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Doutrinação - Diálogos e monólogos - LUIZ GONZAGA PINHEIRO 1

Doutrinação, diálogos e monólogos

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Doutrinação - Diálogos e monólogos -

LUIZ GONZAGA PINHEIRO

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DEDICATÓRIA

Este livro é para Luiza, minha neta, que terá olhos de poeta, coração de guerreiro e mãos de

pescadores.

Luiz Gonzaga Pinheiro

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Índice

Diálogos

1. Reencontro com o mar2. De arma em punho3. A tulipa negra4. Acumpultura 5. O pacto 6. A guardiã do fogo7. O boneco8. Difícil diagnóstico9. Os Servos de Maria10. Dramas da guerra11. Cidadão x12. O homem sem braço13. O carrasco14. Os sete punhais15. As dunas do Mucuripe 16. Caça ao camaleão17. Acorrentada na médium 18. Da corte para a favela19. Hansenianos20. Escravos21. Meu deus é a ciência22. A justeza da Lei

Monólogos

23. Deformações24 Fuga ao trabalho25. Animal estranho26.O tempo da consciência27. O retorno de Jesus28. O oráculo de Delfos29. Personagem da codificação – Alfred de Musset30. O cordão prateado31. A visita das idéias32. Evocações33. Lições inesquecíveis34. Mensagens de quarentena35. Testemunhas

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As crianças de Francisco

36. A flor azul 37. Siciliano38. É para isto39. A invasão dos vaga-lumes40. Fotografias41. Os braços de Rafael42. A dança da vida43. Aprendiz de poeta44. Os pássaros do céu45. Festa de Natal46. O manto de Nossa Senhora47. Saudade severa48. Folhas e festas49. Mudando de corpo50. Os sete segredos da amizade

Introdução

Costumo chamar as noites nas quais dirijo reuniões de desobsessão, de noites azuis. Por isso convido a você, leitor: ao abrir este livro, olhe para o céu. Sempre há azul a nos inspirar beleza e harmonia. São tantos os que não podem ver, os que não querem ver, os que não têm olhos de ver, mas o azul está lá doando-se para a mágoa e para o contentamento. Não deixe passar em vão essa oportunidade, pois dias e noites não se repetem. Cada dia que passa é uma dádiva. Cada noite que chega, uma benção. Lembre-se: cada noite tem a cor que você quiser.

Há noites de todas as cores e com todos os sentimentos. Mas as noites verdadeiramente luminosas são azuis. A noite de natal, às vezes é branca, de outras, azulada. As noites de orações são douradas e as noites de saudades podem ser verdes ou lilazes. A noite de São Bartolomeu foi uma noite negra e a noite da paixão do Senhor teve mais cinza que qualquer outra cor.

Gosto de noites azuis. São calmas, perfumadas, melodiosas. Não possuem a neurastenia das calamidades nem a angústia da desesperança. Os dias do Senhor possuem noites azuis. A morada da bondade é sempre azul. O mar é azul, o céu é azul, azuis são os olhos da esperança.

Por isso estou chamando de noites azuis aquelas onde existem diálogos e monólogos de um doutrinador. Eles podem ocorrer em qualquer bairro, cidade ou país, a fazer brotar entre os cascalhos da discórdia, as flores do entendimento. Nelas estão a bondade do Dr. Bezerra de Menezes, o amor de Jesus, os ensinamentos de Kardec e o carinho disciplinado dos amigos espirituais.

Que outra cor poderia ter tais noites?

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Este livro demonstra que, embora vagarosamente, o bem avança, a caridade movimenta-se com seus gestos aveludados e o amor não abdica do seu velho hábito de estancar lágrimas. Ele procura mostrar aos que jamais estiveram em uma reunião desse estilo, a sua dinâmica, a disciplina que a direciona, a paciência, a humildade e a dedicação daqueles que a compõem. São casos emocionantes, onde não raro, a lágrima de gratidão se mistura a alegria do dever retamente cumprido.

São noites belas, suaves, onde o Espírito armazena forças para enfrentar com galhardia as dificuldades dos dias futuros.

Adentre conosco nessas noites através deste livro e veja quanto azul pode comportar um coração que adora o trabalho e ama a disciplina, pois assim é o coração espírita e assim são as noites azuis.

Dividi este livro, que faz parte de uma trilogia sobre doutrinação de Espíritos, em três partes: Diálogos, que compõe a prática da doutrinação através da conversação com Espíritos enfermos; Monólogos, que são estudos e pesquisas que o doutrinador faz como aprofundamento dos casos que precisa administrar e As crianças de Francisco, diálogos com crianças que, enquanto encarnadas foram vítimas da Síndrome de Down ou do autismo, e que após superarem a fase crítica do tratamento, já são capazes de interagir através do diálogo

Considero monólogo ( justificando o título da obra ), a conversa que o doutrinador tem consigo mesmo através da escrita ou da meditação, da qual resultam os textos com os quais subsidia os estudos doutrinários no grupo.

Escolhida a cor para tais noites, passemos a examinar, embora sem grande profundidade, algumas características do doutrinador.

Chamamos de doutrinação, e diga-se, a bem da verdade, inapropriadamente, a conversa que o dirigente de uma reunião de desobsessão estabelece com um Espírito que se comunica através de um médium. Em tais reuniões, geralmente as comunicações são rápidas, razão pela qual não há tempo para transmitir ao comunicante os fundamentos de uma doutrina, no caso, o Espiritismo. Por outro lado, os desencarnados que são levados a essas reuniões pelos dirigentes espirituais são, em sua grande maioria, Espíritos em litígio, alienados, sofredores, cristalizados no mal, vampiros, vampirizados, suicídas, loucos, enfim, desequilibrados que, muitas vezes, sequer conseguem escutar ou decodificar as palavras do dirigente. De outras vezes, são profundamente inteligentes e conhecem toda a base doutrinária que poderíamos expor a seu benefício, não lhes interessando informações que conhecem mas não vivenciam.

Para clientela tão sofrida, o diálogo, quando possível de realização, deve ter como base o Evangelho de Jesus, a prece, o passe magnético, a vibração amorosa do grupo, a argumentação firme e segura visando neutralizar pensamentos viciados e agressivos.

É importante destacar que o doutrinador deve ter sólidos conhecimentos doutrinários, disposição para ajudar sofredores, certo tato psicológico, vontade dinâmica de vencer suas deficiências morais e intelectuais e fé inabalável no auxílio celestial. Quando ele disser a determinado enfermo que traz uma mão amputada: Jesus vai restituir a sua mão, deve estar convicto de que aquele Espírito sairá curado daquela enfermidade. Sentir-se acompanhado por Jesus através de seus colaboradores, para o doutrinador é uma necessidade vital. Onde estiver duas ou mais pessoas reunidas em meu nome aí eu estarei, disse Jesus. Não caracteriza um exagero dizer que a convicção na certeza da promessa que esta frase encerra e a vivência adequada a sua materialização no grupo mediúnico constituem a base de sustentação de um trabalho de desobsessão.

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Exigir mais que isto, o que seria ideal, restringiria demasiadamente o campo de trabalho, já tão debilitado. Aliás, a grande quantidade de Espíritos atendidos nas reuniões mediúnicas deve-se em parte a proximidade evolutiva existente entre comunicantes e trabalhadores das searas espíritas. Temos com esses companheiros inúmeros pontos de contato na área dos sentimentos e das afinidades. E isso é ainda um aviso de que não somos superiores nem diferentes deles, apenas um pouco, muito pouco mesmo, mais ajuizados.

A necessidade de reuniões de desobsessão e de doutrinadores vincula-se ao estágio belicoso da grande maioria dos habitantes terrenos. O mundo ainda é um campo de batalha no qual obsessores e obsidiados se chocam, desgastando as arestas que lhes deformam. Na condição de dirigente de reuniões mediúnicas, afirmo que o movimento espírita muito deve aos obsessores, posto que são estes que enviam legiões de sofredores, através de suas perseguições, às casas espíritas. Eles aceleram a evolução de muitos Espíritos e garantem aos médiuns e doutrinadores extensa cota de trabalho a exigir-lhes estudo e vigilância. Não estou aqui defendendo a agressão ou a guerra. Lembro que Deus, mesmo de situações de aparente injustiça ou maldade, sabe retirar oportunidades de crescimento e progresso. Inúmeros são os que dizem: cheguei a Doutrina Espírita através da dor. Dor é o nome que tais pessoas utilizam para designar o inimigo que lhes fustigam, na verdade, um amigo com referenciais ainda inadequados, a indicar-lhes, a sua maneira, o caminho da harmonização espiritual.

O dirigente, alvo freqüente das investidas dos Espíritos que desejam desestabilizar o grupo, não deve temer ameaças contra si ou contra seus familiares. Sofremos as dores que a Lei nos impõe em virtude de nossos débitos passados ou presentes. O fato de sermos alvejados em batalha no campo da mediunidade deve-se muito mais a nossa guarda desprotegida, efeito de causas justas e reais, que o poder de fogo do inimigo. Ser valente, mas dócil, confiante na proteção dos amigos espirituais sem julgar-se inatingível, parece-me uma boa regra de conduta.

O doutrinador tem a obrigação de ter respeito pela dor, pela cultura e sentimentos alheios, preservando, todavia, as suas convicções. Nada de prepotência, auto-suficiência, zombaria ou menosprezo. Orientar aos médiuns com os quais trabalha a fim de que controlem os impulsos agressivos dos comunicantes, é também tarefa sua. Esse controle não deve ser castrativo a tal ponto de descaracterizar as intenções e os sentimentos de quem se comunica. Se cada médium tem suas peculiaridades e cada comunicante seus traumas e bloqueios, é inoportuno e desaconselhável exigir uma postura padronizada que venha a mascarar as características do evento, dificultando a sua real interpretação.

Gostaria de lembrar ainda que o doutrinador precisa monologar consigo mesmo através de estudos e de meditações. Sendo ele um Espírito encarnado e imperfeito, necessita de momentos de intimidade consigo, propiciados pela prece e pela meditação. Tais momentos fornecem ao seu Espírito verdadeiras pérolas no campo filosófico e moral, material que ele pode repassar para seus amigos e “inimigos”. Esses momentos são exemplificados neste livro através de textos tais como: Personagens da codificação, que versa sobre a personalidade de Alfred de Musset, “Animal Estranho” e outros.

Por fim, lembremos que Jesus foi o mais perfeito doutrinador que o planeta já recebeu em sua face. Além de nos deixar a doutrina da redenção espiritual, uma regra de conduta que, a semelhança de uma bússola, aponta sempre na mesma direção, ou seja, para Deus, também praticava a desobsessão ordenando aos Espíritos que atormentavam enfermos que O buscavam a deixar-lhes livres. A sua autoridade moral permitia que,

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mesmo sem proferir palavras, os Espíritos inferiorizados e vingativos se afastassem de sua presença, o que propiciava alívio e cura para inúmeras obsessões.

Existe um doutrinador em cada um de nós. Acordemo-lo, eduquemo-lo e o deixemos dialogar ou monologar sobre a infinita bondade de Deus.

Luiz Gonzaga Pinheiro

As crianças de Francisco

Francisco, nome que um velho amigo desencarnado adotou, trabalha no plano espiritual cuidando de crianças alienadas, notadamente com portadoras da síndrome de Down. Quando o tempo e as condições das crianças permitem um breve diálogo, mesmo truncado por seqüelas que lhes são peculiares, ele as traz para que, ao contato com o médium, auxiliadas pelo passe e as orações do grupo e incentivadas pelo doutrinador, possam gradativamente ir saindo do fechado mundo em que se escondem.

É preciso não perder de vista que, do mesmo modo que o Espírito atua sobre a matéria, esta reage sobre ele em uma certa medida, e que o Espírito pode se encontrar momentaneamente impressionado pela alteração dos órgãos pelo quais se manifesta e recebe suas impressões. Pode acontecer que, com o tempo, quando a loucura durou bastante, a repetição dos mesmos atos acabe por ter sobre o Espírito uma influência da qual não se livra senão depois de sua completa separação de todas impressões materiais. ( O Livro dos Espíritos – Pergunta 375 )

Acredito que seja bastante difícil ensinar crianças em desvantagem funcional. Elas exigem além do amor, conhecimentos específicos de pedagogia, da doença que lhes vitima, criatividade, paciência, além de outras aptidões. A escola que as abriga deve ter necessariamente uma pedagogia que reconheça e respeite as diferenças entre elas; investir na possibilidade de trocas cognitivas e promover um ensino que faça aflorar seus potenciais, contemplando suas necessidades como ser humano. Uma escola assim, talvez exista em um outro país, ou quiçá, na espiritualidade, pois desconheço a existência de tal raridade aqui no meu país, o Brasil.

A verdade é que elas necessitam de ajuda e que alguém, encarnado ou desencarnado, a depender de onde tais crianças estejam, precisa cuidar delas. O fato de Francisco as trazer para uma reunião de desobsessão deve-se talvez a minha afinidade com elas, a escassez de grupos que as recebam, pois seus dirigentes estão sempre torcendo o nariz para tais Espíritos, sentindo neles forte cheio de mistificação, ou mesmo, a necessidade de um contato com encarnados que as acolham e as amem.

Quis começar “Doutrinação – Diálogos e Monólogos” com as conversas que mantenho com algumas delas. Suas visitas não são freqüentes, mas quando surgem são garantia de muita alegria para o meu Espírito. Sempre me reconheceram e me trataram como “o professor”, alguém que está com elas além da vigília, que espera o tempo em que educar será sinônimo de amar. Quando esse tempo chegar quero estar com elas.

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A flor azul

Muitas vezes, aproveitando os últimos minutos da reunião de desobsessão, Francisco traz uma ou mais crianças já devidamente avançadas no tratamento, para que, através de passes e de conversa amigável, tentemos entabular um esboço de diálogo cuja finalidade é afasta-las do núcleo da cristalização mental na qual se aprisionaram.

Como educador, tenho imensa afinidade com este trabalho, e recebo tais visitas como uma recompensa, após o árduo trabalho da desobsessão.

Tais crianças, quando começam a sair do mundo onde são prisioneiras, apegam-se com facilidade a seus orientadores, demonstram imenso carinho e radiante alegria ao contato com objetos, animais, ou qualquer coisa que as envolvam e motivem.

É necessário encontrar a porta que dá acesso ao fechado mundo de cada uma delas. Pode ser um pássaro, um cavalo, uma flor, um instrumento musical, uma dança e, até mesmo, como em um dos casos que nos chegou à reunião, formigas.

Essa criança nos disse: eu só gosto de formigas! Meu pai me mostrava como elas andavam em fila.

Atendemos a uma delas que tinha imenso pavor do demônio. Ela o chamava de cão. Para ela, tudo que a circundava eram demônios. Quando começou a falar, nos disse: Sai! Sai! Tu é cão!

- Eu não sou cão! Sou um amigo!- Não! Tu é cão!Quando Falcão, velho amigo que me auxilia nos passes, aproximou-se para ajudá-la,

ele se retraiu dizendo: Ele também é cão! E continuou dizendo ser cão tudo quando dela se aproximava.

Em determinado momento, lhe perguntei: Como é o seu nome?- Meu nome é cão! Meu pai me disse que eu sou o cão!Como muita paciência fui perguntando de que ela gostava. E de brinquedos aos

bombons, cheguei a uma flor. Mentalizei fortemente em minhas mãos uma flor azul. Ela ficou maravilhada com a flor, mas não ousou tocá-la com medo de alguma reação minha. Mas voltei à carga: Pegue! A flor é sua! Olhe como é linda! Ela foi aproximando a mão bem devagar e diante da beleza da flor, disse: A flor é bonita. Não pode ser cão. Nesse momento, o velho gravador que estava ligado, mandou para o ar as notas da “Ave Maria”. Ela silenciou um pouco e perguntou: Já está na hora de dormir? Por quê? Foi a minha pergunta óbvia. Porque esta é a música que toca quando a gente vai dormir.

Após escutar a música alguns segundos, ela continuou a sua reflexão: A música é bonita. Não pode ser cão. Você me deu a flor. Você não é cão!

Consegui algum progresso com ela e nos despedimos ficando a promessa, da minha parte, de ir visitá-la na escola. Passados alguns meses ela voltou à reunião, e já no final desta, repetiu o que eu havia dito para o último Espírito comunicante. Você é um Espírito imortal! Cuide-se para que não lhe aconteça algo pior. Não a reconheci de pronto, mas ela identificou-se. Disse ainda ter muito medo e, às vezes, esconder-se das pessoas. Mas já estava freqüentando a escola. Queria, quando estivesse curada, conversar com os Espíritos como eu fazia. Sua história era muito triste. Sua mãe desencarnara com o seu nascimento e

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o pai a mantinha trancada em um quarto isolado. Revoltado com a morte da esposa e com o nascimento de um filho autista, o pai incultira na cabeça dele que ele era o cão.

Já sei que não sou o cão, disse-me. Como eu não tinha um nome pedi para ter um: Sabe qual é? Não! Mas gostaria muito de ficar sabendo, disse-lhe.

- Meu nome é Francisco Luiz. Aquela demonstração de afeto deixou-me imensamente feliz. Na mesma noite,

cumpri minha promessa de ir ao seu encontro e levá-lo à escola. Passamos pelo canteiro de flores azuis e eu, gracejando, disse: Olha Francisco! Que flor linda! E eu mesmo respondi: A flor é bonita! Não pode ser cão! Ele respondeu: É! Não pode! Então eu assanhei o cabelo dele da mesma maneira que Francisco fazia comigo quando eu era menino. E fomos à escola naquela noite azulada sem medo de encontrar nenhum demônio pelo caminho.

Siciliano

Não sei quem é Siciliano, nunca o vi, e jamais troquei impressões com ele. Para mim ele é apenas um ilustre desconhecido que cuidou de João, seu filho, portador da síndrome de Down, aluno da escola localizada no Vale das Flores, colônia espiritual que visitamos algumas vezes durante o sono físico

Algumas noites atrás, João chegou ao final da reunião de desobsessão, e a intervalos regulares dizia: Down! Trinta e um no lugar de vinte e um. Pela repetição da mensagem e o linguajar infantil, percebi que João era portador da síndrome de Down. Aquele condicionamento ultrapassara as fronteiras do túmulo e era necessário atendimento específico para que se desvencilhasse dele.

Como ele nada conhecia dos métodos da colônia, deduzi que era um aluno novato, conduzido à escola pelas abnegadas mãos dos Espíritos amigos.

Após conseguir dele o seu nome, procurei indagar sobre suas preferências, ou seja, algo que ele gostasse muito, que o confortasse nos dolorosos instantes de adaptação.

- Você gosta de ir para a escola? - Down! Trinta e um no lugar de vinte e um. - E quem lhe disse que você era Down? - Siciliano. Meu pai é Siciliano! Eu quero Siciliano! Talvez Siciliano houvesse tentado explicar a trissomia do cromossomo 21, ou

síndrome de Down, ou João escutara de alguém essa explicação. Os indivíduos que a possuem apresentam um cromossomo a mais no par 21. A síndrome caracteriza-se pela presença de retardamento mental, baixa estatura, prega vertical ao lado do nariz, nariz largo, mãos curtas e com pregas simiescas, orelhas pequenas e com dobras acentuadas na parte superior, defeitos cardíacos congênitos, dentre outros. O núcleo de suas preocupações era o pai. Por isso, para ganhar sua confiança, fiz com que ele falasse mais sobre aquele amigo, sem dúvidas, o mais querido em sua jornada pela Terra.

- Aqui você vai encontrar pessoas tão boas quanto Siciliano. - Siciliano! Eu quero Siciliano! Ele muda a minha roupa. Ele é o melhor homem do

mundo!

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- O que Siciliano lhe ensinava? - Ensinou a história de Jesus. Sabia que Jesus e Siciliano são os melhores homens

do mundo? - Quem sabe Siciliano não venha visitá-lo aqui? Siciliano, pelo grande amor que João nutria por ele deve ter sido pai amoroso e

devotado. Senti por ele grande admiração que ultrapassou os limites da amizade. Meu sentimento foi tão sincero que certamente o atingiria onde ele estivesse. João permanecia impaciente. Olhava para os lados e continuava a associar o nome do pai a tudo de belo em sua vida.

A paternidade é uma missão. Em “O Livro dos Espíritos” encontramos a seguinte advertência: Um dia será cobrado do pai a tarefa que lhe foi confiada. Perguntado lhe será: O que fizeste do filho que te foi entregue? Se há pais que não responderão satisfatoriamente a tal pergunta, outros, além do, “eu o criei e eduquei”, acrescentarão: Eu o amei. Enxuguei-lhe as lágrimas, pus sorrisos em seus lábios, fiz versos para seus ouvidos, pinturas para seus olhos. Siciliano me pareceu aquele tipo de pai.

Então, quando João caminhava para a tristeza, deu imenso sorriso e um grito abafado: É ele! É o Siciliano! Ele vai me levar para a escola.

Siciliano adormecera um pouco e seu Espírito pulara do corpo atraído pelo SOS de João. Este não quis mais saber de continuar o diálogo comigo. Correu na direção do pai e me deixou falando sozinho.

Vou lhe visitar na escola, ainda disse. Mas ele não escutou. Estava abraçado com o pai como uma ave que se esconde na asa da mãe.

João havia me confessado que tinha vinte e dois anos.

É para isto

Começamos a reunião de desobsessão lendo uma mensagem de Emmanuel, intitulada “É para isto”, que enfatizava a maneira como o cristão deve trabalhar mais pela sua renovação espiritual e reclamar menos dos contratempos diários.

Ao final da reunião, e eu já estava acostumando com aquilo, Francisco nos trouxe uma criança autista que não queria ir para a escola devido a um defeito no rosto. Mas só consegui saber dessa realidade após ganhar a sua confiança, pois como ocorre com todos eles, temos que descobrir algum ponto de encaixe em meio a sua alienação para penetrar em seu mundo solitário.

Balançando o corpo continuamente como um pêndulo, ele me disse: É para isto! É para isto!- É para isto que você veio? Para me dizer que foi à escola?- Não. Eu não gosto da escola!

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- Mas ela é tão bonita! Tem flores, passarinhos, brinquedos, cavalos, índios...Quando falei que havia índios ele se voltou para mim um pouco admirado e

perguntou: Tem índio?- Tem! E na cabeça dele tem muitas penas. Ele tem um arco que dispara uma flecha

tão ligeira que assobia quando passa.Ele ficou curioso. Era o ponto de abordagem que eu precisava para penetrar no seu

fechado mundo.- Ele corre no cavalo? É pintado?- Sim. Mas para vê-lo precisamos ir à escola.- Eu sou feio! É para isto! Eu sou feio! Meu rosto tem buracos! É para isto!- Notei que ele tinha um defeito no rosto e isso o incomodava bastante. Temia ser

discriminado. Sua auto-estima estava reduzida a pó. Então fui direto ao assunto no qual ele gravitava.

- Quer dizer que você veio até aqui para que nós tentássemos curar o seu rosto? - Foi. Tire esse pano do meu rosto.

Iniciamos a prece, antes perguntando se ele já ouvira o Pai Nosso. Quando iniciei: Pai Nosso que está no céu, ele me interrompeu dizendo: Tio, você errou. É assim: Pai Nosso, que está entre nós.... Continuei a prece e fui vendo o rosto da médium ir se transformando aos poucos num grande sorriso. Quando conclui o meu pedido a Jesus, Hilton, pois este era o nome do menino, estava radiante como as flores do campo Disse-lhe: quer que eu traga um espelho para que você veja como está bonito?

- Não precisa tio. Eu já tenho um.- Você está tão bonito que quando for à escola vai arranjar uma namorada.- Namorada? Eco! Não! Não gosto de beijar! Não sei como você tem coragem de

beijar a tia! Eco! Ele chamava de tia, Romélia, minha mulher, que é médium e também os ensina

durante seu sono físico.Agora eu vou à escola e ninguém mais vai mangar de mim, disse-me. E se despediu

com um “já vou tio” tão gratificante que emocionou a todos, sem sequer perguntar se podia brincar com o índio. Deixou-me pensativo naquela observação que fizera sobre o Pai Nosso. Pai Nosso que está no céu, O coloca longe, na infinita amplidão do azul celeste, como se ele fosse um espectador. Pai Nosso que está entre nós, O coloca em nosso meio, como ajudante, médico, conselheiro, amigo.

A oração sincera consegue movimentar em nós a parte divina, que se encontra mesclada no presente estágio evolutivo, com os entulhos dos desejos inferiores. Ela nos impulsiona a selecionar o que de mais positivo existe armazenado em nosso ser e o conecta ao plano celestial. Este deixa verter para a fonte que o solicita, as energias necessárias para a realização dos seus desejos. Exposto a agressões multivariadas, físicas e psíquicas, o Espírito é constrangido a governar seus próprios impulsos, no que pode dispor da prece para receber as inspirações necessárias, formando assim o seu código de ética, a ser aperfeiçoado continuamente. Se o homem foge desse meio auxiliar posto a seu serviço pela bondade divina, é golpeado pelas vibrações desordenadas oriundas de mentes em desequilíbrio. Atingem sua mente, apelos, desejos, induções, ordens, dentre outros convites, oriundos de companheiros de caminhada terrena quanto de desencarnados que com ele se afinam, tornando seu mundo interior uma rude batalha a exigir redobrados esforços.

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Orar é transformar-se intimamente. Kardec definiu o verdadeiro espírita como aquele que se esforça a cada dia para ser um pouco melhor. Sem a prece, essa transformação é bem mais penosa, se é que possível, pois se ela nos coloca diretamente em comunicação com os planos divinos de onde obtemos a inspiração e o reabastecimento de energias, fora dela o barulho ensurdecedor do mundo parece desorientar-nos. Contudo, orar não é apenas pedir. Mas se temos que pedir, selecionemos nossos pedidos iniciando pela compreensão de nós próprios, de onde resultará os alicerces da disciplina, da vontade, da paciência, do desprendimento dos falsos valores.

Orar é privar da companhia dos bons Espíritos. E isso, acredito, é assunto para mil noites azuis.

Os pássaros do céu

Os autistas que já despertam da sua prisão interior, bem como as crianças com síndrome de Down, além do sentimento de posse exacerbado, pois que consideram seus, professores, objetos e animais com os quais simpatizam ( meu tio! Só meu! Ele é meu tio! ), são excelentes em apanhar no ar determinado detalhe de uma conversa e ficar repetindo as palavras que lhes agradam, utilizando-as em meio as suas conversas lacônicas.

Foi assim com Carlos. Ele se considerava feio. Argumentamos que feio não era bem o termo. Ele era diferente. Francisco tomou sua mão e, mostrando-lhes os dedos disse: Olhe, os dedos da sua mão são diferentes. As pessoas também são diferentes. Aquela lógica o agradou profundamente, passando a partir dali, a cada intervalo da conversa, repetir o mesmo argumento para diferentes situações que lhe apresentávamos. Até mesmo para justificar as lágrimas de um Espírito comunicante que acabara de dialogar comigo, ele a utilizou: “Ele chorou porque os dedos da mão não são iguais”.

E foi assim com Lucas. Eu concluíra a conversa com alguém que desencarnara deixando mulher e filhos no plano da matéria, sendo esta a causa de sua aflição. Tentara tranqüilizá-lo com a lógica evangélica, com a poesia aconchegante de Jesus: “Deus cuida dos pássaros e das serpentes. Por que não cuidaria de seus filhos?

Quando Lucas comunicou-se, já de pronto repetia essas palavras: Deus cuida dos pássaros e das serpentes. Então Deus cuida de mim! Escutara o meu diálogo e pinçara da conversa a lógica com a qual passaria a justificar tudo que lhe perguntassem. Depois de alguns minutos de conversa amigável, perguntei se ele já freqüentava a escola, barreira difícil de vencer, pois, geralmente os autistas não gostam de locais freqüentados por muitas pessoas.

- Não! Não gosto de escola! Muita gente! Muita gente! Muita gente! - Mas todo mundo precisa de escola! É lá que se aprende a cantar, dançar, tocar um

instrumento. ( Eles adoram, quando adaptados à escola, o ensino através da arte ) . - Se Deus cuida de mim não preciso ir à escola. Aquela resposta me fez questionar se eles utilizam as palavras que lhes chamam a

atenção como argumento lógico, por ter apreendido o sentido do que gravaram, a força e a

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coerência do argumento, ou se, simplesmente, gostam das imagens ou apelos que as palavras trazem sem se importarem com a lógica.

A pessoa estava chorando porque era diferente de outra, que em situação semelhante, não choraria. ( A lógica dos dedos diferentes ).

Se Deus cuida dos passarinhos, cuida de mim também, ou seja, se Deus cuida de mim estou em boas mãos, não preciso de escola.

Argumentei que Deus cuida de todos mas espera que todos cumpram determinadas tarefas, sendo uma delas ir para à escola. Ele concordou comigo, não sem antes eu ter confirmado que na escola tinha joaninhas, uma espécie de besouro avermelhado com pequenos pontos negros em suas asas. Ele gostava delas. Em sua espontaneidade, tomou meu braço de repente, e disse apontando para algumas manchas que tenho na epiderme: “Isso no teu braço parece joaninha”.

Encerramos a conversa marcando um encontro para logo mais a noite, ocasião em que iríamos para a escola. É uma escola com poucos alunos, insisti. Pouca gente! Pouca gente! Pouca gente! Essa foi a despedida dele.

A invasão de vaga-lumes

A reunião de desobsessão tinha sido bastante agitada. Obsessores, suicidas, inimigos gratuitos do Espiritismo tinham desfilado em nossa sala, que já se tornara abençoado campo de lutas na batalha da luz contra as sombras. Então Chico Neto, deficiente mental, risonho, o que o distinguia dos demais portadores dessa enfermidade, acostou-se a uma das médiuns para falar-nos sobre passarinhos, borboletas, vaga-lumes e outros viventes que voavam.

- Tio, a sala está cheia de vaga-lumes. As roupas desses homens de branco também têm vaga-lumes. Até esse frade que está nas tuas costas está botando vaga-lume na tua cabeça.

Chico Neto, pois fora a resposta que me dera ao perguntar-lhe o nome, estava descrevendo as emanações energéticas dos mentores da casa e as irradiações que se desprendiam do perispírito dos circunstantes. E a tudo que luzia ele chamava de vaga-lume.

De repente, ele pegou em “O Evangelho Segundo o Espiritismo” que estava sobre a mesa e o seu rosto iluminou-se como o teimoso sol do Ceará, que nunca dá descanso ao mar azul. Abriu o livro e disse: Olha tio. Está saindo borboletas, beija-flores e vaga-lumes desse livro. Que coisa linda! Eu quero este livro! Posso levá-lo?

Eu nunca vira Francisco, o professor que os traz, impressionar um autista daquela maneira. Ele estava fascinado com o espetáculo que vira. Sem tirar os olhos do Evangelho, pediu novamente o livro como presente.

Eu já me acostumara aos fenômenos ideoplásticos realizados por Francisco, no qual ele materializa o seu pensamento criando as formas a que aludimos no diálogo com os Espíritos. Às vezes a ideoplastia surge por sua vontade, de outras, da minha vontade, e pode resultar também através de sua ordem, quando faz o papel de magnetizador atuando sobre terceiros que se permitem magnetizar. Quando ele sugere a determinado Espírito que está sob seu comando magnético, a existência de um objeto qualquer, em determinado local, a

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mente deste, orientada pela outra que a direciona, concentra suas energias no ponto indicado plasmando aquilo que lhe foi sugerido. Foi assim que ele criou os caminhos por onde as formigas caminhavam surpreendendo ao aluno que gostava de formigas mas não as encontrava. Este me disse: Tio, eu não encontro uma formiga, mas quando ele vai atrás encontra logo é uma ruma. É ainda através desse método que se modela as formas perispirituais de uma braço, uma perna, ou outro órgão qualquer, para que o bloqueio mental existente no Espírito necessitado do órgão se desfaça. Nessas modelagens perispirituais é de suma importância que o doutrinador atue em precisa colaboração com o técnico que a promove, precavendo-se contra possíveis interferências mentais de sua parte ou de terceiros. Se o modelador, com o auxílio do ectoplasma do médium, ao elaborar a forma de um braço, recebe do doutrinador o pedido de incluir nele um sinal particular, a mente do médium pode desviar-se do objetivo principal, a forma de um braço, e centralizar suas energias no acessório solicitado, ou seja, no sinal particular. Caso isto ocorra, o médium pode sair do comando do técnico, passando a obedecer apenas a voz do doutrinador, dissociado-se do caráter prioritário da comunicação, qual seja, a formação de um braço para o enfermo que dele necessita. É relevante que se diga que uma reunião de desobsessão sofre intenso assédio por parte de Espíritos interessados no atraso moral dos encarnados e, para que esse estágio inferior no qual o mal predomina se perpetue sobre a Terra, não medem esforços na procura de meios que possam influenciar médiuns e doutrinadores.

Enquanto Chico estava ali maravilhado com tantos passarinhos, eu pensava o quanto uma mente em harmonia com Deus pode fazer para embelezar a Terra. Tomei o livro nas mãos e disse:

- Posso lhe dar o livro se você for à escola comigo. - Mas eu não gosto da escola. Eu sou doido. Os meninos vão dizer: Olha o Chico

doido! - Ninguém vai lhe chamar de doido. Se você fosse doido eu já teria notado. Sua

conversa é de pessoa inteligente. Descreveu muito bem o que viu aqui e, além do mais, Francisco me disse que você pode ficar ajudando a cuidar dos passarinhos e dos vaga-lumes da escola. Não estou entendendo o motivo do seu desânimo.

Aproveitei o espanto que o livro lhe causara e dei prosseguimento ao meu processo de sedução.

- Se você for à escola vai ficar admirado com tantos livros que estão lá. Quando se abre um deles salta de dentro borboletas, andorinhas, canários, campinas...

- Sai vaga-lume? - É o que mais salta. Uma vez abri um livro à noite e saiu dele tanto vaga-lume que

eu apaguei a luz da sala e ela continuou iluminada pela luzinha deles. Eu falava e sorria. Ele escutava e sorria. Em nossa cumplicidade entendíamos que

estávamos exagerando um pouco. Eu por meu bom humor e ele pela sua crença no fantástico, na mágica. Mas com a força do pensamento, aliada aos fluidos, aquilo seria possível. Um pai brincando com seu filho não tem seu rosto iluminado apenas com o sorriso dele? Quando as crianças chegam à escola e percebem a diferença que existe entre as condições da escola do plano material e a escola do plano espiritual, apaixonam-se por esta última. No plano espiritual não existem rostos pálidos de professores, exauridos pela carga de trabalho e por seus parcos salários. Ensinam por amor. E não há obstáculo que o amor não ultrapasse. Não existe a hipocrisia dos dirigentes que, não querendo que o povo se esclareça, pois povo esclarecido é povo que cobra seus direitos, fingem priorizar a

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educação, exaltando-lhe os méritos com propagandas enganosas. Como primeira providência, esses governantes pagam salários de miséria ao professor, tendo este que trabalhar três expedientes para sobreviver, sem direito a comprar obras que o atualize, fazer cursos de capacitação e de aperfeiçoamento, no que são vencidos pelo cansaço e pela descrença.

Por isso, não me sinto exagerando ao dizer que a escola espiritual é um pouco mágica, porque o amor traz em si a magia das grandes realizações. Que outro sentimento tiraria um deficiente mental do seu mundo limitado para enchê-lo de luz?

- Mas, e se alguém me chamar de doido? - Duvido. Só um doido chama um outro de doido. - E se eu não gostar da escola? - Isso nunca aconteceu. Mas se você não gostar nós procuramos uma outra. Ele ficou satisfeito com a minha proposta. Mostrou mais insetos voadores

iluminados que estavam nas paredes, apertou a minha mão, admirando-se por ela estar quente, e afastou-se prometendo ir à escola comigo logo mais à noite.

Eu poderia faltar até a um convite de um governante da Terra, mas jamais faltaria a um encontro desses. Com toda a certeza eu estaria lá a hora costumeira.

Fotografias

No dia 03/05/00, à noite, eu estava em Fortaleza, no Centro Cultural Dragão do Mar, para o lançamento de dois livros de minha autoria: “O Perispírito e Suas Modelações” e “Histórias Deste e do Outro Mundo”, quando Francisco, velho amigo habitante do plano espiritual adentrou o recinto rodeado de crianças e de amigos da colônia em que trabalha.

Os autistas que Francisco traz à reunião espírita ou em visita à Terra geralmente não se encontram fechados em mundo silencioso. Venceram a barreira do isolamento e freqüentam a escola onde aprendem a conviver com o mundo e no mundo problemático do relacionamento humano.

O que mais adoro nessas crianças é o bom humor, apesar do ciúme que sentem por seus professores, exigindo suas atenções apenas para elas. Mas esse é também um estágio que superam sem grandes sofrimentos. Costumo dizer que eles são inteligentes, criativos, alegres, elevando-lhes a auto-estima. A diferença entre um autista e um artista é de apenas um R, enfatizo.

Havia pedido a Francisco que me sustentasse a voz a fim de dizer algumas palavras aos amigos presentes, posto que no lançamento anterior eu ficara imobilizado pela emoção de sentir tantos amigos ao meu redor.

As crianças invadiram a livraria, olhavam luzes, reconheciam pessoas, abraçavam a mim e outros tios, pegavam livros, curiosas sob o olhar paternal de Francisco. De outra feita, mexiam em meus cabelos, olhavam curiosas o que eu escrevia para cada pessoa, ficavam do meu lado no instante das fotografias, sem esquecer da gozação por me verem de paletó.

No dia seguinte, ao final da reunião de desobsessão, uma delas veio dizer-me: Tio, nós tiramos fotos e foi tudo filmado para que você pudesse ver quando nos visitar mais

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tarde. Todo mundo ficou feliz por causa dos livros. Tio Francisco disse que se você quisesse contar essa história, as pessoas poderiam ler e saber que todos têm amigos no plano espiritual, e que eles também se alegram e participam de suas vitórias.

Ter amigos parece ser uma das mais preciosas dádivas do homem, num século onde o cimento é mais valorizado que o gesto fraterno e a poesia tornou-se errante, buscando quem a acolha. Estamos, e muitos gestos confirmam esta afirmativa, em um século onde muitas pessoas, não podendo matar Deus, procuram adulterar-lhe os conceitos. Apesar de não haver nenhuma lógica no acúmulo exagerado de bens materiais, pois nada se leva do mundo exceto os méritos e os deméritos, muitos continuam preenchendo os espaços de suas casas com metais brilhantes. Essa é a ingenuidade dominante dos dias atuais. Há os que dizem: Por que brigaria com meu irmão por causa de um diamante se nem sequer ele serve para me alimentar? Esses homens de vanguarda sofrem todo o peso do egoísmo humano e desencarnam cobertos de luz. A grande tragédia humana é priorizar o egoísmo e o orgulho como gestores ou referencias.

Aquelas fotografias, aqueles amigos, aquelas crianças, aquele carinho simples, sem máculas têm o poder real de pacificar a alma. Nada, absolutamente nada de material, seja reluzente como o ouro ou opaco como as pérolas negras, poderia trazer tanta paz ao meu Espírito.

Francisco fechou o álbum de fotos da minha vida, desde o grito primeiro no dia de finados, quando nasci, até aquela noite de autógrafos.

Na primeira página, a frase que escrevi quando o deixei para a grande viagem pelas mares revoltos da matéria: “Quem tem amigos é invencível! Na dor, na tristeza, na necessidade, até mesmo na solidão de um barquinho em pleno oceano, está amparado. Pois a amizade é maior que o oceano.

Acordei tranqüilo. Invadi a vida tranqüilo. Por que renunciaria ao sorriso como milhares o fazem?

Os braços de Rafael

Rafael chegou à reunião trazido pelas mãos de Francisco, com a idéia fixa de comer sabão. Não aprofundei o assunto, pois ele era portador da síndrome de Down, a quem alguns chamam de criança excepcional ou especial. Nós que os ensinamos, os consideramos muito mais que especiais. Os bons Espíritos, cujo amor ultrapassa as fronteiras de toda mesquinharia, os tratam como filhos amados.

- Sabão! Eu quero comer sabão! Sabão é bom! É azuzinho! Eu quero comer sabão! Acostumado a ouvir relatos e pedidos os mais esdrúxulos, não me admirei de

alguém querer comer sabão. Entre os terráqueos mais impacientes, e observe-se que não são “especiais”, quando alguém os perturbam, eles mandam lamber sabão. Concentrei esforços no sentido de retirá-lo daquela fixação.

- Talvez até seja bom comer sabão. Mas eu conheço uma comida muito mais gostosa. Se você provar, nunca mais vai querer parar de comer.

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- Eu quero sabão! Sabão é bom! Anda tio, me dá sabão! - Vou colocar uma comida bem gostosa aqui na minha mão. Você vai provar e me

dizer se é, ou não, melhor que sabão. Então eu abri a mão, pois sabia que Francisco poria nela alguma coisa. Rafael

abaixou-se um pouco e apanhou com a boca aquele algo que estava na palma da minha mão. Alguns segundos após eu perguntei:

- Não é gostoso? - É, mas não é sabão. É azul, doce, mas não tem aquela espuma. O tio disse que é

bombom. - É um bombom muito gostoso. Mas por que você não o pegou com a mão? - Porque eu não tenho braços normais. Eles são bem curtinhos. Eu pego sabão com a

boca. Então eu propus a Rafael um trato que o deixou mais animado do que ele

demonstrava ser. - Rafael, o frade o trouxe aqui para fazer um trato comigo. Nós consertamos os seus

braços e você nunca mais volta a comer sabão. Fechado? Ele me olhou um pouco demorado, observou seus braços curtos, e antes de dar sua

resposta ainda tentou negociar. - Sabão bom! Bom sabão! Mas eu não posso pegar só uma vez?

- Claro que não. Se você fizer isso, a mágica se desfaz e os seus braços ficam curtos novamente.

Ele aceitou a proposta com um significativo, “fechado”. Mostrei-lhe minhas mãos e braços. Pedi-lhe que se fixasse neles de maneira bem

forte. Iniciamos o processo de magnetização e de prece, enquanto Rafael pronunciava repetidamente: Dedo, mão, braço! Braço, mão, dedo!... Não sei se essa foi a maneira que ele encontrou para mentalizar o que lhe foi pedido ou se seu instrutor espiritual o mandou repetir tais frases para mantê-lo com a mente ocupada no objetivo a que nos propúnhamos. Quando a magnetização começou a fazer efeito, ele sentiu leves choques, como ondas elétricas a percorrer os membros perispirituais, antes atrofiados e agora em processo de modelação. Ele abriu largo sorriso e disse: As formiguinhas estão correndo nos meus braços. Formiguinhas correndo! Subindo e descendo!

