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CAPÍTULO o Desafio do Relativismo Cultural 2 A moralidade se diferencia em cada sociedade e é um termo conveniente para hábitos socialmente aprovados. RUTH BENEDICT, PA7TERNS OF CULTURE (1934) 2.1. Como as Diferentes Culturas Possuem Diferentes Códigos Morais Dario, um rei da antiga Pérsia, ficou intrigado com a variedade de culturas que encontrou em suas viagens. Ele descobriu, por exem- plo, que os Callatians (uma tribo de indianos) comiam por costume os corpos de seus pais mortos. Os gregos, obviamente, não faziam isso - praticavam a cremação e consideravam a pira do funeral a forma mais natural e adequada de dispor os mortos. Dario acredita- va que um entendimento apropriado do mundo deveria incluir uma apreciação de tais diferenças entre as culturas. Um dia, para ensinar essa lição, ele reuniu alguns gregos presentes em seu palácio e per- guntou o que queriam para comer o corpo de seus pais mortos. Eles ficaram chocados, como Dario sabia que ficariam, e responderam que nenhuma quantidade de dinheiro iria persuadi-los a fazer tal coisa. Então Dario chamou alguns Callatians e, enquanto os gregos ouviam, perguntou o que eles queriam para queimar o corpo morto de seus pais. Os Callatians ficaram horrorizados e disseram a Dario para nem sequer mencionar uma coisa tão terrível. Essa história recontada por Heródoto em seu livro História ilus- tra um tema recorrente na literatura das ciências sociais: diferentes culturas possuem diferentes códigos morais. O que é dado como certo em um grupo pode ser absolutamente abominável para mem- bros de um outro e vice-e-versa. Deveríamos comer os corpos dos o DESAFIO DO RELATIVISMO CULTURAL 17 mortos ou queimá-los? Se você fosse grego, queimá-los pareceria a resposta correta; mas, se você fosse um Callatian, comê-los é que pareceria certo. É fácil dar exemplos adicionais do mesmo tipo. Considere os esquimós (dos quais o maior grupo são os Inuit). Eles são pessoas distantes e inacessíveis. Contando com uma população de cerca de 25 mil apenas, moram em pequenos assentamentos espalhados em sua maioria entre a orla norte da América do Norte e a Groelândia. Até o início do século XX, o mundo sabia pouco a respeito deles. Então, os exploradores começaram a contar estranhas narrativas. Os costumes dos esquimós se mostraram muito diferentes dos nossos. O homem geralmente possui mais de uma esposa e ele deve dividi-las com seus convidados, colocando ambos para dormirem juntos, como um sinal de hospitalidade. Ademais, dentro da comu- nidade, o homem dominante poderia demandar e conseguir ter rela- ções sexuais com as esposas de outros homens. A mulher, contudo, seria livre para romper os relacionamentos, simplesmente deixando seus maridos e dedicando-se a novos parceiros - livre, contanto que seu antigo marido não quisesse arrumar confusão. De modo geral, a prática dos esquimós é um esquema inconstante, que possui uma pequena semelhança com o que chamamos de casamento. Mas as diferenças não eram apenas em seu casamento e suas práticas sexuais. Os esquimós também pareciam ter menos conside- ração com a vida humana. O infanticídio, por exemplo, era comum. Knud Rasmussen, um dos mais famosos exploradores antigos, repor- tou que havia conhecido uma mulher que tinha dado à luz a 20 crian- ças, mas que matara 10 delas no momento do nascimento. As bebês meninas, ele descobriu, estavam mais suscetíveis à morte, o que era permitido, simplesmente seguindo o entendimento dos pais, sem um estigma social associado a isso. Os idosos, quando se tornavam muito fracos para contribuírem com a família, eram deixados na neve para morrer. Portanto, parecia existir, nessa sociedade, consideravel- mente pouco respeito pela vida. Para o público geral essas eram revelações perturbadoras. Nossa forma de viver parece tão natural e certa, que para muitos de nós é difícil compreender outras formas de vida tão diferentes. E quando ouvimos tais coisas, somos levados imediatamente a caracte- rizar os outros como "retrógrados" ou "primitivos". Entretanto, para os antropólogos não havia nada de particularmente surpreendente a respeito dos esquimós. Desde a época de Heródoto, observadores esclarecidos se acostumaram com a idéia de que as concepções de certo e errado se diferem de cultura para cultura. Se assumirmos que

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CAPÍTULO

o Desafio do Relativismo Cultural

2

A moralidade se diferencia em cada sociedade e é um termo conveniente para hábitos socialmente aprovados.

RUTH BENEDICT, PA7TERNS OF CULTURE (1934)

2.1. Como as Diferentes Culturas Possuem Diferentes Códigos Morais

Dario, um rei da antiga Pérsia, ficou intrigado com a variedade de culturas que encontrou em suas viagens. Ele descobriu, por exem­plo, que os Callatians (uma tribo de indianos) comiam por costume os corpos de seus pais mortos. Os gregos, obviamente, não faziam isso - praticavam a cremação e consideravam a pira do funeral a forma mais natural e adequada de dispor os mortos. Dario acredita­va que um entendimento apropriado do mundo deveria incluir uma apreciação de tais diferenças entre as culturas. Um dia, para ensinar essa lição, ele reuniu alguns gregos presentes em seu palácio e per­guntou o que queriam para comer o corpo de seus pais mortos. Eles ficaram chocados, como Dario sabia que ficariam, e responderam que nenhuma quantidade de dinheiro iria persuadi-los a fazer tal coisa. Então Dario chamou alguns Callatians e, enquanto os gregos ouviam, perguntou o que eles queriam para queimar o corpo morto de seus pais. Os Callatians ficaram horrorizados e disseram a Dario para nem sequer mencionar uma coisa tão terrível.

