidadede que as crianças oriundas das camadas populares venham a sergerentes de empresa está visivelmente em baixa. O revés não é menosdoloroso do que clamoroso: também a escola se tornou um foco de

decepção.

» Seria uma espécie de "melancolia do saber" - para usar a expressão

do romancista Michel Rio - que leva muitas pessoas a voltar o olhar para

a escola do passado. mais propriamente para o ensino da Terceira Repú­

blica. em vez de atentar para a reforma da escola atual?

É isso mesmo. Contudo, as razões não são exclusivamente de ordem

escolar. Durante um bom tempo, não só a escola, mas também o Exér-

8 Refere-se ao período das três décadas imediatamente posteriores à Segunda Guer­ra Mundial. (N. E.)

A espiral da frustração 17

cito, no âmbito da República, estiveram à altura do projeto político de

integração nacional das mais diversas camadas de população de imi­

grantes. Esse modelo já foi coroado de êxito, mostrando-se apto a sus­citar o anseio de ser francês, ou seja, a ufania da nacionalidade fran­

cesa - assim se deu com meu avô, que veio da Rússia. Essa época

passou. Em um grande número de jovens, a sensação de pertencer auma pátria retrocede, enquanto se agravam os particularismos reli­

giosos e comunitários. O mecanismo de integração, que deveria fazeros franceses se rejubilarem com a própria índole nacional, desmoro­

nou, desconjuntou-se. Como dissociar esse fenômeno da expansão

galopante da escassez de emprego, da degradação da situação econô­mica e social? O desemprego dos jovens e de seus pais origina um sen­

timento de injustiça e de exclusão. Os jovens das periferias, em certosentido, estão hiperintegrados à nossa sociedade, com as típicas aspi­

rações de aproveitar as regalias que a vida oferece. Não possuem nemum pouco da mentalidade de imigrantes, desbravadores e empreen­dedores natos: modelados pelo contexto consumista, participam dossonhos deste âmbito hipermoderno. Ao mesmo tempo, vivem nobatente do cotidiano, eivado de frustrações. Eis porque alguns deri­

vam para a violência, para a delinqüência, enquanto outros são arras­tados pela introversão, em busca da própria identidade. Destes, há os

que se deixam arrastar pelo islamismo radical, que funciona mais oumenos como instrumento de diferenciação e de afirmação pessoal.

A questão não deixa dúvidas: na sociedade hiperconsumista, o êxitona integração da comunidade nacional exige, como condição necessá­ria, a integração pelo trabalho. Entretanto, condição necessária não

significa condição suficiente, ainda mais em nossa época, quando semanifesta, de mil modos, a categórica recusa do auto-rebaixamento

dos grupos sociais, bem como o direito de cidadania às diferenças de <

ordem comunitária. A fim de recolocar nos trilhos a locomotiva da

integração, será necessário não apenas um crescimento sustentado,mas a adoção de políticas que levem em conta, desta ou daquelamaneira, o problema da diversidade étnico-cultural. Falando clara­mente, será preciso promover iniciativas que permitam coibir práticasdiscriminatórias, aquilo de que as minorias costumam ser alvo na

Page 21: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

18 A sociedade da decepção

empresa, na mídia, nos partidos políticos ... No âmbito educacional,

igualmente, será necessário fomentar a concessão de bolsas de estudo,

sem contar outros dispositivos de apoio, no sentido de favorecer a

obtenção de graus universitários aos "excluídos" e aos jovens egressos

da imigração. Obviamente, isso só existirá mediante a adoção de polí­

ticas apropriadas, em face das diversas minorias existentes. Será preci­

so, também, lançar mão de outros recursos cabíveis, no terreno do

voluntariado, tendentes a assegurar uma maior igualdade de oportu­nidades.

» No entanto, seria um erro subestimar a importância da vida particular,

enquanto esfera "privilegiada" dessa espiral frustrante ...

Nos contextos sociais caracterizados por uma individualização extre­ma, o terreno da vida íntima é o mais direta e imediatamente afetado

pela maré da decepção. Pense na palavra "decepção": imediatamente

nos vem à mente a vida sentimental. Isso porque, de longe, as maio­

res desilusões e frustrações que sentimos são muito mais afetivas do

que políticas ou consumistas. De fato, quem não terá se deixado levar

por alguma paixão ardente? Reafirmar o profundo elo existente entre

o amor e a decepção, naturalmente, não representa nenhuma novida­

de. O dado novo consiste, de fato, na multiplicação das experiências

amorosas no decurso da vida. A bem dizer, nossas decepções não

serão mais ou menos intensas do que antes, mas sem dúvida se torna­

ram mais freqüentes.

Mas por que a noção de desapontamento ficou de tal modo associada

à vida sentimental? De início, desvencilhemo-nos da idéia (tão repisa­

da quão imaginária) que nos quer fazer acreditar que a intensificação

das vinculações de natureza econômica tenha exaurido ou sugado as

demais dimensões da vida humana, inclusive as relações atinentes ao

sentimento e ao amor. É uma idéia antiga, cuja formulação explícitaremonta a Marx. Na verdade, não é bem assim. O amor nunca se

ausenta do cotidiano humano, sendo constantemente exaltado nas

canções, nos fIlmes, na televisão, nas revistas. Se, por um lado, no

mundo hodierno, o utilitarismo mercantil avança, por outro, também

se expande o culto ao sentimento. Hoje, de modo geral, as pessoas já

A espiral da frustração 19

não se casam movidas por conveniências ou vantagens pessoais: só o

amor é que dá fundamento à vida conjugal. As mulheres sonham com

o eterno príncipe dos contos de fadas, e os homens, com o amor. Os

pais continuam a abnegar-se pelos filhos e, mais do que nunca, estesrecebem as demonstrações de proteção e carinho. Para muitos de nos­

sos contemporâneos, o amor continua sendo a experiência mais

ardentemente desejada, a mais emblemática da "vida verdadeirà'.

A realidade é palpável; os modos economicistas de ser não acarretam,

de nenhum modo, uma depreciação dos valores afetivos e altruísticos.

Em vez de ser um arcaísmo, algo tipicamente fora de moda, a glorifi­

cação do amor condiz perfeitamente com a cultura da autonomiaindividual, que rejeita as imposições prescritivas de natureza coletiva

que restrinjam o direito à busca da felicidade pessoal. Com a dinâmi­ca da individualização, cada um quer ser reconhecido, valorizado, pre­

ferido pelos demais, desejável para si mesmo e não confundido comum ser anônimo e "substituível". Se concedemos grande apreço ao

amor, é porque, entre outras coisas, esse sentimento corresponde às

aspirações narcisistas dos indivíduos, indo ao encontro da valorizaçãode si como pessoa única e diferenciada.

Contudo, dessa inconteste realidade na qual o sentimento do amor

brilha no firmamento de valores, freqüentem ente decorrem pungen­

tes decepções. É o momento em que a cristalização perdeu ·seu efeito,

dissipando as qualidades e os atrativ.os que a outra pessoa possuía. Na

verdade, qual idealização é capaz de se manter, qual sonho pode per­

sistir indefinidamente, quando confrontado com a precariedade natu­

ral dos seres e a monótona cantilena da eterna repetição das coisas?

Pouco a pouco se percebe aspectos menos amáveis na personalidade

da outra pessoa, que incomodam ... O amor é "cego", bem sabemos,

mas também é fraco e fugaz. As pessoas que há pouco eram extr~ma­

mente amorosas, de súbito, tornam-se frias, porque os sentimentos

não podem ser considerados "objetos" imutáveis, nem as evoluções do

comportamento humano possuem um caráter sincrônico. A euforia

dá lugar ao fastio ou cansaço, incompreensão ou agastamento, dra­

maticidade inopinada, com seu cortejo de acidez e, não raro, de anti­

patia. Separações, divórcios, conflitos relativos à guarda dos filhos,

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20 A sociedade da decepção

ausência de comunicação íntima, provável depressão subseqüente,

tudo isso atesta as desilusões que podem advir da vida amorosa. Nessesentido, merece crédito o que diz Rousseau: por ser o homem um ser

incompleto, incapaz de bastar a si próprio, sente necessidade deoutros para se desenvolver. Mas se a felicidade depende dos outros,então o homem está fatalmente condenado a uma "felicidade frágil':Depositamos enormes esperanças em determinada pessoa; esta,porém, se afasta de nós rapidamente ou usa subterfúgios para nos evi­

tar; não a possuímos mais; ela muda, nós mudamos. Assim, nossasmais radiantes expectativas se revelam um grande equívoco.

»Tudo o que foi dito sobre o amor é convincente. Entretanto, não é evi­

dente que a lógica consumista também tem influência na lógica da edifi­

cação do relacionamento amoroso? O imperativo do desempenho ideal.

as qualidades que devemos ostentar, não são virtualidades que nos redu­

zem à condição de "partículas" no mercado da concorrência amorosa ou

sexual. como bem demonstrou Michel Houellebecq, entre outros? Decer­

to, o sentimento é algo que permanece. Nesse sentido, seria razoável con­

cluir que foí a forma de externá-Ios que passou por uma transformação,

distanciando-se dos padrões de exteriorização outrora consagrados?

Desde a década de 1950, os mais perspicazes observadores dos fenô­

menos sociais apontaram uma realidade: a vida sexual tomara a fei­ção de um domínio inspirado nos hábitos do consumo. Para sermosmais exatos, não se trata de dizer que caminhamos de experiênciasexual em experiência sexual, mas sim, que caminhamos de experiên­cia amorosa em experiência amorosa ... Em certo sentido, essa revira­

volta no terreno afetivo está em conformidade com a lógica da novi­

dade que nunca se exaure, enquanto algo inerente ao hiperconsumismo.Contudo, a vida amorosa não se pauta pelas mesmas coordenadas davida subjetiva, dado que, intrinsecamente, a primeira pressupõe o

desejo de conquistar algo "que não acabe" (o amor eterno), bem comouma conduta "desinteressada". Apesar de todas essas mudanças, a rela­ção amorosa jamais equivalerá a uma mera relação de prestação deserviços ou de intercâmbio de mercadorias. No âmbito do consumo,

a idéia de modificação contínua corresponde à própria natureza da

A espiral da frustração 21

matéria, sendo, pois, altamente apreciada. No âmbito da vida amoro­

sa, pelo contrário, equivale ao mais rotundo fracasso.

:> Cada um de nós deposita enormes esperanças nos outros. Esperanças

demais?

Talvez,mas não se deve deduzir daí que tenhamos que adotar a tese daauto-suficiência e da indiferença com relação aos outros. Em vez de dis­

pensar a existência dos outros, seria melhor rever o grau de exigênciaque temos quanto aos outros. Isso é fácil de dizer, mas difícil de realizar.

» Isso remete ao problema do funcionamento da economia do desejo.

Antoine Compagnon, em Os cinco paradoxos da modernidadfil. um estudo

que se aplica ao campo da estética, mostra como a modernidade acabou

por abraçar o novo na arte, não pelo conteúdo que ele poderia veicular,

mas pelo mero aspecto da novidade. Mutatis mutandis, o mesmo raciocí­

nio não valeria para o terreno da vida sentimental e sexual, com uma

espécie de desejo sem objetivo?

Não penso assim. Para falar a verdade, o culto do novo no camposexual tende a declinar. Na imprensa feminina, há uma superabun­

dância de artigos em torno da temática: "faltam homens". Foi-se o

tempo em que o cinema e a literatura punham muito mais em cena a

figura prototípica de Don Juan. A inclinação masculina de buscarnamoro ou aventura amorosa é, hoje, bem menos protuberante. Os

jovens estão rapidamente morando juntos. É como se a conquista da"outra metade" tivesse deixado de ser alvo prioritário, ou um fator

inequívoco de diferenciação em face dos outros, no contexto de umuniverso cultural que dá primazia à atenção para consigo mesmo, aorelacional, à comunicação de teor intimista. À obsessão do quantitati­

vo sucede o primado da qualidade do sentimento, do entendimentomútuo, da cumplicidade tácita, dos projetos elaborados a dois. Na

época do hiperindividualismo, damos menos ênfase à experiência

pela experiência do que ao "experimental"; menos à escolha do "parideal" do que ao extravasamento da emoção.

9 Les Cinq Paradoxes de Ia modernité, publicado no Brasil pela UFMG. (N. E.)

Page 23: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

22 A sociedade da decepção

»Ao mesmo tempo, não estamos diante de um tipo de desapontamento

especificamente sexual?

Está em voga conceber o hedonismo sexual desenfreado como umaimposição tirânica, como experiência geradora de aborrecimentos,fadiga, insatisfação lancinante. Melhor do que ninguém, Houellebecq

foi bem-sucedido ao retratar o clima depressivo e frustrante caracte­rístico do período pós-1968. Coube-lhe mostrar que a dinâmica daeconomia liberal incorporou a atmosfera da sexualidade, revivendo omesmo clima de "veemente recusa" da frustração, da exclusão e dadesigualdade. O quadro esboçado contém elementos de verdade: jáque cada um de nós está rodeado de solicitações sexuais, o real é for­çosamente mais frustrante, particularmente quando a vida sexual está

realmente carente. A questão torna-se mais premente quando o con­ceito de felicidade fica conjugado ao erotismo luxuriante.Contudo, a essas notas desfavoráveis, eu gostaria de contrapor algumasconsiderações menos carregadas. Em primeiro lugar, é exagero fazerum balanço da situação tão categoricamente negativo: recordemosque, de cada quatro francesas consultadas, três se declaram satisfeitasna esfera da vida sexual. Em segundo lugar, o erotismo assumiu uma

configuração mais diversificada, de um hedonismo mais característico,mais liberto de entraves, para grande número de pessoas: veja oshomossexuais, as mulheres, os jovens ... Por isso, seria inexato preten­der que os homens vivam num estado de grande impacto destrutivoou apreensão pelo fato de as mulheres serem mais experimentadas doque eram antigamente. Sem dúvida, seria exagero imaginar que aangústia do homem contemporâneo nunca possa ser estancada. Tam­

pouco seria correto estabelecer como diagnóstico a ocorrência de umrevés generalizado em matéria de revolução sexual. A sensação de fra­casso, no que diz respeito ao instinto da sexualidade, é conseqüêncianatural de certa fase da vida, dependendo dos altos e baixos dessesperíodos, com os seus respectivos êxitos e insucessos.

» Isso significa que o fenômeno seria mais de caráter antropológico e

menos societário?

Digamos que a ausência de erotismo na vida, a banalização das rela-

A espiral da frustração 23

ções e a escassez de interlocução entre os indivíduos são fatores quegeram mais aflição e abatimento do que a liberação sexual em si. Nessecampo de ação, a revolução sexual levou a cabo tudo aquilo que era dese esperar. Seria utópico imaginar que ela garantisse um estado de

orgasmo permanente a 6 milhões de indivíduos. No âmbito das socie­dades em que a vida sexual é livre, a sensação habitual de frustrações edescontentamentos constitui o quinhão de cada pessoa. A felicidade na

ordem do sensível não pode entrar na plataforma de nenhum partido

político: depende, inevitavelmente, de atrativos, preferências e pendo­res individuais. É impossível agradar, constantemente, a todos.

» Mais um ponto referente à vida privada que vai tomando um alcance

sempre maior: quais as correlações entre o consumo e a decepção?

Os primeiros estudiosos do fenômeno "consumista" não titubearamem empregar a expressão "a maldição da abundâncià'. No entenderdesses anallstas, o paraíso da mercadoria só pode dar origem a carên­

cias e profundo desgosto. Por quê? Porque, quanto mais somos esti­mulados a comprar compulsivamente, mais aumenta a insatisfação.

Desse modo, a partir do momento em que conseguimos preencher

alguma necessidade, surge uma necessidade nova, gerando um cicloem forma de "bola de neve" que não tem fim. Como o mercado sem­

pre nos sugere algo mais requintado, aquilo que já possuímos acabaficando invariavelmente com uma conotação decepcionante. Logo, asociedade de consumo incita-nos a viver num estado de perpétua

carência, levando-nos a ansiar continuamente por algo que nem sem­

pre podemos comprar. Assim, ficamos implacavelmente distantes dacondição de plenitude, sempre descontentes, condoídos em razão detudo aquilo que não podemos proporcionar a nós mesmos. O consu­mo no sistema de mercado seria um pouco como o tonel das Danai­

des1o,que orquestra com sucesso o descontentamento e a frustraçãode todos.

10 As Danaides foram condenadas, no Tártaro, a encher de água um tonel sem

fundo. Compara-se ao tonel das Danaides o insatisfeito cujos desejos nada é capazde saciar, o pródigo que dissipa à medida que recebe, etc. (N. E.)

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24 A sociedade da decepção

"O QUE GERA DECEPÇÃO

NÃO É TANTO A FALTA DE

CONFORTO PESSOAL, MAS A

DESAGRADÁVEL SENSAÇÃO

DE DESCONFORTO PÚBLICO

E A CONSTATAÇÃO DO

CONFORTO ALHEIO. , ,

A espiral da frustração 25

.> Essa é sua condição de existência.

