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Marsiglia - a pratica pedagogica historico-critica

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  • EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a servio da cultura brasileira

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    IlustraesAna Maria Galvo Marsiglia

    ImagensFiguras do arquivo pessoal da autora

    CapaMaisa S. Zagria

    Ilustrao da capaAlexandre Marsiglia, baseado em Paul dessinant, de Pablo Picasso, 1923.

    Arte-final Rodrigo Nascimento

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    denuncie a cpia ilegal

    A prtica pedaggica histrico-crtica na educao infantil e ensino fundamental

    Ana Carolina Galvo Marsiglia

    Coleo Educao Contempornea

    AUTORES/^ASSOCIADOS

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    M arsiglia, Ana Carolina GalvoA prtica pedaggica histrico-crtica na educao

    infantil e ensino fundamental / Ana Carolina Galvo Marsiglia. - Campinas, SP : Autores Associados, 2011. - (Coleo Educao contempornea)

    BibliografiaISBN 978-85-7496-266-5

    1. Educao - Brasil - Histria 2. Educao infantil 3. Ensino 4. Ensino fundamental 5. Pedagogia histrico-crtica 6. Prtica social 7. Professores 8. Sociologia educacional I. Ttulo. II. Srie.

    11-00042 CDD-370.115

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Pedagogia histrico-crtica na educao infantil e ensino fundamental: Educao 370.115

    Impresso no Brasil - abril de 2011 Copyright 2010 by Editora Autores Associados LTDA.

    Depsito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004, que revogou o Decreto-lei n. 1.825, de 20 de dezembro de 1907.

    Dedico este livro memria de duas mulheres: Ana Maria (minha me) e

    Adriana Chaves (me de corao).

    Com gratido pela ternura e saudade insupervel.

  • Ns temos que atuar nas instituies existentes, impulsionando'as dialeticamente na direo dos novos objetivos.

    Do contrrio, ficaremos inutilmente sonhando com instituiesideais.

    D erm eva l Saviani, Educao: do senso comum conscincia filosfica.

  • Prefcio ........................................................................................................xiApresentao ............................................................................................. 1

    Captulo 1Fundamentos da pedagogia histrico-crtica..................................... 5

    1. O Homem e o trabalho.............................................................52. Alienao docente: implicaes na construo do

    conhecimento ............................................................................83. Escola: que espao esse? .....................................................10

    Captulo 2Consideraes sobre desenvolvimento infantil............................. 35

    1. O Desenvolvimento da criana: breves consideraes .. 35

    Captulo 3A interveno em uma instituio de educao infantil............61

    1. A Educao infantil: aproximaes ..................................612. Os Referenciais Curriculares Nacionais

    para a Educao Infantil........................................................633. A Interveno......................................................................... 67

  • Captulo 4Intervenes no ensino fundamental..............................................116

    1. A Educao no estado de So Paulo.................................1162. O Ensino fundamental de nove anos: prejuzos para

    a infncia? .............................................................................. 1203. Um Contedo de matemtica da Ia srie

    do ensino fundamental........................................................1224. Ensino de cincias: contradies na sala de aula...........133

    Consideraes finais............................................................................. 153Referncias bibliogrficas....................................................................155Sobre a autora.........................................................................................169 Este livro trata de pedagogia. Mas o que a pedagogia? Inde- pendentemente dos vrios significados que se possa atribuir a esse termo, h um aspecto comum, de carter consensual:

    a pedagogia est sempre referida educao. Dir-se-ia, ento, que a pedagogia implica uma atitude, um ponto de vista, um enfoque, uma abordagem que se exerce sobre algo, isto , um objeto que identificado pelo nome de educao. Assim sendo, a educao comporta-se como um dado de realidade, como algo objetivo, como um fenmeno determinado. Sobre essa realidade incide a pedagogia.

    Voltamos, ento, pergunta: o que pedagogia? Mas agora essa pergunta j no mais genrica, pois ela diz respeito a algo objetivamente determinado que conhecemos pelo nome de educao. E a pergunta indaga sobre qual o tipo de atitude ou de abordagem que caracteriza a pedagogia em seu voltar-se para a educao.

    Ora, dizer que a pedagogia se volta para a educao significa que ela olha para a educao, observa e analisa, procurando compreend-la e explic-la. E ns sabemos que o ato de olhar, de contemplar, de observar algo expresso em nossa cultura de origem greco-romana pelo termo teoria. Com efeito, teoria um termo grego que significa ato de ver, de olhar, de contemplar, de interpretar, o que implica um sentido desvinculado dos interesses da ao. Nesse mbito, a teoria denota o ato de conhecer, cuja forma mais prestigia- J;i na sociedade contempornea se identifica com a cincia.

  • Mas ns sabemos tambm que as abordagens cientficas, via de regra, tm suas denominaes formadas pela ligao entre o ter- mo que indica o objeto sobre o qual incide a abordagem acrescido do sufixo Aoyux (loguia) . Esse sufixo, tambm de origem grega, significa estudo de, tratado a respeito de, o que acabou por ser assimilado ao significado de cincia de.

    Diferentemente, o termo pedagogia deriva diretamente do grego Jtaiayoyia (paidagoguia) , que tem seu primeiro elemento (peda) derivado do termo grego Jiai (pais) (no caso nominativo) e Jta i (paids) (no genitivo), que significa criana, sendo o segundo elemento constitudo pelo sufixo yoyia (goguia) e no oyia (loguia). Ora, o sufixo gogia liga-se ao ato de conduzir, dirigir. Da que jraiayoyia (paidagoguia) significa, em grego, conduo da criana ou o ato de dirigir a criana.

    V-se, ento, que enquanto o sufixo logia remete ao significado de um estudo do objeto, ou seja, uma anlise que no interfere na constituio de seu objeto, buscando apenas o conhecer, o sufixo gogia se reporta ao sentido do prprio ato de produo do objeto. Da a concluso que enunciei nos seguintes termos:

    Se toda pedagogia teoria da educao, nem toda teoria da educao pedagogia. Assim, diferentemente das teorias que buscam explicar como est constitudo o fenmeno educativo sem se preocupar com o modo como realizado o ato educativo, a pedagogia uma teoria que se empenha no apenas em compreender e explicar a educao, mas tambm em orientar o modo de sua realizao prtica. Eis por que a pedagogia pode ser definida como a teoria da e para a prtica educativa.

    Eis a razo pela qual a pedagogia histrico-crtica caracterizou a educao como uma atividade prtica mediadora no interior da prtica social. Como sabemos, essa teoria pedaggica vem sendo construda por aproximaes sucessivas num processo coletivo que conta com a contribuio dos vrios pesquisadores e professores identificados com sua formulao original.

    A partir do enunciado de seus fundamentos e princpios representados pelo esclarecimento da natureza e especificidade da educao e pelo movimento metodolgico relativo apropriao e interveno na prtica social pela mediao da Problematizao, instrumentalizao e catarse por parte dos educandos, coloca-se a necessidade de se trabalharem os vrios aspectos implicados na realizao da prtica pedaggica na perspectiva histrico-crtica.

    nesse contexto que se inserem os esforos de Ana Carolina Galvo Marsiglia dos quais este livro sua primeira expresso, pois incorpora os estudos realizados no projeto de iniciao cientfica, no trabalho de concluso do curso de pedagogia (TCC) e em sua experincia, logo aps a graduao, atuando nas sries iniciais do ensino fundamental como professora de turmas de alfabetizao.

    Aps esclarecer os leitores sobre os fundamentos filosfico - -pedaggicos e sobre as bases psicolgicas da pedagogia histrico-crtica (captulos 1 e 2), a autora apresenta a interveno prtica realizada na educao infantil (captulo 3) e na primeira srie do ensino fundamental (captulo 4).

    provvel que os leitores, j vista do sumrio, possam estranhar a proposta de trabalhar com crianas pequenas no nvel da pr-escola o tema histria do livro incursionando pela Pr-histria, Antiguidade, Idade Mdia e Renascimento. Poder-se-ia indagar: mas como possvel uma proposta como essa? At que ponto as crianas em idade pr-escolar teriam j formada a noo de tempo que lhes permitiria compreender o percurso histrico desde as pocas mais remotas? Ser que a autora no estaria tendo um entendimento mecnico da denominao histrico-crtica, o que a levaria a forar, mesmo para as crianas pequenas, a introduo de contedos histricos?

    No entanto, quando o leitor penetra no texto e acompanha a narrativa dos aspectos internos interveno prtico-pedaggica, percebe, pela demonstrao da prpria experincia efetivada, no apenas a viabilidade como a fecundidade da proposta em termos dos resultados da aprendizagem das crianas. E isso no apenas porque

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    se tratava de crianas na fase final da educao infantil, portanto, no limiar do ensino fundamental, estando j praticamente alfabetizadas, mas tambm porque a professora do ano anterior j havia de- senvolvido com elas o estudo da Grcia Antiga, o que mostra que a proposta no tinha nada de excntrico ao processo de aprendizagem daquelas crianas.

    O contedo deste livro remonta ao perodo em que Ana Carolina frequentou, como aluna, o curso de pedagogia da U n e sp de Bauru, entre 2002 e 2005. Desde a vem se dedicando com afinco e - podemos dizer - em tempo integral teoria e prtica da pedagogia histrico-crtica.

    Na sequncia de seus estudos e de sua interveno prtica na educao infantil e ensino fundamental, ela envolveu-se em vrias outras atividades reclamadas pela perspectiva pedaggica que abraou. E, estando na fase de concluso de sua tese de doutoramento, j elaborou novo projeto de pesquisa versando exatamente sobre a prtica pedaggica na perspectiva da pedagogia histrico-crtica. Nessa nova pesquisa, prope-se a realizar um estudo terico-conceituai dos fundamentos filosficos (materialismo histrico-dialtico), das bases psicolgicas (psicologia histrico-cultural) e proposies terico- -metodolgicas da pedagogia histrico-crtica com nfase nas suas expresses didticas.

    Ana Carolina se dispe, ao formular tal projeto, a enfrentar de forma resoluta o problema nuclear, e por isso dos mais difceis, de toda teoria pedaggica que diz respeito articulao entre teoria e prtica tendo em vista a realizao, no mbito do funcionamento da escola, da orientao explicitada na formulao terica. No mbito especfico da pedagogia histrico-crtica, trata-se de uma contribuio da maior relevncia que, sem dvida, enriquecer sobremaneira a prpria teoria.

