Download pdf - Valores EDF

Transcript
  • 7/26/2019 Valores EDF

    1/186

    UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU

    Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao Fsica

    Doutorado

    ELISABETE DOS SANTOS FREIRE

    A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUS

    E ILLUSIO NO COTIDIANO DE TRS PROFESSORAS

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Luiza de Jesus Miranda

    So Paulo

    Junho 2012

  • 7/26/2019 Valores EDF

    2/186

    ii

    UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU

    Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao Fsica

    Doutorado

    ELISABETE DOS SANTOS FREIRE

    A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUS

    E ILLUSIO NO COTIDIANO DE TRS PROFESSORAS.

    Tese de Doutorado apresentada

    Universidade So Judas Tadeu, como

    requisito parcial obteno do grau de

    Doutora em Educao Fsica, sob a

    orientao da ProfaDraMaria Luiza de Jesus

    Miranda.

    So Paulo

    Junho 2012

  • 7/26/2019 Valores EDF

    3/186

    iii

    Freire, Elisabete dos SantosF866d A construo de valores nas aulas de Educao Fsica: habitus e illusio

    no cotidiano de trs professoras / Elisabete dos Santos Freire. -- SoPaulo, 2012.

    186 f. : il. ; 30 cm.

    Orientador: Maria Luiza de Jesus Miranda.Tese (doutorado) Universidade So Judas Tadeu, So Paulo, 2012.

    1. Educao fsica escolar. 2. Educao fsica - Valores. 3. Professoresde educao fsica. I. Freire, Elisabete dos Santos. II. Universidade SoJudas Tadeu, Programa de Ps-Graduao stricto sensu em Educao

    Fsica. III. Ttulo

    CDD 22 -- 613.2082

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca daUniversidade So Judas Tadeu

    Bibliotecrio: Ricardo de Lima - CRB 8/7464

  • 7/26/2019 Valores EDF

    4/186

    iv

    ELISABETE DOS SANTOS FREIRE

    A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUS

    E ILLUSIO NO COTIDIANO DE TRS PROFESSORAS.

    Tese de Doutorado apresentada Universidade So Judas Tadeu, como

    requisito parcial obteno do grau de

    Doutora em Educao Fsica, sob a

    orientao da ProfaDraMaria Luiza de Jesus

    Miranda.

    Banca Examinadora

    _______________________________________________Profa. Dra. Maria Luiza de Jesus Miranda

    Universidade So Judas Tadeu

    _______________________________________________Profa. Dra. Maria Amlia Santoro Franco

    Universidade Catlica de Santos

    _______________________________________________Profa. Dra. Jeane Barcelos SorianoUniversidade Estadual de Londrina

    _______________________________________________Profa. Dra. Sheila Aparecida Pereira dos Santos Silva

    Universidade So Judas Tadeu

    _______________________________________________Profa. Dra. Graciele Massoli Rodrigues

    Universidade So Judas Tadeu

  • 7/26/2019 Valores EDF

    5/186

    v

    Aos meus queridos Caio, Luisa, Guilherme e

    Valdison, que me ensinaram o significado do

    amor.

    Aos meus pais, Jesuino e Iracy, que no

    tiveram acesso escola e que, no entanto, me

    ensinaram a amar o conhecimento.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    6/186

    vi

    Agradecimentos

    Meu primeiro agradecimento no poderia deixar de ser para a Profa. Maria

    Luiza de Jesus Miranda. Mais que orientadora, voc tem sido uma grande amiga,

    uma parceira para todas as situaes. Muito obrigada por acreditar mais em mim

    que eu mesma.

    Agradeo aos diretores da escolas acompanhadas durante a pesquisa, que

    me receberam de forma atenciosa e me confiaram observar professores e alunos.

    Da mesma forma, agradeo aos estudantes das turmas observadas, que

    foram sempre muito gentis comigo e que me deixam saudosa.

    Agradeo s trs professoras participantes da pesquisa pela disponibilidade,

    pelo carinho e pelo interesse que demonstraram em todas as etapas de

    investigao. Sem vocs, este estudo no poderia ser realizado. Espero poder

    retribuir toda a ateno que tm me dedicado.

    Las Freire de Oliveira e Alessandra Barreto pela ajuda na difcil tarefa de

    transcrever as entrevistas realizada.

    Flaviana Felleger Molina, uma amiga que abriu mo de suas prprias

    necessidades para me ouvir e compartilhar crenas e ideias. Voc tem sido um

    grande exemplo a seguir.

    Quero agradecer a todos os meus amigos de trabalho na Universidade

    Presbiteriana Mackenzie, que compartilham comigo alegrias e angstias, sucessos e

    frustraes, vividos por todos que se dedicam intensamente ao desafio de viver.

    s minhas amigas Valeria Grabellos Peres e Clia Maria Pereira de Queiroz

    pelas conversas pessoais e virtuais. Agradeo pela possibilidade de desabafar e de

    ouvi-las e pela presena em todos os momentos.

    Sabrina Teixeira, que tanto contribuiu para a realizao deste estudo. Com

    voc pude experimentar a interligao entre aprender e ensinar. Agora difcil saber

    quem ensina e quem aprende.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    7/186

    vii

    Agradeo tambm aos amigos, professores, gestores e funcionrios, da

    Universidade So Judas Tadeu. Agradeo pela confiana em minha competncia e

    pela construo de um ambiente de respeito, dedicao e bom humor.

    Agradeo tambm Profa. Luciana Venncio, cujo trabalho comecei a

    admirar h alguns anos e que hoje considero uma amiga. Muito obrigada por toda

    ajuda na realizao deste trabalho.

    Profa. Dra. Marilia Velardi pelas sugestes feitas durante a construo

    deste trabalho, que foram essenciais para modificar minhas concepes de cincia e

    que hoje se refletem no texto final apresentado.

    s professoras Doutoras Maria Amlia Lacerda e Sheila Aparecida Pereira

    Santos Silva, pelas sugestes, crticas e comentrios apresentados durante a

    elaborao do projeto e por atenderem meu convite para participar de banca de

    defesa de doutorado.

    s Professoras Doutoras Graciele Massoli Rodrigues e Regina Brando por

    gentilmente aceitarem participar da banca de defesa de doutorado.

    todos os funcionrios e professores que fazem parte do Programa de Ps-

    Graduao Stricto Sensu da Universidade So Judas Tadeu, que contriburam direta

    ou indiretamente para a concluso deste trabalho.

    Agradeo tambm Profa. Dra. Rita de Cassia Garcia Verenguer, com quem

    tenho orgulho de trabalhar, conviver e aprender h 15 anos. Obrigada por estar

    sempre ao meu lado e por confiar em mim.

    Por fim, agradeo minha grande amiga, Profa. Dra. Jeane Barcelos Soriano.

    Sem sua ajuda, provavelmente no teria realizado o mestrado e no estaria hoje na

    carreira acadmica. O que dizer? Muito obrigada, minha amiga, por me ouvir quando

    mais precisava, por ser meu exemplo e por me apoiar em todos os momentos.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    8/186

    viii

    Deve-se escrever da mesma maneira como as

    lavadeiras l de Alagoas fazem seu ofcio. Elas

    comeam com uma primeira lavada, molham a

    roupa suja na beira da lagoa ou no riacho torcem

    o pano, molham-no novamente, voltam a torcer.

    Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas

    vezes. Depois enxaguam, do mais uma

    molhada, agora jogando a gua com a mo.

    Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e do

    uma torcida e mais outra, torcem at no pingar

    do pano uma s gota. Somente depois de feito

    tudo isso que elas dependuram a roupa lavadana corda ou no varal, para secar. Pois quem se

    mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A

    palavra no foi feita para enfeitar, brilhar como

    ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

    Graciliano Ramos

  • 7/26/2019 Valores EDF

    9/186

    ix

    RESUMO

    Valores so contedos das aulas de Educao Fsica, disseminados por

    alunos e professores, de forma consciente ou inconsciente. Entretanto, embora

    muito se fale sobre a relao entre Educao Fsica e construo de valores, pouco

    sabemos sobre como essa construo se d no cotidiano das aulas e como esses

    valores se apresentam no currculo. Mediar a construo de valores no depende

    apenas da vontade, da competncia ou da boa inteno do professor de Educao

    Fsica. Inmeros fatores agem nessa construo, dificultando a interveno docente.

    Pesquisas tm indicado que alguns professores identificam dificuldades para

    implementar a construo de valores. Quais so as dificuldades percebidas poresses professores? Qual a origem dessas dificuldades? Para responder estas

    questes, elaborei o presente estudo com o objetivo de compreender o que dificulta

    o trabalho de professores que se propem a fazer das aulas de Educao Fsica um

    espao para a construo dos sistemas de valores de seus alunos. A Hermenutica

    Crtica constitui a base epistemolgica deste estudo, no qual procurei me aproximar

    do cotidiano escolar, local onde as dificuldades tornam-se concretas. Acompanhei a

    prtica de trs professoras, escolhidas intencionalmente. Para buscar asinformaes necessrias no cotidiano escolar dessas professoras utilizei como

    recursos a observao e a entrevista semiestruturada com professoras e alunos.

    Constru notas de campo para registro de observaes das aulas e de aspectos

    relevantes das entrevistas, que foram devidamente gravadas e transcritas. A partir

    da anlise dos dados identifiquei diversas dificuldades enfrentadas, relacionadas

    aspectos internos e externos s professoras, como aquelas relacionadas

    infraestrutura e aos recursos materiais disponveis na escola; organizao escolar;aos valores e atitudes da equipe escolar; concepo de educao fsica presente

    na cultura escolar; elaborao e aplicao das aulas de educao fsica; ao

    relacionamento com os alunos ; e ao estado emocional das professoras. Contudo

    possvel identificar a existncia de uma interrelao entre interioridade e

    exterioridade, medida que as concepes das professoras sobre as possibilidades

    de estimular os alunos a construir valores na escola constituem seu habitus

    profissional e interferem nas expectativas construdas e na percepo das

    dificuldades enfrentadas. O habitus, numa relao dialtica com fatores conjunturais,

    produz as prticas, que exteriorizam as disposies interiorizadas, e tendem a

  • 7/26/2019 Valores EDF

    10/186

    x

    reproduzir a estrutura social que definiu as condies para sua produo. E parte do

    habitus de professor de Educao Fsica a disposio para fazer de suas aulas

    espao para a construo de valores morais. Esta disposio uma forma de iluso,

    inconscientemente utilizada pelo professor, na tentativa de construir um sentido para

    sua prtica. Ela tem levado ao estabelecimento de expectativas irreais, incoerncia

    entre discurso e interveno e, no caso das professoras participantes deste estudo,

    ao sentimento de frustrao ou de impotncia. Romper com esta iluso essencial

    para que o professor possa adotar uma perspectiva crtica, reconhecendo-se como

    agente social que tem possibilidades e limites em sua interveno, como faz uma

    das professoras investigadas. Nessa medida, preciso rever o espao que a

    construo de valores morais deve ter nas aulas de Educao Fsica e criarmaneiras de trabalhar valores de forma relacionada ao contedo especfico da

    disciplina.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    11/186

    xi

    ABSTRACT

    Values are contents of the Physical Education classes, disseminated by

    students and teachers, conscious or unconsciously. Although there is much talk

    about the relationship between Physical Education and building of values, we know

    few about how this building occurs in the day to day of the classes and how these

    values are inserted in the curriculum. To facilitate the building of values does not

    depend solely of our own will, skills or the good will of the Physical Education

    teacher. Many factors act in this building, making difficult the intervention of the

    teacher. Research has indicated that some teachers have difficulties to implement

    the building of values. Which are the difficulties perceived by these teachers? What isthe origin of these difficulties? This project was developed aiming to understand what

    hinders the work of teachers whose proposal is to create in the classes of Physical

    Education a space for the building of the values systems of their students. Critical

    Hermeneutics is the epistemological foundation of this study in which I looked for

    being closer to the day to day of the classes, a place where the difficulties become

    concrete. This is a Multiple Case Study, following the practice of three teachers,

    chosen intentionally. In the search for the information needed the resources ofobservation and a semi-structured interview with teachers and students were used. I

    took fieldwork notes to record the observations of the classes and the relevant

    aspects of the interviews, which were audiotaped and transcribed. As from the

    analysis of the data I have identified many difficulties teachers face, related to

    internal and external aspects, as the ones related to infrastructure and to the material

    resources available in the school; to the organization of the school; to the values and

    attitudes of the scholar team; to the physical education conception underlying theschool culture; to the devising and practicing of physical education classes; to the

    relationship with the students and to the teachers emotional state. However, it is

    possible to identify an interrelationship between interiority and exteriority as far as the

    teachers conceptions about the possibilities of stimulating the students to build

    values at school are their professional habitus and they interfere in the expectations

    built and in the perception of the difficulties found. Habitus, in a dialectic relationship

    with conjuncture factors, creates the practices which externalize the interiorized

    dispositions and tends to reproduce the social structure that has defined the

    conditions for its production. It is an integral part of the habitus of the Physical

  • 7/26/2019 Valores EDF

    12/186

    xii

    Education teacher the willingness to make from his/her classes a space for the

    building of moral values. This willingness is a kind of illusion, used unconsciously by

    the teacher in an attempt to make sense for his/her practice. This has led to the

    establishment of unreal expectations, incoherence between discourse and

    intervention and, in the case of the teachers participating in this study, to the feeling

    of frustration or impotence. To break up with this illusion is important so that the

    teacher could adopt a critical perspective, recognizing himself/herself as a social

    agent who has possibilities and limits in his/her intervention, as one of the

    investigated teachers does. In this sense, it is needed to review the space that the

    building of moral values should have in the Physical Education classes and to create

    ways to work on values in relation to the specific content of the subject.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    13/186

    xiii

    SUMRIO

    APRESENTAO ................................................................................................................................ 14

    1 O BOSQUEJO DO PROJETO: ORIGEM DAS INQUIETAES ................................................ 17

    1.1 CONSTRUO DE VALORES E EDUCAO ESCOLAR.................................................................... 21

    2 REFORANDO OS TRAOS E DELIMITANDO AS FORMAS ................................................... 31

    3 DEFINIO DO DESENHO: ESTRUTURA, ACESSRIOS E CORES ....................................... 36

    3.1 ACONSTRUO DO MEU OLHAR:AHERMENUTICA COMO CAMINHO.......................................... 38

    3.1.1 A Hermenutica aplicada anlise da ao .................................................................... 43

    3.2 UM PROJETO EM AO:CONCRETIZANDO A PESQUISA.................................................................. 45

    4 INTERPRETANDO O COTIDIANO: ALGUMAS CARACTERSTICAS DO TRABALHO DAS

    PROFESSORAS .......................................................................................................... ......................... 52

    5 A EXTERIORIDADE: ESCOLA E SOCIEDADE COMO GERADORAS DE DIFICULDADES

    PARA ESTIMULAR A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA ......... 60

    5.1 DIFICULDADES RELACIONADAS INFRAESTRUTURA E AOS RECURSOS MATERIAIS DISPONVEIS NA

    ESCOLA.............................................................................................................................................. 61

