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RUBENS GOMES LACERDA OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI. Cuiabá, fevereiro de 2009

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RUBENS GOMES LACERDA

OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI.

Cuiabá, fevereiro de 2009

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RUBENS GOMES LACERDA

OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em História, do Instituto de

Ciências Humanas e Sociais da UFMT, para

obtenção do título de Mestre em História, sob a

orientação da Prof. Dra. Ludmila de Lima Brandão.

Cáceres, fevereiro de 2009

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RUBENS GOMES LACERDA

OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI.

Banca Examinadora

____________________________________________________

Prof. Dra. Ludmila de Lima Brandão – orientadora

Universidade Federal de Mato Grosso.

____________________________________________________

Profª. Dr. Oswaldo Machado Filho – membro interno

Universidade Federal de Mato Grosso.

____________________________________________________

Prof. Dr. Domingos Sávio da Cunha Garcia – membro externo

Universidade do Estado de Mato Grosso – Cáceres – MT.

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ABREVIATURAS

AHU Arquivo Histórico Ultramarino

IHGMT Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso

UFMT Universidade Federal de Mato Grosso

UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso

APMC Arquivo Público Municipal de Cáceres

SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional

IHMT Instituto Histórico de Mato Grosso

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A Patrícia, Joana e Ludmila, exemplos respectivamente de: alegria, perseverança e ousadia.

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AGRADECIMENTO

Agradeço todos e todas que contribuíram ou atrapalharam durante a elaboração desta

dissertação.

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A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda e como

recorda para contá-la.

(Gabriel García Marquez)

Escrevo o idioleto manoelês arcaico (idioleto é o dialeto que os idiotas

usam para falar com as paredes e com as moscas) Preciso de atrapalhar as

significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. (Para

limpar das palavras alguma solenidade - uso bosta.) Sou muito higiênico. E

pois. O que ponho de central nos escritos é a vigilância para não cair na

tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para

parvo. Disso forneço certidão.

(Manuel de Barros)

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SUMÁRIO

RESUMO...................................................................................................................................1

SUGESTÕES DE LEITURA...................................................................................................2

I FLUXO – INTRODUÇÃO OUTEXTO?.............................................................................4

II FLUXO – A HISTÓRIA FOI SALVA PELO TURISMO?............................................22

O marco que ainda demarca.....................................................................................................29

III FLUXO – POR UMA EPISTEMOLOGIA DA DIFERENÇA: O TRAÇO NARRATIVO NA ESCRITURA HISTORIOGRÁFICA...................................................34

IV FLUXO – OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA DAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA..............................................................................................................................54

A espetacularização de um acontecimento...............................................................................73

Fim ou início desta história.....................................................................................................87

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................91

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS...............................................94

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LISTA DE TABELAS

TABELA I – Ordem de desfile de associações.........................................................................78

TABELA II – Ordem de desfile dos colégios.....................................................................79

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LISTA DE IMAGENS

IMAGEM I – Imagem existente na parte interna da loja de eletrodomésticos: City Lar.........30

IMAGEM II – Pintura feita no muro da Câmara Municipal de Cáceres..................................30

IMAGEM III – Distintivo do bicentenário...............................................................................32

IMAGEM IV – Jornal Correio Cacerense 10/10/1978.............................................................32

IMAGEM V – Mapa do desfile................................................................................................81

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RESUMO A presente dissertação tem os objetivos de: pesquisar, compreender e problematizar quando e como, a partir de determinadas práticas sociais, algumas práticas discursivas ou não discursivas, ganharam respaldo dentro de determinadas relações de poder e saber, que as possibilitaram engendrar a invenção de uma determinada memória para Cáceres; tentar perceber a emergência de um objeto de saber e um espaço de poder; estudar como se formou um arquivo de imagens e enunciados, um estoque de “verdades”, uma determinada visibilidade e dizisibilidade desta memória, que pretendeu e pretende direcionar comportamentos e atitudes, dirigir, inclusive, o olhar e a fala da imprensa/mídia; como e, a partir de quais ressonâncias discursivas, a própria idéia de “identidade” impõe uma dada forma de abordagem imagética e discursiva para falar e mostrar a “verdadeira” “história” da cidade. Palavras-chave: História; Memória; Identidade; Narrativa.

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Sugestões de leituras.

Sem querermos ter a pretensão de definir a melhor, ou, as possíveis, maneiras de se

ler esta dissertação, mas, sobretudo, interessados em fazer alguns comentários, mesmo que en

passant, sobre a forma/conteúdo de alguns fluxos que a compõem, é que recomendamos duas

possibilidades de lê-la.

A primeira e mais convencional, seria a partir da leitura diacrônica de seus

respectivos fluxos. Entretanto, para quem se interessa mais pelas discussões teóricas e,

conseqüentemente, busca saber logo de início qual é o lugar social1 da fala de quem constrói

este texto, talvez seja mais interessante começar pela leitura do III fluxo – Por uma

epistemologia da diferença: o traço narrativo na escritura historiográfica –, no qual as

discussões teóricas são tratadas de maneira mais especifica e constante.

Resumidamente, podemos observar que este III fluxo tem o principal objetivo de

instigar e constituir um espaço de debate relacionado à “volta”, ou mais propriamente, à

percepção da existência, e/ou, principalmente, da revalorização do traço narrativo na escritura

historiográfica. Suscitar, também, a discussão sobre a presença da subjetividade do historiador

durante a tessitura do texto de história. Para tanto, buscamos construir nossa argumentação a

partir das misturas2 e contaminações teóricas – das idéias-práticas-de-vida – de autores como:

Paul Veyne, Hayden White, David Harlan, Michel Foucault, Nietzsche, Lawrence Stone,

Antônio Paulo Benatti, Gilles Deleuze, Barthes, Guattari, Manoel de Barros... Enfim, Idéias-

práticas-de-vida que sempre estão perpassando e, ao mesmo tempo, permeadas por uma

1 CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. Na primeira parte deste texto, relacionada à observação da importância do lugar social da fala, Certeau procura demonstrar a correlação existente entre o discurso científico (com regras próprias pertinentes a cada área do conhecimento) e a sociedade, pois para o autor: “Em história, é abstrata a doutrina que recalca a sua relação com a sociedade. El a nega aquilo em função de que se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que a situa de fato sem que ela o diga ou saiba”. 2 A idéia de mistura aqui adotada, busca caracterizar a importância do diálogo e da superação das fronteiras disciplinares, para a produção de um conhecimento transdisciplinar que não busque separar de forma fixa o mundo da natureza e o mundo da cultura; que não faça, assim como tentou fazer o pensamento moderno, uma escansão bem definida entre o que seria a matéria e o objeto e o que seria simbólico e subjetivo, pois a idéia de mistura nos possibilita perceber que o conhecimento não deve ter a preocupação da pureza, da razão pura tão apregoada por Kant, mas antes, a percepção das positividades surgidas durante as contaminações, das hibridações, diria Néstor García Canclini; enfim, de todo o amálgama cultural, político, natural, concreto, simbólico..., que, em razão de sua mistura, constituem e, ao mesmo tempo, são constituídos pelo acontecer humano a partir de sua interação com a natureza. Para uma melhor apreciação desta idéia, ler: LATOUR, Bruno. Nos nunca fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, p.77; e : CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Hibridas. - 4. Ed. São Paulo: Edusp, 2008, desta ultima obra ler, sobretudo, o texto da introdução da edição de 2001.

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estética da existência/escrita que incita a franca e aberta discussão sobre a economia de um

texto, sobre a arquitetura de um argumento, sobre as práticas de saber/poder existentes na

elaboração/invenção do conhecimento, sobre a lógica dos enunciados. Toda esta discussão, é

interessante ressaltar, está afetada pelas ressonâncias3 dos debates existentes em outras áreas

do conhecimento, pois, de forma mais ampla, podemos perceber que esta preocupação surgida

nas últimas décadas, por parte de algumas tendências historiográficas, preocupadas em refletir

sobre (e avaliar) a importância do estudo de questões concernentes ao traço narrativo, ou seja,

relacionadas ao estilo; à relação forma/conteúdo do texto de história; à subjetividade do autor

na urdidura do texto; à ficção, presentes ou não no discurso do historiador..., estão, em último

caso, afetadas/misturadas pelos interesses de analisar e destacar os interstícios e possíveis

interfaces existentes entre o discurso da historiografia, da ciência do século XX, da literatura e

das artes de modo geral.

Ainda dentro desta segunda maneira de se ler o texto, após a leitura deste III fluxo,

pode-se então, voltar à seqüência diacrônica: ler o I fluxo – Introdução ou texto? – em que já

são anunciadas e, ao mesmo tempo, discutidas algumas questões presentes nos fluxos

subseqüentes, como também, enumerados e explicados os postulados da forma/conteúdo

adotada na escritura da dissertação.

3 Gilles Deleuze recorre ao termo ressonância, emprestado da teoria musical, para destacar que a arte, a filosofia, a ciência, mesmo participando de linhas melódicas distintas, estabelecem relações de troca. DELEUZE, Gilles. Conversações – 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

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I FLUXO Introdução ou texto? Memória Histórica de Cáceres

Cáceres foi fundada em seis de Outubro de 1778, pelo governador de Mato Grosso na época, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, recebendo o nome de Vila Maria do Paraguai, em homenagem à rainha reinante de Portugal. Conta-se que a fundação do povoado à margem esquerda do rio Paraguai, ocorreu por quatro motivos principais; a defesa e o incremento das fronteiras do domínio de Portugal a Oeste; a abertura de uma via de navegação com a cidade de São Paulo; a facilidade tanto das comunicações quanto das relações comerciais entre as cidades de Vila Bela da Santíssima Trindade e Cuiabá e a fertilidade do solo da região; prenúncio de riquezas. Passado mais de um século de sua fundação, poucas mudanças houveram. O grande destaque local era a fazenda Jacobina; que em 1827, de acordo com o testemunho de Hércules Florence, citado por Natalino Ferreira Mendes na obra Historia de Cáceres, “era a mais rica fazenda da província, tanto em área como em produção”. Descrito pelo Professor Natalino Ferreira Mendes em Memória cacerense, “havia cerca 60 mil reses povoando os campos da Jacobina, situada junto a serra do mesmo nome à entrada de Vila Maria do Paraguai. Consta ainda, que a Fazenda Jacobina possuía 200 escravos e um grande engenho movido por força hidráulica”. Historiadores reputam à Jacobina o início de tudo na região, há registros de que nesta Fazenda, Sabino Vieira, chefe da malograda revolução baiana denominada “sabinada”, foi se refugiar até sua morte em 1846. Maria Josefa de Jesus, filha do fundador da fazenda Jacobina, casou-se com João Carlos Pereira Leite, que veio a fundar a fazenda Descalvados, que também se tornou uma das maiores e mais antigas fazendas da província. Por sua vez um genro de João Carlos Pereira Leite, Joaquim José Gomes da Silva, atravessou o pantanal matogrossense em direção ao sul, hoje Estado de Mato Grosso do Sul para fundar no “firme”, a Nhecolândia. O povoado de Vila Maria do Paraguai, na época, não se passava de uma aldeia centrada em torno da igrejinha São Luiz de França. “Segundo o historiador, professor Natalino Ferreira Mendes, em meados do século XIX, a vila experimentou algum progresso em razão do ciclo da indústria extrativista da poaia (ipecacuanha) – o ouro negro da floresta”, e da borracha, que juntamente com a bovinocultura eram a economia da região; impulsionada pela abertura da navegação fluvial do rio Paraguai, estabelecendo a ligação com a cidade de Corumbá. Em 1860, Vila Maria do Paraguai possuía uma Câmara Municipal, mas somente em 23 de Junho de 1874 foi elevada a categoria de cidade, recebendo o nome de São Luiz de Cáceres. O nome foi uma homenagem ao santo padroeiro e o fundador da localidade. No ano de 1938, por força de um Decreto Lei Estadual, o município passou a ter o nome que trás até a atualidade: Cáceres. 4

Este é apenas um enunciado/sintetizador produtor de um efeito de verdade vinculado

a uma prática discursiva5 – reiterada em muitos momentos, por algumas práticas não

discursivas –, que constantemente procuram estabelecer os contornos mais importantes da

história de Cáceres, ou de forma mais geral, pretendem constituir os elementos e traços

4 Texto presente no cardápio do Knôa – restaurante situado às margens da baia do Malheiros no rio Paraguai – ano de 2007. 5 Tanto o conceito de prática discursiva quanto de prática não discursiva está sendo utilizado neste texto, dentro do referencial teórico foucaultiano existente em obras como: FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. FOUCAULT. Michel. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.

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históricos correlacionados à construção de todo um arcabouço de memórias direcionado e

preocupado, em definir uma determinada identidade cacerense.

Contudo, como historiadores envolvidos em uma atividade profissional, que em nosso

tempo – assinalou De Certeau6 – possui três aspectos importantes: o lugar social da fala, uma

prática científica e uma escritura, ser-nos-á necessário problematizar7 estas referidas práticas

discursivas e não discursivas que, auspiciam a condição de discursos e práticas sociais

autorizadas, a designarem o que deve ser ou não considerado pertinente para a história e a

identidade cacerense, ou ainda, de forma mais radical, pensarmos sobre a própria lógica de

um sujeito de conhecimento, com fala competente e autorizada sobre o passado – o

historiador. Assim, buscando também nos posicionar a respeito de nossa própria concepção

do discurso historiográfico, pois como bem observou o escritor Paul Valéry, ainda em 1932,

falando para alunos de um liceu francês sobre um dos seus temas prediletos:

Todas essas convenções são inevitáveis. Minha única crítica é a negligência que não as torna explicáveis, conscientes, sensíveis ao espírito. Lamento que não se tenha feito com a história o que as ciências exatas fizeram consigo mesmas, quando revisaram seus fundamentos, pesquisaram com maior acuidade seus axiomas, enumeraram seus postulados.8

É claro que essa observação de Paul Valéry não é original nem inovadora, pois

podemos encontrar questionamentos tão incisivos e diretos quanto estes, sobre a elaboração

do conhecimento histórico, desde o século XIX, em autores como Nietzsche ou Burckhardt9.

Também não podemos mais afirmar que atualmente a historiografia permaneça totalmente

indiferente às discussões relacionadas à epistemologia do conhecimento. A própria concepção

de ciência10 do século XX está permeada por outros parâmetros bem diferentes daqueles

6 CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 7 A expressão problematizar, neste caso, esta relacionada à acepção utilizada a partir das reflexões presentes em: VEBVRE, Lucien. Viver a história. In: Combates pela história. Vol. I., Lisboa: Editora Presença, 1977, p. 43. 8 Valéry, Paul. Discurso sobre a história. In, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 113. 9 Conforme afirma: GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahi. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p.12. 10Concepção que não está preocupada em elaborar apenas leis universalizantes e bem definidas, porque, construídas por axiomas bem mais rígidos, pois esta concepção de ciência do século XX compreende, também, a produção do conhecimento a partir de uma postura que trabalha com as probabilidades, com as possibilidades, com conceitos mais relativos, mesmo em áreas tidas como mais exatas. Neste caso podemos destacar a física quântica de Einstein, com sua teoria geral da relatividade, em que tempo e espaço são considerados relativos, ou ainda, de uma nova matemática aludida pelo princípio da incerteza de Heisenberg. Para melhor compreensão sobre esta temática ler: EINSTEIN, Albert. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. REISEMBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.98.

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formulados e defendidos no século XIX11. No entanto, a observação de Valéry foi interessante

para assinalar certa (in)-consonância existente entre a maneira de se produzir – e,

fundamentalmente, perceber o produto desse conhecimento histórico –, e os principais

desdobramentos teóricos e metodológicos relacionados à elaboração do conhecimento

produzido na primeira metade do século XX, como também, e\ou, principalmente, de nos

ajudar a desnaturalizar o efeito de verdade engendrado pela prática discursiva presente no

texto do enunciado/sintetizador supracitado logo no início deste texto/introdução.

Antes de iniciarmos propriamente a desconstrução deste enunciado/sintetizador

que, aliás, será feita não de forma pontual, mas, sim, no transcorrer de toda a dissertação, é

importante assinalar – para evitarmos os mesmos erros denunciados por Valéry – a existência

de três principais dificuldades encontradas no momento em que se fez necessário: elaborar

discursivamente, na forma de dissertação, um texto que tivesse a intenção e, sobretudo, a

pertinência de tratar da melhor maneira possível a temática que suscitou a elaboração deste

trabalho.

A primeira, diz respeito a uma problemática bem própria da historiografia

relacionada ao estudo de temas e períodos mais contemporâneos, em que a abundância de

fontes torna-se um problema constante, pois sempre resta certa dúvida em quais fontes ou

episódios da história vivida, se buscará evidenciar no texto escrito. Pretendemos, no entanto,

dirimir esta indecisão, buscando logo de início, argumentar e explicar que, todas as fontes

utilizadas – sejam elas imagéticas, discursivas, iconográficas, orais... (sem hierarquias), ou os

episódios e idéias que estejam correlacionados às mesmas –, estão, nesta dissertação,

relacionadas a uma específica economia do texto12; a uma determinada preocupação de

estabelecer alguns efeitos discursivos; a toda uma estratégia enunciativa, com o objetivo de

instaurar uma argumentação própria, diretamente correlacionada à construção deste objeto de

estudo, pois como tão bem pensou Paul Veyne: Como o romance, a história seleciona,

simplifica, organiza, faz com que um século caiba em uma página, e essa síntese da narrativa

é tão espontânea quanto a nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que

vivemos13.

11 A ciência deste século XIX é muito pautada pelos enunciados produzidos a partir de uma linguagem axiomática. A física newtoniana com seus axiomas absolutos, relacionados à definição de tempo e espaço, ou o método cartesiano de Descartes, têm muita influência sobre as formas de se perceber e postular a elaboração do conhecimento durante o século XIX. 12 A expressão “economia do texto” está sendo empregada no sentido de plano argumentativo, estratégia discursiva e construção textual. 13 VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Brasília. Ed. da UNB, 1982, p.18.

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Podemos ainda acrescentar que tanto as fontes como as idéias dos mais diferentes

autores, agenciadas14 – para usarmos uma expressão deleuziana – neste texto, estão

funcionando ao mesmo tempo, sem distinção ou primazia de uma sobre a outra, como a

matéria prima e os instrumentos operacionais necessários para elaboração do produto final,

porque, assim como Antonio Vasconcelos, também não concordamos com um determinado

viés historiográfico que postula a seguinte máxima:

(...) historiadores pesquisam as “fontes primárias” (a história vivida de fato), informam-se com as “fontes secundárias” (a historiografia), e inspiram-se de forma mais ou menos consciente nas teorias produzidas pelos “outros” das Ciências Humanas. Dito de outro modo, os historiadores trabalham materialmente a história, tal como mineiros enfurnados em minas preciosas e sem jamais se expor à luz do sol, enquanto aos “outros” cabe pensar a história, trazendo as luzes para os materiais valiosos levantados pelos primeiros. 15

Não basta compreender a prática do artífice – historiador – deste produto que é o

texto de história, de uma maneira tão esquemática assim, na qual o historiador,

necessariamente, tivesse que ter para sua elaboração, uma matéria prima – fontes –

relacionada à história vivida da qual ele escolheu falar sobre, e as ferramentas teóricas e

metodológicas necessárias para uma determinada tecnologia de produção. Afinal, apesar de

considerarmos interessante a idéia de perceber o referencial teórico e o aporte metodológico

como ferramentas, que devem ser utilizadas de acordo com as necessidades exigidas durante a

elaboração do texto de história, também - em muitas circunstâncias -, compreendemos o

documento, se constituindo como ferramenta, ou ainda, como uma janela aberta para o

pensamento e para reflexão. Definitivamente, não o percebemos simplesmente como

referencial da história vivida, mas antes, como também sendo parte desta história vivida.

A segunda dificuldade é de caráter metodológico que, no entanto, está também

correlacionada a questão teórica, ou seja, a uma epistemologia da diferença, pensada e

elaborada por Foucault em sua arqueologia do saber, onde a metodologia não é definida a

priori, antes do exercício prático da pesquisa, em que já se sai de início com um alvo ou

hipótese fixa, e só se vai ao arquivo, para encontrar documentos que confirmem as hipóteses

pré-estabelecidas. Nesta epistemologia da diferença, a metodologia é estabelecida no próprio

14 Agenciar a idéia de um autor significa dizer ou praticar com esta idéia outra administração teórica, pois não necessariamente, esta idéia será utilizada da mesma forma que seu próprio autor a usa, significa reconhecer que em alguns momentos esta idéia pode até funcionar dentro de outra lógica, inclusive, em circunstâncias e a partir de interesses bem diferentes dos preconizados pelo seu autor, é, no limite, assumir a possibilidade de construir a partir desta idéia, ou afetado por esta idéia, outra idéia, mesmo que nas costas do autor. 15 AZEVEDO, Clelia Marinho de. “prefácio”. In: VASCONCELOS. José Antonio. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós-modernismo na Historiografia americana. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2005, p. 13.

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exercício prático da pesquisa, não com o interesse de estabelecer um neo-positivismo, no qual

os documentos controlam e oprimem a atividade do pesquisador, mas, sim, que é justamente

no contato e familiarização com a linguagem e os efeitos de verdade produzidos pela

documentação que, vão surgir os deslocamentos referenciais, teóricos e metodológicos da

pesquisa, ou como bem observou Foucault:

(...) por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou sua posição a cerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. 16

O método de construção utilizado na engenharia deste artefato literário17 – Os

artesãos da memória nas tramas e retramas da história: Identidade e memória em

Cáceres no limiar do século XX – se coaduna principalmente da mistura e da contaminação,

surgida entre uma genealogia18 nietzscheana e uma arqueologia foucaultina19, além disto, a

economia do texto também busca operacionalizar na sua escritura, uma forma/conteúdo

inspirada na idéia deleuzo-guattariana20do pensamento rizomático.

16 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1997, p.7. 17 A este respeito ler: WHITE, Hayden. A história como artefato literário. In: Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trad. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994. Ou ainda do mesmo autor: WHITE, Hayden, “Teoria Literária e escrita da história”. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n.3, p. 25. 18 O método genealógico de Nietzsche está preocupado em dessacralizar o discurso das origens primeiras, com toda sua pompa e solenidade, assim, o autor faz um estudo da “genealogia da moral” bem diferente de uma tradição filosófica ocidental. Para Nietzsche, a moral deve ser historicizada e desnaturalizada, não mais deve ser vista como algo supra-humano ou transcendental, mas, sim, como algo construído pelo próprio homem, para o próprio homem, dentro de uma relação de poder e saber. NIETZSCHE Friedrich. “Para a genealogia da moral. In: Os pensadores. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 19 Talvez seja importante acrescentarmos que, além da “Arqueologia do saber,” e, também, partido desta contaminação provocada pelo pensamento nietzcheano, esta dissertação pretende operacionalizar na sua metodologia, todo o referencial teórico de uma “Microfísica do poder,” para assim, estudar as relações de poder e saber, existentes na fala e nos discursos relacionados a uma pratica discursiva e não discursiva do enunciado/sintetizador que inicia este fluxo: FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: “FOUCAULT. M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979. 20 DELEUZE, Gilles, 1925-1995 Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1; tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. – São Paulo: Ed. 34, 1995. Quando o filósofo francês Gilles Deleuze tomou emprestado da botânica o termo rizoma e o aplicou no estudo da filosofia, ele enumerou pelo menos seis princípios que o caracterizam. Os Princípios de Conexão e Heterogeneidade (1 e 2) explicitam que qualquer ponto de um rizoma pode e deve conectar-se a qualquer outro ponto ou conjunto heterogêneo. Não há uma ordem fixa. O Princípio de Multiplicidade (3) diz que é sempre uma multiplicidade que fala e age, mudando de natureza ao se conectar com outra, ou seja, qualquer parte, quando analisado, pode se revelar como sendo composto pelo rizoma, porque é da mesma natureza. O Princípio de Ruptura A-significante (4) refere-se ao fato de que o rizoma pode ser rompido, quebrado ou retomado desde qualquer uma de suas linhas. Os Princípios de Cartografia e de Decalcomania (5 e 6) regem que um rizoma funciona por proximidade, sendo estranho a um modelo que remete à idéia de reprodução ao infinito, pois possui diversos centros que são permanentemente móveis.

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A terceira dificuldade, talvez de ordem mais pessoal do que geral – no sentido de uma

invariável na elaboração de textos –, foi encontrada na demora em percebermos a importância

da escrita para o pensamento. Parece que no ato da escrita, o pensamento se constitui

efetivamente, é como se ela fosse o próprio pensamento em ação21. Assim, tomar nota, ter a

preocupação de anotar algo para não perder a oportunidade de “revelar” sua emergência, seria

muito mais um ato de início do que de fim. É como se escrever, ou mesmo simplesmente

anotar, fosse, não aquilo que vai garantir a emergência de algo já existente em latência, mas,

sobretudo, aquilo que vai possibilitar o início da existência de algo, não apenas pelo caráter de

materializá-lo em texto, mas, principalmente, pelo momento de construção/invenção

proporcionado pelo ato de escrever. Talvez seja isso que interessava Deleuze e Guattari

quando afirmaram: Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar,

cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir22; o pensamento, não está

necessariamente em latência à espera da melhor forma de escrita, para externá-lo da maneira

mais apropriada, pois a escrita também faz parte do próprio exercício de pensamento; ela não

simplesmente reflete a realidade, porque esta escrita também é, e constitui a realidade.

Estas principais dificuldades e, principalmente, a política23 teórica e ao mesmo tempo

textual, em relação às quais consideramos importante nos posicionar, nos levaram a pensar em

uma forma/conteúdo de escrita não totalmente estriada, mas o máximo possível lisa24 e, por

21 BRANDÃO, L. L. . A casa subjetiva: matérias afetos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002. 22 Idem, p.13. 23 Política pensada não necessariamente a partir da idéia de filiações, ou dentro de um espírito correligionário da defesa empedernida de algumas premissas, mas antes, política como uma orientação teórica, como uma tática ou, ainda, como um posicionamento itinerante e cosmopolita. 24 A diferença existente entre um texto liso e um texto estriado reside no fato de que este último, ao contrário do primeiro, constitui-se dentro de uma prática enunciativa baseada na metáfora da fundamentação. Seus argumentos são pautados e agarrados às estrias referenciais, para assim, conseguirem manter seu caule argumentativo de pé, a partir da sustentação teórica de suas raízes conceituais. Não é por acaso, para ficarmos apenas com dois exemplos, que os textos marxistas, ou da segunda fase dos annales, inspirados no pensamento braudeliano, dão tanto valor ao estudo das estruturas. Estas, assim como as raízes do texto arvore, estão, no caso marxista, na base da pirâmide explicativa do modo de produção, no caso dos annales, na parte mais estável e fixa da história, bem diferente das conjunturas e dos fatos de curta duração, muito perigosos para o historiador fundamentar a produção de seu texto. Já o texto liso, não se preocupa em ser tecido com retalhos factuais, com farrapos de memórias; tem sua tessitura alinhavada, em alguns momentos, até por agulhas teóricas diferentes; este tipo de texto reconhece a importância da intertextualidade observada por Barthes, não para se buscar mapear e esquadrinhar os constructos intertextuais e sua locução referencial, mas, sobretudo, para poder denunciar as próprias relações de poder/saber existentes na e, pela linguagem, não custa lembrar que foi o próprio Barthes que sentenciou: a língua caracteriza-se muito mais pelo o que ela nos obriga a falar, do que pelo o que ela nos permite dizer; este tipo de texto sabe que as lacunas, ou os buracos existentes no seu rendilhado, também ajudam a constituir as formas das figuras desenhadas pela prática de coser seus argumentos; este tipo de texto, para usarmos outra metáfora, aproveita em sua culinária, até os restos de teorias que são cozidas em banho-maria, dentro de um caldearão metodológico preocupado em aproveitá-las para o jantar solene da história, que tem à mesa, figuras ilustres: dona estruturas, senhor modos de produção, senhorita dialética, mas também a indesejada, porém, sempre presente, narrativa, com seu discurso repleto de metáforas, interpretações e aporias, enfim de um pensamento desestabilizador, porque nem sempre esta preocupada em se agarrar às estrias convenciona, mas principalmente, em afetar, em tocar e contaminar. BARTHES, Roland. Aula – 7ª ed. São Paulo: Editora Cultrix,

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isso mesmo, com alto grau de risco. Assim, pode-se afirmar que este texto na sua organização,

não tem a preocupação de se constituir com escansões bem definidas, preocupadas em discutir

e separar a matéria narrada em capítulos, onde a metáfora da verticalização/fundamentação25,

normalmente trabalha com a estratégia de construir a sensação iluminista/evolucionista do

argumento esquemático, ou para usarmos uma observação deleuzo-guattariana – do

pensamento árvore –, em que a raiz, constitui-se como a fundamentação teórica que dará

sustentação ao caule argumentativo do texto, e possibilitará o desabrochamento da bela flor da

razão, afinal:

Para os teóricos da modernidade o visível não passa de aparência. Subjacente a tudo o que vemos, existe um nível mais profundo, essencial, e é somente a partir dele que podemos verdadeiramente entender nossos objetos de estudo. Para o marxismo, por exemplo, as instituições, a superestrutura, que constitui o campo do visível, se explica somente a partir da estrutura – a essência –, uma instância invisível, mas primordial. Do mesmo modo, para a psicanálise, o comportamento humano, que constitui o campo do visível, se explica por mecanismos psicológicos complexos, inconscientes, e, portanto, invisíveis. Tais metáforas de verticalidade, porém, esfacelam-se frente à crítica empreendida pelos teóricos do pós-modernismo. 26

É, justamente, pela desconfiança que adquirimos sobre a plausibilidade deste

pensamento moderno, em tempos de pós-modernidade27, que optamos por não adotar uma

escrita com a mesma esquemática das introduções elaboradas em consonância com este

pensamento moderno. Por isto, este I fluxo, não funciona apenas como arauto do discurso

principal, bem ao estilo das clássicas introduções, possuidoras da peculiar característica de

anunciar resumidamente os temas e discussões dos capítulos subseqüentes, pois este fluxo – a

partir de uma metalinguagem – já é inicio, meio e fim da discussão. Funciona dentro de uma

1996; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. – 2. ed – Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. VEYNE, Paul. Como se escreve a historia e Foucault revoluciona a historia. 4 ed. Trad. De Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp, Brasília: UNB, 1998. 25 VASCONCELOS. José Antônio. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós-modernismo na Historiografia americana 26 Idem, p.17. 27 Talvez, nestes tempos de pós-modernidade, a metáfora mais interessante para ser utilizada a respeito da produção e recepção do conhecimento, seja a da antena, pois em meio a este turbilhão de informações, de pessoas e mercadorias em constante circulação, com uma velocidade cada vez maior, o importante é estar atento – “antenado” - com as contínuas mudanças, provocadas e viabilizadas por toda esta circulação. O conhecimento não pode estar apenas enraizado, porque deve também aproveitar toda a vantagem oportunizada pelas idéias que circulam: o importante é ficar ligado, interligado, inteirado, conectado..., não afixado, enraizado, empoçado. Assim, estar bem fundamentado, lastreado, ou ainda embasado, pode não ser mais tão interessante, para um tempo em que as conexões do conhecimento são constituídas muito mais por contaminação e afetamento, do que pelas firmes e sólidas premissas do torrão natal/epistemológico. Paradoxalmente em um mundo de especialistas – com doutores especializados na asa esquerda da borboleta –, se vêem cada vez mais físicos comentando e debatendo a respeito da estilística literária utilizada no constructo de suas teorias, literatos debatendo sobre cosmogonia, historiadores analisando questões concernentes aos efeitos de verdade presentes no discurso científico, filósofos emprestando conceitos e terminologias da botânica. Curiosamente, nesta sociedade de especialistas, estes discursos reverberam com grande intensidade.

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determina economia textual que depende, significativamente, de um texto/texto e não de uma

texto/introdução.