    Estou certo, enfim, de que a leitura deste livro, pelos esclarecimentos que traz e pelas indicaes que oferece para o trabalho pedaggico na educao infantil e nas sries iniciais do ensino fun

    XV

    damental, de grande importncia no apenas para os professores que se alinham com os pressupostos e a metodologia da pedagogia histrico-crtica. Igualmente os demais docentes no deixaro de encontrar nesta obra informaes valiosas e pistas de inegvel utilidade para o seu trabalho com as crianas em sala de aula.

    Campinas, 24 de outubro de 2010 Dermeval Saviani

  • Apresentao

    Ingressei no curso de pedagogia da Universidade Estadual Paulis- ta Jlio de Mesquita Filho (U n e sp ) , campus de Bauru, no ano de 2002. O curso, poca com um projeto poltico-pedaggico fundamentado na pedagogia histrico-crtica e com corpo docen- te comprometido com esse referencial terico, proporcionou-me o privilgio de estudar com profissionais de alto gabarito que se utilizavam de estudos complexos e profundos.

    Foi no curso de pedagogia que pela primeira vez ouvi falar de Dermeval Saviani, com a recomendao de ler Escola e democracia. Confesso que, aps a primeira leitura, muito pouco eu entendi, ainda um tanto despreparada para aquele contedo to profundo.

    No segundo semestre de 2002, j havia lido Escola e democracia e Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes por mais duas vezes. As aulas, as discusses, os estudos e a leitura atenta a cada linha dos textos me fizeram ver de outra forma o pensamento do professor Saviani. Foi assim que decidi mergulhar de cabea na pedagogia histrico-crtica como opo de pesquisa e de vida. Interessei-me em fazer iniciao cientfica e fui contemplada com uma bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cient- ica (P ib ic ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico c Tecnolgico (CNPq), que originou meu trabalho de concluso de curso, denominado Como transpor a pedagogia histrico-crtica para a /irtica pedaggica do professor na educao infantil? (M a r s ig l ia ,

  • 22005), orientado pelo professor doutor Jos Misael Ferreira do Vale e que originou a parte deste livro que se refere interveno realizada na educao infantil,

    Entre 2006 e 2007, coordenei com a professora mestre Rita de Cssia Bastos Zuquieri um grupo de estudos sobre prtica pedaggica na educao infantil e ensino fundamental na Secretaria Municipal de Educao de Bauru, poca dirigida pela professora doutora Ana Maria Lombardi Daibem. Nessa experincia, tive oportunidade de expandir minhas reflexes, agora no papel de orientadora de professores que se propunham a colocar em prtica a pedagogia histrico-crtica em diferentes nveis de ensino e reas do conhecimento.

    Tambm no ano de 2006, recm-formada, ingressei como professora efetiva da rede estadual de ensino paulista, na qual trabalhei at 2009 como professora das sries iniciais, sempre lecionando em turmas de alfabetizao. Essa experincia foi fundamental para que eu firmasse minhas posies tericas, contrapondo-me ao discurso oficial da Secretaria de Estado da Educao de So Paulo (construtivista), e ampliasse meu repertrio como educadora. Tambm foi depois de ingressar nessa rede que iniciei minha tese de doutorado, desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar da U n e sp (campus de Araraquara), sob orientao do professor doutor Newton Duarte, com bolsa da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (F a p e s p ) . Desde meu ingresso na ps-graduao, filiei-me ao grupo de pesquisa Estudos Marxistas em Educao, registrado no CNPq e liderado por meu orientador. Trabalhando com membros desse grupo e outros acadmicos, tenho a oportunidade de articular meus trabalhos diretamente relacionados ao doutorado ou no com a perspectiva marxista, o que vem cada vez mais consolidando meu referencial terico.

    Ao divulgar os resultados obtidos com minha prtica pedaggica na educao infantil e ensino fundamental, por um lado,

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    respondo s solicitaes que tenho recebido de professores da educao bsica e do ensino superior que desejam tomar contato com a pedagogia histrico-crtica e, por outro, procuro romper com as cidas crticas tecidas aos professores sem olhar para a realidade como um todo e sem oferecer-lhes nenhuma alternativa que os auxilie para melhorarem seu desempenho. Como afirmei no editorial de um encarte de jornal da cidade de Bauru, preciso divulgar os sucessos e analis-los com abrangncia e no como casos isolados. E necessrio dar ao professor seu lugar de destaque no processo de ensino-aprendizagem. At porque, esta a nica forma de contrapor as colocaes que fazem a respeito da incapacidade, incompetncia e descompromisso docente, que s avacalham e humilham os educadores (M a r s ig l ia , 2008, p. 2).

    No primeiro captulo, so apresentadas as concepes de homem e trabalho, bem como so tecidas consideraes sobre a alienao do trabalho docente. Esses itens so fundamentais para chegar-se s teorias pedaggicas e fazer a ligao com os fundamentos da pedagogia histrico-crtica.

    O segundo captulo destinado s observaes sobre o desenvolvimento infantil, delineando, ainda que brevemente, os estgios do desenvolvimento trazidos pela psicologia sovitica, a conceituao e caracterizao de atividade-guia em cada estgio e tambm reflexes sobre a linguagem, funo psicolgica superior basilar para o desenvolvimento humano, especialmente nos estgios aos quais se reportam as intervenes aqui apresentadas.

    Aproximaes com a concepo de educao infantil, ponderaes sobre os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (RCNEI) e a justificativa da escolha do tema A histria do livro para o trabalho desenvolvido em uma instituio Je atendimento a crianas de 0 a 6 anos introduzem o terceiro captulo, que traz ainda a interveno em si, em todos os seus momentos ilustrados.

  • 4O quarto captulo traz um breve panorama sobre a educao no estado de So Paulo a partir de 1983, discute o ensino fundamental de nove anos e apresenta dois trabalhos desenvolvidos em classes de I a srie (atual 2o ano)1.

    Este livro intenciona apresentar os estudos que venho reali- zando desde 2003, desejando com isso colaborar com o avano da perspectiva terica da pedagogia histrico-crtica. Longe de esgotar o tema, minha inteno contribuir com a reflexo sobre prticas pedaggicas fundamentadas neste referencial. Certamente meu trabalho pode ter limitaes, mas espero que ele possa ser discutido, analisado, ampliado e assim participar do movimento de consolidao da pedagogia histrico-crtica, que, comprometida com a classe trabalhadora, busca oferecer referencial de educao de qualidade queles que tm tido esse direito negado.

    1 A rede estadual paulista incorporou os cinco anos iniciais apenas em 2010, sendo posterior s reflexes deste livro.

    Captulo 1 Fundamentos da pedagogia histrico-crtiea

    1. O Homem e o trabc-lho

    Para entender as implicaes e as possibilidades de um projeto educativo comprometido com a mudana da sociedade, preciso ter uma viso de ser humano e sua relao com o trabalho.

    O homem como espcie um ser natural, isto , um ser composto biologicamente, mas que no est acabado, pois sua constituio depende das suas relaes sociais. A diferena entre a espcie humana e as outras espcies animais d-se em decorrncia do trabalho. Enquanto as outras espcies se adaptam realidade satisfazendo suas necessidades, o homem modifica a realidade pelo trabalho, transformando-a para atender suas necessidades que se vo complexificando na medida do desenvolvimento de sua realidade.

    O trabalho, portanto, atividade essencialmente humana, o que caracteriza a natureza humana, construindo-a histrica e socialmente. a atividade consciente, com finalidade e intencionalidade de satisfao de suas necessidades, que o torna um ser humanizado.

    Concordando com Engels (1986, p. 33): Os animais s podem utilizar a natureza e modific-la apenas porque nela esto presentes. J o homem modifica a natureza e a obriga a servi-lo, ou melhor: domina-a. Analisando mais profundamente, no h dvida de que a diferena fundamental entre os homens e os outros animais est na fora do trabalho (grifo do autor).

  • 6O trabalho humano pode ser material ou no material. No caso do trabalho material, sua produo a garantia de subsistncia, a produo de objetos tendo o homem como sujeito. J a produo no material se caracteriza pelo trabalho produtor de ideias, valores, smbolos, conceitos, habilidades etc. A educao trabalho no material: no produz resultados fsicos (objetos) e seu produto no se separa nem de seu produtor, nem de seu consumidor. Significa dizer, portanto, que a educao depende do educador (produtor) para a consecuo do seu objetivo (produo) e no se realiza sem a presena ativa do seu consumidor (educando).

    As duas categorias de trabalho (material e no material) esto intimamente relacionadas, pois o homem planeja, antecipa mentalmente sua ao sobre o objeto e, portanto, para a realizao do trabalho material, o homem realiza um trabalho no material.

    No momento em que o modo de produo capitalista inverte a posio do homem em relao ao trabalho, ou seja, o homem deixa de ser sujeito e passa a ser objeto, o trabalho se torna fragmentado e perde seu sentido humanizador. Esto criadas as condies para o processo de alienao.

    A separao entre trabalhador e o produto de seu trabalho, ou seja, a diviso social do trabalho determina a alienao, pois torna o trabalho algo empobrecido e que no enriquece o desenvolvimento humano. Portanto, diviso social do trabalho significa colocar o homem como mercadoria: sua produo representa seu valor e seu valor s considerado quando contribui para a acumulao do capital. Segundo Marx (1989, p. 159):

    O ser alheio ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, a servio do qual est o trabalho e para cuja fruio est o produto do trabalho, s poder ser o homem mesmo. Se o produto do trabalho no pertence ao trabalhador, um poder alheio estando frente a ele, ento isto s possvel por o produto do trabalho pertencer a um outro homem fora do trabalhador. Se a sua atividade lhe tormento, ento tem que ser fruio a um outro e a alegria de viver de um

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    outro. No os deuses, no a natureza, s o homem mesmo pode ser este poder alheio sobre os homens [grifo do autor].

    Considerando esse processo de alienao, para que o professor seja formado, preciso consider-lo sujeito homem e no desvincul- -lo do sujeito professor. H [...] a necessidade de se compreender o professor como pessoa, ou seja, reconhecer que aquilo que ele diz e faz mediado por aquilo que ele , por sua personalidade (M a r t in s , 2001, p. 29).

    A sociedade capitalista tem colocado a escola como mecanismo que adapta seus sujeitos sociedade na qual esto inseridos. Sendo assim, na sociedade capitalista a escola tem a funo social de manuteno do sistema por meio das ideias e dos interesses da classe dominante, ocasionando o esvaziamento dos contedos adequados e necessrios humanizao e de mtodos igualmente adequados apropriao da humanidade social e historicamente construda. Essa escola do capitalismo abre portas a todo tipo de organizao no escolar, enfatiza a experincia e valoriza por conseguinte o indivduo particular e sua subjetividade.