    5.2 DIFICULDADES RELACIONADAS ORGANIZAO ESCOLAR............................................................ 65

    5.3 DIFICULDADES RELACIONADAS AOS VALORES E ATITUDES DA EQUIPE ESCOLAR............................ 67

    5.4 DIFICULDADES RELACIONADAS CONCEPO DE EDUCAO FSICA PRESENTE NA CULTURAESCOLAR. ........................................................................................................................................... 74

    6 A INTERIORIDADE: PESSOAL E PROFISSIONAL COMO GERADORES DE DIFICULDADES

    PARA ESTIMULAR A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA ......... 78

    6.1 DIFICULDADE RELACIONADAS ELABORAO E APLICAO DAS AULAS DE EDUCAO FSICA......... 79

    6.2 DIFICULDADE RELACIONADAS AO RELACIONAMENTO COM OS ALUNOS........................................... 81

    6.2.1 conflito entre a construo da autonomia e a doutrinao ............................................... 84

    6.3 DIFICULDADE RELACIONADAS AO ESTADO EMOCIONAL DAS PROFESSORAS.................................. 94

    7 CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUSE ILLUSIONARELAO DIALTICA ENTRE EXTERIORIDADE E INTERIORIDADE ............................................ 98

    7.1 ILUSO E CURRCULO OCULTO.................................................................................................. 107

    7.2 ILUSO,IMPOTNCIA E FRUSTRAO......................................................................................... 112

    8 ALGUMAS CONCLUSES... PROVISRIAS ............................................................................ 118

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................................. 122

    ANEXOS .......................................................................................................................................... ... 139

    APNDICE .......................................................................................................................................... 143

  • 7/26/2019 Valores EDF

    14/186

    14

    APRESENTAO

    Fomos para a outra sala, onde nos aguardavam apenas 10 alunos da 4aC. Dois delesestavam com alguns brinquedos e Mariana pediu para que eles guardassem os

    objetos. Assim como na turma anterior, os meninos estavam bastante agitados.

    Vinicius no guardou os brinquedos logo e ela usou como estratgia contar at 10.

    Esse seria o tempo mximo para que ele atendesse solicitao da professora. Os

    demais alunos contaram junto com ela. Ele a atendeu.

    Aps esse incidente, os alunos permaneceram sentados em duplas e Mariana

    tentava explicar o que aconteceria na aula. Porm, no conseguia atingir seu

    objetivo. Eles brincavam e falavam junto com ela. Em vrios momentos alguns alunos

    faziam perguntas sem qualquer relao com a aula, desviando completamente o

    rumo da conversa. Ora falavam srio, ora brincavam. Mariana procurava responder

    s perguntas e, com isso, no conseguia explicar porque a aula estava acontecendo

    na sala.

    Num determinado momento, motivada pelo discurso de um dos alunos, Mariana

    perguntou aos alunos quem deve pagar quando um estudante quebra um vidro da

    sala de aula. Eles respondem a pergunta de forma incoerente. Um deles diz que o

    pai e no o aluno. Relacionando com as aulas de Educao Fsica, Mariana

    questiona a falta de cuidado de alguns com os materiais usados em aula. Explica quemuitos j foram com outras pessoas, fora da escola. Em seguida, um aluno explica

    que h muitas bolas no lago do CEU. Outros alunos falam sobre passear no lago.

    Algum comenta comigo que a professora os levou para subir nas rvores. Ela

    explica como foi a atividade.

    Enfim, No h um dilogo organizado entre o grupo. Cada um parece estar numa

    conversa prpria, enquanto Mariana tenta participar de todas elas. Porm, sempre

    que ela tenta apresentar um argumento, respondendo a pergunta de um aluno, um

    novo assunto apresentado e a conversa muda de rumo. Acredito que eles esto

    conversando consigo mesmos e no ouvem Mariana. Como possvel tanta

    confuso entre nmero to pequeno de alunos?

    O mesmo acontece quando a professora, irritada com a atitude de Douglas. tenta

    conversar com ele. Enquanto Mariana respondia pergunta de um colega, Douglas

    gritou para que outro aluno calasse a boca. Ela, alterando o tom de voz, diz a ele

    que, talvez por ser aluno novo, no saiba como se resolvem os problemas na escola.

    Interessante notar que, nesse momento, todos esto prestando ateno no que ela

    diz.

    Em sua conversa com Douglas Ela explica que, na escola, deve-se resolver os

    conflitos pela conversa. Diz que, caso ele no adote tal atitude em sua casa ou

    quando est na rua, dentro da escola dever rever seu comportamento, adequando-

  • 7/26/2019 Valores EDF

    15/186

    15

    se s normas escolares. At esse momento ele a escutava de cabea baixa,

    brincando com um objeto em suas mos, como se no desse ateno ao que ouvia.

    Mas, de repente, indignado respondeu Mariana, dizendo que no fica na rua.

    Parecia ofendido com essa ideia, talvez por associar o ficar na rua com

    delinquncia. Ela ento tentou mostrar que era apenas um exemplo e continuou

    tentando explicar que ele precisava resolver os conflitos pela conversa. Mas, em sua

    explicao, acabou repetindo o mesmo exemplo mais duas vezes, comparando um

    possvel comportamento dele em casa e na rua. Ele parecia no escuta-la e s

    repetia que no ficava na rua. (Nota de campo: Mariana 17/02/11)

    No trecho apresentado acima tento descrever parte de uma aula de Educao

    Fsica, na qual podemos identificar aes dos indivduos participantes da aula,

    aes essas que evidenciam alguns de seus valores. De um lado, temos os valores

    da professora Mariana (nome fictcio, assim como os outros apresentados em todo o

    texto), que acredita falar em nome da escola ao defender o dilogo como

    instrumento para soluo de conflitos. De outro lado est Douglas (e alguns outros

    alunos) que, ao contrrio da professora, acredita que pode utilizar da violncia, seja

    ela verbal ou fsica, para garantir sua vontade pessoal. Como a prpria professora

    diz, possvel e provvel que no cotidiano do aluno, em sua casa ou na rua,

    estejam presentes valores opostos aos defendidos no ambiente escolar. Para tentar

    mudar o comportamento e os valores do aluno, Mariana se utiliza de um discurso

    que Douglas parece no compreender.

    Inicio a apresentao dessa pesquisa com a descrio da situao acima por

    acreditar que olhar para o cotidiano da escola nos permite ver com mais nitidez a

    complexidade envolvida no processo de construo de valores nas aulas de

    Educao Fsica e nos outros ambientes escolares. Meu propsito chamar a

    ateno para algo que, embora possa parecer bvio para alguns, com frequncia

    desconsiderado por pesquisadores e professores da rea.

    Venho me dedicando preparao de professores h 13 anos, atuando em

    cursos de graduao e ps-graduao. Nesse contato com graduandos e graduados

    identifico uma caracterstica comum: a crena de que um dos objetivos principais

    das aulas de Educao Fsica na escola a formao de valores. Em seus

    discursos, os professores da rea, assim como seus futuros colegas de profisso, os

    estudantes de graduao, defendem que honestidade, respeito, igualdade, entreoutros valores, podem ser construdos a partir das atividades realizadas.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    16/186

    16

    Ao ouvir esses discursos sempre me senti incomodada, por dois motivos. O

    primeiro deles que tal crena, historicamente construda, me parece um tanto

    ingnua, repetida sem crtica e sem fundamentao cientfica. Ingnua porque

    desconsidera a complexidade envolvida na construo do sistema de valores de

    uma pessoa. O segundo motivo que nesses discursos, implicitamente, se refora a

    ideia de que a construo de valores uma das principais atribuies da Educao

    Fsica, principalmente aqueles relacionados convivncia humana, sendo mais

    relevante que qualquer outra funo que se possa esperar dela, ou seja, deixa-se de

    lado a sua especificidade.