Essa história recontada por Heródoto em seu livro História ilus­tra um tema recorrente na literatura das ciências sociais: diferentes culturas possuem diferentes códigos morais. O que é dado como certo em um grupo pode ser absolutamente abominável para mem­bros de um outro e vice-e-versa. Deveríamos comer os corpos dos

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mortos ou queimá-los? Se você fosse grego, queimá-los pareceria a resposta correta; mas, se você fosse um Callatian, comê-los é que pareceria certo.

É fácil dar exemplos adicionais do mesmo tipo. Considere os esquimós (dos quais o maior grupo são os Inuit). Eles são pessoas distantes e inacessíveis. Contando com uma população de cerca de 25 mil apenas, moram em pequenos assentamentos espalhados em sua maioria entre a orla norte da América do Norte e a Groelândia. Até o início do século XX, o mundo sabia pouco a respeito deles. Então, os exploradores começaram a contar estranhas narrativas.

Os costumes dos esquimós se mostraram muito diferentes dos nossos. O homem geralmente possui mais de uma esposa e ele deve dividi-las com seus convidados, colocando ambos para dormirem juntos, como um sinal de hospitalidade. Ademais, dentro da comu­nidade, o homem dominante poderia demandar e conseguir ter rela­ções sexuais com as esposas de outros homens. A mulher, contudo, seria livre para romper os relacionamentos, simplesmente deixando seus maridos e dedicando-se a novos parceiros - livre, contanto que seu antigo marido não quisesse arrumar confusão. De modo geral, a prática dos esquimós é um esquema inconstante, que possui uma pequena semelhança com o que chamamos de casamento.

Mas as diferenças não eram apenas em seu casamento e suas práticas sexuais. Os esquimós também pareciam ter menos conside­ração com a vida humana. O infanticídio, por exemplo, era comum. Knud Rasmussen, um dos mais famosos exploradores antigos, repor­tou que havia conhecido uma mulher que tinha dado à luz a 20 crian­ças, mas que matara 10 delas no momento do nascimento. As bebês meninas, ele descobriu, estavam mais suscetíveis à morte, o que era permitido, simplesmente seguindo o entendimento dos pais, sem um estigma social associado a isso. Os idosos, quando se tornavam muito fracos para contribuírem com a família, eram deixados na neve para morrer. Portanto, parecia existir, nessa sociedade, consideravel­mente pouco respeito pela vida.

Para o público geral essas eram revelações perturbadoras. Nossa forma de viver parece tão natural e certa, que para muitos de nós é difícil compreender outras formas de vida tão diferentes. E quando ouvimos tais coisas, somos levados imediatamente a caracte­rizar os outros como "retrógrados" ou "primitivos". Entretanto, para os antropólogos não havia nada de particularmente surpreendente a respeito dos esquimós. Desde a época de Heródoto, observadores esclarecidos se acostumaram com a idéia de que as concepções de certo e errado se diferem de cultura para cultura. Se assumirmos que

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nossas idéias éticas serão compartilhadas por todas as pessoas em todos os tempos, estaremos sendo ingênuos.

2.2. O Relativismo Cultural Para muitos pensadores, esta observação - "Diferentes culturas

possuem diferentes códigos morais" - parece ter sido a chave para entender a moralidade. A idéia da verdade universal na ética, eles dizem, é um mito. Os costumes das diferentes sociedades são tudo o que existe. Estes não podem ser chamados de "corretos" ou "incorre­tos", pois isso implica que temos um padrão independente de certo e ~e errado pelo qual eles podem ser julgados. Mas tal padrão não eXiste; todo o padrão está atrelado à cultura. O maior pioneiro da sociologia, William Graham Summer, em 1906 colocou isso da seguinte forma:

A forma "certa" é a forma que os ancestrais costumavam fazer e que tem sido passada para as gerações seguintes. A tradição é a sua única garantia. Não é um assunto a ser tomado pela experiência. A noção de certo está no comportamento das pessoas. Não está fora delas, vinda de uma origem independente e trazida para testá-las. No comportamento popular, não importa o que é, é certo. Isto se dá porque as pessoas são tradicionais e assim, elas próprias contêm a autoridade transmitida pelos ancestrais. Quando chegamos ao comportamento popular, estamos no final de nossa análise.

Essa linha de pensamento provavelmente persuadiu mais pessoas a ser céticas sobre a ética do que qualquer outra coisa. O Relativismo Cultural, como tem sido chamado, desafia nossas crenças comuns da objetividade e universalidade da verdade moral. Ele diz que não existe algo como a verdade universal em ética; existem apenas os vários códi­g?S c~lturais. Ademais, nosso p~óprio código não possui status espe­Cial; e meramente um entre mUitos. Veremos adiante que essa idéia básica é realmente um composto de vários pensamentos diferentes. É importante separar os diversos elementos da teoria porque, sob análi­se, algumas partes mostram-se corretas, enquanto outras parecem estar erradas. A princípio, podemos distinguir as seguintes afirmações, todas feitas por relativistas culturais:

1. Diferentes sociedades possuem diferentes códigos morais. 2. O código moral de uma sociedade determina o que está

certo dentro daquela sociedade, ou seja, se o código moral

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de uma sociedade diz que determinada ação está certa, então a ação está certa, pelo menos naquela sociedade.

3. Não existe um padrão objetivo que pode ser empregado para julgar o código de uma sociedade melhor do que outros.

4. O código moral de nossa própria sociedade não possui um status especial; é somente um entre muitos.

5. Não existe uma "verdade universal" na ética, ou seja, não há verdades morais que são tomadas por todas as pessoas em todos os tempos.

6. É mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outras pessoas. Deveríamos adotar uma atitude de tolerância em relação às práticas de outras culturas.