De seu revigoramento, certamente. Contudo, não é também a molapropulsora da decepção? Numa tentativa de dar resposta ao proble­ma, convém fazer uma remissão ao trabalho de Albert Hirschman,

Bonheur privé, action publiquell (Fayard, 1983), cujo mérito convémdestacar: constitui uma das raras obras que põem em destaque os

diferentes potenciais da decepção relacionados com as diferentes cate­gorias dos bens comercializáveis.

;.> Interessante ... Quer dizer que nem todas as formas de consumo pos­

suem o mesmo poder de causar decepção?

Segundo Hirschman, os bens que verdadeiramente se consomem pelouso (a alimentação é o exemplo prototípico) ocupam uma posiçãoprivilegiada, na medida em que são capazes de nos proporcionargraus intensos de fruição, continuamente renovados, e mesmo assimnos resguardam da decepção. Por sua vez, os bens duráveis trazem

consigo a característica de poderem desapontar o consumidor. É porisso que só causam prazer na ocasião da compra ou quando são utili­zados pela primeira vez (é o caso do refrigerador, do automóvel, do .barbeador elétrico). Nesse âmbito, muito depressa se instala umaespécie de oposição entre conforto e prazer. Da mesma maneira, osbens de serviço são fontes de decepção, pois suas qualidades estão, viade regra, aquém de nossas melhores expectativas.A meu ver, Hirschman supervalorizou o potencial de desapontamen­

to a que os bens de consumo duráveis podem dar origem. Por umlado, cumpre fazer notar que, quando,' por exemplo, o refrigerador

deixa de nos proporcionar satisfação plena, não se trata, para falar emtermos mais precisos, de desapontamento ou decepção. Simplesmen­te a sua função utilitária sai de nossa cogitação. Como é apenas uminstrumento de bem-estar material, ou seja, de comodidade, nós o

deixamos de lado. Podemos ficar habituados à utilização da geladeira,mas, quando esta não funciona a contento, seria impróprio falar emdecepção. Por outro lado - e Hirschman não ignora esse aspecto do

11 "Interesses privados, ações públicas", do original em inglês Shifting Involvements:Private Interest and Publie Action, sem tradução publicada em português. (N. E.)

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\26 A sociedade da decepção

problema -, cada vez mais os objetos de fácil transporte ou manuseio

(telefone, computador, canal de TV a cabo, leitor de DVD, iPod etc.)causam mais facilmente a decepção porquanto constituem prazeresestéticos ou emocionais que se renovam. Em outras palavras, com as

novas tecnologias, não é o meio que ilude, mas a mensagem que eleveicula. Isso, porém, não é empecilho para os brados de protesto con­

tra a vida "informatizada"; não é tão rápido quanto deveria! Isso por­que o novo consumidor quer tudo aqui e agora, e a menor deficiência

ou limitação pode deixá-Io furioso. Inquestionavelmente, a ânsia de

velocidade máxima passou a ser um novo elemento passível de susci­tar irritação e descontentamento.

Parece-me que, a diversos títulos, seria conveniente inverter os termos

do modelo interpretativo aventado por Hirschman. Em nossos dias,são mais propriamente os bens não duráveis que suscitam um cardu­

me de insatisfações e frustrações. Entretanto, como afirmar que, hoje,por exemplo, a alimentação represente um elemento que se contrapo­nha à decepção, quando presenciamos um número crescente de pes­soas que se queixam da má qualidade alimentar, da gororoba que éservida, da comida sem sabor? No fundo, a própria alimentação tor­nou-se fator de ansiedade, por causa dos organismos geneticamentemodificados, das gorduras e dos açúcares, dos corantes e tratamentos

químicos que se consideram nocivos à saúde. O ato de se alimentar,nos dias atuais, costuma vir associado à idéia de culpabilidade ou de

infração contra as boas normas da vida sadia. Primeiro, porque rece­

bemos as informações veiculadas pela mídia, que se faz de porta-vozda ciência médica. Desse modo, como que insensivelmente, o bomgarfo tradicional vai cedendo terreno ao homem que come receoso edesconfiado. Depois, porque a época contemporânea é caracterizadapela obsessão em torno da silhueta ideal e das dietas. Nos Estados

Unidos, uma alta proporção de mulheres chega a declarar que a lutapelo peso ideal é o objetivo fundamental de suas vidas. Isso é um tantopreocupante, mas é assim.

» As grifes, o luxo, os atrativos da publicidade ... todo esse universo de

sonho não resulta em uma montanha de decepções?

A espiral da frustração 27

Será que, efetivamente, o consumidor sente frustração quando não

pode comprar roupa de marca? Guardará mágoa ou ressentimentopor passar as férias num camping e não em um hotel quatro estrelas?Não creio. Todo e qualquer consumidor, desta ou daquela forma, temcondições de encontrar derivativos sem conta, recorrendo à utilizaçãode produtos ou serviços não tão dispendiosos. Em se tratando dabusca do prazer (ao menos segundo a concepção vigente), o maisimportante não é o preço da coisa, mas a mudança que ela pode pro­

vocar em nossa rotina, isto é, seu poder de novidade, a experiência ea aparência de aventura que ela pode nos proporcionar ...Numa perspectiva global, o consumo engendra maiores satisfações do

que desapontamentos, pois é uma ocasião propícia para a renovaçãoda existência cotidiana, enquanto miúdo "acontecimento" apto a

romper a monotonia do dia-a-dia, sendo capaz, em certa medida, de"arejar e rejuvenescer" a atmosfera daquilo que experimentamoshabitualmente. Com efeito, se o consumo do que é comercializado ébem menos frustrante do que presume a maioria, isso está associadoà circunstância de ser um excelente recurso para alterar a rotina denossa vida diária, pois a novidade é indiscutivelmente um dos mais

elementares componentes do prazer.

» Não se poderia retorquir que essa satisfação é artificial ou, pelo

menos, que apresenta um grau ontológico deficiente? Na obra-prima de

Huysmans, Às avessas, o conde Des Esseintes, herói celibatário do

romance, embora pretendesse fazer uma viagem mais longa a Londres,

fica por fim satisfeito com um encontro com os amigos na estação ferro­

viária do Norte para tomar cerveja. De modo semelhante, o consumo

hipermoderno não predisporia os indivíduos a diminuir ou amesquinhar as

modalidades de prazer?

Afinal, o que é um prazer verdadeiro? Sabemos que há uma vastíssimagama de propensões ou pendores humanos, o que é uma realidade

insofismável. Em matéria de prazer ou de felicidade, cumpre admitircomo válido até aquilo que possa chocar nossas opiniões particulares.Não me alinho com as leituras aristocráticas e moralistas que ambi­cionam estabelecer padrões hierárquicos de vivêndas hedonistas.

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28 A sociedade da decepção

» De qualquer modo, é inegável que estamos em presença de uma espé­

cie de reconstituição do fenômeno de classes. como a recriminação de

uma pessoa que não possui os instrumentos ou as "ferramentas" neces­

sárias para desfrutar de uma bela sonata, para tomar um exemplo do uni­verso cultural.

A questão é outra. Doravante, é no próprio âmago de cada classe quese pode constatar a pluralização dos gostos. As desigualdades sociaisde acesso à cultura são incontestáveis. Contudo, é preciso também

levar em conta uma escala individual de valores, de índole heterogê­nea, subjetiva e mesmo heteróclita, no tocante à faculdade de apreciaras belezas ou defeitos das obras de espírito ou das produções das artes.Com a desestruturação dos modelos de classe e a individualização dosmodos de ser e de viver, a imprevisibilidade dos comportamentos cul­turais cresce notavelmente. Sem dúvida, é lamentável que nem todossaibam apreciar uma sonata de Haydn ou de Chopin, mas não pode­mos insistir na expressão desse lamento. Isso porque os mesmos indi­

víduos que não se comprazem com esses compositores podem gostarde outras formas de arte, como pintura, literatura, teatro, cinema, eassim por diante.

» A decepção inflacionada não terá sido uma conseqüência do desapa­

recimento da sociedade de classes?

As desigualdades de ordem econômica ampliam-se e as disparidadessociais nos modos de vida saltam aos olhos. Contudo, nossa época é

marcada por uma grande desestruturação das culturas de classe. Emsíntese, já não existem atributos exclusivos de classe, modos de vidaespecíficos para cada grupo social. Vivemos num contexto em que asdiferenciações sociais se reproduzem ao máximo e, simultaneamente,as aspirações da moda, o ideal de bem-estar, os lazeres múltiplosdifundiram-se em todos os patamares da sociedade. Cada qual inten­

ta desfrutar daquilo que de melhor existe no mercado: todas aquelasantigas contenções e refreamentos de classe caíram em desuso. É nessaatmosfera que uma nova espécie de consumidor se manifesta em exu­berância: o "consumidor-turbinado" nômade, cada vez menos cir­

cunscrito aos ambientes da própria categoria social, cada vez mais

A espiral da frustração 29

imprevisível, fragmentado, individualizado. Esse processo de desregu­lamentação social, acompanhado dos imperativos individuais maisextremados no que diz respeito ao consumo, é um dos vetores daescalada da decepção.

,,> Nessa ordem do consumo frustrante, que papel compete aos outros?

Ao fim e ao cabo, o mau uso dos bens públicos desperta mais indig­

nação do que o uso de bens particulares. Corri efeito, de que os con­sumidores se queixam mais freqüentemente? Dos engarrafamentos de

trânsito, das praias superlotadas, do processo de descaracterização da

paisagem natural por obra das construtoras de edifícios ou da invasãode turistas, da repugnante promiscuidade nos transportes coletivos,do barulho dos vizinhos, etc. Em outras palavras, o que gera decepçãonão é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação

de desconforto público e a constatação do conforto alheio.

Não surpreende, portanto, que seja no âmbito dos serviços, baseadono relacionamento entre as pessoas, que a decepção é mais freqüente.

Manifestações de crítica são muito comuns contra o corpo docentedas instituições de ensino, contra o máu funcionamento da Internet,contra o despreparo da classe médica. Isso é o que, de modo muito

especial, nos leva a falar em "paradoxo da saúde": quanto mais o níveldos serviços médico-hospitalares tende a melhorar, mais rotineiras erecorrentes são as demonstrações de insatisfação e inconformidadediante das lacunas que aparecem.

Mas, em outra perspectiva, entretanto, convém não esquecer que,diferentemente do que ocorria no passado, os elos entre as pessoas e aesfera do consumo estão cada vez mais entranhad~s. Muito daquilo

que compramos, não o fazemos com a finalidade de granjear a estimadeste ou daquele, mas sobretudo visando a nós mesmos, isto é, tendo

como objetivo aperfeiçoar os nossos meios de comunicação com osemelhante, melhorar o desempenho físico e a saúde do corpo, buscar

sensações vibrantes e variadas formas de emoção, vivenciando expe­riências sensitivas ou estéticas. É nessa acepção que o espírito de con­sumo em benefício do outro, típico das antigas sociedades de classe,retrocede, dando lugar ao consumo para si. Em resumo, o consumo

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30 A sociedade da decepção

individualista emocional assume agora a dianteira em relação ao con­sumismo ostentado r de classe. Simultaneamente, a tendência domi­

nante é aceitar com maior naturalidade que outros possuam algo quenão temos, porque a atenção de cada indivíduo está hoje mais volta­

da para a sua própria experiência íntima do que para o desempenhodos demais. Ao contrário dos primórdios da era democrática, quemuito contribuiu para a disseminação do sentimento de inveja, naatual fase do hiperindividualismo consumista, muito mais raramentenos deparamos com aquele indivíduo que se dilacera interiormentepor falta de poder aquisitivo para comprar o mesmo automóvel de

alta qualidade do vizinho. A inveja provocada pelos bens não-comer­cializáveis (amor, beleza, prestígio, êxito, poder) permanece inalterá­vel, mas aquela provocada pelos bens materiais diminui.

» Caberia fazer outras correlações entre o consumo e a decepção?

Aonde leva a escalada consumista? O que faz com que o neoconsumi­dor esteja eternamente correndo? Será, em última análise, a pressão daoferta, do marketing e da publicidade? Isso não explica tudo. Não sepoderia compreender o ímpeto presente no comprador compulsivosem relacioná-Io com o dinamismo dos valores hedonistas de nossa

cultura, e também com o aumento do nosso mal-estar, com os nume­

rosos fracassos enfrentados na vida pessoal. O hiperconsumismo

desenvolve-se como um substituto da vida que almejamos, funcionacomo um paliativo para os desejos não-realizados de cada pessoa.Quanto mais se avolumam os dissabores, os percalços e as frustraçõesda vida privada, mais a febre consumista irrompe a título de lenitivo,

de satisfação compensatória, como um expediente para "reerguer omoral". Em razão disso, pressagia-se um longo porvir para a febreconsumista.

»No que concerne ao capitalismo de consumo, que se efetiva na dinâ­

mica da novidade, ele não constitui, em si mesmo, um sistema econômico

formidavelmente adaptado aos anseios do espírito humano?

O capitalismo de consumo não criou todas as peças da cultura donovo. A era democrática favoreceu largamente essa tendência, fazen-

A espiral da frustração 31

do aparecer um tipo humano "despojado de tradições", ávido de novi­dades e de bem-estar. Baudelaire já asseverava que "a curiosidade se

tornara uma paixão fatal, irresistível!".Importa recordar, contudo, que

os prazeres humanos foram desfrutados no âmbito de estruturassociais e contextos culturais que pouco se alteraram por milênios. A

repetição reiterada dos hábitos ancestrais tampoucO representou umfator impeditivo para a difusão de formas de espairecimento que

requeriam graus de concentração mais ou menos intensos (passatem­

pos diversos, folguedos originais, composições musicais em ritmo dedança, jogos e festas dionisíacas). A economia moderna de consumonão expressa miraculosamente a verdade do desejo humano. Ao con­trário, ela contribui principalmente para estimular o homem, paradesvinculá-Io dos preceitos sociais que se reproduziam de geração em

geração, e fazê-Io imergir num estado de agitação permanente.

»Também se propala aqui e ali que, na origem dos surtos contemporâ­

neos de fervor religioso ou no ressurgir do interesse pelo esoterismo,

estaria a decepção produzida pela vida materialista consumista.

Para dizer a verdade, grosso modo, até os adeptos dos movimentos reli­

giosos não recusam de maneira ascética os deleites do consumo,embora não sejam muito apegados a eles. Ao que parece, a reafirma­

ção do fator religioso estaria mais propriamente assentada na obso­lescência das grandes visualizações utópicas universalistas, no visíveldeclínio da fé nas grandes "concepções seculares", na desagregação ou

desarticulação das estruturas comunitárias. Uma vez privados doshabituais sistemas de referência de envergadura transcendental, mui­tos indivíduos buscam a sua tábua de salvação num renovado tributo

a antigas ou novas manifestações de religiosidade. Para tanto, bastará,muitas vezes, que estas se proponham a oferecer visões panorâmicasmais ou menos bem concatenadas, significados específicos até certo

ponto concludentes, parâmetros de conduta admissíveis, formas deintegração comunitária apreciáveis ... Justamente aquilo de que careceo homem atual, premido pelo torniquete do caos que angustia, da

incerteza que asfixia e do vazio que deprime! Em suma, o enfático rea­

vivar da propensão a crer não provém tanto do inlumescimento ou da

Page 28: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

32 A sociedade da decepção

exacerbação da oferta de mercado quanto da ausência de um senso de

coletividade e de inserção comunitária.

À vista disso e de modo análogo, o ressurgir das novas "religiões de

índole emocional" é indissociável da decepção experimentada peran­

te as Igrejas institucionais "frias", "petrificadas", nas quais imperam

convencionalismos arbitrários ou divagações quase que puramente

abstratas. Com efeito, nada disso propicia respostas que correspon­

dam aos anseios da pessoa de hoje - quais sejam, algo que satisfaça a

sua sôfrega busca de engrandecimento espiritual ou a correlata

necessidade de se consagrar, de corpo e alma, a um ideal religioso, noafã de compartilhar experiências sensíveis com outros. O sentimento

de frustração que se abate sobre o indivíduo hipermoderno, sedentode ebulição interior, não tem como causa única e exclusiva o consu­

mismo exacerbado. Visto em profundidade, diríamos que a raiz doproblema reside no universo de racionalidade da modernidade con­

jugado com a presença de instituições religiosas "burocratizadas",

que não permitem mais o contato direto, sensível, de arrebatamento

pelo divino.

» Nesse quadro. como pensar o consumismo cultural no interior da civi­lização frustrante?

Relativamente às décadas de 1950 e 1960, a mudança operada em nos­

sos dias reveste-se de capital importância. A partir de então, as denún­

cias incidem menos sobre o objeto em si, e mais sobre o rebaixamen­

to dos valores culturais à condição de bens de compra e venda. Aquilo

que poderíamos designar como um "produto dos sentidos" geramuito mais decepção do que os bens duráveis. Não haveria como

catalogar o número de vezes em que um filme nos desapontou, assim

como uma representação teatral, um concerto, um romance ou um

ensaio. Não esqueçamos, aliás, que a televisão, diariamente, absorve

aproximadamente três horas e meia da vida diária dos franceses, sem

contar a constante mudança de canal de TV com o controle remoto.