Desta forma, esta dissertação, mesmo que nem sempre consiga fazer o que anuncia,

busca funcionar discursivamente como texto grama – rizomático – onde todas as partes se

pretendem autônomas e ao mesmo tempo ligadas ao todo, bem ao estilo do que explicou

Charles Baudelaire, no preâmbulo de um dos clássicos de sua literatura – Le spleen de Paris –

, que Zigmund Baumam cita e ao mesmo tempo lamenta-se por não ter pensado antes:

Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno trabalho do qual se poderia dizer, sem injustiça, que não é cabeça nem rabo, já que tudo nele é, ao contrário, uma cabeça e um rabo, alternada e reciprocamente. Suplico-lhe que leve em consideração a conveniência admirável que tal combinação oferece a todos nós – a você, a mim e ao leitor. Podemos abreviar – eu, meus devaneios; você, o texto; o leitor, sua leitura. Pois eu não atrelo interminavelmente a fadigada vontade de qualquer um deles a uma trama supérflua. Retire um anel, e as tortuosas partes desta fantasia voltarão a se unir sem dificuldade. Corte um pedacinho e vai descobrir que cada um deles tem vida própria. Na expectativa de que algumas destas fatias possam agradá-lo e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a obra inteira28.

Por tanto, podemos considerar que as possíveis flores, surgidas na forma/conteúdo

tiririca29 deste texto, sejam pensadas como elementos individuais e coletivos que constituem

ao mesmo tempo a beleza da singularidade e do conjunto. Não se preocupam em se constituir

como um raro pensamento orquídea, jardim de Versalhes, marco do Jauru30, Casa Dulce31,

Fazenda Jacobina32, Fazenda Descalvados33..., com definições bem nítidas dos contornos e

conceitos da história, porque, em muitas circunstâncias, preferiremos trabalhar com

28 Cf, BAUMAN, ZYGMUNT, 1925-Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos; Trad. Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.16. 29 Erva daninha – um bom exemplo de rizoma – que se alastra com grande rapidez, se constitui no solo aparentemente como grama, todavia, não pode ser retira ou extirpada da mesma maneira que a grama, pois não se afixa a partir de raízes, mas sim por bulbos espalhados e interligados em profundidade bem variada. 30 Marco histórico relacionado ao tratado de Madri, firmado entre as coroas de Portugal e Espanha no ano de1750, o mesmo é tombado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional –, e atualmente encontra-se na Praça Barão do Rio Branco na cidade de Cáceres. COSTA, César da. O Marco do Jauru na constituição de um imaginário. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2003. 31 Casa Comercial que possuiu certa importância no comércio de Cáceres durante o início do século XX. TARTARI, Juliane Cristina. Casas comerciais em Cáceres 1890-1920. 2007. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2007. 32 Fazenda muito cita nos discursos dos memorialistas da cidade e grande orgulho dos Pereira Leite, família abastada da cidade. LEITE, Luís-Phílippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. Ed. Mato Grosso: IHGMT, 1978; . CORREA FILHO, Virgilio. Pantanais mato-grossenses. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. 33 Esta outra fazenda sempre esta presente na fala destes memorialistas, foi também estudada, de forma mais crítica, em trabalhos monográficios, em artigos e, inclusive, em uma tese de doutorado. GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Cobiçada Carne. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p.34 – 37,01 fev. 2008; Kleiton, César Silva de Almeida. Descalvados: 1872-1882. De uma rudimentar salgadeira a uma fabrica de extrato de carne. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2008; GARCIA, Domingos Sávio. Territórios e Negócios na Era dos Impérios: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2005.

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metáforas, com o Café Nice34, com a desconstrução de mitos35, com a desnaturalização das

identidades36..., ao invés de conceitos bem fixos e definidos, pois aprendemos com Hayden

White que:

A narrativa histórica não imagina as coisas que indica, ela trás a mente imagens das coisas que indica, tal como o faz a metáfora (...) Corretamente entendidas, as narrativas histórias nunca devem ser lidas como símbolos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que comparam os acontecimentos nelas expostos com alguma forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura literária. 37

Preferimos o texto rizomático, com os argumentos e idéias se alastrando por todas as

partes, em que as notas de roda-pé ou as citações se constituem como elementos da própria

forma/conteúdo do texto, ou seja, não são pensadas como as referências teóricas e

metodológicas que embasam e validam os argumentos do texto, mas antes, dentro de uma

economia textual esquizofrênica, que se recusa a trabalhar seguindo apenas uma linha ou

34 Estabelecimento comercial – bar – situado na frente da rodoviária. Até 2004 tinha a vizinhança/interação de outro estabelecimento que poderíamos nominar e definir como pertencendo à zona do baixo meretrício, mas que popularmente era chamado de “cai pinto”. O “café Nice” tem a peculiar característica de não fechar suas portas, há quase três décadas. É freqüentado, normalmente, por pessoas pertencentes à classe social financeiramente mais pobre. Pessoas tidas como de bem e de bens, dificilmente freqüentam o lugar, e, quando o fazem, geralmente é para comprar bebidas, cigarros, um sexo barato, uma droga misturada, todavia, não gostam de assumir. Despreocupados, porém, não totalmente, pois o quartel central da polícia militar não fica a mais de 100 (cem) metros de distância, com esta questão da imagem, são as nômades vidas que por estas imediações constroem suas relações interpessoais, dentro de uma política da sobrevivência com códigos próprios. Nômades por opção, ou por ocasião, no caso dos que não tem um lar sedentário para habitar. Talvez o “Café Nice”, após a desterritorialização provocada pela perda do lar sedentário, seja para estas pessoas uma outra forma de reterritorialização, para aonde os mesmos quase sempre voltam e batem o ponto, para usarmos uma linguagem mais sedentária. Nestas primeiras/poucas palavras sobre o “Café Nice”, podemos observar que estas vidas possuem uma memória diversificada, que ainda precisam ser mais observadas, não só pelos historiadores, mas também por qualquer pessoa preocupada em tentar perceber outros aspectos da cidade, bem diferentes daqueles já tão propalados pela mídia ou pela memória disciplinarizada dos memorialistas, inclusive, por uma parcela da história produzida na academia. 35 O principal objetivo neste caso está relacionado ao interesse de problematizar estes espaços de memória, para assim, buscar dessacralizar esta memória mais sedimentada nos exemplos de vida dos grandes mitos/heróis da história, ou ainda em desconstruir o castelo de uma história denominada por Nietzsche como monumental, construído, é importante destacar, com a argamassa política e os blocos de memória pertencentes às grandes biografias, às grandes fazendas, às grandes casas de comércio, aos monumentos do poder civil, militar e eclesiástico. 36 Percebermos toda a maldade, e, em alguns momentos, até certa grosseria produzida por este discurso das identidades, pois em virtude de sua postura homogeneizante, acaba desconsiderando toda a diversidade existente na cidade. O outro, o pau-rodado, o boliviano, os freqüentadores do Café Nice, as prostitutas, os mendigos..., são percebidos/percebidas – dentro deste discurso histórico das identidades – como a diferença ameaçadora, porque, ao fim e ao cabo, estas dessemelhanças talvez sirvam para percebermos que o outro, curiosamente, é maioria, ou ainda, num sentido mais extremado e, jogando um pouco com as palavras, que: o que nos torna mais iguais é justamente o fato de sermos bem diferentes. A aparente coerência existente neste discurso das indenidades é muito frágil, por isso, o constante medo do outro, pois a percepções destas diferenças, nos força a observar nossas próprias ambigüidades e paradoxos. 37 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trd. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994, p. 108.

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corrente de pensamento. Esta esquizofrenia textual tem medo dos fixos e pesados grilhões

teóricos, que propõem uma única e fiel linha metodológica. Porque ter esquizofrenia teórica, é

salutar, impede o desespero do personagem de Borges que não conseguia se esquecer de nada,

pois assustadoramente lembrava-se de tudo.

No texto rizomático a simbiose existente entre as notas de roda-pé e as citações,

possibilita e constrói uma argumentação que se espalha com as metáforas e

palavras/protéicas38se proliferando em várias direções e com múltiplos sentidos. Palavras que

não obedecem à estabilidade do signo – união entre uma palavra (o significante) e a idéia ou

objeto por ela representado (o significado) – da lingüística estruturalista de Fernand de

Saussure. Temos que assumir, contaminados por uma gramatologia produzida por Jacques

Derrida, a existência de vermes nos vernáculos, Na história de Donald Barthelme, A Picture

History of the war, o general exclama: “Existem vermes nas palavras, os vermes nas

palavras são como feijões mexicanos saltitantes, agitados pelo calor da boca39, ou

acrescentando nossos próprios vernáculo/vermes à esta afirmação: agitados também, pelo

fluxo de pensamentos agenciados durante a atividade cerebral/corporal da escrita. Com isto

queremos salientar que o texto rizomático não trabalha com a mesma lógica enunciativa do

texto árvore, lógica está que – nas ciências sociais –, quase sempre está preocupada no esmero

das citações, percebidas com a importante função de referenciar, ou, às vezes, na literatura,

pela meticulosa busca de lapidar e polir o vernáculo, com o objetivo de extirpar seus vermes.

Aliás, uma busca inútil e até contraproducente, pois tanto quanto no corpo humano, os vermes

das palavras não podem ser totalmente extirpados, afinal, os mesmos, também fazem parte da

vida existente no corpo e nas palavras.

Manuel Bandeira, mesmo sendo um homem do pensamento moderno, ao se posicionar

contra a estilística parnasiana, identificou e denunciou os excessos desta busca, com os

seguintes versos:

Estou farto do lirismo comedido do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

[manifestações de apreço ao Sr. Diretor Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho

[vernáculo de um vocábulo Abaixo os puristas (...) Quero antes o lirismo dos loucos

38 Ct. HARLAN. David, “A história intelectual e o retorno da literatura”. Trad. José Antônio Vasconcelos. In: RAGO, Margarete, OLIVEIRA, Gimenez, ALUÍZO de, Renato. (org.) Narrar o passado, repensar a história: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2000.p. 17. 39 Idem, p. 17.

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O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação40.

Como já foi externado anteriormente, não estamos interessados em fazer uma

argumentação que funcione a partir da idéia de fundamentação, por considerarmos a metáfora

da verticalização muito gasta/clichê, interessamo-nos sim, em uma dermatologia teórica onde

o mais profundo está na superfície, porque, espantar-se com o óbvio41, quase sempre é mais

difícil. Não queremos ler as entrelinhas, nem acreditamos que exista esta leitura das

entrelinhas. Não utilizamos as idéias de autores para justificar e fundamentar nossos

argumentos; no máximo, agenciamos as idéias e conceitos dos autores que nos tocam e nos

afetam – de forma direta ou indireta – para que as mesmas também façam parte do fluxo de

enredo deste texto.

Nesta miscelânea teórico-metodológica, o importante é tentar operacionalizar estas

diferentes ferramentas teóricas no exercício de construção/invenção deste objeto de estudo.

Numa comparação mais extremada, é tentar orquestrar músicos que, não raro, se contrapõe

totalmente. É procurar treinar o ouvido para conseguir apreciar, ou quando muito, suportar um

acorde dissonante, reverberado em uma assonância estranha à partitura teórica da

fundamentação.

A partir do agenciamento da idéia de fluxo de Deleuze e, da estratégia de escrita,

adotada por Charles Baudelaire em – Le spleen de Paris – que, buscamos tramar a tessitura

desta dissertação, não em capítulos, mas, sim, em fluxos com relativa independência entre si,

não total, pois ao contrário da obra: O jogo da Amarelinha42 de Julio Cortázar, em que os

diferentes e possíveis fins da história são prenunciados pelo auto, infelizmente, esta

dissertação não tem a mesma amplitude de possibilidades da história de Cortázar, nem a total

independência do texto de Baudelaire, porque seus objetivos se assemelham bem mais à idéia

de fluxos discursivos que emergem da necessidade de reiterar constantemente uma

determinada visão da história, para qual, não existe uma separação entre forma e conteúdo,

afinal, mesmo a lingüística mais estruturalista de Ferdinand de Saussure, há muito tempo

40 BANDEIRA, Manoel. Poética. In: MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 31. 41 VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Brasília. Ed. da UNB, 1982, p.24. 42 CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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atrás, já defendia com certa insistência que a linguagem constitui e articula a realidade, ao

invés de simplesmente expressá-la ou refleti-la43.

Levando em conta a importância da linguagem na construção de um determinado

objeto de estudo, é que resolvemos adotar esta específica urdidura textual, construída

mediante distintos fluxos, os quais não obstante serem diferentes, e relativamente

independentes, acabam por trabalhar discursivamente em consonância com uma mesma idéia

e concepção de história. Em muitos aspectos, a pesquisa e assuntos abordados nesta

dissertação, são, e/ou funcionam, como pretextos para se falar e escrever sobre uma

determinada política/teórica dentro da e, para a, história.

Um exemplo mais direto desta política44 teórica pode ser encontrado no II fluxo – A

história foi salva pelo turismo? –, onde buscamos metodologicamente operacionalizar uma

pesquisa genealógica45 das práticas discursivas e não discursivas relacionadas ao turismo em

Mato Grosso, para assim, tentar perceber em quais circunstâncias a discussão da memória, ou

de forma mais geral, de uma determinada concepção de história esteve ou não, funcionando

dentro da mesma lógica de enunciação destas respectivas práticas discursivas e não

discursivas do turismo.

Entretanto, é importante ressaltar, que não estamos aqui buscando construir uma

história da longa duração46, em que um conceito, ou uma palavra – o turismo – seja pensada

sem se levar em consideração sua própria historicidade, buscando, assim, se estabelecer uma

continuidade sem rupturas, dentro de uma lógica de enunciação que oblitera todas as

descontinuidades e rupturas que permearam sua existência.

O interessante neste II fluxo é percebermos que esta prática discursiva e não discursiva

do turismo, em muitos momentos, esteve correlacionada, interligada, afetada e afetando a

construção e definição de uma determinada forma de ver e escrever a história sobre Mato

Grosso47, em que o discurso das identidades mistura-se ao interesse de cartografar os

principais contornos de uma região geográfica, onde a natureza constitui-se como importante

tema e elemento deste discurso identitário.

Inclusive, ser-nos-á importante salientar que o principal motivo que nos instigou a

fazer a pesquisa necessária para a elaboração desta dissertação, foi suscitado pela percepção 43 HARLAN, David, op, cit, p. 16. 44 Política teórica que suspeita do discurso solene e homogeneizante das origens. 45 FOUCAULT. Michel. Nietzsche, a genealogia e a história, In: Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979. 46 BRAUDEL, Fernand. A longa duração, In: Escritos sobre História. Trad. J. Ginsburg e Tereza C. S. da Mota. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 44-46. 47 CORREA FILHO, Virgilio. “Pantanais mato-grossenses”. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. CORRÊA FILHO, Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abril/1941.

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de que os discursos presentes desde a primeira legislação municipal48, preocupada com a

temática do patrimônio histórico, até as falas mais atuais, relacionadas à definição do que

deve ou não ser considerado como patrimônio histórico de Cáceres, estão, afetadas por uma

concepção de história impregnada pelas idéias do discurso identitário.

Neste sentido, buscamos pesquisar, compreender e problematizar quando e como, a

partir de determinadas práticas sociais49, algumas práticas discursivas ou não-discursivas,

ganharam respaldo dentro de determinadas relações de poder e saber, que as possibilitaram

engendrar a invenção de uma determinada memória para Cáceres; tentar, também, perceber a

emergência de um objeto de saber e um espaço de poder; estudar como se formou um arquivo

de imagens50 e enunciados, um estoque de “verdades”, uma determinada visibilidade e

dizisibilidade desta memória que pretendeu e pretende direcionar comportamentos e atitudes

e, dirigir inclusive, o olhar e a fala da mídia; como e a partir de quais ressonâncias

discursivas, a própria idéia de “identidade cacerense” impõe uma dada forma de abordagem

imagética e discursiva, para falar e mostrar a “verdadeira” “história” da cidade.

Ao fazermos a pesquisa/escritura do momento de emergência desta memória,

percebemos a importância do traço identitário para construção/invenção de uma determinada

história de Cáceres. Buscamos então – a partir do mesmo método genealógico já adotado no II

fluxo, como também, afetados pela idéia de ressonância –, realizar um estudo do momento no

qual este discurso das identidades ganhou maior dizibilidade na cidade.

A feitura deste estudo nos levou a pesquisar/escrever o IV fluxo – Os artesões da

memória nas tramas e retramas da história –, em que efetuamos a narração de alguns

acontecimentos ocorridos no dia 6 de Outubro de 1978 – ano das comemorações do

bicentenário de Cáceres –, e, em certos momentos, também tentamos conjecturar uma

específica intriga textual para estes acontecimentos, com o objetivo de perceber/destacar que,

estas solenidades e comemorações, ocorridas tanto neste dia específico como também no

transcorrer de todo deste ano, estavam articuladas e interligadas a uma determinada prática

discursiva, emitida nos escritos e falas das autoridades civis, militares e eclesiásticas.

A principal constante lexicológica desta prática discursiva era o traço histórico. É

como se todas estas autoridades, independente de sua formação/função profissional,

estivessem em um determinado fluxo enunciativo, onde as palavras correlacionadas à história

48 Decreto lei n.165 de 19 de Abril de 1994. 49 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 50 Catedral de São Luiz de Cáceres, marco do Jauru, os casarões do centro, a bicicleta, a ponte branca, as fazendas históricas...

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de Cáceres ficavam reverberando e produzindo eco de discurso em discurso, e, assim,

constituindo toda uma coerência argumentativa interessada em engendrar uma fala

competente/autorizada, constantemente preocupada em definir e delimitar os contornos mais

importantes da história, ou mesmo da identidade do povo cacerense.

Um bom exemplo das ressonâncias51 – tanto destes discursos, quanto da literatura52que

os contaminou – que ainda reverberam na história escrita e vivida atualmente na cidade de

Cáceres, pode ser encontrado no fragmento/sintetizador presente no texto do cardápio do

Knôas. O texto deste cardápio não é único, pois muitos são os breves históricos construídos a

partir desta mesma forma/conteúdo. Quando ocorrem mudanças, geralmente elas estão mais

relacionadas às informações utilizadas no breve histórico, do que propriamente na alteração

desta forma/conteúdo de se pensar e escrever a história, assim, podemos encontrar textos

muito semelhantes nos cardápios de outros restaurantes53, em sites de agências de turismo54,

no site da Sematur55, em folders de pousadas,56 em blog57...

Quando destacamos que este texto, constitui-se como um bom exemplo das

ressonâncias das práticas discursivas contemporâneas ao ano de 1978 que ainda reverberam

atualmente, não é simplesmente pelo fato de a maioria destes textos estarem utilizando, e em

algumas circunstâncias até plagiando, as informações contidas em um artigo58 de Natalino

Ferreira Mendes, produzido para um caderno especial do Correio Cacerense, publicado no dia

do bicentenário. Falamos em ressonância neste caso, sobretudo, porque percebemos a

permanência de uma visão da história que ainda se auspicia na condição e competência de

definir a história de um povo, de um país, de um estado, de uma cidade..., em poucas palavras

– em um breve histórico. Os postulados desta prática discursiva que ainda ecoam na cidade de

Cáceres ou em diversas escolas deste país, assemelham-se bastante ao discurso da

estereotipia, pois:

51 Na cidade de Cáceres existe na fala e na escrita do discurso interessado em exibir uma suposta identidade da cidade, ou os exemplos da cultura material e imaterial que devem ser considerados como patrimônio histórico, ainda as ressonâncias de todas as práticas discursivas elaboradas e emitidas naquele ano do bicentenário. 52 LEITE, Luis-Phelippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. Ed. Mato Grosso: IHGMT, 1978. Ainda deste mesmo autor, as obras: “O Médico de Jacobina, Dr. Pedro Nolasco Pereira Leite” e “O Engenho da Estrada Real”. CORREA FILHO, Virgilio. Pantanais mato-grossenses. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. 53 Restaurante Corimba – localizado às margens da baia do Malheiros, Rio Paraguai – 2006, ou ainda, o restaurante Etrúria, situado no calçadão da Praça Barão do Rio Branco, ano 2009. 54 ? 55Secretaria Municipal de Turismo de Cáceres. 56Folders da Pousada Fordinho. 57 D:\fontes de sites de pesquisa\- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008 58 MENDES, Natalino Ferreira. Cáceres – Duzentos Anos. Caderno especial do Correio Cacerense. 06/10/1978, ano II, n. 353.

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O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma fala que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e auto-suficiente que se arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada no grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças individuais são apagadas em nome de semelhanças superficiais do grupo. 59

Em Cáceres, ou no velho/novo Mato Grosso, durante o ano de 1978 – velho porque

permaneceu com a mesma capital e também conservara o mesmo nome, novo porque após a

divisão, ocorrida um ano antes, teria que ser escrita uma nova história para o estado, com

novos heróis –, existia uma preocupação de se escrever a história do estado e da cidade. Esta

história, entretanto, não se justifica apenas pela divisão do estado, também temos que levar

em conta a importante questão da presença do outro, do imigrante que afluiu para o estado

com grande intensidade durante estes anos setenta60. Do outro que representa a ameaçadora

diferença visível na culinária, no sotaque, no vocabulário, nas formas de sociabilidade, na

concepção de tempo, enfim, nos traços culturais. É a partir deste contato com o outro que o

discurso da identidade ganha maior importância, e emerge todo um interesse em construir

uma história que tenha uma memória disciplinada em comum; disciplinada, porque, quem se

arvora a esta condição de memorialista, varia muito pouco o seu repertório.

Na cidade, sobretudo após o bicentenário, não faltaram discursos que ressaltavam a

importância de se escrever e preservar a história local, em decorrência da iminente destruição

do passado, provocada pelo processo modernizador em que o estado estava ingressando.

Voltando aos comentários e, ao mesmo tempo continuando, pelo menos em parte, esta

discussão relacionada às ressonâncias desta determinada prática discursiva que ainda

reverberam atualmente, no IV fluxo, além do estudo destas práticas discursivas, também

foram analisadas certas práticas não discursivas como, por exemplo, o desfile do bicentenário,

com toda sua conotação imagética e linguagem corporal/gestual. Especificamente sobre o

desfile do bicentenário, podemos observar que essa prática não possui mais tanta influência

sobre o cotidiano da cidade. Primeiro porque o desfile não é realmente algo que faça parte da

vida cotidiana, pois apresentam uma característica mais solene e excepcional; segundo,

porque atualmente não temos uma cultura dos desfiles61 bem arraigada na mentalidade da

população, bem ao contrário do que ocorria naqueles últimos anos da década de setenta, com

59 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes – 2. ed – Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001, p.20. 60 Um importante trabalho sobre a vinda de grande quantidade de migrante para região da grande Cáceres, ou mais especificamente, para localidade que futuramente iria se tornar um novo município é o trabalho de: HEISNT, Andréa de Cássia. Bandeirantes do século vinte. Memória e ocupação da terra em Mirassol D`Oeste, Mato Grosso. Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2003. 61 FAUSTO, Boris, História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1995; SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

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19

um regime militar que tinha total interesse em construir/conservar, a partir da atmosfera de

festividade existente nos desfiles, um comportamento coesivo e ordenado baseado na

comunhão identitária de uma história ufanista e homogeneizante.

Todo o debate relacionado à identidade, a história e a memória nos levaram a

refletir/escrever a respeito dos efeitos de verdade produzidos pela fala competente/autorizada,

sobre a importância e contribuições da fala competente/autorizada para as construções

identitárias, como também, procuramos desenvolver um debate relacionado às interfaces e

interstícios existentes entre o discurso de uma elite política e o interesse de se constituir uma

dada identidade para a população de Cáceres. Tudo isto, viabilizado por uma concepção de

história pautada no paradigma da representação, no qual a linguagem é pensada como reflexo

da realidade.

Para entendermos melhor a lógica enunciativa da postura e preservacionista adotada na

cidade de Cáceres, se fez necessário e importante, estudarmos as principais características dos

enunciados emitidos por integrantes do IHGMT, como Luís-Fillippe Pereira Leite, que,

influenciam e/ou funcionam na mesma lógica de toda uma prática discursiva presente nos

enunciados elaborados por memorialistas62, autoridades63, livros64, monografias65, sites66,

blogs67...

Atualmente, a lógica enunciativa relacionada à intenção de se preservar a memória de

cidades, estados, países, ou em uma visão mais abrangente, da humanidade, mesmo que bem

intencionada, pois está suscetível ao diálogo interdisciplinar, estabelecido entre profissionais

de várias áreas do conhecimento como: arquitetos, historiadores, urbanistas, paisagistas,

antropólogos, sociólogos..., em que a questão do patrimônio histórico, normalmente é

vislumbrada como fundamental para preservações e manutenção de uma determinada

identidade cultural, porque, segundo esta lógica:

62 MENDES, Natalino Ferreira. Efeméride cacerense. Volume I, Brasília, 1992. Deste mesmo autor as obras: “Marco do Jauru”, 1983; “Memória Cacerense”, 1982; BAPTISTA, Martha: Estela de uma vida inteira: a história de Cáceres contada através das lembranças da vó Estela, 1998. 63 Fala do governador do Estado de Mato Grosso Blairo Maggi, quando veio a Cáceres durante o circuito nacional de Vôlei de Areia no ano de 2008. 64 PITALUGA, Carlos e Vicente, João Carlos. Breve História de Mato Grosso e de seus municípios. Cuiabá, 1994; COSTA, Antônio Ferreira da. Pantanal em versos e rimas. Cuiabá: KCM, 2007. 65 SANTANA, Eliane da Silva. Museu histórico de Cáceres no período de 1978 à 1979. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2002; CATELAN, Leonildes Maria. Ponte branca na memória cacerense. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2001. 66 http://www.caceres.mt.gov.br/index2.php?cod_sec=4, visitado em 21.12.2008; http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A1ceres_(Mato_Grosso), visitado em 21.12.2008; http://www.citybrazil.com.br/mt/caceres/historia.php, visitado em 21.12.2008; http://www.apontador.com.br/guia_cidades/mapas/MT/caceres.html, visitado em 21.12.2008 67 D:\fontes de sites de pesquisa\- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008

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20

A cidade guarda em si as cicatrizes de vários momentos diferentes de luta: as teimosas marcas de uma memória inscritas nas pedras do calçamento, os monumentos aos sucessivos vencedores, os rastros de um passado que permanentemente se tenta ocultar ou maquiar. 68

Curiosamente e paradoxalmente, esta lógica, urde sua argumentação a partir de

discussões e textos delineados em encontros internacionais como, por exemplo, as

recomendações de preservação e restauração de monumentos, existentes nos 16 artigos da

Carta de Veneza69 de 1964, consagrada como a mais importante referência/doutrina

urbanística do Ocidente. Assim, busca-se preservar uma determinada e local identidade

cultural, recorrendo-se a paradigmas e premissas teóricas universalizantes; os centros

históricos de diferentes cidades do mundo, cada vez mais se parecem participando de uma

mesma prática discursiva consciente e/ou inconsciente que busca controlar a própria noção e

compreensão do que deve ou não ser considerado patrimônio histórico, e, ainda, disciplinar as

práticas sociais70 dos transeuntes destes lugares.

Guattari, a partir de sua arguta sensibilidade, e preocupado em refletir sobre algumas

características da paisagem urbana desta sociedade que ele denomina de pós-moderma,

descreveu este paradoxo com as seguintes palavras:

Vamos, então, desmascarar o paradoxo de uma vez. Tudo circula: música, slogans de propaganda, turistas, bits de informação, filiais de indústrias; e, ao mesmo tempo, tudo parece estar coagulado, parado no mesmo lugar, as diferenças entre o estado das coisas atenuando-se cada vez mais. Os espaços tornaram-se estandardizados, tudo passou a ser intercambiável equivalente. Turistas, por exemplo, viajam cada vez mais sem sair do lugar, utilizando o mesmo tipo de avião, ônibus de excursão, quarto de hotel e simplesmente contemplando o cenário que já viram antes uma centena de vezes na tela da televisão ou em algum guia de viagem. 71

Quando nos propomos a problematizar este discurso das identidades, não estamos

querendo construir simplesmente um discurso niilista e inconseqüente; problematizar neste

caso significa ter a preocupação de não perceber estas identidades como óbvias e naturais, ou

naturais porque óbvias; percebê-las, aliás, como tudo que é próprio do acontecer humano,

como tendo uma historicidade, repleta de coerências e incoerências, em que os jogos de poder

e saber, interagem de forma direta e indireta na constituição destas identidades, onde as

heterogeneidades e heterotopias, são obliteradas em detrimento da maior visibilidade

oportunizada ao discurso do mesmo, do igual, do semelhante.

68 PEREIRA CUNHA. Maria Clementina (org.). O Direito à Memória: Patrimônio Histórico e cidadania. São Paulo: DPH/SP, 1992, p.10. 69 CADERNO de documentos n 3. Cartas Patrimoniais. Brasília: Ministério da Cultura/Instituto do Patrimônio Histórico e artístico nacional – IPHAN, 1995. 70 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 71 GUATARRI, Felix. A restauração da paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural – Cidadania, n°24, 1996.

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É justamente por estarmos posicionados, e nos posicionando, a favor de uma dada

postura historiográfica – epistemologia da diferença –, que se pretende mais polissêmico e

interessado em fazer emergir as diferenças, as dessemelhanças, a pluralidade, que,

consideramos esta fala competente/autorizada respaldada no álibi72 da preservação,

insuficiente para se pensar a memória, e, sobretudo a história de Cáceres, pois a mesma, não

raro, nem se preocupa em distinguir as diferenças existentes entre memória e história, afinal,

Reconhecê-las – as tensões entre memória e história – é tarefa fundamental para a historicização da prática de nosso ofício. Enquanto a primeira – a memória – situa-se no campo dos afetos e dos sentimentos, procurando sacralizar os objetos que reverencia, a segunda – a história – pretende uma operação intelectual, um exercício crítico capaz de investigar as construções da memória, retirando dos altares e trazendo para o mundo dos homens, aqueles objetos sacralizados, sejam eles os autores do passado, os eventos fundadores ou as formas narrativas elaboradas a partir das experiências do passado Refazer essa gênese e este percurso impõe-se como condição para devolvermos ao homem sua historicidade e á história como disciplina sua capacidade crítica como conhecimento. 73

Fala competente/autorizada que, em muitas circunstâncias, por não perceber esta

distinção, acaba querendo sedimentar uma memória que na prática reside em poucos lugares,

como se esta fosse a única, ou, ainda pior, a memória de todos. Esta epistemologia da

diferença instiga-nos a ampliar a discussão, a dar dizibilidade e visibilidade a outras falas, a

outros fragmentos de memória, a outras concepções de história; incita-nos, inclusive, a

problematizar nossa própria condição de sujeitos de conhecimento, com fala também

competente/autorizada, ou seja, termos a coragem de colocar sobre suspeição nosso próprio

discurso, assumir e externar qual é o efeito de verdade que pretendemos instaurar, a partir de

nossas relações específicas de saber/poder. Para assim, tentarmos evitar, pelo menos em parte,

aquela mesma negligência percebida e denunciada por Valéry.

72 MONNET, Jérôme. O Álibi do Patrimônio: Crise da cidadania, gestão urbana e nostalgia do passado, In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural – Cidadania, n°24, 1996. 73GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p.10.

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II FLUXO

A História foi salva pelo Turismo?

Uma cultura está bem morta quando a defendem em vez de inventá-la

Paul Veyne

Estaria o velho – orgânico74 – historiador mato-grossense Virgilio Correa Filho, em

um artigo intitulado: Entraves ao turismo75, publicado no Mensário do Jornal do Comércio,

já no ano de 1941, prenunciando aquilo que se tornaria um dos elementos fundamentais do

discurso preservacionista, tanto no Brasil como no mundo? Ou apenas, sua fala está situada

dentro de uma prática discursiva bem própria do seu tempo? Ou ainda – e, reiterando a idéia

da última pergunta –, pensando-se numa expressão bem própria do historiador Lucien Febvre,

a história é filha de seu tempo, logo, o autor Virgilio Correia, também seria Filho do seu

tempo?