Ainda que pareça que essas seis proposições estejam naturalmen­te juntas, elas são independentes umas das outras, no sentido de que algumas delas podem ser falsas, mesmo se outras forem verdadeiras. A seguir, identificaremos o que é correto no Relativismo Cultural, mas também mostraremos o que há de errado com ele.

2.3. O Argumento das Diferenças Culturais O Relativismo Cultural é uma teoria sobre a natureza da mora­

lidade. A primeira vista parece ser bem plausível. Entretanto, como toda teoria do tipo, ela pode ser avaliada se sujeitada à análise racio­nal; e, quando analisamos o Relativismo Cultural, descobrimos que não é tão plausível como parecia ser.

A primeira coisa que precisamos perceber é que no âmago do Relativismo Cultural há uma certa fonna de argumento. A estratégia uti­lizada pelos relativistas culturais é discutir a partir dos fatos as diferen­ças entre as percepções culturais até a conclusão sobre o status da mora­lidade. Por conseguinte, somos convidados a aceitar este raciocínio:

(1) Os gregos acreditavam que era errado comer os mortos, enquanto os Callatians acreditavam que era certo fazê-lo.

(2) Assim, comer os mortos nem é objetivamente certo nem é objetivamente errado. É meramente uma questão de opi­nião que varia de cultura para cultura.

Ou, alternativamente: (1) Os esquimós não vêem nada de errado no infanticídio,

enquanto os americanos acreditam que este é imoral.

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(2) Assim, matar crianças nem é objetivamente certo nem é objetivamente errado. É meramente uma questão de opi­nião, que varia de cultura para cultura.

Obviamente, esses argumentos são variações de uma idéia fun­damental. Eles são casos especiais de um argumento mais geral que diz:

(1) Diferentes culturas possuem diferentes códigos morais. (2) Assim, não há "verdade" objetiva na moralidade. Certo e

errado são apenas questões de opinião, e as opiniões variam de cultura para cultura.

Podemos chamar isso de Argumento das Diferenças Culturais. Para muitas pessoas ele é persuasivo. Mas, de um ponto de vista lógi­co, ele é consistente?

Não, não é. O problema é que a conclusão não segue a premis­sa - ou seja, mesmo que a premissa seja verdadeira, a conclusão ainda pode ser falsa. A premissa preocupa-se com o que as pessoas acreditam - em algumas sociedades, as pessoas acreditam em uma coisa; em outras sociedades, elas acreditam de uma forma diferente. A conclusão, porém, preocupa-se com qual é realmente o caso. O pro­blema é que esse tipo de conclusão não resulta, de uma forma lógi­ca, desse tipo de premissa.

Considere novamente o exemplo dos gregos e dos Callatians. Aqueles acreditavam que era errado comer os mortos; estes, que era certo. Conclui-se, a partir do mero fato de que eles discordam, que não há verdade objetiva na questão? Não, porque a prática poderia ser objetivamente certa (ou errada) e um dos grupos simplesmente esta­ria errado.

Para deixar isso mais claro, considere uma questão diferente. Em algumas sociedades, acredita-se que a Terra é plana. Em outras, como a nossa própria, acredita-se que a Terra é redonda (grosso modo). Conclui-se, do simples fato de que as pessoas discordam, que não há "verdade objetiva" em geografia? É claro que não; nós nunca chegaríamos a tal conclusão, porque percebemos que, em suas crenças sobre o mundo, os membros de algumas sociedades podem simplesmente estar errados. Não há razão para pensar que, se o mundo é redondo, todo mundo deve saber disso. Similarmente, não há razão para pensar que, se há verdade moral, todo mundo deve conhecê-la. O erro básico no Argumento das Diferenças Culturais é que ele tenta deduzir uma conclusão essencial sobre o assunto a par­tir do mero fato de que as pessoas discordam sobre isso.

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Este é um simples ponto de lógica, e é importante entendê-lo. Não estamos dizendo (pelo menos não ainda) que a conclusão do argumento é falsa. Ainda é uma questão aberta. O ponto lógico é somente que a conclusão não resulta da premissa. Isso é importa~te, porque, para determinar se a conclusão é verdadeira ou não, preCisa­mos de argumentos para o seu respaldo. O Relativismo Cultural pro­põe esse argumento, mas infelizmente este se mostra falacioso. Portanto, não prova nada.

2.4. As Conseqüências de Assumir o Relativismo C ultural Seriamente

Mesmo se o Argumento das Diferenças Culturais fosse inváli­do, o Relativismo Cultural ainda pode ser verdadeiro. Como seria se fosse verdadeiro?

Na passagem citada anteriormente, Wílliam Graham Summer resume a essência do Relativismo Cultural. Ele afirma que não há medida de certo e de errado que não os padrões de uma sociedade: "A noção do certo está no comportamento das pessoas. Não está fora delas, vinda de uma origem independente e trazida para testá­las. No comportamento popular, não importa o que é, é certo". Suponhamos que levemos isso a sério. Quais seriam algumas das conseqüências? .

l. Não poderíamos mais dizer que os costumes de outras soczeda­des são moralmente inferiores aos nossos próprios. Este é claramente um dos pontos principais enfatizados pelo Relativismo Cultural. Teríamos de parar de condenar as outras sociedades simplesmen­te porque elas são "diferentes". Na medida em que nos concentra­mos em certos exemplos, tais como as práticas funerárias dos gre­gos e dos Callatians, isso parece ser uma atitude sofisticada e esclarecida.