    Se por um lado a histria de vida fundamental na formao do sujeito em sua totalidade, por outro lado a secundarizao da educao escolar representa minimizar contedos e formas de assimilao dos conhecimentos historicamente construdos. Consequentemente, significa contribuir para o projeto neoliberal que impede a ao dos homens na realidade concreta.

    Estas novas referncias, apresentadas por discursos bastante sedutores, sobre valorizao da pessoa e sua subjetividade [...], sobre a importncia dos conhecimentos adquiridos experiencialmente, sobre a criatividade da atividade docente [...], sobre a articulao entre aprendizagem e cotidiano, etc. [...] representam, outrossim, estratgias para o mais absoluto esvaziamento do trabalho educacional. Os professores j no mais precisaro aprender o conhecimento historicamente acumulado, pois j no mais precisaro ensin-lo aos seus alunos, e ambos, professores e alunos, cada vez mais empobre-

  • 8eidos de conhecimentos pelos quais possam compreender e intervir na realidade, com maior facilidade, adaptar-se-o a ela pela primazia da alienao [idem, pp. 40-41].

    A finalidade de garantir aos seres humanos as aquisies da cultura humana depende da [...] possibilidade prtica de tomar o caminho de um desenvolvimento que nada entrave (L e o n t ie v , 1978, p. 283). Isso possvel,

    [...] mas s o em condies que permitam libertar realmente os homens do fardo da necessidade material, de suprimir a diviso mutila- dora entre trabalho intelectual e trabalho fsico, criar um sistema de educao que lhes assegure um desenvolvimento multilateral e harmonioso que d a cada um a possibilidade de participar enquanto criador em todas as manifestaes da vida humana [idem, pp. 283-284].

    2. Alienao docente: implicaes na construo do conhecimento

    E preciso no perder de vista que a educao, apesar de sua fundamental importncia na conscientizao das massas, no redentora da humanidade, pois pertence a um sistema de instituies sociais, sendo necessrio considerar que todos os fatores sociais agem (ou deveriam agir) dialeticamente. Sendo assim, [...] a crise de hoje no simplesmente a de uma instituio educacional, mas a crise estrutural de todo o sistema da interiorizao capitalista (M sz ro s , 1981, p. 270).

    Para refletir sobre a atuao do professor, preciso considerar as condies concretas de realizao de seu trabalho, pois a idealizao deve servir-nos como aquilo que buscamos, mas deve ser pensada a partir daquilo que vivemos.

    Os esforos em manter o trabalho pedaggico num iderio que desvaloriza o carter poltico da educao imergem o professor em prticas que, traduzindo sua alienao particular, a reproduzem em seus educandos partindo de prticas valorativas do cotidiano e que impedem a reflexo crtica e transformadora.

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    preciso compreender esta imerso acrtica em seu contexto histrico. A partir do final da dcada de 1980, aumentou a demanda pela escola, mas sua qualidade no acompanhou o nmero de vagas oferecidas, o que fez que os alunos provenientes de melhores condies financeiras migrassem para as escolas privadas; o professor teve sua formao esvaziada, deixando de ser valorizado socialmente, os salrios tiveram queda vertiginosa, o que tambm contribuiu para a minimizao do status do professor. Alm disso, a culpabilizao do professor pelos males da escola coloca o educador em condio de ser necessrio ou desnecessrio, tanto para a classe dominante como para a classe trabalhadora, dependendo do projeto com o qual est comprometido. Esse comprometimento, por sua vez, depende do nvel de conscincia profissional do docente em relao ao seu poder de transformao na prtica pedaggica.

    A crise das instituies educacionais uma crise da totalidade dos processos dos quais a educao formal apenas uma parte. A questo central da atual contestao das instituies educacionais no simplesmente o tamanho das classes, a inadequao das instalaes de pesquisa etc., mas a razo de ser da prpria educao. Essa questo envolve inevitavelmente no s a totalidade dos processos educacionais, desde a juventude at a velhice, mas tambm a razo de ser dos instrumentos e instituies do intercmbio humano em geral. Se estas instituies - inclusive as educacionais - foram feitas para os homens, ou se os homens devem continuar a servir s relaes sociais de produo alienadas - esse o verdadeiro tema do debate [idem, p. 272].

    A educao, portanto, est diretamente relacionada organizao social em suas mltiplas relaes. Da decorrem os interesses polticos e econmicos em manter a educao em plano de menor importncia. Preocupar-se com a educao transformadora significa investir no sistema educacional e formar intelectuais orgnicos1.

    I Segundo Gramsci (1991), os intelectuais tm funo organizativa na sociedade, podendo desempenhar papel reprodutor ou transformador. uma elite formada por dirigentes vinculados aos interesses de classe.

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    Porm, esse no um projeto capitalista e precisa ser compreendido em sua essncia, pois o neoliberalismo procura masca- r-lo com os conceitos de globalizao, integrao, flexibilidade, competitividade etc., que [...] so uma imposio das novas formas de sociabilidade capitalista tanto para estabelecer um novo padro de acumulao quanto para definir as formas concretas de integrao dentro da nova reorganizao da economia mundial (F r ig o t t o , 1 9 9 9 , p. 4 1 ) .

    A implicao de maior importncia na alienao do professor no processo educativo , portanto, levar os alunos reproduo da sociedade sem conscincia de sua insero nela e dos resultados dessa reproduo para a melhoria de suas prprias vidas.

    3. Escola: que espao esse?

    A escola uma instituio social, cujo papel especfico consiste em propiciar o acesso ao conhecimento sistematizado daquilo que a humanidade j produziu e que necessrio s novas geraes para possibilitar que avancem a partir do que j foi construdo historicamente.

    A escola pode tornar-se espao de reproduo da sociedade capitalista ou pode contribuir na transformao da sociedade dependendo do nvel de participao nas decises que os envolvidos tm (pais, alunos, professores), da maneira como os contedos so selecionados (sua relevncia e carter humanizador), da forma como so discutidos, apresentados e inseridos no planejamento e como so ensinados. O professor , portanto, pea-chave nessa organizao e sistematizao do conhecimento.

    Nas diferentes teorias educacionais, encontra-se a viso de escola, professor e aluno que norteia cada uma delas e consequentemente possvel reconhecer nesses modelos a manuteno do status quo ou a luta para fazer da escola um espao democrtico e contribuinte para as transformaes da sociedade.

    a) Teorias no crticas

    Na sociedade capitalista, a educao tem duas funes: 1) qualificao de mo de obra; 2) formao para o controle poltico. Assim como j descrito anteriormente, essas funes respondem sociedade de classes, pois em sua funo de formao para o controle poltico sero preparados aqueles que determinaro os rumos da sociedade enquanto a mo de obra mantm a estrutura social.

    Todas as teorias deste grupo desempenharam e ainda desempenham grande poder sobre as prticas pedaggicas exercidas, tendo a ao da escola como a de adequao do indivduo sociedade.

    A chamada escola tradicional2 tem o ensino centrado na autoridade do professor, os contedos no esto relacionados realidade e o aluno deve aprender pela repetio e memorizao. No entanto, ao longo do tempo essa escola foi sendo progressivamente criticada por [...] no conseguir realizar seu desiderato de universalizao (nem todos nela ingressavam e mesmo os que ingressavam nem sempre eram bem-sucedidos) [...] (S a v ia n i, 2008b, p. 6 ) .

    A educao tradicional esteve ligada fase revolucionria da burguesia, defendendo o princpio de que todos os seres humanos nascem essencialmente iguais, ou seja, nascem uma tabula rasa3, que se contrapunha concepo medieval, segundo a qual os seres humanos nasceriam essencialmente diferentes e defendia a reforma da sociedade [...] substituindo uma sociedade com base num suposto direito natural por uma sociedade contratual (idem, p. 32). Essa escola estava articulada a um processo poltico de superao da Idade Mdia e consolidao da burguesia e sua ordem democrtica no poder. Para tanto, era necessrio superar a ignorncia, entendida como causa da marginalizao dos indivduos, transformando [...]

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    2 Que passa a ser assim denominada a partir da crtica pedagogia da essncia, tendo essa expresso em seu ponto de partida j um carter negativo.

    3 Note-se que o discurso pedaggico da atualidade critica a ideia de tabula rasa sem historiciz-la, ou seja, esquecendo-se do fato de que essa ideia desempenhou um papel histrico progressista ao se opor viso de mundo medieval.

  • 12

    sditos em cidados, isto , em indivduos livres porque esclarecidos, ilustrados. Como realizar essa tarefa? Por meio do ensino. A escola erigida no grande instrumento para converter os sditos em cidados [...] (idem, p. 5).

    No se podem ignorar as insuperveis limitaes da pedagogia tradicional, as quais decorrem principalmente do fato de que se trata de uma pedagogia burguesa e, como tal, desconsidera inteiramente a existncia da luta de classes e suas implicaes para a produo e distribuio social do conhecimento, da mesma forma que transforma o conhecimento ensinado na escola em algo destitudo de historicidade. Mas no foi por essa razo que a escola tradicional passou, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, a ser alvo das crticas dos defensores da nova pedagogia. Tais crticas tm sua origem social no fato de que a burguesia precisava recompor sua hegemonia ( S a v ia n i, 2008b) e, nesse contexto, tornou-se necessrio articular ideologicamente a escola a uma perspectiva no mais centrada na socializao do conhecimento objetivo sobre a realidade natural e social, mas sim a uma concepo da escola como espao de respeito individualidade, atividade espontnea e s necessidades da vida cotidiana dos indivduos.

    Os idelogos da burguesia colocavam a necessidade de educao de forma mais geral e, nesse sentido, cumpriam o papel de hegemonia, ou seja, de articular toda a sociedade em torno dos interesses que se contrapunham dominao feudal. Enquanto a burguesia era revolucionria, isso fazia sentido; quando ela se consolidou no poder, a questo principal j no era superar a velha ordem, o A ntigo Regime. Este, com efeito, j fora superado, e a burguesia, em consequncia, j se tornara classe dominante; nesse momento, o problema principal da burguesia passa a ser evitar as ameaas e neutralizar as presses para que se avance no processo revolucionrio e se chegue a uma sociedade socialista. A burguesia, ento, torna-se conservadora e passa a ter dificuldades ao lidar com o problema da escola, pois a verdade sempre revolucionria. Enquanto a burguesia era revolucionria, ela possua interesse na verdade. Quando passa a ser conservadora, a verdade ento a incomoda, choca-se

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    com seus interesses. Isso ocorre porque a verdade histrica evidencia a necessidade das transformaes, as quais, para a classe dominante - uma vez consolidada no poder - , no so interessantes; ela tem interesse na perpetuao da ordem existente [Saviani, 2003, p. 100].

