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I BEATRIZ TEIXEIRA SOUZA DISPERSÃO URBANA NO DF Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Especialista. Curso de pós-graduação lato sensu em Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística. Programa de Pesquisa e Pós- graduação. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Rômulo José da Costa Ribeiro BRASÍLIA 2009

Dispersão Urbana no DF

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I

BEATRIZ TEIXEIRA SOUZA

DISPERSÃO URBANA NO DF

Monografia apresentada como requisito parcial

para obtenção do título de Especialista. Curso

de pós-graduação lato sensu em Reabilitação

Ambiental Sustentável Arquitetônica e

Urbanística. Programa de Pesquisa e Pós-

graduação. Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo. Universidade de Brasília.

Orientador: Prof. Rômulo José da Costa Ribeiro

BRASÍLIA

2009

II

“Tudo tem sua ocasião própria e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”

(Eclesiastes, 3:1)

III

Aos amigos e familiares, pela torcida e compreensão dos momentos ausentes.

A todos os professores do Reabilita, particularmente ao Professor Rômulo, pela orientação e apoio ao longo desta jornada.

Em especial, agradeço a Paulo Augusto de Figueiredo Vivacqua pela dedicação, carinho e paciência, fundamentais para que eu pudesse finalmente chegar até aqui.

IV

Sumário

1. Introdução. .................................................................................................................................... 1

2. Dispersão Urbana: reflexão e debate ........................................................................................... 3

3. Globalização: mito e realidade .................................................................................................... 10

4. Sustentabilidade: um caminho para a cidade de todos .............................................................. 16

5. Alain Bertaud: um método e uma análise ................................................................................... 21

6. Brasília: Uma Breve História ....................................................................................................... 35

7. Dispersão Urbana no Distrito Federal ......................................................................................... 44

8. Considerações Finais .................................................................................................................. 59

9. Referências Bibliográficas: ......................................................................................................... 61

V

Lista de Figuras

Figura 1 – Cidade Policêntrica de Richard Rogers (adaptado de ROGERS, 2000, p.47).................... 26

Figura 2 – Representação esquemática de viagens padrão dentro em diferentes estruturas urbanas

(BERTAUD, 2003, p.8) .......................................................................................................................... 28

Figura 3 – Governador em visita à Comissão de Erradicação de Favelas (Arquivo Público do Distrito

Federal) ................................................................................................................................................. 39

Figura 4 – Distância a ser percorrida de Ceilândia para o Plano Piloto em 1971 (Arquivo Público do

Distrito Federal) ..................................................................................................................................... 40

Figura 5 – Vista área da Vila do Iapi (Arquivo Público do Distrito Federal) .......................................... 41

Figura 6 – Localização espacial das Regiões Administrativas (RAs) do Distrito Federal e suas

respectivas distâncias em relação à Brasília - Esplanada dos Ministérios. (adaptado de

http://www.geocities.com/augusto_areal/ra_big.jpg)............................................................................. 47

Figura 7 – Distribuição espacial dos agrupamentos definidos pelo DIEESE e seus respectivos CDBs.

............................................................................................................................................................... 52

VI

Lista de Gráficos

Gráfico 1 – Comparação média da densidade populacional em áreas construídas em 49 áreas

metropolitanas (BERTAUD, 2003, p.9) ................................................................................................. 30

Gráfico 2 – Relação entre densidade e distância do centro (densidades descrescentes) (BERTAUD,

2003, p.11) ............................................................................................................................................ 32

Gráfico 3 – Relação entre densidade e distância do centro (densidades crescentes) (BERTAUD,

2003, p.12) ............................................................................................................................................ 34

Gráfico 4 – Renda domiciliar per capita mensal segundo as Regiões Administrativas (RAs)

(CODEPLAN, 2006) .............................................................................................................................. 50

Gráfico 5 – Perfil ocupacional da população ocupada segundo os setores de atividades. (CODEPLAN,

2006) ..................................................................................................................................................... 54

Gráfico 6 – Comportamento das viagens diárias entre os locais de moradia (Grupos 1,2,3) e o CCS

do DF (Grupo 1) .................................................................................................................................... 58

VII

Resumo

Muitas cidades do mundo enfrentam, hoje, inúmeros problemas em suas estruturas

urbanas em função de políticas públicas desacertadas com o interesse coletivo,

trazendo conseqüências irreversíveis do ponto de vista estrutural, econômico e

social. Pode-se dizer que a dispersão urbana é, de fato, o resultado de um conjunto

de fatores representados por esses três níveis, os quais ocorrem em maior ou menor

grau, dependendo da história de cada uma das cidades que apresentam este

fenômeno. Embora não se tenha uma fórmula pré-determinada para impedir ou

retardar esse processo, sabe-se que a cidade dispersa é contrária à idéia de

sustentabilidade, uma vez que demanda altos custos para a própria manutenção e

funcionamento da cidade, além dos custos sociais gerados pelos grandes

deslocamentos gerados para a mobilidade da população. A cidade dispersa possui

forte característica excludente, e sua perversa estrutura é, por vezes, difícil de ser

alterada. Este é o caso de Brasília e seu entorno, conjunto considerado como a

segunda estrutura urbana mais dispersa do mundo. Para a verificação deste dado foi

utilizado um dos indicadores propostos por Alain Bertaud, qual seja: as viagens

diárias percorridas pela população entre os locais de moradia e seus locais de

trabalho. Esta análise teve por base dados censitários e o mapeamento do

deslocamento desta população, fatores esses fundamentais para a análise em

questão.

Palavras-chave

Dispersão Urbana, Sustentabilidade, Globalização, Indicadores de Dispersão,

Viagens Diárias entre Moradia e Trabalho.

1

1. Introdução.

A definição do que é a cidade não é uma tarefa simples. Palco de inúmeras

intervenções, por vezes contraditórias, ela requer análises espaciais bem definidas,

muito embora sua leitura não deva ser feita apenas por este ângulo. Questões

sociais e econômicas não podem ser ignoradas do contexto do qual fazem parte,

tratando-se mesmo de um emaranhado de fatores concorrentes.

O mundo, hoje predominantemente urbano, proporciona um desafio à sua

própria existência, impondo necessariamente modelos de vida diferentes do que

àqueles que foram adotados até os dias atuais. A necessidade premente de novos

valores a serem adotados irá ditar as novas formas de consumo e

conseqüentemente, de vida para um futuro próximo. A busca por melhores

condições de vida subentende a busca por uma cidade sustentável, que proporcione

qualidade de vida em seu sentido mais amplo.

A dispersão urbana é a antítese dessa proposta. Pretende-se demonstrar o

descompasso entre essa configuração urbana e o ideal de uma cidade sustentável,

que promova a acessibilidade ao pleno gozo dos direitos e deveres fundamentais de

seus cidadãos. A dispersão (“separação”) urbana implica em elevados custos não só

financeiros, mas principalmente sociais.

Para a discussão de conceitos tão antagônicos, faz-se necessário traduzir

como o assunto vem sendo abordado por pesquisadores em todo o mundo. A

proposta deste trabalho, no entanto, não é esgotar o problema em todas as suas

vertentes, mas sim apresentar um panorama da relação, ou desconexão, entre

sustentabilidade e cidade dispersa.

2

O caso do Distrito Federal (Brasília e cidades do entorno) se apresenta como

um exemplo deste tipo de estrutura urbana, embora suas motivações tenham sido,

em geral, diversas daquelas cidades comumente conceituadas como dispersas.

Pelas particularidades de sua história, Brasília se apresenta como um exemplo

concreto, sendo mesmo considerada como a segunda cidade mais dispersa do

mundo.

Para a constatação deste fato, utilizou-se como base de pesquisa a distância

entre os locais de moradia aos locais de trabalho dentro dos limites do Distrito

Federal. Aparentemente simplista, este dado é capaz de fornecer subsídio para

constatar a existência desta dispersão, e quão prejudicial se apresenta para a

população que a percebe sensoriamente todos os dias.

3

2. Dispersão Urbana: reflexão e debate

Na cidade do passado, o projeto do espaço aberto, o “projeto de solo”, não

era retalho de um excipiente neutro, dentro do qual depositavam

arquiteturas, depositavam edifícios, mas desenho através do qual se

construíam concretamente as regras da justa distância, seja métrica, seja

visual e simbólica. (SECCHI, 2006, p.127)

O processo de dispersão urbana é complexo e diversificado. Apesar de muito

presente nas cidades contemporâneas de todo o mundo é nas formações

metropolitanas mais recentes que ela se torna mais evidente. Em todos os casos, no

entanto, elas não são idênticas; ao contrário, cada região ou país apresenta suas

especificidades e problemas distintos, os quais contribuem em maior ou menor grau

para este fenômeno.

A crescente urbanização ao longo da segunda metade do século XX

contribuiu para mudanças importantes em todos os quadrantes do mundo, inclusive

no que diz respeito aos modos de vida atuais, os quais são tipicamente urbanos até

mesmo para áreas denominadas rurais. Reis1 (2007), em recente palestra na

Conferência sobre o tema da dispersão urbana, em São Paulo, evidencia o fato de

que o mundo, hoje, encontra-se predominantemente urbano. No Brasil, em 2007,

foram identificadas no país a existência de 14 áreas metropolitanas2 com mais de 1

milhão de habitantes.

1REIS, Nestor G. (Org.). Dispersão Urbana: Diálogo sobre pesquisas Brasil – Europa. São Paulo:

FAU-USP, 2007. 2 Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Campinas, Guarulhos,

São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia, Brasília.

4

Dentro deste contexto, entende-se a dispersão como um processo radical que

leva à superação de conceitos bem marcados entre cidade e campo; conceitos, até

então, paradigmáticos no que diz respeito às suas interpretações, ou seja, até então,

sabia-se diferenciar claramente o que era urbano e o que era rural.

Na mesma conferência, Patarra3 (2007), pesquisadora titular da Escola

Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE), o qual possui vinculação ao Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), discursou sobre o tema, proporcionando

esclarecimentos sobre as novas mudanças nos processos de distribuição espacial

da população, principalmente a brasileira. Para ela, é necessário o entendimento do

que batizou de “novo urbano”, “novo rural” e “novas territorialidades”, conceitos estes

advindos das transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas em todo o

mundo a partir de 1970.