Todavia, poderíamos também ser impedidos de criticar os outros, uma prática menos benigna. Suponha que uma sociedade ini­cie uma guerra com seus vizinhos com o propósito de capturar escra­vos. Ou que uma sociedade violentamente anti-semita e seus líderes se preparassem para destruir os judeus. O Relativismo Cultural iria nos impedir de dizer que ambas as práticas estariam erradas. (Não estaríamos sequer aptos a dizer que uma sociedade tolerante aos judeus é melhor que a sociedade anti-semita, pois isso implicaria em algum tipo de padrão transcultural de comparação). A falha ao ~on­denar essas práticas não parece esclarecida; ao contrário, escraVidão

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e anti-semitismo parecem errados sempre. No entanto, se tomásse­mos o Relativismo Cultural seriamente, teríamos de considerar tais práticas sociais como imunes a críticas.

2. Poderíamos decidir se as ações estão certas ou erradas apenas por meio da consulta aos padrões de nossa sociedade. O Relativismo Cultural sugere um simples teste para determinar o que é certo e o que é errado: tudo o que o indivíduo precisa fazer é perguntar se a ação está de acordo com o código de uma sociedade ou não. Suponha que em 1975 um residente da África do Sul estivesse em dúvida se a política do apartheid de seu país - um sistema rigida­mente racista - seria moralmente correta. Tudo o que ele teria de fazer seria perguntar se a política estava de acordo com o código moral de sua sociedade. Em caso positivo, não haveria nada para se preocupar, pelo menos de um ponto de vista moral.

A implicação do Relativismo Cultural é perturbadora, porque poucos de nós pensam que o código de nossa sociedade é perfeito -podemos pensar em diversas formas pelas quais ele pode ser melho­rado. Entretanto, o Relativismo Cultural não apenas nos proíbe de criticar os códigos de outras sociedades, mas também nos impede de criticar o nosso próprio, afinal, se certo e errado são relativos quan­to à cultura, isso deve ser verdade para a nossa cultura, na mesma medida que é para as outras.

3. A idéia do progresso moral é posta em dúvida. Geralmente, pen­samos que pelo menos algumas mudanças sociais são para melhor. (Embora, é claro, outras mudanças podem ser para pior.) Durante a maior parte da história do Ocidente, o lugar da mulher na socieda­de era extremamente circunscrito. Elas não podiam ter proprieda­des; não podiam votar ou ter cargos oficiais públicos; e geralmente estavam sob o mais absoluto controle de seus maridos. Recente­mente, essas coisas mudaram, o que as pessoas consideram um pro­gresso.

Se o Relativismo Cultural está correto, entretanto, podemos considerar isso legitimamente como um progresso? Progresso signifi­ca substituir uma forma de fazer as coisas por uma forma melhor. Mas segundo qual padrão julgamos que uma nova forma é melhor? Se as antigas formas estavam de acordo com os padrões sociais de sua época, então o Relativismo Cultural diria que é um erro julgá-las de acordo com os padrões de uma época diferente. A sociedade do século XVIII era uma sociedade diferente da que temos hoje. Dizer que progredimos implica um julgamento de que a sociedade de hoje é melhor, o que é somente um tipo de julgamento transcultural que, de acordo com o Relativismo Cultural, é impossível.

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Nossa idéia de reforma social também terá de ser reconsiderada. Reformadores como Martin Luther King Jr. procuraram mudar suas sociedades para melhor. Dentro das restrições impostas pelo Relativismo Cultural, há uma maneira pela qual isso pode ser feito. Se uma sociedade não está seguindo seus próprios ideais, o reforma­dor deve ser considerado como alguém agindo para o melhor; os ideais da sociedade são os padrões pelos quais julgamos as propostas dele válidas ou não. Mas ninguém pode desafiar os próprios ideais, pois por definição estão corretos. Segundo o Relativismo Cultural, então, a idéia de reforma social faz sentido apenas dentro desse sen­tido limitado.

Essas três conseqüências do Relativismo Cultural levaram mui­tos pensadores a rejeitá-lo pois é implausível sob certos aspectos. Faz sentido, eles afirmam, condenar algumas práticas, tais como escravi­dão e anti-semitismo, não importa onde elas ocorram. Faz sentido pensar que a nossa própria sociedade progrediu moralmente, enquanto admitimos que ainda é imperfeita e precisa de reformas. Uma vez que o Relativismo Cultural implica que os julgamentos não fazem sentido algum, o argumento segue afirmando que isso não pode estar certo.

2.5. Por que Há Menos Divergências do que Parece

O ímpeto original para o Relativismo Cultural vem da observa­ção de que as culturas diferem dramaticamente em suas perspectivas de certo e errado. Mas quanto exatamente elas diferem? É verdade que há diferenças. Entretanto, é fácil superestimar sua extensão. Freqüentemente, quando examinamos o que parece ser uma profun­da diferença, descobrimos que as culturas não se diferenciam tanto quanto parece.

Considere uma cultura na qual as pessoas acreditam que é erra­do comer carne de vaca. Esta pode até ser uma cultura pobre, em que não há comida suficiente; mesmo assim, as vacas não serão tocadas. Uma sociedade como esta parece possuir valores muito diferentes dos nossos. Mas será que realmente possui? Não perguntamos ainda o porquê de não comerem carne de vaca. Suponha que haja uma crença de que após a morte as almas das pessoas habitem os corpos dos ani­mais, especialmente os das vacas; assim, uma vaca pode ser a avó de alguém. Agora, devemos dizer que seus valores são diferentes dos nossos? Não, a diferença não está aí. A diferença está no nosso siste-

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ma de crenças, não em nossos valores. Concordamos com o fato de que não devemos comer a carne de nossa avó e simplesmente discor­damos sobre o fato de que a vaca é (ou poderia ser) nossa avó.