Neste artigo, Virgílio vai comentar sobre a importância de se programar a atividade do

turismo em Mato Grosso, a qual considera como uma tendência mundial de incentivo a

economia. Assim, em virtude da exuberância da fauna e da flora do país, deveriam existir

mais iniciativas e planejamento nesta área, para oportunizar o melhor aproveitamento

econômico do turismo.

O fato é que não podemos nem menosprezar, muito menos, supervalorizar a produção

intelectual/política de um autor como Virgilio Correia Filho.

Não devemos menosprezar, porque, suas contribuições de pesquisa em arquivo,

coligindo e sistematizando dados em acervos, são significativas, afinal, podemos destacar sua

preocupação com a importância e o estado de conservação da documentação destes arquivos.

Um bom exemplo desta preocupação pode ser observado num artigo que publica em 1942 no

Mensário do Jornal do Comércio76, no qual, Virgilio busca alertar para a precariedade do

estado de preservação destes arquivos tão importantes, segundo ele, para o estudo da

ocupação e desenvolvimento da fronteira oeste do Brasil. Chegando mesmo a sugerir a

transferência de alguns documentos para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Também não devemos supervalorizar suas falas e ações, apenas construindo um

discurso empolgado pela sua consciência intelectual, porque em casos como este, sempre é 74 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos N. Coutinho. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. 75 CORRÊA FILHO, Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abri/1941. 76 CORRÊA FILHO, Virgílio. “Documento destinado às chamadas devoradoras” (Delegacia Fiscal) Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 8/3/1942.

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pertinente adotar uma postura mais interpretativa, que busque perceber em qual lógica de

funcionamento discursivo está situada a fala de um intelectual como Virgilio Correa Filho,

vinculado e articulado a uma elite local. Neste sentido, tentarmos observar as intenções e a

postura apresentada nos enunciados de intelectuais refestelados em instituições como o

IHGMT, quando se arvoram na condição de se constituir como fala competente/autorizada,

para discutir e emitir opiniões sobre variados temas, relacionados à vida política, social,

econômica e cultural..., ou seja, buscar perceber/problematizar certa vontade de poder/saber.

Uma década antes destes artigos de Virgílio Corrêa Filho, numa revista de circulação

nacional – O Cruzeiro –, um caçador de origem russa, relativamente extravagante, com o

nome de Sasha Siemel, em um ambiente interpretado pela revista como exótico e selvagem –

o Pantanal –, ganha certa vizibilidade nacional, chegando até a adquirir uma relativa

dizibilidade internacional. Pois, o mesmo, em 1935, guiou o filho do presidente norte-

americano Theodor Roosevelt em incursão aventureira por esse pantanal. Os historiadores

Cezar Benevides e Nonci Leonzo, na obra Miranda Estância, estudaram esta revista, e num

fragmento desta obra, vão observar que:

Frederico Chateaubriand, irmão de Assis Chateaubriand, traçou na revista o cruzeiro, o perfil de um russo que se tornou um mito no pantanal. Ajudou a popularizar essa figura enigmática que, chegou a viver com sua família norte-americana na Miranda Estância: Ali descobriu o caminho da aventura em Mato Grosso: Mergulhou pelos pantanais da província ainda meio selvagem atrás de onças, tem um livro escrito: Tigrero biografia de sua luta com tigres, está claro. Nesta luta o importante é que Sasha não segue as técnicas usuais das caçadas a tiro. Usa um método pessoal, a lança. Metesse nos carrascais com um cão. A fera, descoberta pelo rafeiro, começa a ser acuada, até o momento em que investe contra Sacha. Esta é então a ora que ele certeiro, a fere com a lança77.

Além da originalidade do método de caça utilizado por Sasha, tão bem descrito pelos

historiadores a partir da análise do enunciado supracitado, também devemos nos atentar para a

intenção de se construir uma coerência enunciativa sobre o pantanal.

Um conjunto de palavras, como exótico, selvagem, distante..., vão dar e, ao mesmo

tempo, construir sentidos para se pensar esta região do Brasil. Não devemos nos esquecer que,

homens de imprensa como os irmãos Chateaubriand, têm bem a noção dos efeitos que a

linguagem é capaz de produzir, no sentido de construir o mundo, de influenciar a percepção

deste mundo constituidor e constituído pela, e na linguagem.

77 BENEVIDES, César; LEONSO, Nanci. Miranda Estância: Ingleses, peões e caçadores no pantanal mato-grossense. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.86.

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De certa maneira, talvez já esteja presente neste enunciado da revista O Cruzeiro, uma

prática discursiva que busca simultaneamente: definir as principais características desta região

do país – o Pantanal –; e delimitar uma possível atividade de exploração econômica para esta

região correlacionada ao turismo. Pois, se é anacrônico pensarmos na expressão “indústria do

turismo” 78 para esse período, em virtude da não existência, ainda, do pleno agenciamento

imagético/discursivo, vinculado à indústria cultura relacionada ao turismo; contudo, nós, já

podemos perceber, mesmo que de maneira incipiente – porém, com alguma coerência –, a

preocupação de se publicizar uma determinada imagem deste Pantanal apropriada à atividade

do turismo. Claro que de um turismo mais predatório, bem aos moldes das aventuras de Sasha

que, em um ambiente exótico e selvagem, vai adentrar esta perigosa “região inóspita”, com

feras tão selvagens quanto um tigre nas florestas Asiáticas, ou um leão nas savanas Africanas,

ou mesmo um Urso nas florestas Canadenses.

Parece que as palavras: “exótico”, “selvagen”, “distante”, “pantanal”..., já trazem no

ato de sua enunciação, a imagem e a necessidade de outras palavras, como: “caçada”,

“arriscar-se”, “aventurar-se”, “mito” e, ainda, a metáfora “mergulhar nas águas desconhecidas

e distantes do Pantanal”, para assim, dar maior sentido e coerência a todo o enunciado;

porque, só uma figura mítica como Sasha, com uma técnica de caça totalmente irreverente, e,

com a deliberada índole aventureira, disposta a literalmente mergulhar neste pantanal exótico

e selvagem, poderia estar interessada em adentrar esta região cheia de feras. Por esta razão,

podemos observar que o perfil do possível turista que se direciona para estes locais, neste

período, vai estar mais correlacionado a figura do caçador em busca de aventuras.

Entretanto, não estamos preocupados nesta dissertação, em elaborar uma narrativa

linear da origem e das práticas discursivas correlacionadas ao turismo em Mato Grosso – com

seu desenvolvimento em diferentes períodos, a partir de uma coerência que, não raro,

transforma estes distintos períodos na mesma coisa, pois normalmente oblitera suas diferenças

e contradições –, assim, nós, no desenvolvimento da trama desta dissertação, temos antes, o

interesse de dar vizibilidade também e/ou, sobretudo, às diferenças; buscamos perceber as

próprias contradições e mudanças existentes nestas práticas discursivas relacionadas ao

turismo, ou seja, estamos motivados em – a partir de uma preocupação foucaultiana, inspirada

em grande parte, no método genealógico de pesquisa – construir uma narrativa da diferença,

78 Termo que, aliás, é mais apropriado para ser empregado na segunda metade do século XX, a partir da constituição efetiva de uma cultura de massas, muito bem teorizada por: ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e terra, 2002, p. 107.

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da dispersão, da própria contradição e incoerência daquilo que aparenta ser uno e totalmente

coerente, pois,

(...) Nietzsche genealogista recusa, (...) a pesquisa da origem (Usprung) (...) Por que, principalmente, a pesquisa neste sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é procurar reencontrar “o que era imediatamente”o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidente todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as mascaras para em fim revelar uma identidade primeira.79

Por este motivo buscarmos entender que, em muitos momentos, este enunciado do

turismo, esteve correlacionado, misturado e contaminado por outros fluxos – para usarmos

uma expressão deleuziana – da vida; fluxos econômicos, fluxos sociais, fluxos políticos,

fluxos culturais... Assim, a grande preocupação que temos como historiadores, é justamente

de historicizar a própria palavra turismo, observar suas mudanças. Não pretendemos

estabelecer uma continuidade a-históricas para esta palavra, não queremos definir, de forma

categórica e conceitual, o significado da expressão turismo, mas, sim, procurar compreender

como ela vai funcionar, em diferentes períodos, dentro, no meio e fora, da lógica mais ampla

de enunciação e definição desta região (o Pantanal), ou, ainda, na elaboração da identidade

que constantemente procura definir e delimita tanto o pantanal enquanto região geográfica,

como também a própria história passada, pressente e, em alguns momentos, em projeções

futuras.

Um bom exemplo de descontinuidade, sobre a conotação da palavra turismo, pode ser

observado na mudança que a mesma ganha naquele artigo elaborado por Virgilio Correa filho,

em que o turismo, de atividade econômica predatória ao estilo Sasha, passa a funcionar dentro

de outro fluxo econômico permeado por fluxos sociais e políticos perpassados pelas

discussões relacionadas à importância da história. Afinal, no mesmo ano deste artigo, o

IHGMT – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso –, em virtude da vinda do

representante do SPHAN – Serviço do Patrimônio histórico e Artístico Nacional – Dr. Luiz de

Castro Faria, vai segundo a historiadora Elizabeth Madureira80, nomeia comissão para fazer o

levantamento do patrimônio histórico e artístico de Mato Grosso. Resultando desta visita, um

estudo oficial dos possíveis bens patrimoniais existentes em Mato Grosso, sobretudo,

79 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, genealogia e a história”. In Microfísikca do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.17. 80 SIQUEIRA, Elizabethe M. “Resumo informativo das atas das reuniões do IHMT, 1919-1971” Revista do IHGMT, 1994, p. 114.

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buscando dar maior ênfase a grade importância de se entender a historia deste país, a partir do

estudo e compreensão da ocupação desta parte da colônia.

Neste levantamento, vai ser o patrimônio histórico relacionado à cultura material que

vai ganhar visibilidade. Como no destaque dado à construção militar efetuada pela monarquia

portuguesa, do Forte Príncipe da Beira. Desta forma, podemos observar que, entre as décadas

de 40 e 50, as primeiras políticas e iniciativas preservacionistas do SPHAN, em Mato Grosso,

apresentam certa consonância com as diretrizes já adotadas até então pelo órgão em outras

partes do país. Ou seja, a predominância em se preocupar com bens de pedra e cal, no caso de

Mato Grosso, pedra e cal vinculada a um passado bandeirantizado, representado em

edificações da elite católica, governamental e/ou militar.

Esta nova lógica de funcionamento do discurso do turismo, articulada com a intenção

de se dar destaque também para a importância histórica de Mato Gross, pode ser entendida

como uma maneira encontra pelos intelectuais do IHGMT e da elite local, em conjuminar

esforços para reiterar a importância de Mato Grosso no cenário mais amplo da história

nacional, tanto a partir de sua natureza, como também de sua própria história.

Parece que um intelectual/político como Virgilio Correia Filho, vinculado e articulado

a uma elite política local, preocupada em consolidar uma identidade para Mato Grosso, já na

primeira metade do século XX, tem a noção das possíveis vantagens que os enunciados

relacionados ao turismo podem contribuir para as práticas discursivas preocupadas em definir

uma identidade para o Estado.

Não devemos nos esquecer que, pelo menos desde 1919, ano das comemorações do bi-

centenário da cidade de Cuiabá, ou ainda em 1922, quando vão se preocupar em comemorar o

primeiro centenário da independência, o IHMT futuro IHGMT, vai ser criado, sob a

influência de um sócio itinerante do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico do Brasil –, Dr.

Eurico de Góes, o qual chega a Cuiabá em 1918. O interessante é percebermos que todas estas

iniciativas vão, de certa maneira, coadunar-se aos interesses políticos desta elite local, que

constantemente tem sempre o interesse de dominar os sentidos da história, a partir da

instauração de uma memória mais sedimentada e cristalizada nos exemplos de seus

antepassados, tidos como verdadeiros produtores desta história.

Afinal, é muito perigoso para quem exerce o poder, permitir que a história possa vir a

ter múltiplos sentidos, oriundos de diferentes exemplos de memória que, em muitas

circunstâncias e situações, pode ser totalmente diferente daquela memória evocada e

propalada como sendo de todos, pela elite que exerce o poder institucionalizado de Estado.

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27

Talvez, sejam por estas razões, que sempre existem estes rituais simbólicos, como as

comemorações do bi-centenário, ou da independência, justamente para teatralizar esta

memória que interessa a elite governamental, pois as instituições que operacionalizam este

poder precisam exercê-lo constantemente, para tornar coerente e articulada a lógica de

funcionamento desse poder que, para Foucault, esta pulverizado, permeado, e, ao mesmo

tempo, perpassando todos os espaços e saberes dessa sociedade que o autor denomina de

disciplinar81. Esta sociedade disciplinar, pensada e teorizada por Foucault, funciona a partir de

uma microfísica do poder que está presente nas: instituições de repressão mais direta, como a

polícia e o exército; nos discursos de higienização e organização, emitidos pelos sanitaristas e,

futuramente, pelos urbanistas; nos discursos de medicalização da sociedade presentes nas

práticas sociais e enunciados dos hospitais e asilos; ou ainda, de toda uma multiplicidade de

saberes científico/pedagógicos, dos quais a história enquanto disciplina e a escola enquanto

instituição, também estão inseridas.

Só para pontuarmos a discussão, nos exemplos da história e da escola, são geralmente

a partir das práticas sociais exercidas constantemente nas escolas, e dos enunciados

discursivos emitidos pelos professores de história, seja nas series mais elementar, ou até nas

universidades, e, principalmente, nestes momentos de comemoração como: do bi-sentenario

ou da independência, que podemos compreender certa tentativa de buscar disciplinarizar a

memória e construir uma determinada visão da história.

Se em 1919, ou 1922, Cuiabá ainda não tinha um sistema escolar quantitativamente

suficiente para exercer essa função de disciplinarizar a memória, mas, seguramente, as

instituições que existiam procuraram exercer este papel, participando destes rituais simbólicos

do bicentenário e das comemorações da independência do país, tão importantes para a

teatralização e construção de uma determinada visão da história normalmente ufanista,

baseada nos exemplos e biografias de grandes personalidades da elite mato-grossense e do

país.

Outro aspecto importante para salientarmos sobre estas iniciativas correlacionadas a

estes eventos, como: comemorações, criação de instituições, constituição de comissão de

pesquisa e levantamentos relacionados à construção de uma determinada história para

Cuiabá..., é esta constante vinculação da figura de uma pessoa vinda de outras partes do país,

81 FOUCAUT, M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979;

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28

representando outras instituições que já existem nestes outros locais da federação, para ajudar

e incentivar a implantação das mesmas em Cuiabá.

Parece que existe um esforço no sentido – mesmo em assuntos próprios do passado,

como esta construção de uma história e de uma identidade de Cuiabá – de participar, e,

também, constituir na cidade estas instituições e todos os aspectos analítico/políticos que as

mesmas possibilitam/incentivam, como os textos produzidos pelos intelectuais do

IHMT/IHGMT nos seus próprios periódicos e materiais; em livros; jornais da cidade, ou

mesmo, de outros locais do país, como os artigos elaborados por Virgilio. Neste sentido, o

IHGMT representa a preocupação de se demonstrar que Cuiabá tem a percepção das

inovações trazidas pela modernidade, ou, pelo menos, está articulado e atento às

transformações já existentes no presente. Simbolizadas não apenas nas novas tecnologias, mas

também em novas formas de sociabilidade e organização do tecido social.

Ter uma instituição como o IHGMT, significa não apenas estar preocupado em

respeitar e dar a devida importância ao passado, como pensa e descreve Paulo Pitaluga:

Em 1918 historiadores e homens de letras de Mato Grosso, preocupados em não deixar passar sem qualquer lembrança a data referente aos dois séculos de Cuiabá reuniram pequeno grupo e fizeram comissão, com o objetivo de implementar e desenvolver, junto à sociedade cuiabana e às autoridades constituídas a idéia da comemoração do bi-centenário da Capital do Estado. (...)82

Significa, sobretudo, constituir um novo espaço de poder/saber relacionado à intenção

de se inventar/construir, a partir de uma fala competente/autorizada, uma determinada leitura

da história de Mato Grosso, que normalmente privilegia as memórias de um passado

bandeirantizado e repleto de exemplos heróicos. Não custa lembrarmos que ainda hoje existe

certa ressonância desta interpretação da historia nas publicações do IHGMT, pois o próprio

Paulo Pitaluga, ao se reportar a esta movimentação de historiadores e homens de letras, para

convencerem a sociedade e as autoridades constituídas a respeito da importância do bi-

centenario, considera que, (...) Seria uma justa homenagem aos bandeirantes pioneiros que

comandados por Pascoal Moreira Cabral, se instalaram as margens do coxipó em princípios

do século XVIII. 83

82 COSTA e “SILVA, Paulo Pitaluga.” Fundação “do Instituto Histórico de Mato Grosso”. Revista do IHGMT, p. 205 83 Idem, p. 205.

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29

O marco que ainda demarca

Esta história bandeirantizada, vivida durante as disputas e negociações territoriais de

dois impérios ultramarinos84, vai adquirir grande visibilidade na construção de todo um

arcabouço de memória, sobretudo, em cidades como Cáceres, Corumbá, Cuiabá... Nestas

cidades, ao observarmos os nomes de ruas, avenidas, praças, prédios públicos..., podemos

perceber os diferentes momentos da invenção de um Estado/Nação – Brasil –, com heróis da

monarquia, da república, e inclusive do próprio período colonial, de um tempo “em que

Brasil ainda não era Brasil, sendo melhor chamá-lo de América portuguesa, pois como

portugueses da América, mais do que brasileiros – designativo dos comerciantes de pau-

brasil –, se viam os próprios habitantes do território” 85·.

Na cidade de Cáceres, por exemplo, no limiar do século XX, e inicio do século XXI,

entre os vários ícones/palavras/símbolos86 que constantemente são agenciados pelo discurso

identitário, para se definir uma identidade comum ao povo cacerense, seguramente o marco

do Jauru, inscreve-se como elemento constante deste arcabouço de memória. Podemos

encontrar a sua imagem nos mais diferentes momentos e lugares da cidade: nos folders de

divulgação das pousadas; no layout dos programas televisivos da cidade; em banires de

publicidade; nas imagens, afixadas em diferentes tipos de estabelecimentos comerciais; na

logomarca de diferentes administrações publicas; na mochila e na camisa, doadas aos alunos

da rede pública municipal; nos slogans de propaganda política...; enfim, sem qualquer

preocupação em exagerar, podemos perceber que o marco do Jauru ainda demarca os

contornos de uma história de Cáceres.

É como se este elemento da cultura material, proveniente da negociação metropolitana

de dois impérios, mesmo após sua superação diplomática, continuasse a marcar e delimitar

um território, agora balizado por uma nova catografia. Uma cartografia dos sentidos, uma

cartografia da memória, uma cartografia das identidades. Talvez uma cartografia dos

sentimentos, da noção de pertencimento, da sensação de memória em comum.

O marco acaba se constituindo como uma espécie de curinga, neste baralho de cartas

memoráveis, porque serve para qualquer tipo de configuração no jogo do discurso identitário.

Sua imagem é agenciada não apenas pelo poder político, mas também pelo capital:

84 Portugal e Espanha em suas constates disputas territoriais no novo mundo. 85 SOUZA. Laura de Mello e. Aspectos da Historiografia da Cultura sobre Brasil Colônia, In: FREITAS, Marco Cezar. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 39 86 Casa Dulce, Catedral, Viola de cocho, Casa Rosada, Tuiuiú, vitória regia, jacaré, bicicleta...

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Imagem existente na parte interna da loja de eletrodomésticos: City Lar 2008

Pintura feita no muro da Câmara Municipal de Cáceres 2009

O jogo/discurso do turismo, mesmo partindo de um quite de imagens/cartas mais

relacionado à natureza, como o tuiuiú, a onça pintada, o jacaré, o Rio Paraguai, ou de forma

mais ampla, do conjunto de imagens atribuídas normalmente ao pantanal, acaba, porém,

também fazendo uso do curinga – marco do Jauru –, na organização de seu jogo discursivo,

ou seja, mesmo nos enunciados da fala ecológica, correlacionada ao interesse de evidenciar a

fauna e a flora local, podemos encontrar a presença ou, mais propriamente, a mistura dos

traços da memória identitária concernentes ao marco.

Ao percebermos essa constante simbólica, com toda a preocupação em utilizar as

imagens do marco do Jauru, em tão diferentes locais e circunstâncias, duas perguntas ou,

melhor, duas problemáticas, acabaram se constituindo como importantes questões desta

dissertação. Primeiro, por que essa amplitude de possibilidades de uso? Segundo, e talvez

principal, quando e, sobretudo, como essa imagem do marco passa a adquirir essa nova

conotação simbólica? Ou seja, como de um simples elemento/resquício da cultura material de

uma cartografia antiga87, metamorfoseia-se em símbolo cultural, quase mesmo, num elemento

da cultura imaterial, transformando-se assim em um sofisticado curinga simbólico.

A primeira pergunta pode ser respondida ao observarmos que o marco está articulado,

misturado e impregnado pela lógica de funcionamento do discurso das identidades, dentro de

uma relação de poder e saber que busca disciplinar uma determinada memória para cidade.

Memória interessada em construir uma historia eivada pelo discurso grandiloqüente de um

passado bandeirantizado.

87 Geografia de general, ou melhor, de Capitão General e Governador do século XVIII, que busca esquadrinhar e ocupara as terras do novo mundo, dentro da lógica bem própria do UTI POSSIDETIS.

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31

Ao fazermos um estudo genealógico de quando e como o marco se tornou um

importante elemento deste discurso identitário, chegamos a conclusão que a gênese desta

transformação está situada no final da década de 70, mais propriamente, entre os anos de 77 e

78, quando vai surgir, também em Cáceres, todo um interesse de se construir uma história da

cidade baseada em fragmentos de memória pertencentes a um segmento social – elite

econômica e política – da população cacerense.

Em 1977 podemos ver já estampada – no cabeçário do recente jornal criado na

cidade88 – a figura do marco do Jauru, mas talvez mais importante ainda, seja percebermos

que a figura que ganhou o concurso para o Distintivo Do Bicentenário, tenha também a

presença do marco do Jauru, inclusive, o vencedor deste concurso, Wandyonon Vanini Filho

teve toda uma preocupação em explicar os sentidos da imagem:

88 Correio Cacerense, jornal criado no ano de 1977.

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Distintivo do Bicentenário Jornal Correio Cacerense- 10/10/1978

JUSTIFICATIVA: - A letra C, em maior destaque, representa a nossa dinâmica grande Cáceres na comemoração do seu BICENTENÁRIO. - O marco, no centro, recorda e enaltece a epopéia da conquista de nossas fronteiras e da guarda do nosso território. - Ao fundo, o rio Paraguai e seus afluentes banham nosso solo, tornando-o mais fértil (agricultura) e cheio de pastagens (pecuária). - Ao lado da letra C, vemos a localização da cidade de Cáceres, a Princesinha do Paraguai. - 1778-1978= 200 anos de trabalho para um amanhã melhor.89

Esta explicação de Wandyonon Vanini Filho nos permite perceber quais eram as

principais figuras simbólicas agenciados pelo discurso identitário na construção e definição de

uma memória em comum para a cidade, ou seja, a história de Cáceres estava sendo

construída/inventada a partir de um discurso que oscilava entre uma valorização de elementos

de um passado bandeirantizado e aspectos da natureza. Natalino Ferreira Mendes90, ao

elaborar o hino de Cáceres, também vai fazer uso de uma prática discursiva correlata a esta:

Marcha um povo rompendo a floresta Ganha terras e aumenta o Brasil No Ocidente penetra e, na testa,

Albuquerque de porte viril.

Tuas terras banhadas dos Rios Sepotuba, Jauru, Cabaçal,

Paraguai – porta aberta pra o mundo; Mar inteiro – feraz Pantanal! 91.

89 Documento datilografado assinado por Wandyonon Vanini Filho – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 90 Natalino Ferreira Mendes, era em 1978, Secretário Municipal de Administração e presidente da Comissão dos festejos do Bicentenário. 91 Hino de Cáceres: letra do Prof.ª Natalino Ferreira Mendes; música e orquestração do Cap. Lenínio da Silva Porto

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É interessante percebermos que as ressonâncias deste discurso iconográfico e musical

ainda reverberam na cidade, pois atualmente grande parte da política do turismo é feita

mediante esta mesma lógica enunciativa de valorização da natureza e do passado “histórico”

de Cáceres.

Ao chegarmos a esta conclusão, poderíamos então, responder a pergunta existente no

título deste II fluxo com uma resposta positiva? Ou seja, dizer que realmente a história foi

salva pelo turismo. Bom..., mesmo reconhecendo esta ênfase existente no discurso do turismo,

a respeito de alguns elementos históricos da cidade, talvez seja muito apressado dizer que

realmente isso é uma valorização da história de Cáceres, quando muito, é apenas a

valorização de alguns espaços de memória, pertencentes a certos segmentos da população.

Não acreditamos que a história para ser salva, precise virar prostituta do truísmo, pois

a história de um povo é construída, principalmente, pelos vários espaços de memória que

constituem a vida negociada e difícil do dia-a-dia de todo o tecido social. Tão importantes

quanto à memória e os vestígios materiais dos grandes “heróis” do passado, do presente e do

futuro, são os exemplos simbólicos e materiais da vida do homem comum, do homem

ordinário diria de Certeau92, do homem infame acrescentaria Foucault93, que inventa seu

cotidiano bem longe dos palácios, dos textos, dos Casarões..., enfim dos marcos desta história

grandiloqüentes feita pela, e para elite; história esta, contraída “para inglês vê”, para turista

apreciar, pois mesmo quando mostra o homem comum, ou os elementos de sua cultura, é

quase sempre a partir de um viés que folclorisa suas ações e manifestações culturais.

Além do mais, não acreditamos que a história realmente precise ser salva. Em

Cáceres, talvez ela só precise ser mais democrática, mais polifônica, menos saturada pelo

discurso memorialista relacionada à tradição de uma elite das grandes famílias. Como

historiadores, preocupados em não perceber o discurso memorialista como óbvio e natural, ou

natural porque óbvio, deveríamos sim, nos interessar mais em dar maior vizibilidade e

dizibilidade às constantes invenções da cultura cacerense que pululam na realidade material e

simbólica da cidade no pão-nosso-de-cada-dia.

92 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 93

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III FLUXO

Por uma epistemologia da diferença: o traço narrativo na escritura historiográfica.

Quem bebe um gole de vinho, pode arriscar-se a falar sobre a garrafa inteira, mas comete grave erro se estender seu julgamento a toda a safra ou – pior – à marca estampada no rótulo. Um pouco a mais de ar na garrafa que vai sendo esvaziada ou as condições de armazenamento de cada unidade podem alterar o conteúdo e comprometer o julgamento. Enologia e literatura têm algo em comum: o conhecimento nem sempre corresponde à quantidade do que se bebe ou lê, mas à sensibilidade do degustador de goles ou palavras que produzem encantamento. O encantamento é, portanto, precioso como o bom vinho e a boa literatura: Ambos extremamente raros94.

Seguindo a esteira de raciocínio deste pensamento, nós, no respectivo fluxo, nos

propomos a perseguir dois objetivos principais: o primeiro mais relacionado à observação do

reconhecimento ou, de maneira mais otimista, da “re-valorização” do traço narrativo na

escritura historiográfica. Sobretudo, após Lawrence Stone ter publicado em novembro de

1979, um pequeno artigo, intitulado: “The revival of narrative” 95, nas prestigiosas páginas da

revista inglesa Post and Present, em que o autor, de forma crítica e polêmica, busca reavaliar

a concepção ou definição de uma simples volta da narrativa. Neste sentido, pensado não

unicamente com Stone, mas também, com outros autores, como o filósofo francês Paul

Ricoeur96, nós, podemos observar certa continuidade do traço narrativo na escritura

historiográfica, mesmo quando se buscou fazer uma história mais analítica e menos factual, ao

estilo da primeira fase dos annales, 97 com Bloch98 e Lucien Febvre99, ou da segunda fase

mais estruturalista, de inspiração braudeliana100. Assim, pensando não mais com Stone ou

Paul Ricoeur, mas com Chartier “... é uma boa maneira de dizer que os historiadores, assim

como os outros, nem sempre fazem o que pensam fazer e que as rupturas orgulhosamente

94MICELI, Paulo. História, História o Jogo dos Jogos. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 1996, p.312. 95STONE. Lawrence. The revival of narrative: reflexions on an new old history. Post and Present, n. 85, November 1979, p. 3-24. 96 PAUL, Ricoeur. Temps et récit,3 vol., Paris: Editions du Suil, 1983-1985. 97Para uma análise mais detalhada desta importante revista, ler: BURK, Piter. A ESCOLA DOS ANNALES. Trad. Nilo Odália. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991, p.11; nesta obra o autor distinguiu e cita, pelo menos, quatro diferentes nomes que a revista possuiu: Annales d’histoire équonomique et sociale (1929-39); Annales d’histoire sociale (1939-42 45); Mélanges d’histoire sociale (1942-44); Annales économies, sociétés, civilisations (1946-). 98BLOC, Marc. Introdução à história. Trad. Maria Miguel e Rui Grácio. Lisboa: Publicação Europa-América, 1965, p. 19. 99FEBVRE, Lucien. “Viver a história”. In: Combates pela história. Vol. I., Lisboa: Editora Presença, 1977, p. 43. 100BRAUDEL, Fernand. “A longa duração.” In: Escritos sobre História. Trad. J. Ginsburg e Tereza C. S. da Mota. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 44-46; BRAUDEL, Fernand. “Posição da história em 1950”. In: História e Ciências Sociais. Trad. Rui Nazaré. 6 ed. Lisboa: Editora Presença, 1990, pp. 56-57.

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reivindicadas mascaram com freqüência as continuidades ignoradas”. 101 Já o segundo

objetivo, está mais direcionado para a análise e reflexão de uma epistemologia da diferença

vinculada, em grande parte, às ressonâncias do pensamento nietzscheneano102. Desta forma –

como bem lembra e teoriza Chartier103 sobre a apropriação dos textos –, buscar perceber como

o pensamento Foucaultiano104 significou e/ou, principalmente, re-significou as ponderações e

questionamentos de Nietzsche sobre o estudo genealógico.

Talvez, seja um lugar demasiado comum, perceber a multiplicidade de acepção

vernácula da palavra história na língua portuguesa, pois longe de possuir uma designação

lexical única, a mesma, apresenta sim, uma condição vernácula polissêmica, suscetível a

múltiplas interpretações. Contudo, consideramos importante salientar logo de início, que,

neste texto, a palavra história está sendo usada e, entendida, – na maioria das vezes – com o

sentido de historiografia, ou seja, como a escrita da história.