Ora, esse comportamento exprime um pequeno enfado, uma espécie

de microdecepção contínua do espectador. A TV é um objeto que nos

decepciona sistematicamente, mas nem por isso deixamos de assisti-

A espiral da frustração 33

Ia a todo instante. Noutros termos, tem um visgo que nos cativa,

mesmo sabendo que, milagre, do aparelho, não sai ...

Uma última palavra sobre um aspecto particularmente emblemático

da sociedade da decepção: a arte contemporânea. Ela dá origem a uma

experiência frustrante para a grande maioria do público, que julga

que "nada daquilo é arte", que não tem nenhum valor, nenhum inte­

resse, "seja lá o que for". No decurso dos séculos e dos milênios, as

criações artísticas foram uma fonte incomparável de deslumbramen­

to e deleite para os sentidos. Hoje, pelo contrário, o que presenciamos

é uma espécie de tédio provocado pela repetitiva desconstrução das

coisas, pelas instalações minimalistas ou conceituais, pela videoarteonde nada de relevante acontece. Anne Cauquelin aduz que a "rebel­

dia", isto é, o desejo de contrariar as propostas doutrinárias, é agora

uma ação voluntária e deliberada, um instrumento de trabalho rei­

vindicado pelos artistas (Petit traité d'art contemporain, Le Seuil,

1996). Por aí podemos avaliar a originalidade de nossa época. Nas

sociedades tradicionais, o sistema cultural era profundamente asso­

ciado ou interiorizado (sem rejeição, sem inação), enquanto a vida

material era bem difícil. Hoje, é o contrário que aparece: há uma

superabundância de satisfações de ordem material, enquanto as

decepções de ordem cultural proliferam como nunca.

",> Todavia. não podemos omitir que as grandes exposições obtêm

extraordinária aceitação ...

As exposições que atraem centenas de milhares de visitantes apresen­

tam as figuras célebres e consagradas da arte: elas não comportam ris­

cos. Com efeito, quando ocorre alguma decepção, não é tanto pelas

obras ali expostas quanto por causa do afluxo excessivo de visitantes.

Nada que diga respeito à arte contemporânea: pouco mais de 1% ou

2% da população revelam interesse pela matéria.Estamos diante de uma situação inédita: nos contornos de uma socie­

dade tradicional, a oferta era reiterativa, sendo as predileções culturais

de uma mesma índole, de acordo com certos padrões, e em consonân­

cia com o que se apresentava ao público apreciador de arte. Nomomento atual, o mercado multiplica ao infinito o cardápio ou o

Page 29: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

-,".-.-"~.'----"'---'--"-' - ._~._.

>:> Gilles Lipovetsky, seria o caso de dizermos que a esfera política aca­

bou sendo "poupada" da avalanche hiperconsumista? Ou, pelo contrário,

terá servido de chamariz para a espiral frustrante, tal qual a conhecemos?

A democracia liberal, em sua própria estrutura, gera a decepção.

Segundo Claude Lefort, isso se deve à própria indeterminação dademocracia, que implica um poder que não é de ninguém, um poder

que é objeto de uma competição cujo resultado depende de eleições.Essa concorrência pacífica pelo exercício do poder pode conduzirtanto a uma mudança de governo quanto à renovação do mandato do

mesmo governante. Portanto, constitucionalmente falando, há vence­dores e vencidos. Moral da história: decepção para os últimos. De

resto, o domínio dos que triunfam também não está totalmente isen­to de um futuro que possa levar à frustração. Basta lembrar que, de

modo sistemático, dois anos após o slogan à Ia Rimbaud, "Mudar de

vida", sobrevém a "tradicional reviravolta" de François Mitterrand,

cujos eleitores já se sentiam traídos desde 1981. "Em nossos dias, o eleitorado de direita tem um comportamento cor­

porativista diante dos governos aliados que fracassam em estabelecero serviço mínimo de transporte público ou em flexibilizar as leis tra-

I

\

34 A sociedade da decepção

setor de ofertas e, de forma concomitante, as preferências e ojerizas sediversificam ao máximo, num composto de tal modo heterogêneo

que cada pessoa é praticamente um caso único. Em conseqüência, osentimento de decepção proveniente do consumismo cultural é crô­nico, insanável.

» Fortuitamente, e em sentido contrário a todo esse processo de padro­

nização do mundo contemporâneo, o senhor constata a existência de uma

extrema diversidade ...

Como prova da massificação do mundo, comumente recorremos aos

exemplos clássicos: o jeans, a Coca-Cola e o McDonald's. Contudo,observemos o que se passa na esfera do cinema, da música, da litera­tura: o cenário é totalmente diverso. Em 2004, as editoras norte-ame­

ricanas publicaram mais ou menos 190 mil títulos. Em 2005, na Fran­ça, foram editadas 68 mil obras, metade de publicações novas, metadede reedições. No terreno cinematográfico, em torno de setecentos lon­

gas-metragens saíram dos estúdios de Hollywood; na França, foram240 filmes. Deduzimos daí que o capitalismo hipercomercial se desen­volve com a diversificação galopante da oferta, com a multiplicação davariedade dos produtos culturais. É a inflação de novidades e o encur­tamento do tempo de vida das obras que são o problema, e não a uni­

formização do universo cultural. Resumindo, vivemos em uma socie­dade da superabundância de ofertas e da desestabilização das culturasde classe. São essas condições que criam as condições propícias parauma individualização extrema das preferências de cada um.

Consagração e descréditoda democracia

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36 A sociedade da decepção

balhistas. Nesse contexto, nosso século registra uma ampla corrente

de desconfiança, de ceticismo, de descrédito diante do sistema políti­co. De cada quatro franceses, três suspeitam da classe política. Nosúltimos vinte anos, em todos os países, a proporção da perda de con­

fiança na classe política só aumenta. Incapaz de cumprir suas promes­sas e de encontrar soluções viáveis para os constantes problemas dodesemprego, da insegurança, da imigração, o poder político é tido

como ineficiente, burocrático, alheio às verdadeiras aspirações doscidadãos.

Essa atmosfera de suspeita diante da responsabilidade dos homens

públicos é reforçada pela idéia de que sua conduta é pautada, sobre­

tudo, pela indisfarçável satisfação de seus interesses pessoais, pelaânsia de se reelegerem, pela obsessão em fazer pesquisas de populari­dade ... Outras tantas formas de conduta alimentam um desencantopela política, que não cessa de crescer e se manifesta bem mais aber­

tamente do que antes, em virtude do declínio da influência partidáriasobre o eleitorado e identidades políticas menos "movediças". Sob oinfluxo dessa contínua desconfiança e decepção, os votos de protestose multiplicam: os eleitores pretendem condenar tais práticas viciosas

das elites e dos partidos governamentais, considerados "incapazes",cínicos, apegados a seus privilégios e desprovidos de coragem políti­ca.

» "Abaixo os privilégios!" Há um cheiro de populismo por aí ...

O populismo volta à ativa. A extrema-direita arrebata sucessivos

triunfos eleitorais, os movimentos contestadores emergem por quasetoda parte, numa Europa que repudia o establishment e as elites do

mundo político. Ao mesmo tempo, o discurso xenófobo ressurge etorna -se moeda corrente. Contudo, convém não analisar o panoramahodierno pela ótica do passado: o conflito entre os eleitores atuais e os

representantes eleitos nada tem em comum com a confrontação quehavia no período entreguerras. Aqueles que eram tidos como "total­mente podres" são agora considerados "totalmente nulos': O brado

contra o parlamentarismo despiu-se de sua nota virulenta e, por sua

vez, a miragem de derrubar a democracia perdeu o seu antigo atrati-

Consagração e descrédito da democracia 37

vo. A decepção contemporânea não está dissociada do respeito àordem democrática pluralista. A política caiu no descrédito, os plebis­cito tornam-se mais freqüentes. A época individualista hipermoderna

transcorre em meio à pacificação política dos sentimentos de decepção.

» Além dos votos de protesto, também o abstencionismo progride. O que

é, então, a cidadania hipermoderna?

Desde a década de 1980, o abstencionismo acha-se em franca expan­são. Instaurou-se, de fato, como um fenômeno permanente da vida

política atual. Há sempre uma porção minoritária de indivíduos quesimplesmente nunca vota, ou quase nunca, ao passo que cada vez maiseleitores votam de forma intermitente, dependendo da natureza da

disputa ou dos competidores. Em 2002, menos da metade dos eleito­res votou em cada um dos turnos das eleições; dois de cada três elei­

tores com 25 anos que votaram só uma vez não vêm votando regular­mente.Esse é um estigma do neo-individualismo, que corresponde

não tanto a uma despolitização de caráter absoluto quanto a uma des­

regulamentação dos índices de comparecimento às urnas. Delineia-se,assim, um novo perfil de cidadão: alguém que vota com regularidadecada vez menor, que participa e se mobiliza "quando quer". O efeito

disso é que ao voto-dever sucede o voto à la carte: o comportamentoconsumista invadiu até mesmo o exercício da cidadania. A recusa de

lançar mão da arma do voto, por vezes, denuncia um descontenta­mento latente, uma decepção entranhada, uma desconfiança indefini­

da, algo que caminha em sentido contrário às vias traçadas pelos can­

didatos ou pela c<;mtendapolítica. De qualquer modo, essas elevadastaxas de abstenção concorrem para aumentar a crise de representati­vidade democrática, na qual estamos imersos.

» De que modo caracterizar esse conjunto de inovações relativas à polí­

tica?

O general de GauHe dizia: "Toda política que não faça sonhar estácondenada ao fracasso". O que aconteceu com o ânimo das ambições

políticas? Diante do triunfo da modernidade, a transformação maisradical que se operou foi que deixaram de existir os grandes sistemas

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38 A sociedade da decepção

condutores da esperança coletiva, as utopias capazes de fazer sonhar,os grandes objetivos que prometiam um mundo melhor. Até a cons­

trução da Europa está longe de acontecer, e muito! A idéia de progres­so diluiu-se, em favor dos dispositivos sociais para combater o desem­

prego, obter a redução da dívida pública, modernizar os órgãosadministrativos, fortalecer o caráter competitivo das economias. Os

grandes visionários são trocados cada vez mais por políticos especia­lizados em gerir as pressões inevitáveis do presente, por governantesque prometem um mal menor e cujo objetivo essencial é a moderni­

zação da sociedade, o controle da crise, a adaptação forçada da naçãoao mundo globalizado. Cada vez mais, a imagem de um poder inca­paz de forjar conscientemente um futuro promissor _ esse é o dever

da esfera política -, um poder "tecnocrático" de ações reformistas que,em vez de escolhidas, são praticamente impostas pelas evoluções epressões do mundo histórico. Nesse contexto, não espanta que oscidadãos se considerem cada vez mais vítimas de um grande engano.Dessa sociedade doente de desemprego e desorientada diante da ruína

dos projetos políticos estruturantes só pode advir o ceticismo, o dis­tanciamento dos cidadãos em relação à coisa pública, a decadência damilitância partidária. Muitos cidadãos não se importam com a vida

política, não estão interessados nas plataformas dos partidos e nãoconfiam em nenhum candidato para governar o país. De cada dez

franceses, seis consideram-se "um pouco" ou "nem um pouco" inte­ressados pela política; na faixa dos 18 aos 29 anos, mais de 70% têmessa opinião. Filmes e jogos de futebol conseguem índices de audiên­

cia claramente maiores do que as emissões de teor político. No

momento atual, tem muito mais repercussão o fato de a França nãoganhar a Copa do Mundo do que os resultados de uma eleição. Hápelo menos vinte anos a despolitização toma vulto, englobando até

mesmo os que acabaram de concluir o curso universitário, depois delongos estudos.

Amplo alheamento em relação à coisa pública, grande investimentona satisfação pessoal: quimicamente, essa é a fórmula do individualis­

mo hipermoderno puro. De resto, é um desengajamento mais causa­do por uma globalização cultural enaltecedora do consumo e do

Consagração e descrédito da democracia 39

desenvolvimento da própria personalidade do que por uma decepção

política. Doravante, o sentido da existência não é mais buscado eencontrado no campo da política, mas alhures.

» Pode-se afirmar. com propriedade. que a iniciativa dos cidadãos ficou

relegada à condição de item ultrapassado?

Nem a indiferença nem o troca-troca partidário conseguem eliminaras lutas coletivas e os compromissos públicos, principalmente quan­do centrados na defesa dos direitos humanos, na defesa do ensino ou

na proteção do meio-ambiente. O repúdio à guerra no Iraque gerouuma grande mobilização de europeus. O referendo sobre o projeto deuma Constituição Européia suscitou debates acalorados. Não é bemum abandono radical da coisa pública que se manifesta, mas sim umasensibilização mais pragmática em busca de políticas concretas, mais

próximas das preocupações dos cidadãos.

» Com as desilusões coletivas e a erosão da influência dos diferentes

organismos intermediários - sindicatos, partidos, classes sociais -, de

que modo a democracia política poderia ser reabilitada? auais são os sin­

tomas dessa desestabilização das identidades políticas? Enfim, quais são

as formas atuais de pertencimento político?

A despeito de uma profunda despolitização e do enfraquecimento doantagonismo entre direita e esquerda, a maioria dos franceses (60%)resiste a se situar politicamente. Contudo, importa frisar que mais deum terço dos franceses declara não estar afinado "nem com a esquer­

da, nem com a direita", julgando que nenhuma delas possui compe­tência para dirigir o país. Ao mesmo tempo, a volatilidade e a fluidezeleitoral são maiores do que antes. Embora sempre haja quem se digade direita ou de esquerda, toma vulto a idéia de que essa classificaçãoestá "superada" ou é prejudicial. Uma pesquisa de 2006 realizada peloIfopl demonstra que 60% dos franceses não vêem diferenças signifi­cativas entre os dois campos adversários, declarando-se abertamente

favoráveis a um governo de coalizão entre direita e esquerda. Assim

1 Ifop é um instituto francês especializado em pesquisas de mercado. (N. E.),

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40 A sociedade da decepção

como a noção de consciência de classe vai regredindo, as afinidades e

identificações políticas estão em processo de diluição. Por isso, acaracterização política contemporânea é muito menos formadora deidentidade social do que em outros tempos.Enquanto a intensidade da identificação partidária se mostra em

baixa, a subjetivação da identidade política avança. Esse evidenteretrocesso do poder de influência dos partidos e das ideologias mes­siânicas é diretamente proporcional ao crescimento do contingente deeleitores que não seguem a doutrina de nenhum partido. Atualmente,o número dos que se declaram favoráveis a algumas idéias do partidono qual pretendem votar é maior do que o número dos que se decla­ram favoráveis a quase todo o programa partidário. O mesmo que

acontece com a política acontece com a religião: cada vez mais proli­feram "as crenças independentes", questões de princípio sem partici­

pação, fidelidade sem unidade. Em acréscimo, os eleitores manifestamuma crescente propensão a hesitar, a esperar as campanhas eleitoraispara se decidir. Nas democracias hipermodernas, predomina o eleitor"tático", que mantém distância e autonomia individualista diante dospartidos que ganham os votos. O momento é da identidade políticarefletida e desinstitucionalizada.

» Será nesse contexto de "fragmentação" política que devemos interpre­

tar o que Michael Walzer chama de "novo tribalismo"?

Perfeitamente. O desengajamento político a que assistimos é contem­porâneo de um impulso rumo à idéia de comunidade e o respeito às"diferenças". Ao criar um vazio, a dinâmica da individualização e o

refluxo das grandes visões político-ideológicas trouxeram a necessida­de de se identificar com comunidades particulares (étnicas, religiosasou regionais). Quando os pólos universais de determinação da iden­tidade perdem sua condição de abstrações inatingíveis, os indivíduosvoltam-se para suas comunidades particulares mais próximas. A iden­tificação individual vai deixando de se configurar como adesão aprincípios políticos gerais, atendendo cada vez mais a referenciais dahistória, da cultura, da religião, da etnia. Em síntese, vemos uma

explosão de identidades que engendra um processo de balcanização

Consagração e descrédito da democracia 41

social,2feito de uma multiplicidade de minorias e grupos que se des­conhecem ou se hostilizam reciprocamente.

» Num tempo de despolitização. o que mais alimenta a decepção?

Quatro elementos essenciais, a meu ver, destilam no âmago das estru-turas sociais o fel da desilusão.

Em primeiro lugar, o fenômeno da descrença nas utopias, caracterís-tico de nosso tempo. As mega-ideologias do século XX quiseram

esconder tudo aquilo que pudesse contrariar o sonho idílico de umexuberante amanhã. Ao dissimular a realidade, elas se protegeram, ao

menos por certo tempo, do ceticismo, da desconfiança e do desencan­to. No contexto atual, esse artifício tornou-se insustentável, pois oacesso aos meios de informação deixou de ser apanágio dos partidos

políticos. Menos ofuscados pela retórica do totalitarismo, mais infor­mados e autônomos em relação aos partidos, os cidadãos estão maiscríticos em relação aoS dirigentes e a seus discursos. Sem esse fundode democracia midiática habitada por cidadãos que recebem a infor­

mação de canais apartidários e, por isso mesmo, capazes de ser maiscríticos, não haveria lugar para a espiral frustrante.