A questão é que muitos fatores trabalham juntos para criar os costumes de uma sociedade. Os valores são apenas um deles. Outras questões, 'tais como crenças religiosas e factuais tomadas por seus membros e as circunstâncias físicas nas quais eles devem viver, tam­bém são importantes. Dessa forma, não podemos concluir que, meramente por causa das diferenças de costume, há uma divergên­cia sobre valores. A diferença nos costumes pode ser atribuível a outros aspectos da vida social, havendo assim menos divergências sobre valores do que aparenta.

Considere novamente os esquimós, que muitas vezes matam os recém-nascidos perfeitamente normais, especialmente meninas. Não aprovamos isso; em nossa sociedade, um pai que matou um bebê poderia ser preso. Dessa forma, parece existir uma grande diferença entre os valores dessas duas sociedades. Mas suponha que pergunta­mos por que os esquimós fazem isso. A explicação não se refere ao fato de que eles sentem menos afeição por seus filhos ou têm menos respeito pela vida humana. Uma família de esquimós sempre prote­gerá seus bebês se as condições permitirem. No entanto, eles vivem em um ambiente cruel, no qual a comida é sempre escassa. Um pos­tulado fundamental dos esquimós é: "A vida é dura, e a margem de segurança é pequena". Uma família pode querer alimentar seus filhos, mas estar incapacitada de fazê-lo.

Como em muitas sociedades "primitivas", as mães esquimós ali­mentam seus filhos por um período muito maior que as mães de outras culturas. A criança recebe leite materno por quatro anos, tal­vez até mais. Portanto, mesmo nos tempos mais tranqüilos, existem limites para o número de crianças que uma mãe pode amamentar. Ademais, os esquimós são nômades - quando incapazes de cultivar a terra, se mudam em busca de comida. As crianças são carregadas, e uma mãe consegue carregar apenas um bebê em sua parca, à medi­da que viajam e cuidam de seus trabalhos. Os outros membros da família ajudam fazendo o máximo possível.

As meninas são eliminadas mais facilmente porque, primeira­mente, nessa sociedade os homens são os principais fornecedores de comida - eles são os caçadores, seguindo a tradicional divisão de trabalho - e é obviamente importante manter uma quantidade sufi­ciente de fornecedores de comida. Mas existe uma segunda razão tão importante quanto a primeira. Como a taxa de acidentes com caçadores é bem alta, o número de homens adultos que morrem

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prematuramente é muito maior que o de mulheres. Dessa forma, se os meninos e as meninas sobreviverem igualmente, o número da população adulta feminina superará o da população adulta mascu­lina. Examinando as estatísticas disponíveis, um escritor conclui que "se não fosse pelo infanticídio de crianças do sexo feminino [ ... ] haveria aproximadamente uma vez e meia mais mulheres na média dos grupos locais de esquimós do que homens produtores de comida".

Portanto, entre os esquimós, o infanticídio não sinaliza uma diferença de atitude fundamental contra à criança. Ao contrário, é o reconhecimento de que medidas drásticas algumas vezes são neces­sárias para assegurar a sobrevivência da família. Mesmo assim, matar o bebê não é a primeira opção considerada. A adoção é comum; casais sem filhos ficam especialmente felizes de pegar a "sobra" dos casais mais férteis. Matar é apenas a última opção. Enfatizo isso para mostrar que os dados superficiais dos antropólogos podem estar equivocados, pois podem fazer com que as diferenças de valores entre culturas pareçam maiores do que são. Os valores dos esquimós não são totalmente diferentes dos nossos. A questão é que a vida os pressiona a fazer escolhas que nós não temos de fazer.

2.6. Como Todas as Culturas Possuem Alguns Valores em Comum

Não deveria ser surpresa que, apesar das aparências, os esqui­mós protegem suas crianças. E por que não seria assim? Como um grupo sobrevive se não valoriza seus jovens? É fácil perceber que, na verdade, todos os grupos culturais devem proteger seus recém-nasci­dos. Bebês são indefesos e não sobrevivem se não forem protegidos extensivamente por um longo período. Além disso, se um grupo não se preocupa com seus jovens, eles não sobrevivem e os membros mais velhos não serão substituídos. Após um tempo, o grupo desapa­recerá. Isso quer dizer que para qualquer grupo continuar a existir deve cuidar de seus jovens. Os recém-nascidos que não recebem cui­dados devem ser a exceção e não a regra.

Um raciocínio similar mostra que outros valores devem ser mais ou menos universais. Imaginem como seria para uma sociedade não colocar valor algum sob as verdades ditas. Quando uma pessoa falas­se com a outra, não haveria presunção alguma de que ela estaria dizendo a verdade, pois poderia facilmente contar mentiras. Nessa

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sociedade não haveria razão alguma em prestar atenção no que alguém diz. (Eu pergunto que horas são, e você responde "quatro horas". Mas não há presunção alguma de que você está dizendo a verdade, poderia simplesmente ter dito a primeira coisa que veio à sua cabeça. Portanto, eu não tenho razão para prestar atenção em sua resposta. Na verdade, para começar, não há motivo algum para lhe perguntar algo). Assim, a comunicação seria extremamente difí­cil, se não impossível. E uma vez que as sociedades complexas não podem existir sem comunicação entre seus membros, a sociedade iria se tornar impossível. Conseqüentemente, em qualquer socieda­de complexa deve existir uma presunção em favor da honestidade. Pode haver, é claro, exceções à regra: situações nas quais a permis­são para mentir é considerada. Não obstante, estas serão exceções a uma regra que está em vigor na sociedade.