Patarra (2007) afirma que os elementos de caracterização dos conceitos do

rural e do urbano são questionados, uma vez que outrora se dariam por critérios

administrativos decididos pelo poder municipal. Para ela, “a definição deveria

incorporar a existência de serviços coletivos, tomar em conta a predominância de

atividades não rurais e a concentração a partir de um certo tamanho.” 4

A situação de domicílio do Censo Demográfico de 2007 já oferece avanços

nesse sentido, ao considerar a situação rural como a abrangência da população e

domicílios recenseados fora dos limites das sedes municipais e distritais, incluindo

3 PATARRA, L.; Neide. Do urbano-rural às novas configurações territoriais: conceitos, questões

e uso de estatísticas oficiais. In: DISPERSÃO URBANA: DIÁLOGOS SOBRE BRASIL-EUROPA, 2007, São Paulo. Anais. São Paulo: USP, 2007.p.173-212. 4 Ibid., p.203.

5

os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos5. Dessa

forma:

A dicotomia rural-urbano, que considerava o urbano com “lócus” das

atividades não agrícolas – indústria – e que atribuía ao rural as atividades

agrícolas, vem perdendo a sua importância histórica. O que se observa é

uma crescente heterogeneidade de atividades e opções de emprego e

renda não agrícolas, o que tem contribuído para que a população residente

no meio rural tenha maior estabilidade econômica e social.

(CAMPANHOLHA; SILVA apud PATARRA, 2006, p.192)

Patarra (2007) quis demonstrar a dificuldade de apontar definições muito

claras entre o que é urbano e o que é rural, uma vez que o espaço desigualmente

distribuído é produto de outras forças que não aquelas definidas por regiões

administrativas, as quais não proporcionam informações suficientes para o

entendimento entre as relações de produção entre as cidades de uma mesma região

ou as inter-relações fora dela. A dispersão urbana aparece, então, como produto

dessas forças, que serão melhor discutidas por meio da base teórica fornecida por

Bertaud e Malpezzi (2003), a qual é utilizada para o fim a que se destina este

trabalho.

5 Aglomerado rural de extensão urbana: setor rural situado em assentamentos situados em área

externa ao perímetro urbano legal, mas desenvolvidos a partir de uma cidade ou vila, ou por elas

englobados em sua extensão; Povoado: setor rural situado em aglomerado rural isolado sem caráter

privado ou empresarial, ou seja, não vinculado a um único proprietário do solo (empresa agrícola,

indústria, usina, etc) cujos moradores exercem atividades econômicas no próprio aglomerado ou fora

dele. Caracteriza-se pela existência de um número mínimo de serviços ou equipamentos para

atendimento aos moradores do próprio aglomerado ou de áreas rurais próximas; Núcleo: setor rural

situado em aglomerado rural isolado, vinculado a um único proprietário do solo (empresa agrícola,

indústria, usina, etc) privado ou empresarial, dispondo ou não de serviços ou equipamentos

definidores de povoados.

6

Reis (2007), em consonância com o pensamento de Patarra (2007), também

defende a idéia de que é necessária uma reavaliação entre as definições de urbano

e rural. Para ele, dever-se-ia reconhecer as áreas urbanas como áreas que

apresentam características de vida metropolitana, diretamente relacionada com as

formas de consumo. De fato, a sociedade do consumo se concretiza, de forma clara

e incisiva, por meio de elementos presentes nos empreendimentos de áreas

dispersas, e abundantemente defendidos pelo marketing empresarial. Um dos

grandes apelos comerciais empregados nesta tarefa é a presença de abundante

área verde com equipamentos de lazer e esportes cada vez mais completos e

sofisticados, os quais traduzem uma sociedade cada vez mais hedonista, que se

concretiza em uma incessante busca pelo prazer.

Assim, Reis (2007) acredita que há cinco grandes mudanças responsáveis

pela dispersão urbana ao redor do mundo, quais sejam:

- Grandes migrações rural-urbanas em vários continentes, reforçadas pelo

significativo crescimento demográfico;

- Surgimento de regiões com população totalmente urbanizada;

- Intensificação da industrialização e crescente dispersão das unidades

produtivas em todo o mundo;

- Universalização dos mercados ou pólos de produção e de seus padrões

técnicos, com suas centralidades específicas;

- Universalização de modos de consumo padronizados, ou seja, o consumo

de massa.

A partir daí, demonstra grande preocupação com os projetos urbanísticos, os

quais estão sujeitos a interferências de agentes externos que desconhecem os

7

problemas locais de cada cidade. Defende, portanto, um trabalho de pesquisa

permanente por parte dos profissionais diretamente ligados a esta questão no

âmbito da administração pública, principalmente no que diz respeito à utilização dos

instrumentos de gestão alinhados com o interesse público.

As mudanças têm sido tão rápidas e tão amplas, que os poderes públicos, a

imprensa e boa parte dos pesquisadores ainda não se deram conta da

necessidade de novos recursos técnicos e financeiros para produção e

organização desses conhecimentos para fixação de novos critérios

profissionais e de políticas públicas. (REIS, 2006, p.46)

Ainda na mesma conferência, Secchi6 (2007) contribui para a questão da

dispersão urbana com uma visão mais sociológica e humanitária, uma vez que se

debruça sobre a cidade contemporânea, analisando-a sob a ótica do “modo vivendi”

que se estabelece dentro dos padrões de consumo hoje adotados.

Secchi (2007) acredita que o impasse está, sobretudo, na “falta de solução”,

ao longo de todo século XX, de quatro problemas principais, inerentes à cidade, uma

vez que esta é resultado de uma série de fatores concorrentes. Assim, defende que

a forma da cidade contemporânea nasceu a partir dos seguintes fatores:

- Emersão de crescente importância do sujeito;

- Emersão de imponentes e simultâneos fenômenos de concentração e

dispersão urbana;

- Emersão do cotidiano, ou seja, do dia-a-dia programado;

- Progressiva democratização do espaço.

6 SECCHI.; Bernardo. A Cidade Contemporânea e Seu Projeto. In: DISPERSÃO URBANA:

DIÁLOGOS SOBRE BRASIL-EUROPA, 2007, São Paulo. Anais. São Paulo: USP, 2007.p.113-139.

8

No que diz respeito à crescente importância do sujeito, Secchi (2007) faz um

paralelo à crescente recusa do indivíduo à tutela das instituições e do poder. O

medo de se encontrar no anonimato em um mundo de novidades constantes faz

com que o sujeito se individualize cada vez mais na busca de um “espaço sempre

maior aos aspectos privados da existência” (SECCHI, 2007, p.116). Na verdade,

Secchi não teme o individualismo em si, mas sim a “alienação da vida social”, ou

seja, ele teme a perda do “sentimento de pertencer a uma classe ou a uma

comunidade”, o que, fatalmente, levaria à dissolução do que se entende por cidade.

Para Secchi (2007), subestimar a co-autoria do emergente individualismo na

composição da cidade contemporânea seria um erro. Todas as tentativas de

remodelagem da cidade moderna seriam, de certa forma, voltadas para a dimensão

individual. A tentativa da produção de novos lugares, de proximidade ou

distanciamento, está ligada à tentativa de se procurar uma “justa distância”, movida

por novas práticas cotidianas.

Dessa forma, ele entende que houve um atraso no entendimento da

articulação da sociedade do século XX, e que isto trouxe como conseqüência o

abandono das partes mais dispersas da cidade. A estas áreas, desconsideradas do

processo de projeto, não foram dadas as devidas ocupações e preocupações; ao

contrário, foram desconsideradas, apagadas, na esperança de lentamente se

transformasse até chegado o momento de ficar parecida com a cidade moderna.

Dessa forma, o imaginário coletivo, a partir de novos valores e referências,

desvirtua-se em uma contraditória democratização, a do descuido generalizado por

parte da sociedade e da administração pública. Contraditoriamente, estes “espaços

residuais”, coletivamente compartilhados, parecem não pertencer a ninguém. Para

9

Secchi (2007), o coletivo e o individual são aspectos subjetivamente intrínsecos à

problemática da dispersão urbana.

Assim, é possível distinguir, entre os pesquisadores aqui citados, um ponto

comum, para onde convergem todas as questões levantadas, apesar dos diferentes

recortes e abordagens que cada um defende como causadores da dispersão

urbana. A dificuldade de conceituar o urbano e o rural, as formas de consumo

padronizadas e a emergente importância do sujeito são questões que concretizam,

pontualmente, uma discussão ainda maior, qual seja: o mito da cidade-global.

10

3. Globalização: mito e realidade

O que é globalização? O enfrentamento central dos nossos tempos. Aquele

do mercado contra o Estado, do setor privado contra os serviços públicos,

do indivíduo contra a coletividade, dos egoísmos contra as solidariedades.

(RAMONET, 2007 apud FERREIRA, 2007, p.94)

Entre os diversos pesquisadores sobre dispersão urbana, parece ser pacífico

o entendimento da “união” entre o urbano e o rural, a qual é fruto direto das relações

de produção estabelecidas em todo o mundo após a segunda metade do século XX,

particularmente as transformações ocorridas a partir de 1970, década considerada

como marco para a passagem de uma reestruturação produtiva após o capitalismo

fordista, que implicou em abertura dos mercados nacionais e em um novo parâmetro

de economia globalizada.

Dentro deste contexto, a abertura econômica brasileira proporcionou a

inserção do país no círculo internacional, ao mesmo tempo em que alimentou ainda

mais as desigualdades sociais já existentes. Segundo Ferreira (2007), percebe-se

uma assimetria entre esta nova forma de crescimento da economia mundial e o

surgimento de novos grandes bolsões de pobreza em países em desenvolvimento,

como é o caso do Brasil. Isto quer dizer que, enquanto o papel das cidades de porte

médio crescem em importância na economia do país, fortalecem-se as diferenças e

desigualdades regionais.

11

Ferreira7 (2007) discute fervorosamente a suposta modernização dos países

periféricos em decorrências de suas aberturas para o escoamento dos fluxos da

economia globalizada. Defende que o único pensamento, hegemônico, de que deve

haver um novo patamar de mobilidade internacional do capital por meio dos

consideráveis avanços da tecnologia, principalmente no que diz respeito à

informática e telecomunicações, é nada menos que um subterfúgio para a defesa de

um sistema capitalista em crise, dada as suas condições após a década de 1970.

De fato, as nações capitalistas industrializadas cresceram exponencialmente

a partir do pós-guerra. A política do Welfare State8 até meados dos anos 1960,

encabeçada pelos Estados Unidos, pregava uma sociedade segura, mas não se

firmou como um “modelo de sucesso”. Ao contrário, esgarçaram-se as

desigualdades entre países ricos e pobres, na medida em que o fornecimento de

mão-de-obra barata para as multinacionais condicionou a renúncia do

desenvolvimento interno baseado na igualdade e distribuição de renda.