Mesmo sendo uma platitude destacar que, geralmente, os documentos analisados

atualmente pelos historiadores não são mais utilizados como provas ou evidências, mas como

monumentos105·, pois segundo Margareth Rago:

Há até pouco tempo, que os historiadores estavam convictos que estudavam os fatos, que o passado, no singular e determinado por “leis necessárias”, estava lá atrás bem organizado à espera de ser por ele revelado em sua suposta “essência” e em sua ‘totalidade”. Havíamos aprendido que o “real”, o “concreto” – representado à nossa revelia como coisa – devia ser interpretado com objetividade e neutralidade, isto é, sem a invenção subjetiva do narrado.106

Mas, ao mesmo tempo, também cientes das características peculiares do ofício do

historiador, com nossas práticas discursivas específicas, naquilo que por assim dizer,

caracteriza nosso métier, haja vista que, escrevemos além de tudo ou, principalmente, para os

pares107. Podemos, contudo, perceber e destacar a importância dos diálogos estabelecidos

entre a história, a filosofia da linguagem e a teoria literária, “pois se estudar história refere-se

101 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.p, 14. 102 NIETZSCHE, Friedrich. “Para a genealogia da moral. In: Os pensadores. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 103 Aqui nos remetemos ao conceito de “re-significação” de Roger Chartier. CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Ed. Difel, 1990. 104FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”, In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado, 20ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2004. 105FOUCALT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro, Editora Vozes. 2004. 106RAGO, Margareth. “Prefácio.” In: JENKINS, Keith. A História Repensada; trad. De Mário Vilela. São Paulo: Contexto, 2001,p.9. 107CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica.” In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

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a como ler e entender o passado e o presente, então (...)” nos “(...) parece importante usar

discursos que tenham por grande preocupação as leituras e elaboração de significados”..108

Neste sentido, não temos mais, definitivamente, o interesse de trabalhar os documentos

como estatuto da verdade, nem de perceber a narrativa histórica como um discurso suscetível

às mesmas possibilidades de ficção do discurso literário. Porém, consideramos sim, ser

necessário e interessante, buscar ampliar os diálogos estabelecidos entre a história e a

literatura, perceber a força e importância da escritura para nosso ofício, observar as formas

pelas quais grandes mestres da literatura, como Dostoievski, Zola, Kafka, Pirandello, ou

nosso Manuel de Barros, constroem a urdidura dos enredos de suas respectivas narrativas,

atentando-nos para a potência da escritura na produção de sentidos e significados, afinal, se

em literatura: “Eu paro o vôo de um pássaro com um ponto” 109.

Não que, hoje, os historiadores tenham sempre a competência ou, sobretudo, a ousadia

de um Roland Barthes, que define a sua produção de ensaios, como “Gêneros incertos onde a

escritura rivaliza com a análise” 110, mas geralmente têm sim, o interesse e a preocupação de

trabalhar e burilar as idéias de um texto, na medida de suas habilidades, para torná-lo mais

competente e interessante, assim:

O paradigma que aqui (...) propomos (...) não segue a partilha das funções; não visa colocar de um lado os cientistas, os pesquisadores; e de outro os escritores, os ensaístas; ele sugere pelo contrário, que a escritura se encontre em toda a parte onde as palavras tem sabor (saber e sabor tem, em latim, a mesma etimologia). Cournonskai dizia que, na culinária é preciso que “as coisas tenham gosto do que são”. Na ordem do saber, para que as coisas se tornem o que são, o que foram, é necessário este ingrediente, o sal das palavras. Este gosto das palavras que faz o sabor profundo e fecundo do saber. 111

Nessa perspectiva, consideramos fundamentais as reflexões concatenadas por Hayden

White, onde ele observou que dentre as principais questões a serem levantadas e respondidas

pelo historiador durante seu trabalho, são fundamentais as seguintes: que tipo de modelo

lingüístico o historiador deverá adotar na tessitura de seu texto? Qual, dentre os tropos do

discurso e da linguagem, o historiador buscará utilizar na urdidura de seu respectivo texto?

Esta escolha lembra White, faz parte instituínte do trabalho dos historiadores, uma vez que a

escolha do modelo lingüístico – tropos do discurso – define não só a forma como também seu

próprio objeto, neste sentido, não haveria uma separação entre forma e conteúdo. Ainda

destacamos sua percepção e rejeição do sectarismo historiográfico, porque em alguns

108 JENKINS, Keith. A História Repensada. trad. Maria Vilela – São Paulo: Contesto, 2001,p.10. 109 BARROS. Manoel de. O Livro das Ignorãças. – 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.14. 110 BARTHES, Roland. Aula – 7ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1996, p. 7. 111 Idem, p.21.

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momentos o esmero teórico e metodológico é confundido com a subserviência intelectual.

Assim, Hayden White defende o cosmopolitismo metodológico e tem a ousadia de tentar

substituir os conceitos pelas metáforas, pois:

A narrativa histórica não imagina as coisas que indica, ela trás a mente imagens das coisas que indica, tal como o faz a metáfora (...). Corretamente entendidas, as narrativas histórias nunca devem ser lidas como símbolos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que comparam os acontecimentos nelas expostos com alguma forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura literária112.

É claro que, apesar de reconhecermos a importância destas observações de Hayden

White, também estamos cientes das possíveis e necessárias ressalvas efetuadas por Chartier, a

respeito das teorizações de Hayden White ou, principalmente, de David Harlan, ou ainda de

uma forma mais geral, das “(...) formulações radicais da linguistic tour à americana.” 113,

produtoras daquilo que poderíamos denominar de forma mais apressada e, simplificadora,

como – ditadura da forma – ou nas palavras do próprio Chartier “A perigosa redução do

mundo social a uma pura construção discursiva, a meros jogos de linguagem.” 114

As idéias relacionadas ao que Chartier denominou de “linguistic tour à americana”,

podem muito bem serem entendidas ou sintetizadas, a partir das instigantes e ao mesmo

tempo desestabilizadoras observações efetuadas por David Harlan, ao se referir aos

interstícios e interfaces da nova/velha relação existente entre historia e literatura:

Havia um tempo em que os historiadores pensavam haver escapado ao meramente literário, um tempo em que eles haviam estabelecido os estudos históricos no sólido fundamento do método objetivo e do argumento racional. No entanto, os recentes avanços em crítica literária e filosofia da linguagem solaparam esta confiança. Agora, após uma ausência de cem amos, a literatura volta à história, montando seu circo de metáforas e alegorias, interpretação e aporias, traços e signos, exigindo que os historiadores aceitem a sua presença zombeteira bem no coração daquilo em que, insistiam eles, constituía sua disciplina própria, autônoma e verdadeiramente cientifica. 115

Entretanto talvez seja interessante ressaltarmos que Chartier reconhece a presença e

importância do traço narrativo para a escritura historiográfica. Sobretudo, após as importantes

112 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trad. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994, p. 180. 113 CHARTIER. Roger. A beira da falésia: A história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002, p.10. 114 Idem, p.10. 115HARLAN, David. Intellectual History and the Retorno of Littérateur. American Historical Review, 94, junho 1989, p.879-907. Também observar a tradução deste artigo, feita do inglês para o português por: VASCONCELOS, José Antonio. A história intelectual e o retorno da narrativa. In: RAGO, Margarete, OLIVEIRA GINENES, Renato Aloizio de. Narrar o Passado, Repensar a Historia. Campinas, SP:UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2000. É importante observarmos que este artigo de Harlan, está em plena consonância com as idéias da “Gramatologia” de Jacques Derrida.

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38

análises e estudos elaborados por Paul Ricoeur116, percebendo que, por mais analítica ou

estruturalista – ao estilo braudeliano – que uma escritura historiográfica pretenda efetivamente

ser, ela não escapa às maneiras de construção das temporalidades, dos personagens ou mesmo

das concepções de causalidade do gênero narrativo. Contudo, fundamentando-se não só em

Paul Ricoeur, como também em Michel de Certeau117, Chartier argumenta e defende a

pretensão de um efeito de verdade para a história, afirmando categoricamente que:

Quanto a esta dissociação de estatuto de conhecimento da história, freqüentemente considerado nos Estados Unidos como uma figura do pós-modernismo, deve se sustentar com força que a história é comandada por uma intenção e princípio de verdade, que o passado que ela estabelece como objeto é uma realidade exterior ao discurso, e que o seu conhecimento pode ser constatado. 118

Também consideramos pertinente salientar que, assim como existem estas ressalvas de

Chartier sobre as obras de White, Harlan, ou de forma mais geral da “Linguist tuor à

americana” ou mesmo do “pós-modernismo”. Existem também algumas precauções a

respeito das teorizações de Ricoeur, pois Peter Burke observou o seguinte:

O filósofo francês Paul Ricoeur certamente tem razão, quando fala do “eclipse” da narrativa histórica em nosso tempo (...). Ricoeur persegue declarando que toda história escrita, incluindo a chamada história “estrutural” associada a Braudel, necessariamente assume algum tipo de forma narrativa. De um modo similar, Jean-François Liyotard descreveu algumas interpretações da história, especialmente aquela dos marxistas, como “grandes narrativas”. O problema de tais caracterizações, pelo menos para mim, é que elas diluem o conceito da narrativa, até que ele corra o risco de se tornar indistinguível da descrição e da análise. 119

Estas dúvidas e questionamentos de Burke demonstram bem a atual complexidade do

debate historiográfico, possuidor de uma grande multiplicidade de tendências historiográficas,

onde uma teoria, mesmo tão excepcional e competente como a de Paul Ricoeur não pode ser

mais vista como produtora de uma fala categórica, de probidade inquestionável, mas antes,

analisada e estudada criticamente, “sem dó,” diria Nietzsche120. No entanto, far-se-á

necessária, também, algumas reflexões, mesmo que bastante incipiente – porém não insipiente

– a respeito desta preocupação de Burke.

116 PAUL, Ricoeur. Temps et récit,3 vol., Paris: Editions du Suil, 1983-1985. 117CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 118 CHARTIER. Roger. A beira da falésia: A história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos- Porto Alegre. Ed. Universidade UFRGS, 2002, p. 15. 119 BURKE, Piter. A escrita da Historia: novas perspectivas. Trad. Nagda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p. 328. 120 MEITZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Trad. Antonio Carlos Braga, São Paulo: Editora Escala 2006.

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Primeiro: esta questão fundamental na obra de Ricoeur – da “mise em intrigue de ações

representadas” –, entendida aqui, como bem lembra Chartier, 121 no sentida aristotélico da

verossimilhança, 122que distingue a obra de história da fábula, não por sua forma de escrita,

pois se Heródoto houvesse escrito sua obra em versos, esta não deixaria de ser uma obra de

história, assim, Aristóteles as diferencia (talvez de forma simplificadora) em virtude de sua

natureza, pois enquanto o historiador tem a preocupação em escrever o que aconteceu, o

escritor de fábulas – ou literato de uma forma geral – pode escrever sobre aquilo que não

aconteceu que, poderia ter acontece; contudo, não obstante esta diferenciação se vê em

Aristóteles uma predileção pela boa escrita. Não custa lembrar que, foi Platão quem expulsou

o poeta da república, não Aristóteles. Neste sentido, queremos destacar que esta preocupação

de Burke: “com o risco da narrativa se tornar indistinguível da descrição e da análise”,

torna-se relativamente irrelevante, pois para Ricoeur a história é escrita do começo ao fim, e

neste sentido, não existe mesmo uma preocupação de se separar a análise da descrição e da

narrativa, pois ao fim e ao cabo, assim como White, Ricoeur também não percebe uma

separação entre a forma e o conteúdo, mesmo que este último tenha uma preocupação

hermenêutica das interpretações.

Segundo, mesmo que estas observações necessárias e sinceras de Burke – necessárias

porque preocupadas efetivamente com a epistemologia da historia – poção vir a suscitar

argumentos do tipo: “se tudo é narrativa, logo, a narrativa não existe” em alusão ao

pensamento de Paul Veyne123 , podemos então, também parafraseando Veyne, afirmar e

ressaltar que “Tudo é narrativa, logo, a narrativa não existe”, pois existe sim; “A narrativa

de história; a narrativa de antropologia; a narrativa de geografia”. Enfim, pensando com, e

a partir de Veyne, assim como não há História com letra maiúscula, também não há Narrativa

com letra maiúscula, existe, sim, a narrativa de Historia, de Sociologia, de Antropologia...,

vinculadas a um lugar social, a uma prática e a uma escritura124.

A muitos, mais apressados e formuladores de conclusões demasiado simplistas, pode

parecer que a história, enquanto disciplina, está vivenciando um momento de crise

epistemológica. Porém, Chartier prefere perceber e caracterizar este momento, como resultado

da própria expansão – maior interdisciplinaridade – e amadurecimento autocrítico da 121 CHARTIER. Roger. A beira da falésia: A história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos: Porto Alegre. Ed. Universidade UFRGS, 2002. 122 ARISTÓTELES. Poética IX. Trad. Baby Abrão. In: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultura, 2004, p.47. 123VEYNE, Paul. Tudo é historia, logo, a história não existe. In:. Como se escreve a historia e Foucault revoluciona a historia. 4. ed. Trad. De Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. 124CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

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40

disciplina, em que certas ingenuidades ou arbitrariedades, vinculadas em grade parte, à

metanarrativa das ciências sociais e de certa metafísica filosófica, não conseguem mais se

impor de maneira tranqüila e/ou desavisada. Principalmente, após a inquietação provocada

pelas críticas irônicas e assertivas de pensadores como Foucault, questionado toda sisudez e

suposta neutralidade do conhecimento objetivo ou, ainda, buscando desconstruir todo o

corolário produzido pela (e para) ciência, dentro de uma prática enunciativa viabilizada por

um efeito de saber; efeito este muito bem mapeado nos estudos da Arqueologia do Saber, mas

já também discutida em textos anteriores, como em As Palavras e as Coisas, onde o autor,

bem no início da obra explica:

Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia –, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma certa “enciclopédia chinesa”onde será escrito que “os animais se dividem em a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) domesticados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade; h) incluídos na presente classificação; i) que se agitam como loucos; j) inumeráveis; k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo; l) et cetera; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas”. No deslumbramento desta taxonomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso.125

É também nesta perspectiva, que o discurso hegemônico, e muitas vezes excludente,

das macro-análises quantitativas e seriais, relacionados normalmente a busca das origens

primeiras e essenciais, perde a sua aparente coerência. O discurso historiográfico passa a

exigir uma postura mais plural, do iniciante deste ofício – historiador. Pretendendo dar

visibilidade e dizibilidade também as micro-análises. Neste sentido, buscando fazer emergir

uma epistemologia da diferença, percebendo a própria história das construções históricas.

Sem querer definir a priori que: “as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua

direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse

conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias.” 126

A própria emergência desta epistemologia da diferença, não deve ser entendida apenas

como resultado da perspicácia e luta individual de Foucault – embora não devamos

desconsiderar este aspecto – durante sua trajetória intelectual, mas antes, dentro de um

conjunto de transformações das formas de compreensão e produção do conhecimento que

vinham ocorrendo desde a primeira metade do século XX. 125FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. IX. 126FOULCAULT. Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAUT, M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979, p. 15.

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41

Transformações estas que, contaminaram, afetaram, misturam, inventaram..., por fim,

construíram uma imbricada relação de conhecimento e, com isso, possibilitaram/constituíram

uma maior transdisciplinariedade estabelecida entre diferentes áreas do conhecimento,

aparentemente distintas. Bons exemplos desta mudança podem ser observados em todo papel

desempenha pelas vanguardas artísticas, quando efetuaram uma crítica direta e incisiva sobre

os valores da cultura burguesa oitocentista, ou naquilo que Peter Gay denomina de cultura

vitoriana127. Neste caso, não ocorre na Europa, apenas um novo esquadrinhamento geográfico

do mapa político do velho mundo, influenciado pelos conflitos da primeira guerra mundial,

mas também, toda uma mudança no mapa das sensibilidades, impulsionada, em grande parte,

pela critica/reflexão destas vanguardas artísticas.

Na física, por exemplo, sobretudo quântica, podemos perceber grandes transformações

já na primeira metade do século XX, principalmente, após Einstein128 ter derrubado alguns –

se não os fundamentais – axiomas da física newtoniana, afirmando que tempo e espaço são

relativos. Também podemos destacar o “princípio da incerteza” de Heisenberg129, sem falar

nos mais recentes estudos da nanotecnologia.

Definitivamente, sem qualquer preocupação de errar, o século XX foi em relação à

ciência, um período de grande preocupação com o mundo infinitamente pequeno das

partículas subatômicas, ou finitamente pequeno das moléculas, dos vírus, das bactérias, do

DNA. Em suma, esta nova ciência do séc.XX, vai começar a questionar seriamente as

premissas do pensamento de grandes exemplos do paradigma científico anterior, como Darwn

ou Galilel, por não atentarem, ou, principalmente, dar a devida importância para as

especificidades e peculiaridades de seus respectivos objetos de estudo, em virtude da

excessiva generalização.

Esta nova ciência, não vislumbra apenas formular leis e axiomas universalizantes,

trabalha também e reconhece a importância das probabilidades e possibilidades dentro da

compreensão e elaboração do conhecimento.

Percebe-se cada vez mais uma mudança na própria visão estereotipada que, separava

com certa grosseria, as áreas do conhecimento a partir do vasto repertório de palavras

depreciativas – frias, concretas, duras – associadas às ciências da física, da matemática, da

127 GUIMARÃES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahi. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p. 11. 128EINSTEIN, Albert. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. 129HEISEMBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.98.

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química..., e, que, em contrapartida criava a falsa antítese ou, mesmo, um maniqueísmo

simplista, no qual a filosofia era considerada como excessivamente abstrata; a música, a

literatura, ou as artes de uma forma geral, como o resultado de uma inspiração transcendental;

inclusive, muitas ciências sociais eram caracterizadas também de forma depreciativa como

ultra-sensíveis, chegando ao ponto de insinuar/atribuir pejorativamente um comportamento

quase nefelibata, para os que resolviam compreender e pensar o mundo dentro desta lógica de

ação/pensamento.

Atualmente, cada vez mais se vêem físicos comentando e debatendo a respeito da

estilística literária utilizada no constructo de suas teorias e modelos explicativos, literatos

debatendo sobre cosmogonia, historiadores analisando questões concernentes aos efeitos de

verdade presentes no discurso científico, filósofos emprestando conceitos e terminologias da

botânica.

Podemos destacar ainda, toda a capacidade literária de Einstein que, mesmo antes de

existir a possibilidade empírica do acelerador de partículas, consegui convencer sobre suas

formulações concernentes a todo um modelo explicativo da física subatômica; tudo isso

talvez, porque, esta ciência do século XX, já não seja mais pensada apenas em função de uma

linguagem axiomática, pois: Metáforas também são comuns em ciências, especialmente a

ciência que exploram fenômenos alheios à nossa percepção sensorial, como por exemplo no

mundo do muito pequeno e do muito rápido, o domínio da física atômica e subatômica.130

É um pouco depois – e em alguns aspectos também de forma simultânea – ao

surgimento desta nova maneira de se pensar o conhecimento, que a epistemologia da

diferença131 proposta por Foucault, ganha certa vizibilidade e dizibilidade. Assim, parece

perfeitamente compreensível – mesmo para quem não concorda inteiramente com o

pensamento foucaultiano –, se falar também de uma abordagem/visão microfísica do poder.

Pois, o poder não pode mais ser pensado apenas ou, unicamente, no Estado, de maneira

centralizada e estática, mas, sobretudo na sociedade de maneira mais geral, nas suas mais

diferentes escalas, nos mais variados segmentos sociais que podem corroborar e reproduzir

ou, mesmo, questionar as práticas discursivas e não discursivas deste poder. O poder para

Foucault não é simplesmente conquistado e pronto! Mas antes, exercido todos os dias e nos

mais diferentes momentos da vida quotidiana; o poder: é uma legião132, diria Barthes, não

130GLEISER, Marcelo. A dança do Universo. São Paulo: Companhia das Letras. 2006, p. 20. 131FOUCALT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro, Editora Vozes. 2004. 132 BARTHES, Roland. Aula – 7ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.

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pode ser uno, pois é muitos, é sub-poderes, ou micro-poderes que, assim como os elétrons,

não apresentam uma condição localizável, mas antes pululam no tecido social, fazem parte de

uma política quântica que rejeita o imobilismo; pensar o poder no singular, como algo uno, ou

pior ainda, como emanação do estado, tentáculo de dominação estatal, é, cometer os mesmos

erros de uma física de antes de ontem, na qual os elétrons teriam um lugar bem próprio e

localizável nas camadas da eletrosfera.

Assim como os elétrons não têm mais camadas bem definidas e fixas na eletrosfera, pois

se movimentam em múltiplas trajetórias, a partir de uma performance orbital e helicoidal,

também o poder – ou mais propriamente os micro-poderes –, não podem ser pensados a partir

de camadas ou classes, bem ao estilo da análise mais clássica das ciências sociais, porque este

também órbita entre as diferentes camadas, sem pertencer exclusivamente a nenhuma delas,

ou seja, os micro-poderes perpassam e permeiam todo o tecido social, sem ser do mesmo

material das linhas que constituem esse tecido.

Mesmo compreendendo esta transdisciplinariedade acima observada e, talvez por

isso mesmo, seja importante esmiuçarmos mais as condições de possibilite que influenciaram

a construção do método genealógico foucaultiano, ou seja, tentar cartografar os pontos de

possibilidade e probabilidade, pelos quais esta genealogia operacionaliza seu funcionamento.

Não é nada fácil ou, sobretudo coerente, pensar biograficamente – mesmo em

outro regime de biografia, bem diferente das tradicionais biografias feitas por uma história

política do século XIX, que, hoje é, relativamente criticada no ambiente acadêmica, – a obra

de um pensador como Foucault, que justamente buscou nos desfamiliarizar com antigos

conceitos, e, assustando-nos, ou mais propriamente, provocando a desnaturalização de

algumas das idéias bem presentes na filosofia ocidental, tais como: identidade, essência, saber

objetivo, neutralidade etc.; chegando mesmo a questionar a própria existência do sujeito do

autor, nos instigando a abandonar qualquer tentativa de ver o discurso como um fenômeno de

expressão, afinal, definitivamente, discurso não é o desdobramento da majestática

manifestação de um sujeito que pensa, que sabe e que fala, mas pelo contrário, é, antes, a

dispersão do sujeito, e sua descontinuidade consigo mesmo pode ser determinada133;

Foucault, chega a criticar inclusive a própria noção de obra. Sem esquecermos, é claro, da

irreverente e paradoxal afirmação: “não me perguntem quem eu sou, nem me peçam para

permanecer o mesmo”, utilizada para responder e negar sobre seu suposto pertencimento ao

pensamento estruturalista, como também, do próprio pós-estruturalismo ou pós-modernismo.

133FOUCAULT, Michel. A prosa do mundo. In: FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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Aliás, uma pergunta bastante complexa para ser respondida, principalmente, para as duas

últimas/mesmas posturas teóricas, que se caracterizam justamente pela heterogeneidade e

recusa de uma definição mais clássica daquilo que supostamente iria definir de forma

categórica seus participantes, onde talvez, jogando um pouco com as palavras, o que os mais

tornem iguais é, justamente, o fato de serem bem diferentes.

Neste sentido, já cientes desta percepção foucaultiana, podemos de forma bastante

esquemática e, conseqüentemente simplificadora, interpretar a produção intelectual de

Foucault em três etapas diferentes, porém, complementares: primeiro partindo de uma

arqueologia do saber, presente em obras como: A Historia da Loucura, O Nascimento da

Clínica, As Palavras e as Coisas, e no texto mais epistemológico deste período, que é: A

Arqueologia do Saber; depois, se preocupando com a elaboração de um método genealógico

de estudo das relações de poder, tendo como textos principais: A Ordem do Discurso, A

Microfísica do Poder e Vigiar e Punir; e por fim, dedicando-se as questões das formas de

subjetivação na idade contemporânea, presentes em suas observações das formas da ética e da

estética, relacionadas ao cuidado de si. Nesta última fase, nós temos os três volumes da

História da Sexualidade. Contudo, devemos lembrar que o projeto de estudos destas formas

de subjetivação, não foi terminado, em virtude da morte de Foucault em 1984.

A partir deste breve esquema feito acima e, pensando com Foucault, podemos

perceber o motivo de sua recusa às idéias de identidade, pois, ao fim e ao cabo, ficam visíveis

as possíveis implicações surgidas em decorrência desta pretensão epistemológica vinculada ao

ato de buscar biografar a vida e a obra de um autor, supondo que haja alguma identidade que

o caracterize, ou, mais especificamente, que mesmo observando as diferenças e contradições

presentes na vida e nas ações do indivíduo, ainda assim, busque estabelecer uma

continuidade.

Talvez para nos redimirmos desta traição às percepções foucaultianas, seja importante

realizar uma análise mais historicizante e pontual, para desta maneira, tentar esmiuçar apenas

as principais influências que instigaram o pensamento de Foucault, no momento mais

específico da elaboração das pesquisas relacionadas a um estudo genealógico do poder, em

que Vigiar e Punir e Microfísica do poder inscrevem-se como importante obra deste período,

mesmo que estas influências134 venham a persistir posteriormente em outras obras. Assim,

partimos de um princípio bem próprio do pensamento de Foucault, ou seja, historicizaçäo de

suas respectivas problemáticas de estudo.

134FOUCAULT, Michel. Sobre a história da Sexualidade, In: FOUCAUT, M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.

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É curioso, percebermos que, enquanto alguns historiadores buscam construir suas

fundamentações teóricas dentro de certas máximas e constantes filosóficas, muito próximas

de uma metafísica, ou, ainda, de uma metahistória, bastante presente em muitas ciências

sociais, Foucault, um filósofo de formação, vai procurar historicizar ao máximo e,

conseqüentemente, construir suas teorias, justamente, a partir de suas pesquisas históricas e,

assim, acaba por provocar desfamiliaridades onde só encontrávamos familiaridades, indicar as

rupturas em meio às continuidades tão defendidas pelos estruturalismos de Saussure na

lingüística, de Strauss na Antropologia, de Braudel na História, de Althusser na Filosofia...

Durante este período, a grande influência de Foucault é, predominantemente, a

pesquisa histórica, contudo, não a partir da fundamentação teórica de historiadores, mas,

principalmente, pelas influências e ressonâncias do pensamento nietzscheano relacionado a

um estudo sobre a genealogia da moral.

Como já foi observado anteriormente, Vigiar e Punir encontra-se em um momento em

que a produção intelectual do autor busca operacionalizar um deslocamento metodológico

vinculado a elaboração de um método genealógico de pesquisa, influenciado decisivamente

pela leitura que Foucault faz de A genealogia da moral135. Este desdobramento metodológico

está também correlacionado às problemáticas surgidas ainda nas pesquisas relacionadas a uma

arqueologia do saber, pois o autor percebe que não bastava efetuar apenas a pesquisa das

práticas discursivas existentes nos enunciados de diferentes áreas do conhecimento, como na

Psiquiatria, na Lingüística, na Medicina, ou nas ciências de exame de uma forma geral, mas,

também, haveria a necessidade de um estudo minucioso das práticas sociais engendradas e, ao

mesmo tempo vivenciadas, no cotidiano de diferentes instituições da sociedade capitalista.

Assim o objetivo de Foucault, era iniciar uma exposição do resultado de algumas

pesquisas, surgidas de certas hipóteses e problemáticas de trabalho, correlacionadas à

interpretação e identificação do momento de constituição de uma forma de organização social,

econômica, política e cultural, que o pensador denomina de sociedade disciplinar. Aliás,

sociedade disciplinar essa que se inicia no final do século XVIII e início do século XIX, e que

existiria até os tempos atuais, contemporâneos à vida de Foucault.

O estudo desta sociedade contemporânea, nomeada por Foucault como disciplinar,

oportunizou um deslocamento teórico e prático da pesquisa, no sentido da elaboração de um

método genealógico bastante inovador, para o estudo das relações de poder e saber, partindo

135. NIETZCHE, Friedrich. “Para a genealogia da moral. In: Os pensadores. 3º. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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não só das práticas discursivas – característica bastante presente nos estudos da A Arqueologia

do Saber –, mas também, das práticas sociais existentes nas mais diferentes instituições

surgidas na lógica de funcionamento dessa sociedade disciplinar.

De maneira geral, poderíamos afirmar que umas das principais características desta

sociedade disciplinar é a utopia do panoptismo, que se, em alguns locais e circunstâncias se

realizou efetivamente, na maioria dos locais, é sempre um objetivo a ser seguindo. Tanto as

práticas discursivas de ciências como a psiquiatria, a medicina, a pedagogia..., como também,

as práticas sociais de instituições como a escola, o hospital, o asilo, a fábrica, o cartel, o

manicômio..., estão dentro desta mesma lógica da utopia do panóptico, ou seja, constituem

uma gama de poderes e saberes que buscam disciplinar os corpos, para torná-los

politicamente submissos e economicamente produtivos, em fim, para usarmos uma expressão

que Foucault utilizou em Vigiar e Punir: tornar os corpos dóceis.136

Todavia, não devemos interpretar esta obstinação pelo panoptismo, como sendo alguma

emanação apenas do poder de estado, mas antes, em algo que está arraigado na própria lógica

mais capilar desta sociedade disciplinar. Não nos esqueçamos, pois Foucault neste aspecto é

bem incisivo: (...) Como a grande lição de Beccaria pode ser esquecida, relegada e

finalmente abafada por uma prática da penalidade totalmente diferente, baseada nos

indivíduos, em seus comportamentos e virtudes, com a função de corrigi-los.137

A idéia de exame, que vai dar sustentação teórica e fundamentação epistemológica

para as novas ciências sociais de uma forma geral, nasce justamente desse princípio da

observação dos indivíduos, com todas suas virtudes e erros, reclusos nestas diferentes

instituições. É observando as crianças no seu aprendizado, a partir das dificuldades

encontradas, ou das novas soluções, que a pedagogia vai buscar desenvolver novas maneiras

de ensino, dos saberes e dos poderes que constituem esta sociedade. Da mesma forma, o

sociólogo, observando o comportamento social de operários em uma fábrica, ou toda política

de medicalização e higienização das cidades no final do século XIX, ou ainda, na elaboração

dos corretos exercícios para a consolidação do corpo do soldado moderno, em suma, um

conjunto de saberes e poderes são investidos sobre os corpos, os hábitos e as idéias dos

indivíduos que constituem e são constituídos por essa sociedade disciplinar.

Toda esta preocupação do pensamento foucaultiana em entender esta maquinaria

discursiva e também as práticas sociais existentes nestas diferentes instituições que ele chama

136FOUCAULT. M. Vigiar e Punir. 16ª edição. Petrópolis RJ: Editora Vozes, 1997. 137FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moraes - Rio de Janeiro: Nau Ed, 1996.

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de instituições de seqüestro, possibilitou-o a elaborar uma forma de compreensão do poder

bastante inovadora, pois o poder não é pensado apenas como um efeito da política de estado,

mas, sim, em sua existência fundamental e capilar dos sub-poderes ou micro-poderes.

Assim, partindo-se dessa ótica, o poder não é pensado como posse, como se alguém o

tivesse e outras pessoas não, mas antes, como algo exercido. O poder é pensado como relação,

ou seja, o poder é sempre relacional e operacional, as pessoas não têm o poder. Elas exercem

o poder. Quando deixam de exercê-lo, então perdem o direito ou a prática de exercê-lo. Neste

sentido, o poder está em todos os lugares: no clube, na empresa, nos quartéis, nas ruas, no

hospital, na família, na sala de aula, na banca de defesa...

A grande indagação/problemática que instiga Foucault a efetuar estas pesquisas

relacionadas à obra Vigiar e Punir, é saber por que em tão pouco tempo, a prisão que era

apenas uma das formas de punição, passa a constituir a maneira predominante e compulsória

de punição.

O que os estudos do autor nos possibilitam perceber é que a prisão, assim como outras

instituições surgidas também neste período, como a escola, o manicômio, o quartel, o asilo, o

hospital – as quais, Foucault denomina de instituições de seqüestro – participam

simultaneamente de uma ortopedia social que tem a pretensão de constituir um arcabouço de

saberes e práticas discursivas, para constituição de uma sociedade disciplinar.

A partir de novas tendências teóricas, surgidas dentro do próprio discurso

historiográfico, como a epistemologia da diferença, ou de forma mais ampla, de todas as

ressonâncias e inter-relações existentes na elaboração do conhecimento durante este século

XX, é que, os modelos: “econômico marxista”, “ecológico demográfico francês” e a

“cliometria á americana”, os quais estiveram em voga dos anos 30 a70, começaram então a

serem vistos com certa suspeita138.