Observe este exemplo do mesmo tipo: poderia existir uma sociedade na qual não houvesse proibição em relação ao assassina­to? Como ela seria? Suponhamos que as pessoas fossem livres para matar outras pessoas, à mercê de suas vontades, e que não houves­se nada de errado com isso. Ninguém se sentiria seguro em uma "sociedade" como esta. Todo mundo estaria de guarda constante­mente. Aqueles que quisessem sobreviver teriam de evitar os outros ao máximo. Disso, inevitavelmente resultaria indivíduos tentando se tornar o mais auto-suficientes possível - afinal, associar-se com outros seria muito perigoso. Sociedades em qualquer grande escala entrariam em colapso. Obviamente, as pessoas poderiam até se unir em pequenos grupos, dentro dos quais poderiam confiar umas nas outras. Mas notem o que isso significa: elas formariam pequenas sociedades que reconheceriam uma regra contra o assassinato. A proibição contra este, portanto, é uma característica necessária de todas as sociedades.

Existe um ponto teórico geral para ser observado aqui, a saber, que existem algumas regras morais que todas as sociedades devem ter em comum, porque são necessárias para a existência da sociedade. As regras contra a mentira e o assassinato são dois exemplos. Na verdade, realmente encontramos essas regras em vigência em todas as socie­dades viáveis. As culturas podem se diferenciar no que elas conside­ram como as exceções legítimas às regras, mas essa divergência ocorre sob um pano de fundo de convenções em questões mais amplas. Portanto, é um erro superestimar o número de diferenças entre as culturas. Nem toda regra moral pode variar de uma socie­dade para outra.

O DESAFIO DO RELATIVISMO CULTURAL

2.7. Julgando uma Prática Cultural como Indesejável

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Em 1996, uma garota de 17 anos chamada Fauziya Kassindja chegou ao aeroporto internacional de Newark4 e pediu asilo. Ela havia fugido de seu país de origem, Togo, uma pequena nação no continente africano, para escapar da "excisão". A excisão é um pro­cedimento de desfiguração permanente, chamado algumas vezes de "circuncisão feminina", embora a semelhança com a prática judaica seja pequena. Mais freqüentemente, pelo menos nos jornais do Ocidente, ela é chamada de "mutilação genital feminina".

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a prática é comum em 26 países africanos, e dois milhões de garotas por ano são "excisadas". Em alguns casos, a excisão é parte de um ritual tribal elaborado, executado em pequenos vilarejos tradicionais, e as garotas aguardam-na ansiosamente porque significa sua aceita­ção no mundo adulto. Em outros casos, a prática é realizada por famílias que vivem nas cidades, e as jovens resistem desesperada­mente.

Fauziya Kassindja era a mais nova de cinco irmãs de uma famí­lia muçulmana devota. Seu pai, que era dono de um negócio de caminhões bem-sucedido, não concordava com a excisão e tinha poderes de negar a tradição em virtude de sua riqueza. Suas primei­ras quatro filhas casaram-se sem serem mutiladas. Mas quando Fauziya fez 16 anos, ele morreu de repente. Fauziya ficou, então, sob a guarda de seu avô paterno, que arrumou um casamento para ela, bem como a sua excisão. Fauziya ficou aterrorizada e fugm com a ajuda de sua mãe e das irmãs mais velhas. Sua mãe foi deixada sem recurso algum e por fim teve de se desculpar formalmente e se sub­meter à autoridade do patriarca que havia ofendido.

Enquanto isso, na América, Fauziya ficou presa por dois anos enquanto as autoridades decidiam o que fazer com ela. Finalmente concederam asilo a ela, mas não antes de tornar-se o centro de uma controvérsia sobre como deveríamos julgar as práticas culturais de outras pessoas. Uma série de artigos no New York Times fomentou a idéia de que a excisão é uma prática bárbara que deveria ser conde­nada. Outros observadores foram relutantes em agir de uma forma

4 Aeroporto situado na cidade de Newark, estado de New Jersey, na costa leste dos Estados Unidos. Ele é administrado tanto pelo Estado de New York quanto de New Jersey, pois fica a apenas 25 quilômetros do importante cen­tro urbano norte-americano, a ilha de Manhattan, em New York. (N. do T.).

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28 OS ELEMENTOS DA FILOSOFIA DA MORAL

tão crítica - viva e deixe viver, eles disseram; afinal nossa cultura pro­vavelmente é estranha para eles também.

Suponha que estamos inclinados a dizer que a excisão é ruim. Estaríamos meramente impondo os padrões de nossa própria cultu­ra? Se o Relativismo Cultural estiver correto, isso é tudo o que pode­mos fazer, pois não há nenhum padrão moral de uma cultura neutra ao qual possamos recorrer. Mas isso é verdade?

Há um Padrão Cultural Neutro de Certo e de Errado? É claro que há muito que pode ser dito sobre a excisão. Ela é dolorosa e resulta na perda permanente do prazer sexual. Seus efeitos iniciais são hemorragia, tétano e septicemia. Ocasionalmente a mulher morre. Os efeitos a longo prazo incluem infecções crônicas, cicatri­zes que atrapalham o caminhar e dores contínuas.

Por que, então, a excisão tornou-se uma prática social comum? Não é fácil dizer. Ela não apresenta nenhum benefício social aparen­te. Diferentemente do infanticídio dos recém-nascidos esquimós, não é necessária para a sobrevivência do grupo. Nem é uma questão de religião. A excisão é praticada por grupos de várias religiões, incluindo o Islamismo e o Cristianismo, e nenhuma delas recomen­da tal prática.

Todavia, diversas razões são dadas em sua defesa. Acredita-se que as mulheres que são incapazes de sentir prazer sexual são provavel­mente menos promíscuas; assim, haverá menos gravidez indesejada em mulheres solteiras. As esposas para as quais o sexo é apenas uma obrigação são provavelmente menos infiéis a seus maridos. Ademais, como não estarão pensando em sexo, serão mais atenciosas às neces­sidades de seus maridos e filhos. Acredita-se que os maridos, por sua vez, aproveitam mais o sexo com esposas que foram excisadas. (A falta de libido da mulher não é algo importante, dizem eles). Os homens não querem as mulheres que não são excisadas, pois são consideradas sujas e imaturas. E acima de tudo, essa prática tem sido feita desde os tempos remotos, e talvez não possamos mudar os hábitos antigos.