Em segundo lugar, haveria um engano em presumir que a decepção

esteja consolidada tão-só em razão de uma peculiar imperícia da clas­se dirigente. Existe algo bem mais profundo que trabalha no mesmosentido e que é inerente ao próprio contexto democrático, a saber, o

---sistema de direitos humanos, verdadeiro código genético e doutrinamoral das democracias liberais. Com base nessa utopia abstrata, o

nivelamento da realidade mostra-se desastroso. Sem dúvida, como o

real poderia competir com ideais tão excelsos como liberdade, igual­dade, felicidade geral? Como imaginar realizado aqui na Terra umestado de liberdade e felicidade completa? Bem conhecemos o adágio:

"Não se pode extinguir toda a miséria do mundo". À luz dos direitoshumanos, a ação política concreta revela-se forçosamente calculista,

injusta, sempre inferior às perspectivas ideais e a tudo que se refere ao

2 Referência aos recentes e sucessivos conflitos étnicos ocorridos na Península Bal­

cânica, principalmente com a fragmentação da Iugoslávia.

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42 A sociedade da decepção

respeito universal pelo ser humano. Daí provém a fornalha sempreviva do desencanto, cujas labaredas estão bem longe de se extinguir.

»Uual seria o terceiro fator?

É exatamente, como vimos, o novo contexto mundial simbolizado

pelo liberalismo e pela transformação da economia em especialidade

do campo das finanças. Essa nova fase do capitalismo foi responsável,em particular, por reduzir drasticamente as margens de manobra do

poder público, bem como sua capacidade de controlar a marcha eco­nômica da sociedade. Mitterrand soube exprimir bem esse "drama"

ao afirmar que, em matéria de luta contra o desemprego, "tudo foi

tentado': Em última análise, "ninguém pode mais nada" _ é o quesugere a nova ordem mundial. Assim, ganha força a idéia de que, naprática, somos mais dirigidos pela autoridade obscura dos fluxosfinanceiros do que pelos representantes eleitos pelo povo. Como umesvaziamento político desse nível poderia não instilar o veneno da

desmobilização e do desencanto? Como a impotência de controlar ocurso das coisas poderia não acarretar desilusão nas sociedades em

que, ao menos, em tese, o povo é considerado soberano e senhor deseu destino?

» Então os discursos políticos também estão sendo igualmente questio­nados?

Certamente, esse é o quarto fator. A retração das ideologias demiúrgi­cas e a impressionante expansão do "Quarto Poder" transformaramprofundamente a retórica do político. Em particular, a televisão con­tribuiu para a difusão de um discurso simplificado ao máximo, de um

linguajar asséptico, tecnocrático, sem farpas, "politicamente correto':que já não faz sonhar, que já não consegue "tocar" em mais nada nementusiasmar ninguém. Ao perder sua autoridade sagrada, o Estado­espetáculo banalizou e pasteurizou o cenário político. Uma forma

"triste de se exprimir" que, aos olhos de muitos cidadãos, parece com­plexa, abstrata, distante de suas preocupações. Os jovens normalmen­

te se declaram incapazes de assimilar os dizeres dos líderes políticos ede perceber as diferenças entre os partidos, exceto em casos extremos.

.{~7,.

Consagração e descrédito da democracia 43

Ironia do destino: quanto mais nossos representantes políticos seempenham em adotar uma forma de expressão simples, direta, aces­sível ao grande público, "comunicativas", mais seus discursos se tor­nam inaudíveis, tediosos, desestimulantes ...

» Em que medida o desencantamento político hipermoderno afeta a vidacotidiana?

Ao contrário do desemprego, que traz importantes conseqüênciassobre a moral e a conduta dos indivíduos, a desconfiança em relação

à política quase não tem influência sobre os modos de vida, nem sobreo consumo em particular. O desencanto ou o pessimismo político nãorefreiam o apetite consumista. Aí reside outra característica da despo­litização hipermoderna: ela vem associada a uma decepção "maisdifusa': mais geradora de indiferença e distanciamento do que dedesânimo. Porém, ao contrário do que pensava Hirschman, já não émais a decepção provocada pela esfera pública que explica a supera­

tenção à vida particular e ao consumo. Doravante, a intensificação nabusca dos deleites pessoais não é resultado da desilusão política; elaganhou uma espécie de "autonomia de vôo", dando a entender que ela

existe pela criação sistemática de novos mercados, de novos lazeres ede desenvolvimento individual.

» Todas as democracias contemporâneas estão cercadas pela mesma

desilusão política?

/ '1bdas são marcadas pela dinâmica dos direitos humanos, da globali­zação liberal e da influência da mídia. Contudo, nada disso suprimeas particularidades nacionais. Na América Latina, por exemplo, o pro­blema da corrupção é protagonista da decepção política das popula­ções locais. Na Europa, sua importância é menor. Não obstante, tam­bém aí se notam fortes correntes de decepção, principalmente naFrança. Isso é atestado pelo fato de que somos o país europeu onde as

taxas de abstenção são as mais elevadas, onde o número de filiados apartidos políticos e sindicatos é o menos expressivo, e onde a extre­ma-direita vem obtendo os melhores resultados eleitorais dos últimos

vinte anos. A que isso se deve? Para entender, precisamos estabelecer

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44 A sociedade da decepção

um elo entre esse fenômeno e o nosso passado. Como sabemos, anossa atmosfera cultural ainda está impregnada daquela mentalidade

colbertista-jacobina-intervencionista. Nesse modelo, a lógica dolucro, a economia de mercado e suas conseqüências nunca foram ple­namente aceitas. O poder público é reconhecido como o instrumentosupremo da unidade e da coesão social, a instância produtiva do bempúblico e dos laços sociais. Ora, a globalização colide frontalmentecom esse modelo de Estado enquanto produtor da Nação. O abismoque separa o "modelo francês" (Estado concebido como vetor daigualdade, guardião da lei, preocupado com os serviços públicos) e a

força propulsora do neoliberalismo explica o tamanho da nossadecepção. A impotência do poder público, no contexto de uma naçãoque nutre enormes expectativas em relação ao Estado, implica, hoje,no considerável descrédito dos atores políticos, bem como em um

mal-estar generalizado. No caso francês, nenhuma grande agremiaçãopolítica faz questão de declarar a admiração pelos benefícios trazidospelo liberalismo e a livre-concorrência. Não é só a esquerda que se vê

forçada a assumir posições de ultra-esquerda, resgatando por vezesuma retórica anticapitalista, antipatronal e antilucro; até mesmo umpresidente de direita como Jacques Chirac foi capaz de declarar: "O

liberalismo é tão perigoso quanto o comunismo." Assim, desprepara­dos para adotar uma atitude de confiança na economia de mercado,os franceses vivem a globalização econômica como uma afronta diri­gida contra eles, como uma verdadeira ameaça à sobrevivência daidentidade nacional.

» O senhor concorda com Lionel Jospin quando ele diz que "o Estado não

é capaz de tudo"?

Claro! Contudo, lembre-se de como ele foi criticado por ter feito essa

afirmação, considerada inadmissível na boca de um socialista.

Consagração e descrédito da democracia 45

"TUDO ESTÁ PARA SER

FEITO NO QUE CONCERNE

À DEMOCRACIA COMO

ESTADO SOCIAL. O "FIM

DA HISTÓRIÂ' SAIU DA

ORDEM DO DIA, POIS A

HISTÓRIA NÃO É EXCLUSI­

VAMENTE DE ORDEM

~ [] "POLITICA ... ·

Page 35: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

46 A sociedade da decepção

» Convém lembrar as reações estampadas na imprensa internacional

sobre as manifestações anti-CPE3 na França. Parte dos que protestavam

insistia no medo quase patológico dos franceses diante da configuração

atual do mundo. Outra parte indagava se. afinal de contas. os franceses

não seriam uma espécie de vanguarda esclarecida. Essa parcela conside­

ra que as reações superficiais contrárias à globalização e à flexibilização

são atitudes pouco adaptadas ao mundo real. Contudo, justamente por se

afastarem do real, correspondem a um apelo para que não nos deixemos

confinar. nem enganar. em suma, para não entregarmos os pontos. Oual é

a sua opinião a respeito?

Creio que, nas manifestações mencionadas, algo se encontra de posi­tivo: a entrada em cena de uma sensibilidade refratária ao liberalismo

rígido, ou seja, "o liberalismo idealizado nos moldes norte-america­nos". Contudo, também exprimem uma realidade visivelmente maispreocupante: o medo da mudança, o imobilismo, a fobia antiliberal, arecusa tenaz de toda forma de "flexibilização" - termo que adquiriuuma conotação quase obscena em nossos dias. Esses acontecimentosnão constituem um sinal de vanguarda; mais propriamente, o que vis­lumbro é mais um arcaísmo, um reflexo de ideologia antiquada, o

medo instintivo da inevitável modernização de nossa economia.Na maior parte dos países, as reformas estruturais visam a obter umfuncionamento mais ágil e mais eficaz dos negócios, independente­

mente das manifestações de hostilidade que possam causar, uma vezque são vistas como necessárias. Rejeitamos demais essa realidade evi­dente. Todavia, nesse campo, não se pode ter razão contra todos. A

recusa da economia de mercado, talvez maior aqui do que em outros

lugares, não nos garante um futuro melhor. Na verdade, ela retarda oprocesso, acentuando mais que o necessário as grandes desigualdadese as exclusões sociais. Mas não se trata de incensar o liberalismo extre­

mado. Nos países escandinavos, por exemplo, existe um outro modelo

que, combinando previdência social e competitividade, poderia ser um

3 Sigla de contrat premiere embauche, um novo tipo de contrato de trabalho, insti­tuído em 2006 pelo presidente Jacques Chirac, que foi duramente criticado pelosfranceses. (N. E.)

Consagração e descrédito da democracia 47

ponto de referência para a reforma do mercado de trabalho. Logo, se avanguarda existe, poderemos encontrá-Ia nessa "previdência flexível"­cujo objetivo consiste em proteger os assalariados, e não os empregos_, jamais em surtos de "revolta conservadora" ou na discriminação daeconomia de mercado em comparação com padrões de outras épocas.

» O consumo é uma das idéias-chave de sua linha de interpretação da

modernidade. O senhor disse que a lógica mercantil penetrou na socieda­

de hiperconsumista em praticamente todos os domínios da vida particular

e coletiva. Será que essa lógica do hiperconsumismo também nos leva à

desesperança diante de nossa vida democrática? Não há o risco de que.

pela mera avidez de novidade. sejamos induzidos a aceitar outros regimes

que não o democrático? No fundo. seria a democracia um bem de consu-

mo como qualquer outro?

Desde o século XIX, a modernidade política se defrontou com espíri-tos aduladores da democracia e com seus inimigos viscerais. Para a

esquerda marxista, a palavra de ordem consiste em derrubar a estru­tura liberal, enquanto regime político supostamente a serviço dosinteresses da burguesia. Já para a extrema-direita, a guerra implacávelmovida contra o parlamentarismo, contra o sistema democrático,contra o individualismo, fundava-se no pressuposto de que estes

seriam sinônimos de decadência, de mediocridade, de anarquia. Ins­trumento de coerção dos proprietários contra o proletariado indefe­

so; "veneno", "vida parlamentar nojenta", "Assembléia corrupta": os

g~JlP<)spolíticos mais antagônicos tinham pela democracia parlamen­tar um desprezo absoluto, um ódio irredutível. Não faz muito tempo,

grupos de manifestantes gritavam, pausada e muito claramente, estesdizeres: "Eleições, arapuca das consciências".

Essa época está superada. No compasso da hipermodernidade, ademocracia granjeou prestígio, tanto no âmbito externo (o grande

inimigo comunista caiu por terra) quanto no interno (graças à extin­

ção das paixões nacionalistas destrutivas e das perspectivas revolucio­nárias utópicas). No Ocidente, ao menos, não se conhecem elementoshostis dispostos a enfrentá-Ia pela força das armas. Chegamos ao

patamar triunfal, consensual da democratização. Presenciamos a

Page 36: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

48 A sociedade da decepção

sagração dos direitos humanos, definidos como o referencial por exce­

lência, o centro de gravidade ideológica de nosso mundo. No momen­

to em que guerras "preventivas" são conduzidas para introduzir o sis­

tema em países que não o adotam, podemos dizer que a democracia

passou a ser produto de exportação. Na situação presente, não é uma

moeda intercambiável, como as demais. Impõe-se, de fato, como um

valor em si mesmo, inegociável: é como a regra-padrão do bem cole­

tivo, a condição política para a obtenção de quaisquer outros bens.

?> Esse triunfo será assim completo? Ou caberia reconhecer que, em mui­

tos pontos (principalmente, no combate à pobreza), ela representou um

considerável fracasso, a ponto de ser ti da como um regime meramente de

transição? Noutros termos, quando se diz que a democracia é um regime

bem-sucedido, não se está supervalorizando certos êxitos instáveis e

esparsos, se comparados aos grandes fiascos da democracia. para os

quais ainda não encontramos resposta?

Consagração ideológica dos direitos humanos não equivale a sinôni­

mo de democracia social ou de inserção geral numa sociedade justa e

harmoniosa. Se, com isso, a democracia política avança, o mesmo não

ocorre com a dinâmica da igualdade social. Durante a época das Trin­

ta Gloriosas4, vivemos um período relativamente tranqüilo, pois está­

vamos numa sociedade cujas desigualdades entre classes diminuíam.

Como sabemos, a partir da década de 1980 e, sobretudo, nos anos

1990, esse esquema não é mais o nosso. Nessa época, vemos a amplia­

ção dos desafios desencadeados pela pobreza em grande escala, pelo

desemprego em massa, pelos working poors, pela vulnerabilidade e

desqualificação social. A agitação que tomou conta das periferias

francesas, no outono de 2005, deu o sinal de alarme, permitindo

medir as dimensões do problema. Aliás, quando verificamos que as

populações da extinta URSS, que antes aspiravam à democracia, agora

4 Expressão criada por Jean Fourastié para designar as três décadas de expansão eco­nômica (1945-1975) de países como a França, quando o trabalho em série atinge

seu apogeu e os empregos são estáveis. O período tem fim com a crise do petróleodo final da década de 1970, que encareceu brutalmente as fontes de energia, geran­do recessão. (N. E.)

Consagração e descrédito da democracia 49

demonstram, por vezes, saudades da situação anterior, percebe-se que

a decepção democrática é patente ...O fim do comunismo e o triunfo da democracia poderiam levar à ilu-

são de que caminharíamos céleres para um mundo de paz e prosperi­

dade. Mas é forçoso constatar que não é bem isso que acontece. Os

efeitos daquela expectativa deixaram a desejar. Para os indivíduos

excluídos, sem filiação partidária, sem perspectivas de futuro, a demo­

cracia não foi capaz de cumprir o que prometera desde o início. Ela se

parece muito mais com um "pastel de vento".

» O consumismo acabou consumindo a democracia?

O número de pessoas que, na Europa, se declaram dispostas a qual­

quer sacrifício em defesa da liberdade, a bem dizer, é ínfimo. Aliás, a

esse respeito, ocorre-me lembrar o famoso slogan dos pacifistas ale­mães: "Antes vermelho do que morto". Será que, positivamente, a

democracia se tornou um corpo exangue? Não me parece. É verdade

que o entusiasmo pela democracia não é efusivo, mas nem por issoesse sistema é objeto de ódio; hoje, não há quem proponha seu fim.

Como sabemos, é cada vez menor a porcentagem de franceses que

lêem diariamente os jornais. Consideremos, porém, a hipótese de

supressão da liberdade de imprensa. Certamente, a mobilização e a

indignação do público seriam enormes! Da mesma forma, ficaria des­

qualificado moralmente quem propusesse uma volta atrás, em relação

_aQ_2!incípio do sufrágio universal. Recordemos o dito espirituoso de

Churclí.ill, para quem a democracia seria o pior dos regimes, com

exceção de todos os outros ... No fundo, essa opinião foi incorporadaao nosSO modo de ser. Em outras palavras, embora as pessoas não tri­

butem um amor inflamado à democracia, jamais vão querer mudar

de regime. Tampouco creio ser impossível encontrarmos pessoas dis­

postas a dar a vida pela democracia. A dessacralização da esfera poli­

tica pode conduzir a tudo, menos ao relativismo completo. Apesar dea democracia ter perdido a sua coesão interna, continuamos intima­

mente ligados aos grandes princípios norteadores da democracia.Paradoxo de nossa época: quanto mais a decepção progride, tanto

mais se confirma a adesão das massas aos valores democráticos. A

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50 A sociedade da decepção

democracia é apreciada, mas sem frêmitos de arrebatamento. A esti­

ma se faz notar, sobretudo, quando desponta no horizonte o risco dealguém golpeá-Ia a fundo.

»Dizer que não há alternativa para a democracia não é uma constataçãoum tanto deprimente?