A atual elaboração do conhecimento historiográfico encontra-se muito mais plural, e

menos susceptível a modelos mais homogeneizastes e excludentes, postuladores de um único

e correto paradigma. Tornando-se extremamente complexa a tentativa de se fazer o

mapeamento das diversas tendências teóricas que se entrecruzam na atual produção

historiográfica. Pois, só para usarmos o exemplo da historiografia brasileira, na qual durante

os anos 30 e 40, poderíamos Alencar os três grandes pensadores, que por assim dizer,

inventaram uma leitura do Brasil; entre os historiadores Sérgio Buarque de Holanda em

138STONE. Lawrence. The revival of narrative: reflexions on an new old history. Post and Present, n. 85, November 1979, p. 3-24.

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Raízes do Brasil139, Caio Prado Junior em Formação econômica do Brasil140 e o sociólogo

Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala141. Hoje, já não podemos fazer isto com a mesma

facilidade e/ou, principalmente, tranqüilidade, em virtude da atual multiplicidade de

excelentes trabalhos produzidos nas mais diferentes áreas e temáticas de estudo, vinculados a

diversas tendências historiográficas.

É claro que não estamos aqui querendo desconhecer a relevância e necessidade de se ler

estes “clássicos de nascença”, para usarmos uma expressão cunhada por Antonio Candido, no

prefácio a quinta edições de Raízes do Brasil. Porque, grandes historiadores do passado,

como: Gibbon, Michelet, Tocqueville, Burckhardt ainda são lidos e discutidos e,

conseguintemente, incorporados ou questionados, não tanto por suas possíveis contribuições

para metodologia da pesquisa histórica, quanto por sua qualidade literária. Hayden White, por

exemplo, num feliz comentário sobre a questão da narrativa, na obra do filosofo francês Paul

Ricoeur, discute exatamente sobre este assunto relativamente polêmico, ao afirmar que:

Com base na teórica do discurso histórico de Ricoeur, podemos atribuir a eterna fascinação pelo clássico historiográfico ao conteúdo que este partilha com toda locução poética disposta ma forma de uma narrativa. Este conteúdo é alegórico: toda grande narrativa histórica é uma alegoria de temporalidade. Portanto, muito depois de sua erudição ter sido suplantada e seus argumentos denunciados como preconceitos do momento cultural de sua produção (como na alegação de Gibbon de que a queda de Roma foi causada pelos efeitos solventes do cristianismo sobre as virtudes viris dos pagãos ), a narrativa histórica tradicional continua a fascinar como o produto de uma necessidade humana de refletir a cerca do mistério insondável do tempo142 .

Seguindo essas ponderações de Hayden White a respeito da importância atribuída por

Paul Ricoeur sobre a tessitura narrativa destes clássicos do pensamento internacional.

Podemos também, estender esta observação a grandes clássicos do pensamento nacional,

como Casa Grande e Senzala. Haja vista que, aquém e alem, das possíveis e necessárias

criticas efetuadas pelos antropólogos e, sobretudo, pela escola paulista de sociologia143,

principalmente sobre a suposta democracia racial defendida por Gilberto Freyre, Casa Grande

e Senzala não deixa de ser uma obra elaborada por um excepcional “escritor”, pois a partir de

sua escrita sinestésica, conseguimos perceber os gostos, sentir os cheiros, ouvir os sons, da

139 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 34ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998. 140 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil, 18ª Ed., São Paulo:Brasiliense, 1976. 141 HOLANDA, Sérgio Buarque de.Raízes do Brasil26ª Ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 142 WHITE, Hayden. The Content of the from: narrative discurse and historical representation. Baltimore: Jhons University Press, 1987, p.180-181. 143 Entre eles é importante destacar: BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo, 3ª ed, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes, 3ª Ed, São Paulo; Ática, 1978, 2 vols; IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo, 2ª Ed, São Paulo: HUCITEC; Curitiba, Scientia et Labor, 1988; CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e Escravidão no Brasil meridional, 2ª Ed, Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1977.

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casa grande e da senzala. Ao contrário de muitas dissertações, teses ou até livros, elaborados

com todo esmero teórico e metodológico por “escreventes”.

Ao utilizarmos esta distinção entre “escritores” e “escreventes,” estamos simplesmente

pretendendo destacar e reiterar as reflexões de Roland Barthes presentes em um artigo de sua

autoria, publicadas em 1960, com o ttulo: Éscrivanis et éscrivants. Aliás, Leila Perrone-

Moisés, resume com grande propriedade essas reflexões de Bathes, com as seguintes

observações: “Para os primeiros” escreventes “a linguagem é instrumento, para os segundos”,

escritores (na melhor acepção do termo) “, é meio e fim; para os primeiros, escrever é falar

de alguma coisa; para os segundos escrever é um verbo intransitivo (...) os primeiros

respondem através da linguagem, os segundos perguntas na e à linguagem.”144Pensando de

maneira semelhante, podemos considerar que: os primeiros escrevem sobre algo do mundo,

enquanto que os segundos escrevem e inscrevem algo no mundo com a marca de sua escrita.

Seguindo a argumentação desenvolvida nos três últimos parágrafos e também pensando,

tanto como Foucault, como com Nietzsche, podemos atentar ainda para seguinte questão: não

deveríamos mais ler Gilberto Freire, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado com o objetivo

de apreender a realidade que supostamente eles desvendaram, mas antes e, preferencialmente,

para buscar desconstruir os discursos destes autores. Lê-los, menos para compreender

simplesmente o “passado”, do que para tentar entender como foi lido, interpretado e

inventado. Saber que verdades foram construídas sobre a “Nação”, sobre nossa “identidade,”

a partir de determinados jogos de poder, ou seja, não percebê-las como reveladas em sua

suposta essência. Assim, partindo de uma genealogia neitzscheneana, tentar perceber a luta

existente na construção e emergência de alguns mitos, e da forma como foi engendrada a

historia da “Nação”.

Com isto, queremos salientar a necessidade não só do historiador como também dos

profissionais de outras áreas do conhecimento, em não querer que suas explicações ou

interpretações, mesmo com todo o esmero teórico e metodológico, auspiciem a condição de

óbvias e naturais, ou naturais porque óbvias. Mas sim, de buscar atentar-se para a própria

construção histórica de seu respectivo objeto de estudo. Perceber que a emergência de um

determinado objeto de estudo, pode também estar relacionada à invenção ou construção de

um espaço de poder, que irá dar visibilidade e/ou dizibilidade a este respectivo objeto de

estudo. Pensar o conhecimento sem ingenuidades, buscando desnaturalizar ou desconstruir as

convicções mais apressadas, não simplesmente para cair num desconstrucionismo

144PERRONE-MOISÉS, Leila. Roland Bharthes: o saber como sabor. São Paulo: Max Limonad, 1980, p. 81-82..

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inconseqüente, mas sim, para tentar perceber ou, compreender e interpretar, como estas

convicções foram construídas. De maneira mais enfática, lembrando Certeau16, buscar inverte

as evidências, ou como afirmou Paul Veyne17, espantar-se com o óbvio.

É elaborando essa ironia perspicaz e eficiente que Foucault faz – a partir das

ressonâncias do pensamento nietzscheniano – uma crítica ao discurso das origens primeiras,

com toda a sua pompa e solenidade; é assim que, emerge esta epistemologia da diferença,

onde a invenção ou construção de um objeto de estudo é pensada simultaneamente com a

consolidação de um espaço de poder.

É a isto que gostaria de me ater, fixando-me primeiramente no próprio termo invenção. Nietzsche afirma que, em determinado ponto do tempo e em determinado lugar do universo, animais inteligentes inventaram o conhecimento; a palavra que emprega invenção, - o termo alemão é Erfindung –, é freqüentemente retomada em seus textos, e sempre com sentido e intenção polêmicos. Quando fala de invenção, Nietsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem, quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung18.

Isso demonstra bem uma preocupação, negligenciada por alguns historiadores, com os

estudos de etimologia e filologia, relacionados a observar a historicidade das palavras.

Percebendo a construção histórica de um vernáculo, e não trabalhando com palavras trans-

históricas ou a-históricas, onde um mesmo significado é imposto a diferentes épocas, sem

atentar-se para as possíveis acepções analisadas no estudo lexicológico de uma palavra.

São estes os principais motivos e razões que instigaram a inserção da palavra invenção

nas discussões relacionada a historia, a memória e a identidade. Não apenas em função do seu

efeito discursivo, no sentido de provocar afetação, embora isso seja também muito

importante, mas, sobretudo, pelo que este efeito discursivo possibilita e constrói, ou seja,

desloca todos os sentidos ontológicos de palavras como história, memória, cultura, patrimônio

histórico, turismo..., para uma percepção mais historicizada destas.

É pensando nesta historicização que, no a IV fluxo, homônimo ao titulo da dissertação,

buscamos pesquisar/escrever e, problematizar, quando e como, a partir de determinadas

práticas sociais145, algumas praticas discursivas ou não-discursivas ganharam respaldo, dentro

de determinadas relações de poder e saber que as possibilitaram engendrar a invenção de uma

16CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 17

VEYNE. Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4º ed. Brasília: Editora UNB, p.21. 18

FOUCALT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moraes - Rio de Janeiro: Nau Ed, 1996, p. 14. 145 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

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determinado memória de Cáceres. Tentar perceber a emergência de um objeto de saber e um

espaço de poder. Estudar como se formou um arquivo de imagens146 e enunciados, um

estoque de “verdades”, uma determinada visibilidade e dizisibilidade desta memória que

pretendeu e pretende direcionar comportamentos e atitudes; dirigir, inclusive, o olhar e a fala

da mídia. Como e a partir de quais ressonâncias discursivas, a própria idéia de uma

“identidade” impõe uma dada forma de abordagem imagética e discursiva, para falar e

mostrar a “verdadeira” “história” da cidade.

A epistemologia da diferença, não estimulou e estimula apenas os debates e as

reflexões teóricas sobre as novas tendências historiográficas, suscitou também, uma

reavaliação das metodologias e técnicas de análise da disciplina em história. Assim, não

bastou apenas revalorizar ou, simplesmente, reconhecer a presença do traço narrativo na

escrita historiográfica, foi preciso também pluralizar e ampliar as noções e o conceito de

fontes, pensadas – sem hierarquias – como documentos. Sejam eles, imagéticos, iconográficos

orais, escritos19, etc. Não no sentido de prova ou evidência, mas como Foucault pensou e fez

em sua Arqueologia do Saber, onde o filósofo/historiador passa a trabalhar o discurso – destes

documentos – como prática instituinte, criadora de acontecimentos, imagens e referências de

comportamentos. Enfim, trabalhar o documento como monumento147, ou na fala, melhor, na

escrita do próprio Foucault: trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: organizá-lo, recortá-lo,

distribuí-lo, ordená-lo, reparti-lo em níveis, estabelecer séries, distinguir o que é pertinente

do que não é, delimitar elementos, definir unidades, descrever relações.148

Sem querermos terminar este III fluxo simplesmente com um discurso de parenética –

mesmo que possa vir a parecer ou, efetivamente ser –, muito menos com platitude, como

também, levando em conta a esteira de raciocínio presente na citação que inicia este

respectivo fluxo, então resolvemos encerrá-lo com, pelo menos, duas observações.

A primeira observar, de caráter mais incipiente, pretende destacar/reiterar que, a

situação atual – constituída por muitas incertezas e dúvidas – dos debates historiográficos,

como também das ciências de uma forma geral, encontra-se demasiadamente complexa para

elaboração necessária, porém, agora mais arriscada, de mapeamentos generalizantes;

inclusive, para um degustador de palavras tão eficiente e aplicado como Chartier. Possuidor, 146 Catedral de São Luiz de Cáceres, marco do Jauru, os casarões do centro, a bicicleta, a ponte branca, as fazendas históricas... 19 CASTRO GOMES, Ângela.org. Escrita de si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2004. CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. 147FOUCALT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro, Editora Vozes. 2004. 148Idem, p.14.

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simultaneamente, tanto da necessária sensibilidade qualitativa para a análise mais esmiuçada,

quanto da monumental erudição quantitativa dos estudos de perspectiva historiográfica;

quantitativa não no sentido estatístico e seria, mais sim, no sentido da capacidade e pretensão

da síntese e do diagnostico geral da historiografia.

A segunda observação é quase – se não totalmente – mais uma justificativa e

solicitação de indulgência, em virtude da utilização de autores vinculados ou postuladores de

diferentes perspectivas teóricas.

Contudo, podemos procurar argumentar que: a utilização na urdidura do enredo deste

respectivo fluxo, ou mesmo de toda a dissertação, das teorizações e conseqüentes críticas e

ponderações de autores vinculados a diferentes tendências historiográficas, está muito menos

relacionada a uma postura tranqüila, desavisada e ingênua, do que a uma deliberada intenção

de se destacar e perceber, simultaneamente, a convergência ou discordância de diferentes

aportes teóricos e metodológicos a respeito de um mesmo assunto – o traço narrativo na

escritura historiográfica. Sem esquecer, é claro, de também salientar a existência de

excelentes trabalhos, produzidos nas mais diferentes temáticas e áreas de estudo,

correlacionados a esta mesma tendência historiográfica – epistemologia da diferença – que

postulam argumentos, se não contrários, pelo menos diferentes, sobre esta discussão da

narrativa. Desta maneira, ao contrário de uma aparente confusão, ou crise epistemologia da

história – para os mais pessimistas – podemos perceber sim, uma maior autocrítica da

produção historiográfica. Em que as dúvidas, questionamentos, preocupação, ponderação,

ressalvas e críticas compartilhadas ou promovedoras de discordâncias entre diversas

tendências, ou até numa mesma tendência teórica, não deveriam ser interpretadas como algo

ruim. Pelo contrário, deveriam ser vistas como algo profícuo para a compreensão e

“invenção” do conhecimento histórico. Mesmo porque, até os modelos “econômico

marxista”, “demográfico ecológico francês” e da “cliometria à americana”, que normalmente

generalizamos, caracterizando-os como pertencendo a um mesmo paradigma, acabam eles,

inclusive, possuindo diferenças, tanto entre si, pois se não as houvesse, não existiriam razões

para distingui-los, como também dentro de um único destes modelos.

Assim, inconcluindo – se nos for permitido o neologismo –, estas incertezas e dúvidas

concernentes ao debate relacionado à narrativa historiográfica, não devem ser encaradas de

maneira depreciativa. Muito pelo contrário, às vezes o excesso de certeza e clareza sobre um

assunto pode ofuscar sua percepção mais esmiuçada. Talvez, seja mesmo interessante, ou até

necessária, haver certa sombra de dúvidas, para se tentar compreender ou, simplesmente,

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53

perceber a multiplicidade de opiniões sobre este mesmo assunto, principalmente para uma

epistemologia que se pretende da “diferença”.

Acrescentado a tudo isso que foi dito até aqui, talvez a própria diferença e

dessemelhança, já não provoquem – ou, não deveriam provocar – mais tantas celeumas,

sobretudo, em tempos de pós-modernidade, quando não é mais tão coerente pensar e

interpretar o mundo dentro de uma única maneira estruturalista e universalizante, porque

quando Foucault assinalou no prefácio a publicação americana do Anti-Édipo que:

Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos – e significantes – com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época149.

Seguramente, o autor, estava preocupado em anunciar a importância não apenas

teórica, mas, principalmente política desta obra, com isso, estava ele comprometido e

interessado em liberar a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante150;

149FOUCAULT. Michel. Preface, in DELLEUZE, Gilles; GATTARI e Félix. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, p. XI. 150Idem, p.XIV.

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IV FLUXO

Os artesãos da memória nas tramas e retramas da história

A história e o produto mais perigoso que a química do intelecto já elaborou

Paul Valéry

No alvorecer de uma manhã de primavera, mais exatamente no dia 6 de Outubro de

1978, uma parcela da população da cidade de Cáceres é acordada às 6 horas pelo apito da

serraria Castrillon151, apito este que por mais de cinqüenta anos, teve no cotidiano desta

cidade, a importância de medida do tempo e despertador/relógio público que, no entanto, há

algum tempo deixou de funcionar. Além da excepcionalidade deste som, também se

perceberam outros sons – show de festim e fogos, músicas – não presentes no dia-a-dia do

cacerense. Em muitas casas, mães, quando não tinham empregadas, estavam terminando de

engomar as melhores roupas, para todo mundo ficar bonito, e ir da forma mais apresentável

possível, tanto para o culto de ação de graças152, para iniciar às 07h30min, em todos os

templos religiosos da cidade, quanto para o desfile e outras tantas comemorações e atividades

festivas previstas para aquele dia. As meninas, arrumadas quase como bibelôs, com laçinhos,

trancinhas, sapatinhos... As mais velhas já querendo vestir-se como mulher, e tendo que travar

a difícil negociação com as mães, do que pode ou não ser usado. – Minha filha você vai a um

culto, por que não usa a roupa que eu passei..., seu pai não vai deixar você usar esta blusa.

Alguns meninos não vêem a hora de a mãe os deixar usar calças compridas, pois acham que

bermuda é coisa de criança. Os rapazes mais vaidosos ficam olhando para o vinco da calça

boca de sino, bem engomada, sem esquecer-se de observar os sapatos, tão brilhosos quanto os

cabelos cheios de gel. O pai, com longas costeletas, já se dirige para sala, onde se encontram

alguns outros homens, tios, primos, irmãos, ou até um amigo que veio de outra cidade para as

comemorações, sempre olhando para o relógio e pronunciando o clássico comentário a

propósito da demora de uma mulher para se arrumar. Algum filho que também está na sala,

ouve a conversa, e vai assim internalizando o pensamento/vocabulário/comportamento social

masculino, ensaiando-os, praticando-os repetidas vezes até que estarão completamente

absorvidos, locupletando-se, assim, com esta fala peculiar e apropriada à condição de homem,

151 Luizmar Faquini. EM DUZENTOS ANOS, A MAIOR FESTA. Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº.354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 152 Idem.

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55

vivendo em uma sociedade brasileira ainda bem impregnada por certos aspectos patriarcais153,

de teor machista.

Em dia tão solene como este não era importante apenas se vestir bem. Haveria sempre

a necessidade de se comportar da forma mais condizente possível com o ambiente. Essa era a

recomendação constante das mães para seus filhos, sobretudo, para as mocinhas que iriam à

noite ao baile do Esporte Clube Humaitá – boa oportunidade para bem impressionar futuros

pretendentes ao simples namoro e paquera, ou até algo mais sério, como noivado e casamento.

No culto de ação de graças, realizado nos mais diferentes templos religiosos da cidade,

tanto padres, como pastores, sabem que neste dia não basta preparar apenas um discurso de

cunho religioso. A data é historicamente importante. Talvez seja necessário/recomendável

fazer às vezes de historiador e versar sobre alguns assuntos emblemáticos da história

cacerense, principalmente, quando estes assuntos misturam poder secular e religioso.

Pouco depois do culto, já se encontravam presentes, na Praça Barão do Rio Branco,

um significativo número de pessoas à espera da próxima solenidade, prevista para as

8h30min, tendo como principal ato simbólico, a substituição do Pavilhão Nacional, que no

mastro municipal ali presente, permanecia tremulando a quase um ano154. Mais sérios e

compenetrados, perfilados na peculiar e corriqueira simetria das disciplinas155 e exercícios

marciais, estavam os militares do 66º BIM (2º BFron), da banda de música, do pelotão da

Marinha de Guerra da base naval de Ladário156, prontos para efetuarem o desfile após a troca

da bandeira e da fala das autoridades presentes.

O primeiro a fazer uso da palavra foi o prefeito Ernani Martins, seguido do então

presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – IHG/MT, Luís-Philippe

Pereira Leite. Além das formalidades que sempre estão presentes neste tipo de discurso –,

pois a “linguagem de semana,” expressão tão bem cunhada por Guimarães Rosa, talvez não

fosse a mais apropriada para este momento –, também existia outra característica que

permeou a fala de ambos, ou seja, a preocupação em externar, da melhor forma possível, a

importância daquele momento histórico. De ressaltar, a partir de certos exemplos da história,

a magnitude e relevância de se saber e transmitir às futuras gerações estes conhecimentos, que

mesclavam e oscilavam entre informações sobre as inúmeras dificuldades e agruras 153 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 34ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998. 154 Cáceres faz Jogral do Tratado de Madri para comemorar seu bicentenário. Cuiabá: Jornal EQUIPA 22/02/1978, ano 14, N.1569 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 155 FOUCAULT, Michel. Os Corpos Dóceis In: FOULCAULT. M. Vigiar e Punir. 16ª edição. Petrópolis RJ: Editora Vozes, 1997 Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979. 156 Luizmar Faquini. EM DUZENTOS ANOS, A MAOIR FESTA. Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº. 354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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encontradas pelos pioneiros, e o ufanismo bem próprio de um país que ainda vivia sob um

regime militar, onde existia todo um conjunto de práticas discursivas e não discursivas –

desfiles157, slogans158, imagens159 – que impregnavam sistematicamente a vida da população.

Enfim, solenidade cívico-pedagógica onde o orgulho e exaltação na fala de oradores

conseguem se irmanar às expectativas de alguns, possibilitando momentos de emoção e

alegria160, ou simultaneamente, à quase total incompreensão das crianças, que escutam todo

aquele palavrório desconhecido, e, ainda assim, devem permanecer quietas, sob pena da

imediata repreensão, ou mesmo de futuros castigos.

Mas o que estaria ocorrendo de tão excepcional em Cáceres, para o apito da serraria

Castrillon ter sido ativado? Para, logo tão cedo, parte da população ter acordado – inclusive

aqueles que nem têm este hábito –, e, não terem vestido as roupas do dia-a-dia, e/ou

abandonado, em muitos momentos, a linguagem de semana? Por que a presença de tantas

autoridades civis, militares, eclesiásticas? Qual a razão da pressa de algumas pessoas que

moram no centro e, que, dificilmente saem dessa comuníssima bitola, para pegarem carona e

conseguirem chegar a tempo na inauguração – em um bairro mais pobre – da escola de 1º

grau do Jardim Padre Paul, prevista para iniciar às 10h30min? Que motivos e interesses

157 Em desfiles – como o sete de setembro –, em comemorações alusivas à tão propalada pelo governo militar, “revolução de 64”. 158 Talvez entre os diversos slogans criados pelo regime militar, o mais famoso seja: Ame-o ou deixe-o ou, ainda, no reaproveitamento da frase positivista existente na bandeira nacional – ordem e progresso –, frase utilizada quase como profissão de fé, contra as possíveis transgressões de uma juventude interpretada pelo governo como transviada. 159 A imagem de pleno e constante desenvolvimento propiciada pela idéia do milagre econômico, mesmo que na prática este tenha se concentrado entre os anos de 68 a73, contudo, o governo militar sempre quis disseminar esta idéia para todos os 21 anos de ditadura, através da publicização das obras construídas pelo regime, como Itaipu, a ponte Rio Niterói, ou, a partir de todo o estado de bem estar existente em decorrência da ampliação, tanto da classe média, quanto do seu poder aquisitivo, simbolizada pela aquisição de bens domésticos, mas, sobretudo, do carro zero; a este respeito, como também, de todo estes slogans ou considerações sobre a “revolução de 64” ler: GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. FAUSTO, Boris, História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1995; SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988; ALMEIDA, Maira Hermínio Tavares e ; WEIS, Luz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lília Moritz. História da Vida Privada no Brasil, vol. 04. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Em Mato Grosso, por exemplo, temos neste período a construção do Estádio José Fragélio – popular “Verdão" –, do novo terminal rodoviário de Cuiabá, durante o governo de Garcia Neto, o qual a partir da mesma dinâmica discursiva do governo federal alardeava e propagandeava a importância daquela obra, para melhor comportar o fluxo migratório proveniente do tão propalado desenvolvimento econômico do país, ou, fundamentalmente, no caso de Mato Grosso, da intensificação das correntes migratórias durante esta década de setenta, principalmente nos dois eixos referentes às rodovias Cuiabá-Santarém e Cuiabá-PortoVelho. Já na década de oitenta, num período que, Elio Gaspari entende como de derrota para ditadura, pode ser destacada a atitude e influência dos militares em gerar toda uma crise institucional que, provocou a demissão do presidente da estatal Embrafilmes – principal financiadora do cinema nacional até o início dos anos 90 – em virtude do filme Pra frente, Brasil (1982) dirigido por Roberto Faria. Tudo porque este filme mostrava a tortura e a repressão por trás do euforismo relacionado à conquista da Copa de Setenta e do tão propalado milagre econômico, porque este órgão, para os militares, tinha a função de construir a partir da cinematografia uma visão otimista do Brasil. 160 Luizmar Faquini. Parabéns Cáceres: Hoje é seu Grande dia! Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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influenciaram a vinda de autoridades do Estado, como o presidente do Instituto Histórico e

Geográfico de Mato Grosso, Luis-Phelippe Pereira Leite, do atual governador do Estado

Cássio Leite de Barros, do último governador eleito Frederico de Campos, do secretário de

Educação Salomão Baruk?161 Por que aquela constante menção feita nos discursos sobre a

importância histórica deste município? O fato é que, algo de diferente e importante estava

acontecendo. Sim, algo de extemporâneo realmente estava ocorrendo. Todo esse conjunto de

práticas discursivas e não discursivas existentes nos enunciados e rituais simbólicos, iniciados

já nas primeiras horas do dia, eram alusivas às comemorações do bicentenário da cidade de

Cáceres, por isso, a reincidência nas falas, do traço histórico.

Inauguração! Esta é definitivamente uma palavra que, acompanhada de toda sua

significação, muito agrada à classe política. Talvez mais importante para um político do que a

circunstância da inauguração de uma obra seja o momento em que vence um pleito eleitoral.

Entretanto, é muito provável que para Ernani Martins, então prefeito na época – pelo menos,

no que se refere ao cargo de prefeito –, a alegria de vencer um pleito eleitoral não fizesse

parte de sua realidade política, pois Cáceres, desde 4 do junho de 1968, pela lei federal

5449162, havia sido declarada área de Interesse da Segurança Nacional, portanto, os prefeitos

eram escolhidos, não eleitos. Neste sentido, pode bem ser que a alegria da inauguração de

uma obra fosse motivo de grande entusiasmo para o prefeito em questão. E assim o foi, às

10h30min, perante a população do então recém criado bairro do Jardim Padre Paulo163, e

outras pessoas de diferentes partes da cidade que vieram ver a inauguração da escola, falou

com entusiasmo e com a costumeira prática discursiva da política profissional, onde as obras e

atos governamentais ganham um relevo sempre enaltecedor, constituído pela argamassa

enunciativa de muitos adjetivos.

161 Luizmar Faquini. EM DUZENTOS ANOS, A MAOIR FESTA. Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº.354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

162 Isto já em um período mais duro e repressor do governo militar, ou no que Elio Gaspari, interpreta e nomeia como a ditadura escancarada; GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; sobre este período de ditadura mais acirrada, com maior repressão, mas também, palmilhado por resistências, seja na cidade, ou mediante a guerrilha rural, tem-se uma vasta produção cinematográfica, da qual se pode citar como principais exemplos, Lamarca (1994) do diretor Sérgio Rezende, e o polêmico – principalmente pela antipatia que causou em parte da esquerda do país – O que É isso Companheiro (1997) dirigido por Bruno Barreto. Este filme, apesar das licenças artísticas, é baseado na obra homônima escrita por Fernando Gabeira. Além disso, o diretor se defende das críticas desta esquerda, curiosamente, também utilizando um argumento da esquerda, ou seja, alega que não queria fazer um filme panfletário, o que considera má dramaturgia, assim, o mesmo acredita e defende a existência de uma arte não ideológica, da mesma forma que Marx e Hegel criticavam a ideologia presente na produção dos socialistas utópicos em A Ideologia Alemã. 163 Luizmar Faquini. EM DUZENTOS ANOS, A MAOIR FESTA. Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº.354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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A imprensa escrita local procurou cobrir e pintar o quadro das cenas desta

inauguração, a partir de palavras tão entusiasmadas quanto às proferidas pelo prefeito:

Aquela obra, fundamental e ampla, foi construída pela municipalidade e dispõe de totais condições de atendimento à população estudantil. O bairro, com muito amor foi idealizado, construído e assistenciado (sic) pelo atual e dinâmico prefeito Ernani Martins, desejoso de ver totalmente abrigada a classe pobre da cidade (...)164

O cidadão cacerense alfabetizado – ou apenas preocupado em demonstrar ser um

homem culto, de hábitos civilizados – que tivesse o dinheiro, três cruzeiros, e interesse de ler

o jornal local, para consultar as notícias, ou simplesmente para ver o cronograma de todas as

comemorações daquele dia e seus respectivos horários, logo ao abrir as páginas amarelas do

Correio Cacerense, iria perceber a importância que aquele meio de comunicação dera para os

referidos eventos, com artigos de página inteira, preocupados em esmiuçar os recônditos mais

pretéritos da história de Cáceres, com todas as glórias e dificuldades, com todo o entusiasmo

pelas conquistas do presente e das perspectivas futuras. Ainda neste mesmo dia, o jornal

produziu um caderno especial em comemoração ao bicentenário, com um artigo inicial escrito

por Natalino Ferreira Mendes e, também, com várias homenagens prestadas à cidade de

Cáceres, realizadas por diferentes segmentos da iniciativa privada, por candidatos a deputado

federal, estadual e ao senado, e ainda pelo poder legislativo e executivo local.

De forma geral e preponderante, o conteúdo destas homenagens, construído a partir da

valorização da honra, da ordem, da tradição, do progresso e dos recursos naturais da cidade de

Cáceres, pode ser resumido e bem entendido, em apenas duas destas homenagens:

Ao dinâmico e ordeiro povo cacerense e todos aqueles que de coração se fizeram filhos desta terra, enviamos nosso cumprimento pela passagem do Bicentenário desta cidade, orgulho do Norte de Mato Grosso. Votos do pecuarista e candidato a deputado estadual Aldo Borges – n 1221 – ARENA. 165 Situada no cruzamento da rodovia BR-070 com o rio Paraguai, próxima a foz dos rios seputuba, cabaçal e Jauru e quase a beira do pantanal mato-grossense; dotada de terras férteis, matas e abundantes águas, Cáceres baseou desde logo a sua economia na agropecuária e no extrativismo animal e vegetal. (parte das homenagens prestadas pelo prefeito Ernani Martins). 166

164 Idem, 165 Caderno especial. Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 166 Idem.

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No artigo elaborado pelo professor Natalino, dentre as várias questões abordadas sobre

a cidade e seu povo, se destacam a intenção de ressaltar a beleza e riqueza natural, o ambiente

aprazível para se morar com gente trabalhadora e ordeira e, principalmente, a importância

histórica da cidade de Cáceres. É bem provável que houvesse neste artigo, o mesmo interesse

argumentativo das homenagens, ou seja, produzir uma atmosfera comemorativa de regozijo

coletivo, mesmo que a característica estilística de sua escrita devesse seguir um padrão

diferente. De probidade intelectual balizada nas informações do jargão memorialista, em que

as datas são supervalorizadas e os acontecimentos superestimados. Para assim, dentro de uma

relação de poder e saber, produzir um determinado efeito de verdade, pois na época, Natalino

Ferreira Mendes, era simultaneamente Secretário de Administração Municipal e Presidente da

Comissão dos Festejos do Bicentenário, não bastasse tudo isso, gozava de boa reputação

perante a sociedade cacerense, além de tudo, era considerado intelectual de douto

conhecimento sobre assuntos da história local.