Seria fácil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar esses argu­mentos. Mas podemos notar uma característica importante em toda essa linha de pensamento: esforça-se para justificar a excisão mos­trando que ela é benéfica - acredita-se que homens, mulheres e suas famílias se sentem melhores quando a mulher é excisada. Dessa forma, podemos abordar esse raciocínio, e a própria excisão, pergun­tando: a excisão, de forma geral, é útil ou prejudicial?

Na verdade, este é um padrão que pode ser utilizado racional­mente ao se considerar qualquer prática social: podemos perguntar

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se a prática promove ou impede o bem-estar das pessoa~ afetadas po.r ela. E, como uma conclusão, podemos perguntar se eX1ste um conjunto alternativo de disposição social que faria um trabalho melhor para promover o bem-estar delas. Em caso positivo, concluímos que a prática existente está inadequada.

Isso se parece, entretanto, exatamente com o tipo de padr~o independente de moral que o Relativismo Cultural afirma não eX1S­tiro E um padrão singular que pode ser empregado para endo,ssar o julgamento das práticas de qualquer cultura, em qualquer epo<:,a, incluindo a nossa própria. Obviamente, as pessoas e~ gera~ na,o vêem esses princípios como "trazidos de fora par~ dentro pa~a)~lga­los, porque, assim como as regras contra a mentira e o hom1c1d10, o bem-estar de seus membros é um valor interno para todas as cultu­ras viáveis.

Por que, Apesar de Tudo, Pessoas P~nderadas Pod.em Relutar em Criticar Outras Culturas. Amda que elas estejam pessoalmente horrorizadas com a excisão, muitas pessoas ponder~­das estão relutantes em dizer que ela é errada, por pelo menos tres razões.

Primeiramente há um nervosismo compreensível em relação a "interferir nos costumes sociais de outras pessoas". Os europeus e seus descendentes culturais na América possuem uma história vergo­nhosa de destruição das culturas nativas em nome do Cristianismo e do Iluminismo. Retrocedendo até esses acontecimentos, alguns. se recusam a fazer julgamentos negativos sobre outras culturas, espec1al­mente aquelas que se assemelham com as prejudicadas no pas.sado. Devemos notar, contudo, que existe uma diferença entre (a) julgar uma prática cultural como deficiente e (b ~ pensar que _dev~ríam~s anunciar o fato, conduzir uma campanha, utihzar de pressao dlploma­tica ou enviar as forças armadas. O primeiro ponto é somente uma questão de tentar ver o mundo claramente, a partir de um ponto de vista moral. O segundo é uma questão geral. Algumas vezes pode parecer certo "fazer alguma coisa a respeito", mas geralmente não é.

As pessoas também sentem, e com razão, que devem ~er tole­rantes a outras culturas. A tolerância é, sem dúvida, uma v1rtude -uma pessoa tolerante está disposta a viver em cooperação 'pacífica com as outras que enxergam as coisas de uma forma d1feren.te. Porém não há nada na natureza da tolerância que exija que se d1ga que todas as crenças, todas as religiões e todas as práticas sociais são igualmente admiráveis. Ao contrário, se não. se pensasse que algumas eram melhores do que as outras, não havena nada para se tolerar.

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Por fim, as pessoas podem estar relutantes a julgar porque não querem expressar seu desprezo pela sociedade que está sendo criti­cada. Mas, novamente, isso é um engano: condenar uma prática es­pecífica não é afirmar que a cultura no todo é desprezível ou que é de uma forma geral inferior a qualquer outra, incluindo a nossa própria. Poderia ter muitas características admiráveis. Na verdade, geralmen­te isso ocorre na maioria das sociedades humanas - elas são misturas de práticas boas e ruins. Acontece que a excisão é uma parte ruim.

2.8. O que Pode Ser Aprendido com o Relativismo Cultural

No início, eu disse que identificaríamos o que há de certo e de errado no Relativismo Cultural. Entretanto, tenho enfatizado seus erros: eu disse que se apóia em um argumento inválido, que tem con­seqüências que o tornam claramente implausível e que a extensão do desentendimento moral é menor do que se diz. Tudo isso se soma para uma bem acabada refutação da teoria. Todavia, ainda é uma idéia chamativa, e o leitor pode achar que tudo isso é um pouco injusto. Deve haver algo a favor da teoria, se não por que seria tão influente? Na verdade, acredito que existe algo de certo em relação ao Relativismo Cultural. Existem duas lições que devemos aprender com a teoria, mesmo que no final a rejeitemos.

Primeiro, o Relativismo Cultural nos alerta, corretamente, sobre os perigos em assumir que todas as nossas preferências estão basea­das em algum padrão racional absoluto. Elas não estão. Muitas (mas não todas) de nossas práticas são meramente peculiares a nossa sociedade, e é fácil esquecer esse fato. Ao lembrar-nos deste, a teo­ria presta um serviço.

As práticas funerárias são um exemplo. Os Callatians, segundo Heródoto, eram "homens que comiam seus pais" - uma idéia cho­cante, pelo menos para nós. Mas comer a carne do morto poderia ser entendido como um sinal de respeito. Poderia ser tomado como um ato simbólico que diz: desejamos que o espírito dessa pessoa perma­neça dentro de nós. Talvez este fosse o entendimento dos Callatians. De acordo com essa linha de pensamento, enterrar o cadáver pode­ria ser visto como um ato de rejeição e queimá-lo como um ato abso­lutamente desdenhoso. Se é difícil imaginar isso, então talvez preci­semos ampliar a nossa imaginação. É claro que podemos sentir uma profunda repugnância à idéia de comer carne humana sob qualquer circunstância. Mas e daí? A repugnância pode ser, de acordo com os

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relativistas, somente uma questão do que é costumeiro em nossa sociedade especificamente.