    Tentar desconstruir essa crena foi uma das motivaes iniciais desse

    relatrio de pesquisa que agora apresento. Ele est organizado em oito captulos.No primeiro deles pretendo descrever a histria dessa pesquisa, que se mistura com

    minha prpria histria com a Educao Fsica. Apresento tambm alguns dos

    autores que fundamentaram a construo inicial do projeto e como outros autores

    me levaram a questionar esta fundamentao inicial. A seguir, no captulo 2,

    apresento a problemtica, o problema e o objetivo que escolhi para nortear a

    realizao desta tese de doutorado, que hoje entendo como uma etapa de minha

    investigao sobre o tema valores e Educao Fsica, que merecer minha atenopor mais algum tempo.

    No terceiro captulo apresento minha forma de olhar para o processo de

    produo do conhecimento cientfico e procuro explicitar a base epistemolgica

    escolhida e o desenho da pesquisa. Assim, descrevo o processo seguido para

    acesso ao cotidiano investigado, as formas de contato com os participantes do

    estudo, alm dos procedimentos para obteno e anlise de informaes.

    A seguir, apresento o trabalho das professoras, apresento algumascaracterstica do trabalho das professoras, como a forma de organizao das aulas,

    os objetivos perseguidos por elas, os temas trabalhados em aula e o relacionamento

    estabelecido com seus alunos. Nos dois captulos seguintes descrevo minha

    interpretao do discurso e da prtica adotadas pelas professoras, analisando

    aspectos interiores e exteriores que interferem na forma como se envolvem com a

    tarefa de estimular o desenvolvimento dos valores. No captulo sete procuro

    relacionar aspectos interiores e exteriores e defender a tese escolhida. Por fim,

    apresento algumas consideraes finais sobre a interpretao realizada, entendida

    como provisria, para ser fiel hermenutica crtica.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    17/186

    17

    1 OBOSQUEJODOPROJETO: ORIGEMDASINQUIETAES

    Difcil precisar o momento em que esta pesquisa se origina, pois, embora sua

    forma atual seja uma construo recente, diferentes experincias que ocorreram no

    cotidiano escolar, desde meu ingresso na escola, como professora, contriburam

    para a formulao das questes que hoje procuro responder. Assim, pretendo agora

    apresentar como vejo a histria da construo desse projeto de pesquisa.

    Minha relao com a escola sempre foi bastante positiva. Eu via nela o

    principal espao para o convvio social, j que a regio perifrica da cidade de So

    Paulo, onde passei minha infncia e adolescncia, no oferecia outras

    oportunidades para o lazer e de interao com amigos. Langhout e Mitchell (2008)afirmam que os alunos apresentam um envolvimento maior com sua aprendizagem

    quando se identificam com a escola. Esse foi o meu caso.

    Grande parte das lembranas que trago comigo vm do que hoje conheo por

    cultura escolar, definida e analisada mais adiante. Imagens de conversas com os

    amigos e professores, das festas juninas, dos passeios e do primeiro beijo, so

    marcantes. Lembro-me bem dos vrios rituais, prticas e brincadeiras que

    pertenciam aos alunos. No caderno de enquete, registrvamos respostas aperguntas indiscretas, revelando segredos sobre uma sexualidade que aflorava.

    Passeios realizados tambm foram marcantes. Fica evidente, portanto, que a vida

    escolar teve uma imensa influncia na construo dos meus valores e que isso se

    reflete na pesquisa que realizo.

    Entre 1987 e 1990 realizei meu curso de Graduao. Este foi um perodo que

    tambm deixou muitas influncias sobre a forma como vejo a escola e os valores a

    ela atribudos. Meu ingresso no curso no foi motivado pelo interesse em atuar naescola. Ao contrrio, como tantas outras pessoas, considerava que a Educao

    Fsica Escolar era componente de reduzida relevncia. No entanto, percebo que

    grande parte das pessoas interessantes que encontrei na universidade foram

    justamente aquelas apaixonadas pela educao escolar. Eles foram meus outros

    significantes, pessoas que tiveram grande impacto em minha formao social,

    mesmo no fazendo parte dos meus grupos de convvio dirio. Ao concluir a

    graduao no via sentido em outra possibilidade de trabalho que no fosse a

    docncia na educao bsica.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    18/186

    18

    Nesse espao, eu tomei contato com diferentes teorias pedaggicas,

    apresentadas em diferentes disciplinas do meu curso de graduao, que influenciam

    a forma como vejo a escola. Merecem destaque os estudos sobre currculo,

    especialmente as teorias crticas, como a da Violncia Simblica, apresentada por

    Bourdieu e Passeron (1975). Com esses autores pude compreender que a escola

    no uma instituio social neutra mas que tem por funo expressar e reproduzir

    as caractersticas da sociedade. Com certeza, a fundamentao nesses autores foi

    determinante para a aproximao com o tema proposto neste estudo.

    Vale destacar, ainda, que o fato de ter realizado minha graduao no final da

    dcada de 1980, perodo de grande questionamento acadmico da rea, trouxe uma

    influncia determinante sobre minha formao. Tomei contato com diversos dosautores responsveis pela chamada crise de identidade vivida pela rea

    acadmica, muitos dos quais defendiam a Educao Fsica como instrumento de

    mudana social, como Vera Lucia Ferreira, Valter Bracht, Joo Batista Freire e Celi

    Taffarel. Essa foi a base que me fez refletir sobre minha experincia escolar e

    construir crenas a respeito da Educao Fsica que subsidiaram um projeto para

    meu retorno escola, agora como uma educadora.

    Em 1992, quando ingressei rede municipal de ensino de So Paulo,atuando na mesma escola em que conclura o antigo primeiro grau, via naquele

    espao um instrumento de reproduo social, mas lutava para transform-lo e,

    consequentemente, fazer dele um local de conscientizao e mudana. Sonhos de

    uma professora em incio de carreira, que construa uma colcha de retalhos formada

    por tecidos de diferentes caractersticas: teorias cientficas, experincias pessoais,

    construes cotidianas a partir dos erros e acertos.

    Marcava minha interveno a tentativa de influenciar a construo dosvalores de meus alunos, valores esses que determinariam suas atitudes e seu modo

    de ver a convivncia humana, seu corpo, a escola, o esporte, a Educao Fsica. No

    incio, meu objetivo principal era construir uma nova viso sobre a Educao Fsica

    como componente curricular. Os aprendizes no eram apenas os estudantes, mas

    tambm os professores, os funcionrios e a equipe de gestores. A inteno era que

    eles valorizassem a rea. Mas, o trabalho utilizado era bastante intuitivo. Muitas

    dificuldades surgiam e eu tentava e acreditava que poderia super-las. Quem sabe

    dizer se as estratgias utilizadas foram eficientes? Naquele momento muitas

    incertezas estavam presentes. Questionava o currculo construdo. Seriam esses os

  • 7/26/2019 Valores EDF

    19/186

    19

    conhecimentos necessrios aos meus alunos? Questionava a metodologia de

    ensino. Seriam as estratgias escolhidas as mais adequadas para que a

    aprendizagem acontecesse? Com certeza, o questionamento da poca ainda se faz

    presente.

    O ingresso no curso de mestrado em 1996, motivado pela necessidade de

    responder alguns desses questionamentos, tambm tem relao direta com a

    pesquisa aqui apresentada. Nesse momento pude estudar de forma mais profunda a

    construo do currculo. Assim, por um lado tomei contato com autores da sociologia

    do currculo. Por outro lado, conheci a proposta de organizao curricular

    apresentada por Cesar Coll, com a tipologia dos contedos, teoria esta que

    fundamentou a elaborao da dissertao de mestrado. A sociologia do currculoficou adormecida porque, embora acreditasse nas proposies apresentadas, no

    sabia bem como integrar conhecimentos da psicologia e da sociologia no currculo.