Entretanto, finda a fase de reestruturação, as dificuldades em manter

constante o ritmo de crescimento dos países desenvolvidos, visto que era

necessária a ampliação dos mercados de consumo, exige o surgimento de uma

nova ideologia para a solução deste problema.

Nesse sentido, a globalização seria nada menos que uma arma ideológica

para o suspiro do sistema capitalista de produção. As inovações tecnológicas, com

novas possibilidades de comunicação e transporte, fizeram com que o setor

7 FERREIRA, J.S.W. O Mito da Cidade Global: o papel da ideologia na produção do espaço

urbano. São Paulo: Vozes/ Unesp, 2007. 8 “Estado do Bem-Estar”. (FERREIRA, 2007, tradução nossa)

12

produtivo se reordenasse espacialmente, tornando-se segmentado com novas

frentes de produção em várias partes do globo, ou seja, o mesmo produto poderia

ser fabricado em qualquer parte do mundo, apesar das decisões estratégicas nunca

saírem do comando das sedes localizadas em seus países de origem. Este é o

fenômeno pelo qual os economistas denominam “reestruturação produtiva”.

Busca-se em cada país o que ele pode oferecer de mais vantajoso, mão-de-

obra barata, ausência de restrições ambientais e/ou trabalhistas,

proximidade da matéria-prima, graças à possibilidade, trazida pelas

tecnologias de comunicação, de controlar todo o processo de um único

país, montando o produto final em alguma parte do mundo. (FERREIRA,

2007, p.98)

Com certo distanciamento, fica claro o aspecto ideológico que reveste a

globalização como algo positivo para todo o mundo. É interessante notar como a

“inclusão” dos países periféricos à economia mundial se reveste de uma benéfica

euforia, alimentada pelas novas opções de consumo das parcelas das populações

mais elitizadas. Neste sentido, o marketing nunca esteve em tão grande conta e

importância, generalizando o consumo padronizado, o consumo de massa.

Na verdade, o subjugo dos países periféricos em relação aos países

industrializados não é uma novidade. No caso do Brasil, remonta mesmo aos

primórdios de sua formação, à época da colonização portuguesa. No entanto, é

espantosa a maneira como as cidades do Terceiro Mundo são impelidas a

participarem do “mercado mundial”, quando se sabe que cada vez participam menos

dos processos e fluxos que caracterizam a “cidade-global” (FERREIRA, 2007).

O “Consenso de Washington”, cartilha que estipulou dez condições para os

países interessados a se adequarem ao novo sistema, em 1993, teve um papel

13

importante para a definição das políticas atualmente adotadas. Para o caso do

Brasil, e de outros países não menos dependentes, o que se verificou foi a falsa

crença de que a participação do Estado diminuiria frente às imposições do mercado.

De fato, um dos dez pontos exigidos na cartilha era de que as empresas estatais

deveriam ser privatizadas9.

O que se percebe, no entanto, é que, ao invés do recuo do Estado, a

globalização representa a intensificação de sua participação, agora de forma mais

qualificada e especificamente voltada para os interesses do capital, em detrimento

da sociedade. “O Estado do Bem-Estar Social se tornou o Estado do Bem-Estar das

empresas, de tanto que o Estado vem trabalhando a favor dos interesses

empresariais em todos os países capitalistas.” (SANTOS, 2007 apud FERREIRA,

2007, p.114)

Diante do exposto, fica a pergunta: seria possível atribuir a certas cidades ao

redor do mundo níveis de importância de acordo com sua “adaptabilidade” ao mundo

globalizado? Não é novidade que as cidades sempre foram o locus privilegiado da

expansão do sistema capitalista. No entanto, há autores que defendem uma certa

tipologia urbana que responda a novas expectativas do mercado. Segundo

Sassen10, as cidades na era da globalização devem ser mais “especializadas do que

eram, mais preparadas para um novo tipo de organização econômica, para uma

nova economia de serviços. As cidades devem, no novo padrão global, ser

competitivas”.

9 A cartilha do “Consenso de Washington” 10 pontos principais: 1) Disciplina Fiscal; 2)Contenção das

Despesas Públicas; 3) Reforma Tributária; 4)Liberalização Financeira; 5)Controle Cambial; 6) Liberalização do Mercado; 7) Aberturas para investimentos diretos do exterior; 8) Privatização; 9) Desregulamentação; 10) Direitos de Propriedade. 10

SASSEN, 1999 apud FERREIRA, 2007, p.115.

14

Assim, os ajustes necessários à inserção dos países ao mundo globalizado

extrapolam as políticas preconizadas pelo “Consenso de Washington” e vão mais

além. Seria necessário, também, estipular uma receita para inserir as cidades dentro

deste sistema. A “globalização”, por meio da idéia da “cidade-global”, adentra em

definitivo no mundo do planejamento urbano, o qual se apropria de duas

modalidades de intervenção muito discutidas e polêmicas: o planejamento

estratégico e o marketing urbano.

A polemização em torno destas atuações está justamente na credibilidade de

suas autênticas e verdadeiras intenções de melhorias urbanas para as realidades

locais de cada cidade. No entanto, o assunto não será foco de discussão para este

trabalho, mas sim um complemento teórico para o entendimento das configurações

das cidades no contexto mercadológico, uma vez que ela é, de fato, resultado desta

realidade.

Enfim, o impacto da globalização sobre o meio urbano e a geografia do

espaço torna-se objeto de inúmeras análises e conjunturas. De fato, a idéia do

“global” se impõe, no mundo atual, em sua forma mais acabada e eficaz. Santos11 já

discutia os níveis de compreensão dessa nova conjuntura (o mundial, o do território

dos Estados e o local), quando afirma que ela se concretiza por meio da

desmaterialização do dinheiro e do seu uso instantâneo e generalizado. As fronteiras

estão abertas, e destinam modificações nos modos de vida nestes três níveis. No

entanto, é localmente que os fragmentos dessa rede mundialmente conectada

ganham uma dimensão única e socialmente concreta.

11

SANTOS, M. A Natureza do Espaço. São Paulo: USP, 2008.

15

De uma forma geral, a percepção de Santos (2008) poderia ser aplicada a

qualquer contexto geográfico, sendo possível traçar certos panoramas urbanos em

cada país ou região. Contudo, a análise da dispersão urbana requer estudos mais

aprofundados, visto que as especificidades de cada localidade exigem

interpretações particularizadas.

Dessa forma, tendo em mente a relação entre economias e sistemas de redes

mundialmente conectados, pode-se discutir as várias vertentes teóricas de

explicação para o fenômeno da dispersão urbana. Ainda que diretamente

relacionada às intervenções locais, é também fruto da relação dessas redes em

nível mundial. Este é um fator de suma importância para a compreensão do

problema, visto que não é produto isolado e inerte, mas flexível e dinâmico, tratando-

se, portanto, de foco para inúmeras discussões no Brasil e no mundo. A análise

refere-se, então, do local ao global; e do global ao local.

16

4. Sustentabilidade: um caminho para a cidade de todos

Na cidade, o ambiente é o homem, feito de suas amarguras e sonhos. Na

cidade, as densas e frágeis relações entre os indivíduos estimulam o

conflito e a contradição, mas, também, a aproximação entre o eu e o outro.

(HISSA, 2008, p.271)

Em se tratando de uma cidade para todos, que vise à integração ou ao menos

a compreensão das desigualdades inerentes a ela, faz-se necessário entender

alguns conceitos ora vigentes, que assumem uma nova roupagem em um mundo

revestido de contrastes. Ambiente, ou meio-ambiente, patrimônio e cultura são

palavras que, relacionadas, condicionam avaliar outro conceito: o da

sustentabilidade, palavra que, para o âmbito urbano, denota uma cidade de inclusão,

e não de exclusão.

Tradicionalmente, entende-se ambiente por aquilo que circunda o ser

humano, ou seja, que o rodeia, que o envolve, subentendendo uma exterioridade. A

“superfície exterior ao eu”, ao envolver objetos e seres, acaba por influenciá-los,

sendo o contrário também verdadeiro. De fato, pode-se dizer que o homem, é sim,

produto do meio. “As sociedades são reflexos e produtos da sua própria cultura que

é, por seu turno, também, um ambiente estruturante que condiciona e, em

determinadas circunstâncias, determina valores e hábitos”.12

Esta relação de troca verdadeiramente existente entre o ambiente e o ser

humano concretiza-se em uma cultura, a qual determina valores e hábitos. Assim,

pode-se dizer que a cidade é produto direto dessa relação, revelando, sempre, os

12

HISSA, E.V.; Cássio. I.N de (Coord). Cidade e Ambiente: Dicotomias e Transversalidades. In: SABERES AMBIENTAIS: DESAFIOS PARA O CONHECIMENTO DISCIPLINAR, 2008, Belo Horizonte. Anais. Belo Horizonte: UFMG, 2008.p.259-281.

17

próprios contrastes e conflitos inerentes ao homem. A leitura da cidade é a própria

leitura do humano, do ambiente, da vida moderna, enfim, do pensamento moderno.

De fato, o pensamento moderno estabelece e necessita de rótulos. A

produção do conhecimento moderno insinua “universos bipartidos”, e a superação

das dicotomias aí estabelecidas oferece grande desafio para o conhecimento

multidisciplinar, necessário para a busca do que chamamos hoje de

sustentabilidade. A fragmentação do conhecimento, e a sua conseqüente

especialização, reduz o senso crítico à simplificação de questões que não possuem

fronteiras, mas sim “zonas de contato”, com outros ramos do saber.

A cidade para todos é, então, produto de um conjunto de conhecimentos

interligados. Pode-se dizer que ambiente, patrimônio, cultura e sustentabilidade são

conceitos que se apresentam conectados, sendo mesmo necessário a compreensão

de um para o entendimento de outro. A questão ambiental e os valores sociais não

são mais avaliados isoladamente, pois estão conectados pela preocupação e busca

por uma “existência sustentável”.

Durante muito tempo, pensou-se que preservar era manter intocável um bem

material, ou seja, a própria idéia de preservação estava culturalmente vinculada a

algo estanque. No entanto, o conceito de sustentabilidade surge somente em 1972,

na Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, vindo

18

agregar ingrediente novo a esse pensamento, quebrando paradigmas e permitindo

que o patrimônio abrangesse um leque muito maior em seu foco de atuação. 13

O desenvolvimento sustentável é, de fato, indissociável do desenvolvimento

global da sociedade, pois depende de mudanças econômicas, sociais, culturais e

ecológicas. É exercício inútil mensurar quais os pesos e medidas da contribuição de

cada um destes fatores, mas é fato de que a conexão entre eles, e suas

interdependências, são, hoje, fundamentais para se pensar na vida em sociedade.

