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1 Natércia Freire (Breve apresentação da sua poesia) Benavente, Ribatejo (1920-2004) Uma produção da BE da escola secundária de Tondela

Natércia Freire

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Breve apresentação da poesia desta autora portuguesa.

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Page 1: Natércia Freire

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Natércia Freire (Breve apresentação da sua poesia)

Benavente, Ribatejo (1920-2004)

Uma produção da BE da escola secundária de Tondela

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Canção do Verdadeiro Abandono

Podem todos rir de mim,

podem correr-me à pedrada,

podem espreitar-me à janela

e ter a porta fechada.

Com palavras de ilusão

não me convence ninguém.

Tudo o que guardo na mão

não tem vislumbres de além.

Não sou irmã das estrelas,

nem das pombas nem dos astros.

Tenho uma dor consciente

de bicho que sofre as pedras

e se desloca de rastos.

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Areia

Areia pisada,

areia dorida,

areia beijada,

areia batida,

areia doirada,

areia estendida,

areia rolada,

rolada na vida.

Frescura abraçada

ao mar que se vai,

e os braços crispados

pregados num ai.

E a areia rolada

nos olhos profundos,

e as matas de sombra

ao fundo dos mundos…

E o paço de pedra

Erguido no espaço

e as capelas tristes

que perco e abraço…

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E o sonho do vento,

que gela e que deixa,

e a voz que ergo e calo

e é vida e é queixa…

Os degraus que subo

e são mais que cem,

e os cisnes vogando

nos lagos de além…

E as estradas brandas

onde correm fontes,

e as moças que sonham

sem verem os montes…

E os bancos abertos

aos corpos cansados,

e a chuva da tarde

nos parques molhados…

E os riscos de luz

que bordam o Céu,

e a cortina branca

que ao Sol me escondeu…

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E os quartos alheios

que giram à roda,

e as vozes na estrada

que me tolhem toda…

E eu dentro de um sonho

suspensa e vibrante

- areia beijada num mar mais distante –

e rica e mais longa,

e presa e mais livre

- sem mal e sem vida…

Areia doirada,

areia estendida,

areia rolada,

rolada na vida!

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Liberta em pedra

Livre, liberta em pedra.

Até onde couber

tudo o que é dor maior,

por dentro da harmonia jacente,

aguda, fria, atroz,

de cada dia.

Não importam feições,

curvas de seio e ancas,

pés erectos à luz

e brancas, brancas, brancas,

as mãos.

Importa a liberdade

de não ceder à vida

um segundo sequer.

Ser de pedra por fora

e só por dentro ser.

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- Falavas? Não ouvi.

- Beijavas? Não senti.

Morreram? Ah, Morri, morri, morri!

Livre, liberta em pedra,

voltada para a luz

e para o mar azul

e para o mar revolto…

E fugir pela noite,

sem corpo, sem dinheiro,

para ler os meus santos,

e os meus aventureiros,

(para ser dos meus santos,

dos meus aventureiros),

filósofos e nautas,

de tantos nevoeiros.

Entre o peso das salas,

da música concreta,

de espantalhos de deuses,

que fará o Poeta?

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Regresso

Medo de quê? Oceanos azulados...

Medo de quê? Neblinas e canções...

— Dentro do Espaço adoçam-se pecados

e morrem solidões.

Sem braços me tomou na posse enorme.

Roçou-me os lábios, simples sem ter boca.

Quem é? Quem vem?

A porta não estacou

e todos pela mesa olham pasmados.

Só eu amimo a voz:

— Olhem quem vem! Reparem quem voltou!

Rolam silêncios fundos e pesados.

Imóvel no meu barco de luar,

os meus olhos venceram as ramadas.

Música longa... Um sino a palpitar.

Calçadas e calçadas...

Presépios com pastores de palmo e meio.

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Velas que são faróis... Cresceu a bruma.

Deitem-me assim, num jeito de menina,

e envolvam-me de espuma.

— Olhem quem vem! Reparem quem voltou,

que tem os braços que eu gritei além!

— Vou com ele, não volto, minha Mãe!

Vou com ele nos uivos da tormenta,

com ele vou pregada na paixão.

Ele é quem diz: — Sossega, dorme, dorme...

E nunca mais me toca!

As tardes, mesmo ao longo dos casais,

cegos: falas de gestos a ninguém...

Quem é? Quem vem?

Para sempre me tomou ...

— Vou com ele, não volto, minha Mãe!