Existem muitas outras questões nas quais somos tentados a pensar em termos objetivos de certo e errado, que não são na?a mais do que convenções sociais. Poderíamos fazer uma longa ltsta. As mulheres deveriam cobrir seus seios? Um seio publicamente exposto é algo escandaloso em nossa sociedad~, ~o passo que_ err: outras cul­turas passa despercebido. Falando obJetivamente, nao e nem certo nem errado - não há razão objetiva para um dos costumes ser melhor que o outro. O Relativismo Cultural começa com uma visão valiosa de que muitas de nossas práticas são como esta, são somente produ­tos culturais. Então, comete-se o erro de inferir que, como algumas práticas são de uma forma, todas devem ser iguais.

A segunda lição relaciona-se com manter a mente aberta. Durante o nosso crescimento, cada um de nós adquiriu um pouco de sentimentos fortes. Aprendemos a considerar alguns tipos de condu­tas aceitáveis e a rejeitar outros. Ocasionalmente, esses sentimentos são desafiados. Por exemplo, podemos ter aprendido que a homosse­xualidade é imoral, e nos sentimos muito incomodados ao redor de homossexuais, vendo-os como seres de outro planeta e "dife.rentes". Agora, alguém sugere que isso pode ser um ~ero preconceito, que não há nada de mal em relação à homossexuahdade, que os homos­sexuais são pessoas como quaisquer outras que por acaso foram atraí­das sem nenhuma decisão própria, por outras do mesmo sexo. Mas, em' razão de termos sentimentos tão fortes em relação à questão, achamos difícil levá-la a sério. Mesmo após ouvirmos os argumentos, ainda podemos ter o sentimento inabalável de que os homossexuais devem ser, de alguma forma, uma parte imoral do mundo. .

O Relativismo Cultural, enfatizando que nossas perspectivas morais podem refletir os preconceitos de nossa sociedade, f~rn~~e um antídoto para esse tipo de dogmatismo. Quando conta a histona dos gregos e dos Callatians, Heródoto acrescenta que:

Pois se fosse dada, não importa a quem, a oportunidade de escolher entre todas as nações do mundo o conjunto de crenças que considerasse o melhor, escolheria inevitavelmente, após uma consideração cuidadosa de seus méritos relativos, o de seu próprio país. Qualquer pessoa, sem exce­ção, acredita que seus próprios costumes nativos e a religião em que foi

criada, são os melhores.

Perceber isso pode resultar em uma abertura maior da men~e. Podemos vir a entender que nossos sentimentos não são necessana-

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mente percepções da verdade - eles podem ser nada mais do que o resultado do condicionamento cultural. Dessa forma, devemos nos lembrar disso quando alguém sugerir que algum elemento do nosso código social não é realmente o melhor, e rejeitarmos instintivamen­te essa sugestão. Então, talvez estejamos mais abertos para descobrir a verdade, seja ela qual for.

Podemos, portanto, entender o apelo do Relativismo Cultural, mesmo que a teoria tenha sérias deficiências. Ela é atrativa porque é baseada em uma visão genuína, a de que muitas práticas e atitudes que pensamos ser tão naturais são, na realidade, apenas produtos culturais. Ademais, manter essa visão é importante, se quisermos evi­tar a arrogância e termos mentes abertas. São pontos importantes, não para serem considerados superficialmente. Mas podemos aceitá­los sem ter de aceitar toda a teoria.

CAPÍTULO 3 /

O Subjetivismo na Etica Tome qualquer ação conhecida por ser cruel: assassinato premeditado, por exem­plo. Examine-o de todas as formas e veja se consegue encontrar a realidade do fato ou a existência real do que se chama marginalidade ... O leitor poderá nunca achá-la até que a sua reflexão transforme-se em algo pessoal e se depare com um sentimento de desaprovação, que se instaura em você, em relação a essa ação. Aqui está a realidade do fato, mas é um objeto do sentimento, não da razão.

DAVID HUME, TRATADO DA NATUREZA HUMANA (1740)

3.1. A Idéia Básica do Subjetivismo Ético Em 2001 houve eleições municipais em Nova York, e, na época da

parada anual do Orgulho Gay, todos os candidatos republicanos e democratas compareceram. "Não existe nenhum candidato que não aprecie a nossa causa", disse o diretor-executivo do Empire State Pride AgendaS, uma organização em prol dos direitos dos homossexuais, Matt Foreman. Ele acrescentou que "em outras partes do país, as posições tomadas aqui seriam extremamente impopulares, para não dizer que acabariam com qualquer chance de eleição". O Partido Nacional Republicano aparentemente concorda; na ânsia de um conservadoris­mo religioso o partido tem feito oposição aos direitos dos homosse­xuais em âmbito nacional.

O que o restante das pessoas pensa sobre isso? O Instituto de Estatística Gallup, desde 1982, faz a seguinte pergunta aos americanos: "Você acha que a homossexualidade deveria ser considerada como um estilo de vida alternativo aceitável ou não?"; nesse ano, 34% das respos­tas foram afirmativas. O número cresceu, e em 2000 uma maioria -52% - disse que achava que o homossexualismo deveria ser considera­do aceitável. Isso significa, logicamente, que quase a mesma quanti­dade de pessoas pensa o contrário. Ambos os lados possuem sentimen-

5 Uma organização política de Nova York que luta pelo fim da discriminação contra os homossexuais sobre o fundamento da orientação sexual. Ver mais em www.prideagenda.org.

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