Assim, patrimônio, hoje, possui um conceito mais abrangente daquele

originalmente creditado pela cultura romana14, e não mais privilegia apenas o belo e

o excepcional, uma vez que a mudança de paradigmas comportamentais e mentais

dita uma nova cultura. A noção de preservação incorpora, atualmente, a

imaterialidade do patrimônio. A própria cultura e o ambiente, assim, possuem novos

conceitos enquanto integrantes deste legado.

As diretrizes e princípios da Conferência de Estocolmo proclamam a inter-

relação entre desenvolvimento humano, econômico, social e ambiental, e prega,

ainda, a necessidade do homem continuar “descobrindo, inventando, criando e

progredindo”, ou seja, subtende-se aqui um ciclo cultural que acompanha o

desenvolvimento do homem. A utilização consciente dos recursos para o

desenvolvimento dos povos com vistas a um crescimento conjunto e planetário

seria, então, dever de todos.

13

COSTA, H.S.M.; Meio Ambiente e Desenvolvimento. In: SABERES AMBIENTAIS: DESAFIOS

PARA O CONHECIMENTO DISCIPLINAR, 2008, Belo Horizonte. Anais. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 14

O conceito de patrimônio tem suas origens na Antiguidade Clássica, e referia-se ao direito de propriedade em âmbito privado. Naquela época, a maioria da população romana não tinha escravos, mas possuía patrimonium (o que pertencia ao pai, pater ou pater familias).

19

Deve-se aplicar a planificação aos agrupamentos humanos e à

urbanização, tendo em mira evitar repercussões prejudiciais ao meio

ambiente e a obtenção do máximo de benefícios sociais, econômicos e

ambientais para todos. A esse respeito, devem ser abandonados os

projetos destinados à dominação colonialista e racista. (PRINCÍPIO 15,

Conferência das Nações Unidas Sobre o Ambiente Humano, 1972)

Sem prejuízo dos princípios gerais que possam ser estabelecidos pela

comunidade internacional e dos critérios e níveis mínimos que deverão ser

definidos em nível nacional, em todos os casos será indispensável

considerar os sistemas de valores predominantes em cada país, e o limite

de aplicabilidade de padrões que são válidos para os países mais

avançados, mas que possam ser inadequados e de alto custo social para os

países em desenvolvimento. (PRINCÍPIO 23, Conferência das Nações

Unidas Sobre o Ambiente Humano, 1972)

Em virtude da generalidade do conceito, mutidisciplinar, a discussão acerca

do desenvolvimento sustentável após 1972 se amplia. Apesar da clareza com que o

objetivo maior, que é o desenvolvimento sustentável, se apresenta e se faz

necessário, há uma grande disputa teórica em como atingí-lo, ou seja, quais os

meios necessários para efetivar este desenvolvimento. Esta questão torna-se ainda

mais problemática quando estes meios contrariam e interferem com as experiências

vividas, de forma diferenciada, pelos diversos países do mundo.

Culturalmente falando, todas as ações criadas pelo ser humano interferem no

meio em que ele vive, transformando-o e gerando, conseqüentemente, um legado. A

questão é se essas ações serão benéficas em termos ambientais e que herança

será herdada pelas gerações futuras.

20

Há que se pensar sobre em como intervir no ambiente humano, seja ele

natural ou urbano. Acredita-se que um “compromisso intergeneracional”, discutido

pelo Relatório de Bruntland15, seja o grande caminho a ser trilhado pelas nações de

todo o mundo a fim de que se chegue a um objetivo comum, ou seja, o da busca por

um mundo sustentavelmente possível.

No entanto, as diferenças e especificidades da história de cada país

demonstram a dificuldade de se pensar em uma solução planetária a ser aplicada a

todas as nações, inclusive quando se pensa em um mundo globalizado onde as

relações se estabelecem entre dominantes e dominados. A utilização dos recursos

naturais pelos países em desenvolvimento explicita bem esta questão quando são

veementemente criticados pelos países desenvolvidos.

Assim, questiona-se se a concretização de um novo paradigma mundial,

porquanto se torne apenas uma utopia, ficando apenas dentro das discussões

teóricas sobre o tema. No entanto, é necessário e premente que cada país tenha a

responsabilidade de assegurar ao seu povo uma vida sustentavelmente possível,

uma vez que domine e valorize sua cultura e, conseqüentemente, seu patrimônio,

seja ele material ou imaterial. A cidade seria, então, a concretização de outros

valores que não aqueles definidos por imposições externas, alheias às suas

necessidades e demandas (COSTA, 2008).

15

Apesar de não trazer novidades quanto às formulações de Estocolmo, o Relatório de Brundtland

define, oficialmente, a expressão “desenvolvimento sustentável” como sendo aquele que “atende às

necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a

suas próprias necessidades”. (COSTA, 2008, p.82)

21

5. Alain Bertaud: um método e uma análise

Urban spatial structures are shaped by market forces interacting with

regulations, primary infrastructure investments and taxes.16

(BERTAUD,

Alain, 2004)

Alain Bertaud17 afirma que as organizações espaciais das cidades são

moldadas por forças de mercado que interagem, em maior ou menor grau, com os

instrumentos de gestão manipulados pelo planejamento urbano, quais sejam: leis do

uso do solo, investimentos em infra-estrutura primária e impostos. Considera,

portanto, a influência política de governos locais na condução de caminhos e

soluções para qualquer cidade.

A cidade é fruto de fatores interdependentes. Fatores estes que, muitas vezes

dotados de idéias antagônicas, faz preponderar soluções não planejadas do ponto

de vista estritamente técnico, mas principalmente político. Na grande maioria dos

casos, a cidade é, de fato, produto direto de decisões políticas com pouco ou

nenhum conteúdo técnico. É bem verdade que não há uma fórmula para a “cidade

perfeita”, mas é possível, por meio de objetivos pré-definidos, estabelecer soluções

e condições coerentes com a cidade que se quer implementar.

Dessa forma, Bertaud (2003) não só acredita ser a cidade o palco das

manifestações do mercado, mas também posiciona a fragmentação ou consolidação

deste segundo o direcionamento adotado para a produção de uma dada estrutura

16

Estruturas urbano-espaciais são formadas por forças de mercado que interagem com leis, infra-estrutura básica e impostos (tradução nossa)

17 BERTAUD, Alain. The Spatial Organization of the Cities: Deliberate outcome or unforessen

consequence? Institute of Urban & Regional Development (IURD), 2004. Disponível em: <http://repositories.cdlib.org/iurd/wps/WP-2004-01> Acesso em: 20 mar. 2009.

22

urbana. Isto quer dizer que a configuração da cidade pode contribuir ou não para a

performance da atuação do mercado, sendo, para isto, necessária a atuação do

planejador urbano como intermédio para o fim a que se destina o propósito de uma

cidade.

Bertaud (2003), entretanto, não discute, necessariamente, os fatores

favoráveis e desfavoráveis da cidade-global, ou as motivações que a levaram a

termo. Preocupa-se, principalmente, em discutir as implicações da sua estrutura

urbana na gestão da cidade e o custo das decisões que a geraram em termos de

infra-estrutura e ocupação populacional. Obviamente, as implicações sociais dentro

desta questão estão subjetivamente lançadas, quando se leva em conta os custos

para a qualidade de vida da população, produzidos por uma ou outra decisão no

planejamento urbano.

Assim, esse pesquisador elabora alguns indicadores para a análise de uma

dada estrutura urbana, quais sejam: tipo e forma das viagens diárias entre trabalho e

moradia, média de área construída dentro de uma determinada área e perfil do grau

de mudança da densidade populacional. Simplificadamente, estes três aspectos

poderiam ser adotados em qualquer realidade urbana, uma vez que facilmente

obtidos por qualquer censo demográfico, imagens satélites e plantas de uso do solo.

De posse destes dados, o planejador urbano teria condições suficientes para

direcionar o desenvolvimento de uma cidade conforme o objetivo que se quer dar

para ela.

23

Padrões das viagens diárias entre trabalho e moradia.

Para a análise destes padrões, é de fundamental importância o conhecimento

sobre a forma da cidade. Independentemente da história da formação de

determinada estrutura urbana, é possível discernir o centro de serviços e negócios,

região na qual é concentrada a maioria das atividades que definem a economia que

move o desenvolvimento de uma cidade.

Assim, dependendo da localização do CBD (Central Business District), as

cidades podem ser classificadas em monocêntricas ou policêntricas. De certa forma,

pode-se dizer que toda cidade surgiu de uma estrutura monocêntrica, ao redor de

uma atividade econômica predominante, e que a partir daí se dissolveu em

estruturas menores, constituindo novos aglomerados edificados mais ou menos

densos em relação ao centro primariamente constituído. Estes novos aglomerados,

por sua vez, podem constituir-se em novos pontos de referência, formando novas

centralidades dispersas. Em alguns casos, é possível perceber, neste processo, o

deslocamento do grau de importância do antigo centro para uma nova área que

abrigue novas atividades econômicas, e, portanto, novas oportunidades de emprego

e renda.

Dessa forma, entende-se que nenhuma cidade é totalmente monocêntrica ou

policêntrica; isto é, entende-se que uma cidade dita monocêntrica seja

predominantemente monocêntrica, e que a cidade dita policêntrica seja

predominantemente policêntrica. Há casos, no entanto, onde ambas as definições

estejam coexistindo em um mesmo grau de intensidade e importância.

24

O período de passagem de uma cidade monocêntrica a uma cidade

policêntrica pode ser acelerado ou não conforme as intervenções e facilidades

oferecidas para tal. Alguns fatores que contribuem para acelerar este processo são:

baixo custo dos terrenos em áreas mais afastadas do centro original, condições

topográficas mais planas, ruas mais largas para melhor acessibilidade de veículos

privados, os quais cada vez mais valorizados, e baixo nível de conforto que

geralmente advém de áreas densamente ocupadas.

Condições opostas podem, no entanto, retardar este processo: investimentos

maciços em redes viárias para interligação destas áreas, eficiente transporte público

nas áreas centrais, centros com níveis de conforto preservados, e topografia

acidentada do entorno.