Quando terminamos, Rafael estava olhando para as mãos, maravilhado. Não cabia em si de contentamento. Começou a pegar em cada dedo e a dizer: dedo mindinho, seu vizinho, cata-piolho ..... Eu o deixei brincar um pouco para que toda aquela alegria invadisse sua alma e expulsasse de lá qualquer traço de sombra ou de tristeza. Na verdade a alegria maior era minha, pois não há nada que se possa comparar, falando-se de satisfação espiritual, a construção da fé e da alegria de alguém. Rafael estava feliz. O mundo inteiro ficara mais feliz, pois quando uma criança sai da faixa da tristeza e da miséria o mundo inteiro ganha mais luz.

Ele segurou o lápis, o Evangelho que sempre está sobre a mesa, pegou minhas mãos e disse: As minhas ficaram do mesmo jeito! Tocou ainda em meu rosto parecendo querer perpetuar aquele instante de felicidade. Tomei sua mão e aconselhei:

- Fizemos a nossa parte. Lembre-se da sua promessa para que seus braços nunca mais voltem a encolher.

Ele ainda sorrindo muito, disse: Tchau, tio! Eu vou sentar ali no banco com meus braços novos.

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Fiquei pensando: O que teria feito Rafael para nascer sem os braços perfeitos? Mas aquilo não me competia julgar. Certamente ferira a lei, não escutara os avisos de Jesus, expressos em seu Evangelho: E se teu olho direito te serve de escândalo, arranca-o e lança-o fora de ti; porque melhor te é que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo ser lançado no inferno ( Mateus, V: 29-30 ). Deixei que o Espírito da alegria o conduzisse e que o Espírito do trabalho ficasse comigo. Estava certo de que Deus não atribuíra aquele fardo a ombros infantis sem um motivo justo. Além do mais, Ele sempre coloca o remédio ao lado da doença. Quando o enfermo está pronto, o remédio aparece. Rafael não era aquilo que aparentava, uma criança graciosa e indefesa. Era um Espírito velho, que errara, e que naquele momento encontrava-se perispiritualmente aprisionado naquela forma limitada.

Ao reencarnar, cada Espírito, em função de seus méritos ou de seus desmandos, tem um novo corpo “desenhado”, que visa em última instância, atender ao trabalho que lhe compete executar na Terra. Os Institutos responsáveis pelos reencarnantes que demandam o plano material, na pessoa de seus técnicos, observam milimetricamente os recursos de cada candidato a reencarnação e o envia a hospitais específicos para que seja submetido a magnetização, cujo resultado é o restringimento perispiritual. De maneira genérica, pois cada nascimento tem suas especificidades, é assim que aporta neste lado da vida qualquer viajante cujo destino é a permanência, sempre temporária, na matéria densa. E foi assim que Rafael chegou até nós, naquela noite azulada.

Não houve tempo para mais conjecturas. Uma outra médium já estava acoplada a outra criança, Gabriela, que andava com uma cesta de flores, oferecendo-as às pessoas. Como algumas delas não as recebiam e outros as jogavam fora, a menina estava triste por ver seu trabalho menosprezado. A sua cestinha nunca se esvaziava. Quando ela retirava a última flor, disse-nos, voltava a ficar carregada como uma roseira. Mais isso já faz parte de outra história.

A dança da vida

Ele começou o seu truncado diálogo comigo após repetir por várias vezes: um passo à frente e outro atrás. Um passo à frente e o outro atrás...

- É uma dança o que você está querendo ensinar-me? - Dança é passo atrás! Trabalho é passo à frente! - A dança é um bom exercício. Traz alegria para o Espírito. - Alegria é passo à frente. Tristeza é passo atrás. - Está aprendendo essas coisas na escola? - Escola é passo atrás ... Interrompi aquela seqüência de passos, pois já entendera que estava a frente de

alguém em desvantagem funcional. Aqueles padrões repetitivos, aquela fobia a escola, a dificuldade no relacionamento, a fuga para dentro de si mesmo... são marcas dessas

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crianças, mesmo quando já trabalhadas nas escolas do plano espiritual. Os traumas que cada uma traz e que vão aflorando aos poucos, revela-nos a causa da fixação mental que geralmente as tornam solitárias. Tentei retirá-la desse padrão repetitivo, embora desconhecendo o motivo pela qual nele se aprisionara. Muitos são os motivos que podem levar uma alma frágil ao remorso, à fuga, ao desespero ou à cadeia que constrói para si mesma. O arrependimento que se segue ao reconhecimento da culpa deve ser algo saudável e dinâmico, o que nem sempre ocorre. O que está feito, está feito, e as energias devem ser concentradas na construção da paz interior e não em lamentações e desejos de auto-punição. O único remédio capaz de aliviar a dor de um desmoronamento moral é a sua reconstrução, fato que deve ocorrer racionalmente, com o necessário respeito aos limites das forças de cada um.

No íntimo, almas assim, que ao prejudicarem a si e ao próximo através do desrespeito as leis de amor, justiça e caridade, se desorganizam mentalmente, caem em depressão, reduzem a auto-estima e se deixam aprisionar nas teias da loucura e das cristalizações mentais, são mais ignorantes que maldosas. Toda a alienação que se segue aos atos que cometeram, que a bem da verdade não passa de cobrança severa da consciência, tem gênese na vontade apressada e descontrolada de repararem o mal que praticaram, o que ocorrendo, acalmará o nível de censura que as atormentam. São como crianças inconseqüentes que, caindo em si, apavoram-se com o “castigo” que as esperam tentando a fuga pelo beco da alienação ou procurando esconder-se no quarto dos fundos, no porão, lugar onde provavelmente, segundo elas, dificilmente serão encontradas.

Claro que isso ocorre a nível inconsciente. A mente ainda é um departamento desconhecido em muitas das suas funções. Quando estamos em perigo físico o instinto de sobrevivência nos impulsiona a buscar abrigos e fugas. Diante de um caminho desconhecido, mas invariavelmente penoso, talvez a mente de algumas pessoas obedeça ao mesmo padrão, por falta de um suporte crítico, de fé, de coragem, de lucidez.

Pensei tudo isso naquele instante, mas ele estava ali a classificar o que eu dissesse em passos para trás ou para adiante. Voltei a indagar.

- É assim que você pensa que as pessoas caminham? Um passo adiante e um passo atrás?

- Caminho é assim. Um passo à frente, um passo atrás. - Não é assim. Assim ninguém sai do lugar. Assim é uma dança sem graça. - Dança é passo atrás. - Mas tem outra dança melhor que é somente passo à frente. - Está escuro. Escuro é passo atrás. Luz é passo à frente. - Como é o seu nome? - Não sei! ... João. Não, João é passo atrás, André é passo à frente. - João tinha sido o seu nome em encarnação recente na qual ele cometera seus

deslizes. André era o seu nome atual, seu passo à frente, com o qual procurava sair daquele presídio que construíra para si próprio.

- André, esta é a hora da nossa prece. Vamos pedir a Jesus para que você, daqui para adiante, caminhe sempre para a frente e para o alto, maneira correta de qualquer cristão caminhar.

Iniciamos a oração e ele ainda classificava o que eu dizia. - Amigo Jesus... - Amigo é passo à frente. - Ensina-nos a caminhar na tua luz...

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- Luz é passo à frente. - Ampara-nos em nossas quedas... - Queda é passo atrás. - Pacifica-nos a alma... - Pacificar é passo à frente... E foi adormecendo, mas sempre citando passos à frente, vislumbrando um futuro

que, talvez, dali para adiante, se descortinaria para o seu monótono bailado. A dança da vida certamente tem alguns passos para trás para a grande maioria das

pessoas. Mas é preciso acelerar após o tropeço, para não perder o compasso da divina sinfonia que nos guia para as grandes constelações de luz e de paz.

André certamente sairia do seu passo moroso, para brilhar, como os ciganos o fazem, sob o compasso de violões e bandolins, palmas e olés, gingados e sapateados, junto ao fogo, sob as estreladas noites azuis.

Aprendiz de poeta

Ele chegou tímido, sem saber onde colocar as mãos, olhando para o lado, sem “enfocar” os meus olhos, como aliás é costume dos autistas.

Iniciei o diálogo perguntando quem o trouxera. - Foi o tio. Ele está aí do seu lado. Ao aprofundar a conversa fui notando que ele tinha bastante intimidade com

Francisco, seu professor, confessando-me posteriormente que fora seu hóspede durante algum tempo.

- Eu já estou muito melhor. O tio disse que eu já evolui muito. Eu sou um daqueles..., um Down.

- Mas você nem parece um deles. É inteligente, conversa com facilidade, pensei até que era um professor.

Ele foi ficando à vontade e depois de algumas trocas de gentilezas, confidenciou-me:

- O tio me trouxe para que eu mostrasse uma poesia, mas eu estou muito envergonhado.

- Ora, mas de quê? Todos aqui adoram poesias e vão sentir o maior prazer em escutá-lo.

- Eu gosto de escrever umas coisas. O tio disse que se eu cultivasse esse hábito seria um poeta. Há tempos que estou treinando para vir aqui.

- Pois bem! Diga a sua poesia. - Eu a escrevi quando estava olhando um rio quase parado, com muitas árvores ao

redor. Eu tenho essa mania ( o tio diz que é aptidão ), de olhar para as coisas e escrever sobre elas ( interagir, como me disseram ). É assim: Quando eu olho para esse rio, lembro do meu passado. Antes de ser lento ele era caudaloso. Tinha vida em abundância. Mas deixei que detritos poluíssem seu leito. Somente quando novas chuvas lavarem todo o lodo das nascentes ele voltará a viver.

- É muito bonita a sua poesia. Francisco tem razão em dizer que você será um grande poeta.

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- Então você gostou? De verdade? - Claro! Conheço uma boa poesia logo que a escuto e reconheço um poeta a

quilômetros de distância. Fui descobrindo através de suas respostas que aquele aluno tinha maturidade e

desembaraço de uma pessoa normal, estava apenas atormentado por um complexo de culpa bastante visível em sua poesia. Seu rio, ou seja, seu passado, já fora alegre e progressista, mas ele permitira que a invigilância tomasse as rédeas da disciplina, o que fez secar as nascentes da alegria. Esperava agora que novas chuvas caíssem, quer dizer, novas oportunidades surgissem para que a vida retomasse o seu curso normal. Na realidade ele escrevia o que sentia. Relacionava os desastres naturais com seus desastres pessoais. A escrita funcionava como uma catarse necessária e benfeitora. Quando novas chuvas viessem a provocar uma “limpeza mental”, o rio de sua vida voltaria a ser caudaloso e fértil impulsionando a sua poesia à uma nova fase. E isso é poesia. Quem sabe ele não fora justamente isso? Um escritor que ministrara através do negativismo lições equivocadas para leitores que o aplaudiram?

O importante agora era retirá-lo do rio lento e enviá-lo as corredeiras de um grande mar. Perguntei-lhe se conhecera um poeta que nascera em Nazaré, cujo nome era Jesus. Ao responder afirmativamente ele citou um dos seus belos poemas: Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem acumulam em celeiros, mas vosso Pai celeste as alimenta. Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham nem fiam, e, no entanto, nem mesmo Salomão, em toda sua glória se vestiu jamais como um deles. ....

Ele sabia a poesia de cor. Não tive mais incertezas quanto ao progresso e a rápida recuperação daquele aluno, mais que especial. Ensaiei uma despedida e ele me fez a seguinte observação: Tio, tu nem me perguntou o meu nome.

- É que eu queria que você o escrevesse para mim. É um autógrafo para que eu me recorde de sua poesia.

Ele sorriu entendendo a brincadeira e disse seu nome com a convicção de um verdadeiro poeta. Sorriu com aquela paixão escorrendo pelos dedos como a tinha Neruda, aquele fogo nas veias que se via em Guevara, e se foi com a sua poesia.

Festa de Natal

Ao sentar-me diante do computador, Francisco surgiu ao meu lado. A sua figura com traje franciscano, com aquele cordão luminoso na cintura, sempre esteve e está presente em minha vida com uma bondade impressionante que eu nunca soube descrever. Quando Romélia pergunta a razão pela qual ele tem o rosto semelhante ao meu, como se fôssemos irmãos gêmeos, ele sempre sorri e diz: Isso é uma longa história. A mim ele responde diferente: Isso é uma história da nossa Itália, da nossa Florença. Mas nunca conta a tal história.

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O fato é que me acostumei com sua presença e, apesar da rebeldia que ainda trago, costumo acatar seus conselhos, pois os identifico como roteiros luminosos para minha vida. Trabalho com ele durante o sono físico e faço parte da sua família na qual constam autistas, crianças com síndrome de Down, outras com traumas profundos, e terceiras que, apesar de inteligentes, precisam do seu amor para superarem a rejeição e a violência que as marcaram.

Na minha adolescência Francisco levou-me para trabalhar com ele. Meu trabalho consistia em ensinar rudimentos evangélicos e espíritas, bem como tocar violão para as crianças. Ainda guardo desse período de treinamento, muitas músicas em minha mente, e quando o tempo me permite, volto a tocar violão para as crianças.

No Centro Espírita, nas reuniões mediúnicas, já recebemos muitas dessas crianças auxiliando-as em seus traumas e mutilações. Aos poucos, elas e o próprio Francisco, foram revelando a minha atuação entre eles, em conversas durante as reuniões. Apesar de não terem permissão para isso, as crianças sempre deixam escapar alguma coisa: Tio, não esquece de trazer o violão. Tio, eu vi a tua sala de professor. Tio, ontem você não veio. Foi para a universidade.

Mas foi na véspera de Natal, na reunião mediúnica, que Francisco trouxe várias crianças que haviam sido tratadas durante o ano. Elas vieram agradecer pelo carinho e amizades recebidos. Estiveram presentes nessa ocasião, a criança tetraplégica que em uma das reuniões, passara por uma regressão de memória, tornando-se um belo jovem, trajando uma farda da marinha. ( Episódio descrito em “Mudando de corpo” ), A menina que distribuía flores em uma cesta e que agora era uma jovem prestes a reencarnar. Prometa-me nunca acabar com essa reunião, pediu-me. Serei espírita e espero encontrar vocês aqui, embora velhinhos, mas com a mesma força e o mesmo amor por esta doutrina maravilhosa, disse-nos Rafael ( Os braços de Rafael ). Visitou-nos Igor, criança muito inteligente que um dia em visita a minha casa, logo que me viu, disse de imediato: Eu gosto de tu, sabia? Igor havia sido um cientista que se decepcionara com a utilização da ciência pelos humanos. Trazia conflitos, queria ficar na condição de criança para sempre, pois tinha medo de falir novamente como cientista. Criança “viva” e inteligente, hiperativa, enchia Francisco de perguntas, pulava em suas costas, puxava em seu cordão de frade, e a noite precisava de passes para dormir. Disse-me ele: O tio pensa que eu não sei que ele já percebeu quando eu vou pular nas costas dele. Eu sei que ele, mesmo de costas, percebe que vou pular. Igor, adorava ciências. Falando sobre os astros, tentei explicar para ele as fases da lua, mas de repente, ele interrompeu dizendo: Eu sei, tio. A lua fica grande porque Deus sopra até ela encher, depois que Ele cansa ela começa a ficar pequena de novo. O fato de Deus cansar, disse-me Francisco, era reflexo de seus conflitos religiosos. Mas eu dei boa risada mesmo, foi quando ele me propôs: Tio, que tal tu vestir uma roupa de frade, pintar o cabelo, e aparecer para os meninos dizendo que é o tio Francisco? A gente podia enganar todo mundo. Igor era uma criança adorável e qualquer pessoa se apaixonaria por ele. Pois bem, ele agora é um jovem que passa longas horas na biblioteca da universidade e só sai de lá arrastado por Francisco. Segurou minha mão com tanto carinho e me disse coisas com tanta emoção que nunca vou esquecê-lo. Alias, nunca vou esquecer nenhuma criança que já passou pelas minhas mãos. Veio também Nina, que disse ser quem fotografa tudo, tendo em seus álbuns, retratos de todos nós. Você é mais jovem e não usa óculos aqui, revelou-me.

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Mas a maior surpresa da noite ficou por conta de João, criança de três anos, de linguajar fluente e engraçado. Ele misturava os hábitos e o encantamento que a criança tem com as ponderações características de um adulto. Sem meias palavras disse-me:

- Tio, eu fui o escolhido! - Escolhido para que? - Para ser o menino Jesus na peça que vamos fazer. - Essa é uma ótima notícia. Eu não vou perder esse espetáculo por nada neste

mundo. - Eu estou muito ansioso, e por causa disso o tio teve que rezar na minha cabeça.

Mas ele me disse para ficar tranqüilo, pois eu já fiz isso muitas vezes em vidas passadas. - Mas, João ( eu havia perguntado seu nome ), se você fez isso muitas vezes, é certo

que não terá dificuldades em decorar os diálogos. - Eu sei tio. Eu estou nervoso é porque eu vou começar a peça como criança e

terminá-la com 33 anos de idade, tal qual Jesus morreu. - Quer dizer que você vai, além de representar, também entrar na condição de

adulto? - É. A peça terá dez atos e ao terminá-la eu estarei adulto. Minha ansiedade consiste

nisso. Serei adulto depois do natal. - Agora, com o que você me disse, é que não existe nenhum motivo que me impeça

de estar nessa festa. - Isso nem se cogita aqui. Sua presença é obrigatória pois irá cantar no coral. Além

do mais, a peça encerra com o ato que você escreveu. - Mas João, quantas crianças tem esse coral? Mais que trinta? - Muito mais. João ia falando e Francisco colocando o dedo nos lábios, como a dizer que ele não

revelasse o que iria acontecer, mas ele era mesmo tagarela. - A festa vai ser linda, mas você sabe como o tio é exigente. Primeiro temos que

trabalhar e orar pelas crianças desamparadas, as que passam fome, as doentes. Vamos orar também pelos governantes, para que eles possam agir com mais justiça e caridade. Tem que haver disciplina, senão as crianças só pensam em festa.

- Não sei como darei conta da missão de cantar nesse coral, mas prometo fazer o melhor que puder.

- Ora, aqui todo mundo tem certeza disso. Com essa resposta, João despediu-se, não sem antes dizer que queria ser um orador

espírita quando voltasse à Terra. Às vezes penso nessa face da vida que se desenrola para além do leito. Uma face tão

real, ou mais ainda, que a outra que desenhamos no mundo material. Na face noturna parecemos melhores, talvez por estarmos juntos aos amigos que amamos e que nos incentivam sempre para as boas obras. A face diurna é mais árdua pois temos que lidar com situações, pessoas e trabalhos que nos desgastam as energias e nos aborrecem caso não estejamos vigilantes e atentos. Enchemo-nos de energia durante a noite e esvaziamo-nos durante o dia. Parece que boa parcela dos habitantes do planeta procede assim.

A mente de João estava preparada para ser acionada como um gatilho pelas mentes dos técnicos em regressão de memória. A cada ato ele irá para uma espécie de cabina de onde sairá com a aparência perispiritual mais adulta. Será uma regressão de memória parcelada, progressiva, ao final da qual ele terá assumido a condição adulta com a

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aprendizagem já efetuada, pois nada do que o Espírito aprende é perdido. Francisco ensaiara com João aqueles movimentos, e tudo, como sempre, sairia irretocável.

Durante a noite, com as crianças, fiquei olhando aquele mundo mágico, desconhecido por meia população do planeta, um mundo onde a mente comanda o espetáculo, onde o Espírito usa o pensamento como o operário utiliza as mãos, onde quem tem conhecimentos e amor é o que menos se apega ao sentimento de posse.

Olhei meu velho amigo se deslocando com seu traje franciscano por entre as crianças, dizendo coisas que elas levariam para sempre em seus corações e tive vergonha das vezes, e são tantas, em que sou mesquinho, descaridoso e rebelde para com as pessoas. Senti vontade de não sair mais da colônia. Sei que sou filho daquele lugar. Talvez algum autista que Francisco apanhou pelas ruas da Itália e tratou dos traumas como o samaritano fez com o homem que fora assaltado. A minha introspecção e a mania de falar com livros e através deles, bem como conviver boa parte do tempo comigo mesmo, parecem ser um atestado dessa realidade. Mas Francisco jamais admitiu isso. Diz apenas que sou seu filho. Que jamais me deixou e que estará sempre comigo em qualquer situação.

O Natal estava mudando a “casca” de indiferença das pessoas como faz com as cobras e as aranhas quando precisam crescer. Reconheci-me igual a todos, caminhando nas ruas naquela manhã. Tinha uma festa a noite, um compromisso com um coral, um encontro com centenas de amigos. Poderia ser semelhante aos transeuntes em seus erros e vícios, mas com certeza, diferente de meio mundo nas emoções da madrugada. Isso sempre me pareceu simplesmente mágico.

O manto de Nossa Senhora

Gilberto foi encostado ao corpo da médium em estado de choque. Gritava de pavor como se uma locomotiva o perseguisse, e a distância que os separassem, fosse de alguns milímetros: Não! Ele vai me bater! Preciso continuar correndo! Ele traz o chicote! Ele vai me bater! Estava claro à minha visão, que alguém, criança ou adulto, já que não respondia as minhas insistentes tentativas de comunicação, portava uma cristalização que lhe aprisionava em cárcere de dor, não lhe sendo permitido visualizar os referenciais do mundo exterior. Uma cristalização mental tem as características de uma cena de filme que se repete, é o pensamento que “coagula” fazendo o ponteiro do relógio estancar, impedindo que o tempo escoe para a cena seguinte.

Quando alguém com essas características adentra a reunião mediúnica, o doutrinador precisa ativar todas as reservas de amor já conquistadas e aproximar-se dele como se o fizesse a um filho muito amado. O amor, mais que mil palavras, sabe acerca-se com carinho e tocar a ferida sem alarde, silenciando a dor mais profunda. O amor substitui perguntas por gestos afáveis e, por motivos ainda desconhecidos para muitos homens, faz nascer flores no mais estéril coração. Amar é doar-se, e foi o que tentei fazer ao segurar-lhe as mãos com a delicadeza que não me é peculiar.

Não tive nenhuma dificuldade em reconhecer nos gritos que ouvia, uma criança aflita violentada por algum louco, agredida por um covarde, desses que geralmente tremem diante de alguém mais forte. Um desses humanos que desce abaixo da linha da animalidade, pois, via de regra, um animal não tortura um seu igual.

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Gilberto continuava gritando de pavor em gestos desesperados, sentindo falta de ar pela desabalada carreira em que vivia. Com o sentimento de compaixão aflorado, disse-lhe: Venha! Eu lhe escondo aqui em minha casa.

- Não! Ele vem com o chicote! Ele me bate muito! Ele bebe! Olhe o que ele fez comigo!

E mostrava partes do corpo atingidas pelo chicote. Ainda não sei se Francisco, um dos nossos mentores espirituais, espera que a fita do gravador faça invadir o recinto com os acordes da “Ave Maria” para então trazer pacientes especiais, ou se tudo acontece espontaneamente. O fato é que a criança se deixou tocar pela música e desviou-se por instantes do núcleo do seu problema.

- A música! É de Nossa Senhora. Ela vai me proteger. Ela tem um manto azul. O tio está dizendo que é para eu me esconder embaixo do manto dela.

- Entendi de imediato o pensamento de Francisco. Sem demora fiz um gesto como quem cobre alguém com um lençol e aconcheguei a criança em meus braços.

- Pronto! Agora ninguém consegue lhe ver nem fazer mal algum contra você. - O manto está cheio de estrelas. Elas piscam. Mas eu preciso correr. Ele tem um

chicote. - Calma Gilberto. Você já esqueceu que enrolado com o manto de Nossa Senhora

ninguém lhe vê? - O manto! Está cheio de estrelas. O tio está me dizendo que eu preciso contar as

estrelas. Uma, duas três... - Francisco, ajudando-me na doutrinação, que em verdade era dupla, desviara o

centro das atenções de Gilberto para a contagem das estrelas. Isso o acalmou um pouco fazendo-o adormecer, o que há muito não fazia, devido o medo que sentia dos pesadelos nos quais seu pai, alcoólatra, o supliciava. Sempre que tentava adormecer, surgia em sua mente o chicote que o vergastava e saía a correr em disparada. Enquanto fazíamos a prece e lhe aplicávamos passes calmantes ele encostou o rosto sobre a mesa mediúnica e adormeceu, serenando um pouco a suada máscara de pavor. Francisco o tomou nos braços, como se faz com um passarinho ferido e o levou para casa.

Aquela cena de uma criança maltratada a chicote tocou-me profundamente. A violência, sempre desnecessária, parece tão bem acomodada em nosso mundo que atos dessa natureza ainda não têm a necessária reprovação. O chicote que marcou as costas do Cristo, que retalhou os escravos, que oprime populações inteiras com leis injustas, parece não ter descanso. A revolta dos justos é tímida e a indignação dos bons ainda não atingiu a fermentação necessária. Mas Deus tem seus métodos, e a evolução, sua linha traçada segundo os referenciais da justiça e da bondade. Sinto falta do futuro onde poderei brincar sob o sol ou a lua sem ser importunado por integrantes do cordão dos malefícios. Onde o chicote seja uma figura do passado, aposentado após sibilar sobre os ombros daqueles que o utilizavam. Infelizmente, não tenho uma máquina para acelerar o tempo. Mas tenho o sol para dourar o dia e a lua para pratear a noite. A paz que nos adornará um dia, será sempre uma conquista de todos nós.

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Reencontro com o mar

A reunião de desobsessão estava em seus acordes finais, mas uma das médiuns ainda deixou escapar leve murmúrio, como se alguém falasse consigo mesmo: Meu Deus! Por quanto tempo ainda hei de suportar essa escuridão? Pensei que quando morresse, meus olhos se abririam e por fim eu veria o céu, as árvores, o dia. Mas tudo quanto tenho é esta escuridão.

O lamento pacificado, pois não havia nenhuma revolta no tom vocal emitido pela médium, fez breve pausa, no que aproveitei para iniciar um diálogo.

- Você é cego?- Cega! Sou uma mulher e me chamo Juliana. Nasci sem ver a luz. Caminhei no

mundo sempre guiada por mãos caridosas e passei para este lado sem ver as belezas da minha terra. As lembranças que guardo não têm formas nítidas. São poemas cantados em livros, histórias que escutei das pessoas, imagens confusas que formei deslizando os dedos ansiosos pelos contornos dos objetos.

- Ouviu falar de Jesus, o médico dos desamparados? Ele curou a cegueira, a lepra, a paralisia. Quem sabe, se recorrermos a Ele não consigamos a sua cura?

- Eu sempre acreditei em Jesus. Mesmo sem ter visto a sua imagem, sei que Ele tem os olhos tristes e meigos.

Então iniciamos a prece, ao mesmo tempo que ministrávamos o passe, na tentativa de retirar o bloqueio que obscurecia seus olhos, mesmo após o desencarne. Com a magnetização a que estava sendo submetida, sua memória abriu o dique onde o drama vivido no período negro da escravidão veio à tona, assumindo ela a personalidade de Raimundo, escravo que fora separado de sua mãe quando criança, levando consigo extrema revolta por ter visto o feitor cegar o seu pai com um ferro em brasa.

Os amigos espirituais já haviam tentado a regressão de memória em Juliana mas ela não conseguira reviver o drama, principalmente pelo pavor que demonstrava ao perceber o mar. Quando a regressão iniciou, ela entrou em pânico: O mar! meu Deus, o mar! O navio! Essas correntes malditas! Esse cheiro horrível! Não! Não! Tirem-me daqui!

Atingindo o núcleo de sua problemática, ela falou pausadamente, com o ranger de dentes que a revolta assume quando julga deliciar-se com a vingança.

- Aquele feitor maldito! Não bastava separar-me da minha mãe? Tinha que cegar o meu pai? Pois ele vai arrepender-se amargamente. Tudo já está planejado. Breve ele passará por aqui para encontrar-se com as negrinhas. O bastardo vai fazer sexo com elas. Quando ele passar, eu e meus amigos vamos acertar contas com ele.

Raimundo falava como se ninguém o escutasse. Como se misterioso transporte mágico o houvesse levado aos instantes anteriores do seu crime. Admirável livro de registros é a memória. Guarda em caracteres indeléveis os atos que comprometem ou que abonam o Espírito, servindo-lhe estes como carrascos ou como advogados em suas caminhadas futuras.

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Quando o feitor passou pelo local onde era esperado, Raimundo perfurou-lhe os olhos. Tome! Isso é pelo que você fez ao meu pai, eu o escutei dizer.

Para não fazê-lo sofrer mais, pois já penetrara e relembrara o núcleo da sua dor, fiz com que ele retornasse à atualidade, aos sofridos anos de Juliana.

- Meu Deus! Como posso ter feito isso? Não posso ter sido tão cruel assim! De fato, Juliana era uma moça meiga, resignada, incapaz, na última existência na

carne, de fazer mal a qualquer pessoa. O Espírito progride também na erraticidade. Acicatado pela consciência, essa juíza

implacável que não tira férias, mesmo quando lhe amordaçam ou vendam os olhos, ele busca conselheiros que lhe orientam a caminhada, decidindo-se pelo ressarcimento das dívidas em troca da paz interior. Foi o que aconteceu com Raimundo, agora Juliana.

Entre lágrimas ela me perguntou: - O mar pode ser calmo? - Sim. O mar pode ter ondas brandas e espumas brancas como grinaldas de noiva.- E pode cantar quando soprado pelo vento?- Claro! A música do mar é uma saudação aos navegantes.- Pois eu estou vendo e ouvindo a música do mar. Eu posso ir até lá?- Sim. Molhe os pés, rabisque na areia, junte conchas, procure uma estrela...Ela ficou tão feliz que o rosto da médium transfigurou-se, mostrando toda a

luminosidade que a alegria produz. Então, sem despedir-se, ela deixou a reunião correndo para o grande azul que a esperava.

Sua dúvidas, ela acabara de ser resgatada e eu ganhara mais uma linda história para as minhas noites azuis.

Escravos

Viviane iniciou a sua comunicação deixando transparecer, através de lágrimas, uma vida repleta de amarguras. Nascera com os braços mutilados. Seu pai a criara em um prostíbulo no qual trabalhavam suas irmãs no exercício ingrato de mercadejar os corpos. Ela, mesma com os membros superiores atrofiados, mantida às escondidas em quarto nos fundos do bordel, era às vezes violentada por clientes bêbados, sob a aquiescência do pai, que parecia odiá-la.

Ela também o odiava, pois em suas bebedeiras ele abusava dela sexualmente, atitude incompreensível e imperdoável, segundo ela.

Diante de tanto sofrimento, adentrou o túmulo enlouquecida, sendo recolhida por amigos espirituais que, depois de demorado tratamento, a trouxeram para uma catarse.

Você acredita que Deus é justo? Perguntei-lhe.- Acredito! Mas não entendo como a sua justiça se opera.- Se você admite a existência de um Deus justo, deve acreditar que a causa do seu

sofrimento é justa. Isso lhe parece lógico?

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- Sim.- Já lhe disseram que vivemos muitas existências sobre a Terra?- Já me falaram sobre reencarnação, mas não tive coragem de saber o que fiz no

passado.- Pois bem! Se as causas do seu sofrimento não se encontram na existência em que

se chamou Viviane, teremos que voltar no tempo a fim de encontrarmos o núcleo do seu problema.

- Não! Não quero! Tenho medo! Não quero saber o que eu fiz àquele homem ou o que ele fez a mim.

Viviane já tentara a regressão no plano espiritual e não conseguira. Encontrava-se na delicada faixa do sofrimento embrutecido, misto de mágoa e dor. Mais um pouco e resvalaria nos despenhadeiros do ódio. Então eu a desafiei tentando tirá-la dessa perigosa situação.

- Você me parece uma pessoa corajosa! Por que então, no lugar de se fazer de vítima, alimentando a autopiedade, não recorre a sua fibra de mulher e age? A regra da casa é: Estando caído, levanta-te! Estando em pé, segue adiante!

Iniciei a magnetização advertindo-a que seguisse mentalmente a música, sempre no ar durante toda a reunião. Haja o que houver não a perca, pois ela a levará ao passado, insisti.

Viviane obedeceu e pouco a pouco pareceu despertar em outro cenário, longe daquele catre onde vivera.

- Escravo teimoso! Ele é meu! Sua função é satisfazer-me em minhas necessidades!- Por que você julga que esse escravo lhe pertence?- Porque o comprei! Tenho necessidades. Para isso ele serve.- Como é o seu nome?- Catarina- Em que país você mora?- Por que você me faz tantas perguntas? Quem pergunta tanto só pode ser um

espião!- Sou seu amigo. Quero apenas entender a sua situação para poder ajudá-la.- Moro na Inglaterra. Sou de família nobre. Obrigaram-me a casar com aquele

velho para aumentar nossas riquezas. Por isso tenho esse escravo que me satisfaz.- De onde veio o escravo?- Da Índia. Não quero que ele se envolva com nenhuma outra mulher. Eu já o

adverti. Se me desobedecer, ele morre. - Vamos um pouco para adiante, Catarina. O que aconteceu com o escravo?- Eu mandei castrá-lo e em seguida matá-lo. Ele teve o atrevimento de me

desobedecer.- E o seu marido?- Era um fraco! Suicidou-se quando soube do ocorrido. - E como foi a sua velhice?- Só! Abandonada. Todos me abandonaram por causa dessa maldita doença

( hanseníase).- Muito bem Catarina! Lembre-se de tudo quanto reviveu e volte para o hoje.Ainda chorosa, ela comentou: Quero esquecer! Quero esquecer! Por favor, faça-me

esquecer!

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- Agora você já sabe a verdade. A verdade, segundo Jesus, liberta o Espírito das amarras da ignorância.

E ainda sob a ação dos acordes de Chopin, meu velho amigo Falcão aplicou-lhe um passe, no que ela foi mansamente adormecendo.

Tudo levava a crer que senhora e escravo haviam se reencontrado. Infelizmente, ambos mais escravos que libertos. O sofrimento continuaria a trabalhar suas almas até que a paz tivesse condições de quebrar-lhes de vez, as algemas.

Meu deus é a ciência

Mal acabara de proferir a prece inicial, uma das médiuns começou a falar pausadamente, como se fosse um desabafo de alguém que fala consigo mesmo.

- Não sei por que esse vazio me acompanha. Nada consegue me emocionar. Só a aridez da ciência. Às vezes, gostaria de sentir alguma coisa além da lógica. Mas tudo quanto me cerca tem explicações científicas. O mundo, os sentimentos, o amor, mesmo o amor tem explicações químicas.

- O homem não é apenas razão. É também sentimentos. Pode ser que esses sentimentos estejam momentaneamente soterrados. Mas, mais cedo ou mais tarde, eles brotam sob a carícia de um por do sol, uma flor que resiste as intempéries, uma lágrima oculta, um poema claro.

- Mas eu não consigo ver as coisas assim. O sol se põe por causa dos movimentos da Terra. As flores nascem porque põem sementes no solo. Lágrimas são secreções. A verdade é que, embora reconhecendo a existência dessas coisas e sabendo como nascem vivem e morrem, não consigo associá-las a nenhuma emoção.

- Não parou um pouco para pensar em Deus? - Para mim, deus é a ciência. A fraternidade tão apregoada pelas religiões não passa

do instinto de sobrevivência de que todas as espécies são dotadas. Quando estão famintas se buscam e se auxiliam. Quando alimentadas se afastam e se agridem.

- Poderia me dar uma explicação para o surgimento do universo, para a sua manutenção? Que força descomunal sustenta a vida desde os insignificantes protozoários aos bilhões de sois?

- A natureza é auto-sustentável. A vida foi gerada pela agregação molecular. Mas não estou aqui para discutir esses aspectos com o senhor. Mandaram-me aqui para obter respostas e eu julgava que iria encontrá-las.

Uma descrença assim tão severa, geralmente tem gênese em traumas passados. Ele fechara a porta às emoções. Escondera-se nas trincheiras da ciência, talvez para não lembrar de dramas que o infelicitaram. Era preciso levá-lo ao passado. Aos momentos em que lhe roubaram a fé, amordaçaram-lhe as emoções, tornando-o estátua viva.

Perguntei se ele se sentiria incomodado caso eu fizesse uma prece. Respondeu que não. Disse-lhe para seguir a música pois iríamos ao passado. Ele relutou.

- Você está falando de hipnotismo?

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- Estou falando de viagem. Vamos ao passado. Ao lugar onde você deixou suas emoções.

Ele não se opôs. Comecei a magnetização através de passes. Ele foi ficando sonolento, até que entrou em pânico. Ele não voltara ao passado como geralmente ocorre em uma regressão de memória. Assistiu em uma tela, a qual os Espíritos chamam de condensador ectoplásmico, cenas de uma de suas existências na Espanha, onde fora escritor. Escrevera sobre assuntos que desagradara a Igreja Católica. Falara de reencarnação, comunicações espirituais e fora posto a ferros para negar seus escritos.

- Como pode existir tanta maldade? Como pode haver amor no mundo? Por que um homem é torturado apenas por pensar diferente de outro? Que Deus é esse que deixa um inocente passar por tal sofrimento?

É claro que ele não era inocente. Estava imerso no núcleo do seu drama. A razão pela qual deixara de crer na religião e no amor dos homens. O momento a partir do qual seu coração tornara-se estéril e sua alma um deserto. Aquelas cenas certamente seriam o efeito de alguma causa em que ele se portara em descordo com a Lei.

- Fui torturado, acorrentado e feito prisioneiro em um calabouço. Eu escrevia e assinava com um pseudônimo. Eles conheciam apenas meias verdades sobre mim. Fui libertado mas não suportei o peso da minha covardia e cometi o suicídio.

A emoção que ele sentia era tão forte que o seu perispírito se modificou assumindo as feições que ele via na tela.

- Que é isso? Esse não é o meu corpo! Eu sou alemão. Chamo-me Isak. - Você está um pouco confuso por causa do que viu na tela. Isso lhe fez voltar no

tempo e recordar o trauma pelo qual passou. Encarando-o de frente você poderá superá-lo. Acredito que, com o conhecimento desses fatos que você fez questão de esquecer, gradativamente sua outra asa, a do sentimento, desabrochará e lhe permitirá planar sobre as ondas da vida.

Ele conseguiu chorar. As secreções aquosas represadas há tempo, lhe inundaram a face. Uma lágrima nunca é neutra. Vem sempre associada a alguma emoção. Seja ódio, alegria, piedade ou outro tempero qualquer, além do sal.

- Acho que estou melhor! Tenho certeza que sim, respondi. - Desculpe pelo meu desabafo! - Não seja por isso. Estou feliz pelo seu reencontro com as emoções. - Tomara que existam muitas no dique de onde esta fugiu. E partiu ainda confuso por tão inusitado reencontro.

De arma em punho

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De repente, quebrando o silêncio harmonioso da reunião mediúnica, uma das médiuns foi declinando aos poucos, até bater levemente com o rosto sobre a mesa.

Às vezes, os mentores trazem a tratamento um suicida que se encontra “sedado”, comatoso, devido ao estado de dor lancinante que, se não atenuado, pode levá-lo à loucura, além de provocar no ambiente sérias desarmonias.

Comecei a ministrar-lhe passes e ele foi despertando devagar. Mas, a intervalos regulares, levava a mão ao ouvido, dava imenso grito e caía sobre a mesa debatendo-se em convulsões severas. Acordava logo em seguida, pedia socorro, retirava os vermes de sobre seu corpo, levava novamente a mão ao ouvido e caía fulminado, sem jamais morrer.

Quando consegui acalmá-lo um pouco, escutei o seu lamento: - O revólver! Tire o revólver da minha mão! Meu Deus! Isso não tem fim! Vamos!

Tire a arma da minha mão!Fiz o gesto característico de quem tira a arma da mão de alguém, enquanto falava:

a arma que o infelicitou agora está comigo. Ele continuou em pânico. - O sangue! Por que esse sangue não pára de correr? Quantas balas tem esse maldito

revólver? Ele falava, e uma força dominadora o fazia levar a mão ao ouvido e atirar. Nesse

instante, dominava-o tremenda convulsão, culminando com a sua queda sobre a mesa, seguida de desesperado despertar.

- Os vermes! Tirem esses vermes de cima de mim! Feche esse buraco na minha cabeça!

O suicídio é um delito de gravíssimas conseqüências. Infrator dos códigos divinos, aquele que o comete, grava em caracteres ígneos, na intimidade da alma, as ações e as dores superlativas que lhes são atribuídas. O infeliz que assim procede torna-se um pária das regiões do além túmulo até que tenha resgatado com lágrimas e tormentos a dívida que contraiu com seu gesto de rebeldia. As repercussões vibratórias ocasionadas pelo tiro, a corda, a queda, o ácido... levam anos em violenta agitação perispiritual qual proceloso mar clamando por calmaria. As visões do ato dramático com o qual tentou extinguir a vida, persistem, qual filme parado, cena petrificada, na mente do desgraçado que comete o suicídio. O sofrimento atroz, a loucura, as lágrimas mais amargas, os lamentos pungentes, o inferno em vida, enfim, pois não há morte, acompanham o suicida em sua via crucis pelos pântanos que cria com seus pensamentos desalinhados. A palavra paz, e tudo quanto ela representa, desaparece do seu cotidiano. Falta-lhe a esperança, acompanha-lhe a amargura e seu séquito de flagelações.

Em uma das vezes em que ele acordou, pois parecia morrer a intervalos regulares, toquei com as mãos molhadas em seu rosto, falando firme para deslocar a sua atenção para um outro foco que não o tiro.