Não podemos viver lamentando o desaparecimento das grandes reli­giões seculares do culto à Revolução e à Nação. A nostalgia não é umsentimento muito aceitável quando se refere a algo que esteve na ori­gem das barbáries e carnificinas que ensangüentaram o século xx. O

declínio da era de ouro da política nada tem de depressivo. Em todo

caso, haverá sempre muitos outros projetos e resoluções, tendentes a

acalentar a existência e a inspirar belos ideais. A criação, a pesquisacientífica, as descobertas científicas e tecnológicas, a busca pessoal dafelicidade inserem-se nesse ro1.O homem não está condenado à desi­lusão perpétua só porque os grandes projetos messiânicos foram var­

ridos do mapa. Não são poucas as aspirações capazes de dar sentido à

existência: a dedicação às causas humanitárias; o ímpeto de gerar,

educar e formar a famüia; o surgimento de formas de trabalho quepromovam desenvolvimento humano.

Pequenos projetos comparados ao prometeísmo político? Nadamenos exato. A descoberta da pílula e os recursos infindáveis da Inter­

net acarretaram mais conseqüências para a nossa vida pessoal emudaram mais intensamente a face da Terra do que os bordões trots­

kistas. Já não existem alternativas legítimas para o regime democráti­co, mas tudo está para ser feito no que concerne à democracia como

estado socia1.O "fim da História" saiu da ordem do dia, pois a histó­ria não é exclusivamente de ordem política. As questões que estrutu­rarão o futuro (educação, relações entre os sexos, estilos de trabalho,particularidades da vida cotidiana, etc.) ainda estão por inventar ereinventar.

» Minha pergunta agora. Gilles Lipovetsky. é sobre a incapacidade da

democracia de fornecer uma resposta adequada para a felicidade. Pode­

ríamos dizer que seu diagnóstico parte da premissa de que o problema da

Consagração e descrédito da democracia 51

felicidade não pertence à democracia. por ser extrínseco à própria natu­

reza do regime. isto é. não está na esfera de responsabilidade desse sis­

tema político indicar soluções nesse sentido? Terá sido um desvio conce­

ber o regime democrático como capaz de prover a felicidade?

Na Declaração de Independência do Estados Unidos de 1776 está ins­crito o direito à "busca da felicidade". Por sua vez, a Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão, de 1789, estipula que seus princí­

pios estavam orientados para a busca da "felicidade geral".Ao mesmotempo, a tradição liberal sempre preferiu considerar que a esfera dafelicidade não é de jurisdição do mundo político, mas individua1. Vem

a propósito a fórmula característica de Benjamin Constant: "Que oEstado se limite a distribuir a justiça a todos; nós nos encarregaremosde ser felizes". Contudo, novos parâmetros devem ser levados emconta atualmente, dado que, socialmente falando, a questão da felici­dade está cada vez mais vinculada às técnicas e aos modos de vidaconsumistas.

Quais ensinamentos se depreenderiam daí? Ao menos este: no domí­

nio da política, a felicidade não é só uma realidade não política, elatambém é independente da técnica, do progresso, do avanço do con­sumo. Consumimos sempre mais, mas nem por isso somos mais feli­zes. O mundo tecnicista proporciona a todos uma vida mais longa e,em termos materiais, mais cercada de confortos. É algo que devemosconsiderar. Porém, isso não equivale à felicidade em si, que tenazmen­

te es\apa do poder de apreensão humana. Se é certo que a dominação

técnicr-científica cresce indefinidamente, não é menos certo que afelicid~de continua sendo o ente mais ingovernável, mais imprevisívelde todos. Ela ilumina nossa existência "quando quer", na maioria dasvezes sem o menor concurso de nossa parte. A felicidade aparecequando menos se espera, e vai embora quando achamos que a possuí­mos. A Política e a História jamais serão agentes de uma marcharadiante rumo à felicidade.

» Em sua opinião. não estaríamos em presença de um fenômeno de

saciedade. ou mesmo de ingratidão. da parte de um país que. embora seja

muito bem servido atualmente. mostra muito pouco empenho em preser-

Page 38: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

52 A sociedade da decepção

var aquilo que, um século atrás, estaria motivado a defender com toda a

força? Não lhe parece que existe, na nova sensibilidade coletiva, uma

espécie de falta de convicção, ou excesso de sentimentalismo?

Recentemente foi citada a "melancolia" para falar do mal-estar fran­

cês. Essa dimensão existe, mas creio ser menos significativa do que oindiscutível avanço dos sentimentos de medo e insegurança. Visto porfora, temos a impressão de sermos apenas "crianças mimadas"; vistopor dentro, a vida parece ficar cada vez mais difícil, mais confusa eestressante. Com uma intensidade maior que a da decepção, a inquie­tação rotineira é o que mais causa profundos transtornos ao indiví­

duo contemporâneo. Esse desassossego está quase por toda parte: nascorrelações com o mundo globalizado, com a Europa, com o empre­go, com os diplomas, com a imigração, com a alimentação, com asaúde, com a poluição ... O dado novo é que esse estado de incerteza eapreensão vai se disseminando sobre um fundo de febre consumista.

Ao menos nesse ponto em particular, não existe saciedade: quanto

mais consumimos, mais queremos consumir; a satisfação de um dese­jo engendra novas necessidades. O elemento que prevalece não é tantoa nostalgia do passado, mas o sentimento desagradável de precarieda­de e inquietação diante de um futuro cada vez mais incerto.

» O consumismo avassalador deixa algum espaço para a atividade polí­

tica? Ou, pelo contrário, é uma forma de compensação para a inoperânciadesta?

Ao incentivar o gozo dos prazeres individuais, do bem-estar e dos

lazeres, o universo consumista confiscou as portentosas plataformasrevolucionárias e nacionalistas de outros tempos, erodindo o espíritomilitante e as grandes paixões políticas. O antigo imaginário da con­sagração completa aos supremos ideais se esvaiu, deixando de servirde estímulo ou sentido para a existência. O desenvolvimento de simesmo se erige como o ideal pleno, como o grande referencial e o

móvel psicológico da era hiperconsumista. O Roma felix ultrapassouo Roma politicus. Mudar a sociedade? Não é mais essa a questão. Apalavra de ordem é: aumentar a qualidade de vida presente, tanto parasi como para os mais próximos; ganhar dinheiro; consumir, tirar

Consagração e descrédito da democracia 53

férias, viajar, se distrair, praticar um esporte, decorar a casa. O antigosonho dos "grandes salões" extinguiu-se totalmente, e a coisa pública

só desperta nas pessoas interesses superficiais e passageiros.Todavia, nem por isso as demandas de ordem política cessaram; naverdade, se multiplicaram. Os mesmos que orgulhosamente se desin­

teressam pela política continuam a nutrir expectativas com relação àsmelhor ias e aos benefícios: previdência, educação, auxílio governa­

mental, proteção do meio-ambiente, correção das desigualdades.Desse modo, a recente crise nas periferias das cidades foi vista como

um forte apelo por maior proteção estatal. Como o individualismo domundo atual criou a vulnerabilidade, ele vem associado a uma fila de

demandas de sistemas previdenciários, de programas de proteção, de

expectativas mais definidas em face do poder público.

» Depois de décadas, os grandes intérpretes da modernidade passaram

a alertar para as ameaças que pesam sobre a democracia. Para o senhor,

a sociedade hiperconsumista dá motivos para essa interpretação?

Reportemo-nos a Tocqueville e a Nietzsche, nos quais se acha descri­to aquilo que poderíamos denominar de paradigma da mediocridade

democrática. O primeiro discorre sobre o homem "médio", de boa

educação mas sem grandeza de alma nem nobreza de atitudes, unica­mente centrado em bagatelas, espíritos "mesquinhos e irrisórios". O

segundo, por sua vez, traça o perfil do "homem pequeno", covarde,incapaz de abandonar seus interesses rasteiros e miúdos em busca de

algo maior. Algum tempo depois, Ortega y Gasset denunciaria o

"h04em-massa" da época democrática, cuja existência se desenrolanU~i introversão mesquinha e degenerada.Será que o modelo prototípico do indivíduo hiperconsumista con­

temporâneo se enquadra nessa análise? Penso que não. Não é verdade

que o mundo consumista tenha exercido sua supremacia sobre todasas dimensões do desejo humano. Nunca houve tantos pesquisadores,artistas, inventores, espíritos originais e empreendedores, atletas de

alto nível. A paixão pelo alto risco difunde-se largamente. O desejo de

aprender e refletir, de atuar cada vez melhor, de sobrepujar os demais,nada disso foi erradicado e nem será futuramente, pois é "induzido"

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54 A sociedade da decepção

pela ordem democrática vigente, em cujo âmbito cada pessoa deveinventar sua vida e construir a sua identidade pessoal e social. Umaincita à obsessão pelo bem-estar e pelos prazeres "fáceis"; outra, a

inventar, a progredir e a superar. Os homens continuam a se esforçare se digladiar para "subir na vida': "ser melhor", dominar, ter reconhe­cimento, granjear a estima de si e dos outros, transcender-se. É inútil

reclamar: a vontade de poder, no sentido que Nietzsche atribuía aotermo, não está em vias de se extinguir. O hiperconsumismo não con­

seguiu transformar os homens em dócil rebanho que só vive para asegurança e a dissipação. O poder de Narcisos não é absoluto.

» Mesmo que a democracia, como o senhor disse, não tenha se tornado

um simples bem perecível. não seria necessário admitir que, em contra­

partida, o sistema democrático tem passado por outros desvios e deforma­

ções? Com efeito, se a democracia liberal não eliminou a "vontade de

poder", não teria provocado um desgaste da solidez dos vínculos sociais?

Desde a década de 1960, os situacionistas fizeram coro, denunciando

o isolamento dos seres e a "comunicação sem interlocução" suscitadapelos meios de comunicação de massa. Hoje, o sociólogo norte-ame­

ricano Jeremy Rifkin se pergunta se o espírito de comercialização queassola todos os modos de vida não leva à atrofia do instinto de socia­

bilidade, do poder das afinidades naturais, enfim, de todos os senti­

mentos que existem no homem. Há quem afirme que a hipertrofia doconsumismo mercantil, do influxo da mídia e da cibernética arruina­

ram o trato direto entre as pessoas, assim como o cultivo da sociabi-

5 A lenda de Narciso possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras

da mitologia grega. Narciso era um jovem de singular beleza, filho do deus- rio Cefi­

so e da ninfa Liríope. No dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias vaticinou queNarciso teria vida longa, desde que jamais contemplasse a própria figura. Indiferen­te aos sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor da ninfa Eco - segundooutras fontes, do jovem Amantis - e seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao

observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própriaimagem e ficou a contemplá-Ia até consumir-se. A flor conhecida pelo nome deNarciso nasceu, então, no lugar onde morrera. Na área da psiquiatria, particular­mente da psicanálise, o termo narcisisrno designa a condição do indivíduo que teminteresse exagerado pelo próprio corpo. (N. E.)

Consagraçãoe descréditoda democracia 55

lidade. Contudo, os fatos não confirmam essas apreensões. Ao invés

de desaparecerem, os sentimentos de empatia para com o próximomanifestam-se ruidosamente por ocasião das grandes catástrofes quese abatem sobre a humanidade. Jamais o mundo conheceu tantas ins­

tituições e entidades consagradas ao trabalho voluntário em favor dosnecessitados. O número de pessoas que se visitam e sentem prazer noconvívio mútuo entre amigos está longe de diminuir. Há uma prolife­ração notória de restaurantes, festivais, apresentações ao vivo. Nem o

espírito consumista nem a televisão ou a Internet põem em risco nos­sas inclinações inatas à sociabilidade. Ao contrário, novas formas derelacionamento entre indivíduos e grupos sociais vêm à tona. O indi­

vidualismo total que nos define não significa que tudo se circunscre­va a um retraimento em si e à visão utilitarista do outro. O individua­

lismo também comporta sensibilização (mesmo que superficial e

passageira) em relação aos que sofrem, mesmo sem serem conhecidosdiretamente, e busca de novos vínculos de relacionamento pós-tradi­cionalistas (isto é, escolhidos, múltiplos, renovados).

»Certo, mas talvez não seja descabido fazer uma interpretação mais crí­

tica das coisas: as pessoas se encontram, conversam, fazem festas, mas

sobre um fundo totalmente vazio e instável.

Nesse caso, estaríamos mais diante de um juízo de moral do que de

uma observação psicológica. Ora, por que os laços que unem as pes­soas deveriam durar "para sempre"? Um mero encontro com alguémpoderá ser efêmero, mas denso, e até "imperecível". Por vezes, há mais

intensi~ade e "autenticidade" nas experiências passageiras, que não se

consolifllam na rotina diária. Por que insistir na tecla de que só aquiloque é áurável está livre da frivolidade e da superficialidade?

» Uma velha inspiração platônica, sem dúvida ...

É verdade, mas do ponto de vista psicológico, a valorização do que éduradouro exprime sobretudo um desejo de segurança afetiva, o

medo da solidão, o pavor de ser abandonado. E como acreditar que aduração é sempre índice de uma profunda comunicação entre pes­soas? Com o passar do tempo, também sobrevêm o tédio, a rotina, a

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56 A sociedade da decepção

irritação, O cansaço por aquilo que não muda. As pessoas deixam dese falar quando acaba o fascínio da descoberta e da paixão. O dura­

douro não me parece ser propriamente um ideal, pois tudo dependeda forma como ele é vivido.

» Na era da globalização dos mercados, dissemina-se a idéia de que

navegamos em um mar de niilismo. Como prova, mencionam a corrupção,

o império do dinheiro, o "horror econômico", o utilitarismo mercantil...

Muitos fenômenos de importância cmcial poderiam dar fundamentoa essa interpretação niilista da hipermodernidade. De fato, o que pre­senciamos diariamente? Uma modernização desenfreada e imperati­va que, ao invés de ser construída pela força dos ideais, se impõe pelaconcorrência mundial, pelo culto da eficácia, pelas exigências de ren­

tabilidade e sobrevivência econômica. Ter um desempenho cada vezmelhor, crescer para não desaparecer, modernizar por modernizar,vencer a batalha da audiência: serpenteia à nossa volta algo de um nii­lismo tecno-mercantil em meio ao triunfo dos negócios, das finançase do tecnicismo. Então a sociedade de consumo significa a consagra­

ção do niilismo, um "retorno à barbárie" do mundo? Em meu enten­dimento, ainda que essa leitura seja consistente, concluir isso seriatomar a parte pelo todo. Por quê? Os referenciais dos significados edos valores não estão extintos. A democracia e os direitos humanos

gozam de uma excepcional aceitação; as desigualdades não param de

crescer, mas os protestos sociais não foram esmagados. Embora oequilíbrio ecológico esteja em risco, a consciência da obrigatoriedade

de uma reação continua existindo. O mundo contemporâneo nãoconseguiu secar as fontes que alimentam a crítica; nós não perdemosos princípios ideais que permitem estabelecer um juízo crítico do pre­sente. Incontestavelmente, o neoliberalismo não conseguiu derrubar abase de sustentação dos valores democrático-humanistas. A democra­

cia tem todos os meios para se auto corrigir, para se reorientar, para sereinventar. A sociedade hipermoderna está sob o domínio do investi­dor e do consumidor, mas nem por isso se transformou em umasociedade "pós-democrática': centrada em si mesma e desprovida dequalquer senso de justiça.

Consagração e descrédito da democracia 57

» Ouer dizer que os valores não estão sendo destruídos sob os golpes do

capitalismo financeiro?

A sociedade hiperindividualista não destrói os referenciais de ordem

moral. A sua ação consiste em esvaziar a moral de seu conteúdo tra­

dicional, pondo em discussão aquilo que outrora era indiscutível. Pre­cisamente naqueles casos em que a Igreja determinava imperativa­mente o bem e o mal, organizam-se hoje comissões de ética,

controvérsias, polêmicas acerca do aborto, da adoção de filhos porhomossexuais, da procriação, da manipulação genética, da eutanásia.Por todo lado irrompem conflitos de natureza moral. Isso que presen­ciamos não é uma decadência da moral, mas uma pluralização das éti­cas conforme a natureza de nossa sociedade - secularizada, democrá­tica e individualista.

» Oual é a sua opinião acerca daquilo que alguns chamam de "morte da

cultura", outros de derrota do pensamento?

Na fase inaugural da modernidade, a democracia foi acusada de

representar uma ameaça ao pensamento individual, em virtude daforça do conformismo e do "despotismo da maioria". No momentoatual, o consumismo e a mídia passaram a ser causa de inquietação.