Só para se ter uma noção do significado desta Comissão dos Festejos do Bicentenário,

basta dizer que a mesma, fora criada pelo decreto lei municipal nº. 97, publicado ainda em 29

de agosto de 1977 e, imediatamente, no dia seguinte, o então secretario de Administração

Municipal e presidente desta recém-criada comissão, Natalino Ferreira Mendes, encaminhara

um oficio167 para o Secretário de Indústria, Comércio e Turismo, solicitando-lhe os nomes dos

dois integrantes que aquela secretaria estadual iria nomeia para participar da respectiva

comissão. Além de toda essa antecipação e preocupação em organizar estes festejos, ainda

pode ser destacada, a ida de parte desta comissão para Cuiabá em dezembro de 1977, descrita

da seguinte maneira pelo boletim informativo da SEDMAT:

Cuiabá – (SEDMT) – Com o objetivo de elaborar a programação dos festejos comemorativos do bi-centenário da cidade de Cáceres, cuja comissão organizadora presidida pelo Secretário de Administração Municipal, Natalino Ferreira Mendes e composta por lideres comunitários, a comissão esteve reunida naquela cidade, no último dia 10, com o Secretário David Balaniuc, da Indústria, Comércio e Turismo e com a Diretora de programação da TURISMAT, , Marili Bodatein, que representava o Governador do Estado. Ao fim da reunião ficou praticamente definido o programa a ser cumprido, e que iniciar-se-á a zero hora do dia 1 de janeiro de 1978, na Praça Barão do Rio Branco, com um show pirotécnico e inauguração do símbolo luminoso do bi-centenário.168

1Ofício n.º 0010/521 – 30, de setembro de 1977 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 168 NOTÍCIAS boletim diário – boletim informativo nº.676, 13/12/77 SEDMAT – Departamento de Divulgação do Estado de Mato Grosso – Mato Grosso Estado Solução, governo de Garcia Neto. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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60

A partir da grande quantidade de eventos e solenidades realizadas durante todo o

transcorrer deste ano de 1978, poder-se-ia concluir que o programa engendrado e definido

preliminarmente nesta reunião, era de grande interesse, tanto para o poder municipal, quanto

para o governo estadual, em virtude das oportunidades de: a partir destas comemorações e

inaugurações, construir dentro de uma cultura dos desfiles169 e valorização de datas cívicas,

uma empatia, ou, mais propriamente, uma noção/sensação de comunhão entre o povo e a

classe política.

Realmente, neste ano do bicentenário, não faltaram oportunidades para a política

profissional elaborar estes momentos solenes que buscam operacionalizar um estado de

integração entre o poder político e a população, e assim, procurar construir uma

governamentalidade170, em que o poder político institucional se pretende ser percebido com os

mesmos interesses da população. Tudo isto, alinhavado pela política de funcionamento de

uma comissão que tinha nos seus quadros, tanto membros do governo, quanto representantes

da sociedade civil organizada e da iniciativa privada. O que propiciava a impressão da

integração de diferentes segmentos da sociedade cacerense para atingir um objetivo em

comum.

Muitas foram as solenidades que buscaram construir esta cumplicidade entre poder

político de estado e interesses da população. A impressão que constantemente se tinha, era de

que aquelas comemorações estavam apenas relacionadas ao resultado do imediato

atendimento dos anseios mais urgentes da população, efetuado pelo poder político municipal.

De repente, parece que uma sede de história havia se instaurado nos interesses do cacerense.

As crianças que tinham acesso à cultura escolarizada estavam, agora, interessadas em

ouvirem, com muito orgulho, as longas histórias de superação e heroísmo. Aliás, nem se

incomodavam com os discursos cheios de palavras estranhas que poucos entendiam;

inclusive, alguns adultos que, para não passarem como ignorantes, ou seja, dizerem que o rei

estava nu; acabavam fazendo cara de entendidos no assunto. Sem falar nos que, num

rompante pedante, reproduziam o uso destas palavras. Palavras, frases feitas como:

169 Esta cultura dos desfiles constituía-se como uma importante prática social durante o regime militar, sobretudo porque a mesma possibilitava – a partir de uma concepção mais ufanista da história – a construção de uma sensação de pertencimento, seja no que se refere a uma visão mais local, relacionada a uma suposta e pré-existente identidade cacerense, seja na constituição mais ampla dos traços e características agenciadas no discurso do governo federal, para sedimentação de uma memória patriótica, também, com um forte apelo identitário. Assim, existe certa cumplicidade e, mesmo, complementaridade nestes discursos da exibição/explicitação da suposta identidade cacerense com o discurso patriótico (identidade nacional). É como se a mistura destas práticas discursivas e sociais – se coagulasse – em uma mesma substância enunciativa. 170 FOULCAULT. Michel. Governamentalidade, In: FOUCAUT, M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.

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condignamente o magno acontecimento; pavilhão nacional; perlustrou; pálio sagrado sob o

qual palpita; augustos; escol; exoramos as bênçãos de Deus171; até do nome dum tal francês:

Hercule Forence172, sem falar, no brocado em latim: “JUSTITTIA ET PAX

OSCULATAESUNT173”; o importante é que as mesmas foram pronunciadas por um homem

de muito conhecimento – Luís-Philippe Pereira Leite –, e, então, era de bom tom pronunciá-

las.

Tanto as palavras e frases, quanto o nome do francês, ou ainda o termo em latim,

foram pronunciadas por Luís-Phelippe no discurso: Fronteiro, da Pátria, cujo título

demonstra bem suas intenções enunciativas de utilizar o termo Fronteiro no masculino, ao

lado de Pátria, para assim ser mais fiel à documentação do século XVIII e, fundamentalmente,

estabelecer esta relação direta entre a fronteira resguardada e defendida para (e pela) pátria.

Aliás, essa vai ser a tônica de todo o discurso, sempre preocupado em externar – com

adjetivos rebuscados, ou mesmo utilizando-se do latim, numa prática bem costumeira no

IHGMT – a importância, tanto dos tratados e seus vestígios matérias, no caso o marco do

Jauru, quanto do desempenho militar na defesa desta rica e fértil fronteira da Pátria.

Destacado, pois, no tempo e no espaço, o sentimento de fronteira encarnado pela gente cacerense que vigia as nossas lindes com o mais nobre sentimento de brasilidade, guardando para a Comunhão Nacional a mais bela, a mais vasta e a mais rica faixa de terras de que tanto nos orgulhamos e honra-me apresentar-lhes as insígnias da Ordem de São Bento de Aviz que faz 150 anos – luziram no peito de um antepassado denodado, o meu trisavô João Pereira Leite, figura de escol da milícia portuguesa e que durante muitos anos, nos primórdios do Século XIX, comandou o destacamento de Vila Maria que em nossos dias, bem se pode dizer é o 2° Batalhão de Fronteiras e agora o 66° Batalhão de Infantaria motorizado174.

Porém, mesmo essa erudição, ou, sobretudo, esse preciosismo quase positivista de

ser fiel à documentação, utilizando em certos momentos a linguagem contemporânea aos

documentos, não o impedem de efetuar anacronismos, como querer imputar às pessoas que

viveram ou, principalmente, produziram esta documentação, a capacidade de já terem este

espírito patriótico em relação ao que seria muito futuramente o Brasil. Seu próprio Trisavô,

como ele mesmo escreve, era muito mais um elemento da milícia portuguesa, do que um

indivíduo identificado com a colônia que depois se torna um país. Talvez seja este o maior

dilema e a grande dificuldade de se cunhar a identidade de um país que foi colônia, pois ao

171 Luís-Philippe Pereira Leite. “Fronteiro, da Pátria”. Alocução proferida no bi-centenário. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 172 Idem. 173 Idem. 174 Idem.

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mesmo tempo em que se tem que construir uma identidade nova para o recém criado Estado

Nação, não se consegue desvencilhar da memória da metrópole, sobretudo, quando se foi

colônia por mais de trezentos anos.

Assim, é bem provável que Luís-Philippe, como um homem bem próprio do seu

tempo, ou seja, imerso em uma cultura bem ufanista e, sobretudo, presidindo uma instituição

como o IHGMT, acrescido de seu deliberado interesse em enaltecer os méritos militares de

seus ancestrais, tenha simplificado um pouco esta relação do ser fronteiro, haja vista que

inicia este mesmo discurso, afirmando:

Quando o Tenente de Dragões Antônio Pinto Rego de Carvalho, de ordem do ínclito Capitão General e Quarto Governador da Capitania do Mato Grosso, Luiz de Albuquerque Mello Pereira e Cáceres, veio erigir o distante posto fiscal em Vila Maria do Paraguai, já encontrou no Arraial 161 pessoas além do alinhamento das ruas, habitações e a pequena capela em honra de São Luiz, Rei da França, eleito Patrono e cuja imagem veneranda a cria entronizada dois anos após175.

No entanto, acaba não mencionando que grande parte destas 161 pessoas, era

proveniente da província de Chiquitos, ou seja, índios castelhanos desertados para esta parte

da colônia portuguesa, inclusive, incentivados pela política portuguesa de Luiz de

Albuquerque176, a permanecerem no então novo estabelecimento fundado e denominado como

Vila Maria do Paraguay, que só vai merecer efetivamente o designativo de vila, no século

XIX, quando passa a ter casa de câmara.

Assim, como as intuições, pelo próprio nome, se caracterizam por buscarem instituir

valores. Tudo leva a crer que, o presidente de uma instituição autorizada/competente como o

IHGMT, preocupada normalmente com a delimitação de uma memória, teria sim, a intenção

de institucionalizar uma memória autorizada, e em perfeita simbiose com os interesses de um

regime militar paranóico177 com a defesa e delimitação das fronteiras ideológicas e também

175 Idem. 176 Termo de fundação do novo estabelecimento a que mandou proceder o IIn.º e Exm.º Srº Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, Governador e Capitão General desta Capitania de Mato Grosso, denominado Vila Maria do Paraguay. Cópia de um documento original do Arquivo Ultramarino de Lisboa. Fundo: Documento Avulso sobre Mato Grosso – Caixa 18, nº. 1162. FUFMAT/NDHR – Microficha 273. Neste documento que, pode ser denominado muito bem como a ata de fundação do estabelecimento de Vila Maria, são encontradas, de forma direta e explicita as recomendações de Luz de Albuquerque a respeito da política portuguesa de ocupação dos espaços, não apenas pela estratégia militar da defesa fixa das fronteiras, mas, também pela negociação ou, sobretudo, pela incorporação da população (...) para com efeito fundar, erigir e consolidar uma povoação civilizada aonde se congregasse todo o mayor numero de moradores possível compreendidos todos os cazaes de índios castellanos proximamente desertados para esse domínio portugueses da Província de Chiquitos que fazem o numero de 78 indivíduos de ambos os sexos a que juntando-se todo o outro numero das mais pessoas congregadas para o dito fim faz o total de 161 individuos de ambos os sexos(...) 177 Pode-se dizer que em muitas circunstâncias o regime militar era paranóico pelo fato de – talvez em decorrência da ignorância de alguns censores – perseguir e proibir algo que não tivesse nenhuma conotação de

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geográficas, uma vez que Cáceres, neste período, era área de interesse para a segurança

nacional. Desta forma, é perfeitamente compreensível entender não só porque um pesquisador

com tamanha erudição tenha simplificado demasiadamente a complexa relação do ser

fronteiro, estabelecida na prática de governo da coroa portuguesa e espanhola nesta parte

colonial disputada e ao mesmo tempo negociada pelas mesmas; como também, porque esta

fala e suas obras tiveram tanta aceitação na época, influenciando decisivamente a produção de

Natalino Ferreira Mendes a respeito da história de Cáceres, ou mesmo de todo o fluxo

discursivo produzido, para (e pelas) comemorações ocorridas no ano do Bicentenário.

Entre as várias comemorações ocorridas no transcorrer deste ano, podem ser

enumeradas como principais ou que, pelo menos, mereceram maior atenção da comissão, as

seguintes:

1 - queima de fogos à zero hora do dia 1 de janeiro, em homenagem ao início do primeiro dia

deste tão importante ano, e da inauguração, na Praça Barão do Rio Branco, do símbolo

luminoso alusivo às comemorações do bicentenário, como também, da renovação do mastro

com a bandeira nacional, que iria permanecer e simbolizar, durante todo aquele ano, a guarda

do povo cacerense por um tão relevante símbolo da nação178

2 - a assinatura do diploma alusivo ao Bicentenário, conferido à primeira criança nascida em

1978, realizada pelo prefeito Ernani Martins 179

3 - ainda em janeiro, mais exatamente no dia 13, pode ser destacada a solenidade em

comemoração aos 228 anos do tratado de Madri, com várias apresentações culturais, dentre

elas, um jogral, em que temas e acontecimentos da história de Cáceres foram recitados,

principalmente, quando estes se relacionavam ao marco do Jauru e ao Tratado de Madri180, do

qual o marco era a última peça que restava, sem falar, em todo o simbolismo existente no ato

crítica ao regime, como, por exemplo, proibir a obra: Vermelho e o negro, insinuando existir aí um elemento do comunismo. Também pode ser acrescentada a toda esta psicose política, o fato de que, ao contrário do que muitos pensam, o regime perseguiu músicas que hoje são nomeadas como bregas, e não apenas os três cavaleiros do protesto, ou seja, Gil, Caetano e Chico, os quais deliberadamente resolveram fazer música de contestação, em muitos momentos os militares proíbem a veiculação fonográfica ou, mesmo, a gravação de alguns álbuns de música brega, por considerarem que as mesmas vão contra uma lógica correta de vida, pautada na ordem e no regramento, um bom trabalho a respeito desta perseguição é a obra: ARAUJO, Paulo Cezar de. Eu Não Sou Cachorro (Música Popular Cafona e Ditadura Militar). São Paulo: Record, 2003. 178 Convite, efetuado no dia 26 de dezembro, pela Comissão dos Festejos do Bicentenário, à população cacerense – “Temos a satisfação de convidar as autoridades e o Povo Cacerense para inauguração do DISTINTITIVO LUMINOSO DO BICENTENÁRIO DE CÁCERES, dia 1° de Janeiro de 1978, à Zero hora, na Praça Barão do Rio Branco, desta cidade”. Correio Cacerense 29/12/1977, ano I n 127, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 179 Cáceres em festa. Cuiabá: Jornal EQUIPA, p. 6, 22/02/1978, N. 1569, ano 14, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 180 Cáceres faz Jogral do Tratado de Madri para comemorar seu bicentenário. Cuiabá: Jornal EQUIPA 22/02/1978. Ano 14, N. 1569, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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da primeira remoção da bandeira nacional, em que participaram um representante do exército

brasileiro e o funcionário mais antigo da prefeitura de Cáceres, o Sr. Manoel F. F. Cuiyabano.

4 - já mais próximo às comemorações de outubro, no dia 1 deste mês, ocorreu, na Praça da

Cavalhada, a Noite Folclórica, com as seguintes previsões de apresentação: Show musical

com o conjunto de Namy Orives; Cururu pelo grupo folclórico da Cachoeirinha; dança

folclórica realizada pela Escola Estadual de 1º grau Dr. José Rodrigues Fontes; dupla de

violeiros; Conjunto de Catireiros adultos de São José dos Quatro Marcos; Siriri efetuado pelo

grupo folclórico da Cachoeirinha e a Catira mirim, apresentada pelo Conjunto de São José dos

Quatro Marcos181.

5 - também pode ser destacado, o Baile das Debutantes do Bicentenário, ocorrido no Esporte

Clube Humaitá, no dia 15 de julho, baile que contou com a presença de ilustres figuras da

política mato-grossense, tendo como Patrono o Governador do Estado, Dr. José Garcia Neto,

acompanhado da primeira dama, Maria Ligia de Borges Garcia, e como Padrinho o Prefeito

Municipal Ernani Martins, acompanhado da primeira dama, Maria de Lurdes Costa

Martins182.

6 – ou ainda toda a preocupação de correlacionar o momento de fundação de um novo clube

na cidade – Cáceres IATE CLUBE – ao bicentenário183.

7 - até mesmo em assuntos e festividades, aparentemente bem distantes desta questão mais

histórica, como a exposição agropecuária de Cáceres, poderia ser observado o interesse de,

também, englobá-la às programações festivas deste ano:

Prefeitura Municipal de Cáceres – Comissão de festas do Bicentenário para maior brilhantismo da XIV Exposição Agropecuária e Industrial de Cáceres, ano em que nossa terra completa seus 200 anos de fundação: Participe – dias 23 a 30 de Julho de 1978184.

Acrescentada a predisposição política, e de todo o trabalho de planejamento

copiosamente efetuado por Natalino Ferreira Medes, quase nos moldes da burocracia

kafkaniana185, ainda existia um forte interesse de Luis-Philippe Pereira Leite, em realizar estas

181 Ernani Martins. Programação de 200º do aniversário de Cáceres 28/090/1978. Correio Cacerense, nº. 349, ano II. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 182 Lembrança do Baile das Debutantes do Bicentenário de Cáceres. 16/07/1978, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 183 Luizmar Faquine. Cáceres IATE CLUBE fundado no primeiro dia do bi-centenario. Correio Cacerense, nº.130, ano I, 30/01/1978, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 184 Correio Cacerense, 18/07/1978, ano I, n°. 278, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC 185 Kafka, Franz. O Castelo. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras: 2000.

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comemorações e divulgar seu último livro, pois o mesmo, em oficio encaminhado ao prefeito

Ernani Martins, vai se expressar da seguinte forma:

Meu caro Ernani Martins, (...) Pelo nosso comum amigo, Benedito Botelho, envio-lhe nove telas tamanho 40x50, constituindo a Galeria dos Capitães - Generais de Mato Grosso para a exposição de nosso bi-centenário, conforme lhe falei rapidamente na noite de sexta-feira ultima, na solenidade da Universidade Federal de Mato Grosso. É meu pensamento que os quadros enviados fiquem em diferentes salas do prédio que você escolher. Pretendo ir aí para alguma orientação a respeito, podendo, inclusive, mais próximo de outubro fazer alguma prelação explicativa para os jovens estudantes, mediante revezamento destes e das respectivas turmas para diferentes níveis. A Galeria é única no gênero e consegui montá-la com muito trabalho pelo que a sua importância cresceu de vulto.(...) Meu editor vai remeter diretamente a você duzentos exemplares do meu livro “Vila Maria dos meus maiores”, em final impressão, para você distribuir as escolas em primeiro lugar como fez com os outros livros.186

Neste oficio, pode ser observado muito bem, qual é a concepção de história do então

presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, ou ainda de todo um gênero

literário e historiográfico187 produzido a partir deste paradigma, que privilegia o estudo dos

grandes homens e seus feitos, onde as cidades aparecem apenas como produto das relações

destes homens poderosos, que as fundam para trazer o progresso e a civilização. Também é

perceptível neste caso, a preocupação em divulgar e disseminar esta determinada visão da

história, sobretudo, mediante a oportuna possibilidade de incutir na mente na classe estudantil,

esta respectiva concepção de história, a partir da propedêutica prática pedagógica das

prelações educativas.

Bom... Abandonando a observação, por enquanto, destes meandros da burocracia

governamental, e, de todos os interesses que a ela se ligam, poder-se-ia dizer que agora, far-

se-á necessário e interessante, voltar à narrativa de alguns acontecimentos que, por esta

burocracia foram antecipadamente planejados, os quais estavam ocorrendo neste dia tão

movimentado.

Um pouco antes do tão esperado desfile, em frente ao prédio da antiga prefeitura de

Cáceres, ocorreu um ato de extremo simbolismo. O Dr. José Rodrigues Fontes, figura

eminente da sociedade cacerense, gozando de grande prestígio perante o cenário político

local, pois já havia sido prefeito do município por algumas vezes188, recebera condecoração de

186 Ofício Cuiabá, 31 de Julho de 1978, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 187 ARRUDA, Gabriel Pinto de. “Um trecho do oeste brasileiro". Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, 1941-1943. LEITE, Luís-Philippe Pereira. O engenho da estrada real. Cuiabá: Oficina gráfica da Escola Técnica Federal, 1976. LEITE, Luís-Philippe Pereira. Vila Maria dos meus maiores. São Paulo: Vaner Bícego, 1978. LEITE, Luís-Philippe Pereira. Um médico em Jacobina. São Paulo: Engenho, 1978. 188 Inclusive durante a vigência da lei federal 5449, na qual Cáceres era considerada Área de Interesse da Segurança Nacional, o que leva a perceber que, o mesmo não tinha prestigio apenas no município, mas tinha

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honra ao mérito do Estado de Mato Grosso, do então grão-mestre da Ordem do Estado de

Mato Grosso e governador Cássio Leite de Barros. Este ato possui toda uma intencionalidade

de reiterar, a partir de um simbolismo meticulosamente construído, a importância e relevo

deste personagem para história de Cáceres. Dois dias após esse ato público, o jornalista e

redator, responsável pela elaboração do Correio Cacerense, se referira ao acontecimento da

seguinte maneira:

O Dr. José Rodrigues Fontes foi cumprimentado em pronunciamento do secretário de Educação de Mato Grosso Dr. Salomão Baruki, que ressaltou os merecimentos e justiça da honra prestada a um dos velhos guerreiros na defesa dos mais elevados interesses do povo cacerense. O agraciado foi longamente cumprimentado pelo grande número de autoridades que se encontravam no palanque oficial. Ato que agradou a todos.189

Esta fala do jornalista estava em perfeita consonância com os discursos emitidos nestes

últimos dias na cidade. Proferidos pelo prefeito Ernani Martins, pelo Secretário de

Administração Municipal e Presidente da Comissão dos Festejos do Bicentenário, professor

Natalino Ferreira Mendes, pelo então principal idealizador e também homenageado neste dia,

presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, Luís-Philippe Pereira Leite, e

ainda por outras autoridades civis, militares e eclesiásticas. A principal constante lexicológica

destes discursos era o traço histórico. É como se todas estas autoridades, independente de sua

formação/função profissional, estivessem em um determinado fluxo enunciativo, onde as

palavras correlacionadas à história de Cáceres ficavam reverberando e produzindo eco de

discurso em discurso e, assim, constituindo toda uma coerência argumentativa que buscava

engendrar uma fala competente/autorizada, a qual constantemente pretendia definir e

delimitar os contornos mais importantes da história, ou de uma forma mais geral, da

identidade do povo cacerense.

Neste sentido, não é uma mera coincidência que a estratégia de construir um discurso

com muitos elogios a respeito da figura do Dr. José Rodrigues Fontes, a partir da expressão

“velho guerreiro”, ou do sentido vernáculo da palavra honra, com todos seus sinônimos, ou,

ainda, da categórica afirmação: “Ato que agradou a todos,” buscando construir toda esta

empatia entre público e homenageando, também estivesse presente na fala e na escrita das

autoridades, quando faziam menção a algum venerado vulto histórico da trama prometéica

também certa articulação política no estado, o que lhe garantia essa possibilidade de ser nomeado como prefeito de Cáceres. 189 Luizmar Faquini. EM DUZENTOS ANOS, A MAIOR FESTA. Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº.354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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conjeturada neste fluxo discursivo. Um bom exemplo desta respectiva prática discursiva pode

ser observado no presente enunciado:

Jacobina, em Cáceres, deu asilo e abrigo ao destemido médico Dr. Sabino que havia chefiado, na Bahia, a célebre revolta conhecida por Sabinada, em prol da nossa independência. Condenado e procurado, o Dr. Sabino foi localizado em Jacobina, onde clinicava, aliviando as dores dos que sofriam, mas, dali, nenhuma escolta conseguiu retirá-lo e prendê-lo.190

O fragmento acima – elaborado pelo membro da Associação Brasileira de Imprensa,

Ernesto Borges –, faz parte de um artigo de duas páginas publicado no Correio Cacerense

neste mesmo dia, com o expresso objetivo de melhor divulgar a trilogia dos livros (O Médico

de Jacobina, Dr. Pedro Nolasco Pereira Leite; O Engenho da Estrada Real e Vila Maria dos

Meus Maiores) escritos por Luís-Fillipe Pereira Leite, como também, de efetuar um discurso

laudatório sobre o autor dos mesmos. Aliás, é interessante ressaltar que o estilo da escrita

presente neste artigo – buscando enumerar e definir os fatos mais importantes do passado,

e/ou, sempre, procurando em citar alguns exemplos da história de Cáceres que se misturam a

história mais geral do Brasil –, é, muito semelhante, ao adotado por Luís-Philippe Pereira

Leite nestes respectivos livros.

Em “Vila Maria dos Meus Maiores”, último livro desta trilogia, o autor faz a presente

citação:

Em setembro de 1827, HÉRCULES FORENCE, que integrava a missão do Barão de Langsdorff, que de 1825 a 1829 percorreu detidamente as províncias de São Paulo, Mato Grosso e Pará, assim retratava Vila Maria no seu “VIAGEM FLUVIAL DO TIETÉ AO AMAZONAS”, págs. 137 a 139. .... “Ao romper do dia (6.9.1827) chegávamos a Vila Maria assente à margem esquerda do Paraguai. Do mesmo modo que os outros povoados de Mato Grosso, não merece este a qualificação de Vila. Um renque de casas em mau estado, de cada lado de uma grande praça, uma igrejinha sob a invocação de São Luiz de França, muros de separação por trás das casas, eis tudo. Mas o grande rio aí está cercando a O. a praça e a povoação, e ao qual se desce por uma barranca em curva reentrante. Do outro lado estende-se uma praia de areia fina orlada de lindo e verdejante matagal, cortado pelo caminho que vai ter a Mato Grosso. ”191

No enunciado da citação acima, existe pelo menos duas das principais características –

ambivalentes, o que é interessante destacar –, que estão presentes nas práticas discursivas

correlacionadas ao fluxo mais amplo de construção/invenção de uma determinada história

para Cáceres.

190 Ernesto Borges. Cáceres e Luís-Filipe. Correio Cacerense 06/10/78, ano II n 353, 06/10/78. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 191 LEITE, Luís-Philippe Pereira. Vila Maria dos meus maiores. São Paulo: Vaner Bícego, 1978, p.15.

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I – A primeira está relacionada à constante preocupação de pintar esta história com as

vivas cores de personagens heróicos. De, preferencialmente, buscar pincelar no passado da

cidade, os exemplos de figuras notáveis que aqui viveram ou que por aqui passaram, ou ainda

da riqueza natural do município. É como se isto garantisse esplendor e glamour para história

de Cáceres. O memorialista que se preza, sempre nas suas falas e incursões pelo passado da

cidade, busca mesclar uma pitada de curiosidades da vida das pessoas que viveram num

passado quase imemorável, com todo este repertório já delimitado – e, mesmo disciplinados,

porque sempre varia muito pouco – dos vultos da história de Cáceres. Se a figura descrita por

ele, estiver também, correlacionada a fatos importantes da história nacional, melhor, isso

confere maior relevo para sua fala. Aliás, neste dia do Bicentenário, o que não faltaram nos

discursos, foram estas preocupações de elevar ao máximo a exaltação e orgulho da população,

mediante a enumeração dos personagens da história nacional que por aqui passaram,

sobretudo, quando elogiavam Cáceres. Natalino Ferreira Mendes, por exemplo, no artigo

produzido no caderno especial, se preocupou em lembra as palavras utilizadas pelo capitão

Pereira Cunha – que acompanhava o presidente Roosevelt na comissão Rondon –, quando

este, ao se referir à Praça de Cáceres, asseverara a seguinte opinião: e essa praça ultrapassou

de muito a nossa expectativa pelos grandes recursos comerciais de que dispõe, apesar do

extremo afastamento dos grandes centros comerciais e chamados civilizados. 192

O próprio Luís-Philippe Pereira Leite que, na citação anterior, havia utilizado aquele

depoimento de Hércules Forence, onde Vila Maria, ou de forma mais geral, todos os

povoados de Mato Grosso são desqualificados, vai, logo em seguida, nesta mesma obra,

enaltecer a história de Cáceres, se preocupando, inclusive, em utilizar uma fala do próprio

Hércules Forence, quando este último, de certa forma, se redimindo da crítica ácida e

eurocêntrica com a seguinte afirmação:

De manhã, ao raiar do dia, o tambor da praça, que aliás não tem a guarnição, tocou, metido em umas calças, à nossa porta a alvorada. O que me causou admiração, foi que, tendo ouvido tambores de tropa francesa e sarda, no mar e em terra, não me recordo ter apreciado execução melhor e nem mais variada.193

Ao fim e ao cabo, mesmo quando tece estes elogios, o pintor viajante, não deixa de

partir de um paradigma bem eurocentrista de comparação, pois reconhece a excelência na

execução do tambor da praça, a partir da comparação com sua cultura européia. É

192 Natalino Ferreira Mendes. Cáceres – Duzentos Anos. Caderno especial 06/10/01978, In: Correio Cacerense, ano II, n. 353, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 193 LEITE, Luís-Philippe Pereira. Vila Maria dos meus maiores. São Paulo: Vaner Bícego, 1978, p.17.

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interessante observar que esta valorização da cultura européia, também estará bastante

presente nos discursos deste dia 6 de outubro, porque, a percepção da importância do negro ou

do índio na construção desta história é quase sempre minimizada, quando aparecem, é sempre

desempenhando um papel coadjuvante.

É conveniente salientar que, naquela primeira citação, na qual Luís-Philippe Pereira

Leite deixa entrever uma visão mais depreciativa de Vila Maria, utilizando o depoimento de

Hércule Forence, pode estar muito bem funcionando dentro de uma determinada economia do

texto que pretende, ao mesmo tempo, minimizar a importância de Vila Maria e aumentar o

significado da fazenda Jacobina – que pertencera a seus ancestrais – na história mais geral de

Cáceres. Os “maiores” de sua obra: “Vila Maria dos meus maiores”, são ligados àquela

fazenda, grande orgulho dos Pereira Leite.

Para conferir maior autoridade às suas descrições sobre Jacobina, o autor se utiliza de

uma prática intelectual bem própria dos integrantes do IHG/MT, ou seja, fundamentar suas

afirmações na fala, ou melhor, na escrita, de integrantes reconhecidamente importantes

daquela instituição, como bem pode ser observado nesta outra citação de sua obra:

VIRGILIO CORREA FILHO, na sua valiosa contribuição para história de Mato Grosso, intitulada “Pantanais mato-grossenses” págs. 66 a 70, estuda com muita precisão a vida e o desenvolvimento de Jacobina: “Entre Cuiabá e Vila Maria (Cáceres atual) não seria intensa a infiltração forasteira acaudilhada por afoitos pioneiros. Dos portugueses André Alves da Cunha, José Gomes da Silva, Leonardo Soares de Souza, João Pereira Leite, derivaria fecunda prole, de cujos esforços resultou a fundação de afamados estabelecimentos agro-pastoris pelo vale do Paraguai. (...) Leonardo Soares acampa em Jacobina, onde funda sítio, que teve sua época de nomeada, por mais de meio século. Casado com Ana Maria, e por tanto Genro de José Gomes da Silva, a sua filha única, Maria Josefa de Jesus, recebeu por marido o sargento-mor João Pereira Leite, natural de Braga. Os seus afazeres militares não lhe permitiram permanência ininterrupta em Jacobina, Ana Maria se orgulhava de dirigir, conforme os ensinamentos do fundador, que a avia deixado viúva. “ Não quero que meu genro se ocupe da lavoura, teria confidenciado a Forence, isto é bom para mim, que nasci no meio do trabalho dos campos”. Na opinião do sagaz viajante, era a mais rica fazenda da província, tanto em área, como em população. Pelos seus campos sem fim, avaliava-se que pastassem mais de 60.000 reses. Para o custeio de tão numeroso rebanho, Jacobina dispunha, em 1825, de duzentos escravos dos dois sexos e sessenta crianças, cuja energia se aplicava igualmente nas roças, que abrangiam canaviais, plantações de mandioca, feijão, cereais e café, para abastecimento dos núcleos circunjacentes.” 194

Analisando-se esta estilística textual, é pertinente ressaltar, e/ou reiterar, a percepção

da existência da mais perfeita compatibilidade desta para com todo o fluxo discursivo que até

194 LEITE, Luís-Philippe Pereira. Vila Maria dos meus maiores. São Paulo: Vaner Bícego, 1978, pp. 41-42.

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aqui vem sendo descrito/interpretado, sobretudo, no que se refere ao artigo de Ernesto Borges,

pois este último, também efetuou exemplificações impregnadas pela mesma forma/conteúdo,

tais como:

É cacerense Pereira Leite, o primeiro mato-grossense formado em Medicina, laureado com alta distinção pelos profundos e sólidos conhecimentos científicos que revelou, na elaboração e sustentação da sua TESE considerada das mais avançadas na época.