- Vou procurar estancar o sangue! Mas preciso que você escute a música. - Que música? - A que está no ar! - Elevei o volume do som e insisti com ele para que não o perdesse, pois aquela

música seria como um farol para retirá-lo daquela aflição. - A música! A música! A música! E foi adormecendo devagar, como que embalado por mãos invisíveis que o

guiavam. Não quis saber o motivo pelo qual ele atentara contra a vida. Isso não era relevante naquela hora. O desespero, a falta de fé ou outras questões relacionadas com a pequenez humana nesse estágio em que nos situamos, são geralmente as causas primárias

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de tão tresloucado gesto. A vida só será imensamente grande quando os homens deixarem de ser pequenos. Por enquanto, eles seguem falando em vida plena ancorados em teorias econômicas e filosóficas, esquecidos de que sem Jesus não há plenitude. A vida exige, sobretudo, sinceridade de propósitos na conquista do bem. Os que procuram construir a paz usando granadas e tanques devem estar certos de que ela só virá quando a justiça se instalar confortavelmente no coração do planeta. Busquemos a felicidade no amor, mas estejamos convictos de que nosso conceito de amor seja o mesmo aconselhado por Jesus, para não sofrermos as costumeiras decepções que nos colocam armas na mão e lágrimas corrosivas nos olhos.

A tulipa negra

Mal havia concluído a prece inicial, uma das médiuns me advertiu: “Vejo um Espírito de aparência muito desagradável. Sua cabeça é disforme, cheia de quistos. Esses quistos se abrem e lançam nas pessoas uma espécie de sebo de odor pútrido. Para que ele não me atinja, um dos nossos mentores se interpôs entre mim e ele fazendo o papel de anteparo para as suas rajadas. Não sei se ele vai comunicar-se, mas é bom estarmos em alerta.

Então o Espírito tomou a médium de maneira inesperada, e como um metralhadora giratória dizia estar contaminando a todos com os seus detritos.

Quem é você? Perguntei. - Eu sou uma página do seu livro! Meu trabalho é enfermar as pessoas. Fui pago

para ficar próximo aos médiuns deixando-os esgotados. Sem forças eles não poderiam comparecer à reunião.

- Como conseguiu ficar tão enfermo assim? - Por minha própria vontade. Sou conhecido como “Tulipa Negra”, pois lanço

conforme a minha vontade, petardos dessa gosma deliciosa que, atingindo as pessoas em seus pontos vulneráveis, as enfermam.

- Gostaríamos de ajudá-lo e vamos tentar fazê-lo através da prece. Deus age conforme o merecimento de cada um dos seus filhos. Não sei o que Ele destinará para você, mas com certeza, será o que você mais necessita.

Quando falamos em Exus e Pombajiras ( nomes que eles mesmos se atribuem ) em livros espíritas, algumas pessoas estranham o fato, por entenderem que tais entidades deveriam ser doutrinadas apenas em locais específicos onde costumam trabalhar. Ocorre que o bem não espera nem precisa obedecer a burocracia alguma para agir em nome da justiça ou da solicitação de quem merece ajuda. Esses Espíritos, de perispíritos muito materializados, que chegam as reuniões espíritas recitando palavras cabalísticas, emitindo raios e fluidos viscosos, com a aparência do próprio diabo mitológico, são largamente utilizados para prejudicar determinadas pessoas. Estas, solicitando o auxílio dos bons Espíritos, a depender do merecimento, são atendidas através da captura e do traslado do Espírito à reunião de desobsessão para que “desfaça” seu trabalho. Entre os membros das equipes que auxiliam os grupos mediúnicos, há trabalhadores que estudam e conhecem a

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fundo as técnicas empregadas pelos Exus, direcionando seus conhecimentos para neutralizar os ataques desses irmãos que compõem a pistolagem do além. Como a missão do bem é combater o mal, jamais aquele se ausenta dessas pugnas, pois que ambos vivem em contatos e encontros constantes, um primando pela desarmonia e o outro construindo a pacificação. Sendo os médiuns alvos em potencial de tão assídua clientela, e não aprovando o plano espiritual a tercerização do serviço de segurança de seus pupilos, é natural que ele mesmo se empenhe nesse ofício. Não é de admirar portanto, que os mentores tenham em sua companhia lanceiros e índios, e que, após a conclusão dos trabalhos com tais Exus, pretos velhos se ofereçam para “limpar” o ambiente com suas ervas.

Certamente os bons Espíritos têm meios para neutralizar a fúria de um desses Espíritos. Já ouvi um deles dizer para o Dr. Bezerra: Sai daqui velho! Eu não tenho medo de você! Depois foi se curvando devagar até ajoelhar-se subjugado por uma força irresistível. Todavia, para caça-los, traze-los dos cemitérios, das residências onde estão atuando, das encruzilhadas onde recolhem seus “pagamentos”, entram em ação índios e lanceiros, guarda especializada em tais serviços que, colocando sua força a serviço do bem, cresce e evolui para tarefas cada vez mais nobres, angariando méritos para o futuro.

Pedi para que alguém fizesse uma prece, enquanto lhe aplicava passes para acalmá-lo. Em instantes, ele começou a gritar: Não! Não! Não façam isso comigo! Minha cabeça está diminuindo! Estou encolhendo! Não! Não! E caiu adormecido.

Ao final da reunião, nos comentários sobre as comunicações, veio à tona o repetido tema, vigilância e oração. Será que esses Espíritos nunca vão deixar de nos perseguir? Comentou velha amiga de inúmeras batalhas espíritas. Todos concordamos que, somente colocando-nos acima deles, através da superioridade das nossas virtudes, é que nos situaríamos fora da sua linha de fogo. Foi o pensamento geral.

Acumpultura

A noite parecia sufocante. Uma de nossas trabalhadoras ausentara-se sob forte dor de cabeça. A música ajudava-nos a relaxar um pouco entre uma comunicação e outra. Em dado momento, uma das médiuns me chama, e diz em tom confidencial: “Vejo um Espírito com a aparência de um oriental. Ele tem agulhas nas mãos e as espeta em nossas cabeças, como um técnico em acumpultura faz. Todavia, sua terapia tem efeito contrário ao dessa técnica oriental. De suas agulhas sai um líquido enegrecido, que se espalha pelo corpo de quem está sob o seu comando, a partir do ponto infectado”.

Preparei-me para enfrentá-lo, pois os mentores não nos mostram tal cena para que fiquemos inertes. Confiança em Deus, passistas a postos, ladeamos a médium, certos de que as sentinelas da casa, de imediato, o colocariam a nossa frente. Foi o que ocorreu. Assustado, ele disse: “Espere um pouco! Eu sou médico e estou apenas ajudando a tratar a dor de cabeça de sua amiga”.

- Antes de iniciarmos a conversa, ponha as mãos sobre a mesa!- Você está me confundindo com outra pessoa!

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- Coloque as mãos sobre a mesa, bem devagar! Mesmo com o adestramento dos médiuns, instantes há onde o comunicante,

sentindo-se desmascarado, procura evadir-se ou reagir, tentando atingir o doutrinador, ferindo-o com unhas ou empurrões. Espíritos que possuem conhecimentos científicos e que são violentos, orgulhosos, insensíveis, encontrando algum ponto vulnerável no médium, sem dúvida o usará. Não devemos esquecer de que a reunião de desobsessão é um campo de guerra sob controle, onde tudo que o “inimigo” quer, é causar algum tipo de prejuízo ou de desarmonia. Daí a necessidade premente da disciplina, da vigilância, da sintonia com os amigos espirituais, para que, mesmo sob as condições mais adversas, aparentemente favorável ao desequilíbrio, o poder de Deus e a fidelidade dos amigos contornem a situação. Seria um contra-senso alguém esforçar-se para servir a Deus e ficar a mercê de toda sorte de agressões e zombarias. Em tantos anos de trabalho mediúnico eu jamais duvidei um segundo sequer do amparo, da amizade, da proteção e da dedicação desses amigos. Essa confiança é que nos torna invencíveis. Os que se comprazem no mal, às vezes são mais numerosos, mas não se dão as costas. Agrupam-se por interesses imediatistas e mesquinhos, são incapazes de algum sacrifício pelos companheiros, não sabem o significado da palavra amizade ou confiança. Se têm um chefe, esse os escraviza. Se falham em suas missões, são torturados ou banidos. O elo que os unem é frágil e quebradiço. No trabalho da desobsessão, quem tem amor é sempre mais forte. Eis porque um grupo bem estruturado, unido através do estudo e do amor, é imbatível.

O médium jamais deve sentir-se inseguro quanto a essa questão, pois a insegurança pode trazer-lhe pesados obstáculos ao desenvolvimento de sua faculdade. Sei que cada indivíduo tem uma história de vida peculiar, mas essa regra, a confiança nos amigos espirituais, deve ser geral. É preciso saber que, mesmo crescendo todos os dias sem jamais atingir, na presente encarnação, o estágio de plenitude de suas faculdades, o médium não tem o direito de agir infantilmente.

Ele obedeceu a contragosto e eu continuei falando calmamente. - Essas agulhas possuem mesmo o dom de curar uma dor de cabeça? - Sim! Elas são preparadas energeticamente para promover bem estar, após uma

simples aplicação. - Nesse caso, você não se opõe a que eu as utilize em você. - Eu já me encontro bastante energizado. Aconselho a que me deixe aplicá-la em

alguns membros do grupo. - Você poderá aplicá-las logo que eu faça um pequeno teste em você e note que o

seu bem estar é visível. Procedi como se tomasse as agulhas de sua mão e as introduzisse em sua cabeça.

Ele começou a gemer baixinho, para em instantes, berrar como um cabrito assustado. - Pare, por favor! Eu confesso tudo. Eu estava utilizando minhas agulhas para que

sua amiga ficasse com dor de cabeça e faltasse a reunião. - Qual o seu interesse em vê-la afastada da reunião? - Não é somente ela. Nós queremos esvaziar a casa fazendo com que todos se sintam

doentes. A ordem é fechar esse ninho de cobras. - Mas meu amigo, por que o nosso trabalho de formiguinha lhe incomoda tanto? - Porque as formiguinhas têm tesouras afiadas e estão acabando com as folhas de

nossa horta. Por isso, fui contratado. Pena que não tenha cumprido a minha tarefa. - Pois bem, amigo! Vou lhe deixar sob a vigilância dos nossos guerreiros. As

agulhas que eles usam são maiores e provocam mais que dores de cabeça.

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Ele ficou sem suas agulhas, decepcionado por não ter exercido a sua terapêutica às avessas. Ainda em último gemido pediu para que as devolvêssemos, pois eram suas ferramentas de trabalho. Recusei penalizado pela sua ignirância.

No mecanismo do passe, o paciente que o recebe, assimila os recursos vitais e, centralizando a sua atenção sobre as energias vitalizantes, pode ele mesmo auxiliar mentalmente no trabalho regenerativo de suas células, direcionando o fluxo energético para os milhões de corpúsculos que estão sob o comando do Espírito. Se alguém pode conduzir um fluxo energético para fins benéficos, pode igualmente direcioná-lo para prejudicar a terceiros. Allan Kardec escreveu em “A Gênese”, p. 279, FEB, 13ª edição: São extremamente variados os efeitos da ação fluídica sobre os doentes, de acordo com as circunstâncias. Algumas vezes é lenta e reclama tratamento prolongado, como no magnetismo ordinário; doutras vezes é rápida, como uma corrente elétrica.

Não se constitui novidade para os estudiosos espíritas a maneira pela qual determinados Espíritos arraigados no mal, infestam suas vítimas com fluidos por eles trabalhados, com a finalidade de provocar doenças físicas. Procedem também, direcionando os pensamentos desses invigilantes, ajustando-os a sua faixa mental, visando promover intercâmbios através de interferências. Mas como um Espírito desencarnado pode induzir um outro, encarnado, a proceder conforme a sua vontade? Primeiramente é necessário dizer que o primeiro estuda os pontos vulneráveis do segundo. Se há possibilidade de sintonia ele vai adiante em sua operação de ajuste, caso contrário, ele desiste. Estabelecida a sintonia, o que é possível através de comprometimento mútuo, o desencarnado compartilha do comando dos neurônios do hipotálamo do encarnado, forçando a sua dominação sobre o feixe amielínico, cujo resultado deságua no córtex frontal, o que lhe permite agir sobre o centro coronário levando sérios prejuízos às suas vítimas.

Aquele Espírito conhecia esta e outras técnicas, como averiguamos através do diálogo. Mas não contava com técnicos ainda mais especializados do que ele. A estes, e não a nós, simples aprendizes, devemos o amparo e a proteção que nos são prestados em momentos tão delicados.

Agulhas de acumpultura! Hipócrates certamente lamentaria tão grave desvio.

O pacto

Dificilmente se vê uma noite cearense sem estrelas. O Ceará parece ser um desses pedaços de terra privilegiado pela natureza, no que tange a luminosidade. A noite estava realmente azul. A prece inicial que introduz o trabalho mediúnico havia sido concluída. A porta entre os dois mundos estava aberta. O primeiro a passar por ela, trazido pelas mãos abnegadas dos bons Espíritos, foi um jovem que perseguia tenazmente a alguém que já fora próspero nos negócios e que agora estava em petição de miséria. O jovem mostrava intenso desagrado, já que não viera através de um convite formal, mas constrangido por uma ordem irrecusável.

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- Não adianta trazer-me para cá! Eu já disse que ele vai ter que cumprir a parte dele no trato.

- A que trato você se refere? - A uma antiga dívida que ele tem conosco. O senhor mesmo, eu já o ouvi

concordar com isso, sabe que compromisso assumido deve ser compromisso cumprido.

- As vezes falo isso referindo-me as nossas tarefas e compromissos. Há de se analisar o contexto onde uma frase é empregada para não cair em contradições.

- Uma dívida é uma dívida. Isso não muda, mesmo que ele tenha passado para esse lado.

- Você não gostaria de contar como essa dívida foi contraída? - “Nós éramos muito jovens. Vivíamos a procura de emoções fortes. Não

éramos diferentes desses jovens que hoje pulam de edifícios, apostam corridas, buscam a droga. Um dia tivemos a infeliz idéia de querer ver a morte de perto. Cada um de nós, dela se aproximaria de maneira diferente, e ao final, contaríamos aos outros nossas emoções. Escolhi o enforcamento. Quando o ar começasse a me faltar ele deveria cortar a corda. Kleber preferiu cortar os pulsos e Tarcísio optou pelo veneno. Esse covarde, a quem perseguimos, deveria colocar um torniquete no caso mais grave e chamar rapidamente um médico para meus dois amigos. Ele escolheu a roleta russa. Mas, insensato que fomos, quando ele me viu estremecer, os pulsos do meu amigo sangrando e o veneno corroendo tudo por dentro do terceiro, retirou as balas do revolver e fingiu que atirava com a mesma carregada. Logo em seguida, saiu correndo apavorado e nos deixou morrer a míngua, sem nos proporcionar o socorro combinado. Hoje estamos de volta para exigir que ele cumpra a sua parte no trato. A miséria já ronda a sua porta. Breve ele vai considerar a vida uma desgraça e puxará o gatilho como havíamos combinado”.

Ocorre que enquanto o infeliz contava seu drama, foi sentindo enorme sufocação, culminando por gritar desesperado:

- Afrouxe esse nó! Eu estou sem ar! Vamos, ajude-me! Ou será que você é igual a ele?

Diante da dor, a única atitude digna é procurar aliviá-la, desde que o doente queira curar-se. Ele já sofrera o suficiente. Era apenas um jovem imaturo. Aplicamos passes em seu pescoço e endereçamos ao seu coração as mais sinceras vibrações de acolhimento. Ele foi declinado a cabeça até encostá-la na mesa, adormecendo.

De imediato, o outro que o acompanhava pediu socorro para seus pulsos. Tomei suas mãos ( as da médium ) e improvisei atendimento, como se colocasse torniquetes logo acima dos ferimentos. Ele tinha a mesma opinião que seu amigo: o covarde deveria cumprir a parte do pacto. Todavia, estava cansado e vencido pelo sofrimento. Estivera, após o desencarne, longo tempo em região de intensa dor. Quando conseguiu liberdade e encontrou os amigos de infortúnio, planejaram cobrar a parte do pacto ainda não realizada.

Iniciaram sua procura e, de repente, se viram de frente com o fujão. Não sabiam ainda que o pensamento firme e determinado leva o Espírito para o cenário onde se encontram seus objetivos. Foi assim que reencontraram o ex-amigo, agora sob outra “vestimenta”. O complexo de culpa que ele abrigava, a necessidade inconsciente de auto-punição, induzia-o, ao sair do corpo físico, a apresentar as

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mesmas características perispirituais da encarnação passada, quando se recusara na hora extrema, a prestar ajuda aos amigos .

- Você quer mesmo livrar-se desse pacto? - Quero! Mas sei que um pacto só é quebrado quando todos os envolvidos

cumprem suas partes no trato. Tudo que eu quero é que ele se mate logo para que eu possa descansar.

- E se eu provar a você que esse pacto pode ser quebrado aqui? - Você está querendo me enganar para livrar a cara daquele covarde. Meu

Deus! Eu só tenho dezoito anos! - Existe uma maneira de quebrar esse pacto e vou mostrá-la. Está vendo este

livro na sua frente? É o Evangelho de Jesus. Tudo que você tem a fazer é se deixar levar pela prece que vamos fazer e ficar olhando para o livro. Se ele começar a brilhar e a luz ficar tão forte a ponto de não ser mais possível encará-la, é sinal de que o pacto está quebrado.

Ele concordou. Estava chorando muito e o que mais queria era descanso para tantos anos de sofrimento. Iniciei a prece e a proporção que a desenvolvia, ele começou a agir como se algo lhe incomodasse a visão. Foi fazendo gestos discretos, para culminar fechando os olhos com as mãos. Mesmo assim, a luz o atingia e o desnorteava.

- O que você está vendo? - Luz! Muita luz! As letras do livro estão luminosas. Saem do livro e

atingem a minha visão parecendo queimá-la. - Pois agradeça a Deus pela sua libertação. O pacto acaba de ser quebrado. Ele acalmou-se após longo choro e adormeceu ciente de que estava livre

daquela maldição. Na semana seguinte, nossos mentores trouxeram os outros dois personagens

desse drama, pois que não estavam ainda convencidos de que poderiam construir, cada um deles, a sua liberdade.

- Você mentiu para o meu amigo! Onde está ele? O velho caolho é um cigano muito sábio. Ele afirmou que somente com a morte do covarde é que podemos sair desse sofrimento.

- Ele está errado. Uma pessoa só se liberta do sofrimento quando ela mesma decide. Quem faz grades para aprisionar-se é que deve quebrá-las.

- Você acha que eu me delicio com o meu sofrimento? Pensa mesmo que trago esse laço no pescoço porque gosto de sentir falta de ar?

- Não! Penso que você dá mais ouvidos a esse velho cigano que a Deus. Por que não tenta o mesmo método que libertou o seu amigo? Ele agora está em tratamento em nosso hospital e quer receber a sua visita.

- Você dá a sua palavra que esse pacto pode ser quebrado aqui, sem a necessidade de que o covarde morra?

- Você tem a minha palavra. Não estou aqui para mentir para os amigos nem para fazer gracinha com a dor alheia.

Então, vencido pelas amarguras, pelo vazio que a ausência de paz impõe aos corações humanos, ele também viu a luz do Evangelho brilhar como o sol do meio dia. O outro personagem, a terceira vítima da brincadeira inconseqüente, estava acoplada a outra médium sendo doutrinada simultaneamente. O resultado foi emocionante. Como a luz divina se espalha em todas as direções doando-se para

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quem a deseja receber, ambos se deixaram iluminar, adormecendo com os corações calcinados pela dor, mas pacificados pela luminosidade evangélica.

O pacto estava quebrado. O mito da inviolabilidade, tão cultuado entre os Espíritos ignorantes, estava morto, pelo menos para aqueles Espíritos.

O mundo tem muitos caminhos. Cada viajante precisa saber que, em qualquer diminuto espaço azulado ou trevoso de sua geografia, Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida. Mas apesar de ser o Príncipe da Paz, Jesus não exige pacto de fidelidade a quem não tem forças para segui-lo. Cada Espírito aproxima-se Dele aos poucos conforme sua vontade e inspiração, atraído por irresistível magnetismo. O chamado de Jesus é doce: Vinde a mim todos vós que estais aflitos e sobrecarregados e eu vos aliviarei e encontrareis repouso para vossas almas. Seu conselho é carregado de afeto: Aprende de mim que sou manso e humilde de coração. Seu amor pela humanidade é incontestável: Estarei convosco até a consumação dos séculos.

A construção da paz é tarefa árdua e intransferível. Sejamos pedreiros desse grande edifício, na certeza de que, se Deus é o grande arquiteto do universo, Jesus é o mestre de obras a quem Ele entregou os destinos da Terra.

Deformações

Havíamos lido um texto sobre as deformações do caráter quando este se afasta do Evangelho de Jesus, referencial de trabalho, saúde e paz para o Espírito, quando ao final da reunião, Kröller, velho amigo desencarnado, levou duas médiuns a um estranho hospital.

Imediatamente, uma delas começou a descrever ao que assistia: - “Estou em um estranho hospital. Seu nome é Cruz Rosada. Abaixo do nome está

escrito: Núcleo de Recuperação Menino Jesus. Kröller explica que estamos na orla marítima do Nordeste brasileiro, sendo este hospital, um espaço de trabalho da colônia “Vale das Flores”. Os Espíritos aqui em tratamento comprometeram-se no campo do ódio e da vingança. Esse exercício continuado provocou em seus perispíritos, estranhas anomalias. A equipe que desenvolve o trabalho de auxiliá-los na modelagem perispiritual é chefiada pelo Dr. Bezerra de Menezes, e dela fazem parte, Sheilla e outros Espíritos amigos.

O tratamento a que os enfermos se submetem, visa neutralizar o bloqueio mental que trazem e que não lhes permitem por si só, modelar seus corpos segundo os padrões humanos terrenos. Alguns deles passaram por nossas reuniões de desobsessão, e é compromisso nosso auxiliarmos na conclusão do tratamento.

Kröller comenta que as cadeias nas quais esses irmãos se encontram aprisionados foram criadas por eles mesmos, quando de livre consciência optaram pelo revide, pelo ódio e pela vingança.

Os dois pavilhões que observo estão separados por uma espécie de canal, por onde escorre água muito limpa. Suas bordas estão pontilhadas por flores lilazes. Cada apartamento, em forma de cela, abriga um Espírito, ou dois se são xifópagos. Apesar de todos possuírem a aparência de criança, são adultos deformados que se assemelham a pequenos monstros. Nosso instrutor chega próximo a um deles que é muito feroz, cuja

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aparência lupina me provoca medo. Perto dele o “animal” fica dócil e encosta-se em suas pernas como a receber um velho amigo. Sou convidada a chegar mais perto”.

Então a médium passou a uivar e a arranhar a mesa com suas unhas. Apesar da tentativa de fazê-la falar algumas palavras, tudo que conseguimos obter nos três minutos de comunicação nos quais aplicamos passes e oramos, foi o nome do instrutor.

Ao final, a outra médium complementou: “Tive muito medo à princípio, mas logo fui me acostumando à situação. O visitante menos avisado, facilmente se perturbaria em tal ambiente, julgando ser vítima de alucinações, acossado pelo clima psíquico de alienação e agressividade que cerca cada cela. Se quisermos ajudar com segurança, e o faremos, precisamos perseverar na vigilância e na oração, a fim de jamais perdermos o contato com essa equipe que tão amorosamente dirige o hospital. Esse é mais um trabalho para nossas noites bem dormidas”.

A noite, ciente de que logo deveria estar em trabalho novamente, pois o descanso noturno restringe-se apenas ao corpo, comecei a pensar sobre as deformações, como quem conversa consigo mesmo.

A deformação perispiritual é tema desconhecido e perturbador, mesmo para grande parcela dos espíritas. No complexo capítulo das modelações, aprendemos que o físico obedece, além das leis biológicas que lhe imprime formas determinadas, também ao perispírito, que traz uma bagagem de leis determinantes as quais nem mesmo a genética lhe escapa, de vez que está a elas submetida. Por sua vez, o artesão de todas as formas físicas e perispirituais é o Espírito, este sim, senhor do seu destino, de sua beleza ou fealdade.

Entre os animais, o parasitismo decorre de uma adaptação na qual os órgãos de locomoção dos parasitas fixos podem sofrer reduções ou mesmo desaparecer. Ao mesmo tempo, podem surgir outros que lhes possibilitem a estabilidade junto a sua vítima. De maneira análoga, o Espírito vampirizador sofre mutações perispirituais de vulto, transformando-se em espectro denunciador do seu descontrole pelas formas dantescas que apresenta. A natureza municia e adapta os seres conforme suas exigências. Foi dessa forma que os platelmintos, parasitando o intestino humano perderam seus órgãos locomotores no que foram substituídos por ventosas ou ganchos.

Se no corpo físico o excesso de comida ou de bebida vai avolumando o abdome fazendo o tecido adiposo sufocar órgãos e sistemas, o que imprime uma deformação anátomo-fisiológica, com muito mais propriedade os pensamentos e ações desregradas, embasadas no ódio, vingança, egoísmo e similares, deslustram o perispírito, fazendo-o assumir formas desarmônicas. Tudo se passa como se o seu senhor, o Espírito, perdendo os freios da razão na estrada evolutiva, tomasse alguma viela lateral a desaguar nos reinos inferiores. Isso não é involução? Claro que não! Pois o Espírito conserva todo o seu patrimônio moral e intelectual. Relembro aqui a frase de André Luiz, na abordagem desse tema: “A forma se degrada mas o Espírito não retrograda”. Logo que o Espírito retome sua lucidez, todas as suas conquistas ressurgem dos refolhos de sua mente.

Assim é a vida. Quem utiliza mal o livre arbítrio cai no determinismo da Lei, ou seja, deve obrigatoriamente colher os frutos que plantou, para depois, livre de algemas com a retaguarda, prosseguir como aconselham nossos instrutores maiores: Para a frente e para o alto!

Deduz-se de tal ensinamento, que todos somos escultores de nossos corpos e de nossos perispíritos. Que se há méritos ou deméritos em nossa prática, devemos a nós. Cada um, com suas próprias mãos, constrói em si mesmo a beleza luminescente dos anjos ou a forma densa e escura dos faunos.

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Luz ou escuridão é opção íntima. Que Deus nos conceda sabedoria de escolhermos a primeira e nos afastarmos sempre da segunda.

A guardiã do fogo

Ela já iniciou a conversa, indignada com a presença de Francisco, frade franciscano, que juntamente com outros amigos desencarnados dirigem a reunião pelo outro plano.

- Saia daqui! Eu não acredito em vocês, abutres! Vocês são hipócritas! Como podem mandar para a fogueira quem só queria fazer o bem?

- Acalme-se minha irmã! Francisco tem as mãos limpas. Se houve um crime no passado, seria melhor falarmos de perdão no presente. Não se apaga um fogo com material de combustão.

- Mas eu não quero apagar esse fogo! Ele começou devorando minhas carnes e as de meu filho. Bastardos! Ele era uma criança inocente! Tudo que quero é alimentar esse ódio até destruir todos esses malditos assassinos. - Entendo a sua revolta. Mas você acha mesmo possível que Deus tenha permitido que lhe aplicassem tão dura pena sem uma causa justa?

- Deus? Que Deus? Eu não acredito em mais nada. Se Ele existisse, não teria permitido a esses assassinos levar meu filho e a mim para a fogueira.

- Você já pensou na possibilidade de ter vivido outras existências? - Já! Conheço essa doutrina da Índia. Eles pensam que precisam nascer de novo e

pagar os seus pecados vivendo na miséria como eles vivem. - Não teria você cometido algum crime em existências anteriores e o resgatou com a

morte na fogueira? - Agora o senhor quer me transformar de vítima em algoz? Não cometi crime

algum, exceto, o de querer fazer algo de bom para as pessoas. Tenho certeza! Por isso meu ódio é ainda maior.

- Se tem tanta certeza assim, creio que não se oporá a que a levemos ao passado; ao tempo das causas que geraram tão graves conseqüências.

- Não! Não! Ele não mentiria para mim! Meu filho! Não me abandone! Por que está me dizendo essas coisas? Por que não posso abraçar você?

Ela via seu filho à distância, como se estivesse separada dele por espessa muralha de vidro. A doutrinação tem esses momentos maravilhosos em que o doutrinador é auxiliado por Espíritos interessados na pacificação e na libertação de companheiros presos a seus dramas passados, ocasião em que eles, já libertos, esforçam-se para resgatá-los. Muitas vezes, agimos segundo seus conselhos, que repercutem em nossa alma em forma de intuições. É o pai que socorre o filho, a mãe que move montanhas para retirar o filho do charco, a esposa que roga auxílio aos bons Espíritos para o amado. São eles que, tocados

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pelas preces que solicitam ajuda, invadem o reino das sombras resgatando enfermos e os levando às reuniões de desobsessão.

Tudo é válido quando ético, quando o amor preside as ações, quando a caridade é o roteiro escolhido para fazer verter o suor alegre de cada dia. De repente, ela começou a gritar, retorcendo-se como se estivesse sendo consumida por labaredas.

- Não! Meu filho, não! Ele é apenas uma criança! Só fazia o que eu mandava! Matem a mim, mas deixem meu filho ir embora!

Ela havia retornado ao passado. Ao momento crucial em que fora sentenciada a fogueira juntamente com seu filho. O crime cometido, exercer a mediunidade ajudando seus irmãos de caminhada. Os efeitos da inquisição, página negra da história das religiões, período em que Espíritos trevosos dominaram muitas mentes que se diziam representantes da divindade, ainda está longe de terminar. Em apenas vinte anos de inquisição na Espanha e em Portugal cento e vinte mil pessoas acusadas de heresia foram condenadas e mortas por ela. Isso sem contar com o atraso provocado na ciência, principalmente na área psíquica. O mundo não esqueceu ainda as crueldades cometidas contra homens que deram a vida pela ciência, missionários que vieram ao mundo apenas para fazer avançar a humanidade.

Quando Nicolau Copérnico enviou ao vaticano uma cópia de sua tese sobre o movimento dos astros, pediu ao papa Paulo III um pouco de tolerância para que o mundo pudesse avançar alguns milímetros através da ciência, de vez que reconhecia como verdadeiros os apontamentos que formulara. Como conseqüência do seu gesto de boa vontade, teve seu livro incluído na lista de proibições da Santa Sé, na qual permaneceu até o ano de 1822. Desnecessário será dizer que Copérnico foi banido pela Igreja. Todos conhecemos a maneira como Giordano Bruno morreu, a intolerância com a qual Galileu foi tratado, o desprezo que era devotado à ciência e àqueles que a exerciam. Notei que ela voltara ao ponto crucial da sua dor. Ao momento em que, rotulada de bruxa, a colocavam na fogueira infame da inquisição.

- Por que você foi condenada? - Por que falava com os mortos e aconselhava as pessoas a fazer o bem. Ela estava sofrendo muito e tratei de aplicar-lhe passes para que recuasse ainda mais

no tempo, para o tempo das causas. De repente ela sorriu maliciosamente e ordenou: - O jovem está pronto para o sacrifício? - Que sacrifício? - O que os deuses ordenaram. Eu escuto vozes e elas ordenam sacrifícios. - Quem é você? - Eu sou a sacerdotisa. - Como é o seu nome? - Não posso revelar meu nome. Eles não permitem. - Quantas vítimas você já fez? - Não são vítimas. São oferendas para os deuses. - Em que país você vive? - Na Grécia. Mas por que você me faz tantas perguntas? Você não é daqui! - Sou de um outro país amigo. Também sou religioso e estou interessado em sua

religião. Mas não quer mesmo dizer seu nome? - Direi meu nome se você disser o seu. - Meu nome é Luiz. - O meu é fogo!

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Como ela fazia gestos com as mãos como se amolasse um instrumento cortante, perguntei:

- O que você tem nas mãos? - Fogo! - Quem é o seu deus? - Sol Avançamos um pouco no tempo e a encontramos com as carnes apodrecidas. - Não posso mais presidir os sacrifícios. Estou apodrecendo. Aquelas revelações eram suficientes para conscientizá-la de sua culpa. Pedimos que

gravasse fortemente ao que revivera e retornasse ao início de nossa conversa. Ela continuou a ver o filho e a pedir que ele não a abandonasse. Depois caiu em si.

- Meu Deus! Eu quero esquecer isso! Quero nascer cega, louca! - Não seria melhor nascer com a mediunidade, educa-la e ajudar as pessoas em seus

sofrimentos? - Eu já tentei isso e me lançaram às chamas. - Mas agora os tempos sãos outros. O que você está vendo aqui são médiuns no

exercício de suas missões. - Esse perfume! Que perfume é esse? Por que tantas flores azuis? - É o perfume do amor. - Tenho medo de falir. Tenho medo de novamente ser mal interpretada. - Você irá preparar-se. Passará por uma eficiente aprendizagem que a fortalecerá. - O frade está me mostrando um jardim com muitas flores azuis. Ele está dizendo

que eu vou tomar conta delas. Desculpe a minha agressividade a principio... - Vá com Deus minha irmã. E não se aparte Dele jamais. - Muito obrigada! E se foi para as flores azuis com as quais Francisco presenteia os sofredores.

O boneco

De repente, uma das médiuns chamou-me baixinho, como se estivesse com medo de ser escutada pelos demais participantes da reunião.

- Estou no meio do cemitério. Vejo as silhuetas das tumbas e o canto dos ciprestes, mas estou com um pouco de medo. Não vejo ninguém ao meu redor, embora saiba que em ocasiões tais, sempre estou acompanhada.

- Você sabe o que fazer em situações dessa natureza. Lembre-se de que mesmo atravessando o Vale da Sombra e da Morte, Deus está conosco. Ore e espere.

- Agora vejo. É uma espécie de boneco. Sei que ele não é vivo, pois seus olhos não têm movimento nem seu corpo demonstra qualquer sinal de vitalidade. Essa forma humana, pois não há Espírito ali abrigado, está sendo utilizada por um exu, que a encosta próximo a uma pessoa para enfermá-la. Assisto a uma espécie de demonstração. Quando o boneco,

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que nesse caso tem o tamanho de uma pessoa, é encostado à mulher que está sendo perseguida, ela imediatamente começa a passar mal. O Espírito que o carrega mentaliza manchas na pele, bloqueios nos sistemas, quedas energéticas, doenças várias, enfim, e tudo vai aos poucos se transferindo para o corpo da pessoa que está sofrendo a obsessão. Meu trabalho aqui, orienta-me o instrutor, é aproximar-me do boneco e me encostar a ele, desmaterializando-o às custas de nosso ectoplasma e de nossas preces.

- Não demonstre medo. Caminhe serenamente para ele e não se detenha diante de nenhum obstáculo. Mesmo que o Espírito poste-se à sua frente, interpondo-se entre você e o boneco, continue caminhando.

- Mas o Espírito já fez isso! Como vou passar por cima dele? - Isso não é preocupação sua. Se há instrutores ao seu lado, e eu sei que eles estão

com você, transfira esse problema para eles. Não se detenha! Abrace-se ao boneco! Então a médium começou a tremer como atingida por forte corrente elétrica. Falava

com dificuldade, pois o boneco grudara-se ao seu perispírito. Veio-nos a idéia de mentalizar uma grande luz para destruir o pegajoso artefato. Aplicamos passes e fizemos nossas preces, sem contudo perdermos a calma, cientes de que Deus nunca deixa sozinho o trabalhador de boa vontade. A forma humana foi aos poucos evaporando, ficando apenas o perispírito da médium em pleno cemitério, frente a frente com o agressor. Este, dominado pelo ódio, mas controlado por Espíritos que acompanhavam a médium e que antes não se deixavam ver, vociferou:

- Seus malditos! Deu muito trabalho para conseguir essa cópia! O que querem vocês se intrometendo onde não são chamados?

- Apenas lhe dizer que se tentar de novo prejudicar alguém com bonecos, vai ter que vir aqui se explicar. E se isso acontecer, talvez não sejamos tão generosos deixando-o ir embora sem o tratamento que merece.

- O que querem que eu faça seus malditos! Vocês me tiraram a cópia. Aquela mulher tinha que morrer! Que direito vocês têm de invadir a vida dos outros?

- Acho que deve fazer essa pergunta a você. Ninguém lhe nomeou juiz em causa própria. Deus não precisa de assassinos para que a sua Lei se cumpra. Ele não é aliciador de pistoleiros, nem tampouco, aprova assassinatos por encomendas. Portanto, acho melhor procurar um outro trabalho antes que chegue para você o dia do juízo final.

- Eu vou fazer mais bonecos e enfermar a todos vocês! - Quanto a isso, só os milicianos que o tomarão a guarda, poderão responder. Ele se foi e a médium tornou a si esgotada, permanecendo alguns minutos como se

estivesse desacordada. Esse tempo é necessário para refazimento de energias, no que o médium é sempre auxiliado pelos instrutores e técnicos espirituais.

Muitas pessoas julgam que tais acontecimentos são contos macabros e que, mesmo diante da possibilidade da existência dos mesmos, estariam vacinadas contra o seu contágio. A única maneira de se imunizar contra o mal é a prática incondicional do bem. Os Espíritos ignorantes só respeitam uma regra, identificada de pronto em quem lhes enfrenta, a superioridade moral. Riem dos discursos vazios, das farsas, das representações e maquiagens com as quais muitos procuram imitar as virtudes e zombam dos simulacros da justiça, código que muitos elegem no relacionamento com seus semelhantes. Quem com essas armas tenta enfrentá-los, facilmente é abatido, pois em tais práticas eles são professores, com o agravante de serem cruéis e insensíveis.

A única arma poderosa contra a maldade é a bondade. Enfrenta-se com sucesso o ódio escudando-se no amor. Quando um único homem atinge a plenitude do amor

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neutraliza o ódio de milhões, disse Gandhi. E com o seu amor, posto em prática nas delicadas questões da guerra do seu país, logrou a vitória que a muitos parecia impossível pertencer a ele, um homem já velho, magro, sem riquezas materiais, mas pleno de amor e de justiça.

É preciso cumprir a Lei. A lei divina, imutável, generosa, justa, não para fugir da dor, mas para abraçar a liberdade. Ninguém é forte fora da lei. A lei divina tem seus parâmetros norteados pelo amor e mostra-nos o caminho mais curto para o Reino dos Céus. Tomando-a como referencial de vida, é impossível extraviar-se, porque caminha-se em direção ao coração do próprio Deus.

Por isso, aqueles que dela se afastam, sofrem. Se alguém, caminhando em direção a luz clarifica-se cada vez mais, em sentido oposto, termina em trevas. Como o destino final de tudo e de todos é o encontro com a divindade, esta possibilita às trevas encontros freqüentes com a luz a fim de que possa refletir sobre seus paradigmas.

Aquele exu teve o seu encontro com a luz em pleno cemitério. Caberia a ele decidir pela sua companhia ou voltar para as trevas como um morcego assustado.

Difícil diagnóstico

Antes de iniciarmos a reunião, uma jovem auxiliar de enfermagem, médium trabalhando conosco, pediu que orássemos por um dos seus pacientes, rapaz de um pouco mais de vinte anos de idade, e que se encontrava no hospital sem um diagnóstico definido.

O jovem atingira a fase terminal de sua doença e sentia dores lancinantes em todo o corpo. Recebia sangue continuamente, e o expelia como uma esponja saturada, que libera pelos poros o líquido que lhe chega. Ao chorar, suas lágrimas misturavam-se ao sangue que minava dos olhos. O suor trazia o avermelhado do sangue. A saliva que lhe vazava dos lábios, indicava a presença de glóbulos vermelhos.

As bolsas de sangue eram continuamente trocadas e esvaziadas mas a situação não se modificava.

Então, em meio à reunião, uma das médiuns deslocou-se através do desdobramento até o leito do rapaz. Ele, falando-nos através da psicofonia, pediu que o fizéssemos morrer, pois não suportava as dores que o maceravam. Registrava o gosto de sangue na boca, em suas veias corriam fogo, sentia-se explodir, mas a vida teimava em deixá-lo preso ao leito. Se quiser ajudar-me, disse-me, mate-me.

Aplicamos passes e o induzimos a dormir um pouco, mas, para surpresa nossa, ele começou a falar como um louco, sobre ratos envenenados.

- O que você faz com os ratos? - Aplico veneno em suas veias e os vejo sangrar na minha frente. As veias deles

parecem explodir quando o veneno começa a circular em seu interior. - Mas com qual objetivo você caça esses animais e os sacrifica de maneira tão

cruel? - Não são animais peludos como você está pensando. São ratos de duas pernas.

Judeus que saíram dos esgotos para nos saquear. O meu trabalho é colocar esse veneno em

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suas veias e ver como eles se comportam. Eles sangram pelos ouvidos, nariz, boca. Eles são fracotes, uma raça inferior que só serve para ser cobaia.

Então eu entendi o drama do jovem. Um drama da guerra. O sangue que escorrera lá, estava sendo cobrado aqui. A antiga e infalível lei de ação e reação, tão bem traduzida por Jesus ao dizer, quem com o ferro fere com o ferro será ferido, o atingira e o conservava naquele leito. Haveria perseguidores por trás de tão doloroso quadro? A resposta veio de imediato através de outra médium.

- Por que você me tirou de lá seu maldito? Pensa por acaso que eu estou sozinho? Você está vendo o sangue nas minhas mãos, nos meus ouvidos, no meu corpo? Foi ele que o fez jorrar. Temos todo o direito de cobrar essa dívida. Moisés aconselhou a que cobrássemos olho por olho e dente por dente.

- Olho por olho, e o mundo acabará cego, foi o que disse Gandhi. Mas Jesus, que também foi judeu, aconselhou perdoar setenta vezes sete. Se perdoarem, terão auxílio imediato para suas dores. O rapaz já está no final dessa existência. Todos têm o direito de morrer em paz.

- Ele, não! Nós estaremos aguardando a sua passagem para cá, a fim de concluirmos a nossa vingança. Mesmo que me prendam aqui, os outros seguirão à risca as minhas instruções. Está na Lei. Quem deve tem que pagar.

- Também está na Lei: Não matarás! Agindo dessa maneira você se iguala a ele. Seja superior! Perdoe! Que diferença há entre um crime praticado em um laboratório e outro efetuado dentro de um hospital? Se há cobrança para aquele, não haveria para este?

- A sua conversa está comprida demais! O que você chama de vingança eu chamo de justiça. Se quiser prender-me, prenda. Mas a sorte está lançada e a morte é inevitável.

- Não quero prendê-lo. Você não é um malfeitor. É apenas alguém magoado pelo que lhe fizeram. Queremos ajudá-lo a ser feliz e sabemos que isso é impossível com ódio no coração.