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O Rosto que não tem Rosto

Eu tinha uns olhos de neve

no tempo do vendaval;

sob os olhos, flores geladas;

por sobre o espelho tremente

finas bagas de cristal.

O tempo do vendaval

governa ainda os meus dias.

E um arrais de neves frias

põe cansaços de metal

nas doces melancolias.

Nas noites de lume fosco

sobre a água corredia,

um rosto que não tem rosto

e que se esfuma no dia

preside ao branco cenário

de uma única harmonia ...

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Vendaval de mãos tão frias:

deslaça-me estes cabelos,

abre-me os braços sem elos,

faz de mim águas sombrias,

sem canto de rouxinóis

nem folhagem protectora,

nem melodias de aurora,

nem mansos beijos de sóis.

Inunda-me estes ouvidos

de raízes muito velhas;

põe longe as festas vermelhas

que eu tive nos meus sentidos,

e de uma vez para sempre

livra-me toda de mim.

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Poema

Nada tive que era meu.

Perdi estradas, perdi leito.

Na pedra aonde me deito

Nada fala de alvos linhos.

Se com cegos me aventuro,

a caminho rente aos muros,

é que meus olhos impuros

sonham Cristos nos caminhos.

Nada tive que era meu

e o corpo não quero eu.

podia servir de embalo,

mas serve de sepultura.

Cemitério de asas finas,

tange e plange aladas crinas,

canto de praias sulinas

de infinitas amarguras ...

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Cor

É preciso soltar o ritmo que me prende.

Esta amarra de ferro à palavra e ao som.

Emudecer, no espaço, o arco e a corrente

E ser nesta varanda um pouco só de cor.

Não saber se uma flor é mesmo uma criança.

Se um muro de jardim é proa de navio.

Se o monumento fala, se o monumento dança.

Se esta menina cega é uma estátua de frio.

Um pássaro que voa pode ser um perfume.

Uma vela no rio, um lenço no meu rosto.

Na tarde de Fevereiro estar um dia de Outubro.

Nos meus olhos de morta uma noite de Agosto.

É preciso soltar o ritmo das marés,

Das estações, do Amor, dos signos e das águas,

Os duendes das plantas, os génios dos rochedos

Nos cabelos do Vento, as tranças de arvoredos.

Desordenai-me, luz! Que nada mais dependa

Das águas, das marés, dos signos e do Amor.

É preciso calar o arco e a corrente

E ser nesta varanda um pouco só de cor.

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A MORTE DE CALAR

As viagens que sou prenderam-se em redomas

Ao corpo das palavras. À morte de calar.

Do alfabeto meu ignoro as cristalinas

Formas de aladas letras nestes versos finais.

São fantasmas de sol. São fantasmas de sede

Que chegam alta noite para nenhum lugar.

Decifro nas entranhas das trevas migradoras

O solstício da vida além da morte clara.

Mas quem me vem cegar, com setas voadoras

Nega-me agora a paz das secretas paisagens.

Meus Irmãos de astronaves, guiadas por um morto,

Que me esperam e estão, que me cantam e falam.

Que na vazia Cruz crucificam meu corpo

E abandonam a flor, mesmo a meio da sala.

À janela rasgada, para as cinzentas águas,

Encostam-me, sem olhos, e deixam-me ficar.

Não tenho nada mais a escrever sobre as ondas.

E mesmo que tivesse, ninguém leria o mar.

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Um dia

Um dia partirei muito cansada

Com as lembranças cingidas ao meu peito

E uma voz de saudade e de nortada.

(Levarei voz para gemer de espanto.

Levarei mãos para dizer adeus…

Olhos de espelho, e não olhos de pranto,

Eu levarei. Os olhos, serão meus?)

Um dia partirei, talvez manhã.

Uma canção de amor virá das dunas.

De finas pernas, seguirei a margem

Límpida, boa, enorme, no ribeiro

De água discreta a reflectir miragem,

Braços de ramos, gestos de salgueiro.

Um dia partirei, muito diferente.

Enfim, aquela que jamais eu fora!

E os de Cá hão-de achar que vou contente.

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E assim tenho passado. Apenas entre

E assim tenho passado. Apenas entre. Desconhecido o tempo que é de morte E o Mistério que fui Eu no seu ventre. Entre o Dia dos outros e o meu Dia Se levanta a agonia E canta como um galo, ainda Noite, Anunciador do Mal. Vidente e estridente. De mim, o sonho ausente. Dos outros, o clarim que me asfixia. Mas é na terra de outro Continente Que o aviso dispara a linha fria. E a minha Pátria vem, impaciente, Mascarada de Grécias, de distâncias Remotas como Vénus. Renuncia Ao Presente. O Presente se adia. . . E sempre fica entre.