    Dessa forma, a burguesia passa a propor uma pedagogia que legitima a diferena entre os homens, a pedagogia da existncia, que [...] vai contrapor-se ao movimento de libertao da humanidade em seu conjunto, vai legitimar as desigualdades, legitimar a dominao, legitimar a sujeio, legitimar os privilgios. [...] Nesse momento, a classe revolucionria outra: no mais a burguesia, exatamente aquela classe que a burguesia explora (S a v ia n i, 2008b, p. 34).

    A teoria educacional que toma corpo a partir de ento, a pedagogia nova4, afirma que [...] os homens no so essencialmente iguais; os homens so essencialmente diferentes, e ns temos que respeitar as diferenas entre os homens. Ento h aqueles que tm mais capacidade e aqueles que tm menos capacidade; h aqueles que aprendem mais devagar; h aqueles que se interessam por isso e os que se interessam por aquilo (idem, ibidem).

    Em verdade, o que est por trs dessa aceitao a validao das desigualdades como algo natural e impossvel de ser superado. Assim, o eixo da questo pedaggica, antes centrado no contedo, no professor e na diretividade, agora se desloca para os mtodos ou processos pedaggicos, para o aluno e para a no diretividade, tratando-se de uma teoria [...] onde o importante no aprender, mas aprender a aprender (idem, p. 8).

    4 Segundo Saviani (2008, p. 49), as expresses pedagogia nova e pedagogia da existncia so equivalentes (mas no confundir pedagogia da existncia com pedagogia existencialista), posto que esto centradas [...] na vida, na existncia, na atividade, por oposio concepo tradicional que se centrava no intelecto, na essncia, no conhecimento (grifo do autor).

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    Segundo os preceitos da Escola Nova, a educao deve contribuir para que todos os indivduos sejam aceitos na sociedade com suas diferenas, sejam elas quais forem. Assim, deslocou

    [...] o eixo da questo pedaggica do intelecto para o sentimento; do aspecto lgico para o psicolgico; dos contedos cognitivos para os mtodos ou processos pedaggicos; do professor para o aluno; do esforo para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o no diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspirao filosfica centrada na cincia da lgica para uma pedagogia de inspirao experimental baseada principalmente nas contribuies da biologia e da psicologia [idem, ibidem].

    Esse tipo de escola ficou restrito a pequenos grupos de elite e as redes oficiais, apesar de influenciadas por este novo pensamento, no tinham condies (materiais inclusive) de acompanhar as caractersticas do trabalho escolanovista. Como consequncia, rebaixou- -se o nvel de ensino destinado classe trabalhadora, que no mais tinha na escola o espao singular de acesso ao conhecimento elaborado, pois este ficou em segundo plano.

    Na atualidade, remontando ao movimento da pedagogia nova (ou escolanovismo), as pedagogias do aprender a aprender tm se firmado hegemonicamente, sendo diferentes discursos (construtivismo, pedagogia das competncias, pedagogia de projetos, pedagogia do professor reflexivo etc.) variantes de uma mesma concepo.

    O universo ideolgico ao qual esto ligadas essas pedagogias o neoliberalismo e o ps-modernismo. Ainda que os intelectuais ps- -modernos no aceitem essa associao, difcil no fazer essa aproximao tendo em vista que compartilham de diversos aspectos que convergem para a ideologia da sociedade capitalista (Cf. D u a r te , 2000, 2001).

    Um aspecto que pode ser destacado a concepo de conhecimento para o neoliberalismo e para o ps-modernismo. No caso do primeiro, valoriza-se o conhecimento tcito (imediato, aparente, cotidiano, em-si). Para o segundo, o conhecimento relativo, trata-se de uma construo mental individual ou coletiva que no tem o po

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    der de se apropriar objetivamente da realidade, reduzindo-se a sinais, convenes e prticas culturalmente justificadas. Trata-se do discurso de um grupo, um significado compartilhado por um grupo social (da pensar a escola como espao de negociao de significados e contedos e no como espao de transmisso-assimilao de conhecimento). Como se v, a proximidade entre eles grande, pois para ambos a relao do conhecimento se d pela fragmentao e pelo utilitarismo.

    O desenvolvimento da sociedade (tecnologia, cincia etc.) possvel graas ao acmulo de conhecimentos produzidos ao longo da histria humana. Acmulo esse que transmitido de gerao em gerao, sendo objeto de apropriao pelos indivduos e permitindo progredir nas realizaes e complexificaes da sociedade.

    Da mesma forma como no h cultura e no h sociedade sem a transmisso da experincia social acumulada, os processos de transmisso de conhecimento so indispensveis prtica pedaggica. Nessa perspectiva, a ideia de transmisso de conhecimento deixa de ser vista como algo negativo, a ser evitado ao mximo possvel e passa a ser considerada a principal funo do trabalho educativo (S a v ia n i, 2003). As pedagogias do aprender a aprender, por negarem exatamente isso que caracteriza a especificidade da educao escolar, acabam por defender uma viso equivocada do que seja uma escola democrtica. nesse sentido que [...] quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrtica foi a escola; e de como, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construo de uma ordem democrtica (S a v ia n i, 2008b, p. 30).

    Nessas concepes, o critrio de verdade se estabelece a partir daquilo que mais adequado para cada indivduo considerando o seu cotidiano alienado ( D u a r t e , 2001).

    Analisando as definies de Vigotski5 para conceitos cotidianos e conceitos cientficos, Duarte (2003) explica que os conceitos

    5 Existem diferentes grafias para o nome de Vigotski (cf. D u a r te , 2 0 0 1 ) . Aqui ser adotada esta forma (Vigotski), mas se preservaro as diferentes grafias utilizadas em obras citadas neste trabalho.

  • 16

    cotidianos esto relacionados aparncia, ao imediatamente observvel, que, de forma fragmentada e primria, a manifestao externa das coisas. J os conceitos cientficos esto mediados por um conjunto (sistema) de conceitos e so compreendidos pela anlise cientfica. Trata-se da essncia das coisas de forma complexa em oposio aparncia; o diferencial da cincia: demonstrar as coisas em sua totalidade e complexidade pelas mediaes tericas abstratas. Da o papel da escola (no partilhado pelas pedagogias do aprender a aprender) de que o espao escolar deve voltar-se s objetivaes para-si (no cotidianas)6. Para Saviani (2003, p. 15),

    A escola existe, pois, para propiciar a aquisio dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (cincia), bem como o prprio acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola bsica devem organizar-se a partir dessa questo. Se chamarmos isso de currculo, poderemos ento afirmar que a partir do saber sistematizado que se estrutura o currculo da escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, uma cultura letrada. Da que a primeira exigncia para o acesso a esse tipo de saber seja aprender a ler e escrever. Alm disso, preciso conhecer tambm a linguagem dos nmeros, a linguagem da natureza e a linguagem da sociedade. Est a o contedo fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das cincias naturais e das cincias sociais (histria e geografia humanas).

    O currculo escolar, na perspectiva do aprender a aprender, perde referncia de quais so os contedos a serem ensinados, pois deve voltar-se s vivncias e cultura cotidiana do aluno. Os conhecimentos historicamente construdos e acumulados na histria huma

    6 Segundo a teoria da vida cotidiana desenvolvida por Agnes Heller, as objetivaes historicamente produzidas pela atividade social humana se estruturam em dois nveis principais. Um o das objetivaes em-si que so prprias esfera da vida cotidiana, como o caso dos objetos, da linguagem e dos usos e costumes. O outro a das objetivaes para-si, as quais adquirem uma relativa autonomia em relao vida cotidiana e, ao mesmo tempo, a superam, como, por exemplo, a cincia, a arte e a filosofia ( D u a r t e , 1999, 2007).

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    na so caracterizados negativamente como saberes descontextualiza- dos e fragmentados, porque no esto relacionados vida cotidiana.

    Corroborando com a exaltao do cotidiano, Philippe Perrenoud, ao discorrer sobre a pedagogia das competncias, declarou em entrevista concedida revista Nova Escola que as competncias devem ser fruto da necessidade do dia a dia dos indivduos e, como tal, no podem tomar-se universais. Indaga o educador: [...] o que sabemos verdadeiramente das competncias que tm necessidade, no dia a dia, um desempregado, um imigrante, um portador de deficincia, uma me solteira, um dissidente, um jovem da periferia? (Perr en o u d , 2000, p. 2). Essas colocaes permitem observar que a defesa desse autor a estagnao do indivduo em suas condies de existncia, devendo aprender de forma restrita somente o necessrio para manter-se na condio de explorao em que se encontra. Na mesma entrevista, reforando o entendimento de perpetuao da explorao, o educador tambm afirmou que

    [...] dentre as crianas que tm chance de ir escola somente alguns anos, uma grande parte sai sem saber utilizar as coisas que aprenderam [e que por isso] preciso parar de pensar a escola bsica como uma preparao para os estudos longos [que no se destinam a toda a sociedade, e assim garantir] uma preparao de todos para a vida [idem, p. 3],

    Para essas pedagogias, portanto, a educao no est centrada em adquirir conhecimento (domnio de contedos), mas sim no processo da aprendizagem. Os sujeitos so preparados para serem flexveis e adaptveis s necessidades do mercado; tornam-se dceis aos desgnios do capitalismo; a explorao do homem pelo homem naturalizada e a classe dominante isenta-se da responsabilidade de oferecer condies ao desenvolvimento mximo de todos os indivduos.

    Em contraposio a esse posicionamento de esvaziamento do currculo e de distoro das atividades nucleares da escola, Saviani (2003, p. 16) define currculo como

    [...] o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isto? Porque se tudo o que acontece na escola currculo,

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    se se apaga a diferena entre curricular e extracurricular, ento tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se caminho para toda sorte de tergiversaes, inverses e confuses que terminam por descaracterizar o trabalho escolar.

    Para exemplificar essa descaracterizao, o autor recorre ao dia a dia das escolas, que passam todo o ano letivo se dedicando a atividades que se tornam centrais, quando deveriam apenas servir ao enriquecimento do currculo: Carnaval, Pscoa, Dia das Mes, Festas Juninas, Folclore, Semana da Ptria, Semana da Criana etc.