- O ódio não é destinado a vocês! Somos estranhos para vocês e vocês são estranhos para nós. Não há amizade sem compreensão. Vocês não nos compreendem, portanto, deixem-nos em paz!

- E vocês têm paz? Mas ele não quis responder a tão inquietante indagação que, se aprofundada, poderia

tirá-lo do poço onde se encontrava. O seu imediatismo colocava escura venda em seus olhos. Estava “travado” demais para um diálogo, pois cristalizara a idéia da vingança como um direito inalienável seu. Saiu às pressas atormentado com a idéia de perder de vista a sua vítima.

Na semana seguinte, novamente a médium desdobrou-se até o leito do jovem e descreveu o triste quadro em que ele se encontrava. Dois “vampiros” postavam-se de sentinelas junto ao corpo do rapaz, impondo neste suas mãos, direcionando-as para a garganta e o estômago. Uma geleia viscosa invadia todo o organismo da vítima. De lado, Dr. Bezerra de Menezes, que a pedido da bisavó do rapaz auxiliava no desfecho daquele drama. A senhora pedia o obséquio ao grupo de auxiliar na retirada daqueles dois Espíritos que não deixavam seu bisneto morrer em paz.

Uma das médiuns foi colocada entre um vampiro e o corpo do enfermo e o que se viu foi esgares, urros, tremores exagerados, falta de ar, ânsia de vômitos, um quadro tão desesperador que tememos por sua saúde. A outra teve a mesma sorte. Ao aproximar-se do vampiro sofreu choques tão intensos que seu corpo tremia e cambaleava como sacudido por um furacão. Seus pés batiam o chão com a violência de um cavalo ao disputar um grande

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prêmio. Mais demorassem naquele estado alterado e eu não saberia o que fazer, a não ser confiar plenamente na medicina divina. Após alguns instantes, as médiuns caíram, literalmente exauridas, parecendo desmaiadas.

A senhora aproveitou a ocasião para nos tranqüilizar e agradecer a colaboração prestada. As médiuns estavam naquele momento recebendo ajuda dos técnicos em reposição de fluidos e logo estariam bem. Dali para adiante ela seria uma devedora do grupo, disse-nos. A qualquer dia ou hora em que precisássemos de ajuda, bastaria chamar pelo seu nome e ela estaria conosco. O trabalho, proporcionar uma morte mais tranqüila para seu bisneto, estava concluído. O rapaz ainda permaneceu encarnado por mais uma semana, partindo com seu perispírito severamente avariado. Ninguém no hospital ficou sabendo nada do ocorrido pelo lado real da vida, o plano espiritual. Seu tratamento prosseguiria agora sob a direção de médicos mais especializados. A grande maioria dos homens, notadamente a que detém a dádiva do conhecimento científico, ainda não está preparada para revelações tais. Convivem no acanhado mundo onde circula suas noções rasas, incapazes de grandes vôos. Como grandes aves que apenas com supremo esforço conseguem elevar-se a pequena distância do solo, observam os colibris e os condores, mas contentam-se com o ar pesado da superfície. Aguardemos. O tempo, esse construtor de asas, lhes dará o impulso necessário para grandes vôos.

Folhas e festas

A garota chegou querendo falar exclusivamente com o professor. Haviam dito a ela que o professor que dirigia a reunião poderia ajudá-la, razão pela qual, disse ao doutrinador que eventualmente me substitui, que não era com ele o seu caso.

Ela viera com outras crianças em uma dessas levas que os Espíritos trazem à reunião, quando querem que toda ela seja dedicada a um tipo de “paciente” específico, no caso, crianças necessitadas de tratamento. Há doutrinadores e médiuns que não se sentem à vontade ou mesmo não aceitam comunicações de crianças em uma reunião de desobsessão. Sentem cheiro de mistificação e de embuste com tal clientela e torcem o nariz para os mentores que, para evitar constrangimento para ambas as partes, procuram um grupo mediúnico mais maleável e acolhedor.

Para tais grupos que excluem crianças de seus diálogos, é que exponho os seguintes questionamentos: Crianças são, ou não, Espíritos? Necessitam, ou não, de tratamento? Podem, ou não, se comunicarem em reuniões de desobsessão? Caso não possam, em que tipo de reunião lhes dariam acolhida? São acometidas, ou não, pelos mesmos problemas dos adultos, tais como traumas, fobias, obsessões, suicídios, assassinatos, dentre outros? São Espíritos “adultos”, ou seja, possuem uma longa série de encarnações, ou não? Criança pode ser portadora de hanseníase, cancer, depressão, loucura, possessão?

Onde tratar toda essa população que necessita de diálogo, prece, passes, fluidos, carinho, amor, enfim, se o Centro Espírita a rejeita? Se o doutrinador considera que tais comunicações são portas abertas às mistificações, que se prepare para identificá-las e desmascará-las, sem contudo bloquear o acesso a quem necessita de auxílio. Que não

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contribua para marginalizar toda uma população carente, pois de discriminação e exclusão basta as que os grupos sociais executam. Ao repelir crianças em uma reunião mediúnica, o doutrinador impõe uma barreira entre o mundo material e o espiritual, o medicamento e o enfermo, a indigência e a caridade, favorecendo a uns e marginalizando a outros. Os estatutos terrenos não prescrevem em caso de calamidade que se ajude primeiramente às crianças? O mais vil criminoso não tem abrigo e tratamento nas reuniões de desobsessão? Por que fecha-las às crianças? Não disse Jesus: Deixai vir a mim as criancinhas? Os doutrinadores e médiuns que não se animam a atender crianças estarão por ventura estabelecendo a regra que toda criança desencarnada deve ser tratada apenas no plano espiritual, ou apenas têm medo de serem enganados? No primeiro caso, exercitam-se em um Espiritismo excludente. No segundo, falta-lhes a humildade, estudo, persistência. Como ela teimava em falar apenas comigo, dirigi-me a ela para iniciar o diálogo.

- Pois bem, eu sou a pessoa que você está procurando. Em que posso ajudá-la? - Primeiro diga a esse homem que tomou meu saco de folhas que me devolva. Eu

faço coleção de folhas. Na escola, meu professor me ajuda colocando os respectivos nomes abaixo de cada folha. Depois ele as guarda em um colecionador. Como saí da escola em viagem para cá, aproveitei para colher algumas folhas e aumentar a minha coleção.

- Não se preocupe com esse fato. Eu mesmo devolverei suas folhas após a nossa conversa.

- O meu nome é Nair. Meu professor disse que o senhor poderia ajudar-me. Eu tenho muitos pesadelos. Sempre me vejo matando uma pessoa e depois sendo presa. O senhor não está vendo que eu uso essa roupa de presidiária? Eu nunca consegui me livrar dela. Queria que o senhor fizesse esse sonho parar e que me desse uma roupa nova.

- O seu professor não tentou nenhum método para lhe ajudar? - Claro. Ele é uma pessoa muito sábia. Ele me fez sonhar e nesse sonho eu vi que

matei uma pessoa e fui presa. Vi também que trabalhava com folhas. Ele disse que eu fui bióloga. Mas deixou claro que o tratamento seria concluído aqui.

- Então vamos começar. Primeiro você vai pensar na roupa que quer ganhar. Depois nós vamos pedir a Jesus que tire da sua consciência esse pesadelo que lhe faz sonhar em uma prisão.

- Enquanto você reza posso ficar desamassando minhas folhas? - Acho melhor ficar ouvindo a música, bem quietinha. Durante a prece é que vão

trocar a sua roupa por outra. Ela ficou quase imóvel. Senti apenas que teve leves tremores durante a

magnetização. Passados alguns instantes ela foi olhando para si própria admirada com a sua transformação.

- Tio, mas que camisola linda! Quer dizer que eu nunca mais vou vestir aquela roupa de presidiária?

- Não. Nem vai ter mais aquele pesadelo. Vai sonhar com passarinhos, coelhinhos, borboletas...

- O tio está dizendo para você colocar nesse sonho a escola e os deveres que ela tem. - É verdade. E por falar em deveres aqui está o seu saco de folhas. - Achei uma folha que parece uma mão espalmada. Quando eu tiver uma repetida o

senhor aceita como presente? - Aceito. Dê um abraço em seu professor. Diga-lhe que agradeço pelos alunos que

me envia. - Ele disse que hoje tem muitos. Quando eu acabar de falar, virá um outro.

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E tinha mesmo. Despedi-me de Nair e entrou Marcelo. Garoto com uma fixação em comida, cuja obesidade ultrapassara o túmulo e persistia em seu perispírito, alimentada por seus hábitos, a exigir dos bons Espíritos tratamento adequado.

- Tio, estou aqui para lhe convidar para o meu aniversário amanhã. Vai ser perto do amanhecer.

- Muito obrigado pelo convite. Ele é válido para todos nós do grupo? - É sim. Mas eu não quero que levem bolinho, bombom, essas coisas. Eu gosto é de

carne. Eu sou forte. Já me examinaram e disseram que eu não tenho nenhuma doença. Preciso apenas fazer uma dieta. Mas eu gosto de comer. Não sou como aqueles meninos fracotes que não comem nada. Quando eu era vivo, só vivia com as pernas sujas de lama caçando pato e marreco para comer. Eu os atraía. Viu como eu estou falando certo? O tio disse que é preciso falar correto.

- Você os atraía e os traçava. Era assim? - Era. Gostei desse traçava. - Sim, mas como vamos levar tanta carne para essa festa? - Vocês vão caçar pato e marreco como eu fazia.- E onde vamos pegar tantos marrecos? - No pantanal. Lá tem muitos. As tias das oficinas já prometeram fazer uma comida

bem gostosa. - Está bem, Marcelo. Vamos ver se caçamos esses marrecos. Mas você só pode

comer uma asa, e é do menor marreco que for caçado. - Nada. Eu gosto é de coxa e de peito. Marcelo despediu-se, deixando-nos a certeza de como são tratadas de maneira

carinhosa as crianças no plano espiritual. O Espírito acostumado aos alimentos “pesados”, gordurosos, a vísceras e quitutes, tem dificuldades em adaptar-se ao delicado processo de inalação de princípios vitais da atmosfera através da respiração, bem como a absorção de água misturada a elementos vitalizantes. Por esse motivo, os Espíritos entendem que alguns precisam de uma fase de adaptação, um período de transição, a fim de evitar que se deixem dominar pela necessidade de se manter ligado ao mundo biológico de onde saíram. Caso não se esforcem o suficiente para se tornarem libertos desse condicionamento, podem enveredar pelos caminhos da parasitose psíquica, na qual se tornam escravos de encarnados, com os quais passam a conviver, haurindo desses o hálito vital do qual se tornam dependentes, estabelecendo através da sintonia de gostos e desejos, uma vampirização, na qual se comprazem.

Quando no plano espiritual chega um desencarnado nessas condições, acostumado a alimentação densa e picante, ele é enviado a centros de reeducação onde pode utilizar alimentos semelhantes aos que usava, na condição fluídica. Ele a recebe em porções proporcionais às suas necessidades, no que são diminuídas, até que ele esteja apto a satisfazer-se com substâncias compatíveis com a sua nova situação de desencarnado.

Entre nós, encarnados, enviamos nossas crianças necessitadas de tratamentos a especialistas que as ajudam a se tornarem livres de seus traumas e compulsões. Por que haveria de ser diferente entre os desencarnados? Quando esses problemas são persistentes e mal orientados pela medicina terrena, ultrapassam as fronteiras do túmulo, exigindo um tratamento que os façam regridir e desaparecer. E nesse assunto os Espíritos estão muito a nossa frente.

Entendi o drama de Marcelo e notei que os Espíritos estavam apenas lhe dando um motivo para elevar a sua auto-estima. Certamente teríamos logo mais a noite, alimentos

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leves como algodão doce. Marcelo, antes de se despedir nos informou: tem mais gente depois de mim.

E tinha. Outra criança com um problema nas cordas vocais. Mas essa história fica para uma outra vez.

Fuga ao trabalho

Os conselhos insistentes por parte dos mentores espirituais para o prolongamento do trabalho desobsessivo durante a noite, levaram-me, mais uma vez, a demorada conversa íntima comigo sobre este tema.

Todos os componentes de um grupo mediúnico, notadamente atuando no trabalho de desobsessão, sabem que tais tarefas se desdobram durante o sono físico, ocasião em que os corpos em descanso liberam os Espíritos das grades carnais, podendo estes atuar de maneira mais plena no plano dos desencarnados.

Todavia, o homem é o que pensa, e o médium não foge a esta regra. Todos nós temos objetivos e prioridades na vida. Listadas as prioridades, selecionados os objetivos, o Espírito se desloca durante o sono físico para o cenário que construiu durante a vigília, aí demorando-se conforme alimente suas idéias.

Ao trabalho noturno, sabe-se que há médiuns que não comparecem pelos mais variados motivos. Isso decorre da falta de disciplina. A vigilância e a oração aconselhadas por Jesus como referencial de vida, neste caso, não são observadas ou entendidas. A meditação, a concentração, a prece antes de dormir, são poderosos indutores, ajustando o trabalhador mediúnico ao seu trabalho. Por outro lado, o estresse, o cansaço, a preocupação exagerada em outros objetivos, as cenas destrutivas exibidas pela televisão, embotam o raciocínio, deixando o Espírito colado ao corpo. De outra feita, quando este se afasta do leito pode sair em busca de pessoas para conversas amenas, ou, o que é pior, de locais que julga paradisíacos, à procura de diversão, ou ainda, soluções para os problemas que o atormentam, o que invariavelmente não encontra fora do Evangelho de Jesus.

Quando em vigília, o médium de vontade fragilizada pensa que os mentores o levarão de forma automática aos campos de trabalho ou de repouso. O que ocorre após o seu sono físico é que, se ele não for por sua própria vontade, seu livre arbítrio será respeitado, mesmo sendo elemento vital para determinada tarefa ou o único naquele grupo a efetuar de maneira eficiente um trabalho específico planejado para aquele dia e hora. A sua vontade não será tolhida. Suas pretensões não serão contrariadas.

São constantes os avisos dos instrutores solicitando que seus companheiros encarnados cultivem momentos de prece e de meditação. As vezes, a aflição gerada pela luta para sobreviver atinge o médium, fazendo-o sentir-se esgotado, no que seu Espírito, durante o sono físico, pode permanecer ao lado do corpo como se estivesse exaurido em suas forças vitais. Antes de dormir, que se faça um relaxamento com uma música suave. Que se diga a si próprio: Eu estou relaxando. Meus pés estão leves, meu corpo está leve, meu Espírito está leve. Vou sair do meu corpo e dirigir-me à companhia dos meus amigos espirituais. Lá me espera a amizade, o carinho, o trabalho que me reabastecerá as energias e me fará sentir mais próximo de Deus. Que se diga isto ou outra coisa construtiva

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que tenha a função de relaxar e direcionar para os objetivos planejados, qual seja, o trabalho junto aos amigos espirituais.

Se ao contrário, o médium antes de dormir, abusar de comidas de difícil digestão, assistir a cenas violentas tão a gosto das programações da televisão, que impressionam os sentidos e anulam as imagens construtivas alimentadas durante o dia, se ler mensagens deprimentes ou eróticas, a probabilidade de ausentar-se do trabalho noturno deve ser considerada. A permanecer nessas condições, decerto acabará por cultivar o hábito dos faltosos, caindo no desculpismo que não encontra justificativa diante dos trabalhadores de boa vontade.

Sabe-se que entre os homens primitivos o sono apenas funcionava como revigorante físico, restaurando-lhes as energias perdidas. Já ultrapassamos esse estágio. Se em nossas reuniões mediúnicas o Espírito do médium se desloca até o local indicado pelo instrutor que o dirige, tem ele, quando consciente dessa necessidade, condições de se deslocar até o local onde seus instrutores se reúnem, sendo seu próprio guia. Se no magnetismo comum obedecemos a ordem do magnetizador e nos deslocamos sob sua vontade, em nosso deslocamento voluntário obedecemos ao nosso próprio desejo, de vez que o Espirito sopra onde quer e vai onde quer, desde que preparado para tanto.

Cada pessoa, ao desdobrar-se, vai em Espírito ao encontro de seus pensamentos e preocupações. O trabalhador toma o rumo do campo, o semeador pega sementes, o cientista demanda o laboratório, o poeta toma o lápis, o tocador abraça a viola e o malfeitor volve ao cárcere da dor onde vive aprisionado.

Portanto, que ninguém, uma vez conhecedor dessa temática, se diga desavisado de seus efeitos, pois se a cada um é dado segundo as obras, não haverá como subtrair-se da herança que construiu para si mesmo.

Os Servos de Maria

Começamos a reunião lendo uma mensagem sobre a serenidade, na qual o professor Herculano Pires expressa a sua luta para seguir três mandamentos que ele mesmo elegera, considerando-os indispensáveis para qualquer pessoa com pretensões de ser um serenista. Ele se exercitava em praticá-los há trinta anos, e apesar do esforço diário, confessava-se ainda na periferia da serenidade.

A trilogia do serenista, cujas proposições são as seguintes: Procura sempre a perfeição; nunca te deixes abater; eleva-te sempre às circunstâncias, é na verdade um desafio dos mais árduos que um Espírito desacostumado a companhia dos anjos pode enfrentar. Comprometemo-nos em tentar seguir o roteiro do professor e iniciamos a prece inicial.

Minutos após, uma das médiuns mostrou sinais de grande sufocação. Em seguida, começou a gemer, tentando pronunciar algumas palavras, no que escutávamos apenas sons incompreensíveis. Pela prática de longos anos trabalhando em reuniões de desobsessão, deduzi de imediato tratar-se de algum suicida. Alguém que em momento de desespero, tentara a fuga pelos caminhos ásperos do sofrimento.

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- Eu quero ar! Por favor, afrouxe a corda em meu pescoço! - Tudo que é possível fazer, será feito. Acalme-se e peça a Jesus, juntamente

conosco, pela sua recuperação. Após atendermos a esse suicida um instrutor, desconhecido para nós, tomou de

outro médium e esclareceu: A reunião de hoje será dedicada aos suicidas. Contatamos com vocês durante o sono, no que todos se comprometeram a auxiliar nessa nobre tarefa. O companheiro que foi atendido é o que se encontrava em melhores condições. Os outros quatro, enlouquecidos pela dor, não conseguem nos ouvir nem aos enfermeiros. É necessário o contato físico com os médiuns, para que eles, sentindo-se como “encarnados” novamente, recebam o choque anímico que os tirará da cristalização em que se demoram há anos. Como ficou combinado, obedecendo as ordens da nossa instituição, restituiremos as cotas fluídicas que cada um despenderá nesse trabalho. Através de nossos trabalhadores, nos comprometemos a assisti-los mediante qualquer necessidade, pois, se somos devedores uns dos outros enquanto desconhecidos, como amigos que receberam benefícios, a gratidão é obrigatória. Agradecemos a direção desta casa por nos ter cedido tão digno espaço e a todos que se exercitam na caridade através de atos tão sinceros

Quando o irmão Célio, pois foi assim que ele se identificou, afastou-se da médium, esta nos descreveu resumidamente o que estava além dos nossos sentidos, mas ao alcance de nossas mãos.

- O Centro Espírita alargou-se e está transformado em um vasto salão onde muitas macas estão expostas. Os suicidas em estado mais grave estão dentro de redomas, evitando assim que suas vibrações de intensa dor nos atinja ou a outros enfermos. Uma mulher, pois dos quatro suicidas que atenderemos os outros três são homens, está em carne viva. O fogo devorou-lhe as entranhas e o instrutor diz que, neste caso, é necessário mentalizar uma pomada refrescante e anestesiante passada em todo o seu corpo. Há lanceiros isolando a área além dos limites da nossa casa, e um estandarte azul, com um grande coração, tremula luminoso em nosso telhado. Apesar de tanta dor, estamos vivendo uma grande festa de fraternidade. O amor é tão visível que aqui parece ter a cor azul. Cada trabalhador dessa instituição veste um longo avental azul de mangas largas com um grande coração no peito. Preparemo-nos todos, diz um deles, para tolher as ondas de dor com as energias do nosso amor. Aproximam-se os enfermos. A comunicação vai começar.

Então o que se viu foi esgares, estertores, gestos desenfreados de loucura. Cada um deles emitiu uivos, gritos de pavor, pedidos de clemência, busca desesperada dos pedaços de si mesmo. Ao sentir-se por momentos mergulhado na carne novamente, cada infeliz movido por superlativas angústias, externou a dor represada, o grito sufocado, o pavor, o choro causticante, toda a severidade evangélica quando lembra as trevas exteriores e o choro com ranger de dentes, projetando na sala camadas densas de fluidos corrosivos. A dor lancinante em sua expressão mais amarga foi ali exposta, pois cada um deles, torturado pelo remorso e pela culpa, tendo ao seu dispor órgãos materiais, deixou suas vibrações extravasar como lavas em um vulcão, atingindo novamente o clímax já vivido no instante do suicidio. A mulher que atirara fogo a si própria, batia os pés no chão, agitava os braços em dança macabra e gritava como uma louca: Apague! Apague! Apague! Cada infeliz reviu as cenas em que pôs termo a própria vida, atestado de rebeldia contra as leis divinas e eternas. Todos puderam avaliar naqueles instantes o quanto foi mesquinho e pequeno o motivo pelo qual entraram na faixa do desespero e tentaram evadir-se da existência. Entenderam que, mesmo diante de uma grande montanha a ultrapassar, se não há o explosivo da fé, pode-se tentar desgastá-la com um cabo de colher, conquanto não se

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entregue ao desânimo ou a descrença. Todos se persuadiram de que criaram novos e maiores problemas e os adicionaram aos que já enfrentavam. O primeiro e mais crucial deles foi a decepção de se encontrarem vivos e loucos.

Ao final da reunião um amigo espiritual solicitou que fizéssemos uma prece, enquanto ele, no momento absorvendo os fluidos doentios que a médium retinha devido ao atendimento que prestara, nos acompanharia mentalmente. Nesses cinco minutos dedicados a nós próprios, movimentaram-se enfermeiros e ajudantes na limpeza do ambiente e de nossos perispíritos, trazendo novamente a calma que precedera a passagem da dor, vórtice descontrolado, mas sempre passível de calmaria sob a ação da boa vontade dos homens.

Ao concluirmos a reunião, em seus comentários finais, lembramos a semelhança existente entre ela e uma outra descrita por Camilo Castelo Branco, escritor português, suicida, que escrevera através de Yvonne Pereira o excelente livro, Memórias de um Suicida. Em seu romance, ele narra como foi recolhido do Vale dos Suicidas, atendido pelos “Servos de Maria” e levado juntamente com outros companheiros de infortúnio a uma sessão espírita, no qual tudo ocorreu como havíamos vivenciado naquela noite.

Irmão Célio, dirigente de um dos grupos “Servos de Maria”, o que nos visitou, solicitou a nossa permissão para colocar os nomes dos cinco suicidas que estavam sob seus cuidados em nosso caderno de vibração, onde os nomes de centenas deles, retirados de jornais e noticiários, são lembrados através de uma prece, antes do início de cada reunião.

Despedimo-nos com aquela sensação de dever cumprido que tão felizes nos faz. O mundo lá fora fervilhava de canções, anúncios e desejos. O mundo interior, de nossas aspirações e conquistas, palpitava de serenidade. Acho que, pelo menos naquela hora e meia de reunião, havíamos encontrado e permanecido com a serenidade, virtude pela qual o professor Herculano Pires lutara em terras brasileiras por tantos anos. E não restam dúvidas de que isso é um bom começo.

Mudando de corpo

No dia marcado para a reunião de desobsessão, deparamo-nos com vários contratempos, o que reduziu o número de participantes da mesma, de oito para três pessoas apenas. O doutrinador e duas médiuns. Acostumados a tais imprevistos, cientes de que, quando alguém, e não apenas duas ou mais pessoas se reúnem para trabalhar com Jesus e por Jesus Ele sempre está presente, tratamos de fazer a nossa obrigação, ou seja, pronunciarmos alto e forte o nosso: Estamos aqui!

O trabalhador mediúnico sabe que no dia marcado para a reunião, a vigilância e a oração devem ser redobradas. Aqueles que se comprazem e se “beneficiam” com a não realização desse exercício por parte dos médiuns, e assim procedendo retardam o auxílio que poderiam receber da espiritualidade maior, apertam o cerco, investindo na acomodação e na fragilidade do grupo, se as encontram, na esperança de agirem com maior liberdade em seus planos nefastos. Procuram, sobretudo, passar a idéia de que os obstáculos surgidos são

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insuperáveis naquele momento, que não há problema em se faltar apenas uma vez, sem contar que esses incansáveis trabalhadores de oposição, além da sedução que exercem, são também muito hábeis em induzir culpas, dúvidas e remorsos.

Na verdade, em nenhum lugar da Terra o trabalhador mediúnico está mais seguro que no seu campo de trabalho. Aí ele é mais facilmente encontrado pelos bons Espíritos, que em qualquer espaço planetário. Naturalmente, casos há em que o trabalhador precisa e deve afastar-se para solucionar problemas inadiáveis. Mas para cada problema que surge é necessário analisar as prioridades com base nos valores espirituais, e não, como vulgarmente se faz, no transitório, no material.

Feito esse pequeno e necessário comentário, sentamo-nos, oramos e aguardamos o início dos trabalhos. Logo veio trazido pelas mãos dos mentores, um menino de aproximadamente dez anos, que nos saudou com alegria.

- Tio, meu nome é João. Eu sempre tive vontade de ver a linha do horizonte no mar. Eu pedi que ao meu professor que me levasse até ela, mas ele aconselhou que eu passasse por aqui primeiro. O tio Francisco me trouxe para conversar. Fiz a ele o mesmo pedido e ele apenas respondeu: João, basta fechar os olhos que você vê o mar. Eu não aceitei. Quero ver o mar de olhos abertos. Ele está presente, rindo da nossa conversa.

- Seu nome é muito bonito. Você sabia que Jesus tinha um amigo a quem muito amava e que tinha esse nome?

- Sabia. Minha mãe se chama Rosane. Ela me deu esse nome justamente por isso. Ela me levava para ver o mar, mas nunca me deixava chegar perto dele por causa da minha doença. Ela contava que Jesus tinha amigos pescadores, que Ele ia para o mar com eles, que Ele andou sobre as águas e não afundou... Minha mãe é linda!

Certamente devia ser uma linda e dedicada mulher. João falou tanto sobre as histórias que ela contava, do seu carinho para com ele, do seu amor a Jesus, que nos passou essa imagem.

- João, você já foi à escola? - Ainda não! Tenho vergonha do meu corpo mole. Minha mãe disse que quando eu

morresse mudaria de corpo e iria para o céu. Lá, meu corpo seria novo e diferente. Por que para ver o mar eu preciso vir aqui primeiro? Francisco disse que você estudou o mar por alguns anos e pode me levar até ele. É verdade?

- Se o Francisco disse, é verdade, pois eu nunca o viu dizer algo que não fosse verdade. Vamos fazer o seguinte: Sua mãe não falou que você ia mudar de corpo?

- Falou. - Pois vamos tentar isso aqui. Quem sabe, Jesus, que gostava tanto do mar, nos

atenda esse pedido e você possa ir vê-lo com suas próprias pernas. Iniciamos a oração, ao mesmo tempo em que lhe ministrávamos passes,

mentalizando a sua melhora e, quem sabe, a sua cura. Mas para nossa surpresa, ele foi ficando maravilhado e começou a falar sem poder conter-se.

- Eu vejo o mar! Meu Deus, como é lindo! É azul, é frio, é lindo. Nossa admiração foi ainda maior quando ele nos revelou o que acontecera com o

seu corpo, sem que esperássemos tão grandioso presente. - Eu não sou mais uma criança! Sou um homem! Tenho uns vinte anos! Como pode

ser isso? E essa farda de marinheiro? Meu Deus! Agora me lembro é a minha farda de oficial. Eu fui oficial da Marinha. Mas como posso ter passado de criança para homem?

- Não está lembrado que sua mãe disse que você iria mudar de corpo quando morresse?

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- É verdade! Ela não vai nem me reconhecer agora. Ela sempre falou que eu não devia temer a morte; que morrer é como viajar para um país melhor. Eu vou fazer uma surpresa para ela. Meu Deus, acho que ela vai tomar um susto.

O que aconteceu diante de nós foi uma modificação no perispírito de João. Um fenômeno inverso ao restringimento utilizado por ocasião do reencarne, ou seja, um alongamento levado a efeito através de regressão de memória e outras técnicas magnéticas. Já assistíramos aquele fenômeno em outras oportunidades, mas não esperávamos que se repetisse naquele instante. João estava pronto para enfrentar a nova vida e tinha merecimento para receber aquele tipo de ajuda. O perispírito, corpo plástico e de grande maleabilidade, sofre alterações mediante o pensamento do Espírito que nele se abriga, ou de um outro, que através de técnicas indutivas o leve a modificar-se segundo a sua vontade. Claro que essas modificações têm limites estabelecidos pelas leis naturais e cármicas, de onde se deduz que o pensamento e a vontade são seus agentes propulsores, facultando aos Espíritos, modelações perispirituais direcionadas para o abrigo da beleza ou o charco da degradação. Geralmente, as crianças crescem no plano espiritual, à semelhança das crianças do plano material, com o passar do tempo. Mas, às vezes, a depender da vontade do Espírito, ele prefere ficar um longo tempo como criança ou sair mais rapidamente desse estágio. Analisando cada caso, que deve obedecer ao merecimento, ao livre arbítrio e as conseqüências sempre favoráveis ao solicitante, os superiores tomam a decisão, embasada no crescimento espiritual do mesmo. Mais isso ainda não é tudo. Há Espíritos evoluídos que mantêm a aparência perispiritual de criança por séculos. Tal é o caso das crianças que acompanham Antônio de Pádua, que se apresentam trajadas humildemente, pés descalços, cabelos despenteados, e no entanto, ofuscam pela claridade celestial que detêm, e de Aníbal de Silas, jovem adolescente que, segundo Camilo Castelo Branco, em sua obra “Memórias de um Suicida”, foi um dos meninos que Jesus acariciou, quando pediu aos circunstantes: Deixai vir a mim as criancinhas, que delas é o Reino dos Céus. Silas é um dos mestres da Cidade Universitária descrita por Camilo, onde ministra os ensinamentos de Jesus, exatamente como os ouviu de suas pregações. O caso de João, era típico de débito aliviado. Resgatara suas dívidas, ou a parte mais pesada delas na encarnação da qual saíra, recebendo dos Espíritos superiores a dádiva da saúde. Feliz e surpreso com o acontecido disse-lhe:

- Agora você não precisa mais que o levemos a linha do horizonte. Você mesmo pode ir até lá.

- É verdade! Eu não sei o que dizer. Você precisa escrever isso em seus livros. A história de um menino tetraplégico que virou homem.

- Pode ficar certo João, de que eu escreverei a sua história. Quando cheguei em casa, comecei a cumprir a promessa feita. Liguei o computador

e nele vi o mar com suas ondas calmas e seu azul misterioso. Mergulhei em suas águas, pois a mente tudo pode, e disse para comigo mesmo: Noite azul, leve-me para o reino da poesia para que ela me guie a mão e me envolva a mente. E a noite, como um manto acolhedor, levou-me para o reino das palavras, aconselhando-me a volver o coração à infância. Toquei as teclas. As palavras foram se derramando como as ondas na areia e a história de João foi surgindo como um barco que se aproxima trazendo o vinho para celebrar a vitória da justiça.

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Dramas da guerra

As guerras, notadamente as duas últimas Grandes Guerras Mundiais, não deixaram somente o pesado lastro de mortos e feridos, com todos os dramas que lhes são afins. Transcendendo ao plano material, elas invadem o plano espiritual através do ódio e da vingança, exigindo dos trabalhadores do bem, incansável esforço de renúncia e de pacificação. Disseminando a violência, ultrapassam as fronteiras do túmulo sem o conhecimento dos homens, gerando outras guerras com desdobramentos calamitosos, elastecendo a permanência da dor nos dilacerados corações humanos.

A guerra, além de não trazer benefícios para nenhum dos seus envolvidos, desperta o que há de pior nos homens, que se atiram contra seus semelhantes, procurando varrer da Terra suas idéias, seus corpos, suas lembranças, seus Espíritos. Como os Espíritos são imortais e conservam suas individualidades, despidos da vestimenta carnal, reiniciam a batalha com armas mais sofisticadas, dando continuidade a seus instintos destrutivos.

Livre em sua plantação, o homem não poderá jamais liberar-se de suas colheitas, sendo chamado a qualquer tempo e hora para prestação de contas, mesmo que haja mudado de hábitos e de atitudes. Assim nos lembra um dos belíssimos “versos” de Jesus, contido em dos seus poemas sobre a justiça: A cada um será dado segundo as suas obras. Não há, portanto, lugar secreto ou inatingível, para o devedor da Lei. A mais longínqua cidade ou o mais profundo abismo são facilmente encontrados, pois ninguém foge de si mesmo, justamente por deter em si a mais severa das cobradoras e a mais vigilante das sentinelas da harmonia espiritual, a consciência.

Estava um dia no Centro Espírita onde trabalho, quando uma das médiuns procurou-me solicitando uma reunião de desobsessão específica, para um rapaz que chegara do Norte em busca de auxílio para sua dor. Ele era espírita, participante de reuniões mediúnicas, estudioso da Doutrina Consoladora e colaborador em diversas tarefas assistenciais. Após estudar a problemática do rapaz, fui a sua casa com alguns amigos a fim de conhecê-lo, aproveitando a ocasião para sondar o seu clima psíquico.

Ele que fora homem forte, estava magro e abatido. Seus corpo não absorvia as vitaminas nem as proteínas, agora eliminadas pela urina. Seus membros estavam inchados, mas seu humor, apesar de preocupado, era satisfatório. Os videntes confirmaram o assédio que ele sofria, descrevendo-o como vigiado dia e noite por Espíritos enlouquecidos de ódio. Seus centros de força, notadamente o gástrico e o esplênico, estavam bloqueados, com vórtices paralisados, apresentando forte coloração escura. Ele já padecera um mês entre exames e testes e não havia um diagnóstico definido.

Ao iniciarmos a reunião de desobsessão, o “serviço postal do além” nos informou que aquele caso era complexo e exigiria no mínimo três meses de persistente trabalho. Não desanimamos. As primeiras comunicações confirmaram a profundidade do drama. O rapaz fora médico nazista e comprometera-se demasiadamente em suas experiências. Era preciso atender de início aos enfermos que o perseguiam, aliviando assim a pressão que o prendia em círculo de dor. As catarses dos atendidos denunciavam a inclemência do terror nazista durante a guerra. Colocados em subterrâneos onde se encontrava o laboratório do jovem, os judeus eram utilizados como cobaias nas mais loucas experiências. O primeiro jovem

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atendido gritava de dor, como se uma corrente de lava percorresse seu corpo. Haviam injetado ácido em suas veias. Um outro, que passara por esquartejamento, tentava juntar os pedaços do seu corpo, segundo ele, espalhados sobre a mesa. Um terceiro fora submetido a congelamento lento, e outros, embrutecidos pela dor e pela vergonha, lamentavam ter engravidado as filhas para que o médico apreciasse os frutos dessas relações incestuosas. Um pobre Espírito que se via sem a pele, contou-nos que a retiraram para que fosse colocada sobre suas carnes nuas, uma pele sintética de cor branca.

A dor desses irmãos era tão profunda, suas cristalizações mentais tão severas, que materializavam em nosso local de trabalho o ambiente em que foram torturados. As cenas que os videntes nos descreviam ao final de cada reunião, eram simplesmente aterradoras.

Passada essa fase de resgates e de atendimentos aos enfermos, iniciamos a conversação com os perseguidores. Enquanto isso, fazíamos o Evangelho na residência do jovem, aplicávamos passes nas regiões afetadas do seu perispírito e utilizávamos largamente a fluidoterapia através da água. No primeiro dia em que fomos fazer o Evangelho em seu lar, dois médiuns nos advertiram que um brutamontes, um Espírito com a aparência de homem das cavernas, tentava impedir-nos a entrada. Ele atirou-se contra os médiuns causando-lhes fortes dores estomacais. Em nossa conversa com Joshua, vítima de experiências macabras, jovem que desencarnara aos vinte e três anos de idade, agora um dos líderes da perseguição implacável contra o ex-médico, este o chamou de “Lobo do Mato”, guardião do prisioneiro. Trazido à reunião o “Lobo do Mato” não conseguiu dizer uma única palavra, apenas emitiu urros.

Com a ajuda da mãe de Joshua e de outros Espíritos familiares das vítimas, fomos aos poucos vencendo a resistência dos líderes, que a bem da verdade, não eram Espíritos sanguinários, apenas vítimas, esquecidas que, em outra época, haviam sido algozes. A eficiente ajuda do Dr. Bezerra de Menezes nos possibilitou atingir-lhes os corações sofridos, introduzindo, segundo a janela que cada qual deixara abrir, um pequenino raio de luz, suficiente para afugentar as sombras deixadas pela vingança.

O mais tenaz perseguidor do jovem, impôs uma condição para deixá-lo, não em paz, pois quem faz o mal não pode ter paz, disse-nos, mas para afastar-se de sua presença. Queria que ele estivesse presente à reunião e lhe pedisse perdão pelo mal que houvera praticado. Observaria na ocasião, a sinceridade do pedido e, caso notasse realmente o arrependimento por parte dele, o liberaria.

Preparamo-nos todos para esse dia. O jovem, já mais fortalecido, diante da presença do seu perseguidor, pediu perdão de uma maneira tão emocionada, que alguns de nós fomos às lágrimas. Dr. Bezerra levou então aquele sofrido Espírito, agora mais aliviado pelo peso do ódio não mais comprimir seus ombros, deixando-nos felizes pelos três meses de trabalho bem sucedido.

Esse jovem amigo, cuja recuperação surpreendeu os médicos, continua a tarefa de esclarecer os Espíritos através do trabalho mediúnico. Compreendeu que a enfermidade chegou em seu corpo quando ele estava preparado para entendê-la e suportá-la. Que no trabalho renovador do Cristo ninguém caminha sem a ajuda e as bençãos do médico divino a quem serve. Que o amor de hoje, resgata os pecados do ontem.

Que ninguém se engane. Se o coração do homem é o cofre dos seus sentimentos, tanto mais pesado será, quanto mais distante do amor estiverem os seus valores. Um coração pesado exige sempre grande esforço de subida e larga parcela de suor para moldar-lhe a chave da libertação.

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Cidadão x

Cidadão x, pois nunca lhe perguntei o nome, e ele jamais o revelou, perseguiu-nos por quase três anos, ocasião em que colocávamos em prática o Projeto Evocações. Tal Projeto consistia na evocação de quarenta personalidades já desencarnadas, que de alguma maneira haviam obtido destaque na história do planeta.

Sob a supervisão do Dr. Bezerra de Menezes e sua equipe, batalhamos duro, cientes de que as entrevistas não eram as únicas façanhas desse trabalho. O resgate de Espíritos vinculados a alguns entrevistados, o aconselhamento aos opositores, que tudo fizeram para impedir a obra, a aprendizagem que a missão nos proporcionava, o nosso burilamento espiritual, de certa forma acelerado pela vigilância de severos detratores, eram igualmente tarefas inadiáveis naquela empreitada.

Cidadão x revelou seu ódio ao Projeto logo nos primeiros dias de nosso planejamento, no que empenhou todos os esforços para deter-nos a marcha, tramando mistificações, interferências, perseguições, em desesperado frenesi, como quem luta para deter uma cachoeira armado apenas de algumas peneiras. Ainda não havia aprendido que, se uma obra deve surgir no mundo por determinação do Senhor, não há impedimentos que a façam estagnar.

Nós o tratávamos com energia, jamais com ódio ou revide, e por tantas vezes conversarmos e ouvirmos suas ameaças, já conseguíamos prever as suas reações e desapontamentos, frente ao último mirabolante e fracassado golpe. Certa feita, ele chegou a confessar: Você é tão persistente quanto eu. Se não fosse pelo Projeto, poderia até sentir um pouco de admiração por você.

O que mais o irritava era a minha paciência ao tratar com a sua agressividade. Nunca lhe propus negociatas, não lhe pedia para atenuar suas investidas e jamais lhe recusei assistência. O trabalhador da seara mediúnica sabe que está sujeito a perseguições. A animosidade e a cólera que inflama os inimigos do Espiritismo são filhas do desespero e da impotência, armas letais, mas inóquas para sufocar tão virtuosa doutrina. Como a perseguição foi o batismo de fogo do Projeto, cabia-nos lembrar a palavra alentadora de Jesus: Bem-aventurados aqueles que sofrem perseguição por amor a justiça porque deles é o Reino dos Céus.

Se Jesus havia recomendado não temer aqueles que apenas podem matar o corpo, sendo impotentes para matar a alma, nosso comportamento não poderia ser acovardado ou intimidado por qualquer Espírito. Cabia-nos o testemunho firme e persistente no trabalho digno, confiando a Deus a nossa segurança, arma eficaz para afastar mais cedo ou mais tarde, qualquer obsessor.

Uma noite, quando estávamos em meio a reunião de desobsessão, ele apareceu com suas costumeiras ameaças. Disse saber que eu fora um jogador que lançara fora o dinheiro da família em passado remoto e que a médium pelo qual se comunicava havia praticado o suicidio. Ele próprio atuava em sua mente mostrando-lhe quadros do passado. Éramos todos, segundo a sua ótica, uma corja de vagabundos, devedores da Lei que queriam agora pousar de santos, ostentando auréolas de barro. Mas, surpreendentemente, quando ele se fizera mais agressivo, começou a gritar incomodado por uma visão situada fora do nosso alcance.

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- Não! Isso não! Por favor, isso não! Como vocês descobriram isso? Aqueles malditos me prometeram soterrar esse quadro da minha mente; que eu nunca mais iria lembrar dessa tragédia. Ela está me chamando! Não! Tirem essa imagem da minha frente! Eu faço o que vocês quiserem! Ceguem-me! Enlouqueçam-me! Eu quero ficar cego! Eu quero ficar louco!