    Foi ento, a partir dessas leituras, que comecei a pensar na possibilidade de

    um doutorado. Aprofundar a compreenso sobre a dimenso conceitual nas aulas

    de Educao Fsica parecia interessante. Mas, outro tema comeava a tornar-se

    mais atraente. Em 1998, ainda durante a realizao do Mestrado, tive a

    oportunidade de iniciar minha carreira no ensino superior, ao assumir aresponsabilidade por uma disciplina denominada tica Profissional e Dimenses

    Sociais da Educao Fsica, parte da grade curricular do curso de graduao da

    Universidade So Judas Tadeu. Nas aulas, analisava com os futuros profissionais

    da rea o papel social desempenhado, bem como questes sobre moral e tica

    relacionadas com sua interveno. Assim, num determinado momento, pude

    perceber que pensar a construo de valores era o que eu fazia desde que iniciei

    meu curso de graduao (talvez at antes disso). Percebi que faria todo o sentidotrazer aspectos de minha histria para o doutorado e comecei a construir um projeto

    de pesquisa para investigar a dimenso atitudinal dos contedos, que me fora

    apresentada por Coll, nas aulas de Educao Fsica. Mas, como concretizar esse

    projeto?

    Foram sete anos me acercando do tema e procurando opes de

    orientadores e programas diferentes para desenvolver meu projeto de pesquisa. Por

    vrias vezes, abandonei o projeto e optei por estudar outros assuntos, para melhor

    me adequar s linhas de pesquisa disponveis. No entanto, a discusso sobre os

    valores nas aulas de Educao Fsica estava sempre presente. Em 2007 consegui,

  • 7/26/2019 Valores EDF

    20/186

    20

    juntamente com a Profa. Dra. Rita de Cassia Garcia Verenguer, o financiamento do

    Mackpesquisa para realizar um projeto sobre o tema. A realizao da pesquisa me

    permitiu amadurecer algumas ideias a partir da comparao entre o conhecimento

    cientfico presente no referencial terico escolhido e a realidade da interveno dos

    professores pesquisados, realidade esta construda a partir de uma combinao

    heterognea que se configura no que Certeau (1999, p.46) denomina como

    patchworks do cotidiano. Assim, foi possvel encontrar algumas respostas iniciais

    para meus questionamentos. Por outro lado, muitas outras incertezas surgiram.

    Eu sabia que os valores estavam presentes na escola, nos ritos, linguagens e

    formas de organizao escolar (SILVA, 2006), mas no eram considerados

    contedos de ensino, sendo frequentemente aprendidos pelos estudantes de formainconsciente e sem que os prprios educadores percebessem. Li autores que

    ressaltavam a necessidade de explicitar valores, atitudes e normas como contedos

    da educao formal, como Abreu e Masetto (1990), Zaballa (1997), Saviani (1997) e

    Coll (2000).

    A prpria Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (BRASIL, 1996)

    apresenta como um dos objetivos do Ensino Fundamental a formao de atitudes e

    valores. Nos Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997a), tendo comosuporte o referencial adotado pela reforma educacional espanhola, tambm se

    defende que a dimenso atitudinal dos contedos deve aparecer de forma mais

    enftica no currculo escolar.

    Percebia, nas recentes propostas pedaggicas para o ensino da Educao

    Fsica na escola, que era cada vez mais frequente a defesa de aulas que

    viabilizassem no apenas a aprendizagem de contedos das dimenses

    procedimental e conceitual, mas tambm a construo de valores, atitudes enormas. Brasil (1997b), Freire e Mariz de Oliveira (2004), Darido e Rangel (2005),

    Sanches Neto e Betti (2008), Rodrigues e Darido (2008) so exemplos de autores

    que advogam a aprendizagem de uma dimenso atitudinal dos contedos na prtica

    pedaggica dos professores de Educao Fsica. Assim, se constitua um discurso

    preconizando a presena da dimenso atitudinal e de valores no ensino da

    Educao Fsica, tanto entre os professores, quanto entre estudiosos da rea.

    Porm, esse discurso me incomodava porque no conseguia v-lo se

    transformar em ao. Repensava minha interveno na escola e identificava

    diversos entraves para aplicar as ideias presentes nos discursos. No encontrava

  • 7/26/2019 Valores EDF

    21/186

    21

    uma discusso mais aprofundada sobre como essa dimenso atitudinal se

    configurava no cotidiano das aulas. Por vezes, o tema parecia ser tratado com

    superficialidade e ingenuidade, semelhana do que aconteceu no passado,

    quando se argumentou que o esporte deveria fazer parte das aulas de Educao

    Fsica porque contribui para a formao do carter ou ensina a perder e a ganhar.

    Nessa medida, ao pensar sobre os valores no ensino da Educao Fsica,

    muitas questes surgiam, como: Quais valores o professor de Educao Fsica

    pretende que seus alunos construam? Os professores elegem de forma consciente o

    que dever ser construdo pelos alunos? Que resultados esses professores

    acreditam alcanar com a realizao de seu trabalho? Que valores os alunos

    constroem a partir das aulas de Educao Fsica? Qual a percepo dos estudantessobre os valores disseminados em aula?Que prtica pedaggica tem sido adotada

    pelos professores de educao fsica para abordar a dimenso atitudinal dos

    contedos? Quais estratgias de ensino tm sido utilizadas por esses professores

    para estimular em seus alunos a construo de valores? O trabalho do professor

    est integrado proposta pedaggica escolar?

    Na tentativa, bastante prepotente, de encontrar respostas para estes

    questionamentos, dei incio a elaborao da presente tese. Aos poucos, percebi queno seria possvel responder a todas elas. Compreendi, ento, a necessidade de

    delimitar meu objeto de estudos: valores e educao.

    1.1 Construo de Valores e Educao Escolar

    Compreender o significado e a importncia dos valores na existncia humana

    tem sido preocupao de inmeros filsofos (GOUVA, 2008; GOERGEN, 2005),

    preocupao esta que d origem a um ramo filosfico especfico, a axiologia, que

    surge no sculo XIX, desenvolvida por um grupo de filsofos de inspirao

    neokantiana (GOUVA, 2008 ). Goergen (2005) afirma que diferentes teorias tm

    sido apresentadas na tentativa de explicar o que so os valores, teorias estas

    influenciadas pelas caractersticas sociais do perodo histrico em que so

    construdas. Por isso mesmo, diferentes sentidos so atribudos ao termo valor.

    Hessen (1967), tambm reconhecendo a dificuldade presente ao se tentar

    conceituar os valores, afirma que estabelecer tal conceito no possvel. Em vriosmomentos eu tambm tenho me questionado sobre a possibilidade e a necessidade

  • 7/26/2019 Valores EDF

    22/186

    22

    de construir tal conceito. Hessen (1967) argumenta que ele est entre os conceitos

    supremos, como os de ser, existncia, etc, que no admitem definio (p. 37).

    Contudo, como afirma o autor, atribuir valor faz parte da essncia humana.

    Embora um conceito nico e rigoroso no exista, Hessen (1967) tenta se acercar

    dele e discutir seu contedo. Talvez, mais importante que elaborar um conceito de

    valores seja compreender o que nos leva a atribuir um valor. Nessa perspectiva, o

    autor argumenta que os valores esto relacionados com as necessidades humanas,

    sejam elas ticas, religiosas ou estticas. Assim, uma pessoa valoriza algo que

    satisfaz suas necessidades humanas. Ele afirma que valor tudo aquilo que for

    apropriado a satisfazer determinadas necessidades humanas (p. 42).