    O ano letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatao: fez-se de tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espcie de comemorao, mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmisso-assimilao de conhecimentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da escola, isto , a transmisso dos instrumentos de acesso ao saber elaborado [idem, ibidem].

    Finalmente, na tendncia tecnicista todo o sistema educacional organizado por especialistas [...] supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais [...] (S a v ia n i , 2008b, p. 11), cabendo ao professor executar tcnicas que garantam a aprendizagem de contedos que esto restritos a informaes tcnicas, sem permitirem discusses que considerem outros pontos de vista. Tanto professores quanto alunos no so mais elementos centrais do processo educativo, pois a organizao racional, que proporcione a eficincia e a produtividade, ser o componente principal desta pedagogia preocupada em [...] formar indivduos eficientes, isto , aptos a dar sua parcela de contribuio para o aumento da produtividade da sociedade (idem, ibidem).

    b) Teorias crtico-reprodutivistas

    Nas teorias crtico-reprodutivistas, esto as teorias da escola como violncia simblica, da escola como aparelho ideolgico do Estado e da escola dualista.

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    A violncia simblica exercida pelo poder de imposio das ideias transmitidas por meio da comunicao cultural, da doutrinao poltica e religiosa, das prticas esportivas, da educao escolar.

    Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, socilogos franceses, escreveram sobre o fenmeno escolar. Os autores de Os herdeiros (1964) e A reproduo (1970) deixam claro que a escola no desvinculada do contexto social em que est inserida, mas sim marcada pelo sistema social e, portanto, sob o vu de neutralidade, acaba por reproduzir as diferenas de classes, o que se traduz numa violncia simblica. Desta forma, a cultura torna-se instrumento de poder, pois legitima a ordem vigente.

    A teoria da escola como aparelho ideolgico de Estado representa a reflexo feita por Louis Althusser, filsofo francs, a partir do pensamento de Marx, sobre a seguridade da produo por meio da garantia de reproduo de suas condies materiais.

    As condies materiais que esto postas na transformao da natureza em cultura se do por meio da ideologia. A explorao e a dominao de uma classe so veladas, de forma que a classe trabalhadora acredita serem valores universais aqueles impostos pela classe dominante.

    O Estado, como aparelho repressivo (em que o indivduo respeita as leis para no ser punido) e ideolgico (instituies que garantem a dominao pela ideologia), visa garantir a ordem vigente, tendo como um de seus instrumentos a escola.

    Roger Establet e Christian Baudelot, utilizando a matriz terica marxista, retomando Althusser e criticando Bourdieu e Passeron em alguns pontos, escrevem sobre a diviso da escola e desenvolvem a teoria da escola dualista, na qual a escolarizao atende de maneiras diferentes a burguesia e o proletariado, tendo, portanto, a escola, a funo de reproduzir as divises sociais entre trabalho intelectual e trabalho manual.

    Esse grupo de teorias deve ser considerado crtico porque compreende a educao em sua relao com a sociedade e influen

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    ciou estudos sobre a educao (na Amrica Latina, especialmente na dcada de 1970). Porm, como [...] chegam invariavelmente con- cluso de que a funo prpria da educao consiste na reproduo da sociedade em que ela se insere, bem merecem a denominao de teorias crtico-reprodutivistas (S a v ia n i , 2008b, p. 13). Nesse sentido, essas teorias, ao mesmo tempo em que desvelaram a articulao da educao com os interesses da burguesia, tambm propagaram o pessimismo entre os educadores, impactados com a impossibilidade de [...] articular os sistemas de ensino com os esforos de superao do problema da marginalidade [...] (idem, p. 24).

    c) Teorias crticas

    Designam teorias que fazem uma anlise crtica da sociedade e, consequentemente, da educao, sendo que o posicionamento delas de que a educao, como fenmeno social, determinada pelas classes sociais opostas, com interesses, valores e comportamentos diversos.

    Podem-se localizar dois grandes grupos nas teorias crticas. No primeiro grupo, as propostas inspiradas nas concepes libertadora e libertria e no segundo, a pedagogia crtico-social dos contedos e a pedagogia histrico-crtica.

    No caso das teorias do primeiro grupo, pode-se afirmar que elas esto centradas [...] no saber do povo e na autonomia de suas organizaes [preconizando] uma educao autnoma e at certo ponto, margem da estrutura escolar (S a v ia n i , 2 0 0 7 , p. 4 1 2 ) .

    J nas teorias do segundo grupo, a centralidade est na educao escolar, com valorizao do acesso da classe trabalhadora ao conhecimento sistematizado. Afirma Saviani (idem, p. 413) que essa tendncia

    [...] aglutinou representantes cuja orientao terica predominantemente se inspirava no marxismo, entendido, porm, com diferentes aproximaes: uns mantinham como referncia a viso liberal, interpretando o marxismo apenas pelo ngulo da crtica s desigualdades sociais e da busca de igualdade de acesso e permanncia nas escolas organizadas com o mesmo padro de qualidade; outros se empenhavam

    21

    em compreender os fundamentos do materialismo histrico, buscando articular a educao com uma concepo que se contrapunha viso liberal [grifo meu].

    A pedagogia histrico-crtica pertence ao grupo empenhado em fundamentar-se no materialismo histrico, contrapondo-se pedagogia liberal. Visto que este trabalho se fundamenta nessa concepo, que se estruturou como alternativa ao negativismo pedaggico que, preocupado em denunciar a reproduo capitalista atribuiu nfase ao papel reprodutor da escola, seus fundamentos sero explicitados.

    A pedagogia histrico-crtica busca compreender a histria [...] a partir do seu desenvolvimento material, da determinao das condies materiais da existncia humana (S a v ia n i, 2003, p. 88). Nesse sentido, esta teoria pedaggica toma posio na luta de classes aliando-se aos interesses dos dominados e surge [...] em decorrncia de necessidades postas pela prtica dos educadores nas condies atuais (idem, p. 93). Para esse autor, a educao escolar tem carter especfico e central na sociedade, o papel do professor fundamental no ensino, o currculo deve ser organizado com base nos contedos clssicos e a transmisso do conhecimento basilar.

    Desta forma, considera-se que na busca da superao das pedagogias tradicional e do aprender a aprender a pedagogia histrico-crtica se torna referncia por sua coerncia terica e posicionamento ideolgico.

    Essa concepo comea a ser organizada teoricamente no final da dcada de 1970. Suas ideias iniciam-se nas discusses da primeira turma de doutorado da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), em 1979, e avanam em termos de sistematizao com o texto Escola e democracia: para alm da teoria da curvatura da vara, publicado na revista da Associao Nacional de Educao (A n d e) em 1982. Esse texto integra a obra Escola e democracia, lanada em 1983, na qual Dermeval Saviani aborda as principais tendncias pedaggicas, contextualiza as contribuies e limitaes dos diferentes grupos de teo

  • 22

    rias e prope uma pedagogia (que ir denominar-se histrico-crtica a partir de 1984) que supere por incorporao elementos das escolas tradicional e nova. O autor organiza sua proposta metodolgica na forma de passos para compar-los e caracteriz-los em relao aos outros mtodos (Herbart e Dewey). O autor define a pedagogia proposta afirmando que:

    Uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizar, pois, a escola; no ser indiferente ao que ocorre em seu interior; estar empenhada em que a escola funcione bem; portanto, estar interessada em mtodos de ensino eficazes. Tais mtodos situar-se-o para alm dos mtodos tradicionais e novos, superando por incorporao as contribuies de uns e de outros. Sero mtodos que estimularo a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mo, porm, da iniciativa do professor; favorecero o dilogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o dilogo com a cultura acumulada historicamente; levaro em conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicolgico, mas sem perder de vista a sistematizao lgica dos conhecimentos, sua ordenao e gradao para efeitos do processo de transmisso-assimilao dos contedos cognitivos [Saviani, 2008b, pp. 55-56].

    A tabela 1 indica as caractersticas da proposta organizativa de cada mtodo, apoiado pela tendncia pedaggica a qual pertence, segundo as indicaes feitas por Saviani.

    Passo / Pedagogia

    Caractersticas

    Tradicional(Herbart)

    Nova (Dewey) H istrico-crtica (Saviani)

    Passo 1Preparao do aluno: iniciativa do professor.

    Atividade: iniciativa de alunos.

    Ponto de partida da prtica educativa (prtica social): comum a professor e aluno, guardados os devidos nveis de compreenso.

    Passo 2

    Apresentao de novos conhecimentos pelo professor.

    Problema: como obstculo que interrompe a atividade dos alunos.

    Identificao dos principais problemas colocados pela prtica social (Problematizao).

    (continua)

    23

    (continuao)

    Passo 3

    Assimilao de contedos transmitidos pelo professor.

    Coleta de dados.

    Apropriao dos instrumentos tericos e prticos necessrios ao equacionamento dos problemas da prtica social (instrumentalizao).

    Passo 4 Generalizao. Hiptese.

    Expresso elaborada da nova forma de entendimento da prtica social a que se ascendeu (catarse).

    Passo 5 Aplicao. Experimentao.

    Ponto de chegada da prtica educativa (prtica social modificada): passagem da sncrese sntese - a compreenso torna-se mais orgnica.

    Tabela 1: Passos metodolgicos das diferentes pedagogias (Saviani, 2008b, pp. 56-58).