- O que você está vendo? - A criança! Não quero vê-la! Eu a matei! Ela era filha daquele bastardo! Como

pode estar me chamando se eu a matei? Saia daqui! - Se você não for até ela, ela virá até você. - Não! Você não pode me amar! Eu a matei! Você não pode ser minha filha. É filha

daquele maldito! Você é só uma criança. Como pode me amar? - Ela é uma criança somente em aparência. É uma Espírito adulto que tomou essa

forma apenas para este encontro. Então, de repente, a criança que mantinha a forma infantil por vontade própria

condicionando o seu perispírito a mostrar-se pequeno e frágil, sob esse mesmo comando mental assumiu a figura de uma bela mulher. Cidadão x, caiu em prantos, assustado ante o fenômeno que presenciara.

- Não! Não pode ser! Você? Meu Deus, como pude matar a mulher que sempre amei? Que desgraçado que sou! Por favor, afaste-se de mim! Não me toque! Não sou digno de você! Meu Deus, que verme que eu sou! Destruí o que mais amava no mundo!

E começou a soluçar baixinho o nome da mulher. - Helena! Helena! Perdoe-me! Por favor, perdoe-me! Sei que não tenho o direito de

pedir isso. Que já não posso sonhar em ter o seu amor pois o manchei de sangue. Perdoe-me.

Estava quebrada a barreira de ódio que ele nutria contra si mesmo e que o fazia transferir sua raiva contra Deus e contra as obras que se voltavam para o alívio do sofrimento. Como ele sofria, em sua revolta espalhava um rastro de dor aonde passava, generalizando-a como moeda para todos os eventos humanos. Embrutecido pelo orgulho ferido, pisava tudo ao seu redor, como se o afago, o perdão e a amizade devessem ser combatidos, seguindo a inspiração de sua nova escala de valores. Como o sol derrete as geleiras, o amor derrete as camadas de mágoa e de indiferença. Se o contato com a luz dissipa as trevas, a aproximação do amor neutraliza o ódio. Como a luz afugenta as sombras, o amor adormece a revolta. Ninguém resiste ao amor por muito tempo. Foi essa a lição primordial de Helena.

- O que você está esperando? Levante-se e vá ao encontro dela! - Eu não tenho coragem! Prefiro fugir como um verme faz ao encontrar a luz! - Se você não for, ela virá! Ela esperou esta oportunidade por muito tempo. Acredito

que você também. Se perde-la agora, quando irá ter outra oportunidade novamente? Você suportaria mais um século de sofrimento, agora intensificado por saber que poderia estar com ela e a abandonou?

A sua situação íntima era de desespero. Vivia o drama profundo do crime que praticara contra o ser amado e estava indeciso diante da oferta do perdão e a necessidade de autopunição. Finalmente o bom senso venceu e ele atirou-se aos pés da mulher amada, chorando como uma criança frágil e medrosa a procura de abrigo. O amor, com suas mãos cariciosas e seus gestos aveludados, havia transformado em jardins os espaços pantanosos daquele coração. As sementes adormecidas sobre o solo bruto encontrariam agora condições para desabrochar. O pedido que Helena fizera ao Dr. Bezerra de Menezes fora

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atendido. A ovelha desgarrada voltava ao rebanho após dolorida tosquia. Repetia-se a história do filho ingrato que trocara a sensatez pelo orgulho, a fé em Deus pela revolta contra Ele.

Aquela meia hora, certamente foi para ele a mais linda do último século. Para nós a alegria foi imensa. Perdemos um opositor e ganhamos um amigo corroído pelo remorso.

Lá fora a noite estava pontilhada de estrelas bordando o azul celeste com bilhões de sois. O Grão de Mostarda, nossa casa espírita, já assistira a muitas batalhas como aquela. Sem dúvidas, ela continuará como um farol para os navegantes por muitos séculos ainda, a apontar o Espiritismo como o sal da terra, o abrigo na procela, o afago nas gélidas noites de inverno.

O homem sem braço

Logo no início da reunião mediúnica, ele foi visto sem o braço, caminhando de um lado para o outro, ansioso e angustiado. Como os dirigentes da reunião pelo lado “invisível” não conseguiram serená-lo, permitiram-lhe que se deslocasse pela sala, mesmo porque o ansioso precisa, de alguma maneira, liberar a tensão que o comprime e rouba energias que poderiam ser utilizadas no objetivo que traz em mente.

A máquina da fábrica em que trabalhava levara-lhe o braço. O trauma fora tão impiedoso que cristalizara em sua mente a idéia da perda de um membro vital, fazendo-o adentrar o túmulo com esse bloqueio a ser desfeito. Como o perispírito obedece a mente deixando-se por ela modelar, abordou as paisagens do plano espiritual sem o braço, pois desconhecia que ele próprio, educando a sua mente, poderia recompor essa parte faltosa, desde que tivesse condições para isso.

No presente estágio do planeta, em que o egoísmo vige e a ignorância se deleita confortavelmente em largas parcelas dos corações humanos, a perda significa para tantos equivocados, uma desgraça irreparável a ceifar-lhes o otimismo. A acomodação responde por largos danos que, imperceptivelmente, vão entravando o acesso aos caminhos mais fáceis da evolução. Por sua vez, a indiferença pelos valores morais, cultivada por homens cultos e iletrados, quando priorizam e elegem o imediatismo como barco de suas vidas, trata de solapar-lhes o restante das esperanças. Como cegos, caminham atrás de sonhos gasosos, tentando impedir que os ventos corram livres, sem a percepção de que melhor seria condicionar as velas de suas embarcações à linguagem da natureza, obtendo desses mesmos ventos a parceria para suas conquistas. Qual ovelhas assustadas, assistem ao temporal que ruge e correm às tontas lamentando a falta de referencias que não quiseram demarcar.

O homem tecnológico que ainda não aprendeu que tem um Espírito, que esse Espírito tem um corpo, parece tão aturdido frente a realidade espiritual quanto o homem das cavernas diante do eclipse lunar.

Nosso visitante estava ansioso demais. Disseram-lhe que ali ele poderia ter seu braço de volta e aquilo o deslumbrara ao mesmo tempo que o desnorteara.

Quando chegou sua vez de falar, ele quase me sufocou com exigências. Queria um braço a qualquer custo. Pediu por favor, pelo amor de Deus, pelo que eu mais amava, e não me deixou explicar o processo pelo qual ele poderia auxiliar-nos a recompor o seu braço.

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- Procure acalmar-se! Escute o que eu tenho a dizer-lhe. Ajude-me a ajudar você. Mas o homem continuava desesperado, com medo que os minutos passassem e ele

não tivesse a oportunidade de um retorno à sanidade. - Faça silêncio um instante! Procure ouvir a música que está no ar e mentalize o seu

braço perfeito. - Mas eu só consigo ver o meu braço amputado! Eu posso pensar no braço esquerdo

que é perfeito? - Pode! Acalme-se e pense no seu braço perfeito. - Mas, e se no lugar do meu braço direito for colocado o esquerdo que eu estou

pensando? - Pelo menos se acalme e escute a música. - Mas nessa aflição eu não posso escutar música nenhuma! - Olhe meu amigo! Não faça nada! Ou melhor, faça apenas silêncio para que

possamos orar e pedir a Deus pelo seu braço! - O senhor está zangado comigo? - Não! Estou querendo conseguir um meio de ajudá-lo, mas está me parecendo

difícil. - Desculpe-me! Eu vou fazer silêncio. Então pudemos orar. Fui pegando no braço do médium e dizendo ao comunicante

que estava, juntamente com os médicos, reconstruindo o seu braço. Ele foi sentindo um certo “formigamento” e, amedrontado, disse: Eu posso olhar? E se eu olhar e o braço não estiver aí?

Bati com uma forte palmada na palma da mão do médium e perguntei: Você sentiu a palmada? Senti, ele respondeu. Então abra os olhos e veja como é maravilhoso ter os braços normais, conclui.

- Meu Deus, eu tenho o braço que faltava. Mas ele não vai desaparecer mais, não é? Eu quero um lápis para escrever o meu nome. Eu quero cantar, bater palmas...

Toda a angústia represada libertou-se como um dique avariado. Ele apertava minhas mãos, olhava para as suas, sorria, chorava, escrevia, e recomeçava a seqüência de emoções descontroladas. Compreendi aquela atitude humana frente ao sofrimento. Para ele foi um milagre, para nós conhecimento, merecimento, solidariedade. Na verdade, Deus fala a linguagem do amor através do vocabulário da justiça. Explicar isso àquele homem em hora tão invulgar seria exigir demais do seu coração e da sua mente. De que adiantaria racionalizar o sentimento que ele sentia retirando dele a mágica do mistério que o apontava como filho amado de Deus, alvo de seu poder?

Despedi-me dele com carinho. De que vale ter liberdade se não temos liberdade para errar? Talvez este pensamento de Gandhi, tenha retratado o que senti naquele instante. Vontade que os homens errem cada vez menos.

Os sete punhais

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Alguns homens sem grandes valores espirituais, os únicos que lhes credenciam à tarefas maiores na evolução dos seus irmãos, costumam querer impressionar por nomes pomposos, por títulos que amedrontem ou causem admiração, como a querer suprir uma deficiência que sabem que possuem, em tentativa frustrada de afirmação no conceito popular. Um homem é o que traz em seu coração. Qualquer maquiagem ou camuflagem que ele imprima a si, fatalmente será descoberta com as primeiras chuvas de sua atuação.

O homem, pobre imortal, enquanto Espírito inferiorizado, costuma cultivar o orgulho de se achar grande, inflando o ego como um balão de gás, que arrebenta na ponta do primeiro espinho que a dor lhe prepara. Aquele que quer ser o maior, que seja o menor dentre vós, disse Jesus. A humildade, tom da orquestra divina, parece ser para alguns Espíritos uma pepita de ouro a ser encontrada, escondida sob toneladas de cascalhos. Somente quando muito trabalham e sofrem, acorrentados em lavoura estéril ou de poucos frutos azedos, é que decidem ser garimpeiros, e então, a encontram.

Qualquer pessoa que deseje o respeito e a admiração de seus irmãos deve iniciar pelo exercício do trabalho digno, da humildade sincera, da alegria de servir ao Senhor desinteressadamente. Os que assim procedem, não procuram nenhuma retribuição pelo que fazem. Neste caso, ocorre uma inversão no processo, pois é o respeito e a admiração que os encontram, é a gratidão que os acompanha, o amor que lhes faz festa.

Pois bem! O Espírito começou a sua argumentação dizendo: É bom que tenham cuidado comigo! Eu sou o Zeca dos sete punhais e já mandei muitos para o cemitério.

Ás vezes, não sei por quais cargas d’água, costumo brincar nas situações mais difíceis, como se o atípico fosse o rotineiro e a dinamite que está por perto fosse falsa. Estava em um desses dias, razão pela qual respondi: E eu sou o Luiz dos quatorze revólveres.

O homem pareceu assustar-se. Pensava naturalmente encontrar pessoas que tremessem ao seu rosnado, beatos que lhe falassem lacrimejantes do amor piedoso de Jesus, para depois implorar que ele não quebrasse os bancos da casa ou nossas espinhas.

- Você está brincando comigo? Eu nunca encontrei ninguém mais macho do que eu! - Nunca tinha encontrado! Agora achou! O homem ficou na dúvida se eu estava falando a verdade ou se estava blefando. Mas

naquele instante de indecisão eu penetrei suavizando a conversa. - Mas não estou aqui para medir forças com você. Sei que é valente e que precisa de

ajuda. Estou aqui para ajudá-lo. - É disso que eu estou precisando. Quero ajuda para me livrar de uns cabras que me

perseguem, mas você parece muito fracote para topar essa parada comigo. - Isso é porque você ainda não me viu em ação. Com a minha mágica posso mostrar

o passado das pessoas, fazer aparecer coisas onde elas não existem, esconder uma pessoa, de modo que ninguém a encontre.

- E como é que você faz isso? Eu sou um cabra ignorante, mas não sou burro! Se você disse, vai ter que provar!

- É o que vou fazer! Olhe para essa tela que está na sua frente. Eu vou fazer aparecer nela o instante em que você morreu.

- E quem foi que disse que eu morri? Acho que você é doido, e não, valente. - É? Pois olhe o que está aparecendo na tela. Parece que lhe pegaram de jeito! O homem foi ficando admirado. Via o instante da sua morte e começou a sentir as

perfurações feitas em seu corpo físico, cujas lembranças materializavam em seu perispírito os mesmos estigmas.

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- Como você fez isso? Quer dizer que aqueles canalhas me pegaram e agora os que eu matei estão atrás de mim?

- Não, se você quiser ficar conosco. Essa é a ajuda que eu posso lhe prestar. Nós abandonamos as armas, essa vida de briga que só leva à cadeia ou ao cemitério e começamos uma vida nova.

- Mas, e se eles me encontrarem sem os meus punhais? Como vou me defender? - Não vão lhe encontrar. Os homens aqui presentes vão conseguir um lugar distante

e escondido para essa nova vida. - O convite é bom. Eu já estava mesmo cansado de tanta briga. Sendo assim vou lhe

entregar os meus punhais. Talvez seja bom deixá-los escondidos para uma necessidade. - Não. Vou faze-los desaparecer com a minha mágica. Não vamos mais precisar

deles. Então o homem pôs os punhais sobre a mesa e saiu acompanhado de um dos

guardas da casa. Não precisaria mais daquele nome que, de alguma forma, era um escudo contra investidas à sua integridade. Dali para o futuro seria apenas Zeca e canalizaria as suas energias para o trabalho. Ás vezes, a violência é apenas uma casca que esconde a carência de afeto. Deus ama infinitamente a todos os seus filhos, mas esse afeto não é notado, pela falta de sensibilidade dos homens. Os insensíveis colocam Deus em um patamar tão inatingível que se tornam cegos a essa ternura que os rodeia. Mas Deus é insistente. Cedo ou tarde todos abandonarão os punhais e suas armas serão as flores.

Está escrito: O céu e a Terra passarão, mas as minhas palavras permanecerão.

Animal estranho

Não restam dúvidas de que o ser humano é um animal bastante estranho. Define-se como um ser social mas tolera com dificuldade a convivência entre os seus iguais. Necessita de pouca comida para viver mas costuma armazenar em celeiros, grandes quantidades de alimento. Vive estressado, engendrando planos para acumular bens materiais e diz que não é egoísta, apenas previdente. Mata seus semelhantes em guerras inúteis e, mesmo em tempos de calmaria onde a situação de conflito ou de competição ameaçando-lhe a sobrevivência não existe, não cessa de agredir. Polui as águas, o solo, o ar, e consequentemente, o coração com sonhos que o atormentam e vive clamando paz.

Todavia, os animais, pelos humanos chamados de irracionais, não se cansam de ministrar preciosas lições de sabedoria àqueles que se dizem racionais. Da fraternidade sem máculas até os rigores da fidelidade, os exemplos florescem incessantes, mostrando as vantagens em se buscar o bem e o belo.

E por que lembrei disso nessa manhã de outubro? Por causa de uma pergunta boba, e ao mesmo tempo incômoda para a minha consciência, que um aluno me fez na comemoração do dia da criança, na escola onde trabalho. Que animal você gostaria de ser?, foi a tal pergunta. Essas adoráveis criaturas, as crianças, possuem o dom de mexer com nossas emoções mais íntimas, e o que é melhor, inconscientemente. Digo adoráveis enquanto angelicais, pois têm o mau hábito de

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crescerem e, em sua grande maioria, deixar no passado o comportamento singelo, espontâneo e sem maldade que as adornam.

Pensei por alguns instantes e respondi: um elefante! Ainda bem que ela não insistiu em saber as razões da minha escolha por este animal invulgar. Creio que ela não entenderia minhas palavras, porque eu mesmo, às vezes, não as entendo.

Na cabeça de muitas pessoas, o verbo pedir assume um significado natural no relacionamento com os amigos do espaço, tratando-os como procuradores para suas exigências descabidas, decepcionando-se quando não são atendidas em suas pretensões. Tais pessoas chegam ao Centro Espírita movidas por interesses materiais e insistem que os trabalhadores que ali se exercitam na fraternidade lhes faculte todos os recursos disponíveis para barrar o curso do seu melodrama. Julgam que seria possível e justo que se evocassem serviçais desencarnados para, a troco de lentilhas, “resolver o seu problema”. Em suas mentes empanadas, o obreiro espírita deveria entediar-se com seus problemas, sempre maiores que os das outras pessoas, escutar-lhes as queixas e lacrimejar com a novela que declamam. Deveria dizer, estou aqui, a cada tropeço delas, e suprir-lhes a respiração ofegante a cada cansaço.

Não me enquadro neste esquema de mordomias, tão a gosto de tantos amigos. Noto mesmo, que grande parte da humanidade desenvolveu apenas um sentimento de tolerância para com o outro, devido interesses inconfessáveis que alimenta. Costumo fugir de lugares onde as pessoas gostam de transferir para outros ombros obrigações que são suas. Não me sinto bem, até mesmo escutando preces que, no fundo, são verdadeiras exigências a Deus, ordens, ultimatos para mudar o curso do rio no qual alguém navega. Ficar em minha casa estudando, passou a ser, nestes últimos anos, uma maneira de falar comigo mesmo, com os passarinhos que me visitam, com as folhas de papel nas quais gravo meus pensamentos. Há dias em que ficar sozinho é uma necessidade imperiosa para o meu Espírito. Preciso ouvir o silêncio, olhar para o céu, o sol, a lua, a vida, com minhas próprias reflexões. Há noites em que a minha dor precisa ser só minha e a alegria que brota dos meus poros é filha da minha solidão. São dias tão férteis, de tantos frutos, de tanto entendimento comigo mesmo, que me sinto melhor quando volto à rotina que me é imposta. Egoísmo? Não diria assim, de vez que tenho sede de fraternidade real e de amizades desinteressadas. Meus momentos de solidão tornaram-me mais compreensivo diante de tanta insensatez existente no mundo. Saio deles reconhecendo-me igual a todos que me cercam, contudo, inadaptado a eles, porque no íntimo, gostaria de ser diferente deles.

Mas que isso tem a ver com o elefante? Certamente não é pelo marfim de suas presas nem pela majestade de sua tromba, tão parecida com o “beicinho” das pessoas magoadas quando julgam não serem objetos de uma pomposa atenção. Muito menos pela minha memória cheia de lacunas ou minhas orelhas, que não são tão espetaculares em tamanho quanto muitas que vejo por aí. É que o elefante encara com dignidade a solidão. Para ele a solidão em determinados instantes é ponto de honra. Quando pressente que está próxima a hora de sua morte, não se sente bem, compartilhando sua dor. Não quer publicidade nem platéia na hora extrema que o dilacera. Quando a vida está fugindo, ele poupa os companheiros da incômoda presença das lágrimas, dos suspiros traumáticos, dos pesadelos que os mais jovens teriam frente àquele instante de fragilidade, da baba sanguinolenta e dos suores gélidos. Opta por deixar para todos uma imagem forte, guerreira, imponente

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como uma rocha do Sinai. Prefere a dignidade da solidão onde confidencia a seu deus os desejos finais de uma existência heróica.

Isso não significa que o elefante seja desprovido de espírito de companheirismo nem que ele não valorize sua família. Muito menos eu. Pelo contrário. Ele a ama tanto que a poupa das visões fantasmagóricas da morte. Não se sente com o direito de ser um agente de desarmonia para os demais com seus instantes sofridos. Sai furtivamente do bando, olha as colinas, o verde que parece mais verde devido as lentes de suas lágrimas, caminha com a imponência de um sabre e cai rotundo como uma árvore abatida por um raio.

A criança não entenderia este comportamento. Por isso o concluí sozinho em minha cama em conversa comigo.

Algumas pessoas gostam de ficar sozinhas em determinados momentos. Que seus familiares não se preocupem em demasia com tal fato, se estão certos de que é um hábito saudável. Precisamos de diálogos e monólogos conosco para repassar as águas que banham nosso Espírito. Precisamos aprofundar, diagnosticar, concordar ou discordar de nós próprios em análise sobre o nosso desempenho. A solidão nem sempre é uma fera. Às vezes é anjo, guia para descobrimentos, escape para as neuroses do dia. E se ela vem acompanhada da prece, de uma música suave, das visões verdejantes que a meditação propicia, deixa de ser um hábito para tornar-se necessidade vital para a harmonização do ser. Não nos esqueçamos de que o Espírito precisa do combustível da prece, do silêncio para escutar a voz de Deus lembrando-lhe os compromissos assumidos no ontem.

Com tais conselhos não estou tentando induzir ninguém à clausura ou ao afastamento dos seres amados. Lembro que Jesus tinha seus instantes de oração a sós, nos quais armazenava forças para os embates que O aguardavam. Que devemos ser bravos na dor. É sempre útil lembrar que o outro, o nosso próximo, também precisa levar a sua cruz, e se passarmos a metade do peso da nossa para ele, acabará sobrecarregado com cruz e meia. O homem que ajudou Jesus a carregar o peso do madeiro que lhe vergava a espinha não foi solicitado por Ele. Mesmo no auge do sofrimento, no limite de suas forças físicas, pedia auxílio ao Pai, e Este movimentava recursos no sentido de superar as dificuldades reinantes. Jesus respeitou o livre arbítrio do povo que deveria decidir por si mesmo se o ajudaria ou não. O homem que o ajudou a carregar a cruz atendeu a uma ordem irrecusável dos soldados romanos. Seu ato não foi espontâneo como deve ser o sentimento que nos impulsiona a utilizar nossas reservas de força em amparo aos que julgamos necessitados. Ele foi forçado a auxiliar, de vez que teve seu livre arbítrio violentado pela força das armas. Não sejamos passivos diante da dor alheia pois temos deveres fraternos para com todo o planeta. Igualmente não tentemos levar a cruz de quem lhe compete carregar. Auxiliemo-lo conforme nossas possibilidades. Utilizemos a medida da caridade tão bem expressa por Jesus ao dizer: Vinde a mim todos vós que estais aflitos e sobrecarregados e eu vos aliviarei. Ele não prometeu levar a cruz de ninguém, obrigação intransferível de cada habitante deste mundo. Aquele que quiser salvar a sua vida negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.

Em nome da caridade não devemos alimentar a ociosidade, o capricho e o comodismo que determinadas pessoas mascaram de necessidade. Os bons Espíritos preferem auxiliar-nos em nossa luta titânica para vencer o orgulho, a vaidade, o egoísmo, o ciúme e tantas outras mazelas que enfermam nossa alma. Foi em

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momentos de solidão, analisando a mim mesmo, que fui descobrindo estas verdades. Centro Espírita é arena de lutas. O próprio Espírito traz em si a maior de todas as batalhas. A intransferível peleja para vencer a si mesmo. Ou muito me engano, ou este será o grande tema para o milênio que se inicia.

Creio que, a minha predileção pela imagem do elefante, que não é o animal estranho a que o título se refere, estranho é o homem, adquiriu maior consistência no terreno da exigência de um intervalo para a solidão.

O carrasco

Pela segunda vez aquela mulher carregada de ódio contra os assaltantes que mataram a ela e a seu filho nos visitava através do abençoado concurso da mediunidade. Seu problema era demasiadamente complexo para ser concluído com uma simples conversa. Todavia, destacava-se dentre os problemas que a afligiam, uma revolta contra todos que a tentassem desistir de perseguir e levar à morte os seus algozes, difícil de ser domada.

O que lhe fizeram, ela até poderia esquecer e seguir adiante, disse-nos, mas a seu filho, o ser que ela mais amava no mundo, não havia outra alternativa que não a vingança. Ela o criara para ser o seu melhor amigo. Depositara nele todas as esperanças de felicidade, e veio a maldade humana e o trucidou com uma violência incompreensível e desnecessária.

Ás vezes, o amor e o ódio compartilham do mesmo espaço cardíaco humano, gerando tal ambivalência, uma arritmia no sistema nervoso que o deixa em frangalhos, pois tal alternância de humor continuada é incompatível com as mais elementares regras de saúde física ou mental.

Quando ela se referia ao filho mostrava toda a solicitude maternal que a fizera mãe devota. Mas ao lembrar que alguém assassinara este mesmo filho, sua face tornava-se dura, e as deformações que o ódio costuma impor a quem o cultiva, modelava suas feições com tiques nervosos e tremores ansiosos.

Qual o drama que envolvia mãe e filho marcados por dores tão rudes? A cristalização mental que ela portava não a permitia nenhum retorno espontâneo ao passado cuja causa determinara aquele desfecho pungente. Uma regressão de memória talvez nos encaminhasse a uma solução. Iniciamos a magnetização através de passes e de orações, e aos poucos, ela foi mergulhando no passado: Não! Não! Esse maldito que me tirou a vida. Não quero vê-lo. Guilhotina maldita! - Você foi decapitada pela guilhotina?

- Sim! Esse mascarado me tirou a vida com aquela lâmina. Eu o odeio. Nunca consegui esquecê-lo. Tenho tentado encontrá-lo todos esses anos para vingar-me. Agora que estou perto dele estou com medo de ver o seu rosto.

- Por que você tem medo de ver o seu rosto? - Não sei! Algo me diz que não devo levantar aquele capuz. É o rosto de um

assassino. - Acho que ele vai tirar o capuz para que você o veja.

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- Não! Não! Meu filho, não! Eu amo meu filho! Ele não pode ser esse assassino!

A mulher se contorcia, chorava, batia sobre a mesa, lamentava. - Não pode ser você, meu filho! Mas era. A sabedoria divina entregara nas mãos daquela mulher um filhinho

indefeso para que ela o amamentasse e o amasse. E aquele filho fora o carrasco que a mandara para a guilhotina. O choque de ondas em sua mente, qual camadas atmosféricas em atrito, deveria gerar, pensei, um furacão devastador. Contudo, a mulher pareceu desmoronar com a revelação, passando a chorar baixinho, como se estivesse sussurrando. Antes, como uma vagão desgovernado não poupava qualquer anteparo. Agora desacelerava, recolhia os ferros, arquejava em gemido abafado.

O carrasco odiado era o seu filho. O mesmo que fora vitimado por malfeitores com profundo golpe na garganta. A dor, estranha dor que impôs silêncio aos ímpetos do ódio, curvou-lhe a cerviz e retirou-lhe a falsa lógica do revide. A imagem do filho associada ao inimigo detestado gerou severo bloqueio à agressividade, mostrando o ódio como o amor pelo avesso e a vingança como razão desnorteada. Sem forças, ela confessou: Eu já estava mesmo cansada de tanto ódio! Quem sabe se eu não venha a sorrir de novo? A julgar pela reação dela, o amor maternal sufocou o ódio infernal, e os demônios que trazia foram exorcizados.

Os caminhos que Deus utiliza para pacificar corações magoados podem parecer estranhos à ortodoxia de algumas religiões, mas são eficientes e lógicos.

- Amo demais o meu filho para apegar-me a um detalhe da história. Antes estávamos em lados opostos. Agora somos família.

A taça de revolta da mulher foi esvaziando aos poucos sem que eu interrompesse sua catarse. Deixei que a poesia que nasce com o amor maternal lançasse ao espaço, através de seus aríetes, os últimos pedregulhos do castelo da revolta. Alma mais leve, ela ainda falou baixinho: Acho que agora posso me aproximar de Deus novamente sem ter que baixar a cabeça de vergonha. Mas vou fazer isso devagar.

- Que seja! Mas caminhe com seu filho. O som de dois corações que se amam chega mais rápido as regiões celestiais.

Ainda conversamos um pouco. Os tremores das mãos estavam serenando, a máscara de ódio se desfazia e a taquicardia era domada. Em dado momento, ficamos sem saber o que dizer um ao outro, apenas sentindo a mágica da noite. Foi quando ela disse: Estou tão leve que penso que poderia voar. Se conseguir, diga-me se a noite está azul, respondi. Então, com um “sempre vai estar” ela despediu-se com seus projetos de reconstrução.

O tempo da consciência

Certa feita, uma aluna disse-me que eu era um cara chato por querer tudo na hora certa. Iniciar a aula sempre às treze horas e concluí-la invariavelmente às

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dezessete, era um dos meus piores defeitos. Bem que eu poderia começar um pouco mais tarde e terminar um pouco mais cedo, como faz a maioria dos brasileiros.

Perguntei se ela desaprovava a lua, que tem fases constantes a cada sete dias, as marés, as estações, o passeio solar, a hora que tem sempre sessenta minutos, as estrelas que surgem a cada noite, o cometa Halley que volta à Terra a cada setenta e seis anos...

Um pouco encabulada pela observação que lhe revelara o caráter imaturo no setor da responsabilidade individual, ela completou: Pois é! Esse é o seu segundo defeito mais grave. Tem sempre uma resposta pronta para tudo, com um agravante. Faz com que a gente se sinta culpada pelas tolices que diz.

Estava em minha rede pensando em eventos passados, e como tal obrigação, a necessidade de ser pontual, me pareceu útil para qualquer situação, resolvi desenvolver o tema para os amigos da casa espírita.

O problema do aproveitamento do tempo é um dos mais graves obstáculos à evolução. Deságua em mergulho profundo nas prioridades que cada pessoa elege para a sua vida. Os que pensam que estão no mundo, em férias, planejam para os seus minutos toda a alegria do mundo. Como a procuram onde verdadeiramente ela não está, passado o tempo da diversão, chega o tempo da desilusão, e é então que se descobrem vazios, lesados, traídos pela incompetência de gerir o tempo. Os preguiçosos procuram burlar o tempo deitando-se em berços flácidos, engendrando planos fantasiosos nos quais outros trabalhem e produzam para sustentar a ociosidade que cultivam. Passado o tempo da inércia, correm desiludidos aos pés dos santos a pedir favores, mais tempo, esquecidos de que a lei que o rege é inflexível e sem retorno. Assim são todos os que tentam lesar o tempo, até que descobrem que só existe um tempo real regendo toda a gama de tempos fictícios. O TEMPO DA CONSCIÊNCIA.

Esse tempo não permite que o relógio da vida se atrase. Corre firme, tenaz, fiel ao futuro que o espera. Aquele que o observa e o segue, está montado em cavalo alado, pairando acima do vale de lágrimas que atravessa e as lanças pontiagudas dos desejos incongruentes não o atinge. Os que não respeitam a majestade do tempo da consciência, demoram-se no vale dos arrependidos, hospedam-se na taverna dos desvalidos, hibernam nas cavernas do medo sob a luz mortiça do sentimento de culpa.

O tempo de permanência no planeta é relativo à sabedoria das escolhas que cada pessoa faz. Egoísmo, tempo longo. Desprendimento, tempo breve. Orgulho, tempo instável. Humildade, tempo calmo.

O relógio de cada pessoa pode ter ponteiros céleres ou chumbados, e o futuro ser tão distante quanto queira. Conhecemos muito do caráter de uma pessoa pela maneira como ela administra o seu tempo. Não nos esqueçamos de que o tempo traça o nosso perfil e o calendário, as nossas grades ou nossa aeronave.

Dito isto, voltemos à ciranda da vida.

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As dunas do Mucuripe

Os dias que se seguem ao dia de finados são sempre de muito trabalho para os Espíritos que resgatam enfermos nos cemitérios. Como muitas pessoas acorrem a esta última morada terrena nesta data em homenagem aos “mortos” e lá fazem suas preces, ativando lembranças e saudades, é natural que a população desencarnada, igualmente, lá se aglomere, em tentativa de dialogar com os seus amados.

Invariavelmente, e faço esta constatação há muitos anos, a reunião de desobsessão nestes dias se resume em atendimento a Espíritos resgatados nos cemitérios, sob as mais bizarras situações. Os trabalhadores de Jesus, conscientes da necessidade de amparo a tantos desencarnados em alienação nestes locais, a eles se dirigem em caravanas, recolhendo-os para que sejam conscientizados de sua situação, situados no tempo e no espaço, amparados em seus sofrimentos, como inspira a doutrina ensinada pelo mestre que, para todos os sofredores, ficou conhecido como o meigo rabi da Galiléia

Comparece a tais reuniões trazidos pelas santas mãos da caridade, aquele que assistiu ao apodrecimento do seu corpo sentindo as picadas dos vermes, sem poder desligar-se dessa visão macabra; o seviciado por entidades maldosas que o escravizou; o que acordou dentro do caixão portando sinais de sufocação; o que traz o corpo coberto por areia e vestimenta rota; o desnorteado que já não sabe quem é, pois perdeu a memória e vagava entre as tumbas como um zumbi.

A gama dos assistidos nestes dias é ampla e variada, razão pela qual o Centro Espírita jamais deve fechar suas portas nesta época liberando em férias seus trabalhadores. Sabemos que o sofrimento não dá tréguas ao mundo neste estágio em que nos situamos. Por outro lado, desconhecemos por completo entre os bons Espíritos, e por que não dizer, entre os maus também, pois combatem o bem incansavelmente, o privilégio de férias para descanso estéril, aposentadorias, licenças para turismo, pontos facultativos e similares, como se a dor pudesse parar de doer enquanto o médico ou o enfermeiro descansa em seu tranqüilo desespero. Eu trabalho e meu Pai trabalha sem cessar, disse Jesus. Até o dia de sua morte, Jesus foi o exemplo maior de como o cristão deve comportar-se frente ao tempo que escorre inexorável. Mesmo sendo judeu, trabalhava aos sábados, pois entendia que todos os dias são oportunidades para se fazer o bem.

Estávamos em meio à reunião do dia três de novembro, um dia após finados, quando uma menina, Rita, disse-nos depois, adentrou o salão sob a guarda de um dos nossos lanceiros.

- Mãe! Apague essas velas, eu estou aqui. Por que você não me responde? E o Rafa? Cadê o Rafa? Mãe, não precisa acender essa vela. Você só fica rezando e não me escuta. O homem da máquina não teve culpa. Ele não me viu. Eu estava brincando nas dunas e ele não me viu. Quero que você saiba disso.

- Quer dizer que você estava brincando nas dunas e a máquina atingiu você?- Foi. Eu ainda estou cheia de areia. Tem areia até nos meus ouvidos. Mas ele não

teve culpa. Ele não me viu. - Eu sei Rita. ( Ela já havia dito o seu nome ). Mas onde ficam essas dunas? - No Mucuripe. Eu morro perto do mar. Eu adoro o mar e as dunas. - Você estudava? - Estudava, mas estava atrasada. Eu fazia o primeiro ano.

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- Já sabia ler? - Eu sabia juntar as letras e lia muito pouco. Mas onde está o Rafa? - Todos estão bem em sua casa, Rita. Agora precisamos cuidar de você. Vamos lhe

arranjar uma roupa nova e leva-la à escola. - Para onde eu vou tem mar e dunas? - Tem. Acho que seus professores podem visitar o mar junto com você. - Meu pai era pescador. Era o mar que dava nossa comida. - Muitos amigos de Jesus eram pescadores. Agora nossos amigos irão leva-la para

sua nova casa. Quando tiver um tempo irei visitá-la. - Se o senhor encontrar minha mãe pode dizer para ela que eu estou bem? - Claro. Você mesma vai dizer isso daqui a alguns dias. E Rita se foi com nossos instrutores para uma nova vida. Certamente a

encontraremos logo mais na escola, junto a outras crianças que continuarão a crescer e a aprender as maravilhas da ciência, da arte, da filosofia e da religião.

Rita foi um toque suave em meio a tantos atendimentos traumáticos daquele dia. Foi pescada por pescadores de alma que laboram no grande mar da caridade.

Deve haver um lugar com dunas e mar no plano espiritual. Um lugar onde as máquinas fiquem à distância e guiadores desavisados não cometam a imprudência de soterrar crianças. Um lugar onde Rita possa deslizar duna abaixo sobre um papelão ou rolar como um pneu até tocar as águas claras e serenas do mar. Se houver, esforçar-me-ei para viver essa aventura deliciosa com ela e outras crianças. Não sei o que Rita dirá na descida, mas eu já preparei o meu grito de guerra: Segura Peão!

O retorno de Jesus

Conversando com velho amigo, médico e protestante, sobre os tumultuados dias atuais, ele me confidenciou: Isso tudo vai se acalmar com a volta de Jesus à Terra, evento aliás, em vias de consumação.

Acostumado a uma sadia discussão, não me furtei ao desejo de aprofundar o empolgante tema, de vez que precisamos realmente de um milagre para que as práticas econômicas, sociais, políticas... do planeta se moralizem, adotando a ética como norteadora de suas ações.

Vejamos a situação, disse-me ele: Existe uma nova Roma querendo dominar o mundo. Esta opressora chama-se Estados Unidos, e impõe a todos, diretrizes altamente escravizantes. Como a antiga, seu César faz carrear recursos do mundo inteiro, tanto de países onde ela promove espoliação quanto de outros que influencia com suas idéias pegajosas. Há guerras e rumores de guerras. Centenas de religiões e seitas disputam a posse da verdade, no que se digladiam e deturpam a imagem e o pensamento divinos. Escravos, famintos, miseráveis se avolumam às margens da abundância de poucos que, insensíveis a dor e ao sofrimento de milhões, amontoam ouro e púrpura. A lista de variedades de crimes e violações aos direitos sagrados de crianças, trabalhadores,

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mulheres, índios, negros e outras categorias marginalizadas nunca foi tão extensa. Governantes e magistrados mancham com a desonra as leis que deveriam zelar e respeitar.

Como aquela lista iria longe, procurei interromper, impaciente por imprimir objetividade a nossa conversa: E o que o faz pensar que este é o momento ideal para a volta de Jesus? Não estaria Ele conosco em Espírito e Verdade?

- Está. Mas Ele deve voltar em corpo físico para testemunhar sua doutrina e ressuscitar os mortos.

Essa estória de após a morte o Espírito ficar dormindo até que Jesus venha para acordá-lo, não encontra encaixe em minha cabeça. Fico pensando na situação de determinado Espírito que desencarnou há trezentos anos atrás, quando a Revolução Francesa ainda não acontecera. Com o avanço científico que temos hoje, basta um ano sem estudo para desatualizar qualquer profissional. Como se ajustaria esse Espírito se o seu pensamento está no passado, portanto, deslocado do tempo e do espaço atuais, sem entender o contexto, inimaginável para ele, da era tecnológica? Além do mais, já conversei com inúmeros Espíritos decepcionados com a espera junto a seus despojos, que se cansaram dela, ficando revoltados contra os líderes religiosos que lhes incutiram tais idéias na mente.

Após o jantar, olhando algumas estrelas derramadas no manto azulado com que Deus nos cobre as cabeças, aproveitei para meditar um pouco nas idéias daquele amigo. Apaguei a luz do quarto, inundei o ambiente com suave melodia e esperei as idéias.

Não deixa de ser interessante como algumas pessoas desenvolvem o raciocínio em determinadas áreas do conhecimento e anulam o senso crítico em outras. A lei de evolução obriga a que todos os seres vivos avancem diuturnamente para a “perfeição”. Mesmo na pedra há o bailado de átomos que são seguidos por seus elétrons. Nos abismos mais tenebrosos há movimentos. O fundo do mar, onde muitos julgavam haver apenas escuridão e morte, está repleto de vida. Em qualquer recanto do universo o acurado espírito investigativo vai detectar ondulações, oscilações, ritmos e danças desconhecidas por nossos parcos recursos sensoriais. Por que apenas o Espírito que passou por uma mudança de plano haveria de ficar inerte por tempo indeterminado? Se o Espírito sopra onde quer e vai aonde quer, por que seria prisioneiro do tempo qual bactéria esporulada?

Meu velho amigo, precisava de pensamentos bem concretos, exemplos chocantes para se sobrepor a cristalização mental de determinadas teorias. Então o coloquei mentalmente em minha frente para um diálogo e imaginei o que ele diria frente aos meus argumentos. Certamente haveria ocasião de confrontar o que a minha imaginação engendrara, com a realidade presente em seu Espírito. O amanhã me diria a verdade.

- Se Jesus viesse hoje e fosse para uma casa espírita o que vocês protestantes diriam?

- Certamente que não seria o verdadeiro Jesus, pois este jamais iria a um lugar onde se pratica abominações.

- E que tipo de abominação a casa espírita comete? - Faz intercâmbio com os mortos. Isso é um pecado aos olhos de Deus. - E Jesus não conversou com os mortos, de vez que Moisés e Elias haviam morrido

há séculos e vieram dialogar com Ele? No quadro metal que criei, aquela observação “mexeu” um pouco com os seus

brios, pois ele ficou pensativo por alguns instantes, no que aproveitei para reabastecer a fogueira que acendera.

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- E se Jesus visitasse apenas templos católicos? O que vocês protestantes diriam Dele?

- Que era falso pois que usara de exclusividade em suas pregações fomentando a separação entre os povos.

- O que você acha que todos diriam de todos se Jesus apenas visitasse os budistas ou os muçulmanos?

- Acho que Ele seria taxado de mistificador pelas demais religiões que não visitasse. Acho mesmo que seria crucificado novamente.

- Você considera Jesus um bom referencial para a nossa aprendizagem? - Claro. Principalmente porque soube aliar sua lições à prática, mesmo nos

momentos mais difíceis. - Então por que Ele não ficou dormindo após a sua morte? Ou será que essa

sonolência só começou a dominar os mortos após a visita de Jesus entre nós? - Não sei lhe responder. - Você acredita que para alguém “se salvar” basta crer em Jesus? - Foi isso que aprendi de meus pais e é isso que eu passo para os meus filhos. - Acredita que O Novo Testamento traz os ensinamentos de Jesus em sua íntegra? - Acredito na Bíblia que leio, pois ela não foi adulterada através de traduções.. - Está escrito nela que a cada um é dado segundo as suas obras, ou seja, o mérito

que cada um terá no reino dos céus será proporcional as suas realizações no bem? - Está. - Então como você justificará para seus filhos a salvação se eles não realizarem boas

obras? - Parece-me que quem aceita Jesus tem a obrigação de praticar boas obras. - E é isso que você vê entre os seus irmãos? - Infelizmente não. Mas essa discussão está ficando enfadonha. - Tem razão. Você não conseguirá responder-me adequadamente às questões

vinculadas as exigências modernas quanto a justificação pela fé, conceito fundamental de sua doutrina. Sem o claro entendimento acerca deste assunto, onde encontrará segurança para falar-me do além-túmulo?

Interrompi a conversa, que na realidade era comigo mesmo e, semanas após, a reproduzimos, desta vez frente a frente, quase na íntegra, em animado diálogo. A minha decepção ficou por conta da conclusão que meu velho amigo, autoritariamente e com boa pitada de infantilidade imprimiu à conversa: Deus é o dono do universo e o governa do jeito que quer, sem precisar prestar contas com ninguém. A maneira que Ele encontrou para falar aos homens foi através da Bíblia e é ela o meu guia. Como nenhum de nós conseguirá convencer o outro a mudar de religião, paremos por aqui e preservemos nossa amizade.