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Guerra

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.

Via-os chegar, às tardes, comovidos,

nupciais e trementes

do enlace da vida com os sentidos.

Estiveram no meu colo, sonolentos.

Contei-lhes muitas lendas e poemas.

Às vezes, perguntavam por algemas.

Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,

desejavam a luta, o caos, a guerra.

Outros sonhavam e acordavam roucos

de gritar contra os muros que há na Terra.

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.

Nove meses de esperança, lua a lua.

Grandes barcos os levam, lentamente…

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Esse nome

Esse nome, Poesia! Esse nome, esse nome...

Esse rito, esse mito, o chacal das angústias

Essa arma de fogo que repele e que explode,

Que o peito te alimenta e te come e te come!

O deserto a florir. O oceano a sangrar.

Tanta ave a subir das ruínas ardentes.

As pedras removidas. Os Templos abalados.

Os segredos dos deuses no fumo desvelados.

As promessas abertas. Os sacrários abertos.

Decifrados nos mortos insolúveis sinais.

Os retratos da água, quebrados. Mais os selos,

De todos os mistérios. Nos ventos abissais

A puríssima voz dos homens imortais.

E esse nome, Poesia? . .. Esse amante, onde o escondes?

Esse mágico arauto. O sangue do teu corpo.

O labirinto. O guia, da cega caminhada,

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O terror, o terror, dos homossexuais,

Que gera e lhes destrói os dias geniais.

E esse nome, Poesia?!... Nas montanhas, nos cais,

As multidões de artistas, velhos adolescentes,

Fitam o arco de oiro. As fluidas espirais,

Do chicote que rasga coerências incoerentes.

Doidas andam nos céus as máquinas e os olhos

Pensamentos sem crânios.

Azuis fosforescências de azuis mediterrâneos.

Um atroz sofrimento aos homens prometido.

Diz seu nome, Poesia! Outeiros e balidos

De cordeiros dormidos lhe auguram a chegada.

Diz-lhe que venha, sem o fel do fim:

- Vem, Irmão, como a água.

Não provoques a chaga,

Nem estrela, nem cometa.

Vem consumado, enfim,

Como um dia virás

Para o último Poeta.

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Nos dias imaculados

Nos dias imaculados

Em que ninguém bate à porta,

Naqueles dias lavados

Em que sou anjo e sou morta,

Em que da luz dos desertos

Partem chamadas e gritos,

E à flor dos olhos abertos

Se adormecem infinitos...

Tudo a escorrer frio e ordem,

Horas certas e contadas,

Sem que os soluços me acordem

Mesmo a dar-me chicotadas.

E me rasguem pele e calma,

E me atirem para o fundo

- O fundo da minha alma,

O fundo do Fim do Mundo.

E de rojo, como dantes,

Me larguem pelos caminhos.

E me esmaguem os Gigantes

E me intimidem os ninhos.

E ao curso ingénuo dos rios

Me entreguem como uma folha,

Bem ressequida... e bem morta!

P'ra que ninguém me recolha.

Mudas viagens eu faça

Nas águas que ninguém olha.

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Os enjeitados

Carregando os caixões nos magros ombros

Enterrando na polpa das montanhas

Os tornozelos de aço,

Rasgando no ar fino agudas frestas

Caminham lentamente os enjeitados.

Escasseia-lhes emprego nas florestas

Nas bancas da cidade revoluta

E transportam a morte com cuidado.

Os pais ocultam-se em locais limites.

Levam aos ombros mitos sem limites

Com seus nomes em cera desenhados.

Ao pôr do sol escutaram a chamada

Que vinha sempre errada.

E sentaram-se à mesa num lugar

Entre desconhecidos e estrangeiros.

Vinha um sopro de lar

De uma língua de tempos derradeiros.

Os silêncios depois cavaram vales.

As margens sepultaram os seus leitos.

Escalaram as montanhas sem vontade.

Fabricaram metralha no seu peito.

Pediram filhos a planetas mortos.

Dormiram com saudades mutiladas.

Beberam sonhos pelo mesmo copo.

Fugiram das cidades em partilha.

Deram as mãos. Sentaram-se a chorar

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No choro de uma ilha.

Chove-lhes fogo em dias de criança.

Chove-lhes fel em dias ensombrados.