Aquilo que Valéry chamava de "valor-espírito" está ameaçado peladisputa por índices de audiência e por uma "cultura da tela" que tro­cou a reflexão pela emoção, o espírito crítico pelo espetáculo anima­do. Neste momento de hiperconsumismo, o durável cede lugar aodescartável, e tudo deve entreter com o mínimo de esforço. O capita­

lismo e o espírito de fmição estão acabando com a autoridade públi­

ca e a dignidade da cultura. Alguns chegam a falar em um estado de

"pós-cultura",9ut~s citam a barbárie intelectual e estética.Qualquer uma dessas avaliações tem algo de verdadeiro. Mas não con­vém, falando-se do mal-estar francês, formular o esboço de um futu­

ro que mais parece uma predestinação fatal. Outros cenários poderãosurgir, na medida em que há transformações em vários níveis e ten­dências em sentido contrário à expansão da mentalidade consumista.As críticas ao sistema de ensino e à televisão são veementes; os pais

expressam a mais viva preocupação com as conseqüências de tantas

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58 A sociedade da decepçãoConsagração e descrédito da democracia 59

POLÍTICA, MAS PRODUZIRÁ

QUER INSTALAR A TIRANIA

ROCADA DA DEMOCRACIA

"O "PERIGO QUE ESTÁ POR

VIR" NÃO CAUSARÁ A DER-

horas passadas diante da tela. Nós chegamos a um ponto em que atéa confiança na permissividade pedagógica sofreu desgaste. A cadasegundo, um novo blog aparece. Os fóruns de discussão na Internet eos cafés filosóficos estão bem em voga. Mesmo que esses fenômenossejam indissociáveis de um certo narcisismo (sem contar o problema

da forma de expressão, muitas vezes confusa), eles manifestam umaespécie de desejo de ser menos passivo, um certo interesse em assimi­lar novos conhecimentos com uma pitada de curiosidade. Não é ver­dade que a sociedade de fruição conseguiu exterminar a sede deentender, de aprender e de refletir. Temos motivos para pensar que, nofuturo, essa força propulsora possa se ampliar.

»Por quê?

Duas razões podem ser aventadas para isso.Em primeiro lugar, o poder da Internet. Sem dúvida, é algo que esti­mula a curiosidade, que incentiva os indivíduos a propor novos temase soluções, alargar seus horizontes de conhecimento. Apesar disso,

não sejamos ingênuos a ponto de supor que apenas a democratizaçãodos meios de informação e a difusão de programas televisivos comalguma qualidade possa competir com a natureza dos problemas sus­

citados pelo futuro da cultura e do pensamento contemporâneo. Aescola continuará a desempenhar um papel primordial no sentido deprover pontos de referência em meio à hipertrofia da informação. Um

dos maiores desafios com que se defronta o século XXl é a criação denovos sistemas de formação intelectual, qual seja, uma escola adapta­da tanto à época pós-disciplinar quanto à época pós-hedonista. O can­teiro de obras que se apresenta é considerável. A esse respeito, tudo ou

quase~~stá por pensar e por fazer.Em segundo lugar, não podemos perder de vista o alcance fundamen­tal das ciências em nossas sociedades. Ora, a ciência não é apenas "dis­curso técnico" ou "raciocínio calculista", nas palavras de Heidegger.

Também é um campo de trabalho para o espírito, um chamado paracompreender e comprovar, um instrumento de questionamento cujafunção é recolocar em pauta os dados recebidos, promovendo umacontínua reformulação do problema. Não acredito que uma socieda-

ATIVIS-MINORIAS

"

UMA INTENSA AMEAÇA

POR PARTE DE MINORIAS

PERIGOSAS. [ ... ] A ERA DA

ESCALADA FRUSTRANTE

DAS

TAS.

Page 42: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

60 A sociedade da decepção

de que concede um papel tão estratégico à ciência possa gerar mais

indivíduos propensos a um estreitamento dos horizontes abertos pelarazão.

» Quer dizer então que, para a emancipação rumo ao saber, as ciências

tenderiam agora a assumir o papel anteriormente desempenhado pelashumanidades clássicas?

Se a cultura científica tem como característica o espírito de questiona­

mento, ela não saberia cumprir esse papel. As humanidades fornecem

pontos de referência para os sentidos e quadros de entendimento que

são insubstituíveis. Temos uma necessidade básica de bússolas para areflexão, que se ligam à história universal do pensamento. E essa neces­

sidade aumenta conforme aumenta o risco de afundarmos na constan­

te enxurrada de informação que recebemos diariamente. Estou per­suadido de que o predomínio incontestável das ciências abre caminho

rumo a uma nova era das humanidades, e não à sua extinção.

»Passemos então a examinar os perigos que ameaçam a instituição da

liberdade, visto que, a principio, é contra ela que pode se voltar uma

decepção invasiva. Alguns afirmam uma irrevogável retorno das trevas do

despotismo ...

Tomarei como ponto de partida uma constatação; a extrema-direita

conquistou bastante espaço em nosso panorama político. Por todo

lado, o seu ímpeto está contido, em nenhum lugar conseguiu subver­

ter a ordem e a legitimidade democrática. Esse é um dos grandesméritos da era consumista e hiperindividualista.

Todavia, outras nuvens negras se perfilam no horizonte. Em seu últi­

mo livro (L'Homme sans gravité, Denoel, 2002)6, Charles Melman sus­

tenta que devemos estar preparados para um terrível retorno da

repressão. E anuncia a vinda inexorável de um "fascismo voluntário".

Segundo o autor, a sociedade de fruição, ou do hiperconsumismo, por

causa da confusão extrema em que ela nos mergulha, daria origem a

uma angústia insuportável. Os indivíduos não mais sabem distinguir

6 O homem sem gravidade, publicado no Brasil pela Companhia de Freud. (N. E.)

Consagração e descrédito da democracia 61

o que é bom e o que é ruim, tendo perdido todo e qualquer referen­

cial estruturante. Por esse motivo, as pessoas exigirão livre e esponta­

neamente o restabelecimento da ordem. Quer dizer, não mais um ter­

ror vindo de fora, mas um fascismo "por dentro", algo proveniente da

exacerbação do individualismo e da necessidade de se desvencilhar da

angústia proveniente da perda das referências.

Para falar sem rodeios, não compartilho dessa opinião. Não há como

negar que a sociedade hiperconsumista produza insegurança e alta

dose de fragilidade psicológica. Mas diante desses problemas, a "solu­

ção" de Melman não me parece a mais viável. Existem reivindicações

em favor da "restauração da ordem", não há dúvida. Mas como não

ver que o menor indício de alguma medida político-governamental

no sentido de violar as liberdades individuais gera tanta indignação?

Nem o contexto de uma guerra implica na renúncia aos direitos

humanos. Basta lembrar o escândalo ocasionado pelos excessos

cometidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque.

Querendo sanar sua ansiedade, como reage o Homo democraticus,

transformado em Homo psychologicus? Apela para todos os medica­

mentos farmacológicos e psicológicos disponíveis (psicotrópicos, psico­

terapias, acompanhamento pessoal generalizado). Em outras palavras,

ele procura soluções particulares para seus problemas particulares. É

essa via hiperindividualista - psicológica e "química" no lugar de polí­

tica - que progride a olhos vistos. Sem dúvida será esta a forma mais

c~)lnum de encontrar uma resposta para esse novo mal-estar na civili­

ZtÇã07. Por enquanto, nenhum fenômeno observável justifica a hipóte­sJ de uma "recaída" em direção ao totalitarismo num futuro próximo.A segunda revolução individualista enfraquece as defesas psicológicas

dos indivíduos, mas consolida as instituições democráticas.

» Seja como for, esse indivíduo hipermoderno, desestabilizado, "mal

consigo mesmo", não prenuncia um futuro muito prazeroso. Não haveria

aí uma incontornável fonte de inquietudes para as democracias liberais?

7 "O mal-estar na civilização" é o título de um ensaio de Freud. (N. E.)

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62 A sociedade da decepção

Com esse processo de individualização intenso de nossa época, asgrandes instituições perderam o seu antigo poder de regulamentaçãosocial. As religiões, os partidos políticos e os sindicatos cada vez

menos influenciam as crenças e os comportamentos individuais. Issoprovoca instabilidade, vulnerabilidade psicológica extrema, ou seja,um indivíduo desorientado que busca alguma forma de integraçãocomunitária em grupos, em "seitas", por vezes em núcleos violentos eradicais. Daí derivam novos perigos, já não provenientes das maiorias

poderosas, mas de minorias agitadas. Mesmo sem conseguir abalar osalicerces da democracia, estas podem ter sucesso em semear o pânico,em aterrorizar o cotidiano. O medo do "perigo que está sempre porvir" se enraíza na desestruturação individualista e nas novas minoriasque, embora sem chegar a subverter a democracia em seu "perfil cole­tivo", não cessam de arremessar incisivos e venenosos dardos contra

nossos estilos de vida e a tranqüilidade pública. O edifício liberal não

desmorona, mas os danos causados em algumas partes da construçãonão são desprezíveis. Sobre o fundo de fragilização psicológica dosindivíduos, esse "perigo que está por vir" não causará a derrocada dademocracia política, mas produzirá uma intensa ameaça por parte deminorias perigosas. Após a ditadura feroz do Estado totalitário, após a

doce tirania do Estado superprotetor, a era da escalada frustrante querinstalar a tirania das minorias ativistas.

Uma esperança

sempre renovada

:» Um dado curioso: até aqui, o senhor não fez nenhuma referência ao

papel da família. Será que esta também se deixou levar pela espiral da

decepção?

A época em que a decepção envolveu o instituto da família já passou.Basta lembrar o famoso "Família: eu odeio" ou, mais recentemente, as

diatribes lançadas contra o espírito familiar burguês nos momentosmais inflamados da contracultura, para constatar com maior clareza

quão longe ficamos daqueles tempos. Nos dias atuais, a família goza

dk consideração e apreço unânimes, situando-se em primeiro lugar naista de prioridades do indivíduo. A grande maioria deseja aumentar

o tempo de dedicação aos seus, buscando um ponto de equilíbrioentre a vida profissional e a vida familiar. Esta, por sua vez, dá origem

a um inquestionável sentimento de realização pessoal, sendo que atéos adolescentes, em sua maior parte, afirmam entender-se muito bem

com os pais. A família autoritária deu lugar a uma família afetiva,baseada na "livre-escolha" e na proteção. Ela deixou de ser vista comouma instância alienante e repressiva, passando a constituir um dos

espaços privilegiados de felicidade.

Page 44: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

64 A sociedade da decepção

Mas será que, com isso, ela ficou totalmente imune à hidra da decep­ção? Evidentemente, não. Nunca se exaltou tanto como agora a felici­dade proporcionada pela tranqüilidade e pelo aconchego do lar, e, nãoobstante, os levantamentos de opinião apontam o mais alto índice de

suicídios ou de perturbações psíquicas entre os jovens. Desentendi­mentos, conflitos pelo direito de ter a guarda dos filhos, divórcios, vio­

lência familiar contra as mulheres, crescimento acentuado dos serviçosde "mediação familiar" (intervenção sociopsicológica cuja fmalidade ésolucionar conflitos que opõem os cônjuges), são muitos os fenôme­

nos que comprovam esta cruel realidade: nós estamos muito longe dapaz familiar, de uma esfera de desenvolvimento sem sombras.A dinâmica de individualização da família favoreceu o fortalecimentodos vínculos da afetividade, mas, ao mesmo tempo, deu impulso a

uma miríade de decepções e mágoas relacionadas a crises conjugais. À

medida que aumentam as expectativas de êxito dentro da vida parti­cular e familiar, mais as decepções tendem a proliferar. Mas a descri­ção seria incompleta se não acrescentássemos as fortes críticas dirigi­

das aos pais que renunciam a seus encargos e atribuições. É nessecontexto que, à direita e à esquerda, se acena com a ameaça de suspen­

são, ou até mesmo de supressão, da pensão alimentícia. Nossa épocacaracteriza-se pelo crescimento das desilusões e das inquietações emrelação às famílias, que, por falta de autoridade, revelam-se incapazesde cumprir suas obrigações de educar e socializar as crianças.

» Quer dizer então que a família tornou-se um mero contrapeso para as

frustrações, para onde se dirigem as esperanças de bem-estar e realiza­

ção pessoal que não se concretizam em outros espaços?

De qualquer modo, a família constitui um lugar que, por si, incute

confiança, o que contrasta visivelmente com a atmosfera de descon­fiança que paira sobre a empresa e a política, a mídia e as pessoas emgeral. Sobre esse último ponto, observe que apenas dois em cada dezfranceses acreditam que se pode confiar na maioria das pessoas. Inú­meras categorias sociais despertam notória desconfiança (imigrantes,usuários de drogas, jovens que moram em repúblicas), ao contrário

do círculo de relações mais próximo de cada pessoa, onde é a confian-

Uma esperança sempre renovada 65

ça que importa. A esse respeito, a reviravolta em relação ao feitio tra­dicional de sociedade não poderia ser mais protuberante. No passado,

era comum que membros da família olhassem com desconfiança paraos demais familiares e para os vizinhos mais próximos. Já a família

contemporânea constitui um refúgio protetor, onde reina a confian­

ça, onde se cultivam o auxílio mútuo e a solidariedade. Assim, ela atuacomo uma instância consoladora, um porto seguro em face de um

mundo exterior agressivo e angustiante.

>;;. A este retrato genérico da sociedade de decepção poderíamos aduzir

um importante crescimento do sentimento de solidão?

O sentimento de solidão manifesta-se "de vez em quando" ou "muito

freqüentemente" em mais de um terço da população européia. Estásubentendido na individualização dos modos de vida, na desagrega­

ção dos vínculos coletivos, no esvaziamento das instituições da famí­lia e da religião. Hoje, 6 milhões de franceses estão vivendo sozinhos;em Paris, metade dos lares é constituído por um único indivíduo. Osmais velhos vivem num isolamento cada vez maior, permanecendo

cada vez mais tempo nesse estado de abandono. Numerosos estudosindicam a catástrofe do isolamento afetivo e social por que passam os

desempregados. Sobre um plano totalmente diferente, a disseminaçãode sites de relacionamentos na Internet ilustra a importância social do

sentimento de solidão, bem como do desejo de fazê-Io cessar. Seria

inadequado abordar o problema sem uma referência ao altíssimo per-/ centual de suicídios e tentativas de suicídio (160 mil tentativas por

ano na França), principalmente entre os jovens, situação que aponta

a fragilidade do indivíduo hipermoderno, muitas vezes confrontadopor uma solidão interior insuportável.Contudo, para não circunscrevermos o quadro a essa realidade tãotrágica, consideremos outro fenômeno típico de nossa época: a paixão

pelos animais domésticos. Na França, são mais de 56 milhões; meta­de dos lares franceses possui ao menos um animal de estimação. Esseverdadeiro entusiasmo pelos animais deve ser creditado, em parte, ao

altíssimo desgaste dos vínculos pessoais que predomina em nosso

tempo. Todavia, apenas em certa medida o interesse exagerado pela

Page 45: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

BRINCA COM A DIVISÃO

DAS IDADES, AO INVÉS DE

AS ABOLIR OU IGNORAR. A

CRIANÇA NÃO SE TORNOU

UM MODELO PARA O

ADULTO. "

66 A sociedade da decepção

companhia de um gato ou cachorro constitui uma maneira de se pro­teger das decepções nascidas do convívio humano. Ao contrário das

pessoas, o animal é, por excelência, um ser que jamais causa decepção:ninguém espera dele algo que ele não possa oferecer. Gostamos dosanimais porque eles estão sempre ao nosso lado, e são sempre iguais asi mesmos. Nesse sentido, jamais poderemos dizer que eles nos enga­naram. O animal de estimação representa uma garantia contra asexpectativas frustrantes, ao mesmo tempo que é uma forma de com­

pensação dos diversos gêneros de desgostos vividos pelo homem con­temporâneo.

» Interesse exagerado pelos animais domésticos. carências manifestas

em relação à família. apesar de sua natureza reconfortante (recordemos.

para esse efeito. a hecatombe do verão de 2003. quando a extensão do fla­

gelo da seca deixou à vista de todos o espantoso grau de isolamento das

pessoas idosas). Podemos dizer que estamos em plena regressão moral.

psicológica e afetiva?

Na sociedade da desilusão, enquanto os mais velhos vestem-se deforma descontraída e já não querem aparentar a idade, jovens adultosbrincam como crianças nos parques temáticos, circulam de patinetes,compram ursinhos de pelúcia. "Adolescente eterno': síndrome de

Peter Pan ... À luz desses fenômenos, alguns vêem a abolição das dife­renças entre as idades em benefício de uma "infantilização universal"da humanidade. O igualitarismo extremado teria assim levado a umestado de indistinção entre crianças e adultos, culminando com umestado pueril geral.Mas esse diagnóstico é convincente? Não julgo dessa maneira. A per­gunta fundamental é: de que espécie de "regressão" se trata? Não sepode considerar os jovens de uma sociedade por sua substância. Ahumanidade ficou realmente mais "infantil"? Não é isso que vemos: o

fenômeno que está sendo analisado pertence, em mais profundidade,à esfera da simulação lúdica. O hiperconsumidor brinca com a divisãodas idades, ao invés de as abolir ou ignorar. A criança não se tornouum modelo para o adulto. Aparentar "menos idade do que se tem" é auma aspiração contemporânea legítima, mas "voltar a ser criança",

//

"o

Uma esperança sempre renovada 67

HIPERCONSUMIDOR

Page 46: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

68 A sociedade da decepção

não. As normas de comportamento vigentes em cada idade são social­mente distintas e requerem condutas diferenciadas, o que os profis­

sionais do marketing sabem muito bem. Uma mulher de 40 anos nãose apresenta como uma adolescente de 15 anos nem "freqüenta" osmesmos locais. Ora, o que está em jogo, então? O novo consumidor

procura esquecer, evadir-se, escapar do peso da responsabilidade deser alguém, por um breve instante que seja. Não é uma regressão psi­cológica, mas uma liberação transitória das coerções adicionais do

trabalho, das pressões e preocupações do cotidiano.Portanto, o fenômeno corresponde mais à expressão de uma socieda­de lúdico-hedonista legitimando todas as formas de prazer do que de

uma sociedade que nega a divisão das idades. Aqueles mesmos indiví­duos que adoram regressar ao travesseiro podem ter sido, algumashoras antes, negociantes intransigentes ou totalmente concentrados

no trabalho. A consumação regressiva ocorre porque se intensificamas exigências do governo de si mesmo. O ímpeto da era hiper-indivi­dualista coincide muito mais com uma reflexividade inquieta do quecom o retorno à infância.