    Este argumento apresentado por Hessen (1967) tem marcado a pesquisacientfica sobre os valores desde seu incio, que ademais bastante recente

    (GOUVA, 2008). Ele continua presente hoje nas pesquisas psicolgicas que

    focalizam o tema. Desta forma, desde os estudos iniciais de Rokeach (1973, 1979),

    passando pelos realizados por Schwartz (1996), assim como nas pesquisas

    atualmente apresentadas por Gouveia (2003), se defende a ideia de que as

    necessidades humanas determinam, predominantemente, os valores adotados pelos

    indivduos (PEREIRA, CAMINO E DA COSTA, 2005). Partindo desta premissa, aspesquisas tendem a enfatizar excessivamente aspectos psicolgicos na construo

    do sistema de valores do indivduo, dando reduzido espao para a influncia social

    nesta construo.

    Os estudos realizados por Rokeach (1973, 1979) e Rokeach e Ball-Rokeach

    (1989) tiveram papel determinante no desenvolvimento das pesquisas sobre valores,

    sendo sua influncia percebida ainda hoje. Para este autor, os valores so ideias ou

    crenas presentes em toda sociedade sobre estados finais de existncia ou modosde comportamento desejveis (1979, p. 49).

    Para Rokeach e Ball-Rokeach (1989) os valores podem ser classificados em

    dois grupos: instrumentais e terminais. Valores terminais constituem objetivos finais

    da existncia, como sabedoria, igualdade e paz. So instrumentais os valores que

    permitem atingir os valores terminais, como ser honesto e perdoar. Eles so

    organizados de forma hierrquica, formando sistemas que orientam as condutas,

    escolhas e decises dos indivduos, a partir de suas necessidades e motivaes

    (PEREIRA, LIMA e CAMINO, 2001).

  • 7/26/2019 Valores EDF

    23/186

    23

    Tomando como base os estudos de Rokeach (1973, 1979), Schwartz (1996)

    apresenta uma outra proposta de classificao dos valores, que podem ser

    organizados em dez tipos motivacionais: poder, realizao, hedonismo, estimulao,

    auto direo, universalismo, benevolncia, tradio, conformidade e segurana.

    Para o autor, esses tipos motivacionais so universais e representam necessidades

    humanas bsicas (FERNANDES et al., 2007).

    Tambm entendendo que os valores esto relacionados com as

    necessidades bsicas humanas, Gouveia (2003) toma como base os estudos de

    Schwartz e prope a existncia de 24 valores humanos bsicos, organizados no

    modelo funcionalista dos valores humanos. Neste modelo so propostas duas

    funes para os valores: guiar o comportamento humano, segundo uma orientaopessoal, central ou social; e expressar as necessidades humanas, seguindo uma

    motivao materialista ou humanista. Derivam destas duas funes, seis

    subfunes. Apresento uma sntese da proposta do autor no quadro 1.

    Subfuno Necessidades Orientao Valores Observaes

    materialista

    Existncia Fisiolgicas bsicase de segurana

    central SadeSobrevivnciaEstabilidade

    pessoal

    Principal no motivadormaterialista Mais presente em contextos deescassez econmica.

    Realizao Auto-estima pessoal xitoPrestgio

    Poder

    Mais apreciados por jovensadultos

    Normativa Controle(demandas

    institucionais esociais)

    social TradioObedincia

    Religiosidade

    Reflete a relevncia atribudapara a preservao da cultura edo cumprimento das normasconvencionais

    humanista

    Suprapessoal Necessidadesestticas e de

    cognioAuto-realizao

    central ConhecimentoMaturidade

    beleza

    Auxilia na construo de umsentido para a vida

    Quem adota tal valor tomadecises a partir de critriosuniversais

    Experimentao SatisfaoPrazer

    (hedonismo)

    pessoal SexualidadePrazer

    Emoo

    Adotados, principalmente porjovens Contribuem para a promoode mudanas sociais.

    Interacional PertenaAmor

    Afiliao

    social AfetividadeConvivnciaApoio Social

    Estabelece, regula mantemrelaes interpessoais

    Quadro1: modelo funcionalista dos valores humanos de Gouveia(2003)

  • 7/26/2019 Valores EDF

    24/186

    24

    Nas pesquisas apresentadas acima, Rokeach (1973, 1979), Rokeach e Ball-

    Rokeach (1989), Schwartz (1996) e Gouveia (2003) atribuem s necessidades

    humanas papel preponderante na adoo dos valores individuais e, nessa medida,

    embora no desconsiderem o papel do ambiente sobre os valores adotados, pouco

    exploram este papel (PEREIRA, CAMINO e DA COSTA, 2005). Seriam os valores

    definidos individualmente?

    Uma perspectiva diferente sobre a influncia da sociedade na construo do

    sistema de valores das pessoas adotada por Inglehart (1971, 1981). Para o autor,

    a organizao social a principal responsvel por esta construo. Em estudos

    realizados em diferentes pases da Europa, Inglehart (2008) verificou que h uma

    diferena entre os valores adotados pelas novas geraes, que se preocupam maiscom a autonomia e a liberdade de expresso, valores ps-materialistas, enquanto as

    geraes anteriores, tinham entre seus principais valores a segurana fsica e

    econmica, valores materialistas.

    O autor acredita que a mudana econmica e poltica desses pases

    determinante para a diferena entre essas geraes. Argumenta que o sistema de

    valores se forma de maneira mais estvel na passagem entre adolescncia e idade

    adulta, sendo que a conjuntura do pas, nessa fase, ter grande efeito na adoo devalores materialistas ou ps-materialistas. Entretanto, embora as pesquisas

    realizadas por Inglehart (1971, 1981) resultem num questionamento da perspectiva

    psicolgica sobre os estudos de valores, assim como Rokeach (1973) e Schwartz

    (1996), ele ainda considera como fonte dos valores as necessidades bsicas

    humanas, descrita na teoria de Maslow (PEREIRA, CAMINO e DA COSTA, 2005).

    Considerando a relevncia das duas vertentes apresentadas acima, Pereira,

    Lima e Camino (2001), Pereira, Ribeiro e Cardoso (2004) e Pereira, Camino e DaCosta (2005), apontam uma necessidade de articular a perspectiva psicolgica com

    a teoria sociolgica proposta por Inglehart (1979, 1981, 2008) e defendem uma

    anlise psicossociolgica. A partir de vrios estudos realizados com estudantes

    universitrios (PEREIRA, LIMA e CAMINO, 2001; PEREIRA, RIBEIRO E

    CARDOSO, 2004; PEREIRA, TORRES e BARROS, 2004) os autores procuraram

    analisar como a opo por um determinado sistema de valores pode influenciar o

    envolvimento poltico e social desses estudantes.

    A partir dos resultados obtidos nesses estudos, os autores afirmam que a

    fonte dos valores adotados pelos indivduos est na identidade ideolgica vigente na

  • 7/26/2019 Valores EDF

    25/186

    25

    sociedade e no resulta apenas de motivaes individuais. Assim, Pereira, Camino

    e Da Costa (2005, 17) propem uma abordagem societal dos valores, na qual os

    valores so entendidos como conhecimentos socialmente estruturados a partir dos

    diversos contedos ideolgicos contidos na sociedade (p. 18). Nesta abordagem, os

    autores propem uma taxonomia dos valores para a sociedade brasileira,

    organizados em 4 sistemas: hedonista, religioso, materialista e ps-materialista.

    Valores relacionados satisfao sexual, como sexualidade e prazer

    constituem o sistema hedonista, enquanto que no sistema religioso esto os valores

    ligados espiritualidade e f crist. J o sistema materialista envolve aqueles

    relacionados com o bem estar econmico e estratificao social, como riqueza e

    status. O quarto sistema proposto por Pereira, Camino e Da Costa (2005) seorganiza em trs subsistemas: dos valores relacionados ao trabalho e ao bem estar

    profissional, dos valores relacionados ao bem estar social e, por fim, os valores

    relacionados ao bem estar individual. Adoto, neste estudo, a abordagem societal e,

    assim como Pereira, Camino e Da Costa (2005), entendo que os valores so

    construtos sociais e que todos os valores so sociais, medida que so produzidos

    nas interaes entre os homens (p.22).