II – A segunda, destas características anunciadas anteriormente, pode ser encontrada

na intenção de pintar o passado com as cores do sofrimento, das provações, das desilusões,

das angústias, das incertezas, por fim, declarando que..., Inúmeras vidas tombaram ceifadas

diante da crueza natural e pelos constantes ataques de inimigos como pelas inúmeras

doenças durante toda uma fase de civilização e desbravamento que custaram muito sangue,

suor e fadiga195, desta maneira, enumerando todas as dificuldades enfrentadas pelos ditos e

consagrados “pioneiros”; buscando demonstrar como eles eram fortes e resistentes, pois

sobreviveram em um mundo diferente e, significativamente, bem pior do que o nosso e, ainda

assim, conseguiram construir nossa dadivosa história.

Esta segunda estratégia de escrita tem pelo menos duas vantagens, também

ambivalentes, que foram bastante aproveitadas nos vários discursos alusivos às

comemorações do bicentenário. Estas vantagens são encontradas, geralmente, em duas

circunstâncias: a primeira, na postura memorialista de enaltecer os esforços destes pioneiros,

buscando estabelecer entre estes personagens – exemplos de esforço/superação – e a

população, um vínculo de memória em comum, mesmo que para isso fosse preciso efetuar

anacronismos, como:

1778 1978? Seus primeiros passos foram difíceis, isolada neste extremo oeste do país nada podia esperar da Pátria, a não ser a missão de defender suas fronteiras, o que sempre fez com brio, coragem e sacrifícios, dizendo sempre e bem alto aos povos vizinhos: Aqui é Brasil! Viveu da caça ao animal selvagem, da lavoura, da pecuária, da extração da poaia e da madeira. Gozou períodos áureos. Sofreu períodos de decadência, mas lutou e venceu. A Pátria finalmente, descobriu sua presença. Olhou-a e aí está o resultado: Segundo principal pólo de desenvolvimento do Estado, Nós a amamos e acreditamos em você, como Luiz de Albuquerque acreditou, 200 anos atrás. EMACO – Materiais de construção LTDA.196

195 Luizmar Faquini. Parabéns Cáceres: Hoje é seu Grande dia! Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 196 Homenagem – Caderno especial 06/10/01978, In: Correio Cacerense, ano II, n. 353, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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71

Esquecendo-se, portanto, que, em 1778, o Brasil enquanto Estado Nação independente

politicamente, nem existia ainda, algo que só iria acontecer oficialmente, em 1822. Vila

Maria, neste período, era apenas uma área de terra do vasto império ultramarino português,

que apresentava certa importância no cenário geopolítico de disputas territoriais envolvendo

as coroas de Portugal e Espanha.

É bem provável que, procurar iniciar a história da cidade de Cáceres, em Vila

Maria197, seja um anacronismo tão grande quanto iniciar a história da França na Gália198

Romana. Pior do que isso é procurar identificar e estabelecer esta continuidade de interesses,

durante um tempo tão elástico, como se os objetivos dos líderes daquele tempo, fossem os

mesmos dos atuais líderes. É querer fazer pensar que Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e

Cáceres, quarto Governador e Capitão General da capitania de Mato Grosso, que em 1778,

ordena a fundação de Vila Maria, já tivesse, duzentos anos antes, os mesmos propósitos de

Ernani Martins, prefeito de Cáceres na época.

Esta mesma busca de arquitetar, discursivamente, a ponte anacrônica que procura

interligar realidades tão diferentes e estabelecer certa empatia entre os grandes personagens

construídos para a história passada – que dão os bons exemplos – e os grandes personagens

que estão sendo engendrados no presente, possibilita uma formidável oportunidade, para a

política profissional, de construir seus heróis do passado a partir das similitudes que estes

possam vir a ter com os heróis que estão sendo engendrados no presente e para o presente.

197 É muito comum se ouvir e ver, desde muito tempo atrás, discursos, provenientes tanto da história quanto da literatura – pois, estes, geralmente exemplificam a carta de Pero Vaz de Caminha como o primeiro documento/peça da história/literatura do Brasil –, que cometem graves anacronismos quando buscam mapear o início da literatura ou da história do país. Isso feito por livros didáticos de história e literatura ou, ainda, por historiadores como Jose Honório Rodrigues: RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978; mais recentemente, pode ser evidenciado como grande exemplo desta determinada prática discursiva, todo o conjunto de programações/comemorações efetuadas pela Rede Globo de Televisão a respeito dos 500 anos do Brasil. Entretanto, uma leitura mais detida sobre o assunto – em autores como Laura de Melo e Souza ou Oto Maria Carpeaux: CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1951, 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro, Letras e Artes, 1964.– possibilita perceber que a Carta de Pero Vaz de Caminha, literariamente é uma peça da literatura portuguesa de viagens e, historiograficamente, é um documento relacionado ao império ultramarino português, por tanto, iniciar-se a história do Brasil baseando-se neste documento, ou pior ainda, dizer que o Brasil tem 500 anos é fazer pouco caso de toda a produção historiográfica concernente ao estudo da América portuguesa, pois como tão bem percebeu Laura de Mello e Souza, ao analisar aspectos da historiografia cultural sobre o Brasil colônia, trata-se de um tempo “em que Brasil ainda não era Brasil, sendo melhor chamá-lo de América portuguesa, pois como portugueses da América, mais do que brasileiros – designativo dos comerciantes de pau-brasil –, se viam os próprios habitantes do território”, p. 39. SOUZA. Laura de Mello e. Aspectos da Historiografia da Cultura sobre Brasil Colônia, In: FREITAS, Marco Cezar. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2003. 198 A Gália foi um território conquistado pelo vasto império Romano, através de sua específica política de anexação de outros povos à sua ampla estrutura administrativa; nesta época da conquista romana, os principais habitantes deste local eram os gauleses. Normalmente, como coincidem os territórios da Gália Romana, e do que muito tempo depois veio a se tornar o Estado Nação francês, as genealogias mais tradicionalistas, insistem em construir uma identidade francesa a partir dos gauleses.

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72

A outra vantagem para política profissional deste tipo de estratégia discursiva é

encontrada no complexo malabarismo argumentativo que busca instaurar nos sentidos e

efeitos deste discurso, uma espécie de esquizofrenia, pois ao mesmo tempo em que ele

pretende vincular a postura das personalidades do presente aos heróis do passado – porque é

conveniente ressaltar as similitudes existentes entre os mesmos –, também tem que efetuar a

imediata desvinculação entre ambos, para, logo em seguida, argumentar que no presente as

coisas estão bem melhores, a vida é bem mais fácil em virtude dos avanços propiciados pela

modernidade, ou, sobretudo, pela competência e empenho das personalidades do presente

para planejar e construir uma realidade de vida bem melhor para o povo cacerense,

considerando-se que:

Há duzentos anos passados não havia estradas por aqui, a população era pra baixo de mínima; comunicação não existia, mas apenas o rio Paraguai (...); a comunicação com Cuiabá era feita em lombo de burro através de trilhas agrestes, numa viagem que durava semanas; a luta pela sobrevivência diante de tantas doenças, para as quais não existiam vacinas nem médicos, assumia proporções indescritíveis; enquanto o inimigo se estrategiava, as intempéries assolavam os nossos bravos pioneiros. Quanta dificuldade atrocidava sem que houvesse condições mínimas de combate? (...) Embora a tudo isso os nossos pais resistiram e seqüenciaram sucessões até os nossos dias (...). Hoje temos segurança; hoje temos fartura. Escolas, que não existiam no passado hoje temos boa assistência médica hospitalar, vacinação constante; a expansão agro-industrial e mercantil cresce assustadoramente; contamos com dezenas de agências bancárias para tantos incentivos fiscais e todos podem trabalhar e progredir a vontade (...); temos segurança e paz o que não existia naquele tempo; a cidade começa a oferecer os confortos e infra-estruturas iguais ou quase iguais aos grandes centros. Tudo isso com resultado de uma luta encampada em 1978 e graças aos constantes e objetivos esforços dos nossos administradores e lideres, que irmanados a disposição de todo o povo cacerense vem projetando e construindo uma cidade onde o progresso chega; onde a civilização invade. 199

Por isso houve por parte das autoridades este interesse e empenho – neste dia repleto

de comemorações – de inaugurar algumas obras. Não se poderia dizer que isso era uma mera

coincidência, da qual o prefeito, apenas aproveitou o ensejo de algumas comemorações na

cidade, para inaugurar também algumas obras.

É neste clima de inaugurações que a preocupação de sacralizar uma história honorífica

para Cáceres; construída a partir da permanente citação de exemplos dignos da presença

humana, de grandes vultos da história nacional, misturada às homenagens e condolências,

prestadas a importantes nomes da sociedade cacerense neste dia do bicentenário, vai funcionar

como uma espécie de ponte do tempo que, interliga os heróis do passado aos grandes

199 Luizmar Faquini. Parabéns Cáceres: Hoje é seu Grande dia! Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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73

personagens do presente, para assim, constituir o panteon dos homens honrados do passado,

do presente e, quiçá, até do futuro da história de Cáceres.

A espetacularização200 de um acontecimento

Meia hora antes de iniciar propriamente o desfile201, os responsáveis pelas muitas

escolas e entidades que estavam previstas para desfilar, já se encontravam a postos,

observando com bastante atenção se a configuração e disposição dos alunos ou pessoas por

eles controladas estavam em perfeita conformidade com todas as recomendações presentes no

roteiro. Era importante que tudo desse certo, que o desfile ocorresse em perfeita e total ordem,

pois para os professores e responsáveis este dia era muito significativo para história de

Cáceres e, afinal, também é interessante ressaltar que existia um ambiente de implícita, ou

mesmo, explícita cobrança, com muita expectativa sobre estas pessoas, em virtude da divisão

de responsabilidades, construída através do copioso e diligente trabalho burocrático efetuado

pelo professor Natalino, que enviara ofícios202 para as escolas, solicitando que designassem

um professor específico para treinar, organizar e desfilar com os alunos.

É perfeitamente plausível dizer que no desfile existiram momentos de alegria,

despertada pela observação das novidades e da admiração coletiva proporcionada por aquele

colorido e sonoro cenário, desenhado pela marcha das diferentes escolas e entidades, pela

passagem dos carros alegóricos e alegorias a pé, pela reverberação do som quase marcial da

fanfarra do Instituto Santa Maria, pelo som plenamente marcial da banda do exército

brasileiro, ou, ainda, pela intensa e aflita alegria daquela mãe que, ainda pela manhã, depois

de ter passado quase à noite em claro terminando de costurar a roupa da filha, engomara a

roupa de todo mundo. Com carinho particular tratava a bermuda do filho caçula, engomada

com mais minúcia, para melhor compor o traje ao lado do sapato novo, comprado pelo pai,

especialmente para o desfile. Tinha também, pois é conveniente ser sincero, a alegria de todos

os alunos que em plena sexta-feira não precisariam ir à escola e, assim, poderiam aproveitar o

dia para pescar, jogar bola de gude, dominó, dama, futebol..., enfim, fazer aquilo que sua

meninice e classe social lhes oportunizassem, pois alguns tinham que trabalhar. Além de tudo 200 BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: Ed. UNB, 1980. 201 Roteiro do desfile: elaborado por Natalino Ferreira Mendes. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. 202 Isto pode ser observado no oficio nº. 0010 – 30/09/77, encaminhado ás escolas Duque de Caxias e Onze de Março, as quais responderam respectivamente, mediante o ofício nº. 07 de 03/10/77; e, ofício nº. 177/77 de 12/10/77. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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74

isso, os que estavam participando do desfile – quando não estavam imbuídos deste orgulho

que se fazia presente no semblante daquele filho caçula, com uniforme bem engomado e

sapato novo e, principalmente, à espera de perceber se a mãe o via passar –, também estavam

alegres, afinal, desfile é bem melhor do que aula, onde se tem que ficar decorando um monte

de datas e acontecimentos.

Todavia, é interessante salientar que em um ambiente de desfile realizado no final da

década de setenta, além destas alegrias desfrutadas pelos espectadores, dentro de uma cultura

bem viva dos desfiles, também existia uma constante tensão perpassando a atmosfera do

ambiente. Tensão existente por parte de quem organiza, de quem assiste e ainda por parte de

quem desfila. Um bom exemplo pode ser observado na apreensiva e aflitiva alegria daquela

mãe que esperava ver o filho passar, cheia de expectativas. Quem desfila, normalmente fica

tenso, pois quase sempre existe a preocupação de estar em conformidade com as manobras

previstas, seja na marcha, no alinhamento da fila, ou no tempo dos passos, principalmente, se

quem estiver desfilando for um militar, mas, talvez, a maior tensão seja a enfrentada por quem

organiza o desfile, ainda mais quando se tem alunos participando, pois, como Foucault203 e de

Certeau204 teorizaram com grande perspicácia, existe uma brecha entre o dizer e o fazer que

possibilita a invenção de um cotidiano diferente daquele que os discursos enunciam, brechas

para a indisciplina e para burla das recomendações.

Daí a necessidade de estratégias205 discursivas e não discursivas – aqui entendidas,

como procedimentos que nascem de um cálculo das relações de força e que são empreendidas

por um sujeito de poder/saber, para atingir um determinado objetivo previamente traçado –,

que buscam constantemente instaurar uma sociedade disciplinar206, a partir de um conjunto de

saberes e poderes investidos sobre os corpos, os hábitos e as idéias dos indivíduos que ao

mesmo tempo elaboram – porque quem constrói a estratégia também sofre seus efeitos – e,

dos outros sobre os quais incidem mais diretamente estes efeitos de poder.

No entanto, nas mesmas proporções que são criadas estas estratégias, também são

elaboradas as táticas207, aqui interpretadas como todo o conjunto variado de práticas que

203 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1985. 204 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 205 Idem. 206 Esta sociedade disciplinar foi estuda em obras como: FOULCAULT. Michel. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979; ou de forma mais incipiente, no conjunto de palestras proferido na PUC do Rio em 1973, quando o autor veio ao Brasil, as quais constituíram futuramente a obra: FOUCALT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moraes - Rio de Janeiro: Nau Ed, 1996. 207 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

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75

improvisam, inventam, dentro desta relação de poder, práticas desviantes, ou pequenas

interferências nas disciplinares de modo a burlarem as estratégias. Se as táticas, no seu

funcionamento, não possuem a mesma abrangência das estratégias, pois estas últimas estão

disseminadas e perpassando todas as instituições desta sociedade disciplinar – escolas,

manicômios, quartéis, hospitais, prisões –, apresentam, entretanto, uma vantagem operacional,

ou seja, não precisam de um lugar pré-estabelecido como as estratégias, não precisam

calcular, pois vigiam e captam no vôo as possibilidades de ganho; são atos que visam

aproveitar uma ocasião, não necessariamente articulada discursivamente; são breves efeitos,

gestos, insinuações, cuja força pode se desenvolver ou esvaecer imediatamente, multiplicando

as astúcias e as metáforas ou desaparecendo no próprio ato. Assim, se as táticas têm a

desvantagem de não apresentarem a mesma abrangência das estratégias têm, em

contrapartida, maior possibilidade de mudança; em suma, um intenso dinamismo operacional.

Talvez seja por isso que estas instituições – que Foucault denominou de seqüestro –

apresentam tanta dificuldade para instaurar mudanças significativas. Discute-se muito sobre a

ineficiência da prisão ou da escola, contudo, quase sempre estas discussões são pautadas pelo

interesse de aprimorar a lógica de seu funcionamento, não sobre a possibilidade de substituí-

las.

Não é preciso ter uma imaginação muito fértil, pois a narrativa histórica não imagina

as coisas que indica, mas trás a mente imagens das coisas que indica208, para saber que neste

dia, por exemplo, por mais que os responsáveis por cada escola se esmerassem em vigiar os

atos e as palavras dos alunos, observando se estavam perfilados da maneira correta, olhando

para frente, ou, ainda, se não falavam muito e, principalmente, se não diziam coisas

inapropriadas para o momento. Sempre existiria uma possibilidade de burlar esta vigilância,

seja a partir das olhadas de soslaio que as meninas dirigiam para os escoteiros de Cuiabá –

afinal, forasteiro normalmente faz sucesso – ou então pelo cochicho dos meninos, ainda que

discreto, a respeito do apelido – de alguma autoridade –, sempre que este fosse fazer uso da

palavra.

Estes adolescentes/crianças comuns muito mais que conhecerem e saberem – o que

Foucault e de Certeau teorizaram tão bem – sobre a brecha que existe entre o dizer dos

enunciados de poder e o fazer das experiências cotidianas, praticam no pão-nosso-de-cada-dia

208 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trad. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994, p. 180.

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esta vida negociada e difícil do convívio em sociedade; apropriam-se209 destes discursos de

acordo com sua utensilagem mentais210, da forma mais conveniente, sem mesmo saber o que

é, ou, quem inventou essas palavras e conceitos. Cometem trampolinagens211 e sabotagens

descaradas, porque já viveram o bastante para saber que por traz das máscaras não há nenhum

rosto límpido e sincero da fala ética que busca a verdade. São adolescentes/crianças

descaradas, não porque “sem cara”, mas porque sabem que na vida ninguém sobrevive ou tem

apenas uma única cara, mas, sim, vive-se com e, a partir, de muitas caras. São

adolescentes/crianças que têm como grandes amigos a vida e as sinceras amizades,

construídas no devir de fluxos intensos e arriscados, onde o perigo é estímulo que dá sentido a

uma existência mais vivida do que pensada nos cálculos da conveniência social, vinculados a

uma determinada estratégia do, e pelo, poder.

Talvez pudesse haver grandes vantagens em se tentar escrever a história a partir de

uma narrativa que leve em conta a lógica discursiva construída por esses

adolescentes/crianças, com a preocupação de utilizar sua linguagem, ou, mesmo, de forma

mais arriscada e incerta, de substituir a educação escolarizada, com fala

competente/autorizada, por uma forma mais interessante de educação que tire vantagem da

experiência destas crianças; de falar sobre problemas locais e gerais que permeiam o seu

cotidiano; de construir um ambiente mais verticalizado de discussões e, principalmente, ter o

direito de contar sua própria história, sem a constante intervenção da fala autorizada,

encastelada e refestelada em instituições como o IHG/MT, como também, nos métodos e

procedimentos da academia que, em algumas circunstâncias, mesmo tendo a minuciosa

preocupação teórica, acabam desembocando em uma insuportável rompante de

loquacidade212.

Assim, pensar em uma forma de viver e produzir a história que sirva apaixonadamente

para vida, porque inventa e vive um conhecimento histórico mais estudado em gente do que

em livro213. Parece que Foucault realmente tinha motivos sinceros e plausíveis, quando

ironizou a produção do conhecimento pelo conhecimento e desferiu sua crítica assertiva e

perspicaz, pois,

209 Tanto o conceito de apropriação, quanto de re-siguinificação presentes neste texto são pensados ou, melhor, agenciados da obra de CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Ed. Difel: Lisboa, 1990. 210 Conceito da terceira geração da escola dos Analles. 211 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 212 As criticas a esta loquacidade da ciência ocidental são feitas por Nietzsche em obras como: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Trad. Antonio Carlos Braga, São Paulo: Editora Escala 2006. 213 BARROS, Manuel. Retrato do artista enquanto coisa. 2. ed. São Paulo: Record, 2001, p. 81.

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77

(...) de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos, e não de certa forma, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que sabe. Existem momentos na vida onde a questão de se saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e refletir.

No entanto, bem distante desta concepção/prática de Foucault, justamente porque mais

preocupada em inibir qualquer criatividade extemporânea ao roteiro do desfile, estava a

apreensão das pessoas concentradas na, e pela, mais perfeita ordem214. É por estes motivos

que, entre todas as atividades previstas e planejadas pela Comissão dos Festejos do

Bicentenário, seguramente o desfile, foi a que mais despertou a atenção e expectativa em seus

elaboradores. Com certeza, era a atividade que precisava e tinha o maior número de pessoas

participando. Não custa lembrar que na sexta e última recomendação do roteiro do desfile,

elaborado pelo presidente desta comissão, se encontram as respectivas afirmações:

Tenho certeza que todos estão empenhados no sentido de que o desfile do bicentenário seja o mais brilhante possível. Por tanto, o esforço de cada um é importante para o sucesso do todo. E assim, esperamos que nossa festa seja bonita, e a cima de tudo, organizada215.

As recomendações presentes neste fragmento possuem além das costumeiras frases de

incentivo, que buscam criar uma atmosfera de pertencimento perante um grupo de pessoas

diferentes, também, o interesse de buscar minimizar a importância das individualidades e

supervalorizar a ação da coletividade, sobretudo, mediante a constante preocupação com a

organização e ordem. Isto fica explícito e mais esmiuçado, no sentido de delimitar

responsabilidades e procedimentos, na observação da letra (a), da quarta recomendação –

Conduta antes do desfile – presente neste mesmo roteiro: Os responsáveis pelos diversos

Colégios ou entidades que participarão do desfile deverão tomar todas as providência para

que o horário de dispositivo pronto (17:00h) seja cumprido216 , ou ainda, na letra c da quinta

recomendação – Conduta após o estile –, que define o seguinte:

214 A palavra ordem, durante o regime militar, externa com grande propriedade, toda uma mentalidade social e política interligada ao enunciado tecnocrático do progresso, contudo, é importante ressaltar que não foram os militares, os primeiros a fazer esta associação direta entre ordem e progresso, no caso brasileiro, a associação direta entre ordem e progresso, é muito mais uma re-significação de uma máxima positivista que, inclusive, perpetua-se como uma marca indelével de nossa bandeira nacional. Em Cáceres, seguramente, a preocupação com a ordem era ainda maior, sobretudo, porque oficialmente a cidade estava situada na área de Interesse da Segurança Nacional, além do mais, tinha a mais importante instituição do regime militar, o cartel. 215 Roteiro do desfile: elaborado por Natalino Ferreira Mendes. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC 216 Idem.

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78

Os responsáveis deverão manter o máximo controle de seus alunos, não liberando-os após o palanque. Toda entidade (carro alegórico e alegorias a pé) deverá seguir o seguinte itinerário, após o palanque: - Rua Comandante Balduíno - dobra à direita na Rua Quintino Bocaiúva - alcançar a Pça. Luiz Albuquerque (feira) - atravessar a ponte ou seguir pela Rua Gen. Osório podendo dobrar em qualquer das perpendiculares à esquerda.217

De forma mais geral, este roteiro, possuía em seus anexos I e II, todo um meticuloso

planejamento que buscava delimitar, desde quais seriam as escolas e associações que iriam

participar do desfile, até qual seria a ordem e quantidade de alunos, carros alegórico, alegorias

a pé e fanfarras.

ANEXO 2

ORDEM DE DESFILE DE ASSOCIAÇÕES

ORDEM ASSOCIAÇAO CARROS ALEGÓRICOS

1

2

3

4

5

6

7

CONSELHO PASTORIL DA PARÓQUIA DE

CÁCERES

CAMPUS AVANÇADO DE CÁCERES

LIONS CLUBE DE CÁCERES

ASSOCIAÇÃO CULTURAL E ESPORTIVA NIPO-

BRASILEIRA

DISTRIBUIDORA DE BEBIDAS PANTANAL

JARDIM PADRE PAULO

ROTARY CLUB

1

-

2

1

1

1

1

217 Idem.

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79

ANEXO I

ORDEM DE DESFILE DOS COLÉGIOS

ORDEM COLÉGIO EFETIVO CARROS FAN-FARRA

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

16

ESCOLA 1 GRAU FREI AMBRÓSIO ESCOLA E. D. GALIBERT ESCOLA E. ESPERIDIÃO MARQUES ANEXO ESCOLA E. ONZE MARÇO ESCOLA E. DUQUE DE CAXIAS ESCOLA IMACULADA CONCEIÇÃO ESCOLA E. UNIÃO E FORÇA ESCOLA E. JOSÉ R. FONTES A. PAIS E AMIGOS EXCEPCIONAIS COLÉGIO E. ONZE MARÇO ESCOLA E. RAIMUNDO REIS ENSINO SUPLETIVO INSTITUTO SANTA MARIA INSTITUTO DE ENSINO SUPERIOR ESCOTEIROS DE CUIABÁ ESCOLA JÚLIO G. PASSARINHO

47 400 90 400 250 552 598 609 - 150 200 850 - 120 65

1 1 1 2 1 1 3 1 1 3 - - - - - -

não não sim não não sim não não não sim não não sim não sim

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80

Essa preocupação permanente com a ordem é perfeitamente compreensível, para uma

sociedade que funciona dentro de uma lógica das disciplinas, conforme teorizado por Foucault

na obra Vigiar e Punir.

A grande indagação/problemática que instiga Foucault a efetuar estas pesquisas

relacionadas a essa obra é saber por que, em tão pouco tempo, a prisão que era apenas uma

das formas de punição, passa a constituir a maneira predominante e compulsória de punição?

O que os estudos do autor possibilitam perceber é que a prisão, assim como outras

instituições surgidas também neste período, como a escola, o manicômio, o quartel, o asilo, o

hospital – denominadas por Foucault como “instituições de seqüestro” – participam

simultaneamente de uma ortopedia social que tem a pretensão de constituir um arcabouço de

saberes e práticas discursivas e não discursivas, para construção de uma sociedade disciplinar.

Neste sentido, Cáceres em 1978, pode ser, sim, tratada como uma cidade que está

permeada por esta lógica de funcionamento da sociedade disciplinar, principalmente, porque

desde 1968 é considerada área de interesse da segurança nacional, em que os prefeitos eram

nomeados, voltando a ter eleições diretas apenas em 1984. O eleito, não por acaso, foi o Dr.

Antônio Fontes, filho do então homenageado neste dia, com a condecoração de honra ao

mérito do Estado de Mato Grosso, Dr. José Rodrigues Fontes. Também é importante salientar

sobre a existência na cidade, de uma destas instituições disciplinares – o quartel, possuidora

de um relativo prestígio, perante uma sociedade brasileira que ainda vivia em um regime

militar –, onde a cultura dos desfiles solenes estava bem presente; aliás, esta instituição vai ter

presença garantida nas festividades do bicentenário, seja mais propriamente desfilando e

executando as manobras marciais, ou então, ajudando a organizar a parte mais logística do

desfile, pois na última observação, letra (c), presente na quarta recomendação do roteiro do

desfile, está presente a afirmação categórica que: Nos locais de concentração, os colégios

deverão ter a frente voltada para a Rua Cmt. Balduíno, só iniciando o movimento para o

desfile, mediante ordem do militar de serviço no local.

Um exemplo lapidar desta similitude de procedimentos existente entre estas duas

instituições de seqüestro – o quartel e a escola – está na constante mimetização que a última

normalmente faz em relação à primeira, principalmente neste período em que a prática

pedagógica tinha a disciplina como fundamental axioma para o bom ensino e o melhor

aproveitamento cognitivo do aluno. Os exemplos são muitos: vão desde a organização das

filas para entrar em sala; da disposição regular das cadeiras; do cumprimento dos horários; do

longo adestramento dos corpos, construído mediante o massacre corporal de ficar sentado por

quatro horas; até a constante preocupação de incutir na mentalidade dos alunos, a noção de

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respeitabilidade e hierarquia, perante professores, diretores, supervisores, ou qualquer

funcionário da escola.

No que se refere mais especificamente ao desfile, as similitudes também são muitas, e

podem ser observadas no mapa presente no anexo III do roteiro do desfile:

Mapa presente no anexo III do roteiro do bicentenário de Cáceres

Por este documento é possível observar a organização de uma configuração espacial

que pretende esquadrinhar os posicionamentos e exercer pleno controle sobre os corpos,

estabelecendo para isso, uma determinada política dos movimentos, preocupada em

teatralizar, da melhor forma possível, este ritual simbólico, enfim, constituir todo um

panorama de pedagogia social que busque, a partir dos cenários desenhados por este conjunto

de movimentos, desempenhar a espetacularização do acontecimento, como de resto eram

tratadas as solenidades cívicas na sociedade brasileira durante o período militar.

As espetacularizações encenadas e, ao mesmo tempo, vivenciadas por uma parte da

população, pretendem constituir todo um arcabouço simbólico, que tão logo se postulará

como principal e único, reivindicando sua total conformidade em relação à memória da

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cidade, afinal, grande parte dos símbolos e eventos históricos correlacionados à tentativa de

explicar e sintetizar o verdadeiro sentido da história – de um município, de um estado, de uma

nação, de uma continente, ou, fundamentalmente, de uma identidade – estão presentes e, são

conjeturados, nestes momentos de sacralização de uma determinada memória.

Logo após o término do desfile, foi inaugurado o primeiro semáforo da cidade de

Cáceres, localizado no cruzamento das Ruas Comandante Balduíno e Coronel José Dulce,

contando com a presença das mesmas autoridades. Essa curiosa inauguração indicava que

Cáceres – mesmo estando atenta a sua tradição e ao respeito do passado –, era uma cidade

sintonizada com as inovações trazidas pela modernidade.

É bem provável que toda esta cultura da lembrança218 existente neste período na

cidade de Cáceres, estivesse relacionada a um esforço, partilhado por parte destas pessoas

ligadas a Comissão dos Festejos do Bicentenário, em planejar e esperar o futuro, construindo

para isso, sentidos e significados que são ao mesmo tempo elementos importantes para coesão

social no presente. Assim, pode bem ser que, ao se preocuparem com a volta ao passado,

estabelecendo um determinado repertório para a memória a ser acionado sempre que se

evocar uma definição da história, ou, de forma mais ampla, da identidade cacerense, se

estaria, de fato, fazendo face ao grande afluxo de migrantes219 para cidade, de certo modo,

“defendendo-se” das outras memórias, das ameaças do Outro.

A identidade inventada/construida é então forjada por esse conjunto de memórias

selecionadas ou re-inventadas, reiteradas inúmeras vezes para o povo da cidade, dentro desta

política histórica de estabelecer, a partir de uma cultura das lembranças, a noção de

pertencimento, fundamental para a percepção de uma identidade. A naturalização do que é ser

cacerense passa pelo cuidado em apagar ou ignorar as diferenças, estabelecendo a identidade

pelo viés das supostas semelhanças que seriam encontradas no passado, autorizando a noção

de efetivo pertencimento à verdadeira história de Cáceres.

218 Esta expressão “cultura da lembrança”, assim como grande parte da análise e as correlações efetuadas neste IV Fluxo, a respeito do que Norbert Elias denomina como processo civilizador, são apropriações das terminologias e estudos feitos por Manuel Salgado sobre a cultura histórica oitocentista; para uma melhor compreensão desta discussão, ler: GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahi. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 219 Aliás, este fluxo migratório já havia sido iniciado desde a década de sessenta, em virtude das possibilidades criadas pela inauguração da ponte João Ponce de Arruda, durante a gestão do prefeito José Monteiro da Silva. Atualmente seu nove é Ponte Marechal Rondon. Ela efetua a ligação da rodovia Cuiabá-PortoVelho, no trecho em que encontra o rio Paraguai e teve grande importância no translado de pessoas para as áreas de terra a oeste do município de Cáceres, que de simples distrito, foram se constituindo ao longo do tempo, em municípios, como Mirassol do Oeste, São José dos Quatro Marcos, Araputanga, Rio Branco, Lambari, Gloria do Oeste, Jauru etc.

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83

Os fluxos discursivos das falas das autoridades legitimam e respaldam as provas

necessárias para construir e sustentar uma determinada memória que consubstanciaria a idéia

de identidade. Esta, no entanto, como qualquer experiência humana, precisa ser historicizada,

e, não, vista como natural e óbvia.