»Apesar da natureza lúdico-hedonista do fenômeno que o senhor apon­

ta, é irretorquível a constatação de que os sofrimentos interiores prolife­

ram em ritmo vertiginoso. A sociedade da decepção não seria, sobretudo,

uma sociedade depressiva?

A fase hipermoderna está associada a uma espantosa maré de depressão

e de mal-estar generalizado. Na França, as taxas de depressão forammultiplicadas por sete, entre 1970 e 1996: 11% dos franceses atravessa­ram recentemente alguma crise depressiva, e 12% deles afirmam terpassado por uma ansiedade generalizada ao longo dos últimos seismeses. Ao mesmo tempo, porém, 90% dos europeus declaram-se felizes

ou muito felizes, apesar do desemprego em massa e do sentimento deinsegurança crescente. A esse propósito, formularei duas observações. Aprimeira é que a síndrome do fracasso contemporânea não coincidecom a imagem de uma decepção abissal e de uma irremediável prostra­ção. A segunda é que a sociedade da decepção é aquela na qual os indi­víduos sentem dificuldade em admitir o próprio desapontamento ou

Uma esperança sempre renovada 69

insatisfação. De fato, no âmbito de uma sociedade em que o insucessoé tido como evidência de fracasso, em que se prefere suscitar inveja do

que compaixão, uma confissão dessa natureza dificilmente é expressa.Além disso, a ninguém compraz aumentar sua própria depressão,declarando-se infeliz, uma vez que, se resolvesse comparar sua situação

com a de alguém mais desafortunado, encontrará motivos para não sesentir o ser humano mais prejudicado pela sorte.

:» Faz lembrar o método Coué...1

É provável. De cada dez franceses, nove se dizem felizes ou muito feli­zes em seus empregos; todavia, metade dos assalariados refere sentir

prazer no exercício de sua atividade profissional e apenas um terçoreconhece seu trabalho como um meio de desenvolvimento pessoal.

Ao mesmo tempo, as pessoas se declaram otimistas em relação a si,

mas pessimistas em relação aos outros. Daí se depreende que a decep­ção atinge uma escala macrossocial, mas de nenhum modo está naorigem da estagnação ou da inércia individual, muito pelo contrário.Mesmo no contexto territorial francês, onde a atividade empresarial é

bem menos intensa do que nos demais países europeus, 27% das pes­soas declaram cultivar a esperança de que, no futuro, poderão criar o

seu próprio empreendimento; anualmente, surgem cerca de 70 milnovas associações; presume-se um total de 30 mil artistas plásticos; as

práticas esportivas e expressivas (fotografia, cenografia, literatura,blogs, música) proliferam; os indivíduos não param de se informar ede se formar, de viajar, de exercitar-se para manter a forma. Nossasociedade contemporânea é depressiva e frustrante apenas sob umfundo de ativismo generalizado e expressão individual para todas as

J O princípio de Coué é o reconhecimento da superioridade da imaginação sobre avontade. Émile Coué começou a popularizar a chamada auto-sugestão consciente

em princípios do século XX, uma espécie de auto-hipnose genérica. Ele dizia: umavez que toda sugestão não passa de auto-sugestão, as sugestões que podemos for­mular a nós mesmos são mais imperiosas e incisivas do que aquelas que fazemos

a outrem. Em outras palavras, "não é a sugestão feita pelo hipnotizador que desen­

cadeia a hipnose; é a própria mente da pessoa que produz o fenômeno. Logo, só

quando assume o caráter de auto-sugestão é que uma sugestão pode concretizar-se". (N. E.)

Page 47: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

70 A sociedade da decepção

direções. Não é com um imobilismo que se associa a era da decepção,

mas com a construção voluntarista de si e com a redistribuição per­manente dos elementos de nossa vida.

»Mas a construção de si não é justamente o que é mais difícil de alcan­

çar, e por isso causa decepção?

Na época em que estamos ingressando, a construção de si pode serentendida de várias formas, menos como uma operação fácil ou roti­neira. Entregue a si próprio, doravante o indivíduo deve forjar intei­

ramente o seu perfil, sem contar com o apoio consolidado dos antigospadrões de conduta coletiva e religiosa. Logicamente, quando cadapessoa sente o peso da própria responsabilidade e quando mais nadapode obstruir a projeção de suas esperanças, é quase impossível não

ser vítima de decepção.

» Em última instância, a sociedade da decepção não induz a certo

"menosprezo do outro", a uma forma de anomia moral generalizada?

Passou a ser lugar-comum estabelecer uma identificação entre o indi­vidualismo e o egoísmo, ou ao mais completo cinismo. Desse pontode vista, a sociedade hipermoderna de mercado corresponderia a umamovimento indutor da obsessão pelo cada um por si, o que levaria aspessoas a se mostrarem insensíveis pelo próximo, obcecadas pelodinheiro e pelo interesse pessoal. Mas a realidade não se limita a estes

mal traçados contornos. Há outros fenômenos em curso, que noslevam a matizar esse quadro excessivamente pessimista. Existem maisde quatrocentas ONG que desfrutam de um estatuto consultivo juntoao Conselho Europeu. Na França, 80% das associações são conduzi­das ou impulsionadas por grupos de voluntários, que, em 2004, per­

faziam o significativo total de 12 milhões de indivíduos, dos quais27% eram franceses com mais de quinze anos; além disso, 3,5 milhõesde voluntários concedem ao menos duas horas por semana para pres­tar serviços a uma entidade beneficente. E o fenômeno progride. Da

mesma maneira, podemos constatar o significativo crescimento dasatividades filantrópicas: quase metade dos franceses se mostra solidá­ria aos demais, doando dinheiro a associações diversas. O intercâmbio

Uma esperança sempre renovada 71

solidário propaga-se numa progressão satisfatória, ainda que inci­

piente. As agências de classificação que avaliam empresas sob o pontode vista ético se multiplicam. Os investimentos e aplicações financei­

ras, que se concretizam nas empresas, obedecem não só a critérios deíndole financeira, mas também comportam índices sociais e ambien­

tais; os fundos de investimento socialmente responsáveis, ano apósano, vão de vento em popa.Com toda certeza, o individualismo problemático não é sinônimo de

retraimento completo em relação às necessidades alheias; os indiví­duos continuam revelando particular apreço pelas noções de respeito,auxílio mútuo e solidariedade. Muitos espíritos bem-intencionados

nutrem o ardente propósito de legar um planeta mais habitável às

gerações vindouras. E, diante da corrupção, dos crimes e da violência

perpetrada contra o semelhante, ainda se ergue um brado uníssonode indignação. Claro, o que presenciamos é, sobretudo, uma plurali­dade de comportamentos éticos tipicamente "indolores" e circunstan­ciais, sem obrigações ou grandes sacrifícios (doações para o Teleton,onda de solidariedade em favor das vítimas do tsunami ... ). Em todo

caso, os impulsos de compaixão de massa não deixam de atestar queo indivíduo fortemente autocentrado ainda possui uma sensibilidade

altruísta capaz de se mobilizar diante do infortúnio de seu semelhan­te. O homem contemporâneo não é mais egoísta e "desumano" que

anteriormente: naquela vida tradicional, a inveja carcomia facilmenteos vínculos de amizade entre os seres, e o caráter sagrado do dever não

pôde impedir o livre curso das Grandes Guerras mundiais nem oscampos de extermínio. Hiperindividualismo quer dizer extinção com­

pleta dos valores e dos ideais de abnegação. Essa é apenas uma de suasvertentes, não a única. O individualismo não é, de nenhum modo,

incompatível com senso de responsabilidade e exigências éticas.

» No seu entender, o "crepúsculo do dever" (título de uma de suas

obras)2 não seria tão desesperador assim. Observamos novas formas de

2 A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever, publicado no Brasil pela EditoraManole. (N. E.)

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72 A sociedade da decepção

protesto. novas manifestações de inconformidade que vão contra a hiper­

trofia da sociedade hiperconsumista. movimentos contra a publicidade

desenfreada e. sobretudo. contra a globalização maciça. Como o senhor

analisa esses novos surtos de indignação?

Uma das principais características da hipermodernidade é o fato deque ela exclui a possibilidade de uma outra forma mais confiável de

organização mundial que não seja baseada no mercado e na democra­

cia. No entanto, esse contexto desfavorável não foi capaz de extinguiro espírito de contestação radical, que se faz notar principalmente pelapresença de movimentos hostis à globalização, dos propugnadores de

sistemas contrários ao desenvolvimentismo, dos inimigos da ondapublicitária que caracterizam a propaganda como o símbolo por exce­lência da comercialização da vida. Mas qual seria o alcance dessas

intervenções? Furar os pneus dos 4x4, rabiscar os painéis de publici­

dade no metrô, corromper logotipos, organizar o "dia de não comprarnada", tudo é tão irrisório, verborrágico e "descartável" quanto os pró­prios objetos comerciais denunciados pelos novos militantes. Chega­mos assim à época do "radicalismo bugiganga': da dissidência lúdico­espetacular, extraordinariamente conexa com o espetáculo dapublicidade.

Aliás, o que há não é apenas a cumplicidade dessas correntes com o

universo que eles criticam. Longe de fazer descarrilar o sistema, eles

fornecem novos combustíveis à ordem dominada pela mídia e pelapublicidade. Não se trata de potencial subversivo, mas apenas de umnovo componente de uma sociedade de entretenimento midiático. Aeficácia dos opositores da publicidade sobre o funcionamento da eco­

nomia de mercado é extremamente reduzida, para não dizer nula. Emcompensação, a mídia é pródiga em conceder ampla divulgação paraos seus "feitos". Trata-se de uma rebelião confortável, uma contesta­

ção-diversão que serve para alimentar as páginas dos jornais. Essas

iniciativas em nada modificam a estrutura de mercado vigente, masfornecem novas idéias para o marketing e a publicidade. Paradoxal­

mente, ajudam a apurar o espírito de renovação e o senso de criativi­dade do marketing que supostamente pretendem abolir. E acrescentoque, se é verdade que o império do consumo ainda está nos primeiros

Uma esperança sempre renovada 73

passos (a China e a Índia são para lá de incipientes na matéria), os"engajados" contra a publicidade correm o risco de serem eternosfrustrados!

Entretanto, tais embates fazem ver que a felicidade do mundo dos

negócios não preenche inteiramente as aspirações do ser humano;elas expressam a busca de perspectivas alheias ao consumismo descar­tável e à agressividade do mercado. Ao menos uma boa notícia: o capi­talismo hiperconsumista não conseguiu transformar os indivíduos

em puros compradores. O mercado é, indubitavelmente, uma forçadotada de grande potência, mas não um poder incontrastável e ilimi­tado; a "ditadura das marcas" jamais impedirá o livre exercício do

espírito crítico ou de um sadio distanciamento em relação à volúpiado consumo. A prova disso é o surgimento de uma consciência anti­marcas testemunhada pelo incontestável sucesso mundial do livro deNaomi Klein, assim como as parcelas crescentes da população que sedeclaram "anticonsumistas". Presenciamos, outrossim, aquilo que se

poderia chamar de "atitude de liquidação": doravante, avalia-se o graude perspicácia, desenvoltura e astúcia da pessoa pela capacidade decomprar mais barato. Desse modo, à medida que as marcas impõemseu domínio onipresente, os indivíduos revelam maior independência

perante seus ditames.

»Haveria então alguma virtude nesses movimentos de protesto?

Falando claramente: a força de irradiação dessa consciência crítica oudesconfiada em face do arbítrio consumista não surgiu graças ao

ímpeto dos ativistas inimigos da propaganda. O principal artíficedesse surto é o próprio capitalismo. Em relação ao consumismo

hipertrofiado, o baixo custo e as liquidações favoreceram muito maisa formação de barreiras de autodefesa do que qualquer forma de resis­tência à publicidade comercial. Com efeito, atualmente, os artigos "em

liquidação" correspondem geralmente a material de muito boa quali­dade; nesse caso, por que pagar três vezes mais por uma logomarca?

Trata-se, pois, de uma dinâmica de distanciamento e desfidelização

com relação às marcas. Esse realinhamento do mercado é que torna oconsumidor mais "esperto" ou crítico, e não as ações "transgressoras"

Page 49: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

74 A sociedade da decepçãoUma esperança sempre renovada 75

"dos militantes avessos à publicidade. Por um lado, a dinâmica do mer­

cado que diversifica os preços e as ofertas; por outro, a individualiza­

ção do social e o enfraquecimento dos modelos culturais de classe; e

por fim, o acesso amplo à informação proporcionado pela mídia e

pela internet: uma feliz conjugação desses três fatores leva o consumi­

dor a ser mais exigente em matéria de qualidade, preço e prestação de

servIços.

Graças a esse novo contexto, o hiperconsumista dispõe de um poder

e uma liberdade de escolha que até então não existiam. Ele pode per­

feitamente sopesar as possibilidades e variar suas compras, beneficiar­

se de um leque real de alternativas em termos de preço, adquirir pro­

dutos e serviços que antes eram reservados à elite (viajar de avião, por

exemplo). Logo, sob o "fascismo das marcas", o poder do Homo con­

sumericus aumenta. Se é inegável que presenciamos uma consolidação

do poder da sociedade mercantilizada, ela não se separa de uma gran­

de autonomia do consumidor-protagonista social.

» O senhor diz que nosso sistema não é totalitário. Contudo. não se pode­

ria pensar que a caracterização desses movimentos antipublicidade como

subversivos comprova a formidável capacidade de deglutição desse sis­

tema que. por força de tudo absorver. não autoriza mais a contestação ver­

dadeira?

Nas últimas quatro décadas, propalou-se muito acerca da capacidade

de "reabilitação" do capitalismo. Tanto que, no decorrer da década de

1960, as mais veementes censuras foram dirigidas contra a inserção da

classe operária nas estruturas oficiais do capitalismo. Hoje, a denún­

cia tem como alvo o "pensamento único", o desaparecimento dos

modelos de ruptura, a absorção da vanguarda artística na quermesse

dos departamentos de cultura e dos museus. A constatação procede:

tudo quanto ostenta um matiz de "transgressão", radicalismo ou sub­versão tende a se dissolver na atmosfera difusa do consumo e da

comunicação. Os hippies e os punks saíram de moda; a boemia e o

inconformismo foram assimilados pela nova burguesia "conectada";

os livros subversivos são vendidos a preço de ouro; o luxo beira a pro­

vocação. É evidente que as novas sociedades liberais "agüentam"

FRUS-MAISQUANTO

TRANTE É A SOCIEDADE,

MAIS ELA PROMOVE AS

CONDIÇÕES NECESSÁRIAS

PARA UMA RE-OXIGENA­

çÃO DA VIDA. , ,

Page 50: Lipovetsky, Gilles - A sociedade da decepção

76 A sociedade da decepção

muito bem os golpes desferidos pela contestação, inclusive dos setores

que se dizem mais radicais. Se a subversão não existisse, seria precisoinventá-Ia.

A esse propósito, ocorre-me formular duas observações. Em primeirolugar, constitui elementar reducionismo circunscrever o fenômeno da

contestação institucionalizada à surrada lógica de distinção e de con­sumo na livre-concorrência. Algo de muito mais profundo entra emcena: uma realidade que não é senão o culto do Novo, como elemen­

to consubstancial à civilização moderna, democrática e individualis­ta, conforme tivemos ocasião de assinalar. Se a dissidência cultural foi

tão bem absorvida, não foi somente porque ela permite estabeleceruma distinção simbólica e social, mas também porque ela é um retra­to perfeito do princípio do Novo.

Em segundo lugar, a absorção sistemática das manifestações de dissi­

dência não equivale a um sinal de neototalitarismo. Mais propria­mente, indica uma sociedade em mutação contínua, vertiginosamen­

te criativa, que se alimenta de seus próprios desvios para seauto-renovar e reinventar constantemente. Uma vez que tudo é assi­

milado com muita rapidez, é necessário "reinjetar" o novo sem parar,o que é exatamente o oposto da sociedade totalitária, que é capitanea­

da pelo poder político e se empenha em conjurar qualquer irrupçãode novos elementos. Mesmo admitindo que ainda há radicalismo,seria equivocado identificá-Io com as Grandes Recusas de outrora

(anticapitalismo, anticonsumismo, antidesenvolvimentismo), que, no

contexto atual, emergem como uma retórica fantasiosa. O novo perfilde radicalismo (para nos exprimirmos dessa maneira) consiste na

redescoberta contínua das linhas demarcatórias dessa renovada ânsia

de transformação; nas vanguardas intelectuais, científicas e técnicas,que promovem alterações efetivas do real, sem as ilusões culturais ine­rentes ao ativismo esquerdista. Não sofremos uma carência de "recu­

sas': mas um déficit de "certezas" e de inteligibilidade daquilo que temexistência real. Com efeito, a tecnociência tem um caráter mais sub­

versivo do que o político e o cultural; ela é a verdadeira força-motrizda "revolução permanente': e certamente o será cada vez mais. No

cenário de uma sociedade hipermoderna, a tecnociência é a mais

Uma esperança sempre renovada 77

racional das instituições, mas ao mesmo tempo a mais transgressiva,a mais desestabilizadora dos referenciais do nosso mundo.