    A escola um dos principais espaos sociais a propiciar a possibilidade deinteragir socialmente e influencia a construo de valores. Por isso mesmo,

    possvel encontrar inmeros autores que se propem a discutir e produzir

    conhecimento sobre o tema, como Puig (1998), Menin (2002), Halstead e Taylor

    (2000), Nucci (2000), Goergen (2005), Martn Garcia e Puig Rovira (2007), Cortella e

    La Taille (2007) e Thornberg (2008).

    Entretanto, grande parte desses autores adota uma premissa psicolgica em

    seus estudos, influenciados pelas poucas, mas relevantes obras sobre o tema,escritas por Piaget. Consequentemente, com frequncia a anlise sobre a presena

    dos valores na escola tem se limitado sua dimenso moral, o que acontece

    tambm em obras que discutem valores fora do ambiente escolar, como afirma

    Viana (2007). Valdivia (1998, p.2), por exemplo, chega a afirmar que educar en los

    valores es educar moralmente, porque son los valores los que ensean al individuo

    a comportarse en la sociedade.... Para Halstead and Taylor (2000), Thornberg

    (2008) e Lovat (2010) a expresso educao em valores tem sido utilizada como

    sinnimo de educao moral.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    26/186

    26

    Nesses estudos, parte-se do pressuposto que, para entender a presena de

    valores no currculo percurso obrigatrio a anlise sobre a educao moral e a

    tica na escola, discusso esta que tem merecido ateno especial, estimulada por

    uma suposta crise de valores na sociedade atual (NUCCI, 2000; CORTELLA e LA

    TAILLE, 2007). Por crise de valores se entende que h, na sociedade atual, o

    abandono de valores que, na percepo de alguns, estavam presentes no passado.

    Esta ideia aparece, por exemplo, nos trabalhos de Baliulevicius e Macrio (2005),

    Ortega et al. (2008), Moreno e Salas (2009) e Durea-Tardelli (2009).

    Por vezes, para comprovar tal perda de valores, se aponta o aumento na

    violncia, na intolerncia e no comportamento indisciplinado dos alunos nas escolas.

    Concordando com Cortela e La Taille (2007), acredito que essa queixacomportamental que considera os alunos indisciplinados e desrespeitosos, por

    vezes apenas uma lamria frequente sobre a conduta dos estudantes, que nem

    sempre tem relao com a tica e com a moral.

    Para Nucci (2000), a ateno que se d formao moral na atualidade est

    relacionada com as rpidas transformaes sociais e tecnolgicas. H um

    desconforto e um temor de que valores bsicos desapaream. Assim, muitas vezes

    se argumenta sobre a necessidade de retomar valores tradicionais - como sehouvessem existido no passado - enfatizando a formao de crianas boazinhas,

    ou seja, bem educadas, respeitosas, e que, em geral, tratam as pessoas com

    justia(p. 73). O autor critica esta ideia, mostrando que nem sempre crianas

    boazinhas tornam-se pessoas crticas para combater desigualdades e injustias

    sociais.

    Para Cortella e La Taille (2007) vivemos uma crise de sentido, que tem

    implicaes ticas e morais. H, na viso dos autores, uma perda de sentido ou umesboroamento na capacidade de vida coletiva (p.11), como denomina Cortella, que

    afeta primeiro aos pais. Nas palavras de La Taille o problema est antes neles do

    que nos seus filhos, os alunos (p.11). Pensando na escola, podemos entender que

    alm dos pais, so influenciados por essa crise tambm os professores, o que pode

    ter relao direta com a indisciplina dos alunos.

    Mas o fato que tica e moral esto presentes na escola, no se pode

    negar. Aranha (2006), fundamentando-se em Reboul, afirma que o professor

    responsvel pelo ensino da moral e da tica em suas aulas, seja de forma proposital

    ou involuntria. Da mesma forma, Paulo Freire (1996) ressalta a presena da moral

  • 7/26/2019 Valores EDF

    27/186

    27

    na interveno do educador quando declara que o ensino dos contedos no pode

    dar-se alheio formao moral do educando (p. 33).

    Uma das reas que mais tem se dedicado compreenso da moralidade tem

    sido a psicologia, com destaque para os estudos realizados por Piaget e por

    Kohlberg. Embora Piaget tenha se dedicado pouco discusso sobre o

    desenvolvimento moral, seus trabalhos sobre o tema influenciaram e ainda

    influenciam grande parte dos pesquisadores atuais. Para Freitas (1999), Piaget

    iniciou seu projeto sobre a construo do juzo moral em 1932 e, embora tenha

    voltado ao tema em momentos posteriores, no conseguiu conclu-lo. A autora

    argumenta que ele procurou explicar como o homem se transforma, passando de

    um mundo amoral na infncia possibilidade de ao tica na idade adulta.Piaget (1994), ao analisar o juzo moral, afirma que a criana inicialmente

    apresenta uma moral heternoma, que se deve coao exercida pelo adulto.

    Nesse perodo a criana apresenta um respeito unilateral s normas e acredita que

    o adulto quem determina o que certo ou errado. Em seguida, passa por uma fase

    intermediria, na qual aparece a internalizao e generalizao das regras. Mais

    tarde, ela atinge a autonomia moral, quando passa seguir regras por acreditar nelas,

    sem qualquer presso exterior (p.155). Neste perodo, a criana passa a percebera importncia das regras e a possibilidade de modific-las. Puig (1998), em

    concordncia com Piaget (1994), acredita que a construo moral influenciada

    pelo ambiente social, mas que h uma sequncia comum no desenvolvimento moral,

    influenciado tambm por aspectos cognitivos e pela afetividade.

    J Kohlberg, citado por Araujo (2000), baseou-se nos estudos realizados por

    Piaget para propor seis estgios de desenvolvimento moral, divididos em trs nveis:

    pr-moral, convencional e ps-convencional. Procurou realizar suas pesquisastambm com adultos de diferentes culturas. A partir destes estudos, concluiu que

    predomina entre a populao mundial o nvel convencional de desenvolvimento

    moral. Para Vilarasa e Marimon (2000), os estudos conduzidos por Kohlberg

    sobrevalorizam os aspectos cognitivos da moral, em relao afetividade e, por

    isso, tm sido criticados. Outra crtica apresentada pelas autoras que os estudos

    realizados se fundamentam num paradigma tradicional de pesquisa, que

    desconsidera a complexidade envolvida no pensamento moral.

    Uma viso diferente sobre o desenvolvimento moral tem sido proposta por

    outros autores, como afirma Arajo (2000). A autora apresenta diversas pesquisas

  • 7/26/2019 Valores EDF

    28/186

    28

    que estudam essa temtica de forma mais abrangente, entendendo como aspecto

    cognitivos e afetivos aparecem de forma interligada no desenvolvimento moral. Para

    La Taille (2002) a articulao entre cognio e afetividade, embora ressaltada nos

    estudos mais recentes, um problema central das pesquisas sobre a psicologia

    moral. Ele afirma que nos estudos realizados pouco se pode ver essa integrao.

    Uma proposta para o entendimento da moralidade de uma forma mais

    integrada aparece com Puig (1998) que defende a personalidade moral no como

    algo que desenvolvido, mas como uma construo a partir de diferentes

    reguladores morais. Os reguladores inferiores so de natureza biolgica e

    sociocultural. J o regulador superior denominado de conscincia moral autnoma.