E assim fizemos. Parei minhas perturbadoras indagações e ele escondeu seus angustiantes contorcionismos mentais utilizados na tentativa de explicar o óbvio relacionamento entre o Espírito e o seu Criador.

Quem sabe se essa trégua não dure apenas até nos encontrarmos em pleno cenário do além túmulo?

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O oráculo de Delfos

Conversando com uma amiga sobre comunicações espirituais, ela me relatou ter lido que, em várias culturas do passado, acreditava-se na comunicação com os mortos e na reencarnação. Existiam até locais específicos, disse-me ela, onde se podia perguntar a alguém de “plantão”, sobre a problemática da dor, madrasta cruel que ainda hoje não poupa nem mesmo crianças indefesas. E concluiu: será que você já ouviu falar alguma coisa a respeito? Aproveitei o recreio para lembrar-lhe que na velha Grécia existiam oráculos, santuários onde jovens com capacidade de interagir com o mundo invisível comentavam o passado, analisavam o presente e revelavam o futuro, exercendo o mediunismo, na maioria das vezes, com absoluta fidelidade. O mais famoso oráculo grego situava-se em Delfos. Ali a pitonisa, a quem hoje chamaríamos de médium, caía em transe, e penetrava nos intrincados problemas do destino, revelando informações que deixavam atônitos aos que a consultavam.

Uma consulta que ficou famosa foi feita pelo embaixador de Creso, rei da Lídia, o qual sentia-se incomodado pela possibilidade de Ciro, rei dos persas, tomar-lhe o império. Ao saber que Ciro estava pilhando o mundo mediterrâneo, Creso enviou embaixadores a vários impérios, com a finalidade de consultar seus oráculos através da seguinte pergunta: O que o rei está fazendo neste momento? Logicamente, ele determinou o momento, respeitando-se os fusos horários, em que os oráculos seriam abordados. Ao mesmo tempo, preparava-se para a invasão inevitável que Ciro já organizava visando apoderar-se dos tesouros, fonte de cobiça de grande parte dos governantes terrenos. Seis dias depois, Creso começou a ouvir os embaixadores que retornavam de suas missões. Ao anotar a resposta dos primeiros, cresceu-lhe o desapontamento. Seguiram-se respostas equivocadas, certamente oriundas de mistificadores e de farsantes. Quando a cidade fora tomada pelo desencanto e o rei pela decepção, eis que retorna da longínqua Grécia o embaixador que estivera em Delfos. Constrangido, este rotulou a resposta que a pitonisa lhe dera de amarga e decepcionante. Ela afirmara: estou no palácio real. Vejo que o rei colocou para coser em uma panela de cobre, as carnes de um cordeiro novo e de uma tartaruga velha. Pôs sobre elas ervas aromáticas, o cheiro forte que sai pelos orifícios da panela me deixa embriagada. E mais: posso dizer que a cidade tombará sob as forças do invasor cujo exército é superior.

Depois de escutar as palavras do oráculo, de ver o rosto apreensivo do seu embaixador, Creso tomou-se de ânimo e disse: Esse é um oráculo verdadeiro! Só nos resta preparar-nos para a luta, pois em nossas mãos e em nossa coragem estão a sorte da nossa cidade.

Meses depois Ciro invadiu o palácio de Creso após deixar um rastro de destruição por onde passava, e já estava no jardim esmagando os últimos focos de resistência, quando Creso sobe a um patamar para melhor observar a luta que se desenrolava selvagem e odienta. Ele estava encostado a uma janela de madeira, e seu filho, surdo e mudo, escondera-se atrás de uma cortina, de modo que podia ver o pai de costas e a porta de entrada. Em dado momento, um soldado entrou de lança em punho, e ia atirá-la, quando o rapaz, sabendo que seu pai ia morrer, dominado por estranho entorpecimento faz um esforço sobrehumano e grita: Não mate! Ele é o rei! O soldado vacilou, o rei movimentou-se esquivando-se da arma, e teve a sua vida salva por essa ocorrência inusitada que passou

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à história como a primeira experiência científica sobre a veracidade dos fenômenos paranormais.

Minha amiga adorou essa história e perguntou: Sabe outra dessas? Para surpresa dela eu sabia outras duas e não tive como furtar-me a narração. Fiz aquele clima de mistério, assumi o ar grave de quem vai buscar em um outro mundo os dados de que precisa e recomecei: Felipe II, rei da Macedônia, organizou o mais temido exército de sua época. Ele utilizou em suas conquistas a “falange macedônica”, composição militar baseada numa antiga formação grega: a falange era o centro do exército e compunha-se de uma massa compacta de 4096 hoplitas distribuídos em 16 fileiras de 256 homens. Cada soldado levava uma lança de seis metros, de maneira que as lanças da sexta fila avançavam um metro adiante dos homens da primeira. A falange era uma fortaleza viva que bailava, girava em todas as direções, matando e ferindo sem se deixar alcançar pelo inimigo. Quando Felipe soube que sua mulher estava grávida, foi consultar o oráculo de Delfos para saber o destino daquele ou daquela que lhe herdaria o império. A resposta o deixou entusiasmado e feliz: Seu filho, pois é um menino, será um príncipe invencível. Nenhum inimigo humano poderá abate-lo e ele conquistará todo o mundo conhecido, reunindo-o em um só império. Quando Alexandre, nome que recebeu, fez treze anos, Felipe II convidou Aristóteles, considerado o homem mais sábio da Grécia, para ensinar-lhe os rudimentos das ciências e da moral. A essa época, Alexandre era quase um alcoólatra, treinava lutas com os generais e seu divertimento predileto era domar cavalos bravios. Alexandre aceitou o seu professor e o tratou como a um pai, absorvendo dele o respeito pela cultura grega. Apesar de macedônico, Alexandre tinha uma mentalidade tipicamente grega. Ao fazer vinte anos, seu pai é assassinado na festa de casamento da filha. Tebas, aliada a Atenas, aproveitando a pouca idade do jovem general tentou rebelar-se contra o jugo macedônico. Alexandre caiu sobre elas com todo o peso de seu temperamento indomável. Destrui Tebas deixando de pé apenas a casa do poeta Píndaro, a quem admirava, e alguns templos. Com relação a Atenas, foi mais generoso, pois respeitava a sua projeção intelectual. A partir de então ele empreendeu todos os seus esforços para realizar o sonho do seu pai, a conquista do império persa. Mas ele foi mais além. Promoveu a helenização do oriente, foi coroado “rei do mundo” e “filho de Amon”. E para que se cumprisse fielmente a profecia do oráculo, morreu de febre, aos 33 anos, vencido por um mosquito, pois força humana nenhuma o deteve.

Minha amiga estava maravilhada com as histórias do oráculo de Delfos. Você não as está inventando, não é? Perguntou-me. Não! Esses fatos, como tantos outros foram registrados pela história. Mas e o terceiro? Insistiu ainda, deveras impressionada com aquele assunto. Não titubeei: Sócrates, considerado o pai da filosofia, costumava dialogar com seu demônio. Chamava-se demônio àquela época, anjos e espíritos quaisquer, que espontaneamente ou evocados, comunicavam-se com alguém. Sócrates tinha a aptidão de dialogar com os mortos, hoje chamada de mediunidade, e certamente obteve desse anjo protetor os mais sábios ensinamentos sobre a vida no além, posto que sua doutrina assemelha-se a cristã, sendo ele considerado precursor do Cristianismo e do Espiritismo. Pois bem. Certa feita perguntaram ao oráculo de Delfos, qual o homem mais sábio da Grécia. Então foram a ele e lhe disseram: Indagamos do oráculo quem era o homem mais sábio da Grécia. Sabe o que ele nos respondeu? Sei, disse o filósofo. Eu! Pois sou o único que sei que nada sei.

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Minha velha amiga sorriu daquelas histórias, como a querer saber como eu guardava tantas curiosidades em minha cabeça. Não tive tempo para responder. A sirene anunciava o final do recreio e o começo de uma nova aula. Aquilo ficaria para uma outra oportunidade.

Caça ao camaleão

As pessoas que desconhecem o que as esperam após a morte física, um mundo repleto de trabalho, estudo e movimento, podem considerar exagero, ficção ou história fantástica alguns relatos que estudiosos espíritas escrevem. Mas as que se adentram pelos meandros do exercício disciplinado da mediunidade, que passam anos, décadas na companhia de seus amigos espirituais trabalhando ativamente na consolidação do Reino de Deus na Terra, sabem que as surpresas se sucedem à medida que se tornam confiáveis e assíduas.

À proporção que o trabalhador mediúnico se aprimora recebe como prêmio tarefas cada vez mais complexas que lhe ampliam os horizontes culturais e morais, no que se credencia como auxiliar da seara de Jesus, no ainda acanhado campo da caridade.

Começamos a reunião de desobsessão com um aviso de uma das médiuns, desdobrada em plena mata:

- Agora sei a razão de ter sonhado seguidamente com florestas. Estive em treinamento durante toda a semana a fim de participar dessa operação de resgate, qual seja, a captura de um Espírito a que os guerreiros chamam de camaleão. Estou com Tibiriçá ( chefe indígena ) e seus bravos, um grupo de aproximadamente vinte guerreiros que organizam essa captura. A movimentação aqui é intensa. O cenário é de fazer medo. O terreno é pantanoso e sob a lama vejo cadáveres esquartejados. O chefe guerreiro explica que este Espírito é muito escorregadio. Ele sabe camuflar-se como ninguém, imitando os animais dessa região. Enquanto encarnado, a semelhança de um louco, matava as pessoas e decepava-lhe a cabeça guardando-a como troféu, depois lançava seus restos nesses pântanos. Vivia como um animal, agia como um deles e sentia-se bem ao ver o sangue de suas vítimas escorrer entre suas mãos. Ao desencarnar, continuou nesses sítios, influenciado, obsidiando e vampirizando pessoas, mantendo os antigos gestos macabros.

Os guerreiros fazem seus rituais de batalha o que inclui pinturas no corpo e gestos que invocam a proteção de Deus, em combate. Tibiriçá passa um pouco de lama em meu rosto. Penso que preciso integrar-me ao cenário, aplicando-me aos rigores da milenar arte da camuflagem. A ordem é prender o camaleão a qualquer custo e os guerreiros preparam uma armadilha utilizando-me como isca. O cerco está armado. Tibiriçá tira do ombro uma rede semelhante a uma rede de pesca, e posta-se em vigilância. Se eu me debater, o que penso que ocorrerá, você deverá segurar firmemente em meus braços, pois o Espírito tudo tentará para evadir-se, o que certamente fará com que eu perca um pouco o controle sobre o meu corpo.

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A própria médium começou a contagem regressiva: seis, cinco, quatro, três, dois, um, e deu tremendo salto da cadeira exigindo toda a nossa força e perícia para não machucá-la.

O camaleão caíra na rede e debatia-se como um tigre entre silvos, rugidos e guinchos. O que estava na rede mudava de comportamento e de tática tentando em vão libertar-se. Não se ouvia uma só palavra, mas reação descontrolada e feroz.

- Acabou camaleão! Seja qual for o animal que você esteja imitando, daqui você não sairá mais.

Quando ele já estava seguro os guerreiros colocaram-lhe uma mordaça, no que passamos a ouvir apenas as respirações ofegantes da médium e a tolher seus movimentos. Mais alguns instantes e o camaleão foi levado para receber assistência por parte dos Espíritos amigos.

A médium ficou exausta. Não sei se haveria um médium que não esperneasse naquela situação. Mesmo um toureiro acostumado, despende muito esforço para pegar um touro a unha.

Na semana seguinte, após a prece inicial, a mesma médium avisa-nos: - Estou fora do corpo. Ao meu lado estão, Tibiriça, Francisco e o Camaleão

fortemente amarado. Ele muda de aspecto continuamente. Penso até que ele faz isso sem pensar, como se fosse algo automático que ele tivesse incorporado ao seu comportamento. Francisco diz que a comunicação será um pouco truncada. Você deverá tratá-lo por Aroldo, pois este é o nome que lhe deram em sua última encarnação.

Após alguns instantes, Aroldo começou entre roncos e silvos, a dizer algumas palavras.

- Sangue! Eu quero sangue! Saia daqui mulher! Por que você está chorando? Saia daqui!

Pelo lado espiritual Francisco o doutrinava. - As lágrimas purificam. Lágrimas quebram algemas. Lágrimas salvam. A cada excesso que cometia tentado evadir-se ou exceder-se em palavras indevidas,

ele sentia choques fortíssimos, no que a médium contorcia-se e esticava-se sobre a cadeira, demonstrando severo incômodo. Iniciei o diálogo sem meias palavras.

- Fale normalmente. Você não é um animal. - Animal! Era assim que eles me chamavam, sabia? - Por que você odeia tanto as pessoas a ponto de esquartejá-las? - Por que elas não prestam. Nunca conheci uma que prestasse! - E seus pais? Amigos, irmãos, mulher, filhos, nunca lhe demonstraram carinho? - Meu pai! Não me fale daquele miserável! Eu não quero lembrar isso! À medida que lhe aplicávamos passes e orávamos, ele foi retornando à infância

infeliz na qual estava o terrível drama que o infelicitara e o tornara louco, um psicopata, um animal, como era chamado. Passados alguns instantes, ele mergulhou de vez no passado, revivendo o trauma em toda a sua extensão.

- Não pai! De novo, não! Eu não quero! ... Com ele, não! Ele é muito pequeno! Não faça isso! Meu Deus, ele cortou a cabeça de minha mãe!

Entre lágrimas de dor e de ódio ele deixou transparecer o quanto fora sofrida a sua infância, violentado sexualmente, ele e seu irmão menor, pelo próprio pai. Este, assassinou sua mulher na frente das crianças e colocou sua cabeça dentro de uma tigela. Julgamos conveniente omitir o relato de Aroldo por ser traumático demais para o leitor.

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A primeira pessoa que ele matou foi o pai. Daí em diante não parou mais de matar. Pareceu-mos mais enfermo que mau, mais necessitado de tratamento que de punição. E não há como negar que centenas de crianças caem na marginalidade devido a violência a que são submetidas, o que é pior, dentro do próprio lar. Se ele tivesse tido a oportunidade de freqüentar uma boa escola, ser acolhido em um lar digno e honesto, talvez não tivesse destino tão cruel nem aplicaria à sociedade castigo tão severo.

Na terceira semana, Aroldo continuava terrivelmente inquieto. A regressão de memória avivara-lhe os dramas, traumas e conflitos, o que de certa forma, o tornara mais rebelde. O ódio que sentia pela espécie humana era algo assustador. Isso era o que deixava transparecer para quem o observasse ou o julgasse pela aparência. Contudo, Francisco já conseguira progressos, pois em meio aos impropérios que verbalizava, Aroldo demonstrava certa dubiedade. Arrefecia para logo depois recrudescer em suas agressões. Quando isso acontece, o coração que aparenta ser de pedra, abre frinchas para o entendimento. A ambivalência que o acometia iniciara seus heróicos esforços no sentido de aceitar aquele frade que o tratava com extremado carinho, instrumento único capaz de converter progressivamente o ódio cáustico em pacificação.

Ninguém resiste ao carinho por muito tempo. Ninguém tem antídoto contra a caridade. Francisco, que sempre atuou nessa linha e sempre acreditou nessas verdades, aprofundava sua atuação tentando arrancar aquele irmão embrutecido das garras da animalidade. Do ódio direcionado, Aroldo passara para a ambivalência com relação ao frade. Às vezes dizia a seu benfeitor: Eu o odeio! Passado alguns instantes, implorava: Deixe-me voltar para o meu pântano! Eu nada tenho contra você. Eu não o odeio. Por favor, liberte-me!

Como ninguém passa do ódio para o amor em um passe de mágica mas através de argumentos sólidos que mostrem as vantagens do segundo e a inconsistência do primeiro, admitíamos como processo natural aquele comportamento intermediário entre a doença e a cura, a sandice e a lucidez.

- Quero meus dentes de volta! Por que você retirou minhas garras? Eu preciso delas! Eu quero sangue! Não vê que aquele pântano é a minha vida?

- Aquele pântano é a sua infelicidade. Ninguém pode ser feliz em meio a lama e o sangue.

- Mas eu sou! Odeio essa sociedade de hipócritas e de assassinos que vocês construíram.

- Você conhece apenas uma parte dela. A parte mais triste e dolorosa. - O que você está fazendo? Não! Não me desamarre! Você é louco? Sabe o que eu

posso fazer com você? - Você não fará nada contra nós. Não somos seus inimigos. Só um louco maltrata as

mãos que o amparam. - Mas eu sou um louco! Com os passes que aplicamos, ele voltou a adormecer. O trabalho estava longe de

ser concluído. Todavia, ele poderia ser feito no plano espiritual, durante o nosso sono físico, com a orientação dos Espíritos que nos dirigem.

Mais uma semana e Francisco nos mostrou Aroldo. Ele tinha os cabelos longos e o rosto afilado de um jovem de dezoito anos. Na sua luta para esquecer o drama que o infelicitara fugira para dentro de si mesmo, tornando-se indiferente a tudo que o cercava. A luta agora era para retirá-lo da espécie de autismo a que se condenara. O frade o tratava com imenso carinho, como se faz a um filho muito amado.

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Quinze dias passados e Aroldo voltou à reunião. A médium que lhe serviu de instrumento passara o dia sentindo-se pequena, como se tivesse voltado à forma infantil. Acompanhavam este sintoma, outros como a sensação de pavor, a revolta surda, o desejo de matar e de gritar por socorro. São suas palavras, proferidas antes da comunicação: Aroldo está pequeno como uma criança. Seu corpo apresenta-se mole como uma geleia e sua cabeça parece querer explodir sob a pressão de pensamentos conflitantes. Quando a comunicação se fez, notamos o quanto era grave o seu estado. Estava na alça de mira de dezenas de perseguidores que a todo custo queriam torturá-lo. Pelo rosto da médium pude ver a extensão dos seus sofrimentos: Não, pai! De novo, não! Não faça isso comigo! Não mate minha mãe! Socorro! Eles querem me pegar! Tire-me daqui! Por mais que eu tentasse acalma-lo ele parecia não me ouvir, perdido em seu próprio pesadelo. Aplicamos passes calmantes sobre suas agonias, conseguindo faze-lo adormecer. De imediato, outra médium assume a palavra acusando-nos de esconder assassinos. Era um dos perseguidores que ali estava para a reclamada vingança.

- Boa noite, amigo. Estávamos mesmo lhe esperando para tentar ajudá-lo. - Ajudar-me? Não sabia que você era humorista. Até então pensava que apenas

escondia assassinos. Ele é meu, entendeu? Meu! Chegou a vez da cobrança. Ele não consegue mais se esconder como um camaleão. Agora nós somos os caçadores e estamos aqui para reclamarmos a presa.

- Que mérito há em se lutar contra uma criança doente e enlouquecida? Não seria melhor deixar que a Lei se cumpra e que ela lave com o sofrimento os crimes que cometeu?

- Não! Ele deve a mim. Esse desgraçado matou a minha família. Cortou a cabeça da minha mulher, tomou o sangue das minhas duas filhas, depois as esquartejou em minha presença. Eu fui o último a morrer.

- Você amava as suas filhas? - Claro que as amava. Está me acusando de irresponsável? - Não. Só estava pensando, como uma pai que ama mulher e filhas, as deixa

sozinhas para sair atrás de alguém que diz odiar. - Diz odiar, não. Eu o odeio com todas as minhas forças. E não abandonei minha

família. Depois de me vingar desse assassino eu a irei procurar. - E quanto tempo vai durar essa vingança? E depois da sua vingança não será a vez

dele já que ninguém consegue matar um Espírito? E se suas filhas estiverem a sua procura? E se estiverem perdidas procurando um pai que as trocou por uma vingança?

- Eu amo minha família. Jamais a deixaria. Você está colocando coisas na minha cabeça para que eu amoleça e não vá mais atrás desse maldito.

- Estou apenas tentando reunir uma família que está sofrendo com a separação. Aquele era o ponto vulnerável. Quando o doutrinador o encontra tem grandes

chances de auxiliar os envolvidos no drama. Agradecido a Deus pela inspiração recebida aprofundei minha argumentação tentando retirar dos escombros do ódio o diamante raro do amor paterno. Voltei à carga: Sei que você não é uma pessoa má. É apenas um homem sofrido. Um pai que sente saudades das filhas e da esposa.

- Alexandra, minha filha, onde está você? A essa altura os passes que lhe dávamos e a prece silenciosa do grupo começavam a

gerar efeito desagregador sobre o ódio. Como os primeiros raios de sol vai aos poucos expulsando a neblina, os fluidos benéficos com os quais o envolvíamos foi retirando a fuligem que enegrecia o seu perispírito.

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- Sei onde suas filhas estão. Se acalmar-se um pouco, posso mostrar-lhe nessa tela a sua frente como elas estão ansiosas por encontrá-lo.

- Isso é mentira sua. Não acredito no que está dizendo. Interrompi o diálogo, ampliei o som da música suave que preenchia o ambiente,

coloquei as mãos sobre sua cabeça externando todo o pequeno amor que eu já conseguira acumular em trinta anos de doutrinador e pedi a Jesus amparo para aquele pai. O sofrimento de um pai, mesmo em um coração duro que apenas observe a cena, é capaz de fagulhas de solidariedade. Deixe-me incendiar. Então, e tais momentos já me emocionara centenas de vezes, ele começou a ver as filhas e a mulher que o chamavam.

- Essas flores, pendões de trigo, o que é isso? Como vocês me tiraram de lá? Meu Deus, é ela! São elas! Minhas filhinhas! Estão me chamando...

- E o que você está esperando que não vai ao encontro delas? - Eu não consigo dar um passo. Meus pés estão colados ao chão. Minhas filhas!

Como elas estão lindas. Por que não consigo mover-me? - É que você precisa ir ao encontro delas esquecendo o passado. O ódio o deixou

chumbado ao chão e você não consegue mover-se. Só poderá abraçar sua família se perdoar o que lhe fizeram.

- Eu não posso! Como vou conseguir perdoar a quem me tirou tudo na vida? - Deus está lhe devolvendo tudo o que é seu. Só não pode é perdoar por você. Como

voltar para a família e ser feliz carregando tamanha carga tóxica de ódio? - Não sei! Filha! Meu Deus, ela está me chamando! O que eu faço? Ajude-me meu

Deus! - Deus ajuda a quem se ajuda. Que há com você, homem? Está diante de sua

família, você a ama e é amado por ela, tem a chance de ser feliz e está trocando tudo isso por ódio e vingança? Quando acha que vai ter outra chance de reencontrá-la? Daqui a um século, dois?

- Mas o que eu sinto é muito forte. Tenho medo de não conseguir esquecer. - Nada é mais forte que o amor. Se você ama realmente a sua família esse amor será

capaz de apagar todo o ódio que lhe atormenta. Além do mais, olhe para seu algoz. Está enlouquecido. Sua mente parou no tempo em que foi violentado pelo pai. O pensamento dos seus inimigos o atingem e transformam seu perispírito em corpo disforme e gelatinoso. Em breve reencarnará autista em família que não o ama. Que vantagem há em atacar alguém que por si mesmo sente-se destruído? Não será ele mais digno de piedade que de ódio.

- Chega! Chega! Eu quero esquecê-lo! Meu Deus ajude-me a esquecer! Então ele conseguiu dar o primeiro passo ao encontro de sua família. A médium

tinha o rosto banhado em lágrimas, dela própria e dele, pois que também ele chorara naquele momento de suprema beleza. A decisão de perdoar ou de esquecer, mostrara seu perispírito, antes envolto em sombras, com alguma luminosidade, que aumentava a proporção que se aproximava do grupo familiar que o aguardava. Foi uma reunião emocionante. Bela como as orquídeas ou as tulipas. Aroldo continuava em sua cristalização mental. Criança alienada, sofredora, sozinha, pois dificilmente escutava a nossa voz. Parecia-nos um botão de rosa que fora tratado a fogo, pisado, e descartado impiedosamente. Uma criança violentada é uma agressão à paz futura. Uma violência cometida contra uma criança é quase sempre uma mancha vermelha no peito de alguém, anos mais tarde.

Conscientizemo-nos de que, enquanto a criança não tiver um tratamento realmente humano, uma escola cujos profissionais se preocupem com a sua formação moral e

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intelectual, a sociedade não lhe preparar o ingresso no trabalho sem escravizar-lhe as mãos ou roubar-lhe o suor, os “doutores da lei” e os “marajás da economia” não colocarem ao lado de seus teoremas e postulados um pouco de amor ao próximo, estarão na contramão da estrada evolutiva, a introduzir na sociedade mais camaleões.

Não pensem os que detêm o poder temporal, muitos deles camaleões ao melhor estilo, que conseguirão burlar as incorruptíveis leis de causa e efeito, permanecendo em berço esplêndido a espera da morte, simplesmente, porque ela não existe.

Por maior que seja a nossa camuflagem, um dia uma rede nos apanha. E quando isso acontece, a única saída é prestar contas com a Lei. Inútil alegar desconhecimento. Há um lembrete bastante visível na consciência, que diz: A NINGUÉM É DADO DESCONHECER A LEI.

Acorrentada na médium

A mulher iniciou a conversa, melhor dizendo, a discussão, pois disse estar ali para brigar, dirigindo-me alguns insultos leves, pois palavras mais ácidas são bloqueadas pelos medianeiros já experientes.

- O que você quer comigo? Pensa que eu vou me render a sua fala melosa de hipócrita? Ainda não conseguiu ver que a gente só muda quando quer?

- É verdade. Quando a gente cansa de sofrer, quando o ódio queima as flores ao nosso redor deixando somente a terra seca é que ansiamos pela água da renovação.

- Você sabe que eu quero ficar naquele motel. Eu gosto de lá. Toda a minha vida, passei em ambientes assim. Não adianta você querer me tirar de lá porque eu não sei fazer outra coisa.

- Entendo. Mas não consegui ainda descobrir por que você está tão zangada, se não lhe agredimos.

- O que? Acha pouco retirar-me do local onde eu estava e acorrentar-me uma semana a esta beata? A mulher só fala em Evangelho. Durante o dia é trabalho. No trabalho, é preciso tratar bem as pessoas. Nem sequer provocar uma briga, que é o meu forte, ela permite. De noite, lá vem ela com reunião. Qualquer coisinha, é reunião. Vai gostar de reunião assim na ...

- Cuidado com o que você vai dizer! - O que você quer de mim? Diga! Eu não agüento mais ficar do lado dessa mulher.

Já são sete dias de sofrimento. A chateação maior foi domingo, quando ela foi para um almoço oferecido àqueles meninos feridentos e cheios de ramela nos olhos.

- Acho que você está exagerando. As crianças não tinham tanta remela assim e nem todas tinham feridas.

- Diz isso porque não estava lá. Tinham feridas na cabeça, entre os dedos, fediam e tinham ramela nos olhos.

- E vendo tantas crianças necessitadas, você não lembrou em nada de sua infância? - Eu? Você é doido? O que é ruim a gente esquece! Imagina se eu ia lembrar da

minha infância, de pais que não tive, que fui criada nas ruas. Só quero lembrar o que é bom. O resto que exploda.

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Mas, diferentemente do que falava, ela ligara as crianças à sua infância e tinha medo de capitular a essas lembranças.

- Sabe por que está conosco esta noite? - Não. Só quero lhe pedir pelo amor..., por tudo que você ama, que me solte. Eu

faço o que você pedir. Eu sei o que é ser fiel. Pode pedir o que quiser que eu faço. - Você ia dizer, “pelo amor de Deus”! Por que não disse? Tem medo de falar o

nome de Deus? - Não é medo. Apenas acho que não sou digna de pronunciar este nome. - Mas Jesus, que falava em nome de Deus, disse que veio justamente para os

pecadores e doentes como nós, posto que os saudáveis não precisam de médicos. - As vezes penso em pedir alguma coisa, mas vem logo aquele pensamento de que

nunca fiz por merecer. - Você está aqui hoje para ouvir uma proposta de crescimento para o seu Espírito.

Estou autorizado a lhe oferecer um trabalho honesto para que possa deixar esse caminho que tem trilhado.

- E o que tenho que fazer em troca? Não acredito em boas intenções. Se você está me oferecendo um emprego, alguma coisa deve estar querendo em troca.

- Tem razão. Quero que você o desempenhe com o máximo de honestidade e carinho.

- Olhe moço, sou uma mulher escolada nesses assuntos. Encurtemos a conversa. Diga logo o que quer e eu vejo o que posso fazer.

- O que você sabe fazer? Lavar, cozinhar, cuidar de jardins? - Nada disso. Sei cuidar de homem. Foi isso que fiz a vida inteira. - Não acredito. Todo mundo sabe fazer alguma coisa. Até um bicho aprende a fazer

algo de útil. - Já que você falou de bichos, eu sei cuidar deles. Mas só me dou bem com eles

porque eles não falam. - Muito bem. Então agora podemos fazer a nossa troca. - O que? Sabia que tinha alguma coisa por trás dessa esmola! - Você vai cuidar dos bichos e eu retiro a corrente da sua perna. Mas vai me

prometer uma coisa: não maltratar os animais. - Você é doido? Acha que eu vou fazer mal a um bicho? Os pobres já não falam e

ainda sofrer maus tratos? - Estamos assim combinados, Teresa. Esse era o seu nome. Daqui a mês irei visitá-

la para ver como estão os animais. - Como estou empenhando a minha palavra, você vai perder seu tempo se for em

busca de trabalho mal feito. Então eu me levantei, fui até a perna da médium e fiz um gesto como quem quebra

uma corrente. Em seguida, conclui nossa conversa : Você está livre, Teresa. Sente-se ali naquele banco, que o dono dos animais vai lhe explicar como será o seu trabalho.

Ainda ouvi um breve, obrigada, antes do término da comunicação. Ao final da reunião, nos comentários que fazemos acerca das comunicações, enfatizamos a necessidade da vigilância e da oração, de vez que, além da nuvem de testemunhas que nos cercam, pode ocorrer ainda termos de carregar um hóspede atrelado a nossa intimidade, em tudo nos observando.

Estava certo de que a médium, em estado de vigília, desconhecia tal fato, pois deve ser constrangedor para qualquer pessoa saber-se amarrada a alguém por semanas ou meses,

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partilhando do seu hálito metal, de suas conversas e necessidades. Mas isso não é um evento comum e os bons Espíritos só fazem uso desse expediente quando estão absolutamente convencidos de que o procedimento é seguro para os envolvidos.

Pode parecer ao leitor que uma mulher que vivera tantos anos na prostituição haja se rendido com facilidade, com apenas uma conversa, a outro tipo de vida. Mas ela já estava cansada daquela vida de sofrimento. Em seu íntimo desejava mudar de vida, pois em sã consciência, ninguém é feliz escravizando-se aos vícios e aos desejos alheios. No mais, as crianças que receberam um almoço da “Mansão do Caminho” haviam feito a sua parte, abrir uma fresta naquele coração aparentemente endurecido.

Não existe antídoto contra o amor, por isso Deus é inatacável. A mulher tinha sede de amor verdadeiro, desses que ainda nutria pelos animais. Os humanos sempre a tinham tratado com indiferença e maldade, vivera entre feras e, por necessidade de sobrevivência, tornara-se também uma delas.

O doutrinador precisa estar atento a essas nuanças, aprender a distinguir a ignorância, da maldade, a sede camuflada, da revolta obstinada, a carência de afeto, da agressão gratuita. Disse a Teresa que colocasse água com açúcar para os beija-flores. Estes certamente a visitariam todos os dias. Disse também que olhasse para o céu, pois o azul acalma e nos faz lembrar de Deus. Despedi-me dela com um carinho diferente, com a certeza absoluta de que fizera um bom trabalho. Acho que era a mesma alegria do pastor que, tendo cem ovelhas, perde uma e depois a recupera. Fechei o portão do “Grão de Mostarda”, nosso velho Centro Espírita, como sempre o fiz, olhando o céu estrelado. Estava tão azul quanto o manto de Nossa Senhora. Era assim que meu pai falava enquanto encarnado. E é assim que também penso quando observo o azul sobre nossas cabeças.

Da corte para a favela

A mulher iniciou a conversa comigo, cheia de ódio pelo marido que a tinha abandonado. Queria a todo custo encontrá-lo e matá-lo, pois o que ele fizera, abandoná-la e aos filhos na fome e na miséria, somente um ser imprestável o faria. Segundo seu relato, ela já matara a mulher que com ela competira pela posse do marido, mas faltava ele, o vagabundo, o canalha, o porco que desprezara seis filhos e a deixara esfolando as mãos num tanque com roupas sujas. Deixei-a esvaziar por alguns instantes o cálice de vinagre que trazia e quando a vi acalmar-se um pouco, perguntei:

- Como é o seu nome? - Maria. - Gosto desse nome. É o nome da mãe de Jesus. É a mãe de todas as mães que

sofrem para criar seus filhos. - É. Mas com esse bico doce não pense que vai me convencer a não me vingar

daquele covarde. - Não. Não estava nem pensando nisso. Tentava entender como o sofrimento faz

com que esqueçamos as verdades mais claras da nossa vida.

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- Fale de uma maneira que eu entenda. Eu não tenho escola. Tenho apenas um barraco na favela. Está vendo essas manchas aqui? ( A mulher apontou para as mãos ). São ferimentos do sabão. Ganhei todos eles trabalhando para sustentar meus filhos. Aí, vem um vagabundo que deveria prover o sustento deles e me trai. Não! Eu preciso saber onde ele está escondido, para matá-lo.

- Maria, você acredita que existe um Deus? - Eu sei lá se Ele existe. Não acredito mais nisso. Se Ele existe, como pode deixar

que crianças passem fome? Que uma mulher honesta, que passou a vida inteira trabalhando, morra a míngua por causa de um safado que a desprezou?

- Mas vamos admitir por um momento que Ele exista, que seja bom, justo. Será que iria permitir que você sofresse sem merecimento?

- A sua história é igual a desse frade que está perto de você. Fala de coisas que eu não entendo, de uma tal reencarnação.

- O que ele quis dizer, é que voltamos muitas vezes ao mundo. A gente nasce, cresce, morre, depois nasce novamente... Em cada uma dessas voltas fazemos coisas de que nos orgulhamos, se são boas, ou nos entristecemos quando más.

- Eu não entendo isso. Só tive a vida da favela. Só fiz coisas boas para meus filhos. - Com exceção de ter matado uma mulher e querer matar um homem. - E eu não tenho esse direito? Ele não nos matou de fome aos poucos? - Ninguém tem direito de matar um semelhante. Você não está interessada em saber

porque sofreu tanto? - Eu já sei a causa. Fui pobre, sem instrução, traída, abandonada. - Não por Deus. Ele jamais nos abandona. E é a Ele que vamos recorrer para

sabermos o motivo pelo qual você sofreu tanto na Terra. - Como você vai fazer isso? Perguntando a Ele? - Exatamente! Vamos orar e pedir que Ele nos mostre de maneira clara as ações

passadas que deram origem aos efeitos de hoje. Então a mulher, após a magnetização pela qual passou, assumiu ares principescos e,

gesticulando excessivamente, ordenou: - Vamos, passe esse óleo em meus braços. Preciso estar linda para logo mais a noite. - O que vai haver a noite? - Uma festa na corte. Quero ver todos me bajulando, rastejando aos meus pés como

sempre fazem. - Você é muito bonita? - Não está vendo? Ninguém tem pele mais sedosa na corte portuguesa. Os homens

ficam loucos quando lhes dirijo simples olhares. - Se é assim, você já deve ter desfeito muitos casamentos. - Mas isso não me importa. Eles se separam porque querem. - Não seria por causa das promessas que você faz? - Não tenho obrigação de cumprir essas promessas. Na hora do prazer dizemos

coisas que nunca se cumprirão. Eles gostam de ouvir promessas e as faço. Gostam de fazer planos e os deixo fazer. Na verdade, não quero casar. Jamais terei filhos. Eles só servem para impedir que se goze a vida.

- Alguém já tentou o suicídio por sua causa? - Quem é você, que sabe da minha vida? Um espião do rei? Se alguém suicidou-se

não foi a mando meu, mas porque era um fraco.

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- Sou apenas um amigo que quer ajudá-la. Meu nome é Luiz, e estou aqui para tentar retirá-la da enrascada em que se meteu.

- Chamo-me Luize, mas não lembro de conhecê-lo de nenhuma festa. - Fomos convidados para a festa da redenção espiritual. Aquela em que tentamos

nos aproximar do Senhor da Vida, e para isso, temos que limpar nosso traje espiritual, adorná-lo com a beleza da verdade, da fé, da esperança.

- Não lembro de nenhuma festa assim no reino. - Mas o reino do Senhor da Vida não é deste mundo. Ele veio até nós, padeceu e

morreu na cruz para nos ensinar isso. Hoje somos seus convidados para um banquete que Ele nos preparou. Luize, quero que grave bem esse nome, quem foi e o que fazia em Portugal, e retorne para a vida dura de Maria.

Então Maria acordou daquele sonho-pesadelo que acabara de reviver, e com um misto de raiva e surpresa exclamou:

- Mas o que é isso? Eu não fui essa mulher desocupada! O único óleo que eu conheço é o óleo de coco que eu passava nos cabelos. Imagina se eu sou mulher de passar cada noite com um homem diferente. Pele sedosa! Minha pele negra, tem as queimaduras do sol. Veja essas manchas! São ferimentos do sabão e das roupas.

- Maria, as imagens que você viu, as cenas que reviveu, foram retiradas da sua mente. Como expliquei, vivemos muitas vezes sobre a Terra, em diferentes corpos. Ora somos ricos, de outras vezes, pobres; nos visita a beleza, a feiúra, a saúde, a doença, a fartura, a miséria, de acordo com o nosso merecimento. Esteja certa de que Deus existe e, por amor, deu a você esta oportunidade de resgatar as dívidas contraídas em Portugal. Aquele convite que fiz para a festa do Senhor da Vida continua de pé. Você pode aceitá-lo agora ou continuar perseguindo o homem que lhe prejudicou e que, certamente, foi prejudicado por você. Todos somos pecadores, e o conselho de Jesus para que soframos menos é que perdoemo-nos uns aos outros. Estou também autorizado a dizer que seus filhos foram personagens daquele drama vivido na Europa. Ali estavam amantes, chantagistas, espoliadores, pessoas inconseqüentes que desperdiçaram os maiores bens da vida; que passaram pelo mundo sem ajudarem a si ou ao próximo. Se aceitar nosso convite, poderá, ao harmonizar seu Espírito, trabalhar pela recuperação daqueles que ainda se debatem em sofrimento, sem forças para sair do cipoal em que se perderam.

Maria chorava baixinho. Como era uma mulher resoluta, dessas que não tem medo de tomar decisões radicais, disse:

- O senhor tem razão. Não entendi muito bem o que se passou, mas do pouco que percebi já deduzi que estou errada. Não vou mais perseguir aquele vagabundo. A vida que cuide dele, como cuidou de trazer as promissórias da minha dívida. Aceito o seu convite, pois foi o único sincero que ouvi nesses anos todos.

Deixei-a aos cuidados dos dirigentes espirituais que, com mãos de jardineiros, desses que plantam flores e colhem amores, sabem transformar a tristeza de alguém em coragem e superação. Com as benções de Deus, em breve a encontraria em algum trabalho na colônia “Vale das Flores” e, quem sabe, riríamos das criancices do passado.

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Hansenianos

A hanseníase é uma doença estigmatizante e carregada de preconceitos. Mesmo antes de Jesus pisar o chão de Nazaré, o bacilo de hansen já regalava-se nos tecidos humanos provocando o apodrecimento da epiderme, ao mesmo tempo em que poluía o ar com miasmas pestilenciais. Naquele tempo os hansenianos, segregados, só podiam sair de suas furnas com guizos e máscaras, anunciando ao viajante desprevenido para precaver-se da morte lenta que por ali passava sob andrajos.

Para atender a um desses desprezados o pré-requisito não era apenas a caridade, mas sobretudo, a fé incondicional na bondade divina, que verdadeiramente não permite a alguém que espalha sementes de vida, defrontar-se com a colheita da morte, sob o espectro do contágio. Não defendo aqui a visão romântica daquele que parte armado apenas da fé, sem o escudo da razão e enfrenta bacilos e vibriões sem as devidas reservas e providências quanto a preservação da saúde. O corpo humano é um patrimônio sagrado que não dispensa cuidados especiais, principalmente em ocasiões, igualmente especiais. Pode alguém estar protegido da ação nefasta de determinados microrganismos, mas o que dizer dos seres que com ele convivem? Assim como a caridade não dispensa a prudência, a saúde não pactua com a fé não raciocinada.

A doença, sob qualquer face, é sempre o resultado dos desregramentos do Espírito. Feliz quem entende este ensinamento, essência da justiça divina, e não blasfema contra a justeza da sua dor, o que, a bem da verdade, apenas adiciona mais lastro à pesada cruz que carrega.

Este era o caso de Simões, sempre alegre e comunicativo, levando palavras de otimismo aos moradores da “Colônia de hansenianos Antônio Justa”, em Fortaleza. Deslocando-se em seu carrinho sob rolamentos, não deixava o ânimo dos companheiros arrefecer nem permitia que o pessimismo ou a depressão afugentasse os gênios da alegria do seu diminuto apartamento. Mesmo deformado pela hanseníase, Simões era a voz que acalentava os sonhos de liberdade naqueles sombrios pavilhões.

Quando íamos em caravana à Colônia distribuir alimentos e medicamentos, Simões nos agradecia em nome de todos, estabelecendo relações entre o nosso trabalho e uma ou outra parábola de Jesus. “De Assis” ( Francisco de Assis ), ao contrário, sempre se mostrou revoltado com a sua dor. Às vezes procurávamos penetrar em seus aposentos para com ele dialogar e éramos rechaçados com sua oratória ácida. Suas palavras duras e seus gestos agressivos estabeleciam vigorosa muralha entre a nossa amizade e a sua mágoa.

Uma noite, em meio a reunião de desobsessão, um hanseniano iniciou sua comunicação através de lamentos e acusações contra a justiça divina e o abandono social a que fora submetido. Aproximei-me e escutei com paciência o seu desabafo.