Jovem povo sem esperança

Desde o ventre da mãe, os enjeitados.

Ocupados no mapa das viagens,

Exaltados no tempo de ir a Marte.

Todos heróis, políticos e pajens

De Herodes e Medeias,

Abrem os pais as veias.

No ar, jorra em cadeias de cadência,

O sangue colectivo de uma ausência.

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Os instrumentos

Desapareceram os símbolos das cidades, Os instrumentos dos símbolos ainda não desapareceram, É possível que, de repente, de leste a oeste, de oriente a ocidente, Nas paredes, no ar, no solo, nos canteiros, Nos velhos troncos de árvores, Nos jogos de água viva, Nas mudas bibliotecas, em livros esquecidos, Nos palcos dos teatros, nas eléctricas luzes, Nas orquestras sem pátria dos músicos planetas, Se revelem sinais, locais de Ásias secretas, Mas da cegueira à paz, vão ângulos de som. Os vértices de amor, oscilam ténues fumos, Os símbolos são homens, esventrados em explosões, São Osíris dispersos. Deuses em negros versos, Dos olhos sem retinas - que já todos desvelam, Dos gestos essenciais - pelos quais todos choram, Se compõe esta frente em marcha silenciosa, De esotéricas vidas e histórias demolidas, De superfícies brancas em sinfonias brancas, De surdos e de loucos, orquestradas nas ondas. Bronzes de águas abertas, nas cascatas libertas, Dos países do Ar para os dias de Sombra. Por visitar a Lua recebe-se a Loucura. Por visitar a Luz, recebe-se a cegueira. É preciso dormir como quem apodrece E sossegar no pó, sem pena de ser só.

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Os suspeitos

«Quem descobrir alguém

suspeito de ser cristão informe a autoridade»

O Massacre de Shimabara em 1638

Quem suspeitar do amor Com filiformes sedas E veias incorruptas E prolongadas fontes, Quem suspeitar da luz Na doce obscuridade Informe a autoridade. Quem suspeitar da fome À mesa reluzente. Quem suspeitar da Cruz Entre a família ausente. Quem suspeitar da sede Por dentro da amizade Informe a autoridade. Quem suspeitar que há laços

De bíblicas imagens. Lázaro ao nosso lado. Novas ressurreições. E Cristo no pecado E romanas miragens Nos circos, nos algozes, Coroados de louros.

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Quem suspeitar da esperança, No átrio da memória Da imensa liberdade Que o suicídio evade, Informe a autoridade. E o mais suspeito vem Bater à noite morta. Traz nos dedos de garras Sangrando, um coração. Gota a gota, nos lábios ic O futuro da Vida , Canta no espaço humano A enorme transfusão. Na eterna leucemia Do renovado dia Apavora o suspeito

A paz do hospital. Branco, branco o elemento Que embala o pensamento. - Mas sonho sonolento. Mas subtil caridade - Ao vampiro do Tempo Impõe a edilidade Que o conselho dos velhos Informe a autoridade... A multidão das sombras As hostes das visões Computadores cruéis Mais os homens robots

Instalaram nos lares Ouvidos e espiões.

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Em corações de corda Em frios corações Deitaram a paixão. - Trituram as paixões. Mas o massacre aguarda As ordens implacáveis. Quem suspeitar do amor Em filiformes sedas. Quem suspeitar da sede Por dentro da amizade. Quem suspeitar da esperança No átrio da memória, Da imensa liberdade Que o suicídio evade,

Quem suspeitar de Cristo Em sóis quotidianos No peito lacerado Aberto ao companheiro, E quem quiser dizer O que dizer não há-de, Avise a autoridade.

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NÃO

Não formar nenhuma ideia

do que somos ou seremos

mas entre as vozes que fogem

precisar o que dizemos.

Dormir sonos ante-céus

abismos que são infernos.

Dormir em paz. Dormir paz,

enfim a nota segura.

Lembrar pessoas e dias

que penetram no espaço

de eventos primaveris.

E dar as mãos aos espectros

beijá-los lendas, perfis.

Amar a sombra, a penumbra

correr janelas e véus.

Saber que nada é verdade.

Dizer amor ao deserto

abraçar quem nos ignora

dormir com quem não nos vê

mas precisar do calor

de quem nunca nos encontra.

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Forte. Sou pó e estou forte!

Leva-me o vento e regresso.

subo na cruz e estremeço

desde o sul até ao norte.

Quem poderá reunir

o meu nada repartido?

Que vestido há-de vestir,

quem não precisa de vestido?