Depreende-se daí que uma cidade monocêntrica pode conseguir manter a

primazia do mercado de trabalho dentro de uma estrutura urbana, desde que a

acessibilidade ao CBD seja fomentado por meio de um transporte público integrado

e coeso, que possibilite a fácil e rápida movimentação de qualquer ponto da cidade a

ele. Neste caso, o valor dos terrenos próximos a este centro tendem a aumentar,

gerando uma movimentação da população em direção à periferia, ou seja, ao

entorno. A densidade decrescente (density sloped) é encarada por Bertaud (2003)

como mais um indicador na análise dos planejadores urbanos quando no processo

de avaliação da cidade.

Na verdade, há uma falsa crença de que as cidades policêntricas permitem o

desenvolvimento auto-sustentável de núcleos espalhados em uma rede de

pequenos centros (urban villages), os quais, suficientemente agregados em

determinada quantidade, constituiriam uma metrópole. Idealmente, toda a população

25

poderia se abster do veículo particular para se movimentar a pé ou de bicicleta,

dadas as pequenas distâncias a serem percorridas.

Este modelo, ideologicamente perfeito, é defendido por muitos planejadores

urbanos. Rogers18 (2000), apesar de abertamente acreditar nas forças de mercado

inerentes na produção do espaço urbano, configura-se hoje como um dos maiores

defensores da cidade policêntrica. Para ele, a “cidade compacta” requer o mínimo

uso do automóvel particular em detrimento de transportes públicos com baixas

emissões de gases nocivos e valorização da bicicleta como meio de locomoção

entre pontos relativamente justos, o que promoveria a integração entre os locais de

moradia, trabalho e lazer.

La creación de la moderna ciudad compacta requiere la superación de um

urbanismo de función única y del predomínio del automóvil. La cuestión es

cómo proyetar ciudades em que las comunidades aumenten y favorezcan

su movilidad, cómo satisfacer las necesidades de movilidad personal sin

que el coche avasalle nuestra vida comunitária, cómo acelerar la

implantación de sistemas de transportes ecológicos y equilibrar la utilización

de los espacios públicos en favor del peatón y de la vida comunitária. 19

(ROGERS, 2000, p.40)

A idéia defendida por Rogers (2000), é sem dúvida, um modelo coerente com

as prerrogativas preconizadas por uma cidade sustentável. Sua viabilidade, no

entanto, parece carecer de bases suficientemente fortes para que fosse

efetivamente executada, uma vez que supõe ser a cidade um fator decisivo para

mudanças de comportamento e ideais de uma sociedade, e não o contrário. De fato,

18

ROGERS, Richard. Ciudades para un pequeño planeta. Barcelona: Gustavo Gili, S.A, 2000. 19

A criação da moderna cidade compacta requer a superação de um urbanismo que privilegia o automóvel particular. A questão é como projetar cidades em que a mobilidade das pessoas cresça em importância e seja favorecida, em como satisfazer as necessidades de mobilidade pessoal sem que o carro obstrua a vida em sociedade, em como acelerar a implantação de sistemas de transporte ecológicos e em como equilibrar a utilização dos espaços públicos em favor do pedestre e da sociedade. (ROGERS, 2000, tradução nossa)

26

as mudanças de paradigmas necessárias para uma cidade de todos e para todos

serão fruto, primeiro, de mudanças nas formas coletivas de pensamento.

A figura 1 ilustra o modelo preconizado por Rogers, defendido em projeto

elaborado para a área de Lu Zia Sui, no centro da cidade de Shangai:

Figura 1 – Cidade Policêntrica de Richard Rogers (adaptado de ROGERS, 2000, p.47)

27

Para Bertaud (2003), este modelo de cidade parece constituir um paradoxo.

Ele acredita que estes pequenos centros auto-suficientes contradizem a “única

explicação válida” para o contínuo crescimento das áreas metropolitanas, baseado

em uma crescente integração dos mercados, como já mencionado. A auto-

suficiência destes centros constituiria mesmo a fragmentação dos mercados hoje

interdependentes.

Entende-se, pois, que o padrão das viagens diárias percorridas por uma

determinada população depende diretamente da localização do maior índice de

oferta de empregos. Dessa forma, na cidade policêntrica, fica claro que estas

viagens parecem aleatórias e mais longas do que nas cidades monocêntricas.

Segundo estudos de Bertaud (2003), a concentração pontual no centro da cidade

permite viagens menores e mais rápidas para qualquer outro ponto da cidade

(Figura 2).

28

Figura 2 – Representação esquemática de viagens padrão dentro em diferentes estruturas

urbanas (BERTAUD, 2003, p.8)

29

Consumo da Terra ou Densidade Populacional.

O consumo da terra (área de terra por pessoa) é calculado, via de regra, pelo

seu inverso, ou seja, calcula-se a densidade populacional (número de pessoas por

unidade de terra) dentro de uma área legalmente delimitada. Os limites impostos por

critérios administrativos, no entanto, podem não corresponder ao que se entende por

área urbana, uma vez que os padrões de consumo hoje adotados nas áreas rurais

poderiam caracterizá-las como urbanas.

Para as análises de Bertaud (2003), no entanto, foram consideradas aquelas

áreas construídas para efetiva utilização urbana. Não seria possível definir, no

escopo deste trabalho, o que seria exatamente a definição desta área, mas sabe-se

que, para efeito de suas análises, ele não incluiu áreas ociosas, áreas de proteção

ambiental e cursos d`água para a determinação da densidade populacional.

Assim, não são consideradas, neste cálculo, as áreas abertas com mais de

quatro hectares de comprimento, terras agrícolas, ou áreas apresentadas em seu

estado natural, bem como aeroportos e rodovias não adjacentes à área urbana em

questão.

A partir destas considerações, Bertaud (2003) efetuou uma pesquisa entre 49

cidades ao redor do mundo, com o intuito de comparar a densidade populacional de

cada uma delas. O resultado, demonstrado no Gráfico 1, permite inferir duas

questões. A primeira delas é que cidades muito densas não têm correlação direta

com o tamanho, e nem tampouco com a renda média da população de cada cidade

estudada. A segunda é que existe uma forte relação da densidade populacional com

30

a posição e o grau de importância econômica de uma determinada cidade no

continente em que se está inserido.

Isto quer dizer que fatores culturais influenciam nos níveis de densidade da

população, fazendo com que ela oscile para mais ou menos densa conforme sua

suscetibilidade às forças de mercado atuantes naquela região ou país.

Gráfico 1 – Comparação média da densidade populacional em áreas construídas em 49 áreas

metropolitanas (BERTAUD, 2003, p.9)

Dentre as cidades que compõe a amostra estudada, Brasília aparece como a

segunda cidade menos densa da América Latina, ficando atrás apenas de Curitiba.

A Cidade do México e Rio de Janeiro apresentam-se como as mais densas da

31

América Latina, apesar de estarem posicionadas em uma média mundial

aproximada de 95 pessoas/ hectare.

Perfil da Densidade.

Por meio de mapas e censos demográficos é possível traçar um perfil mais o

menos fiel da densidade populacional de uma determinada área. A importância

deste dado tem relação com a detecção do tipo, quantidade e forma das viagens

diárias percorridas pela população da cidade que se ter como objeto de estudo.

Portanto, é importante considerar, nesta avaliação, a localização desta população no

período entre meia-noite e seis horas da manhã, período em que se pressupõe

considerar as pessoas em casa e não no trabalho (BERTAUD, 2003).

Desta forma, pode-se determinar os pontos de partida e chegada das viagens

diárias, ou seja, a movimentação das pessoas no deslocamento de suas casas para

o trabalho e vice-versa. O estudo de Bertaud (2003), disposto no Gráfico 2,

contemplou diversas cidades distribuídas ao redor do mundo, e confirma que as

maiores densidades populacionais estão localizadas nas áreas próximas ao CBD,

onde está concentrada maior oferta de empregos.

Na maioria das cidades monocêntricas, fica claro que as concentrações

populacionais ao redor do CBD são ainda mais intensas do que naquelas

policêntricas, onde a distribuição populacional tende a ser mais igualitária e

distribuída nos espaços dispersos na periferia do centro.

32

Gráfico 2 – Relação entre densidade e distância do centro (densidades descrescentes)

(BERTAUD, 2003, p.11)

Em um primeiro momento, é possível imaginar que cidades com distribuição

populacional constante são mais qualificadas do que àquelas que possuem

33

distribuição populacional com grandes diferenças numéricas. No entanto, não há

pesquisa ou documento científico que comprove esta informação. De concreto,

pode-se concluir que cidades com densidades decrescentes, ou seja, aquelas que

possuem densidades maiores conforme proximidade com CBD possuem alguns

benefícios de infra-estrutura e transporte que não são possíveis nas cidades com

densidades crescentes, as quais possuem densidades menores conforme se

afastam do CBD.

A comparação entre três cidades com densidades crescentes, Brasília,

Moscou e Joanensburgo, demonstra claramente a distribuição populacional em

relação aos seus centros. É de se esperar que os custos com transporte e

deslocamento entre os diversos pontos dessas cidades são maiores do que àquelas

que possuem densidade decrescente, uma vez que os caminhos a serem

percorridos diariamente são mais longos. (Gráfico 3)

Independentemente da história de cada uma destas cidades, Bertaud (2003)

acredita que a similaridade entre suas configurações urbanas se deve ao fato de que

o mercado esteve ausente por um longo período em todas elas. “Whether the

interruption was caused by Marxist ideology in Moscow, by a morbid cult of design in

Brasília or by Apartheid in Johannesburg, is irrelevant, the spatial outcome is similar”.

20

De fato, o processo de formação da cidade de Brasília foi controlado por

forças estritamente políticas ao longo dos anos, atuando no exercício de práticas

20

Se a interrupção foi causada pela ideologia marxista em Moscou, pelo lânguido culto ao desenho em Brasília ou pelo Apartheid em Johanensburgo, isto é irrelevante, o resultado espacial é o mesmo. (BERTAUD, Alain, 2003, tradução nossa)

34

abomináveis para a exclusão da população de menor renda, gerando bolsões de

pobreza no entorno, enquanto as áreas centrais eram valorizadas. Para melhor

entender este processo, faz-se necessário discutir as origens dos fatos que levaram

Brasília à categoria de segunda cidade mais dispersa do mundo.

Gráfico 3 – Relação entre densidade e distância do centro (densidades crescentes) (BERTAUD,

2003, p.12)

35

6. Brasília: Uma Breve História

Brasília foi um grandioso gesto ideológico em dois sentidos: procurava

reproduzir a imagem do Estado como uma instituição neutra acima das

classes sociais por meio de um discurso nacionalista e, ao mesmo tempo,

reafirmava o Estado brasileiro como algo completamente autônomo,

merecendo, portanto, um espaço próprio. (HOLANDA, 2002, p.294)

Holanda21 (2002) considera apenas duas grandes fases na formação do

espaço brasileiro: a primeira iria até as primeiras décadas do século XX, tempos no

qual predominava o cenário rural e a economia gerava em torno da exportação

agrícola; a segunda é definida pela transição deste cenário à industrialização do país

até os dias atuais.