- Doença maldita! Peste sem fim! Não me bastava corroer o corpo agora me envenena a alma.

- Já tentou uma consulta ao médico divino? Aquele que nos prometeu alívio quando estivéssemos aflitos e sobrecarregados?

- Esse velho que está aí, disse-me para vir aqui, que com o auxílio desse médico eu iria melhorar. Mas eu não acredito nessas coisas. Isso é uma besteira. Por que esse velho, a quem chamam de Simões, não conseguiu curar a si próprio? Ele fica me olhando com esses olhos de chorão, mas o tal médico não fez nada por ele. Eu o escutava na Colônia. Ele

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falava aquelas coisas mas eu penso que era apenas da boca para fora. Ele, assim como eu, continua doente.

- Penso que Simões pode levantar-se e abraçá-lo, se você o quiser. - Besteira, esse velho não se levanta desse carrinho tão cedo. O destino dele é

parecido com o meu. Você sabia que minha família me deixou naquela Colônia e jamais me visitou? Você sabe o que é um natal, um aniversário, um ano novo, na solidão e na doença? Sabe nada! Vocês nos visitavam e voltavam para suas casas quentes e alegres. Por isso eu era um revoltado e tratava a todos com rebeldia. Tinha vergonha de mostrar minhas carnes apodrecidas. Ainda tenho as mãos decepadas, veja.

- Estamos reunidos aqui, justamente para que possamos, com a ajuda do médico Jesus, recompor as partes faltosas do seu corpo.

- Se você pensa que isso pode acontecer é tão louco quanto esse velho. Iniciamos a magnetização, enquanto orávamos ao escultor divino, pedindo

assistência para aquele amigo sofrido, cuja revolta modelara verdadeiras crateras em seu corpo. Tomei as mãos da médium e utilizando as minhas como forma, disse: Vamos fazer uma plástica em suas mãos. Elas vão ficar iguais as minhas. Durante a magnetização fui relatando as melhoras que estavam ocorrendo em seu rosto, pés e mãos, agora luarizados pelas bençãos da saúde. Quando finalmente terminei, ele estava chorando.

- Eu não mereço isso. Bem que você disse, velho, que eu ia ficar curado. Você é um velho muito danado. Queria lhe pedir desculpas. Você não é aquilo que eu pensava.

Então Simões levantou-se do carrinho, e agora com seu corpo espiritual sem deformações, dirigiu-se a “De Assis” e o abraçou.

- Mas você fez isso comigo, velho! Fingiu-se de aleijado para me trazer aqui. Você não tem jeito mesmo. E eu pensando que você ainda estava doente. Ora, mas que velho danado.

E se foram os dois alegres para novas aventuras no novo plano a que foram enviados.

Os sete segredos da amizade

Natália foi responsável pela última comunicação da reunião de desobsessão do ano 2000. Criança adorável, detalhista, memória prodigiosa, iniciou sua conversa pedindo-me que lhe contasse uma história. Adoro histórias, disse-me. Como as crianças já bastante avançadas no tratamento contra o autismo, caso da nossa personagem, precisam exercitar-se em deixar o comportamento introspectivo, preferi inverter a situação dizendo-me fanático apreciador de histórias, saudoso do tempo em que as ouvia através das palavras dos meus professores. De imediato ela atendeu, orgulhosa por ser agradável e poder mostrar o quanto sabia. Essa história que eu vou contar é a preferida do tio Francisco. Ele sabe outras, mas esta ele conta de uma maneira linda, fazendo aparecer todas as coisas que fala. As rosas, as cores, o arco-íris enchem a sala quando ele conta esta história. Eu fico assim parada, maravilhada, sem perder um detalhe do que ele fala sobre a amizade. É assim:

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Existia no Vale das Flores uma rosa que não tinha cor. Ela vivia triste porque era diferente das outras que brilhavam e atraíam os passarinhos para serem beijadas. Mas a rosa sem cor tinha um amigo, o vento, único que a visitava. Um dia, ela pediu ajuda a esse amigo que nunca lhe faltara. Queria ser uma rosa bela, colorida, visitada pelos beija-flores e pelas borboletas. O vento não encontrou solução para tal problema, mas tinha também um amigo que todos os dias o visitava, o sol, que enternecido com a história da rosa sem cor, prometeu ajudar a ambos. O sol tinha entre os seus raios, um raiozinho diferente, cheio de limitações, pouco calor, tamanho pequeno, que também aspirava ser grande e forte como seus irmãos. Chamou-o e disse: Você vai à Terra desempenhar importante missão, porque é o único entre os meus filhos que pode ter sucesso neste caso. Vai ajudar uma rosa sem cor a recuperar-se. Um raio grande a mataria. Lembre-se que só se pode doar do que se tem, e o que se tem é conquista íntima. Siga para a Terra, procure a rosa triste e construam juntos suas aprendizagens, ajudando-se mutuamente. O raiozinho partiu e o sol ficou na esperança de vê-lo retornar revigorado pelo conhecimento.

Quando o raiozinho encontrou a flor e a tocou, escutou dela longas queixas sobre a tristeza que a dominava. Então começou a aquece-la e a rosa foi ficando cada vez mais vermelha, até que as borboletas que estavam próximas, atraídas pela beleza daquelas pétalas rubras a cercaram dançando para ela. O raiozinho deduziu que a cor vermelha fora emanada da sua compreensão pela dor alheia. E como seu pai dissera, que só se pode doar de suas próprias conquistas, ele concluiu que doara de sua cor. Mas, passados alguns instantes, a cor vermelha foi enfraquecendo e a rosa começou a chorar. Chorou tanto que quase formou um riacho. O raiozinho pensou: uma conquista doada pode ser apenas um benefício para quem o recebe, e não uma conquista permanente. Escutou todas as queixas com cuidado, interferindo com palavras de ânimo aqui e ali, e notou que a rosa começava a ficar alaranjada. Era uma cor laranja linda, brilhante, macia. Logo as borboletas retornaram e dançaram caprichosas ao redor da rosa. O raiozinho deduziu que a cor laranja fora emanada da sua tolerância para com as mágoas alheias. E como seu pai dissera que só se pode doar do que se tem, não mais se admirou por ter doado de sua cor para alegrar a rosa. Mas como cada conquista precisa ser construída por quem quer possui-la, a cor laranja foi desaparecendo, logo voltando a tristeza da rosa, e com ela, mais choro. O raiozinho não desanimou. Mentalizou seu pai por alguns minutos, e logo as pétalas da rosa ficaram amarelas, da cor do ouro. Ele já aprendera aquela lição e não mais se questionou sobre a origem da nova cor da rosa. A cor amarela fora emanada da sua lealdade, tinha certeza. Mas como uma virtude só se firma com muito esforço, as pétalas da rosa logo foram ficando pálidas.

O raiozinho era perseverante. Incentivando a rosa a não desanimar, disse-lhe que ficaria com ela ainda alguns dias, ocasião em que ensinaria tudo que sabia a fim de robustecê-la em coragem e sabedoria. Ao final de alguns dias a rosa estava verde. Era um verde neon, que brilhava na noite e encantava de dia, que acalmava, refrescava, enchia a alma de quem o olhava. O raiozinho compreendeu que verde era a cor da partilha, pois dera tudo de si para ver a amiga feliz. Mas quando se preparava para partir, notou que a cor verde ia esmaecendo. A rosa ainda não estava pronta para viver sozinha. O raiozinho tocado de imenso amor, enxugou as lágrimas da rosa, falou dos reinos celestiais de onde tinha vindo, cantou melodias divinas e, em grande esforço de superação, a rosa foi ficando azul. Azul é a cor do amor, concluiu. O amor tudo pode, seu pai lhe dissera, portanto, a rosa a que se afeiçoara não perderia mais a cor.

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Redobrou esforços, evitou que ervas daninhas a maltratassem, impediu que insetos a devorassem e percebeu que a rosa tinha sido banhada por um anil tão lindo quanto o céu. Deduziu que anil era a cor do zelo, pois empenhara-se muito, evitando que algo de mau acontecesse a sua amiga. Como a rosa parecia firme, feliz, e não mudara mais de cor, pareceu-lhe que sua amiga já transformara as virtudes que recebera em patrimônio próprio, através do esforço, da perseverança e da dedicação. Ainda passou mais alguns dias para estar convicto de que sua amiga finalmente estava feliz. Mas quando estava prestes a partir, notou com surpresa que a rosa estava violeta. Que teria acontecido? Ele não doara nenhuma virtude de si próprio. Então a rosa deduziu que violeta era a cor da gratidão pois doara do que tinha conquistado para aquele amigo inesquecível. A rosa, antes sem cor, estava transformada, e tinha a certeza de que agora seria capaz de viver no campo rodeada por pássaros e borboletas, sem mágoas ou lamentações.

O sol, notando a emoção dos dois, fez evaporar água de uma lagoa próxima, provocando uma leve chuva, que ao encontrar o raiozinho, formou radioso arco-íris. Nele viu todas as cores emanadas de si, agora também pertencentes a rosa. Entendeu que havia descoberto os sete segredos da amizade, tesouros mais valiosos que ouro e diamantes. Notou também que crescera, já não era mais um pequeno raio, mas uma chama flamejante que aquecia toda a montanha. Os dois haviam construído seus conhecimentos como desejava o sol. Era hora de voltar para casa. E o raio voltou.

Não é linda esta história, tio? Disse que nunca havia escutado história tão linda, tão linda, que gostaria de escrevê-

la para meus leitores. Ela sorrindo satisfeita, ainda disse: depois eu conto outra, tá? Todavia, sei que tais histórias têm a função de lembrar que pessoas diferentes

( autistas, portadores da síndrome de Down, dentre outros ), podem, através da amizade de que são alvos, do amor, do esforço, construir sua auto-estima e recuperação. Ser diferente não significa ser feio, deficiente, desprezado. Existem pessoas que se preocupam com os sofredores, existe a amizade e seus segredos, abracemo-nos a ela com determinação para sermos virtuosos. Tenho a convicção íntima de que nunca estivemos abandonados, excluídos da bondade divina. Que possamos todos, já que temos à nossa disposição as bençãos da compreensão, da tolerância, da lealdade, da partilha, do amor, do zelo, sendo este o tratamento que Deus nos dispensa, pelo menos demonstrar gratidão pela eterna assistência junto a nós.

Saudade severa

Os bons Espíritos escolheram uma sexta-feira calma, banhada por suave luz de lua cheia, para trazer crianças com um tipo especial de enfermidade, a saudade severa. Digo crianças porque em nada difere o comportamento de um desses Espíritos habitando corpos de adultos em desvantagem funcional, ou especial como dizem alguns, das crianças ditas normais. São crianças grandes, carinhosas, conservando o condicionamento sob o qual viveram na Terra, passando para o plano espiritual com as mesmas características e necessidades com as quais conviveram. Se estão condicionadas a determinado padrão mental, o que gerou um certo automatismo de hábitos e atitudes, há de se fazer um trabalho

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no sentido de reverter tal condicionamento para que o Espírito se apodere de suas reais conquistas e de sua verdadeira identidade.

O primeiro a nos falar foi Henrique: Tio, eu estou sentindo muita falta da minha mãe. Ela era minha melhor amiga. Eu preciso voltar para casa porque não estou conseguindo fazer nada sem ela. Na escola, eu fico olhando para a professora e lembrando o que minha mãe dizia. Uma vez a professora ficou igualzinha a figura dela. Quase que eu me levanto para abraça-la. Depois ela voltou a ter o rosto de sempre. O tio Francisco me advertiu: Pensamento toma forma! Será que você não podia me levar para ver a minha mãe? Você vai gostar dela. Eu hoje estou com saudade até do cheiro dela. Sabia que minha mãe tem um cheiro?

Henrique era vítima da saudade severa, a mesma enfermidade que maltrata milhares de Espíritos que se deixam aprisionar em suas teias pegajosas. A saudade é um sentimento natural, mas não deve agigantar-se a tal ponto de paralisar as atividades do Espírito. Como dizer isso a uma criança de vinte e nove anos? O que dizer a uma criança fragilizada pela ausência do ser que lhe cuidou e amou a vida inteira? O Espírito imortal que é o ser humano, deve preparar-se ao longo da eternidade, através de numerosas reencarnações, até que seja autônomo, senhor dos seus sentimentos e emoções, amando a Deus primeiramente, e aos seus semelhantes, indistintamente. Começamos nos primeiros passos “amando” a nós próprios, depois aos que nos amam, e concluímos a tarefa quando generalizamos esse amor pela humanidade inteira, ou seja, nos tornamos autônomos.

O fato de amarmos apenas aos que nos amam ( o que nos caracteriza a escassez de méritos, pois Jesus aconselhou o amor incondicional até mesmo pelos inimigos ), parece normal em nosso estágio evolutivo, prisioneiros que ainda somos dos condicionamentos voltados para a satisfação de nossos desejos, nem sempre educados e bem direcionados. A saudade se afigura a um sentimento de insatisfação pela ausência daquilo que priorizamos, que consideramos vital, indispensável ao nosso bem estar. A saudade severa vem aliada a um sentimento de perda, e como não somos educados para as perdas, nos frustramos. Sob o nosso ponto de vista limitado, a perda nos surge como algo irrecuperável, dolorido, injusto. Perder a saúde, a juventude, a beleza, a riqueza, alguém amado ceifado pela morte, não faz parte das nossas meditações e muito menos da nossa aceitação. Somos educados para reter, e quando isso não ocorre, nosso corpo de pensamentos se desorganiza. O mundo é competitivo. O sistema de competição negativa invadiu todos os meandros do planeta dando ao verbo perder a conotação de desonra e de fragilidade. Nesse contexto, os sentimentos, sacrificados pelo desejo de posse, ficam asfixiados; o ser humano se embrutece, os mais dóceis sentem-se deslocados, os tímidos fenecem, os românticos desmoronam, as crianças sentem saudades dos pais, geralmente empenhados na arena da sobrevivência. Milhares de pessoas são inadaptadas ao mundo e outras tantas tentam a fuga através de suicídios. A religiosidade aflora aqui e ali com suas folhas tenras mas é agredida pela chuva ácida da intolerância.

Num mundo louco como o que vivemos, quem não sente saudade da paz ou de algo que a lembre? Quando surge nesse cenário alguém mais lúcido, que traz um pouco de paz interior, que diz coisas belas, que tem gestos suaves, que não agride, é vampirizado. Assediam-no inconscientemente, na maioria das vezes, como a querer beber toda a água viva que ele possui, dezenas de pessoas carentes. Não será por causa da nossa sede de paz? Não é ainda o pensamento do indígena antropófago que comia as carnes do seu semelhante para adquirir suas virtudes? A busca incessante pelo ouro tornou a humanidade indiferente ao genocídio dos mais frágeis. Continuamos, sob certos aspectos, os mesmos trogloditas,

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apenas usando paletó e gravata. A cada suspiro do amor o egoísmo corre para tapar-lhe as narinas. A caridade tenta a todo instante gritar mais alto que o orgulho dos homens, mas a afonia retarda-lhe a marcha ascendente. Avançamos moralmente milímetro a milímetro através do esforço supremo de homens e Espíritos de boa vontade.

Em ambiente assim, as crianças são as maiores vítimas. Em casa, estão órfãs, pois os pais estão em guerra pela sobrevivência, e na escola, lhes dizem que vencer é derrotar o outro. Lembro-me que há alguns anos atrás, o francês Raul de Montadon, utilizando fotos com luz infravermelha, observando a morte provocada por éter em pequenos animais, comprovou que de seus restos mortais eram liberados formas semelhantes aos corpos mortos. As provas fotográficas de Raul foram confirmadas por fotografias retiradas com a câmara Kirlian ajustada a microscópios eletrônicos de grande potência, em trabalho de pesquisa efetuado por cientistas soviéticos na Universidade de Kirov. Os pesquisadores ainda fotografaram o corpo espiritual do homem em experiências com moribundos no momento da morte. Confirmaram assim que todo ser vivo tem um corpo energético que resiste a morte e conserva os traços físicos mantendo-lhe a identidade, no mínimo, morfo-fisiológica. Se houvessem tentado comunicação com tal corpo, através da mediunidade, poderiam ter encontrado a individualidade psicológica também. Todo esse trabalho científico em defesa da sobrevivência do Espírito foi enterrado pelo aparato estatal.

Como confiar numa ciência manipulada por interesses ideológicos? Como dar crédito aos homens que se comprazem em fabricar modelos que nos deixam indefesos e temerosos?

Mas Henrique era uma criança. Sua saudade era somente de sua mãe porque nela encontrara amor e segurança. Trazia no inconsciente o modelo de sociedade caótica e temia retornar a ela para novo enfrentamento. Enquanto criança tivera atenção, carinho, por isso a saudade tão severa. A casca do ovo se quebrara e o mundo em que fora jogado não lhe agradou. Assim surgem as fobias, as depressões, as neuroses e psicoses que vergastam os Espíritos em busca da autonomia que devem ter.

Senti imensa piedade de Henrique. Chorava em minha frente e eu sem saber dizer nada para consolá-lo. Peguei sua mão, que parecia gelada, e prometi: Quando a sua saudade diminuir um pouquinho, vou pessoalmente com você visitar sua mãe.

Foi uma das “doutrinações” mais curtas de tantas que já participei. Ele ficou em silêncio alguns instantes, apertou minha mão e apenas disse: Eu vou esperar. E deu lugar para outra criança com saudades de casa.

A justeza da Lei

A antiga lei mosaica prescrevia o “olho por olho e dente por dente”, não recebeu a aprovação de Jesus, adepto do amor pelos inimigos e do perdão incondicional às ofensas recebidas. Combater violência com violência significa adicionar a uma causa negativa, efeito igualmente negativo, no que se obtém uma resultante, obviamente, negativa. Aquele que considera a justiça divina lenta e se apressa em se vingar do seu inimigo, geralmente se condena a prolongar o clima de guerra em que se envolveu, pois como diz antigo adágio popular, um dia é da caça e outro do caçador. Nas pugnas terrenas, repete-se a mesma seqüência, pois no clima de ódio e revide em que a humanidade se detém, podemos

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parafrasear, dizendo sobre a vingança: se um dia é do algoz o outro pode ser da vítima. E na obsessão: se hoje é o dia do obsessor, amanhã pode ser o do obsidiado.

O desejo de revide, filho do orgulho exaltado, não permite ao ofendido entender que a pedagogia de Jesus, baseada na mansuetude e na tolerância, aponta sempre o perdão das ofensas, como a trilha mais segura para a perfeição. Quem se dispõe a palmilhá-la não encontra as exaustivas recapitulações impostas pelo descaso do Espírito para com a lei divina.

Quando Jesus advertiu para as vantagens da reconciliação com os inimigos enquanto a caminho com eles, incentivava o Espírito rebelde a subtrair de sua jornada terrena, sofrimentos futuros causados por antipatias, agressões e hábitos agressivos no relacionamento humano.

Apesar de haver uma porta sempre aberta para retardatários e arrependidos, a reencarnação, Jesus em sua sabedoria mostrou o roteiro seguro do “sofrer menos”, qual seja, utilizar essa porta como aluno interessado na construção do conhecimento, e não como ovelha desgarrada tangida ao matadouro.

O Objetivo do Espírito, a ser concretizado por ele com esforço e com o auxílio do tempo, é a perfeição. Deus sempre concede oportunidades e meios para essa tarefa. A ele, investimento maior da criação, espírito imortal, cabe a difícil e demorada aquisição pessoal e intransferível, do amor e da ciência, o que conseguirá mais facilmente guiando-se através da disciplina direcionada para tais objetivos.

Ante a dor, que ninguém culpe a Deus por seus tropeços. Melhor e mais sábio é interpretar o erro como tentativa de acerto e erguer-se mais fortalecido a cada queda. É certo que nenhuma “ovelha” do rebanho se perde, mas é inquestionável que algumas se retardam em busca de outros pastos, recusando temporariamente o chamamento do pastor. Estas aprendem através de tosquias, das intempéries e das ameaças, muitas vezes concretizadas, de lobos vorazes.

Visto tais aspectos, passemos à história de Flávia Lisboa. A mulher “tomou” de súbito a médium e praguejou: Aquele canalha vai explodir

como fez comigo. Ele chegou onde eu queria. O cancer invadiu todo o intestino e ele está na reta final para nosso acerto de contas. Pode contar como certo! Em menos de um mês ele estará a minha frente para receber o que merece.

- Para que você o odeie tanto, ele deve ter feito a você algo muito desagradável. Não gostaria de contar o seu drama? Quem sabe não consigamos um meio de ajudá-la?

- Ele me seduziu com propostas de um futuro de paz para nós dois. Algo dentro de mim advertia para não confiar, mas me entreguei às tais promessas. Desejava ardentemente ter uma filha. Quem sabe não seria aquela a oportunidade? Nós, mulheres, muitas vezes, aceitamos até mesmo viver com quem não amamos, sofrendo amarguras e decepções, por amor aos filhos. Meu único crime foi acreditar nessas promessas. Quando engravidei, ele me obrigou a tomar um veneno para matar a criança, o que também acabou com a minha vida. Jamais lhe perdoei esse crime. Desde então eu o tenho seguido. De tanto fazê-lo lembrar do crime monstruoso que cometeu e de estar próximo a ele, passando as dores que sofro com o veneno que tomei, hoje o vejo na mesma situação em que estou. Esse tem sido o meu consolo, vê-lo explodir vitimado pela doença que me impôs.

- Você sente realmente algum consolo em agredir alguém? Não será tão sofredora quanto ele? Já pensou o que teria feito a ele ou a outro alguém no passado, para merecer um destino tão cruel?

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- Eu nada fiz a ele nem a ninguém. Sou uma vítima. Confesso que quero vingança, esse vinho delicioso quando se tem sede dele.

- Ninguém é vítima da Lei. Sofremos aquilo que fazemos os outros sofrerem. Deus não permitiria uma prova tão rude a um inocente. Se você se diz vítima teremos que retornar ao passado para ver o início dessa tragédia.

A mulher ficou expondo argumentos, procurando convencer-me de sua inocência, enquanto a oração e a magnetização a fazia retornar a um outro tempo, fechado em sua inconsciência.

- Aquele pobretão quer casar-se com a minha filha. Ele não tem linhagem. Quem já se viu criar uma filha para entregar a um inútil?

- Mas ele ama sua filha. Não será o amor uma riqueza por si mesmo? - Besteira de gente romântica. Ela casará com quem eu determinar. Com alguém que

possa fazê-la rainha. Terá que ser um príncipe, e não, um sapo. - Não teme fazer a infelicidade de sua filha com essa decisão? Não seria mais

prudente acolher o rapaz ganhando assim um filho que enxotá-lo tornando-o seu inimigo? - E quem é você para me dar conselhos? O pior é que ele a desonrou e ela espera um

filho. Mas eu me livrarei desse bastardo. - Mas é um ser indefeso. Não faça mal a ele. Lembre-se que Jesus amava a todas as

crianças. - Ora, mas que conselho mais besta! Quem é você? Um policial? Está aqui para

investigar o meu crime? - E houve um crime? - O infeliz ainda teve a coragem de vir falar comigo. Fingi escutá-lo e lhe ofereci

um cálice de vinho com poderoso veneno. Quanto à criança, ficou lá na mata. Disse a minha filha que ela havia nascido morta.

- E depois de tantos fatos pungentes, como ficou a sua vida? - Cheia de azedumes e culpas. Minha filha enlouqueceu ao descobrir o que eu tinha

feito, morrendo no hospício, longe de mim. - E qual é o seu nome? - Flávia Lisboa. - Muito bem Flávia, grave de maneira nítida o nosso diálogo e retorne para a nossa

conversa atual. A mulher perguntou espantada: O que é isso? A justeza da lei, respondi. Você

começou essa história quando matou aquele que poderia ter sido adotado como seu genro. Como lhe disse, poderia tê-lo escutado, acolhido como a um filho, mas resolveu matá-lo.

- Mas esse miserável me matou! Não me deixou criar a minha filha. Minha pobre filha! Preciso encontrá-la! Era ela! Eu a estava esperando e esse monstro nos matou.

- Não esqueça de que foi você quem começou esse drama. Matou a ele e a seu filho, por não admitir que alguém pobre se relacionasse com a sua filha.

- Mas o que ele me fez foi muito cruel. Matar-me e a minha filha... - Não esqueça de que foi você quem começou esse drama... Então, a cada argumento que a mulher apresentava eu repetia a mesma frase, como

um disco enguiçado. Até que ela, sentindo a enorme pressão que a frase continha desabafou: Chega! Eu não quero mais saber daquele canalha. Quero apenas minha filha. Se existe alguma piedade em você, ajude-me a encontrá-la.

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Então lhe disse algumas palavras de conforto, prometendo que os bons Espíritos tudo fariam para ajudá-la. Parecendo ter deixado sobre a mesa pesado fardo de ódio, disse-me um tímido obrigada e foi levada pelos dirigentes da reunião.

O cordão prateado

Sobre o cordão prateado que une o perispírito ao corpo, pouco sabemos. Em que instante exato ele se acopla ao corpo em formação? Tem sua gênese no perispírito, no óvulo, ou em ambos? Sua substância é a mesma do perispírito? Sua elasticidade é infinita ou há um ponto limite além do qual ele se romperia? O Espírito, ao sair do corpo, passando por uma zona trevosa cuja atmosfera fluídica seja ostensivamente perniciosa, deixando aí seu cordão prateado estendido, este sofreria algum tipo de agressão? Esta agressão repercutiria no corpo? O laço fluídico que prende o perispírito ao corpo é visível a todos os Espíritos desencarnados, que se deslocariam por um cipoal de cordões? Um Espírito inimigo poderia quebrar ou colocar um fluido letal nesse laço?

Poderíamos ir além com outras indagações, mas o motivo de as termos provocado é aguçar a curiosidade do leitor para que ele se anime à pesquisa ou pelo menos à leitura, visando aprender um pouco mais dessa doutrina maravilhosa que é o Espiritismo.

Vejamos alguns apontamentos retirados da obra de Kardec e de outros autores espíritas, com a finalidade de obter esclarecimentos para nossas indagações: Revista Espírita 1859 – Ligação Entre Espírito e Corpo. “Meu Espírito se destaca um pouco de meu corpo, mas é como um balão cativo, preso pelas cordas. Quando o balão recebe solavancos, produzidos pelo vento, o poste em que está amarrado sente o efeito dos abalos, transmitidos pelas amarras. ... Numa palavra, quando um Espírito aparece espontaneamente, quer em vigília, quer durante o sono, temos um meio de reconhecer se se trata de um vivo ou de um morto. Ao se apresentar o Espírito de um vivo, nota-se ( videntes ) um rastro luminoso, partindo do peito, através do espaço, não interrompido por qualquer obstáculo material, e que vai terminar no corpo. É uma espécie de cordão umbilical que une as duas partes momentaneamente separadas do ser vivo”.

Revista Espírita 1860 – Vosso Espírito está ligado ao corpo por um laço qualquer? – Sim; e disso tenho perfeita consciência. – A que podeis comparar essa ligação? – A coisa alguma que conheçais, senão a uma luz fosforescente, como aspecto, se o pudéssemos ver, mas que não me dá nenhuma sensação.

Memórias de um Suicida – Psicografia de Yvonne Pereira, pelo Espírito Camilo Castelo Branco. “Em outras observações levadas a efeito, merece especial comentário, pela estranheza de que se revestia, o fato de todos ( suicidas ) trazermos pendentes da configuração astral, quando ainda no Vale, fragmentos reluzentes, como se de uma corda ou cabo elétrico arrebentados se desprendessem estilhas dos fios tenuíssimos que os estruturassem, sem que a energia se houvesse extinguido, ao passo que explicavam os mentores residir em tão curioso fenômeno toda a extensão da nossa acrimoniosa desgraça, porquanto este cordão, pela morte natural, será bastante desatado, desligado das afinidades que mantém com o corpo carnal, através de caridosos cuidados dos obreiros da Vinha do Senhor incumbidos da sacrossanta missão da assistência aos moribundos,

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enquanto que, pelo suicídio, é ele violentamente despedaçado, e, o que é pior, quando as fontes vitais, cheias de seiva para o decurso de uma existência às vezes longa, ainda mais o solidificam, mantendo a atração necessária ao equilíbrio da mesma”.

Nos Bastidores da Obsessão – Psicografia de Divaldo Franco, pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. Teofrastus, chefe de uma falange trevosa que aplicava duros castigos a Espíritos culpados, em conversa com Glaucus, instrutor a serviço das forças misericordiosas do bem: “Eu que comando inúmeras mentes, a um simples gesto, meus servidores que se encontram aí fora dispõem de meios de atrair verdadeira legião de quem me deseje servir, e provocaremos um pandemônio, dominando-vos e a esses, arrebatando essa a quem desejo, a fim de que permaneça comigo... Sei utilizar-me dos recursos que produzem a ruptura dos vínculos que atam o Espírito ao corpo. Nesse sentido, meus conhecimentos ultrapassam os seus”. Grifo Meu.

Das observações acima, podemos obter dados importantes para formar uma idéia, senão precisa, pelo menos mais clara sobre esse importante instrumento de evolução espiritual. Em primeiro lugar, temos que este cordão jamais se rompe durante a encarnação do Espírito, representando a sua ruptura, o desencarne. Isso nos leva a um ponto importante nessa discussão: poderia o próprio encarnado ou outro Espírito qualquer com conhecimentos específicos sobre esta matéria provocar a quebra desse laço? Quanto a isso, Teofrastus, personagem citada anteriormente, responde afirmativamente. Os Espíritos que auxiliaram Kardec na Codificação do Espiritismo também sinalizam no mesmo sentido, conforme verificamos na pergunta 345 de “O Livro dos Espíritos”. – A união entre o Espírito e o corpo é definitiva a partir do momento da concepção? Durante esse primeiro período o Espírito poderia renunciar em habitar o corpo designado? – A união é definitiva no sentido que um outro Espírito não poderia substituir aquele que está designado para esse corpo; porém, como os laços que o prendem são muito fracos, rompem-se facilmente, podem romper-se pela vontade do Espírito que recua diante da prova que escolheu. Nesse caso, a criança não vive.

No primeiro caso, ou seja, a agressão de um Espírito contra o cordão prateado de outro, podemos dizer que ele não tem a permissão de fazê-lo, pois o universo tem suas leis e Deus está com as rédeas bem firmes em suas “mãos”. Quanto a recusa de um Espírito para nascer, ele terá que responder pela sua fraqueza escolhendo um outro corpo, com o agravante de ter recusado o remédio que o aliviaria.

Digna de aprofundamento é a observação de Camilo Castelo Branco acerca dos suicidas, os quais portam os restos desse cordão, rompido bruscamente pelo gesto tresloucado que é o suicídio. Essa porção do “cordão umbilical” a que o Espírito esteve preso, quando deveria ter esperado pelo rompimento que ocorreria naturalmente quando o corpo físico morresse para o plano carnal, guarda em si, qual possante bateria, espessa carga de fluido vital, fazendo com que ele permaneça entre a vida e a morte, a prisão e a liberdade, de vez que o retira da erraticidade propriamente dita, chumbando-o a regiões de densos fluidos e pungentes dores. Nas furnas e vales apropriadamente chamados de Vales das Sombras ou Vales das Dores, o desgraçado que ali habita nem nasceu nem morreu para os padrões normais determinados pelo criador da vida, e até que todo o fluido vital que retém se esgote através desse “incômodo” apêndice, seu perispírito não logrará a densidade específica própria para liberar-se das garras do sofrimento.

Quando o Espírito reencarna, traz de maneira aproximada, o volume de fluido vital necessário e correspondente a sua cota de trabalho e de tempo de permanência na matéria. Cabe a ele zelar pelo corpo, e assim fazendo, poderá até mesmo superar este tempo

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previsto, ou, em sentido contrário, abreviar seu estágio na matéria devido a desregramentos cometidos, o que significa desperdício de fluido vital. No suicidio não há como subtrair do perispírito o volume de fluidos vitais que ele ainda retém. Esse lastro será liberado gradativamente através do sofrimento, que funciona qual lixa a desgastar pelo atrito os contornos defeituosos de uma obra de arte. O perispírito do suicida, portador dessa porção do cordão prateado, terá que assistir ao seu desgaste, o qual se fará a semelhança de uma vela acessa, que vai queimando o combustível e iluminando a si própria, despendendo pelo pavio lágrimas ardentes. Se o consumo da vela exige a liberação de lágrimas para fazer luz em si própria, o mesmo acontece com o suicida, que derramará lágrimas em profusão até que o sofrimento tenha desgastado o seu coto umbilical, à proporção que faz luz em si mesmo. Eliminado os fluidos vitais, o coto umbilical cairá, e o suicida estará em condições de ser resgatado das furnas e cavernas onde se esconde.

Quanto a natureza do cordão prateado supomos ser mais sutil ainda que o perispírito. Na definição dos Espíritos que o observaram, comparável apenas a luz fosforescente. Deduzimos dessa comparação que é muito difícil, senão impossível, mesmo para um Espírito bastante treinado, agarrar um raio de luz. Tal raciocínio nos leva a crer também que os cordões prateados não se enroscam uns nos outros, pois se cruzam sem afetar ou serem afetados como ocorre com os raios de luz.

Se a luz sofre interferência ao passar de um meio para outro, por exemplo, do ar para a água, podemos especular sobre a passagem desse cordão fluídico sobre zonas trevosas, o que implicaria em uma certa turbulência transmitida ao perispírito e ao corpo denso.

Na mediunidade inconsciente, cujo exercício obriga o desdobramento do médium, que se afasta em Espírito e perispírito do corpo, resta ainda a ligação deste com aquele através do cordão prateado. Isso é o suficiente para um retorno imediato do Espírito ao corpo, caso haja a necessidade de intervenção no processo comunicativo.

Por fim, ao sairmos do corpo físico durante o sono, podemos nos deslocar sem receios quanto a segurança e a eficiência desse cordão, que nos remeterá de imediato ao esconderijo carnal caso haja a necessidade de estarmos em vigília.

Somente a morte nos libera desse humilde e habilidoso laço, preparado por Deus para fazer evoluir o mais precioso de todos os presentes, a vida. No quebrar do laço está a rejeição do presente, ao desatá-lo, a festa de boas-vindas que nos preparam os amigos saudosos, com direito a cantos e abraços.

Como diria o grande poeta Gonzaguinha, um dos maiores compositores da Música Popular Brasileira: É a vida! E é bonita, é bonita!

A visita das idéias

Uma das minhas manias, postas em prática quando raramente tenho tempo desocupado, é fazer “sossegar” a minha mente, tentar esvaziá-la da agitação do dia e ficar a espreita da primeira idéia que dela se aproxima para então capturá-la. Chamo a isso de

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pescaria, pois esse método nos coloca em contato com o mar das idéias, no qual podemos fisgar boa gama de informações se nosso equipamento e perseverança são bons.

Acredito que, da mesma maneira que se captura em lagoa poluída peixes infectados e intragáveis e em lago de águas férteis, alimento abundante e sadio, ocorre o mesmo no mar das idéias. O pescador lança a sua isca e a depender de suas intenções, o seu anzol se direciona para zonas específicas referendadas pelo seus desejos. O produto da pescaria mental que um Espírito faz, reflete o que ele pensa, suas aspirações, o hálito psíquico que ele cultiva. Aqui vale a antiga lei dos afins: os semelhantes se atraem, se complementam, se identificam.

Esvaziar a mente para pescar idéias pode parecer procedimento fácil, mas não para pessoas que vivem em constante estado de alerta, acicatadas por dezenas de problemas criados e mantidos por exigências “modernas”. As tentativas de não pensar em nada, ou seja, fazer adormecer momentaneamente a enorme gama de informações que elas julgam vitais para sua sobrevivência, as condenam geralmente a tentativas e desistências frustrantes.

Às vezes, tais idéias se achegam vagarosamente, mostrando-se aos poucos, qual dançarina que se desnuda lançando fora peça por peça do seu vestuário. De outras vezes, esse poder de evocação que cada ser humano possui e em maior grau os bons escritores, parece forçar a que a idéia se mostre por inteiro, vindo dos confins do infinito a velocidade astronômica, forçando um insight, trazendo uma revelação.

Ainda não consegui divisar por inteiro esse maravilhoso mecanismo sutil da mente, mas sinto-lhe a presença através de poderosas flechadas mentais que me atravessam a alma, deixando aí a poesia científica ou filosófica que respiro. Se algumas pessoas procuram em livros o conhecimento de que necessitam, no que estão corretas e entre elas me incluo, há no entanto, outras que aprenderam a consultar o universo, o Espírito, o silêncio, livros abertos a espera de quem os acione.

Platão, escrevendo sobre Sócrates, coloca como objetivo da Filosofia encontrar a definição correta, atingir a essência das virtudes, no que procura ultrapassar a opinião e a imagem das coisas penetrando no mundo das idéias através do pensamento puro. Com Sócrates, virtudes como a coragem, o amor, a justiça, a piedade, a beleza e tantas outras, eram expostas meridianamente, mostrando para os dotados de sensibilidade, a essência “palpável”, luminosa, sem a jaça do personalismo, da verdadeira filosofia.

Quando dizemos em uma reunião mediúnica que um médium está em concentração, estamos na realidade informando que ele está com a sua mente receptiva, à disposição, esvaziada de pensamentos errantes, para que uma idéia específica, a do comunicante, percorra livremente seus canais perispiríticos, indo ao seu cérebro físico, o qual comandará o processo da comunicação mediúnica.

As idéias nos visitam a qualquer hora, cabendo-nos seleciona-las e aprofundá-las com a nossa sabedoria e persistência.

Pois bem, estava eu as dez horas da manhã do mês de julho de 2001 em minha rede, e resolvi testar o meu poder de evocação, tomando de pronto caneta e papel, ficando relaxado como as lagartixas que se abandonam ao sol nos muros do meu quintal. Passados alguns minutos, “vi” dentro da minha cabeça uma balança e, de imediato, comecei a escrever:

Pesagens

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Parece que todo mundo anda a procura de pesar algo.O peso da consciência

A leveza do amorO chumbo da indiferençaA fome dos humilhados

A hipocrisia dos humanos.Parece que todo mundo descobriu que é preciso pesar.

A alma dos desesperadosOs pecados dos impuros

A ira dos povosA escassez da caridade

O desperdício e o acúmulo.Parece que todo mundo quer balanças.

Mas balanças não pesam almasPonteiros não deslocam sentimentos

Pratos não comportam a mágoa do mundoO metal de que é feita não verte lágrimas

E seus números são indiferentes a toda dor.Parece que todo mundo carrega grande peso.O peso da descoberta incômoda e vergonhosaQue não se pode pedir piedade a uma máquina

Que uma balança só se equilibra quando se reparte os pesosQue de um lado o que sobra do obeso

É o que falta ao outro na barriga do faminto.

Fiquei maravilhado com os versos que chegavam a minha cabeça, velozes e certeiros. O poema estava pronto no mundo das idéias e eu o fiz convergir para minha mente. Eu mesmo o escrevi com minha raquítica “veia” poética ou algum Espírito o ditou pelo pensamento sem que eu o percebesse? Por mais que me esforce não consigo descobrir o processo criativo que me invade em circunstâncias tais. Pode ser a combinação de dois ou mesmo dos três aspectos citados.

Depois de escrever o poema fiquei olhando para ele por largos minutos, sem escrever nada mais, como se tivesse a certeza de que toda e qualquer palavra que viesse a seguir fosse uma profanação àquele instante de magia e beleza.

Evocações

“Os Espíritos podem comunicar-se espontaneamente ou atender ao nosso apelo, isto é, ser evocados. Algumas pessoas acham que não devemos evocar nenhum Espírito, sendo preferível esperar o que quiser comunicar-se. Entendem que chamando determinado Espírito não temos a certeza de que é ele que se apresenta, enquanto o que vem

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espontaneamente, por sua própria iniciativa, prova melhor a sua identidade, pois revela assim o desejo de conversar conosco. Ao nosso ver, isso é um erro. Principalmente porque estamos sempre rodeados de Espíritos, na maioria das vezes inferiores, que anseiam por se comunicar. Em segundo lugar, e ainda por essa mesma razão, não chamar nenhum em particular é abrir a porta para todos os que querem entrar. Não dar a palavra a ninguém em uma assembléia é deixá-la livre a todos, e bem sabemos o que disso resulta. O apelo direto a determinado Espírito estabelece um laço entre ele e nós: o chamamos por nossa vontade e assim opomos uma espécie de barreira aos intrusos. Sem um apelo direto, um Espírito muitas vezes não teria nenhum motivo para vir até nós, se não for um nosso Espírito familiar. Essas duas maneiras de agir têm as suas vantagens e só haveria inconveniente na exclusão de uma delas”.

Allan Kardec

Ainda não sei realmente qual ou quais os motivos que levam determinados espíritas ao sobressalto, quando se fala em evocar Espíritos. A palavra evocação parece conter um peso insuportável para eles, uma desgraça velada, uma blasfêmia, uma perturbadora ameaça que os dominará caso a utilizem, levando-os ao ridículo ou tornando-os incompatíveis com as opiniões dos bons Espíritos pelo desagrado destes frente ao método utilizado.

Aliás, o movimento espírita brasileiro ainda traz procedimentos incompreensíveis, quando alinhados à codificação, o que faria corar de desapontamento qualquer auxiliar da imensa falange que atuou sob o comando do Espírito de Verdade, caso procedesse a uma comparação.

Há Centros Espíritas, pelo menos assim se denominam, em todas as regiões do país, que se utilizam de práticas bizarras, de cultos exteriores, de riscados e mandingas dignos de jocoso anedotário. Mas, o que fazer quando até mesmo aqueles que dirigem o movimento espírita agem contrariamente aos conselhos e preceitos de seu codificador, como prova o apêndice indesejável que procuram imputar à Doutrina, qual seja, o corpo fluídico de Jesus? Quando alguns espíritas elegem médiuns, oradores e escritores e os colocam no topo da evolução moral terrena, apontando-os como infalíveis, não dão mostras patentes de imaturidade e de falta de bom senso? E tudo isso não faz, porventura, severo contraste com a lucidez e a coerência dos postulados espíritas?