Talvez tudo o que estava ocorrendo neste dia, ou mesmo durante todo o ano do

bicentenário, fosse ainda as ressonâncias/influências das marcas indeléveis de constituição de

uma determinada cultura histórica, forjada entre os séculos XVI e XVIII, consolidada no

século XIX, relacionada a um processo mais amplo de mudanças ocorridas na cultura

ocidental. Norbert Elias o denomina de processo civilizador; além das mudanças econômicas,

sociais e políticas, também vai haver uma alteração da sensibilidade histórica, a partir da

paulatina transformação da cultura, e de uma outra forma de perceber e viver no mundo,

dentro de uma nova simbologia. Estas mudanças materiais e simbólicas podem ainda serem

percebidas nas seguintes circunstâncias e/ou respectiva definição:

A moderação das emoções instantâneas, controle dos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momento presente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito – todos estes são distintos aspectos da mesma transformação de conduta, que necessariamente ocorre com a monopolização da violência física e a extensão das cadeias da ação e interdependência social. Ocorre uma mudança “civilizadora” do comportamento. 220

A partir do estudo deste processo civilizador pode-se concluir que as ressonâncias de

seus princípios e hábitos estavam bem presentes na forma de pensar e agir da sociedade

cacerense deste momento, muito bem identificável nas preocupações acionadas pela cultura

da lembrança, em que o tempo ganha uma dimensão mais elástica; repudiando-se, desta

maneira, o presentismo. Bons exemplos das ressonâncias deste processo civilizador podem ser

encontrados: no cuidado incomum com a escolha das palavras a serem pronunciadas nos

discursos solenes; nas exigências comportamentais presentes no roteiro do desfile, com uma

especifica política dos movimentos; em todas aquelas condutas recomendadas pela mãe, logo

cedo, aos filhos, inclusive, reiterando-as durante o dia, seja através da repreensão direta (no

caso de uma indisciplina), com o uso de palavras bruscas e severas ou através de simples

gestos, como o olhar incisivo de reprovação ou, ainda, o silêncio intimidador instaurado em

certas circunstâncias.

Outro bom exemplo das ressonâncias deste processo civilizador que estavam

permeando todo o fluxo de percepções, relacionadas a uma determinada maneira de se ver e

220 Norbert, Elias. O processo civilizador. V.2. Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 198.

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viver na sociedade cacerense, neste final de década de setenta, pode ser observado também

nas inaugurações do Museu Histórico e do Arquivo Municipal. Ambos inaugurados três dias

antes do desfile, em um mesmo prédio da Rua 13 de Junho, próximo a Catedral de São Luiz.

A solenidade contou com a presença de algumas autoridades que também estariam no desfile,

como Luís-Philippe Pereira Leite que, antes do corte da fita simbólica, efetuado pelo ex-

prefeito de Cáceres Manuel F. Cuyabano e pela professora Estella Rodrigues Ambrósio, fez

uso da palavra, observando a importância daquela instituição para cidade e, sobretudo, dos

esforços para se conseguir a Instalação da Galeria dos Personagens que diretamente

participaram ao longo do desenvolvimento de São Luiz de Cáceres221. Não menos exaltada

foi a fala de Natalino Ferreira Mendes:

(...) fazendo um breve, mais rico comentário da história de Cáceres, destacou a importância da navegação fluvial para o desenvolvimento do município, da primitiva força econômica da serraria castrillon e da presença que se fez sentir nas últimas décadas, de brasileiros de todos os rincões do Brasil, trazendo grande desenvolvimento para bicentenária Cáceres. 222

É interessante ressaltar que a lei nº. 695 de 9 de maio de 1978, que cria o Museu da

cidade, estava relacionada e influenciada por uma política institucional estadual, disciplinada

e viabilizada legalmente pelo decreto lei n 126 de Julho de 1976 que aprovou o Estatuto da

Fundação Cultural de Mato Grosso, que teria sob sua responsabilidade, entre outras várias

atribuições, o planejamento, execução, além disso, adquirir, manter e conservar obras de fins

artístico-cultural pura de acervo e coleção. 223

221 C.f. SANTANA, Eliane da Silva. Museu histórico de Cáceres no período de 1978 à 1979. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2002, p. 23. 222 Emilia Darci de Souza Cuyabano. ATA DE CERIMÔNIA DE INAUGURAÇÃO DO MUSEU. Cáceres: Museu Histórico. Vai ser justamente a partir destas falas, proferidas tanto por Natalino Ferreira Mendes, quanto por Luís-Phelippe Pereira Leite, que o jornalista Luizmar Faquini, vai elaborar seus textos a respeito do bicentenário no Correio Cacerense, seja mais propriamente na sexta feira do dia seis de outubro ou no texto do domingo. O interessante, neste caso, é perceber que independente da função/profissão de ambos, o traço histórico vai ganhar muita força e importância nestes discursos, sobretudo, influenciados por uma concepção de historia ufanista e alinhavada pelo interesse de tecer um discurso identitário. Entretanto, essa não era uma tessitura simples, pois já não era mais possível enumerar apenas o cururu ou o siriri como algo da cultura local, não apenas o sotaque local, haja vista que muitos sons e costumes do migrante já se encontravam presentes; os retalhos de memória, já não podiam provir de apenas um tecido, o próprio tecido social tinha muitas cores e diferentes texturas. Agora se tinha o cururu, o siriri, a catira, os violeiros, mesmo que nos festejos do Bicentenário estas manifestações culturais tenham desempenhado um papel coadjuvante, em virtude da maior vidência dada a um passado mais bandeirantizado pelas patentes e ancestralidades portuguesas. Contudo, toda esta vidência dada a este passado bandeirantizado, basta citar a concepção museológica que até hoje norteia a taxonomia do Museu Histórico de Cáceres – sessão dos vultos da história de Cáceres – não foi suficiente para tornar evidente esta única e principal história de Cáceres. De forma bem resumida, pode ser observado que, a construção desta história está sujeita às tramas e retramas da memória, e, principalmente, da complexidade e do paradoxo de se querer construir um discurso identitário, em um momento em que pululam as diferenças de um amálgama social repleto de misturas. 223 C.f. SANTANA, Eliane da Silva. Op. cit, p. 22.

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Além da política institucional viabilizada por todo este arcabouço legal/teórico, há que

se considerar também a preocupação em construir uma nova história para o norte de Mato

Grosso, após a divisão do Estado e, fundamentalmente, sobretudo, depois do grande afluxo de

imigrantes ocasionado em virtude do tão propalado – pela política governamental dos

militares – surto desenvolvimentista.

São justamente estes argumentos que serão utilizados por Luiza Rios Ricci Volpato,

na época professora da UFMT, e, por isso mesmo, fala autorizada/competente, para requerer

junto à Delegacia de Educação e Cultura a professora Emilia Darci de Souza Cuiyabano, para

exercer a função de diretora do Museu e Arquivo Municipal, como também, de organizar todo

o material previsto para estar presente no mesmo. Para tanto, Luizza Volpato procura

concatenar seu argumento da seguinte forma:

A divisão do Estado de Mato Grosso, prevista no PND, fez com que Cáceres se tornasse uma das principais cidades do novo Estado. Este será o alvo de grandes atenções do Governo Federal, o qual tem por objetivo injetar recursos financeiros prevendo o desenvolvimento da região. Vários planos desenvolvimentistas irão surgir objetivando trazer progresso para a área. De grande importância será todo esse desenvolvimento, mas antes que ele chegue é necessário salvaguardar a memória regional. Em nosso país, o desenvolvimento sempre vem acompanhado da destruição do velho e do antigo para a identificação do novo. No entanto, o passado faz parte da vida. É através da formação sócio-econômica da região que se poderá elaborar planos de desenvolvimento adequados à área e que poderão trazer realmente um progresso. Ciente disto, a Prefeitura Municipal de Cáceres e a TURIMAT (Companhia de Turismo de Mato Grosso) decidiram organizar o Museu de Cáceres. 224

Luizza Volpato teve também seu nome constando em uma extensa lista de doadores de

material museológico sobre a história de Cáceres ou do estado de Mato Grosso. Nomes como

Luiz Lacerda, Dom Máximo Biénnes, José Rodrigues Fontes, Estella Rodrigues Ambrósio,

Ernani Martins, Dulce Regina Curvo Garcia, Frei Mateus – Mathys. J. Freyen, Natalino

Ferreira Mendes, 2º batalho de Fronteira, Luís-Philippe Pereira Leite, Escola Estadual de 1º

grau “Duque de Caxias”, Dr. Gabriel Pinto de Arruda...; enfim, nomes e instituições

relacionadas, em grande parte, a uma elite local interessada em participar da construção desta

memória. A lista foi publicada no final de uma coluna especifica e permanente do Correio

Cacerense, denominada: Nossa Coluna – Campanha pró novas Peças225. A linguagem

empregada nesta coluna oscila entre um forte apelo ao respeito do passado e das tradições da

cidade e uma conotação cívico-pedagógica, buscando destacar que: “o museu presta serviços

224 MENDES, Natalino Ferreira. Memórias Cacerenses. Cáceres: MT, 1998, p. 171. 225 Fala de Emilia Darcy nesta coluna :C.f. SANTANA, Eliane da Silva. op. cit, p. 24.

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inestimáveis e insubstituíveis na preservação e reverência das tradições mais altas da

nação”.226

Tanto na fala de Volpato como de Emilia Darcy ou, de maneira mais ampla, em todo

este fluxo discursivo acionado pela cultura da lembrança, existe a preocupação de

problematizar e rechaçar uma concepção predatória e pouco sensível ao legado cultural de

uma sociedade que compreende a história como algo “antigo”, estagnado, contrário ao

progresso, em que a história é concebida, nestes termos, como um processo acabado e fecho a

novos significados sociais. Por outro lado, ainda persiste neste fluxo discursivo uma

concepção saudosista, imbuída do espírito de colecionar aquilo que é visto como sujeito à

perda, ocorrendo, novamente, o fechamento da compreensão da história, congelando os

aspectos de uma cultura, tratando-as como itens de uma coleção (o Museu os reúne), visando

instituir uma memória comum e/ou consensual, como se a sociedade cacerense fosse formada

por um todo homogêneo.

É neste clima cívico-pedagógico mixado com uma pitada de saudosismo, que podemos

observar uma prática enunciativa como esta:

É do interesse da Nação e do Estado que os documentos de índole e propriedade Municipal, peças e objetos que testemunhem acontecimentos, épocas ou fases da história da comunidade, bem como dos elementos representativos da evolução da cultura local, sejam preservados para transmitirem às gerações futuras, que sejam conservados, organizados e postos à disposição dos estudiosos, para que a tempo possam ter a utilidade a que se destinam.227

A concepção de história ai observada é um claro exemplo das ressonâncias daquilo

que Norbert Elias interpretou como o processo civilizador, em que a história é compreendida

dentro de uma relação direta de causa e efeito, pois os homens passam a ser o resultado das

ações de outros homens que nem conhecem e que viveram bem antes, mas que, não obstante,

causaram este presente em que se vive. O destino presente parece inexoravelmente marcado

pelo passado, assim como o destino do homem do futuro vai ser marcado pelas ações deste

homem que ainda vive no presente, ações estas que no futuro vão ser passado.

Neste sentido, estes dois eventos: a inauguração de um semáforo eletrônico e do

Museu/Arquivo em Cáceres, que são aparentemente coisas distintas, ou sem relação alguma,

fazem parte da mesma lógica e expectativa de pensamento, pois ter um Museu na cidade,

226 C.f. SANTANA, Eliane da Silva. op. cit, p. 25. 227 Fala, ou melhor, escrita de Emilia Darci de Souza Cuyabano, na “Nossa coluna: campanha pro novas peças” do jornal Correio Cacerense. C.f. SANTANA, Eliane da Silva. op. cit, p. 24.

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assim como ter um semáforo eletrônico, são exemplos de modernidade de um município que

está sintonizado com as inovações, inclusive, preparado para as mudanças provocadas por

estas inovações, a partir da salvaguarde de suas tradições. O museu ganha a conotação e

sinônimo de civilização, oportunizada por uma percepção mais elástica do tempo. Tem-se a

preocupação de demonstrar que Cáceres está atenta ao seu passado, preocupada com seu

presente e interessada em seu futuro, a partir das inovações constituídas e trazidas pela

modernidade.

Outro aspecto importante a ser ressaltado sobre estas iniciativas correlacionadas a

todas as solenidades e inaugurações organizadas antecipadamente pela Comissão dos Festejos

do Bicentenário e que, seguramente, estão relacionados à construção de uma determinada

história para Cáceres, é a constante vinculação da figura ou das idéias e sugestões de uma

pessoa228 vinda da capital do estado – Cuiabá – representando outras instituições estaduais já

existentes, para ajudar e incentivar a implantação de instituições similares em Cáceres.

Parece que existe um esforço no sentido – mesmo em assuntos próprios do passado, como

esta construção de uma história e de uma identidade de Cáceres – de participar e, também,

constituir na cidade estas instituições e todos os aspectos analítico/políticos que as mesmas

possibilitam e incentivam. Como os textos produzidos em livros, jornais da cidade, ou ainda

nos discursos proferidos nas diversas solenidades ocorridas durante aquele ano de 1978. Tudo

isto representa a preocupação de se demonstrar que Cáceres teria a devida percepção das

inovações trazidas pela modernidade, ou, pelo menos, estaria articulada e atenta às

transformações já existentes no presente, simbolizadas não apenas nas novas tecnologias –

semáforo eletrônico –, mas também, em novas formas de sociabilidade e organização do

tecido social, constituídas a partir de instituições como o Museu e o Arquivo Público.

Fim ou início desta história?

Antes mesmo que o baile iniciado às 23h00min no Esporte Clube Humaitá229

terminasse, sempre havia aquela moça – com pais mais tradicionais – que precisa voltar mais

cedo para casa, ou porque o irmão mais novo está com sono, ou então porque o irmão mais 228 Além da fala competente/autorizada de Luís-Philippe Pereira Leite, de Luizza Rios Ricci Volpato, também pode ser acrescentado que, a idéia de criação do Museu em Cáceres partiu do Diretor Presidente da TURISMAT à época, Paulo Pitaluga Costa e Silva: C.f. SANTANA, Eliane da Silva. op. cit, p. 22. 229Programa do Bicentenário. Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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velho não arrumou nenhuma paquera e, assim, já quer ir embora. Neste caso, mesmo que

tenha passado a semana toda esperando o baile, se arrumando, muito preocupada com a

escolha do vestido, na expectativa de bem impressionar e, principalmente, na ansiedade de

arrumar algum partido, teria, no entanto, que suportar aquela desagradável circunstância de

forma resignada, pois, ficar sozinha no baile, ou pior, voltar sozinha para casa, não era coisa

conveniente para moça de família. A salvação nestes casos era arranjar uma tia, parente, ou

pessoa de confiança dos pais, que assumisse a responsabilidade de tomá-la sob seus cuidados.

Quando o pai era mais severo, mesmo que a moça tivesse namorado “sério”, em ocasiões

como esta, as recomendações eram as mesmas, porque, “namorado não é casado, se fosse pelo

menos noivo, ai..., até talvez!?”... “Para se bem criar os filhos é preciso ter disciplina e

ordem”.

Poder-se-ia dizer que a esta hora – talvez um pouco depois ou um pouco antes –, além

do término da imaginada história desta moça do baile, que bem poderia ser a mesma menina

que ainda cedo iniciava a difícil negociação com a mãe sobre qual seria a roupa mais

adequada para ir ao culto de ação de graças, também, de certa maneira, estava terminando em

Cáceres aquele conturbado dia, cheio de comemorações, inaugurações, simbolismo e história.

Talvez seja mais acertado falar que não se estava terminando apenas um único dia de

comemorações, mas sim, que se estava terminando todo um extenso e programando

calendário de solenidades realizadas durante o transcorrer deste ano. Solenidades – é

importante ressaltar, dentro de uma cultura dos desfiles – que possuíram todo um interesse de,

assim como os pais da menina, garantir a disciplina, ou seja, de forjar e disciplinarizar uma

memória coletiva para a cidade a partir da espetacularização de eventos, e assim, dentro de

uma relação de poder e saber, definir e sacralizar uma determinada visão da história de

Cáceres.

Contudo, quando o assunto está correlacionado à memória ou, ainda pior, á história, a

discussão se torna substancialmente mais complexa, pois ao contrário de uma visão

relativamente simplista, que percebe tanto memória quanto história, como sinônimo de

passado, talvez seja necessário assinalar que, mesmo a episteme da história estando

relacionada, em grande parte, ao passado, construído por (ou para) memória, não é

inteiramente acertado, percebê-las simplesmente como sinônimo de passado.

Primeiro porque memória não pode ser compreendida, de forma ingênua, apenas como

algo próprio do passado, pois:

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De fato o que sobreviveu não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças do tempo que operam o desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam a ciência do passado, os historiadores. 230

Corroborando com esta argumentação, também pode ser observado que, a maior parte

da documentação utilizada na trama deste IV fluxo, como os jornais do Correio Cacerense, o

organograma e as recomendações do roteiro do desfile, os ofícios recebidos ou enviados à

Comissão dos festejos do Bicentenário, foram encontrados em uma pasta nomeada como:

Bicentenário de Cáceres 1878-1978. Neste caso, é importante ressaltar que toda esta

documentação que ainda inclui notas fiscais relacionadas aos gastos e custos da festividade,

ou de todo o material burocrático, e, de uma revista da SEDMAT, foram coligidos desde

1977, isto é, antes mesmo da realização de muitos dos eventos. Tudo isso possibilita perceber

que não só as comemorações foram planejadas com certa antecedência, mas que, também

existia e, ainda existe, todo um interesse em garantir a materialidade arquivística desta

memória, pois no período contemporâneo a estes documentos e, mesmo, hoje, existe um

deliberado interesse de manter esta determinada indexação da documentação concernente às

comemorações do Bicentenário. Além disso, é interessante salientar que, tanto a memória

coletiva quanto a memória individual – que, aliás, não é inteiramente individual, pois em

grande parte também está associada à memória coletiva231 – são seletivas, muito influenciadas

por questões do presente e/ou, por projeções futuras.

Segundo, porque, a história pensada como historiografia, ou seja, a escrita da história

possui epistemologicamente uma amplitude de interesses que vão bem além do passado,

afinal, – sem muitos prolegomenos – a história pode e deve: estudar o acontecer humano

sempre e em toda parte, assim, tudo que interesse ao ser humano tem uma determinada

historicidade, ou de uma forma mais ampla, tudo que esteja relacionado ao ser humano é

passível e possível de ser estudado pela história, desde os proto-homens descendo das árvores

à explosão do Challenger no espaço.

Levando em conta esta amplitude epistemológica da história ou, sobretudo, a

complexidade dos meandros da memória, não se pode nomear categoricamente, naquele dia 6

de Outubro de 1978, o fim da história aqui narrada, tampouco, poder-se-ia asseverar que aí

230 LE GOFF, Jacques, História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992, p.535. 231 Um simples exemplo desta interatividade entre memória individual e coletiva pode ser observado na associação direta que muitas pessoas fazem entre alguns momentos de sua vida a toda uma determinada trilha sonora. Assim, é comum ver estas pessoas, sempre que lembram alguns fatos significativos de sua vida individual, como aniversário de 15 anos, primeiro namorado, grande desilusão amorosa, morte de um ente querido, primeiro emprego..., fazerem esta correlação com alguma música contemporânea ou, ainda, bastante escutada pela mesma durante este período da vida.

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está o início de uma longa história, bem ao estilo das clássicas genealogias preocupadas com

o discurso das origens primeiras e solenes. Não se deve mais dar muito crédito para este tipo

de genealogia, pois esta busca desenfreada das origens, não raro, desemboca em anacronismos

hilários, onde – exagerando/brincando com as palavras – chega-se, sem grandes esforços, a

Adão e Eva. Talvez, seja justamente isso que Foucault ridicularizou quando se preocupou em

citar Nietzsche nas seguintes palavras:

“Procura-se despertar o sentimento de soberania do homem mostrando seu nascimento divino: isto agora se tornou um caminho proibido; pois no seu limiar está o macaco”. O homem começou pela careta daquilo em que ele ia se tornar; Zaratrusta mesmo terá seu macaco que saltará atrás dele e tirará o pano de sua vestimenta. 232

Mas se não é o início nem o fim desta história, poder-se-ia dizer que, mais do que

início, este é um momento de emergência de memória, em que se torna necessário e urgente,

disciplinarizar uma determinada memória para Cáceres. Emerge, neste momento, com maior

força e intensidade um fluxo identitário, através das práticas discursivas e não discursivas

narradas e analisadas até aqui, as quais, ainda hoje, reverberam na cidade de Cáceres, sempre

que se pensa ou se procura escrever um breve histórico sobre a cidade. É, em grande parte,

deste fluxo, que vai surgir o líquido mnemônico que constituirá a coluna dorsal desta história

sobre Cáceres. As tintas deste fluxo, geralmente, vão delinear as formas e os sentidos que

produzem a percepção de uma identidade cacerense.

Para concluir, acrescentado a tudo isso que foi analisado/narrado neste IV Fluxo, pode

ser ainda observado que, se nem todas as ações aqui narradas são verdadeiras, o importante é

que a história no seu conjunto o é, além do mais, não custa lembrar que:

A história – o mundo real ao longo de sua evolução no tempo – adquire sentido da mesma forma que o poeta ou romancista tentam provê-lo de sentido, isto é, conferindo ao que originalmente se afigura problemático e obscuro o aspecto de uma forma reconhecível, porque familiar. Não importa se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe sentido é a mesma. (...) Do mesmo modo, dizer que conferimos sentido ao mundo impondo-lhe coerência formal que costumamos associar aos produtos dos escritores de ficção não diminui de maneira nenhuma o status de conhecimento que atribuímos à historiografia. Só diminuiria se acreditássemos que a literatura não nos ensinou algo acerca da realidade, por ter sido o produto de uma imaginação que não era deste mundo, mas de outro, de um mundo inumano. 233

232 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”, In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado, 20ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2004, p. 18 233 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trd. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994, p. 115.

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Considerações finais

Quando descobri todas as respostas do mundo mudaram-se as perguntas

Aristóteles

Nestas últimas/importantes palavras temos o interesse de discutir apenas sobre mais

duas questões. A primeira, de caráter mais geral, está relacionada a uma difícil e constante

pergunta: para que serve a história? A segunda, mais específica, reside na intenção de saber e

reiterar qual é o sentido/preocupação que esta dissertação possui?

A esta primeira e difícil pergunta, respondida por tantos historiadores, mesmo assim,

constantemente refeita, pois a história tanto como o acontecer humano quanto como à área de

estudo – historiografia –, está sujeita a mudança, à perpétua revisão dos seus postulados, ao

intenso e acalorado debate sobre sua epistemologia; contudo, tencionamos responder esta

pergunta dentro de uma específica economia textual, que conjectura seus argumentos pelo

viés da comparação. Viés este, que, apresenta a vantagem de partir de um exemplo já

estabelecido, com prática/teoria experimentada, e, também, ajuda a aproximar ou, sobretudo,

perceber a proximidade existente entre diferentes áreas do conhecimento, por exemplo,

compreender as similitudes existentes entre a história e a literatura no momento de constituir

enunciativamente seus discursos, ou seja, saber que ambas têm a linguagem falada ou,

principalmente escrita, como meio de construção/invenção de sua atividade.

Se a literatura – para Manuel de Barros – tem a importante função de arejar a língua,

para impedir que a mesma se petrifique nos usos da linguajem clichê, a história, também tem

a imprescindível função de arejar a memória, para impedir que esta se sedimente nos

exemplos de uma memória oficializada, homogeneizante e pouco sensível a diferença. Se a

boa literatura desestabiliza as estruturas da linguajem, provocando desfamiliaridades e

disjunções no uso da língua, chegando mesmo a incitar a insubordinação, a história, por sua

vez, deve revolver a memória, (des)-sedimentalizá-la, ou até mesmo profanar seus heróis e

desnaturalizar suas versões. Perceber, aliás, como tudo que é histórico, que estas versões e

estes heróis foram construídos, ou seja, historicizar ao máximo as condições de possibilidade

de construção/invenção desta memória.

Revolver e aerar esta memória possibilita a emergência do novo na história, possibilita

à insurgência da polifonia, da balburdia que se realiza no pão-nosso-de-cada-dia, do disparate

dos diferentes interesses que constituem o tecido social, das próprias vilanias que permeiam a

construção do discurso homogeneizante de uma memória que se auspicia na condição de ser e

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pertencer a todos, pois quando devidamente historicizada, a mesma não passa de uma

grosseira simplificação viabilizada pela estereotipia da representação, que se contenta em

encenar o todo utilizando pequenas frações. Talvez, o problema nem seja necessariamente

encontrado na defasagem existente entre estas pequenas frações (linhas esparsas, costuras

incompletas) e a totalidade do tecido social, mas antes, na dissimulação de não assumir que

estes fragmentos de memória pertencem, ou são evocados, por apenas uma parte deste tecido

social. É importante saber e perceber que o próprio tecido, é muito mais uma colcha de

retalhos do que, propriamente, um corte de linho bem construído com compleição inteiriça. O

mais interessante é: assumirmos que os mais diferentes retalhos dessa colcha têm direitos de

fala ou, ainda, que não precisam reconhecer necessariamente a vidência dada a apenas um

destes retalhos da colcha, o qual, não raro, auspicia a condição de representar toda a

miscelânea que a constitui.

Levando em conta estas reflexões sobre: para que serve a história? Podemos, afinal,

entender qual é o sentido/preocupação que esta dissertação possui, pois se a história tem como

funções: problematizar, discutir, debater, revolver, aerar..., essa memória mais

homogeneizante, então os sentidos e interesses que nos levaram a pesquisar/escrever este

texto, acabam tornando-se mais plausíveis, ou seja, talvez a memória em Cáceres esteja

precisando de uma aragem que consiga revolver seus sedimentos, para tornar o solo da

história mais fértil, porque, mais poroso e menos cristalizado nos velhos e corriqueiros

exemplos de uma memória grandiloqüente.

Ao percebermos como todo um arcabouço de memória foi construído/inventado,

dentro de uma relação de poder/saber, acabamos por (des)sacralizar esta memória que visa

construir uma identidade cacerense a partir de apenas alguns exemplos da história vivida. Não

que queiramos desvincular o marco do Jauru, a casa rosada, a fazenda Jacobina, a catedral de

São Luis de Cáceres, o anjo da ventura, o vapor eturia..., de uma história sobre Cáceres, pois

eles efetivamente fazem parte desta história, pertencem à memória e a história de Cáceres. No

entanto, é importante ressaltar que, não obstante fazerem parte dos elementos materiais e

simbólicos desta história, não podem por isso ser confundidos, ou ainda pior, vistos como

sendo a própria memória e a história da cidade, afinal: a história, em nosso tempo, não pode

ser discurso de construção, mas de desconstrução, discurso voltado para compreender o

fragmentário que somos, as diferenças que nos constituem, o dessemelhante que nos

habita.234

234 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História a arte de inventar o passado. Bauru – SP: EDUSC. 2007, p. 87.

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Como historiadores, temos que nos preocupar em não ajudar a sedimentar, através de

nossa escrita, uma memória que reside em poucos lugares235, pois a Casa Dulce, o marco do

Jauru, a Casa Rosada, a Fazenda Jacobina, a Fazenda Descalvados...; são exemplos de

memória de apenas um segmento da população cacerense – elite econômica e/ou política –,

por tanto, não devemos menosprezar os múltiplos locais de memória existentes na cidade, a

amplitude da história vivida, com práticas quotidianas bem diferentes desta memória

disciplinada pelo discurso memorialista. Assim, só para pensarmos em um simples e

interessante exemplo relacionado a outros espaços de memória: enquanto estava havendo na

cidade de Cáceres, no ano de 1978, todo aquele conjunto de comemorações relacionadas ao

bicentenário, preocupadas em disciplinar uma memória para a cidade a partir de um passado

bandeirantizado, ou de um panteão de heróis vinculados a elite política/econômica do passado

e do presente, podemos, porém, encontrar nas páginas do Correio Cacerense o seguinte

enunciado:

Campeonato Poli-Esportivo (Undo Kai) no Campo de “BASE BALL” ao lado do Estádio Municipal “ Luiz Geraldo da Silva”, com início às 7 horas, promovido pela Associação Cultural e Esportiva Nipo Brasileira de Cáceres, constando de: 1 – abertura 2 – Provas: corrida e gincana236

235Afinal: “não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito”. DELEUZE, Gilles; QUATTARI, Felix. 1925-1995 Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1; tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. – São Paulo: Ed. 34, 1995, p. 17; “O falecido R. G. Collingwood gostava de dizer que o tipo de história que alguém escrevia, ou o modo como refletia sobre a história, era em última análise uma função do tipo de homem que se era.” WHIT, Hayden. Meta-história: A imaginação histórica do século XIX. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Edusp, 2008, p. 440. 236 Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº. 354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS

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Jornais:

Cáceres em festa. Cuiabá: Jornal EQUIPA, p. 6, 22/02/1978, N. 1569, ano 14, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Cáceres faz Jogral do Tratado de Madri para comemorar seu bicentenário. Cuiabá: Jornal EQUIPA 22/02/1978, ano 14, N.1569 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. CORRÊA FILHO, Virgílio. “Documento destinado às chamadas devoradoras”(Delegacia Fiscal) Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 8/3/1942. CORRÊA FILHO, Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abril/1941. Programa do Bicentenário. Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Correio Cacerense, 29/12/1977, ano I n 127, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC Correio Cacerense, 18/07/1978, ano I, n°. 278, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC Correio Cacerense, nº. 349, ano II. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Ernesto Borges. Cáceres e Luís-Filipe. Correio Cacerense 06/10/78, ano II n 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Emilia Darci de Souza Cuyabano. ATA DA CERIMÔNIA DE INAUGURAÇÃO DO MUSEU. Cáceres: Museu Histórico, 1978. Homenagens – Caderno especial 06/10/01978, In: Correio Cacerense, ano II, n. 353, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Lembrança do Baile das Debutantes do Bicentenário de Cáceres. 16/07/1978, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Luís-Philippe Pereira Leite. “Fronteiro, da Pátria”. Alocução proferida no bi-centenário. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Luizmar Faquine. Cáceres IATE CLUBE fundado no primeiro dia do bi-centenario. Correio Cacerense 30/01/1978, nº.130, ano I, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Luizmar Faquini. EM DUZENTOS ANOS, A MAIOR FESTA. Correio Cacerense 08/10/1978, ano II, nº.354 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC.

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Luizmar Faquini. Parabéns Cáceres: Hoje é seu Grande dia! Correio Cacerense 06/10/1978, ano II, n. 353 – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Natalino Ferreira Mendes. Cáceres – Duzentos Anos. Caderno especial 06/10/1978, In: Correio Cacerense, ano II, n. 353, – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Ernani Martins. Programação de 200º do aniversário de Cáceres. 28/09/1978. Correio Cacerense, nº. 349, ano II. – pasta: Bicentenário de Cáceres 1778-1978 – 29 de setembro de1977. Cáceres: APMC. Sites D:\fontes de sites de pesquisa\- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008 http://www.caceres.mt.gov.br/index2.php?cod_sec=4, visitado em 21.12.2008; http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A1ceres_(Mato_Grosso), visitado em 21.12.2008; http://www.citybrazil.com.br/mt/caceres/historia.php, visitado em 21.12.2008; http://www.apontador.com.br/guia_cidades/mapas/MT/caceres.html, visitado em 21.12.2008 D:\fontes de sites de pesquisa\- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008

Filmes: Pra frente, Brasil (1982) dirigido por Roberto Faria;

O que É isso Companheiro (1997) dirigido por Bruno Barreto;

Lamarca (1994) dirigido por Sérgio Rezende;

O Bom Burguês (1983) dirigido por Oswaldo Caldeira;

Ação entre amigos (1998) dirigido por Beto Brant;

Documentários:

Barra 65 (2000). De Vladimir carvalho;

ABC da gente (1979/1990). De Leon Hersaman;

Greves (1978). De João Baptista de Andrade;

Linha de Montagem (1983). De Renato Tapajós.

Mini-série:

Anos Dourados de Gilberto Braga, dirigida por Denis Carvalho.

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