>;. O senhor falou sobre a antipublicidade com certa insolência. No que

diz respeito à antiglobalização. o senhor recorreria ao mesmo viés irôni­

co? Não devemos reconhecer que. em matéria de redução da dívida dos

países mais pobres, uma determinada corrente ideológica avessa à glo­

balização, especificamente os trabalhos de Joseph Stiglitz, tenha exerci­

do uma influência relevante?

Conforme bem assinala Stiglitz, as manifestações contrárias à globali­zação tiveram o inegável mérito de suscitar um exame de consciêncianos líderes mundiais. De fato, elas chamaram atenção para os efeitosnocivos da abertura dos mercados financeiros, para as promessas não

cumpridas da globalização e para o flagrante insucesso das grandesinstituições econômicas internacionais. Inequivocamente, elas contri­

buíram com o processo de cancelamento da dívida de certos paísesmais pobres, com tratados sobre o fornecimento de medicamentosgenéricos aos países pobres, com o projeto de lei que desconta daspassagens aéreas uma pequena taxa de solidariedade para ajudar asnações menos desenvolvidas. Nesse sentido, a vertente antiglobaliza­

ção se constitui como um contra-poder capaz de dar visibilidade àsclamorosas injustiças e fomentar o debate público a esse respeito.Todavia, esse aspecto não deve ocultar nem as confusões de identida­de nem o esvaziamento programático do fenômeno. Em última aná­

lise, quais concepções ideológicas estão contidas nesses grupos con­trários à globalização, uma vez que o movimento se apresenta comoum mosaico heterogêneo, formado por terceiro-mundistas, por ini­

migos do imperialismo, por nacionalistas de esquerda, por correntesmarxistas e alternativas ecológicas? Sem unidade visível, o "movimen­to unificador dos movimentos" não propõe nenhum esboço de mode­lo alternativo, nenhum programa convincente, nenhum sistema subs­titutivo apto a injetar um antídoto eficaz contra a pobreza e asdesigualdades. Dar um basta ao horror capitalista? Mas o que instituir

no lugar dele? Ninguém ignora os resultados trágicos a que nos con­duziram as economias controladas pelo Estado. "Desglobalizar", res-

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78 A sociedade da decepção

taurar as medidas protecionistas? Isso seria subestimar tudo quanto aformidável dinâmica das exportações proporcionou, principalmente

para o crescimento econômico da Ásia orienta!. E quem não sabe queum surto de nacionalismo comercial significaria a morte das empre­sas exportadoras? Que tal extinguir "a ditadura dos mercados"? Sim,mas como?

Se "um outro mundo é possível': certamente não será por meio dataxação dos fluxos de capital internacional que isso vai se realizar,nem mesmo a título de esboço do grande projeto anunciado. Oimposto Tobin não constituiu barreira eficaz para obstar os êxodos

massivos dos fundos especulativos, e teria sido incapaz de evitar acrise asiática de 1997. Sem dúvida, é um dever incontornável denun­

ciar os erros cometidos pelo Fundo Monetário Internacional e peloBanco Mundial, concentrando nossas críticas sobre os "fundamenta­

listas do mercado". No entanto, nada disso pode servir de pretextopara pôr a globalização capitalista no banco dos réus, enquanto fenô­meno que levou a uma evidente diminuição dos índices de pobreza econcorreu para a alfabetização de milhões de indivíduos. Efetivamen­te, não existe uma só modalidade de economia de mercado: nossa

missão é edificar uma globalização menos anárquica e mais preocu­

pada com a justiça social. Quanto às formas para atingir esse objetivo,

o movimento contrário à globalização não tem nada a declarar: ape­nas levanta problemas, sem propor nenhuma saída viável. Assim, não

será pelo radicalismo encantador do antiliberalismo econômico queconseguiremos traçar as grandes linhas de uma outra globalização,mas sim pela própria racionalização do capitalismo.

;>'." Alguns propõem o numerus clausus, em relação às compras de bens

duráveis, para limitar o consumo. Isso também não poderia ser cogitado?

Essa é uma velha discussão: como determinar o que é supérfluo e oque é necessário?3 Qual a linha divisória entre as necessidades reais e

as "fictícias"? Será que chegaremos ao ponto de impedir que os turis­

tas viajem de avião, por constituir um desperdício de energia? Os

3 É conhecida a boutade de Voltaire: "O supérfluo, esta coisa tão necessária ...". (N. E.)

Uma esperança sempre renovada 79

adversários da transformação da vida em mercadoria têm razões para

afirmar que o ímpeto desenfreado ao consumo não traz felicidade.Contudo, sua investida contra o que consideram "inútil" está muitoimpregnada de espírito ascético. Alguns de nossos prazeres se edifi­cam com base em frivolidades, fruições ligeiras, pequenos luxos: estaé uma das dimensões do desejo e da existência humana. Não seriadescabido presumir que, nas condições atuais, essa parte fútil é exces­siva, mas não é o caso de pleitear sua erradicação pura e simples: o

prejuízo superaria em muito o benefício auferido. Somente um siste­ma político autoritário e antidemocrático poderia impor tamanhotranstorno à vida cotidiana. A "simplicidade voluntária" se tornariamuito rapidamente uma simplicidade despótica. Em todo caso, essa

utopia não tem qualquer chance de se concretizar, de tal modo contra­ria as aspirações do indivíduo democrático no sentido de desfrutar pra­zeres acessíveise diversificados. Por outro lado, nada disso impede quesejam apresentadas e aprovadas algumas medidas fiscais com o objeti­

vo de reduzir, por exemplo, o consumo de produtos muito poluentes ouque ignoram a necessidade de preservação do meio ambiente.

» Como pensar a esperança em uma sociedade da decepção? Embora o

senhor já tenha destacado o pessimismo contemporâneo, a esperança

não deve ser apenas o simples equilíbrio entre decepções e prazeres: é

também resgatar o gosto por progredir, por ser melhor.

As razões para ter esperança não são nada desprezíveis. Para começode conversa, a própria globalização permite entrever para milhões depessoas a possibilidade de escapar do subdesenvolvimento. O fato dea nova ordem econômica dar origem a desigualdades enormes não érazão para se subestimar essa outra faceta da realidade. Muito menos

o progresso técnico-científico deve nos causar desespero. No decorrerdas duas últimas décadas, houve um aumento na expectativa de vidacorrespondente à proporção de três meses por ano. Uma menina tematualmente 50% de chances de chegar aos 100 anos. Uma vida maislonga e com mais saúde: isso não é pouco. Portanto, não sejamosinsensíveis agora que estamos tão próximos de concretizar esse anti­qüíssimo anseio da humanidade.

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80 A sociedade da decepção

Mas também existe, numa perspectiva totalmente diversa, outro fatorque deveria gerar certa dose de otimismo. Uma das característicaspredominantes de nossas sociedades é que os modos de vida estãocada vez mais abertos - em outras palavras, são cada vez mais mutá­

veis, menos predeterminados socialmente, sempre baseados em um

amplo leque de alternativas, escolhas e padrões. É evidente que o fluxode ansiedades, depressões e feridas na auto-estima são grandes inimi­gos. No entanto, temos o privilégio de contar com uma grande varie­dade de estímulos e oportunidades para contornar as circunstânciasadversas. A época atual tem isso de característico: ela fornece uma

infinidade de expedientes para combater e eliminar, sem demora, asmazelas que nos afetam. Em tempos de hiperindividualismo, o viver

compreende muito mais oscilações, alternâncias e mudanças freqüen­tes, numa sociedade que se esforça para promover a "revisão': a possi­bilidade de escapar dos problemas por meio da construção de novos

caminhos. Ao ampliar o futuro e suas opções, a sociedade hipermo­derna aumenta as nossas potencialidades de agir, de refazer a vida, derecomeçar a caminhada com pés renovados.

Em suma, por mais numerosos que sejam os motivos para insatisfa­ção e decepção, serão igualmente numerosas as oportunidades de nosdesvencilharmos. A sociedade contemporânea é uma sociedade de

desorganização psicológica que se reflete no processo de revigora­

mento subjetivo permanente, mediante uma pluralidade de "propos­tas" que permitem reviver a esperança da felicidade. Quanto maisfrustrante é a sociedade, mais ela promove as condições necessáriaspara uma re-oxigenação da vida.

» Mas isso não seria ilusório e "artificial"?

A ilusão também é uma condição essencial para escapar do pessimis­

mo tétrico. Desse ponto de vista, pode-se falar de uma espécie desabedoria da ilusão. Se, por um lado, a sociedade individualista dahiperescolha nos deixa perdidos, por outro, ela nos "salva" na medida

em que nos fornece mais oportunidades para nos reorientarmos, paranos projetarmos para novos desafios. Evitemos a expressão "tirania da

felicidade': apesar de vivermos num contexto social em que a infelici-

Uma esperança sempre renovada 81

dade causa forte sensação de culpa. Entretanto, uma outra dimensão

existe, que corresponde à quantidade de esperança num futuromelhor que a crescente oferta de felicidade (espetáculos, viagens,

jogos, competições esportivas, técnicas psicocorporais) consegue nosproporcionar. Então a esperança aumenta as ilusões e as decepções?Sem dúvida. Mas como viver sem a esperança, sem a idéia de "outra

vida"? O grau zero de esperança, sim, é terrível. E como não ver queesse convite ao bem-estar pleno também favorece o renascer da con­

fiança num futuro diferente, auxiliando-nos na árdua tarefa de inter­vir nos elementos geradores de nossa infelicidade? A época hipermo­derna tem muitos defeitos, mas pelo menos ela nos permite imaginar

e, freqüentem ente, empreender alterações em nossa vida pessoal.Resumindo, ela pavimenta as vias do possível ao oferecer uma multi­

plicidade de caminhos para a conquista da felicidade.

» Presenciamos um recrudescimento das investi das contra o capitalis­

mo consumista. Em que medida é possível fazer recuar a predominância

do mercado? Mais precisamente. a sociedade atual nos permite diversifi­

car tanto assim nossos objetivos de vida. a despeito da influência do con­

sumismo?

Denunciar de uma vez todo o universo hiperconsumista não me pare­

ce um bom procedimento. Nem tudo é negativo, bem ao contrário.Sobretudo, lançar dardos contra o nosso sistema de vida não é umcaminho eficaz para conter os malefícios do excesso de consumismo.

Não conseguiremos afastar o influxo deletério do consumo sobrenossa existência com críticas baseadas em princípios morais e intelec­

tuais. Como antídoto contra a paixão consumista, só mesmo paixões

rivais. É oportuno recordar a célebre proposição 7 do livro IV da Ética

de Spinoza: "Uma afecção só pode ser reduzida ou extirpada por umaafecção contrária e mais forte que a afecção a reduzir". Fazendo o des­dobramento dessa análise, o objetivo primordial a ser almejado con­siste em oferecer aos indivíduos outras metas, outras iniciativas capa­

zes de mobilizar paixões diferentes daquela do consumo. É dessemodo, e só desse modo, que conseguiremos refrear a compulsão de

compra.

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82 A sociedade da decepção

Mas por que exatamente fIxar como meta a redução do modo de vida

consumista? O consumismo não é um mal em si, mas somenteenquanto hipertrofIado ou intumescido, incapaz de atender a todas as

aspirações humanas, uma vez que estas não se restringem aos desejosde gozo imediato. Conhecer, aprender, criar, inventar, progredir,ganhar auto-estima, superar a si mesmo: tantas são as obrigações e osideais que os bens comercializáveis não podem satisfazer. O homem

não é um ser que só adquire bens; é também um ser que pensa, quecria, que luta, que constrói. Deveríamos tomar como divisa esta máxi­

ma de sabedoria: aja de tal forma que o consumismo não seja onipre­sente ou hegemônico, quer em tua vida, quer na dos outros. Por quê?Para que não tenha um efeito devastador sobre a nossa natureza. Infe­

lizmente, é para isso que tende o ímpeto do consumo, especialmente

para as parcelas de população mais marginalizadas, que não têmoutro objetivo senão comprar, comprar de novo, e comprar mais. É

nesse sentido que o mundo consumista é perigoso: ele amputa asoutras potencialidades, as outras dimensões da vida propriamente

humana. Nós devemos lutar contra o desgaste e a destruição do hiper­consumismo, que subtrai de cada um a capacidade de se construir, decompreender o mundo, de se superar.

Para tanto, queixumes e lamentos moralistas não servirão para muita

coisa. Somos chamados a pôr em funcionamento algo que designarei

como uma política desdobrada sobre uma ética das paixões, sempretomando como base a idéia de que o homem é feito de "elementos

contraditórios': segundo a expressão de Pascal. A satisfação imediata

e fugaz que o consumismo engendra no homem não deve ser objetode execração. Por outro lado, seria um erro fazer uma exaltação entu­siástica do hiperconsumismo, uma vez que este se mostra tão inade­

quado às exigências de formação do homem (pelo menos à luz deuma autêntica perspectiva humanista). Torna-se imperioso forneceràs crianças e aos indivíduos em geral os padrões e os parâmetros inte­lectuais que a concepção consumista só faz embaralhar e confundir.

Da mesma maneira, para uma formação sólida, é preciso que se mos­trem perspectivas mais variadas em todas as áreas da atividade huma­

na (esporte, trabalho, cultura, ciência, arte ou música). O importante

Uma esperança sempre renovada 83

é que, através dessas paixões, o homem aprenda a diminuir o apreçopelo mundo do consumo, encontrar sua razão de viver em atividades

que não sejam compras reiteradamente efetuadas. Pense nos grandesinventores, nos grandes empresários, nos grandes políticos: não são osprazeres consumistas que os motivam, que alimentam suas vidas,simplesmente porque sua atividade ou seu trabalho são incompara­velmente mais repletos de atrativos estimulantes.Essa resolução demanda novos projetos políticos e pedagógicos, já

que os mecanismos do mercado se revelam insuficientes para tanto:eles não estão à altura de seu desígnio. Não poderemos dispensar oconcurso efetivo do Estado e das famílias, o papel da escola, das ini­ciativas voluntárias em prol dos mais desfavorecidos, para que a aqui­sição hedonista de bens comercializáveis não se afigure como o alfa eo ômega da vida moderna.

;,., Há alguma chance de que essa democracia pós-consumista que o

senhor acaba de propor com tanta ênfase possa vingar algum dia?

Estou convencido de que chegará o dia em que a cultura consumistanão terá o mesmo impacto, a mesma importância na vida humana.

Em todo caso, essa cultura é uma invenção recente na história: seu iní­cio remonta ao final do século XIX e ganha uma amplitude conside­rável a partir da década de 1950. Ela não passa de um "pequenoparêntese" na sucessão das eras humanas. Como imaginar que umacultura possa ter uma duração indefinida? Aliás, em que pese os seusméritos nada desprezíveis, a civilização consumista não é capaz deacobertar lacunas notórias. Ela promove a desestruturação dos indi­

víduos, debilitando-os psicologicamente. A felicidade dos seres nãoavança na mesma proporção em que se avolumam as riquezas. Emsuma, ela não está à altura da grandeza da condição humana. Nessesentido, mais dia, menos dia, a primazia do consumismo será ab­rogada. Obviamente, ainda não chegamos lá. Nesse momento, só umaminoria do planeta aufere vantagens desse modelo de vida; os demaisfIcam na porta, impacientes e entusiasmados com a perspectiva deque, brevemente, desfrutarão dos benefícios observados. Contudo,

num futuro ainda longínquo, inevitavelmente ocorrerá uma "inversão

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de valores". Não estou cogitando algo à maneira de um "super­homem" ou de uma revolução no modo de produção; mais propria­

mente, penso em uma reviravolta cultural que promova a reavaliaçãodas prioridades da existência, da hierarquia das finalidades, da funçãodos prazeres imediatos nesse novo sistema de valores. Em dado

momento, os homens descobrirão o lado "picante" da vida longe dohedonismo consumista, sem que a humanidade tenha de abandonar

a idade democrática: organizar-se-á uma espécie de "democracia pós­

consumista". A partir daí, será edificado um novo ideal de vida que,sem reatar com o estilo de vida ascético, abdicará da felicidade consu­

mista enquanto eixo central e predominante da existência. Novos

objetivos empolgantes inflamarão o sentido da existência e traçarãooutros caminhos para a felicidade.Por uma dessas ironias próprias à História, Nietzsche ("Pazei-vos

duros") e Marx ("O trabalho, condição primeira da existência!")poderão figurar como profetas, não do super-homem e do comunis­

mo, mas da sociedade posterior ao mundo hiperconsumista.