Mas voltemos às evocações. Poderíamos perguntar de início por que a evocafobia, se grande parte do trabalho levado a efeito por Kardec foi realizado através de evocações. O que nos responderiam os alérgicos a esta metodologia? Que Kardec era Kardec e que nós outros não temos condições de discernir entre uma comunicação falsa e outra verdadeira? Se o argumento é este, parece-me sem fundamento, de vez que em “O Livro dos Médiuns”, capítulo XXV, o codificador deixou valioso e eficiente roteiro para que os mistificadores fossem desmascarados. Seria ainda a velha prescrição mosaica ( Deuteronômio 18: 9-13 ), revogada pelo próprio Moisés ( Números 11: 26-29 ), posteriormente? Acredito mais no desconhecimento da própria Doutrina.

Dizem alguns espíritas, e é verdade, que não se pode ter a certeza, mesmo que a mensagem seja rigorosamente bem elaborada, da autenticidade do nome que a apresenta. Vejamos um pouco de história. O “Espírito de Verdade” comunicou-se por vários médiuns: a jovem Baudin, a Sra. Japhet, Alice C., a Sra. Forbes, a Sra. Schimidt, o Sr. d’A, dentre outros. Kardec transcreveu para a Revista Espírita mensagens do Espírito de Verdade recebidas em Bordeaux, em Havre e em Paris, sem contudo mencionar os médiuns que as receberam. Em uma delas, Jesus se identificou pessoalmente e Kardec comentou diante do

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fato que a mensagem fora recebida por um dos melhores médiuns da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Para evitar uma celeuma desnecessária, ele esclareceu que não duvidava de que o Cristo pudesse manifestar-se por via mediúnica, mas preferia manter certa reserva em torno do tema. Mais experiente, anos após, já convencido de que o Espírito de Verdade era o próprio Cristo, incluiu em “O Evangelho Segundo o Espiritismo” a mensagem que contém a exortação: “Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo”.

Realmente, só existe um meio seguro para aceitar uma mensagem como sendo de origem das forças do bem: o seu conteúdo, a sua essência. A árvore boa obrigatoriamente dá bons frutos. A esse respeito, tanto Kardec quanto João ( “Não acrediteis em qualquer Espírito, mas examinai se os Espíritos são de Deus”), nos advertem acerca da apurada análise que devemos fazer, debruçando-nos sobre a mensagem à procura de sinais de vida ou de morte. Diante do exposto, poderíamos indagar: O que é mais importante: saber se o nome corresponde ao Espírito que assinou a mensagem ou se o conteúdo desta está conforme a sua elevação moral-intelectual? Há ainda um outro aspecto a ser analisado. Muitos Espíritos de escol gostam de ficar no anonimato e primam mesmo pelo silêncio em relação a seus feitos e nomes. Sabe-se que entre eles, embora conservem suas individualidades, há semelhança de objetivos, no que todos se unem visando semear o amor em suas múltiplas expressões, resultando disso um trabalho conjunto, onde o quem fez não é relevante.

Seria o médium despreparado um obstáculo intransponível à comunicação de um Espírito mais evoluído que ele? Julgamos que não. E aqui não vai nenhum incentivo ou argumento a favor do despreparo do médium, que deve estudar e se esforçar a cada dia visando sua evolução intelectual e moral. Se o “Espírito de Verdade” era verdadeiramente o Cristo, como julgou Kardec, temos a sua comunicação por vários médiuns, obviamente todos muito abaixo de sua elevação moral. Não poderia um outro Espírito de condições mais modestas que as do Cristo repassar sua mensagem e assinar por Ele? Acreditamos que sim, de vez que nossos mentores utilizam desse expediente quando não podem estar presentes em determinado local. Mas isso é ético? Claro que sim. O funcionário dos Correios escreve nossa mensagem, nosso nome e a envia a qualquer parte do mundo como se tudo fosse feito por nós. Não teria valor o que está escrito?

Aprofundando ainda a temática, perguntaríamos: Pode um médium em uma reunião mediúnica receber mensagens de Espíritos diferentes, todos em condições morais mais elevadas que a dele? Seria possível a um médium receber mensagens de Mesmer, Napoleão, General Bertrand, General Brune, Luís XVI, Lafayette, Newton, Jean Reynaud, Molière, Rousseau, Balzac, Pascal, Descartes, Lamennais, Bossuet, Massilon, São Luís... no espaço de uma única reunião?

O observador desatento diria, de imediato, tratar-se de uma grosseira fraude. No entanto, tal fato ocorreu mais de uma vez, tendo sido registrado na Revista Espírita” com o título “Comunicação Coletiva”, acompanhada da necessária e pertinente observação: Este gênero de comunicação levanta uma questão importante. Como os fluidos de tão grande número de Espíritos podem assimilar-se quase que instantaneamente com o fluido do médium, para lhe transmitir seu pensamento, quando tal assimilação por vezes é difícil da parte de um só Espírito, e geralmente só se estabelece com vagar?

O Espírito Slener, protetor do médium, dá a seguinte explicação para o fenômeno ocorrido na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas: A comunicação que obtiveste dia de Todos os Santos, como a última, que é o seu complemento, posto nesta haja nomes

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repetidos, foram obtidas da seguinte maneira: como sou teu Espírito protetor, meu fluido é similar ao teu. Coloquei-me acima de ti, transmitindo-te o mais exatamente possível os pensamentos e os nomes dos Espíritos que desejavam manifestar-se. Estes formaram em torno de mim uma assembléia cujos membros, cada um por sua vez, ditava os seus pensamentos, que eu te transmitia. Isto foi espontâneo e o que naquele dia tornava as comunicações mais fáceis é que os Espíritos presentes tinham saturado a sala com seus fluidos. Quando um Espírito se comunica com um médium, fá-lo com tanto mais facilidade quanto melhor estabelecidas entre si as relações fluídicas, sem o que o Espírito, para comunicar seu fluido ao médium, é obrigado a estabelecer uma espécie de corrente magnética, que atinge o cérebro deste. E se, em razão de sua inferioridade, ou por qualquer outra causa, o Espírito não pode estabelecer esta corrente, ele próprio, então recorre à assistência do guia do médium, e as relações se estabelecem como acabo de indicar. ( Revista Espírita, 1867 )

Como se vê, muitos, senão todos os argumentos elaborados contra as evocações no meio espírita, não possuem solidez para serem elevadas à categoria de obstáculos intransponíveis. É necessário estudo, critério, seriedade, competência; mas medo, discriminação ou exclusão, jamais.

Pensemos em tais argumentos, quando comentarmos sobre as evocações.

Lições inesquecíveis

Os seres humanos, desde a sua origem, têm a seu favor maravilhosas lições ministradas por mestres que a espiritualidade maior lhes envia para faze-los progredir. É com justiça que se diz que Deus jamais abandona seus filhos, pois tais mestres continuam a reencarnar com missões específicas, cada um em sua área de conhecimento, arrastando a humanidade de sua lentidão moral e científica, forçando-a a avançar, às vezes, séculos no curto espaço de uma geração.

Enumerá-los seria impossível, tanto por nossa falta de conhecimento, quanto pela análise fora de contexto que faríamos, em inúmeros casos. Desde os primeiros missionários, que contribuíram na descoberta do fogo, da roda, da agricultura, passando pelos egípcios, gregos, romanos, hindus, árabes, chineses.... até o surpreendente e inusitado avanço tecnológico do século em que vivemos, vê-se com clareza que missionários continuam sendo enviados à Terra para ministrar inesquecíveis lições.

A eles não importa o quanto sofrerão com a incompreensão daqueles que, através do seu sacrifício, receberão o benefício, nem sempre reconhecido. Na idade média muitos deles morrerão em fogueiras inquisitoriais ou apodreceram em prisões infectas por causa de suas lições. A bondade foi freqüentemente, e ainda é, tratada como inimiga neste vasto mundo. A sabedoria, maior tesouro que alguém poderia almejar, nem sempre escapa de ser soterrada por montanhas de ignorância e de indiferença, marcas ainda vivas na alma humana no presente momento.

O homem, excetuando-se pequena parcela da humanidade, continua a temer o amor e a sabedoria, combatendo-os tenazmente, como se essas duas virtudes o enfraquecesse

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frente a luta pela sobrevivência. A sua visão imediatista não permite que alongue o olhar para além do túmulo, ângulo que, se observado com interesse, o convenceria a priorizar o que até então despreza.

Missionários qual Sócrates, Jesus, Francisco de Assis, Galileu, Giordano Bruno e tantos outros, foram severamente molestados pela arrogância que dominava a época. O mundo ainda teme os missionários e por isso os maltrata, como se a ingratidão e o desamor fossem motivos bastante fortes para faze-los evitar-nos.

A Grécia antiga foi um celeiro desses Espíritos amorosos. Nenhum povo, na antiguidade, avançou tanto na filosofia, nas artes e nas ciências quanto os gregos. Seus conquistadores se sensibilizavam com o que viam, e mesmo violentos e insensíveis, sentiam-se motivados a poupar aquelas riquezas espirituais e materiais que nunca haviam visto.

Quando O jovem Alexandre, rei da Macedônia, que fora educado por um grego, dos treze aos dezoito anos de idade, o filósofo Aristóteles, invadiu a Grécia, ficou maravilhado com a figura de Diógenes. Este era um homem simples, louco para muitos, mendigo para outros, sábio para alguns, que andava seminu pelas ruas, com uma lanterna na mão à procura de um homem. Diógenes era desprendido de todo e qualquer bem material. Morava em um barril em meio a mata e para comer utilizava apenas as mãos. Para beber água, unia as mãos em forma de concha. Foi o mais famoso representante da escola filosófica cínica, criada por Antístenes, que ministrava o seguinte ensinamento: o homem sábio e feliz é aquele que não tem necessidade de fama ou de amigos e que se satisfaz na virtude completamente alheio à sociedade. Diógenes, como os cínicos em geral, ridicularizava a religião grega com seus inúmeros deuses, mas aceitava a existência de uma divindade superior. Tudo que não fosse virtude era considerado superstição para ele, que chegou a proclamar-se cidadão do mundo, avançando no conceito de que o Espírito é um cidadão do universo.

Por ser uma figura fora do comum e pela defesa intransigente das virtudes, chamou a atenção de Alexandre, admirador da cultura helênica pela educação tipicamente grega que tivera, o que lhe imprimiu, ainda que escasso, algum respeito por aquele sábio povo.

É para os admiradores de Diógenes, entre os quais me incluo, que resgatei da Revista Espírita, ano 1859, com o título “Palestras Familiares de Além-Túmulo”, partes da comunicação deste, levada a efeito através de evocação feita pelos dirigentes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.

As primeiras palavras de Diógenes são: Como venho de longe! Cita o entrevistado que viera de um outro planeta, desconhecido para nós. Que a sua encarnação como Diógenes fora a última no planeta Terra e que, onde vive atualmente, mesmo em estado de vigília no momento em que se realizara a evocação, pudera atender ao chamado que lhe fora feito. Esta revelação estabelece de imediato uma diferença entre o mundo superior em que o filósofo vive e o planeta Terra. Apreende-se que lá o Espírito não é tão preso à matéria e que por sua vontade pode dela liberar-se mesmo em vigília. Nota-se também a impressionante velocidade de deslocamento do Espírito, vencendo instantaneamente e sem embaraços a distância entre um mundo e outro. Percebe-se por fim, o poder do pensamento que, direcionado e disciplinado, o atingiu com sua mensagem clara, qual seja: nós o queremos aqui.

Indagado se poderia se mostrar ao médium tal qual era na existência em que esteve entre nós, responde: Sim. E até, se quiserdes, com a lanterna. Mesmo passado milhares de anos, o Espírito guarda na memória, se isso lhe interessa, os detalhes de uma encarnação ou

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de um fato particular. Torna evidente também o gesto de Diógenes, a imensa plasticidade do perispírito, que obedece fielmente as diretrizes da mente, o que não deixa de ser ainda um aviso aos videntes, no sentido de precaver-se contra eventuais embusteiros em tentativas de se fazerem passar por personalidades outras, assemelhando-se a estas por modificação perispiritual, no que não encontrariam dificuldades caso tivessem conhecimento para tanto. Eis como o vidente o descreve após a sua transformação perispiritual: Fronte larga e de ossos frontais bem pronunciados; nariz fino e aquilino, boca grande e séria; olhos pretos e encovados; olhar penetrante e zombeteiro. Rosto um pouco alongado, magro e enrugado; tez amarela; bigodes e barba incultos; cabelos grisalhos e raros.

Nota-se também durante a conversa, o prazer que Diógenes sente em responder as perguntas a ele formuladas, sem demonstrar em nenhum instante sinais de incômodo por ter sido evocado.

Indagado sobre as qualidades que gostaria de encontrar no homem que procurava com o auxílio de sua lanterna, responde: Firmeza. E adianta: procurava as qualidades que admitia existir em mim mesmo. Esse era o meu critério.

A entrevista prossegue com a seguinte pergunta: É verdade aquilo que se conta de vossa entrevista com Alexandre?

- Realíssimo. A História até a truncou.- Em que a História a truncou?- Refiro-me a outras conversas entre nós. Pensais que ele me tivesse vindo ver

para só me dizer uma palavra? Como se nota na entrevista, os missionários têm grande influência no bem estar da

humanidade, agindo sobre aqueles que podem modificá-la para melhor. Em suas conversas com Alexandre, o filósofo deve ter falado de sua filosofia, de seus valores, da fatuidade das coisas mundanas e de quão perecíveis e efêmeras são as glórias terrenas. Mas aquele jovem general, maluco, vão e orgulhoso, como o definiu Diógenes, não teve a sabedoria de executar suas lições. Partiu dali para suas conquistas sangrentas e até os trinta e três anos de idade, quando então faleceu vitimado pela febre, fez correr sangue pela terra, conquistando tudo que enfrentou sem nunca ter sido derrotado.

O mestre evocado, diante de inteligente pergunta formulada no sentido de obter um paralelo entre o homem que ele buscava e o que buscaria hoje, responde: Outrora buscava no homem as qualidades: coragem, ousadia, segurança de si mesmo e poder sobre os homens pela inteligência. Hoje, a abnegação, a doçura e o poder sobre os homens pelo coração.

Vale ressaltar que Jesus, há dois mil anos atrás, fez a seguinte observação: Antes os reinos eram tomados pela força. Hoje devem ser invadidos pelo coração.

Sabe-se que a verdade é imutável. Os homens é que são mutáveis enquanto não as absorvem. Quando o fazem, passam a falar a mesma linguagem, diante de qualquer situação.

Por fim, podemos ver o quanto as evocações sérias e bem planejadas, com objetivos úteis, podem auxiliar na educação e na evolução dos povos. Através delas as lições não compreendidas nem praticadas podem voltar à tona para servir novamente de referencial para estudantes desatentos. Através dos mestres enviados à Terra para faze-la evoluir, podemos aprender inesquecíveis lições que norteiem nossa alma. Mas se as esquecemos, se as negligenciamos, eles não se cansam em repeti-las, pois entendem o nosso estágio de

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estudantes displicentes e imaturos. Na pedagogia terrena, o mestre repete a lição quando o aluno não a assimilou integralmente. Por que seria diferente na pedagogia celestial?

Pensemos nas imensas possibilidades de aprendizagem que temos em mãos e demos graças a Deus por tantas e tão sábias lições que nos tem ministrado através de suas leis magníficas.

Mensagens de quarentena

Em reunião de estudos efetuada no Centro Espírita Grão de Mostarda, Fortaleza-Ceará, escutei de um dos presentes que determinado médium havia recebido dezenas de mensagens de Espíritos que haviam encarnado personalidades famosas na Terra, mantendo-as no entanto em quarentena, à espera de tempo favorável para torná-las públicas.

Fiquei pensando sobre os motivos que levaram tais Espíritos a escrever tantas mensagens, se as mesmas são inadequadas à época atual.

Como a velha mania de querer saber o porquê das coisas nunca me deu tréguas, voltei para casa com o pensamento fixo naquele assunto.

Observando-se a natureza, nota-se que as sementes germinam quando o solo está pronto. Diz a sabedoria popular sobre esta questão: quando o aprendiz está pronto, o mestre aparece. Isso nos remete ao seguinte raciocínio: as coisas acontecem em hora determinada, movidas por agentes determinados.

As lições da História nos esclarecem que os profetas tinham visões, sonhos, intuições, e corriam às praças públicas para divulgá-los. Nem mesmo a contundente mensagem do Apocalipse escapou a este procedimento. Moisés, ao receber o decálogo, não esperou para que os seus liderados, em descompasso flagrante com o código moral a ele passado, avançassem, tornando-se assim dignos de executá-lo. Jesus ensinou as verdades celestiais, mesmo sabendo que elas seriam a causa de sua morte. As idéias que o Mestre emitia contrastavam fortemente com o sistema dominante, mas Ele não esperou pela mudança do quadro político-social para então espalhá-las aos quatro ventos. Sem importar-se se seria ou não entendido, mesmo porque era ciente de que alguns tinham olhos e ouvidos de ver e ouvir e outros não, fez predições marcantes: Sua morte e paixão, a perseguição dos apóstolos, o castigo das cidades impenitentes, a ruína do Templo de Jerusalém, o advento de Elias, a anunciação do Consolador, os sinais precursores do juízo final, dentre outras, foram declarações emitidas com clareza meridiana. Disse mais: Ninguém é profeta em sua terra, demonstrando profundo conhecimento da natureza humana, passando este provérbio, pérola da sabedoria universal, a ser observado como verdadeiro, face à hostilidade e à inveja que uma cidade às vezes nutre por um filho, cuja missão não entende ou não lhe agrada. Se mais não disse, foi porque o povo não atingira ainda a maturidade exigida para a compreensão dos ensinamentos a serem ministrados. Todavia, não deixou escritos para que a seu tempo fossem revelados. Chegada a hora, o “Espírito de Verdade” e sua numerosa falange tratou de organizar um corpo doutrinário

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contendo os ensinamentos prometidos e outros que haviam sido esquecidos, invadindo a Terra com revelações surpreendentes de elevada moral e refinada sabedoria.

Allan Kardec, o codificador do Espiritismo, deixava mensagens em quarentena quando tinha dúvidas acerca da autenticidade das mesmas. Caso contrário, ainda que polêmicas, como é o caso das mensagens sobre Marte, Júpiter e Vênus, estas eram divulgadas com as devidas ressalvas para conhecimento da sociedade.

Yvonne Pereira esperou um pouco para apresentar aos leitores a excelente obra psicografada por ela, de autoria do Espírito Camilo Castelo Branco, “Memórias de um Suicida”, por indecisão sua, por julgar-se incapaz de analisá-la.

Que mensagem científica, filosófica ou religiosa seria inadequada ao presente momento, quando nada mais nos assusta diante do desenfreado avanço científico-tecnológico que vivenciamos? Sabemos que os bons Espíritos não ensinam sua avançada tecnologia para os encarnados, embora os incentivem a descobri-la. Seguindo este raciocínio, tais mensagens não teriam o cunho revelador, tão ansiado nesta área de conhecimento. Seria um compêndio com mensagens políticas, inflamando à população à retomada de seus direitos, usurpados há séculos? Ora, isso, cada qual a sua maneira, centenas de missionários o fazem. Além do mais, para determinados espíritas não engajados politicamente, mensagens deste teor seriam “subversivas”, “comunistas”, anti-doutrinárias, e certamente teriam como autores alguns capetas interessados na implosão do Espiritismo. Afinal, que raios de mensagens são estas que justifiquem o silêncio frente ao franco debate que necessitamos?

Estariam de quarentena por seus autores pertencerem a outras religiões, fato que geraria melindres em corações “sensíveis”? Se o caso é este, não custa lembrar as origens do Espiritismo. Fénelon, Lacordaire, Lamennais, Gregório XVI, Vicente de Paulo, Vianney, Adolfo, Santo Agostinho, dentre outros, pertenceram a outra religião. Esses religiosos trabalharam com afinco para que o Espiritismo se firmasse solidamente, estágio que atingimos em nossas bases monolíticas, graças ao debate sério e às ações públicas que efetuamos.

Teria o médium algum temor de ataques ao Espiritismo, coisa que o enfraqueceria, ou de ser ele mesmo ridicularizado por seu trabalho mediúnico? Lembremos Gamaliel falando a Saulo, diante do temor que os inimigos do Cristianismo nascente inspiravam: Se é do Senhor, não haverá impedimentos. Se tais revelações são da parte de Deus, o que seria capaz de barrar-lhes o curso?

Poder-se-ia dizer que o livro Evolução em dois Mundos, de André Luiz, veio fora do seu tempo? Einstein deveria silenciar quanto à Teoria da Relatividade por ser esta incompreensível, durante anos, até mesmo para os cientistas? Devemos dizer o mesmo de Newton, a pretexto de que suas leis pudessem um dia ser utilizadas em armas de guerra? De Mozart, cujas melodias divertiriam os tiranos? De Madame Curie, que deu a vida homeopaticamente pesquisando a radioatividade? Essas pessoas deveriam silenciar e deixar suas descobertas e escritos em quarentena?

Mesmo sob ameaça de morte, muitas delas confirmadas, sábios e cientistas divulgaram seus trabalhos. Alguns a plenos pulmões, como ocorreu a Giordano Bruno, cujo preço da coragem foi a morte na fogueira, outros veladamente, qual sucedeu com Dante em sua Divina Comédia.

Os missionários não são responsáveis pelo que outros fazem de suas descobertas ou criações. Eles vêm ao mundo trazendo ensinamentos para o fazer progredir. Os homens, Espíritos inferiorizados, é que desvirtuam o resultado de tão nobre esforço e trabalho. O

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mundo ainda é uma praça de guerra onde o profano convive com o sagrado sem animar-se a seguir-lhe os ensinamentos.

Mas se a mensagem ditada por determinado Espírito precisa esperar dez ou vinte anos para ser conhecida, por que ele apressou-se em trazê-la à lume deixando-a em quarentena? Seria essa decisão, do Espírito ou do médium? Em quais critérios um ou outro se baseia para agir dessa maneira? Será que um ou ambos julgam que no futuro, época marcada para a divulgação da mensagem, não haverá médiuns à altura para recebê-las? Não seria tal pensamento e atitude, se confirmados no Espírito ou no médium, subestimar a Lei de Evolução e superestimar os poderes de previsão do futuro?

O fato é que não encontro argumentos realmente sólidos na defesa da quarentena das mensagens. Mesmo que as mesmas, no entender de alguns, viessem a provocar pânico em algumas pessoas, hipótese que descarto, nada poderia superar o pânico amordaçado, preso em diques, em gritos sufocados, que se instalou na sociedade pelo medo de perder o emprego, conviver com a violência, com doenças letais, com a fome material e de justiça, com a guerra e seus horrores, dia-a-dia de milhões de habitantes terrenos.

Portanto, achei melhor encerrar o assunto. Talvez o tempo, esse descobridor de “homens”, venha a trazer revelações que aquietem o meu Espírito.

Enquanto esperamos, divulguemos a doutrina consoladora que nos norteia, em teoria e prática, para que, chegado nosso momento de partir, estejamos menos pesados pelas batalhas que empreendemos contra a ignorância e a injustiça.

Testemunhas

Há dias na vida das pessoas, onde tudo que elas tentam fazer sai errado. São dias, dizem os supersticiosos, em que elas se levantam da cama com o pé esquerdo.

Esquerdo? Alto lá! Não quero iniciar este texto invertendo a ordem natural da evolução. Por que algumas pessoas batizam de esquerda as coisas que julgam desagradáveis? Não são as forças de esquerda as que lutam por dias melhores para a população? Por que até em textos bíblicos os que estão à esquerda são os pecadores? Essa maneira de depreciar a esquerda, de utilizar de forma pejorativa esta palavra, irrita-me profundamente, pois sempre tive grande simpatia por ela.

Quando nasci, disse-me minha mãe, virei a cabeça para a esquerda, dando deste lado o primeiro berro, quem sabe, de protesto. Durmo meio emborcado para a esquerda e nos salões de escolas e conferências busco invariavelmente o lado esquerdo da sala. Quando moleque, fiz minha primeira baladeira para matar passarinhos, é duro admitir isso, mas era essa minha a intenção, e ao utilizá-la fechava o olho direito ao fazer pontaria, pois isso aumentava as minhas chances de atingir o alvo. Por que? O esquerdo enxergava melhor.

Se me perguntassem se existe certa intolerância pelo lado esquerdo neste país, responderia sem pestanejar que sim. Vai aqui algumas perguntas para quem faz essa discriminação: de que lado do corpo localiza-se o coração? Que lado do cérebro comanda o lado direito do corpo? Alguém já viu algum jogador de futebol ser apelidado de “direitinha

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de ouro”? Claro que não! Mas do “canhotinha de ouro”, todo mundo lembra. De que lado da reta numérica estão os números inteiros negativos? Negativos! Imagine, os da esquerda são os negativos. Isso é ou não é, preconceito?

Pois bem! Eu havia pedido há um mês atrás, um documento no INSS para averbar alguns anos de serviço no doloroso cargo de professor. Na data aprazada vesti uma bermuda novinha, uma blusa de algodão, um tênis confortável e me dirigi ao prédio, sempre abarrotado, para receber o tal documento. Quando uma senhora me atendeu, fez uma discreta careta, tomou um gole de café e disse: todo o seu trabalho foi perdido. Quem lhe atendeu não lhe informou corretamente sobre o procedimento a tomar.

Como aguardava há um mês o documento, perdi as estribeiras: como não me informou corretamente? Suponho que o funcionário que me atendeu deveria conhecer as leis que regem essa matéria. Espero há um mês por este parto e agora a senhora vem me dizer que é um aborto?

- Todo mundo erra, moço! Vai me dizer que o senhor nunca errou? Não chamei a mulher de imbecil porque ela já estava avançada nos anos. Mas que o

argumento dela fora digno do mais ingênuo dos imbecis, não há como negar.- Minha senhora, não temos o direito de praticar erros grosseiros. Um professor de

Matemática não pode errar o problema da disciplina na qual ele se especializou. Um médico não pode errar na técnica cirúrgica estudada por ele durante anos. O funcionário que me atendeu tinha o dever de informar corretamente, pois ele está sendo pago, inclusive por mim, para dar essa informação correta.

Não teve jeito. Enviaram-me para o Palácio do Cambeba, espaço do qual sempre saí convicto de que precisava tomar um passe logo a noite, coincidentemente o local onde trabalha o governador do Estado com a sua escolta e seus assistentes. Como não conhecia bem o local onde me encontrava, fui ao terminal de ônibus e lá me informaram qual o veículo a tomar, descobrindo já a meio do caminho que não era exatamente aquele ônibus que deveria ter apanhado. Já havia esgotado todo o meu estoque de palavrões, que não é pequeno, e após tomar outro ônibus, duas horas depois, avistei o Cambeba. Em lá chegando, barraram-me a entrada porque eu trajava bermuda. Aí eu não agüentei e comecei a fazer perguntas de esquerda para o segurança: será que se eu fosse um deputado, desses que roubam o dinheiro público mas que é aliado do governo, ficaria aqui plantado? Os turistas entram de bermuda nos melhores hotéis, nos quartéis, nas igrejas e aqui um professor não entra? Se eu fosse um ladrão trajando terno e gravata, certamente o senhor me deixaria passar. É o meu traje atentado ao pudor? Quem paga todo esse luxo aqui? Por que aqui o homem vale o que veste e não o que é?

O segurança ia ficando cada vez mais vermelho, mas continuava sem dizer uma só palavra. Irritado como estava devido a tantos insucessos, continuei: as pernas daquela mocinha estão mais a descoberto que as minhas. Qual o preconceito existente aqui contra as pernas dos homens? E por estas e outras que o povo toma os governos e os palácios como aconteceu na Revolução Francesa. Se o presidente americano viesse aqui apenas de cueca todos correriam com o tapete vermelho para saudá-lo.

O homem olhou de maneira fulminante para mim, fez menção que ia “me convidar” para sair, o que certamente, no estado em que eu estava, recusaria na certa. Uma senhora, que a tudo observava a alguns passos, correu e me disse: pode deixar que eu faço o que o senhor pretendia fazer aqui no palácio. Em seguida trouxe papel, orientou-me no preenchimento dos dados nele solicitados, foi no interior do palácio, deu entrada no pedido

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e me trouxe o comprovante com o número do telefone para que eu o consultasse quanto ao dia da entrega.

Surpreendido com a atitude incomum da funcionária, perguntei: Por que a senhora fez isso por mim? Uma mão lava a outra, respondeu. O senhor me ajudou bastante com aquela palestra sobre mediunidade. Demorei a reconhecê-lo porque na palestra o senhor falou bastante de perdão e agora estava vacilando em usá-lo.

Vacilar foi o verbo gentil que a senhora encontrou para me fazer lembrar das lições que ministrara através de algumas palavras bem elaboradas. Eu estava mesmo era cuspindo marimbondos, como se diz daquele cuja paciência armazenada não dá para encher um dedal. Mas aquela atitude me acalmou um pouco e pude perceber o quanto mantinha distância entre o discurso e a prática. Julgamo-nos evoluídos porque a desgraça não dorme conosco e eis que pequeno teste nos escancara a realidade.

Veio-me à cabeça as palavras do apóstolo Paulo, somos cercados por nuvens de testemunhas, e fiquei naquela luta interna, um lado, o esquerdo, dizendo que eu tinha razão de ter dito o que disse, e o outro, o direito, lembrando as lições que não fui capaz de executar. Como sempre escuto mais a esquerda, contentei-me com o pensamento de que não devia esperar tornar-me um santo para fazer palestras ou escrever livros. Aquele incômodo causado pelo lado direito devia ser coisa de obsessor.

Cheguei em casa um pouco sem graça. Romélia estava com aquele sorriso que transforma o modesto apartamento em luz crepuscular filtrada por estrelas de vidro. Senti vontade de narrar o acontecido, mas desisti, não quis contaminar a aura azul-amarelada que invadia a janela. Sentei ao lado do computador e procurei na mais silenciosa e perfumada floresta que há em minha alma, versos trançados, construídos com alecrins e miosótis.

Quem sabe um dia não venha a atingir o estágio celeste que me permita oferecê-los aos construtores dos meus infortúnios?

Personagem da codificação

Alfred de Musset ( 1810 – 1857 )

É difícil saber quantos foram os personagens engajados na invasão cultural e, mais especialmente religiosa, da qual a Terra foi objeto no século XIX por ocasião da codificação da Doutrina Espírita.

Muitos participantes desse evento chegaram à França e ao restante da Europa para preparar o terreno, ou seja, reencarnaram na véspera, antes do clímax do movimento, deixando sua parcela de contribuição nas áreas em que atuaram, retornando após o desencarne para o exército de colaboradores sob o comando do Espírito de Verdade.

Tal foi o caso de Alfred de Musset, poeta que deixou o corpo físico em 1857, ano do lançamento de “O Livro dos Espíritos”, auge da luta e da expansão da Doutrina Espírita.

Enquanto encarnado, Musset foi considerado por muitos admiradores do seu trabalho, o maior poeta da França. Conta-se em Paris, que certa feita o correio procurou Victor Hugo para lhe entregar uma carta, cujo sobrescrito recomendava: para ser entregue

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ao maior poeta da França. Hugo não se achou no direito de abrir a carta e a devolveu ao carteiro, advertindo-o: o maior poeta da França é Lamartine. A carta tomou então o novo endereço, mas quando o autor de Jocelyn, aceitando o elogio de Hugo pôs às claras o seu conteúdo, verificou surpreso que a mensagem era endereçada a Alfred de Musset.

Este fato, divulgado entre os literatos parisienses chegou aos ouvidos de George Sand, mulher de rara inteligência, aguçada sensibilidade e sólido instinto maternal, que fez questão de conhecê-lo. Sand havia saído de um relacionamento sofrido com o genial compositor polonês Chopin, ceifado pela tuberculose aos trinta e nove anos de idade. Considerado o poeta do piano, Chopin era igualmente sensível, depressivo, e a ela entregara-se como um menino o faz no relacionamento materno.

Musset era galanteador, amoroso, conquistador, e como Sand viria a constatar mais tarde, depressivo e incapaz de amar com fidelidade a quem quer que fosse. De presença disputada nos salões aristocráticos, o poeta fazia fama com seu procedimento, vulgar para uns, poético para outros, doentio para alguns.

Analisado à luz da Psiquiatria moderna, diríamos que Musset se encaixava bem no perfil hebefrênico, pois seu comportamento infantil, frívolo, instável e superficial, variava em poucos minutos do riso às lágrimas, sendo-lhe acentuados o egoísmo e a ingenuidade infantis. Seus biógrafos o apontam como uma criança que jamais cresceu. Desejando ser amado, mas incapaz de amar, tratou o amor como um brinquedo, fato que invariavelmente produz ferimentos em quem opta por assim relacionar-se.

A poesia de Musset mudou de tom conforme a sua idade, mas jamais deixou de ter a beleza e a leveza que se espera de um verdadeiro poeta. Aos vinte anos de idade era mordaz e irônico, aos vinte e cinco, petulante e caloroso, aos trinta, sonhador.

Com as mulheres, o eterno enamorado sentia-se à vontade. Dizia versos românticos e os fazia acompanhar de gestos delicados e sedutores, demonstrando a fragilidade de quem pede asilo nos braços das ouvintes. Paradoxalmente ele deixava transparecer sua carência de proteção, mas afirmava ser capaz de amar como nenhum homem já o fizera, fato que exige autonomia, coragem e decisão. De alguém assim, com olheiras profundas e violáceas, sempre bem vestido e com versos prontos para enternecer; alguém que parecia saber o segredo dos cofres cardíacos das mulheres, que invadia a alma sem pedir licença, cuja perícia em comover era marca registrada, é muito difícil escapar, notadamente em tempos de solidão.

Um fato marcante em Musset era a bebida e o jogo, praticados com exagero, chegando mesmo a ser vítima do “delírium tremens”, a doença dos alcoólatras.

Quando George Sand conheceu Musset identificou nele uma alma frívola que a desgostou, perdendo por ele o interesse. Mas houve um segundo encontro onde o instinto maternal de Sand e a sua admiração por homens incomuns, formaram a sintonia necessária para mais uma aventura amorosa. Ao se tornarem amantes, Sand o tratou com o mesmo desvelo que a Chopin, chamando-o, inclusive, de meu filho sublime. É dela o relato a seguir: “Um dia, sentamo-nos à borda de um precipício. Alfred começou a inquietar-se. Daí a pouco, cobriu-me o rosto de beijos e lágrimas e enlaçando-me pela cintura, puxou-me para o abismo. Ele dizia que precisávamos morrer juntos! Eu evitei essa morte. Mas ele nunca perdoou a minha falta de solidariedade na morte...

Musset sofria de alucinações, e parecia, às vezes, ter dupla personalidade. Certa feita, tomado de extrema melancolia, diante de uma crise convulsiva, tiraram-lhe tanto sangue, pois fazia parte da terapia da época as sangrias, que ficou extenuado. Em suas crises, chora, se diz louco, esbraveja, mas em tudo sua fiel companheira o assistia.

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Após tentar matar Sand com uma faca, Musset a deixa, para morrer infeliz sem encontrar a satisfação no amor. Um dos seus últimos pedidos foi que plantassem um lindo salgueiro na sua sepultura.

Como pode um caráter frívolo como Musset, colaborar na codificação, perguntarão alguns, diante do que foi exposto. Com o seu gênio, sua sinceridade, responderei. Vejamos duas de suas mensagens, transcritas da Revista Espírita do ano de 1860, retirando delas o subsídio necessário para uma parcial avaliação:

Fantasia Queres que eu te fale da fantasia. Ela foi a minha rainha, minha dona, minha

escrava. Eu a servi e a dominei. Mas embora sujeito às suas adoráveis flutuações, jamais lhe fui infiel. É ainda ela quem me impele a falar de outra coisa: da facilidade com que o coração carrega dois amores, facilidade mal vista e muito censurada. Considero injusta essa censura dos bons burgueses que só gostam de seus pequenos vícios moderados, mais enfadonhos ainda que suas virtudes; eles só admitem o que os seus miolos podados e cercados de sebes como um jardim de padre conseguem entender. Tens medo do que te digo; fica tranqüila; Musset tem a sua garra; não se lhe podem pedir gentilezas de cãezinhos amestrados. É preciso suportar e compreender suas piadas, verdadeiras sob sua aparência frívola, tristes sob sua alegria; risonhas nas suas lágrimas.

Pelo conteúdo da mensagem, se comparada com a sua obra e as suas opiniões em vida, podemos deduzir que, a época em que ela foi escrita, Musset era o mesmo homem de quatro anos atrás, quando desencarnou. Foi fiel a fantasia, e somente a ela. Quatro anos não fora tempo suficiente para torna-lo infiel a sua musa. Admite a facilidade de o coração ter mais de um amor, é irônico, mordaz, verdadeiro. E não poderia deixar de ser dessa maneira. A morte não transforma homens frívolos em santos. Todavia, como em vida fora um gênio da poesia, não poderia degenerar com a morte. Ao ser lida e comentada esta mensagem na Sociedade Parisiense, um dos ouvintes a considerou de pouca significação. O Espírito de Sócrates, que participava da conversa, respondeu a esta observação, escrevendo espontaneamente: Não, tu te enganas: relê; há coisas boas; ela é muito inteligente e isto tem o seu lado bom. Diz-se que nisto se conhece o homem. Com efeito, é mais fácil provar a identidade de um Espírito do vosso tempo do que do meu. Para certas pessoas é útil que, de vez em quando, tenhais comunicações desta espécie.

De outra feita, estando os médiuns da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, conversando sobre os Espíritos que se comunicavam dando mensagens do além túmulo, alguém disse, referindo-se ao caráter de Musset, que o mesmo fora muito apegado a matéria em vida. De imediato este escreveu espontaneamente a mensagem que se segue, cujos ensinamentos trazem preciosas sutilezas sobre a comunicação mediúnica, motivo mais que justo para incluí-lo entre os colaboradores da codificação espírita.

Influência do Médium sobre o Espírito

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Só os Espíritos superiores podem comunicar-se indistintamente por todos os médiuns e manter com todos a mesma linguagem. Mas eu não sou um Espírito superior, e, por isso, às vezes sou um pouco material. Contudo, sou mais adiantado do que pensais.

Quando nos comunicamos por um médium, a emanação de sua natureza se reflete mais ou menos sobre nós. Por exemplo, se o médium é dessas naturezas em que predomina o coração, desses seres mais adiantados, capazes de sofrer por seus irmãos; enfim, dessas almas devotadas, grandes, que a infelicidade tornou fortes e que ficaram puras no meio da tormenta, então o reflexo faz bem, no sentido de nos corrigirmos espontaneamente e nossa linguagem se ressentir. Mas no caso contrário, se nos comunicamos por um médium de outra natureza, menos elevada, pura e simplesmente nos servimos de sua faculdade como um instrumento. É então que nos tornamos o que chamas de pouco material. Dizemos coisas espirituais, se quiserdes, mas pomos de lado o coração.

Nesta mensagem Musset afirma não ser um Espírito superior, mas não tão inferior quanto julgavam alguns. Em seguida, explica a salutar influência que o médium pode ter sobre o Espírito comunicante, induzindo-o a atenuar suas influências materiais, com reflexos claros sobre os sentimentos e a linguagem.

Tal ensinamento, prático e digno de ser exercido por parte do médium, que ao evoluir intelectual e moralmente colabora na melhor execução e pureza da mensagem transmitida, atesta o empenho a que Musset se entregou nos encargos doutrinários. Julgar que todos os componentes da falange do Espírito de Verdade eram Espíritos luminosos emanados das altas esferas de luz eterna é um pensamento infantil e sem muita substância. Participaram dela criminosos arrependidos e até mesmo endurecidos, homens e mulheres comuns, encarnados e desencarnados, para o mundo, simples desconhecidos, mas para a doutrina nascente, estrelas fulgurantes em noites cálidas.

Lembremo-nos de nós próprios que temos a Doutrina Espírita como referencial de vida há anos e ainda não conseguimos amar verdadeiramente aos nossos, quanto mais aos outros. Todo aquele que coloca qualquer grão de areia no edifício do Senhor com a intenção de fortalece-lo é um trabalhador da causa.

Quanto a codificação espírita, nomeando seus trabalhadores, deveríamos deixar de fora os suicidas, os criminosos, os avarentos, os carrascos, dentre outros, que foram evocados, ministrando-nos ao final de suas entrevistas primorosas e substanciosas lições?

Conclusão

O final da noite é o alvorecer. Mas a alvorada traz também o azul do céu, confirmando mais um dia para que possamos investir no amor e na conquista da liberdade. A história que a caridade conta através da atuação das falanges espirituais é interminável.

O Espiritismo é o verso que faltava no poema da evolução humana. Ao aconselhar o Espírito a praticar o amor e a buscar a instrução, dá-lhe um roteiro seguro para aportar os serenos mares da espiritualidade maior sem os traumas dos navegantes desavisados.

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Doutrina que induz à paz e a moderação, investe fundo na reforma moral dos indivíduos procurando torná-los pessoas coerentes em seus discursos e suas práticas. Não é apenas uma doutrina de palavras. Todo mundo diz palavras. Todo mundo escuta palavras. Todo mundo segue palavras. Mesmo cruzando os ares não se escapa delas. O Espírita, às vezes se pergunta: onde aprisionaram o silêncio? Em qual calabouço ele agoniza? Mesmo ao céu chega o pedido dos aflitos. Palavra! Em que vastidão sideral conseguirei escapar da tua influência?

O Espiritismo é uma doutrina de ação consciente no bem. Se utiliza da palavra para ministrar suas lições, muito mais se esforça para ensinar pelo exemplo, trabalhando no alarido das aflições e na calma do silêncio. Durante o sono físico sai o Espírito a batalhar. Na prece, irradia uma mensagem com destino certo. No bom pensamento forma a sintonia com os Espíritos amigos, na meditação acumula energias para os embates da vida. No clarão do dia e no azul da noite, o Espírito trabalha e aprende, ama e cresce para a vida eterna.

O Espírita não é do tipo que caminha no mundo como um lenhador, abrindo clareiras por onde passa. Cidadão ecológico, tem o cuidado de cortar apenas os galhos que bloqueiam o seu caminho. Por isso ama a vida sem odiar os sinais de morte.

Ao fechar este livro, olhe para o céu. Veja o azul e medite sobre quantas pessoas não notam ou não podem ver o manto límpido com o qual Deus nos abriga. E que o Senhor da vida nos dê infinitas noites azuis para continuarmos com nossos diálogos e monólogos escrevendo a história da nossa evolução.

Luiz Gonzaga Pinheiro

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