    A reflexo desenvolvida pela pedagogia histrico-crtica busca propor novos caminhos, para que a crtica no seja esvaziada pela falta de solues e organizao metodolgica do pensamento. Sendo assim, os momentos propostos por esta formulao terica sero a seguir explicitados.

    a) Ponto de partida da prtica educativa (prtica social): etapa na qual se deve levar em conta a realidade social do educando. Neste primeiro momento, o professor tem uma sntese precria, pois h um conhecimento e experincias em relao prtica social, mas seu conhecimento limitado, pois ele ainda no tem claro o nvel de compreenso dos seus alunos. Por sua vez, a compreenso dos alunos sincrtica, fragmentada, sem a viso das relaes que formam a totalidade. O primeiro momento do mtodo articula- -se com o nvel de desenvolvimento efetivo do aluno, tendo em vista a adequao do ensino aos conhecimentos j apropriados e ao desenvolvimento iminente, no qual o ensino deve atuar. Com isso se quer dizer que esse momento deve, com base nas demandas ila prtica social (o que no sinnimo de demandas do cotidiano), selecionar os conhecimentos historicamente construdos que

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    devam ser transmitidos, traduzidos em saber escolar. O ponto de partida da prtica educativa a busca pela apropriao, por parte dos alunos, das objetivaes humanas.

    importante destacar que o saber das crianas, baseado em suas experincias do cotidiano, pode contribuir para a estruturao do incio da ao pedaggica, mas no condio para ela. Isto por duas razes: primeiro, porque as experincias dos alunos so baseadas no senso comum, referem-se ao conhecimento em-si e a forma de conhecimento que a escola deve dedicar-se a desenvolver o conhecimento para-si. A segunda razo, decorrente da primeira, que a escola, dedicando-se ao saber erudito, nem sempre encontrar nos interesses imediatos e nos conhecimentos prvios dos alunos os contedos que a escola deve transmitir e isso no significa que por isso no deva criar as necessidades e oferecer os conhecimentos histricos e elaborados. Concordando com Facci (2004b, p. 235):

    [...] sem dvida alguma, a experincia da vida cotidiana da criana deve ser levada em conta no processo de ensino-aprendizagem, no entanto o professor deve agir na reestruturao qualitativa deste conhecimento espontneo, levando o aluno a super-lo por meio da apropriao do conhecimento cientfico-terico. Na relao dialtica entre conceito espontneo e conceito cientfico, percebe-se o desenvolvimento das FPS7.

    b) Problematizao: momento de levantar as questes postas pela prtica social. a ocasio em que [...] se toma evidente a relao escola-sociedade com as questes da prtica social (que precisam ser resolvidas) e os conhecimentos cientficos e tecnolgicos (que devem ser acionados) (V a l e , 1994, p. 220). Trata-se de colocar em xeque a forma e o contedo das respostas dadas prtica social, questionando essas respostas, apontando suas insuficincias e incompletudes; demonstrar que a realidade composta por diversos elementos interliga-

    7 Funes psicolgicas superiores.

    25

    ilos, que envolvem uma srie de procedimentos e aes que precisam

    ser discutidas.

    No momento da Problematizao, o professor precisa ter claro como orientar o desenvolvimento da aprendizagem, baseando-se

    naquilo que j tem como material da etapa anterior e seus objetivos

    de ensino. Alm disso, seu planejamento deve abordar as diversas di

    menses do tema e evidenciar a importncia daquele conhecimento,

    fazendo-o ter sentido para o aluno.c) Instrumentalizao: momento de oferecer condies para

    que o aluno adquira o conhecimento. Tendo sido evidenciado o ob

    jeto da ao educativa e feita a mobilizao dos alunos para o con

    tedo que est em questo, preciso instrumentalizar os educandos

    para equacionar os problemas levantados no momento anterior, pos

    sibilitando-lhes, de posse dos instrumentos culturais que lhes permi

    tam compreender o fenmeno em questo de forma mais complexa

    e sinttica, dar novas respostas aos problemas colocados. A apro

    priao dos instrumentos fsicos e psicolgicos permite a objetivao

    dos indivduos, tornando rgos da sua individualidade o que foi

    construdo socialmente ao longo da histria humana.

    A importncia dessa instrumentalizao est em possibilitar o

    acesso da classe trabalhadora ao nvel das relaes de elaborao do

    conhecimento e no somente sua produo.

    A produo do saber social, se d no interior das relaes so

    ciais. A elaborao do saber implica expressar de forma elaborada

    o saber que surge da prtica social. Essa expresso elaborada supe

    o domnio dos instrumentos de elaborao e sistematizao. Da

    a importncia da escola: se a escola no permite o acesso a esses

    instrumentos, os trabalhadores ficam bloqueados e impedidos de

    ascender ao nvel da elaborao do saber, embora continuem, pela

    sua atividade prtica real, a contribuir para a produo do saber

    [S a v ia n i, 2 0 0 3 , p. 7 7 ].

  • 26

    d) Catarse: momento culminante do processo educativo, quando o aluno apreende o fenmeno de forma mais complexa. H uma transformao e a aprendizagem efetiva acontece.

    preciso dizer que a catarse no se d em um ponto exclusivo, pois se trata da sntese, que vai acontecendo de maneira cada vez mais aprofundada. Na verdade, a apresentao de passos um recurso didtico que foi utilizado para fazer analogia s pedagogias tradicional e nova, sendo mais adequado pedagogia histrico-crtica a meno a momentos, visto a interdependncia existente entre as etapas. So, portanto, momentos que se articulam toda vez que se quer ensinar algo. A Problematizao exige a instrumentalizao e esta nada ser se no houver apropriao dos instrumentos.

    O momento da catarse parte do processo de homogeneizao, [...] que se efetiva enquanto superao da heterogeneidade da vida cotidiana [...] ( D u a r t e , 2007, p. 61). Segundo esse autor (2010, p. 152), [...] a catarse opera uma mudana momentnea na relao entre a conscincia individual e o mundo, fazendo com que o indivduo veja o mundo de uma maneira diferente daquela prpria ao pragmatismo e ao imediatismo da vida cotidiana. Essa mudana, sendo parte de um processo, caracterizada pela diferena qualitativa entre o antes e o depois da catarse. Sendo assim, o momento catrtico modifica a relao do indivduo com o conhecimento, saindo do sincretismo catico inicial para uma compreenso sinttica da realidade, relacionando-se intencional e conscientemente com o conhecimento. Para Saviani (2008b, p. 57), nesse momento ocorre [...] a efetiva incorporao dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos da transformao social.

    e) Ponto de chegada da prtica educativa (prtica social modificada): o educando, tendo adquirido e sintetizado o conhecimento, tem entendimento e senso crtico para buscar seus objetivos de maneira transformadora. Quando o aluno problematiza a prtica social e evolui da sncrese para a sntese, est no caminho da compreenso do fenmeno em sua totalidade. O primeiro e o quinto momento so a prtica social, mas di-

    27

    lerem no sentido de que ao final do processo essa prtica se modifica em razo da aprendizagem resultante da prtica educativa, produzindo alteraes na qualidade e no tipo de pensamento (do emprico ao terico).

    importante que a proposta metodolgica da pedagogia histrico-crtica no seja incorporada como um receiturio, desvencilhada de seus fundamentos tericos, pois seu embasamento visa garantir aos dominados aquilo que os dominantes dominam, de forma que contribua para a luta pela superao de sua condio de explorao (S a v ia n i , 2008b), e por isso no concebvel utilizar essa metodologia para a manuteno da ordem vigente.

    O livro Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes foi lanado em 1991, reunindo textos anteriormente publicados em revistas cientficas e, a partir da 8a edio, sendo acrescido de dois novos textos.

    Nesse livro, Saviani aborda, em forma de captulos, os seguintes temas: escola e saber objetivo na perspectiva histrico-crtica; sobre a natureza e especificidade da educao; competncia poltica e compromisso tcnico; a pedagogia histrico-crtica no quadro das tendncias crticas da educao brasileira; a pedagogia histrico-crtica e a educao escolar; a materialidade da ao pedaggica e os desafios da pedagogia histrico-crtica; contextualizao histrica e terica da pedagogia histrico-crtica.

    Vale destacar, com base nessa obra, que a natureza do trabalho educativo corresponde a um trabalho que incide sobre ideias, valores, princpios smbolos, conceitos etc. e que a especificidade do trabalho educativo [...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens (S a v ia n i , 2003, p. 13). A partir da compreenso da natureza e especificidade da educao, preciso olhar ento para o seu objeto, que [...] diz respeito, de um lado, identificao dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivduos da espcie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, descoberta das lormas mais adequadas para atingir esse objetivo (idem, ibidem).

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    Note-se que Saviani explicita a necessidade de identificao dos elementos culturais necessrios humanizao do indivduo. Existe a um duplo posicionamento do trabalho educativo, ou seja, dos educadores. O trabalho educativo posiciona-se em relao cultura humana historicamente produzida. Por sua vez, esse posicionamento requer outro, sobre o processo de formao dos indivduos, sobre o que seja a humanizao dos indivduos. A abordagem histrico-crtica est bastante clara nessas duas tomadas de posio. Afinal, uma concepo historicizadora e crtica da cultura humana no se posiciona sobre aquilo que considera as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade? Igualmente, uma concepo historicizadora e crtica da individualidade humana no estabelece como referncia maior possibilidades socialmente existentes de vida humana, para fazer a crtica s condies concretas da vida dos indivduos e estabelecer diretrizes para o processo educativo deles?

    Tambm o desenvolvimento histrico da humanidade se mostra como a referncia de Saviani (2003) quando este argumenta que uma educao escolar comprometida com a classe trabalhadora se concentraria naquilo que o ncleo clssico da escola, ou seja, a transmisso e a apropriao do conhecimento objetivo e universal. queles que identificam o conceito de conhecimento objetivo e universal com a neutralidade e o anti-historicismo positivistas, Saviani responde que se trata exatamente do contrrio, isto , somente uma concepo histrico-dialtica que trabalhe com as categorias de totalidade, contradio e historicidade pode superar a identificao positivista entre objetividade e neutralidade e superar tambm a concepo metafsica de universalidade substituindo-a pela noo de que a universalidade do conhecimento se constitui em produto histrico da totalidade da prtica social humana.

    Mesmo no adverso contexto da dcada de 1990 (neoliberalismo e ps-modernismo), muitos educadores continuaram a trabalhar na perspectiva da pedagogia histrico-crtica. Uma demonstrao disso foi a realizao, em 1994, na U nesp , campus de Marlia-SP do Simp

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    sio Dermeval Saviani e a Educao Brasileira, que reuniu mais de seiscentos participantes interessados em discutir com o prprio Saviani sua obra e atuao profissional. Desse evento, elaborou-se o livro Dermeval Saviani e a educao brasileira: o Simpsio de Marlia (S ilv a JNIOR, 1994). Os artigos dessa publicao auxiliam na compreenso do pensamento do autor e de sua fundamentao terica.

    Scheibe (1994, p. 168) aponta alguns autores que contribuem na fundamentao terica da pedagogia histrico-crtica: Marx, Gramsci e Snyders e seu posicionamento enftico e polmico [...] na busca de um pensamento crtico dialtico para a educao.

    Oliveira (1994, p. 107), afirmou nessa ocasio que a obra de Saviani

    [...] est sempre estreitamente vinculada ao seu ato de pensar os problemas da educao, sejam aqueles relativos poltica educacional, ao iderio pedaggico, s diversas prticas educativas etc. Sua obra, portanto, tem uma peculiaridade: caracteriza-se pelo ato de pensar os problemas da educao brasileira, tendo uma fundamentao terica que, de fato, opera como base e orientao desse pensar.