É importante lembrar que, mesmo à época da chegada dos portugueses ao

Brasil, o país já traduzia, e com claros interesses lucrativos, uma sociedade cuja

economia se voltava “para fora”. Engano concluir que os senhores da terra,

produtores de matérias primas para exportação, possuíam algum poder sobre os

interesses do Estado português, cuja preponderância política se firmava por meio

das autoridades municipais e judiciárias aqui estabelecidas, e que nada mais eram

do que a própria extensão de Portugal.

Apesar da abolição da escravatura, e da incipiente industrialização decorrente

da crise do setor cafeeiro em 1850, quando nasce uma burguesia urbana e um

incipiente proletariado, as relações sociais até então estabelecidas permanecerão

mais ou menos constantes até a década de 1930. A partir daí, a ideologia política de

“integração nacional” começou a se manifestar, de forma tímida, em abertura de

21

HOLANDA, Frederico de. O Espaço de Exceção. Brasília: UnB, 2002.

36

estradas que partiam da Região Sudeste, a fim de romper com a estrutura histórica

do espaço herdado dos tempos coloniais. (HOLANDA, 2002)

No entanto, a ruptura somente ocorreria de fato em 1950, com a ascensão de

Kubitschek à presidência do país. A “ruptura com o passado” ocorreria em função do

“desenvolvimento nacional”, fomentando, na população brasileira, um forte

sentimento de mudança, inclusive de suas posições sociais e condições de vida. A

mudança da capital do Rio de Janeiro para o interior do país tinha forte imposição

ideológica, uma vez que o Estado da Guanabara representava o Brasil português.

Além disso, a nacionalização do mercado, notadamente concentrado na

Região Sudeste, pela sua história e localização privilegiadas para o escoamento dos

produtos de exportação, demandava investimentos para a integração do país, com

aberturas de rodovias para escoamento da produção interna. Segundo Holanda:

Brasília funcionou ideologicamente como um gesto compensatório: negava

a concentração de poder no Sudeste, por meio da construção da própria

sede do poder nacional num lugar “neutro” - o centro geográfico do país -, a

quase trezentos quilômetros de qualquer centro econômico de alguma

importância. (HOLANDA, 2002, p.293)

Assim nasceu Brasília. Logicamente, outros fatores contribuíram para o seu

surgimento. No entanto, interessa saber que a história da sua formação, bem como

os propósitos políticos implícitos nela, é fator preponderante para o entendimento da

sua estrutura espacial. A cidade é hoje testemunha concreta da política habitacional

adotada para a cidade durante todo o seu processo de desenvolvimento, cujas

conseqüências são percebidas e sentidas por todo e qualquer brasiliense atento às

suas condições de vida atuais.

37

De fato, atualmente existe um expressivo número de pessoas morando em

núcleos urbanos na periferia de Brasília, muitos deles criados por uma política de

erradicação de favelas, ou “invasões”, que se deu ao longo de todo o processo de

sua formação. A mais visível conseqüência desta política se traduz nas grandes

distâncias a serem percorridas, diariamente, por esta população, a qual possui sua

situação agravada pelas altas tarifas do transporte público.

Assim, é possível detectar, ao longo da existência de Brasília, momentos e

ações governamentais que contribuíram, facilitaram ou mesmo direcionaram seus

esforços para uma política de exclusão social, que culmina hoje com a problemática

da dispersão urbana no Distrito Federal. Consoante com a idéia de Bertaud (2003)

sobre os agentes formadores do espaço urbano, Gouvêa22 (1995, p.21) evidencia as

relações entre Estado-Capital-Força de Trabalho, onde o “Estado, dependendo do

momento político, mostra-se cúmplice de uma ou de outra classe”.

Este fato é comprovado em muitos casos na história não só do Brasil, mas do

mundo. Talvez um dos exemplos mais claros deste tipo de atuação governamental

pode ser identificada na política haussmaniana de “limpeza urbana”. Muito mais do

que apenas visibilidade política frente aos franceses, Luís Napoleão conferiu

especial interesse às obras públicas, em particular nas transformações urbanas

propostas por Haussman, que propunha grandes boulevards retilíneos, com os quais

seria possível deter as barricadas populares, até então constantes pela facilidade

estratégica fornecida pelas estreitas ruas medievais. O espaço urbano é, pois, objeto

da ação direta, ou indireta, do Estado.

22

GOUVÊA, Luiz Alberto de C. Brasília: A Capital da Segregação e do Controle Social: Uma avaliação da ação governamental na área de habitação. São Paulo: ANNABLUME, 1995.

38

No caso de Brasília, a política habitacional adotada em todo o período de

formação da cidade configura-se como um instrumento de gestão do Estado para

manipular e organizar o espaço urbano para os interesses de uma elite política.

Apesar da maior parte da bibliografia sobre a construção de Brasília pregar

um clima de igualdade de fraternidade entre candangos (trabalhadores vindos de

diversas partes do Brasil exclusivamente para a construção da cidade), técnicos,

servidores públicos e políticos, a verdade é que existia uma clara distinção entre

estes agentes, ainda à época do início da construção da cidade, facilmente

percebida pela simples comparação entre as condições de moradia de cada um

deles.

Para os candangos, a proximidade da casa com o trabalho não significava,

necessariamente, índice de qualidade de vida, mas sim condição favorável ao

controle da polícia local, que por vezes usou a força para manter o sistema de

“viradas”, que além de levar o trabalhador à exaustão total, fazia com que,

quantitativamente, o número de acidentes nas obras dobrasse. De fato, a exclusão

social no Distrito Federal se tornaria mais evidente ao longo da sua formação, por

meio de uma política habitacional altamente excludente, iniciando-se por meio de

erradicação de favelas das áreas centrais para a periferia. (Figura 3)

39

Figura 3 – Governador em visita à Comissão de Erradicação de Favelas (Arquivo Público do

Distrito Federal)

Esta política de erradicação de favelas inicia, assim, um processo longo e

duradouro de segregação social, constituindo mesmo em processo inverso daquele

que se queria acreditar ou pressupor. O socialismo implícito em suas linhas

cuidadosamente desenhadas jamais poderia deter ou contornar questões

sociologicamente premeditadas. Como já dito, Brasília era o progresso, o novo

Brasil, ideologicamente criada com a idéia precípua de negar e substituir toda uma

história de dependência externa. Hoje se sabe que esta dependência nunca deixou

de existir, mas se apresenta de outras formas, menos óbvias.

Apesar do Núcleo Bandeirante, não previsto no Plano Original, ter sido o

exemplo mais representativo de resistência popular que se tem notícia, o caso de

erradicação mais dramático e impactante é a dissolução da Vila do Iapi. Composta

de doze mil barracos e uma população de oitenta e duas mil pessoas, esta vila foi

sumariamente demolida, e seus moradores removidos para uma área 30 quilômetros

40

distante do Plano Piloto, hoje a cidade de Ceilândia, cuja origem do nome vem de

Campanha de Erradicação de Invasões (C.E.I). (Figura 4)

Nesta época, a área não possuía qualquer tipo de infra-estrutura urbana, mas

o argumento do governo para a erradicação da vila foi sumariamente creditado, uma

vez que elaborou “laudos técnicos” que justificassem o perigo que ela gerava aos

córregos mais próximos. (GOUVÊA, 1995)

Figura 4 – Distância a ser percorrida de Ceilândia para o Plano Piloto em 1971 (Arquivo Público

do Distrito Federal)

Segundo Gouvêa (1995), é curioso notar que o próprio governo reconhecia

qualidades urbanísticas na Vila do Iapi, como consta nos relatórios do Plano de

Erradicação de Favelas: “ruas bem traçadas, lotes cercados em alguns setores um

processo espontâneo de fixação, uma verdadeira comunidade de vivência e

serviço”. (Figura 5)

41

Figura 5 – Vista área da Vila do Iapi (Arquivo Público do Distrito Federal)

Para se ter uma idéia do que representou a campanha de erradicação de

invasões (C.E.I) para a população do DF, somente entre 1970 e 1976, foram

erradicadas aproximadamente 118.453 pessoas de favelas e áreas do Plano Piloto,

as quais foram relocadas para 43.985 novos lotes do entorno. Nesta época,

restaram apenas 3.456 famílias morando em favelas. Essa “limpeza social”, no

entanto, não foi suficiente para preservar o Plano Piloto de novos surtos migratórios,

fazendo com que o crescimento demográfico passasse de 9,7% em 1976 para

36,1% em 1977. (GOUVÊA, 1995)

A regulação da terra começa a tomar rumos efetivamente excludentes quando

a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), criada para substituir a até então a

Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), passa a deter 57%

das terras públicas do Distrito Federal, com a função de gerir estas terras e controlar

42

seus usos. O poder decisório desta empresa, pública, conferiu à população de

média e alta renda privilégios para a compra de terrenos centrais, próximos à

Esplanada dos Ministérios, enquanto as possibilidades de compra do entorno

atendiam à população de baixa renda.

O caráter privado com que se revestia a Terracap deixa claro as prerrogativas

exclusivas de controle da terra:

Como é o Estado em Brasília, o agente que detém o controle da oferta

destas terras e destina a sua ocupação por meio de um plano urbanístico,

onde os padrões desta ocupação estão previamente especificados, ele

controlará o momento de transformação do uso do solo, realizando desta

maneira os lucros provenientes das rendas fundiárias, constituindo-se num

agente que acumula diretamente o capital imobiliário no processo de

expansão urbana. (CAMPOS, 1988 apud GOUVÊA, 1995, p.76)

Em termos práticos, isto quer dizer que o controle da terra pela Terracap

possibilitou a condição para valorização de determinados terrenos pré-

estabelecidos, majoritariamente próximos ao centro do poder federativo, por meio da

adoção de diferentes formas de venda ou mesmo por meio da doação de imóveis;

ou seja, nas áreas que se pretendia de melhor valor, aplicava-se o regime de

licitação pública com valores de mercado além daqueles que o cidadão de menor

renda jamais poderia pagar. Nas áreas mais afastadas aplicaram-se os regimes de

regularização de terras invadidas, com cessão de direitos, e doação, regimes

atraentes para aqueles que não podiam comprar um imóvel.