Corpo!? Que corpo hei-de querer?

Delgado, fino, alongado?

Corpo feito para jazer

ou para andar embarcado?

Ao corpo de ser mulher

está-me o corpo habituado.

Limite que se desenhe

é muro de alta prisão.

O pó que sou, me constrói.

O corpo que sou, me dói.

Dispersa é que sou herói

no campo da dispersão.

Sobre ele, cresçam os planos.

Tombem luzes. Pule o vento.

Cantem na treva os pianos.

Cantem flores, no movimento

da noite para a manhã

por sobre o leito dos mortos.

Para a glória de ser pó

é que os mistérios são portos.

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É preciso soltar o ritmo...

É preciso soltar o ritmo que me prende.

Esta amarra de ferro à palavra e ao som.

Emudecer, no espaço, o arco e a corrente

E ser nesta varanda um pouco só de cor.

Não saber se uma flor é mesmo uma criança.

Se um muro de jardim é proa de navio.

Se o monumento fala, se o monumento dança.

Se esta menina cega é uma estátua de frio.

Um pássaro que voa pode ser um perfume.

Uma vela no rio, um lenço no meu rosto.

Na tarde de Fevereiro estar um dia de Outubro.

Nos meus olhos de morta uma noite de Agosto.

É preciso soltar o ritmo das marés,

Das estações, do Amor, dos signos e das águas,

Os duendes das plantas, os génios dos rochedos

Nos cabelos do Vento, as tranças de arvoredos.

Desordenai-me, luz! Que nada mais dependa

Das águas, das marés, dos signos e do Amor.

É preciso calar o arco e a corrente

E ser nesta varanda um pouco só de cor.

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Mulheres

Desciam da cruz Como aves de negro. As asas abertas Batiam soturnas Na cinza de névoa Das sombras nocturnas E ousavam mistérios

De deuses secretos. Mulheres ou bonecas. Crianças ou velhas. No barro das telhas A chuva caía. Caíam as folhas Doiradas e secas. Mulheres ou bonecas Desciam da cruz

Na noite vazia. Repetem-se os gritos Represos mil anos. Ecoam suspiros. Ninguém sabe o rosto Aos deuses tiranos: Formigas, bonecas De vozes tão roucas Correndo, sofrendo,

Voando, voando. Baloiçam-se negras De véus e de Dores. Nas asas de aviões Que cortam as cores Pregadas na cruz - Infâncias que foram De fadas e flores.

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Sobre a escritora

I

"A sua poesia ergueu-se progressivamente, da insipiência juvenil e do convencionalismo literário de início, em que todavia aflorava já uma

personalidade, a uma voz muito pessoal e subtil de grande musicalidade de expressão e em que uma delicada atmosfera de

rimance popular e regionalista e uma melancolia visionária – que é a própria trama da sua actividade de prosadora – transcendem algum

sentimentalismo remanescente, para revelarem um comovente lirismo da ausência, de frustração, do incorpóreo, do fantasmático,

com que a sua feminilidade muito apurada ilude o frio amargor de uma sensualidade embebida de idealismos típicos de uma certa

condição social da mulher, de que todavia se evade pelo ímpeto

harmónico, muitas vezes notabilíssimo, do poema."

Jorge de Sena in Líricas Portuguesas, Volume I, Lisboa, Edições 70, 3ª edição, 1984

II

Bastar-lhe ia ter escrito alguns poemas de Rio Infindável, ou de

Anel de Sete Pedras, de Liberta em Pedra, de Segunda Imagem

ou de Os Intrusos, alguns trechos de Infância de Que Nasci, alguns contos de Solidão Sobre as Searas – para que o nome de

Natércia Freire se inscrevesse, por direito próprio, e com um relevo de que nem ela própria decerto suspeitará, no mais selectivo e

duradouro património da Literatura Portuguesa. Mas de outro modo quiseram ainda as circunstâncias – e a nobilíssima elevação com que

Natércia Freire a elas tem correspondido – que o seu nome ficasse vinculado, num largo período bem difícil, à defesa e à dignificação das

Letras Contemporâneas, quer sobrepondo à realização da própria obra a persistente difusão da obra dos seus camaradas, quer

mantendo-se firme ante os remoinhos das mais absurdas ou torvas incompreensões, quer lutando incansavelmente contra a maré – as

marés – da intolerância, da discriminação, do sectarismo.

David Mourão-Ferreira in "Artes e Letras" de Diário de Notícias, Nº 1000 de 4 de Abril de 1974