    Os alicerces tericos da pedagogia histrico-crtica, no entanto, no podem ser mais bem explicitados do que pelo prprio Saviani (2007, p. 420):

    A fundamentao terica da pedagogia histrico-crtica nos aspectos filosficos, econmicos e poltico-sociais prope-se explicitamente a seguir as trilhas abertas pelas agudas investigaes desenvolvidas por Marx sobre as condies histricas de produo da existncia humana que resultaram na forma da sociedade atual dominada pelo capital. , pois, no esprito de suas investigaes que essa proposta pedaggica se inspira. Frise-se: de inspirao que se trata e no de extrair dos clssicos do marxismo uma teoria pedaggica. Pois, como se sabe, nem Marx, nem Engels, Lnin ou Gramsci desenvolveram teoria pedaggica em sentido prprio. Assim, quando esses autores so citados, o que est em causa no a transposio de seus textos para a pedagogia e, nem mesmo, a aplicao de suas

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    anlises ao contexto pedaggico. Aquilo que est em causa a ela- borao de uma concepo pedaggica em consonncia com a con- cepo de mundo e de homem prpria do materialismo histrico.

    Na virada do sculo, j eram perceptveis os sinais de revigo- ramento do interesse pela abordagem marxista nos vrios campos da prtica social, inclusive a educao. Os educadores que no haviam deixado de trabalhar na linha da pedagogia histrico-crtica voltaram a ocupar um espao importante nos debates sobre os destinos da escola brasileira. As obras de Dermeval Saviani so um exemplo da vitalidade dessa corrente pedaggica. O livro Escola e democracia est em sua 41a edio, com mais de 200 mil exemplares vendidos. A obra Pedagogia histrico-crtica: primeiras aproximaes encontra-se na 10a edio, com mais de 35 mil exemplares vendidos. Histria das ideias pedaggicas no Brasil j se encontra na 3a edio e recebeu em 2008 o prmio Jabuti na categoria Educao, psicologia e psicanlise, sendo importante contribuio para compreender-se a trajetria das ideias pedaggicas no Brasil desde sua origem. Em dezembro de 2009, o grupo de pesquisa Estudos Marxistas em Educao promoveu na U n esp (campus de Araraquara-SP) um seminrio comemorativo dos trinta anos da pedagogia histrico-crtica, no qual se reuniram professores e alunos de graduao e ps-graduao de 69 instituies, 37 cidades, 11 estados brasileiros. Isso indica que os educadores continuam discutindo alternativas pedaggicas que respondam a uma educao crtica na formao dos indivduos.

    Uma das diferenas entre a pedagogia histrico-crtica e as pedagogias que se tornaram grandes modismos nas ltimas dcadas, como o construtivismo, a pedagogia das competncias, a pedagogia dos projetos e o multiculturalismo, reside no posicionamento perante a questo da verdade. Essas pedagogias retiram da escola a tarefa de transmisso do conhecimento objetivo, a tarefa de possibilitar aos alunos o acesso verdade. Na direo oposta, a pedagogia histrico-crtica defende que:

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    1) contra uma educao centrada na cultura presente no cotidiano imediato dos alunos que se constitui, na maioria dos casos, em resultado da alienante cultura de massas, deve-se lutar por uma educao que amplie os horizontes culturais desses alunos;

    2) contra uma educao voltada para a satisfao das necessidades imediatas e pragmticas impostas pelo cotidiano alienado dos alunos, deve-se lutar por uma educao que produza nesses alunos necessidades de nvel superior, necessidades que apontem para um efetivo desenvolvimento da individualidade como um todo;

    3) contra uma educao apoiada em concepes do conhecimento humano como algo particularizado, fragmentado, subjetivo, relativo e parcial que, no limite, negam a possibilidade de um conhecimento objetivo e eliminam de seu vocabulrio a palavra verdade, deve-se lutar por uma educao que transmita aqueles conhecimentos que, tendo sido produzidos por seres humanos concretos em momentos histricos especficos, alcanaram validade universal e, dessa forma, tornam-se mediadores indispensveis na compreenso da realidade social e natural o mais objetivamente que for possvel no estgio histrico no qual se encontra atualmente o gnero humano.

    Sem esse nvel de compreenso da realidade social impossvel o desenvolvimento de aes coletivas conscientemente dirigidas para a meta de superao da sociedade capitalista. nesse sentido que se interpretam as palavras de Dermeval Saviani quando este afirmou que a tarefa da pedagogia histrico-crtica em relao educao escolar implica:

    a) Identificao das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as

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    condies de sua produo e compreendendo as suas principais manifestaes bem como as tendncias atuais de transformao;b) Converso do saber objetivo em saber escolar de modo a torn-lo assimilvel pelos alunos no espao e tempo escolares; c) Provimento dos meios necessrios para que os alunos no apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produo bem como as tendncias de sua transformao [SAVIANI, 2003, p. 9].

    A prioridade que a pedagogia histrico-crtica atribui ao contedo do trabalho educativo, a defesa intransigente que essa pedagogia faz do papel da escola na socializao das formas mais desenvolvidas do saber objetivo significa, em termos de aes prticas, agudizar no campo da educao escolar as contradies da sociedade capitalista. Saviani afirma que:

    [...] continuar insistindo no discurso da fora prpria da educao como soluo das mazelas sociais ganha foros de ntida mistificao ideolgica. Ao contrrio disso, faz-se necessrio retomar o discurso crtico que se empenha em explicitar as relaes entre a educao e seus condicionantes sociais, evidenciando a determinao recproca entre a prtica social e a prtica educativa, entendida ela prpria como uma modalidade especfica da prtica social. E esta, sem dvida, a marca distintiva da pedagogia histrico-crtica. Mais do que isso, o momento atual oportuno para se retomarem os esforos de desenvolvimento e aprofundamento dessa teoria pedaggica. Reitero, assim, aos professores o apelo para que busquem testar em sua prtica as potencialidades da teoria, ao mesmo tempo em que renovo o meu empenho em prosseguir em minhas pesquisas, visando a trazer novos elementos que ampliem e reforcem a consistncia da proposta educativa traduzida na pedagogia histrico-crtica [idem, p. XIII].

    Vale destacar que a pedagogia histrico-crtica no uma proposta acabada. Os desafios tericos apontados por Saviani (2003) poderiam ser condensados em duas grandes direes: [...] uma implicaria desenvolver aspectos da teoria que ainda requerem maior elaborao; a outra direo seria sistematizar, explicitar aspectos que

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    a teoria j contm, at mesmo j elaborou, mas ainda no deu a eles tima forma sistematizada, articulada em termos de uma formulao orgnica, ampla, totalizante e coerente (idem, p. 105).

    Essa concepo vem firmando-se ao longo das ltimas dcadas, lendo como referncia fundamental o nome de Dermeval Saviani. No entanto, sua constituio uma tarefa coletiva. Segundo Duarte (1994, p. 130):

    A construo coletiva dessa pedagogia est em andamento tanto no que diz respeito elaborao terica, quanto no que diz respeito ao enfrentamento dos problemas postos pela prtica no campo educacional. H muito por ser feito nessas duas direes. Entendo que, ao estudarmos e analisarmos o pensamento de Dermeval Saviani, no podemos adotar a postura cmoda e acomodada de esperar encontrar nesse pensamento toda a teoria da pedagogia histrico-crtica. Trata- -se, isto sim, de buscar elementos a partir dos quais possamos avanar na elaborao de nosso prprio pensamento.

    Diversas obras vm contribuindo na direo do avano e fortalecimento da pedagogia histrico-crtica8. Entretanto, como afirma Gasparin (2002, p. 151): Os autores que tratam da pedagogia histrico-crtica se referem com muita propriedade a fundamentos, implicaes sociais mais amplas, e estabelecem conexo entre educao e sociedade. Mas nem sempre explicitam as aes didticas necessrias para que os professores possam aplicar essa proposta terico-metodolgica nos diversos campos de conhecimento.

    A dificuldade dos professores na transposio da pedagogia histrico-crtica para a prtica pedaggica, conforme apontada por Gasparin (idem, p. 152) e tambm notada por mim em minhas aulas e meus trabalhos com professores, relaciona-se a duas questes: [...]

    8 Por exemplo: Arce e Martins, 2007 e 2009; Bueno, 2009; Duarte, 1998, 1999 e 2007; Duarte e Delia Fonte, 2010; Eidt, 2009; Facci, 2004b; Francioli, Marsiglia e Duarte, 2009; Gasparin, 2002; Geraldo, 2009; Marsiglia, 2009; Marsiglia e Duarte, 2009a; Martins, 2001 e 2007a; Mazzeu, 2007a; Pasqualini, 2006 e 2010; Rossler, 2004; Saviani, 2003, 2007, 2008a, 2008b; Silva Jnior, 1994.

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    a) dificuldade em entender a teoria e seus fundamentos histrico - -materialistas, e b) como passar dessa teoria a um projeto de ensino- -aprendizagem especfico de um determinado contedo.

    Assim, este livro tambm intenciona, assim como o de Duarte (1998, p. 10), e de outros pesquisadores9, contribuir com o [...] esforo coletivo que vem sendo realizado por muitos educadores neste pas, de construo de uma concepo afirmativa sobre o ato de ensinar.

    9 Citarei trabalhos encontrados no banco de teses/dissertaes da C apes em busca realizada pela palavra-chave pedagogia histrico-crtica nos ltimos dez anos, cujo resumo mencionava que o trabalho realizou uma interveno fundamentada nesse referencial terico. No houve uma anlise de minha parte sobre a apropriao dos conceitos marxistas nas teses/dissertaes relacionadas: Alonso, 2004; Cararo, 2008; Dinardi, 2005; Genovez, 2006; Mattiazzo-Cardia, 2009; Ranche, 2006; Scalcon, 2003; Tonus, 2009; Zuquieri, 2007.