Assim, durante a década de 1970, já havia, na periferia do DF, inúmeros

núcleos urbanos, todos economicamente dependentes do Plano Piloto, que por sua

vez abrigava essencialmente servidores públicos federais e distritais. Levando-se

43

em conta os conceitos elencados por Bertaud (2003), inicia-se, então, a formação de

uma configuração urbana que se pode denominar monocêntrica com densidade

crescente. O Plano Piloto passa a abrigar grande parte dos empregos ofertados no

Distrito Federal, enquanto a periferia recebe um contingente cada vez maior de sua

população total. Pode-se dizer que já se inicia aí o fenômeno denominado

“dispersão urbana”.

44

7. Dispersão Urbana no Distrito Federal

“O processo de produção e a estrutura resultante do espaço urbano

refletem a cultura que o produz e organiza. Entretanto, este é apenas um

olhar possível: uma vez pronto, o espaço urbano transforma-se, mais ou

menos, em inteligível e apropriável, segundo os interesses e as

possibilidades de cada indivíduo ou grupo de indivíduos.” (RIBEIRO, 2008,

p.26)

Diante da particularidade histórica de Brasília, é possível traçar, juntamente

com a referência teórica de Bertaud (2003), a performance da cidade no que diz

respeito à qualidade de vida de grande parte de sua população, levando-se em

conta a busca por uma cidade sustentável. Em uma definição simplificada, entende-

se por cidade sustentável aquela que, grosso modo, oferece condições de vida

iguais para todos. Subentende-se aqui não somente o acesso à infra-estrutura

básica, mas também o acesso a um ambiente propício ao gozo de direitos humanos

fundamentais e à qualidade de vida.

Para efeito deste trabalho, entende-se “qualidade de vida” como as condições

propostas por Nahas23 (2002) com o intuito de se buscar cidadania, justiça,

segurança e representação política. Para isto, são consideradas cinco dimensões,

que, conjuntamente analisadas, gera uma metodologia de pesquisa baseada no

Índice de Vulnerabilidade Social24 (IVS). Estas dimensões são assim definidas:

- DIMENSÃO AMBIENTAL: acesso a uma moradia com qualidade, do ponto

de vista da densidade do domicílio, da qualidade da edificação e da infra-

estrutura urbana disponível.

23

NAHAS, 2000 apud RIBEIRO, 2008, p.44-45. 24

Este índice varia de 0 a 1, sendo o maior valor (1) corresponde à pior situação, e o menor valor (0) corresponde à melhor situação. Os resultados são obtidos através de médias ponderadas de todas as dimensões consideradas como garantias na busca da qualidade de vida.

45

- DIMENSÃO CULTURAL: acesso à educação formal que permita inserção

em processos políticos, sociais e econômicos de caráter mais globais.

- DIMENSÃO ECONÔMICA: acesso à ocupação, preferencialmente formal,

e a um nível de renda.

- DIMENSÃO JURÍDICA: acesso à assistência jurídica de qualidade, aqui

considerada como sendo a assistência privada.

- DIMENSÃO SEGURANÇA DE SOBREVIVÊNCIA: acesso a serviços de

saúde, garantia de segurança alimentar e acesso aos benefícios da

previdência social. (RIBEIRO, 2008, p.44)

Nesse sentido, acredita-se que a dispersão urbana no DF apresenta-se como

um dos entraves mais consideráveis para se atingir uma cidade mais justa e

igualitária, que ofereça efetivamente qualidade de vida para sua população, uma vez

que o espraiamento físico advindo de sua história subentende uma desigualdade

não só de renda, mas principalmente, social.

Segundo Ribeiro (2008), “a análise urbana deve considerar a cidade como um

sistema”25, ou seja, como um conjunto no qual as partes se interagem e se

modificam. A análise parcial não permite avaliar comparativamente os diversos

núcleos urbanos, implicando, portanto, em análise superficial. Para o estudo da

dispersão urbana é fundamental considerar o comportamento espacial da

população, sua distribuição e configuração como um todo.

Para isto, foi necessário definir, dentro dos limites do DF, grupos

demográficos representativos de uma determinada área, a fim de compactar e

simplificar esta pesquisa, visto que este trabalho não objetivou estudar as

25

RIBEIRO, R.J.C. Índice Composto de Qualidade de Vida Urbana – Aspectos de Configuração Espacial, Socioeconômicos e Ambientais Urbanos. Brasília: UnB, 2008.

46

particularidades de cada uma das cidades que compõem o entorno do DF, mas sim

verificar como este entorno se relaciona com o Plano Piloto, centro de serviços e

empregos.

Para critério de análise dessa dispersão, adotou-se como base um índice

fornecido por Bertaud (2003), qual seja: o padrão de viagens diárias adotadas pela

população local, levando em conta os pontos de partida e chegada dos locais de

moradia para o trabalho e vice-versa. Uma vez que contínuo e repetitivo, entende-se

que este movimento, pendular, forneça números significativos e aproximados de

uma realidade hoje existente.

Vale salientar ainda que, contrariamente ao que foi previsto pelo Plano

Urbanístico de Lúcio Costa, que previa 8 Cidades-Satélites ao redor do Plano Piloto,

atualmente o Distrito Federal é composto por 29 Regiões Administrativas (RAs), as

quais possuem prerrogativas legais para elaboração de seus próprios Planos de

Desenvolvimento Locais, além de independência administrativa em relação ao Plano

Piloto. Dentre as 29 RAs existentes (Figura 6), apenas 19 são contempladas para

efeito deste trabalho, uma vez que somente estas possuem poligonal definida. O

restante das RAs possui apenas lei de formação, estando locadas sem limites

definidos dentro deste conjunto.

47

Figura 6 – Localização espacial das Regiões Administrativas (RAs) do Distrito Federal e suas

respectivas distâncias em relação à Brasília - Esplanada dos Ministérios. (adaptado de

http://www.geocities.com/augusto_areal/ra_big.jpg)

48

Outra observação pertinente ao entendimento dos dados aqui apresentados

diz respeito à divisão que se faz entre “Brasília” e “Distrito Federal”. O Distrito

Federal engloba todas as RAs, excetuando-se o Plano Piloto (RA I), o Lago Sul (RA

XVI) e o Lago Norte (RA XVIII), os quais, em conjunto, compõe atualmente a cidade

de Brasília, que representa o conjunto das RAs com maior concentração de renda

do DF.

Diante das bases de pesquisa apresentadas, é necessário fazer algumas

observações acerca das informações obtidas como fonte para este trabalho. A

primeira delas diz respeito à divisão por grupos representativos de uma determinada

área, a qual teve a colaboração do Departamento Intersindical de Estatística e

Estudo Socioeconômicos (DIEESE), que considerou como parte de um mesmo

grupo parcelas da população com rendas similares.

O problema aqui reside no fato de que a classificação por renda não

constitui, necessariamente, parâmetro para análise da qualidade de vida de uma

população. Esta variável demanda estudos mais profundos para o seu pleno

entendimento, e não será possível tratá-la de forma abrangente. Assim, pretende-se

avaliar somente parte desta variável, uma vez que o custo social gerado pela

dispersão urbana influencia na relação do ser humano com seu entorno, e

conseqüentemente, com a cidade.

Portanto, a classificação por grupos feita pelo DIEESE não permite concluir

sobre a totalidade das condições de sustentabilidade da população considerada,

mas sim uma análise parcial das condições de vida de um conjunto de pessoas

pertencente a um mesmo grupo, por meio do deslocamento diário desta população.

Os grupos são assim definidos:

49

- Grupo 1: Grupo de Regiões Administrativas de renda mais alta (Brasília26,

Lago Sul e Lago Norte);

- Grupo 2: Grupo de Regiões Administrativas de renda intermediária (Gama,

Taguatinga, Sobradinho, Planaltina, Núcleo Bandeirante, Guará, Cruzeiro,

Candangolândia e Riacho Fundo);

- Grupo 3: Grupo de Regiões Administrativas de renda mais baixa

(Brazlândia, Ceilândia, Samambaia, Paranoá, São Sebastião, Santa Maria e

Recanto das Emas).

Por meio do Gráfico 4 fica claro que existem grandes disparidades de renda

entre as cidades do DF, e que, para simplificação da pesquisa, não foram

consideradas. Tomando-se como referência as cidades de Taguatinga e Planaltina,

é possível perceber grande diferença de renda entre essas duas cidades. Enquanto

a renda domiciliar mensal da primeira gira em torno de 9,6 salários mínimos, a

segunda apresenta um valor de 3,2.

26

Aqui, entende-se Brasília como Plano Piloto (Asa Sul e Asa Norte)

50

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

50

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Taguatinga

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Itapoã

Regiões Administrativas

Ren

da (

SM

)

Gráfico 4 – Renda domiciliar per capita mensal segundo as Regiões Administrativas (RAs)

(CODEPLAN, 2006)

Isto quer dizer que a divisão por grupos ora apresentada permite gerar

distorções nas análises que se seguem pela generalização e simplificação dos

dados fornecidos.

Outra generalização feita no levantamento dos grupos diz respeito à

localização das cidades consideradas em um mesmo grupo. Uma vez que a análise

da dispersão leva em consideração o tempo gasto entre o local de moradia e

trabalho, o local de partida sofre alterações significativas em relação ao centro de

serviços e empregos, o Plano Piloto. Gama e Planaltina, por exemplo, são cidades

que se encontram fisicamente opostas, mas, contraditoriamente, pertencem a um

mesmo grupo (Grupo 2).

51

Idealmente, deveria se trabalhar com dados referentes a cada uma das

cidades, tomando como ponto de partida seus centros demográficos, ou seja, as

áreas de maior concentração populacional de cada uma das cidades consideradas.

Dessa forma, seria possível avaliar as relações intra e inter-urbanas existentes

dentro do DF, possibilitando, inclusive, concluir sobre qual das cidades do entorno

possui pior ou melhor índice de dispersão urbana em relação ao Centro de Comércio

e Serviços (CCS27) do DF.

Para a análise de dados desta pesquisa, entretanto, foram adotados os

centros demográficos de maior peso dentre as cidades pertencentes a um mesmo

grupo, ou seja, a área de maior atração populacional dentre todas constituintes de

um grupo. A figura 6 demonstra, por meio de distintos pontos vermelhos, o centro

demográfico considerado para cada um dos três grupos propostos pelo DIEESE,

assim divididos:

27

CCS (Centro de Comércio e Serviços ) = CBD (Central Business District)

52

Figura 7 – Distribuição espacial dos agrupamentos definidos pelo DIEESE e seus respectivos

CDBs.