    Captulo 2

    Consideraes sobre

    desenvolvimento infantil

    1. O Desenvolvimento da criana: breves consideraes

    D ife re n te m e n te dos an im ais , q u e t m suas a tiv id ad es ligadas

    e str ita m e n te s n e ce ss id a d es b io l g ica s, [ ...] o h o m e m u m ser d e n a

    tureza so c ia l, q u e tu d o o q u e te m de h u m a n o n e le p ro v m d a su a v id a

    em so c ied a d e , n o se io d a cu ltu ra c r ia d a p e la h u m a n id a d e (L e o n tie v ,

    1978, p. 261, grifos d o a u to r).A aquisio de bens culturais no est dada da mesma forma

    a todos os homens. Da a importncia de um posicionamento em defesa da classe trabalhadora para que possa ter acesso s conquistas do desenvolvimento humano. Segundo Leontiev (idem, p. 274):

    A unidade da espcie humana parece ser praticamente inexistente no em virtude das diferenas de cor da pele, da forma dos olhos ou de quaisquer outros traos exteriores, mas sim das enormes diferenas nas condies e modo de vida, da riqueza da atividade material e mental, do nvel de desenvolvimento das formas e aptides intelectuais. Se um ser inteligente vindo de outro planeta visitasse a Terra e descrevesse as aptides fsicas, mentais e estticas, as qualidades morais e os traos do comportamento de homens pertencentes s classes e camadas sociais diferentes ou habitando regies e pases diferentes, dificilmente se admitiria tratar-se de representantes de uma mesma espcie. Mas esta desigualdade entre os homens no provm das suas diferenas biolgicas naturais. Ela o produto da desigualdade econmica, da desigualdade de classes e da diversidade consecutiva das suas relaes com as aquisies

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    que encarnam todas as aptides e faculdades da natureza humana, formadas no decurso de um processo scio-histrico.

    O trabalho humano produz a cultura material e intelectual (linguagem, instrumentos, cincia etc.). A apropriao dessa cultura acumulada historicamente pela humanidade essencial ao desenvolvimento e ocorre por meio da mediao de outros indivduos. Assim, a criana, em seu desenvolvimento, [...] no est de modo algum sozinha em face do mundo que a rodeia. As suas relaes com0 mundo tm sempre por intermedirio a relao do homem aos outros seres humanos (idem, pp. 271-272).

    Essa relao de que trata o autor leva discusso sobre a mediao que se realiza e o processo de aprendizagem decorrente dela. A criana, ao entrar na escola, j possui uma srie de aprendizagens que Vigotski denomina pr-histria da aprendizagem. No entanto, essas aprendizagens no garantem uma continuidade entre elas e as aprendizagens escolares (V ig o tsk ii, 2006). O educador, como um parceiro mais experiente, aquele que faz a mediao da criana com o mundo de forma intencional, buscando as mximas possibilidades de desenvolvimento do indivduo. O professor tem a experincia do uso social dos objetos e quando se relaciona com a criana, proporciona-lhe a vivncia de uma operao que organiza uma atividade interpsquica, externa ao sujeito, que ser internalizada por ele na medida em que tambm tiver a experincia individual, objetivando- -se naquele objeto da cultura que lhe foi apresentado.

    Essa mediao que expe o sujeito cultura deve ocorrer dentro daquilo que Vigotski chama de nvel de desenvolvimento iminente1. Para entend-lo, preciso conhecer tambm o conceito de

    1 Em sua tese de doutorado, a professora Zoia Ribeiro Prestes examina a atividade de traduo e afirma que [...] o tradutor um servidor da verdade do autor e suporte da alteridade deste. [...]. As palavras do autor iluminam o leitor e devem continuar a faz-lo quando vertidas em outra lngua. De outro modo, se adulteradas dois atos de violncia so cometidos simultaneamente: contra o autor e contra o leitor, pois as palavras do autor formam um campo enevoado

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    nvel de desenvolvimento efetivo, que estabelece aquilo que a criana j sabe e capaz de realizar sozinha. Segundo Vigotskii (idem, p. 111), o nvel de desenvolvimento efetivo refere-se ao [...] nvel de desenvolvimento das funes psicointelectuais da criana que se conseguiu como resultado de um especfico processo de desenvolvimento j realizado. J o nvel de desenvolvimento iminente apresenta aquilo que a criana ainda no consegue resolver de maneira autnoma, mas que com auxlio capaz de solucionar.

    justamente na zona de desenvolvimento iminente2 que o educador deve atuar, para torn-la desenvolvimento efetivo e avanar rumo a um maior grau de apropriao do conhecimento, fazendo com a criana e no para ou por ela. De acordo com Vigotski,

    [...] a caracterstica essencial da aprendizagem que engendra a rea de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criana um grupo de processos internos de desenvolvimento no mbito das inter-relaes com outros, que, na continuao, so absorvidos pelo curso interior do desenvolvimento e se convertem em aquisies internas da criana [idem, p. 115].

    que tomam curta a viso do leitor (Prestes, 2010, p. 11). Partindo dessa preocupao, Zoia toma para anlise as obras de Vigotski, procurando [...] demonstrar como certos equvocos e descuidos na traduo constituem adulteraes de conceitos fundamentais de sua teoria e distorcem seriamente suas ideias (idem, ibidem). A partir do exame dos conceitos vigotskianos, a autora ento justifica adequaes da traduo do russo para o portugus. Portanto, com base na anlise empreendida por essa autora, tendo em vista a concordncia com suas argumentaes e interpretaes, estou adotando a terminologia zona de desenvolvimento iminente em substituio aos termos zona de desenvolvimento prximo ou proximal", comumente utilizados nas tradues que conhecemos. Da mesma forma, utilizarei atividade-guia em lugar de atividade predominante ou atividade principal, que so termos tambm usuais das tradues para o portugus.

    2 Prestes (2010, p. 160) explica, com base nos textos de Vigotski, que zona de desenvolvimento iminente [...] revela o que a criana pode desenvolver, no significa que ir obrigatoriamente desenvolver. Isso coerente com o referencial da psicologia histrico-cultural, pois o desenvolvimento s se realizar se as condies objetivas forem dadas socialmente.

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    Para a psicologia histrico-cultural, o natural transformado pela cultura, em um processo de superao por incorporao. Assim, as funes psicolgicas superiores desenvolvem-se superando aquelas elementares. Elas so

    [...] produzidas na histria de cada indivduo particular, dependen

    tes, portanto, de suas condies de vida e de aprendizagens. As funes superiores, exclusivam ente humanas, no so produtos de

    uma estrutura psquica natural, esttica e a-histrica, mas sim cor

    respondentes a situaes de desenvolvimento que no so sempre as

    mesmas para um dado indivduo e muito menos para diferentes in

    divduos, especialm ente enquanto representantes de classes sociais

    desiguais [Martins & A rce, 2007, p. 54]-

    Segundo Vigotskii (2006, p. 114), Todas as funes psicoin- telectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criana: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funes interpsquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criana, ou seja, como funes intrapsquicas.

    Assim, pode-se concluir que o ponto de partida so as funes psquicas j efetivadas, que ampliadas constituiro o ponto de chegada do processo educativo.

    A escola, como instituio social, fundamental ao desenvolvimento psquico da criana por sua funo e sua representatividade na sociedade, pois

    [...] as aquisies do desenvolvimento histrico das aptides humanas no so simplesmente dadas aos homens nos fenmenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas so a apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptides, os rgos da sua individualidade, a criana, o ser humano, deve entrar em relao com os fenmenos do mundo circundante atravs de outros homens, isto , num processo de comunicao com eles. Assim, a criana aprende a atividade adequada. Pela sua funo este processo , portanto, um processo de educao [Leontiev, 1978, p. 272, grifos

    meus].

    39

    O papel da instituio escolar , ento, de suma importncia para que a criana se aproprie dos conhecimentos da humanidade, pois neles esto cristalizadas as qualidades humanas, para que saiba utilizar instrumentos e seja estimulada para se desenvolver progressivamente. De acordo com Leontiev (1978), a transmisso dos resultados do desenvolvimento scio-histrico da humanidade fundamental, visto que sem ela seria impossvel a continuidade do progresso histrico.

    As crianas manifestam o desejo de conhecer os fenmenos que as rodeiam, especialmente quando se deparam com algo desconhecido que as coloca em contradio com suas concepes anteriores sobre o tema (E lk o n in , 1960). Esse conhecimento dos fenmenos desenvolve cada vez mais o raciocnio lgico, superando a compreenso inicial sobre os signos (em crianas menores voltada apenas para as funes e utilizaes dos objetos), possibilitando a formao dos conceitos cientficos3, cujo desenvolvimento central na educao escolar.

    Os conceitos cientficos desenvolvem-se a partir da colaborao entre o adulto e a criana, e esse um processo no natural e sim dependente do desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, que como j foi afirmado anteriormente est sujeito s condies de vida e aprendizagem. Assim, o desenvolvimento dos conceitos cientficos est atrelado mediao do professor entre os conceitos espontneos e as formas superiores de conhecimento. Por meio do pensamento em conceitos assegurada ao aluno a ascenso a formas de anlise do real que, superando a mera descrio, permitem compreender os fenmenos em sua complexidade (E id t , 2009).

    1.1 Atividade-guia e estgios do desenvolvimento

    Tanto na educao infantil como no ensino fundamental, a questo do desenvolvimento importante como norteadora das aes pedaggicas, e por isso sero destacados alguns de seus aspectos. Entretanto, alerta Martins (2007b, p. 79) que ao colocar em foco o desenvolvimento

    3 Para maior detalhamento sobre conceitos cientficos, confira Vigotski, 2009.

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    [...] no estamos nos referindo a uma sucesso natural, linear e mecni- ca de experincias desarticuladas, mas sim, a uma formao que correia' ciona e complexifica atividades mediadas socialmente.

    Os estgios do desenvolvimento vo modificando-se pois, no seu decorrer, a criana verifica a necessidade de alterar suas relaes, uma vez que as que esto estabelecidas no correspondem mais s suas potencialidades. isso que gera as chamadas crises do desenvol- vimento ( T olstij, 1989), que fazem a criana passar de um estgio a outro, modificando sua atividade-guia4, desenvolvendo-se mais a cada novo estgio.

    A psicologia histrico-cultural, a partir da anlise da atividade- -guia do indivduo, oferece auxlio na compreenso dos perodos que constituem o desenvolvimento. No entanto, Martins e Arce (2007, p. 47) destacam que:

    O conceito de atividade principal no mbito do desenvolvimento fundamenta-se no conceito histrico-social de atividade, segundo o qual ela o modo/meio pelo qual o indivduo se relaciona com a realidade, tendo em vista produzir e reproduzir as condies necessrias sua sobrevivncia fsica e psquica. Atividade, ento, s pode ser explicada de fato como unidade de sujeito e objeto, de pessoa e contexto fsico-social. Ou seja, atividade elo, e como tal, se estrutura na base dos poios que medeia. Tais consideraes so importantes para que no se naturalize a atividade principal e, consequentemente, o curso dos estgios do desenvolvimento.

    A atividade-guia pode no ser aquela que ocupe a maior parte do tempo da criana. No necessariamente aquela que realizada

    4 Para Prestes, Ao adotar o termo atividade-guia considera-se