53

- Grupo 1: CDB corresponde à Esplanada dos Ministérios;

- Grupo 2: CDB corresponde ao Pistão Sul (Avenida EPCT), Taguatinga;

- Grupo 3 : CDB corresponde à Avenida Hélio Prates, centro de Ceilândia.

No caso do grupo 3, o centro de Ceilândia configura-se como a região de

maior concentração de empregos dentre todas as cidades constituintes deste grupo,

assim como ocorre com Taguatinga no grupo 2 e Esplanada dos Ministérios no

grupo 1. Ceilândia e Taguatinga são as cidades que possuem o comércio mais

expressivo, o qual contribui em termos médios com 3,7% do Produto Interno Bruto

(PIB) do DF (CODEPLAN, 2006).

Em virtude do Distrito Federal não ter se desenvolvido nas atividades do setor

primário (agropecuária e extrativismo), sua atividade econômica se baseia

principalmente pelas funções institucional-administrativas, localizadas de forma

preponderante no Grupo 1. Importante saber que a atividade econômica da

população do DF está dividida em prestação de serviços (55,8%), administrações

federal e distrital (19,3%), comércio (16,9%), e indústria (7,1%). As atividades

agropecuárias não chegam a contabilizar 1% (Gráfico 5).

54

0

100

200

300

400

500

600

Industria de

Transformação

Construção Civil Comércio Serviços Administração Pública Outros(1)

Setor de Atividades

Ocu

pad

os (

em

mil

)

Gráfico 5 – Perfil ocupacional da população ocupada segundo os setores de atividades.

(CODEPLAN, 2006)

Visto os problemas inerentes aos dados utilizados, em um primeiro momento

talvez fosse possível concluir que o Distrito Federal possui uma configuração urbana

policêntrica do ponto de vista de sua organização espacial, uma vez que podem ser

considerados outros pontos de atração populacional. Entretanto, faz-se necessário

enfatizar a diferença entre cidade dispersa e cidade descentralizada, as quais

possuem conceitos completamente diversos.

A cidade descentralizada é uma cidade policêntrica; a cidade dispersa não. A

diferença entre uma e outra está basicamente no fato de na primeira existir, além do

CCS, outros pólos de serviços e empregos, com diferentes pesos de atração. Na

segunda, existe apenas um CCS com peso suficiente para concentrar grande parte

55

das oportunidades de emprego, o qual atende a maioria da população localizada de

forma dispersa e irracional.

Este é o caso do DF. O grupo 1 possui maior influência para a análise da

dispersão, uma vez que detém mais de 190 mil ocupados trabalhando na

Administração Pública. Isto significa que a Esplanada dos Ministérios, centro do

poder administrativo federal e distrital, recebe um contingente populacional maior do

que os CCS dos grupos 2 e 3, ou seja, as viagens diárias percorridas pela

população do DF acontece de sua periferia para o seu interior.

Segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal

(CODEPLAN), em 2004, Brasília (Grupo 1) contava com apenas 11% do total da

população do DF, sendo que 74% da população economicamente ativa,

representada pelos Grupos 2 e 3 , trabalhava no Grupo 1.

Em termos práticos, isto significa que 74% da população do DF deveria se

deslocar, aproximadamente, 20 quilômetros de suas moradias para os locais de

trabalho diariamente. Em 1992 a situação desta migração diária já ocorria, porém

com um contingente de 64%, menor do que no ano de 2004. Em 2008, essa parcela

subiu para 79%. Isto significa que o número de pessoas que moram no entorno

(Grupos 2 e 3) e trabalham no Grupo 1 vem aumentando nos últimos 16 anos

(Quadro 1)

Em números relativos, é possível inferir, ainda, que a população residente no

Grupo 2 possui uma maior dependência do CCS do Grupo 1 do que o Grupo 3. A

parcela de moradores do Grupo 2 que trabalha no Grupo 1 é maior do que os

56

moradores do Grupo 3, independentemente da densidade populacional de cada um

dos grupos.

É possível perceber ainda que, entre 1992 e 2008, os moradores do Grupo 1

que trabalham neste mesmo grupo diminuiu ao longo deste anos. Com os dados

disponíveis para esta pesquisa, não seria possível o entendimento dos motivos

pelos quais isto ocorreu, visto que os CCS dos Grupos 2 e 3 não receberam

contribuição desta população em seus postos de trabalho. Uma suposição para a

interpretação deste fato seria o incremento de atividades autônomas e informais na

população do Grupo 1, as quais não foram computadas na avaliação de atividades

econômicas da CODEPLAN. No entanto, para a verificação desta suposição seria

necessário estudo mais específico, cuja abordagem não é o foco deste trabalho.

Fica claro que a população de maior renda possui condições de

acessibilidade mais privilegiadas do que àquela com menor renda. Isto porque as

distâncias percorridas entre os seus locais de moradia e trabalho são menores e,

portanto, mais próximas, o que demanda custos operacionais mais baixos.

Paradoxalmente, a população de menor renda deve percorrer caminhos mais longos

entre seus locais de moradia e trabalho, absorvendo não somente o custo

operacional, mas também o custo incidente sobre sua qualidade de vida.

57

Quadro 1 – Distribuição das pessoas ocupadas segundo o local onde trabalha28

.

(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE, 2009)

Ano Local onde Trabalha

Local onde Mora - Grupos de Regiões Administrativas

Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 Total

1992

Grupo 1 35,0 39,0 25,0 100,0

Grupo 2 3,0 75,0 23,0 100,0

Grupo 3 (D) 13,0 87,0 100,0

Várias-DF(B) (D) 46,0 54,0 100,0

Nem Ras e nem Entorno (D) (D) (D) (D)

Entorno(C) (D) (D) (D) (D)

1996

Grupo 1 32,0 40,0 28,0 100,0

Grupo 2 2,0 74,0 24,0 100,0

Grupo 3 (D) 15,0 84,0 100,0

Várias-DF(B) (D) 42,0 53,0 100,0

Nem Ras e nem Entorno (D) (D) (D) (D)

Entorno(C) (D) (D) (D) (D)

2000

Grupo 1 29,0 41,0 30,0 100,0

Grupo 2 2,0 73,0 26,0 100,0

Grupo 3 (D) 13,0 87,0 100,0

Várias-DF(B) (D) 44,0 50,0 100,0

Nem Ras e nem Entorno (D) (D) (D) (D)

Entorno(C) (D) (D) (D) 100,0

2004

Grupo 1 26,0 42,0 32,0 100,0

Grupo 2 2,0 70,0 29,0 100,0

Grupo 3 (D) 12,0 87,0 100,0

Várias-DF(B) (D) 38,0 57,0 100,0

Nem Ras e nem Entorno (D) (D) (D) (D)

Entorno(C) (D) (D) (D) 100,0

2008

Grupo 1 21,0 43,0 36,0 100,0

Grupo 2 1,0 67,0 31,0 100,0

Grupo 3 (D) 11,0 89,0 100,0

Várias-DF(B) (D) 41,0 59,0 100,0

Nem Ras e nem Entorno (D) (D) (D) (D)

Entorno(C) (D) 45,0 55,0 100,0

28

Notas: Grupo (A): A amostra desagregada não compreende a categoria. Grupo (B): Pessoas que trabalham em mais de uma RA (Região Administrativa). Grupo (C): Cidade do entorno: Unaí (MG), Água Fria (GO), Alexânia (GO), Cabeceiras (GO), Cristalina (GO), Corumbá de Goiás (GO), Formosa (GO), Luziânia (GO), Cidade Ocidental (GO), Novo Gama (GO), Pedregal (GO), Céu Azul (GO), Padre Bernardo (GO), Planaltina (GO), Santo Antônio do Descoberto (GO), Valparaiso (GO), Águas Lindas (GO). Grupo (D): A amostra estatística desagregada não comporta a categoria.

58

Gru

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1

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10

15

20

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30

35

40

45

50

1992 1996 2000 2004 2008

Ano

Po

rcen

tag

em

Gráfico 6 – Comportamento das viagens diárias entre os locais de moradia (Grupos 1,2,3) e o

CCS do DF (Grupo 1)

59

8. Considerações Finais

Diante dos dados disponibilizados, fica claro o caráter excludente com que se

revestiu a política habitacional no Distrito Federal durante toda a sua formação.

Ainda que parcial, a análise ora apresentada permite concluir que Brasília imprime

em sua população altos custos sociais e econômicos, visto que a cidade dispersa

segrega e exclui. Não seria possível pensar em sustentabilidade sem integração e

socialização, uma vez que este conceito vai além da questão ambiental, trazendo

consigo valores e hábitos condizentes com a busca da qualidade de vida.

Para Ojima29 (2006), além da ocupação do espaço, a dispersão urbana

implica também na resolução de problemas sociais, os quais deveriam ser

analisados de forma conjunta com a ocupação urbana. Problemas de ordem social,

no entanto, não cabem ao planejador urbano. O Estado é que deveria agir na busca

de sociedades mais justas e igualitárias, tendo isto como foco de atuação em sua

gestão pública.

Para o caso de Brasília, acreditava-se que a distância física seria suficiente

para afastar a pobreza e os problemas sociais existentes no país aos olhos de uma

burguesia política. Nos últimos anos, no entanto, a pobreza e a violência no DF têm

se agravado, muito em função da própria segregação espacial a que a população do

entorno está sujeita. Conforme Bertaud (2003), o poder do planejador urbano está

essencialmente no fato de buscar aquilo que a cidade se propõe ser. Assim, ele está

também sujeito às prioridades de atuação do Estado.

29

OJIMA (2006) apud RIBEIRO (2008), p.14-15

60

Portanto, pensar Brasília em uma cidade sustentável suscita inúmeros

questionamentos quanto à possibilidade de isto efetivamente ocorrer. Poder-se-ia

pensar, no entanto, em como torná-la menos segregada e excludente do ponto de

vista espacial, ainda que observados os limites de seu tombamento pela

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).

A pergunta que se faz é se as áreas de expansão urbana hoje presentes no

DF, predominantemente representada pela Estrada Parque de Indústria e

Abastecimento (EPIA), contribui ou não para o aumento desta segregação. O estudo

relativo a este problema deveria contemplar análises de legislações vigentes, e

possibilidades de ocupação mais condizentes com uma cidade sustentável que

permita a interação entre as pessoas. O estudo aproximado das áreas com potencial

integrador permite direcionar as ações públicas para a sustentabilidade no seu

sentido mais amplo, se assim for a vontade do Estado.

De fato, a cidade sustentável, porquanto possível, somente será realmente

atingida com os esforços de todos os segmentos da sociedade.

61

9. Referências Bibliográficas:

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