    Sobre esta conscincia, o autor explica que h crticas quanto a expresso, poisvrios autores questionam a existncia de uma moral autnoma. Porm, para ele a

    conscincia moral construda com base nos reguladores inferiores, ou seja, na

    interao entre fatores biolgicos e sociais. Os aspectos sociais so determinantes

    na construo moral, mas no se pode desconsiderar, tambm, a possibilidade de

    interveno do indivduo na tomada de decises. No possvel acreditar que toda

    reflexo ou ao moral seja determinada socialmente.

    Puig (1998) atribui grande valor conscincia moral autnoma e salienta queela tem sido construda pelo homem, aparecendo como um novo regulador, com a

    inteno de auxiliar o processo de adaptao do ser humano. Esse novo regulador

    assume grande destaque por sua capacidade de tambm influenciar os reguladores

    inferiores.

    Em sntese, para Puig (1998) a moralidade, que tem como papel possibilitar a

    criao de condutas que permitam uma boa convivncia social, tem sido estudada

    segundo diferentes abordagens. Ao discutir a personalidade moral, afirma que ela construda a partir das relaes sociais. Porm, tambm influenciada por aspectos

    individuais. Por oferecer referncias sobre o que se considera bom ou mau, a escola

    um espao importante para a construo da moralidade dos estudantes.

    Valle (2001) salienta que a associao entre tica e educao evidente uma

    vez que escola se atribui a responsabilidade por formar os futuros cidados. No

    entanto, para Goergen (2005), ainda que a preocupao com a educao tica

    aparea frequentemente no discurso dos educadores, no cotidiano escolar o tema

    tratado de maneira restrita e superficial. Para o autor, nas prticas pedaggicas

  • 7/26/2019 Valores EDF

    29/186

    29

    escolares a tica ocupa um lugar bastante singelo, muitas vezes restrito a um

    recorte disciplinar ou, quando muito, a uma atividade transversal (p.985).

    La Taille, Souza e Vizioli (2004) apresentam algumas hipteses para explicar

    essa situao. Segundo os autores, h uma crena por parte de alguns educadores

    de que no cabe escola realizar o trabalho de educao moral. Esta crena se

    apoia na experincia histrica com a educao moral e cvica durante a ditadura

    militar, gerando certa resistncia realizao desse trabalho. Outra hiptese que

    h um temor em relao ao tema, sendo que a ausncia de propostas na escola no

    estimula a produo de pesquisas cientficas.

    Para La Taille (2001) apesar de ser estudado h mais de um sculo, a

    educao moral na escola apresenta ainda muitas incertezas e polmicas poisesto em jogo valores nem sempre consensuais (p. 113). De acordo com o autor,

    necessrio cautela para tratar do tema pois um trabalho com a educao moral

    pode resultar em alunos acrticos e conformistas, como aconteceu no Brasil, durante

    a dcada de 1970.

    Em pesquisa realizada para identificar a presena da tica na literatura

    pedaggica, La Taille, Souza e Vizioli (2004), verificaram que apenas em dois

    artigos analisados existem propostas pedaggicas para a construo da moralidade.Assim, os autores afirmam que na discusso sobre tica e educao, a prtica a

    grande ausente (LA TAILLE, SOUZA E VIZIOLI, 2004, p.103). Um dos trabalho que

    prope estratgias para realizar a educao moral na escola apresentado por

    Nucci (2000). Para o autor os professores podem influenciar o desenvolvimento da

    capacidade dos alunos para agir em seus mundos sociais e morais (p.83). Para

    isso preciso compreender que a forma de estmulo deve ser adequada s

    caractersticas do desenvolvimento do estudante e que o papel do professor no seresume a orientar os alunos para alcanarem determinados estgios de

    desenvolvimento moral, mas deve criar situaes que levem as crianas a

    compreender as situaes complexas presentes em seu cotidiano e priorizar os

    aspectos morais presentes nas questes sociais.

    possvel encontrar estudos que focalizam a influncia da Educao Fsica e

    do Esporte na formao moral dos alunos. Nesses estudos se analisa juzo moral,

    justia, fair play e olimpismo. Um desses estudos foi realizado por Prinz (2002), que

    investiga como os alunos podem tomar conscincia de valores como disponibilidade

    para ajudar, justia e respeito mtuo. Outro objetivo do autor foi verificar como esses

  • 7/26/2019 Valores EDF

    30/186

    30

    alunos podem ser estimulados a perceber valores positivamente e aplic-los em sua

    vida fora da Educao Fsica.

    A aplicao de programas para a construo do fair play nas aulas de EF

    investigada por Bronikowsky (2006) que apresenta estudo experimental aplicado por

    3 anos e constata que no houve mudanas expressivas no comportamento dos

    alunos. Hassandra et al (2007) avaliaram os resultados da aplicao de um projeto

    construdo a partir da combinao de elementos das teorias propostas por Bandura

    e por Kohlberg. Verificaram que houve o desenvolvimento social dos participantes e

    que esses resultados foram mantidos dois meses aps a concluso do programa.

    Proios e Proios (2008) verificaram a interferncia do estilo de ensino adotado

    pelo professor no desenvolvimento moral dos alunos. Aplicaram dois estilos deensino, propostos por Mosston, que permitem aos alunos tomar decises nas aulas.

    Aplica tambm uma proposta construda a partir da integrao entre esses dois

    estilos, partindo do pressuposto que esta combinao ter influncia maior sobre os

    alunos. No entanto, a hiptese dos autores no foi confirmada. Eles acredita que a

    durao de aplicao do projeto foi curta e talvez, no seja possvel verificar os

    resultados nesse curto tempo. J Vidoni e Ward (2009) adotam metodologia

    qualitativa para avaliar a aplicao de programa para estimular habilidades sociaisrelacionadas com o fair play. Os autores constataram que houve mudana no

    comportamento dos participantes e que a essa mudana foi observada com

    facilidade e indicam a necessidade de incluir o fair play como tema das aulas de

    Educao Fsica. A influncia positiva da Educao Fsica sobre o comportamento

    social dos alunos aparece tambm nos trabalhos de Prinz (2002), Mouratidou,

    Goutza e Chatzopoulos (2007) e Lacrcel, Gonzales e Murcia (2009).

    A realizao dos estudos sobre educao moral tem trazido contribuiesindiscutveis para compreenso da presena dos valores na escola. Entretanto, alm

    dos valores relacionados moral, outros tantos, no morais, esto presentes na

    sociedade e na escola (SALVADOR ET AL, 2000; GOUVEIA, 2003; HOFFE, 2004;

    ARAUJO, 2007) e merecem ser compreendidos. Nessa perspectiva, considero que a

    aplicao da abordagem societal dos valores, proposta por Pereira, Camino e Da

    Costa (2005) pode trazer contribuies para ampliar a compreenso dos valores na

    escola, na medida em que apresenta, em sua classificao, a identificao de

    valores no morais.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    31/186

    31

    2 REFORANDOOSTRAOSEDELIMITANDOASFORMAS

    Partindo desse bosquejo inicial e tendo aprofundado o conhecimento sobre os

    valores, pude perceber a necessidade de aperfeioar o desenho de minha pesquisa,

    estabelecendo de forma mais ntida seu contorno e apagando traados

    considerados secundrios. Dessa forma, era preciso definir a problemtica central

    do estudo, a questo de pesquisa a ser respondida, bem como o objetivo que

    orientaria sua realizao.

    Entendo que essa reestruturao tem como ponto de partida a constatao

    da existncia de um discurso que defende a Educao Fsica escolar como espao

    para estimular a construo de valores por parte dos alunos. Como afirmam Bayleyet al. (2009) existe uma crena, partilhada por professores e pesquisadores, de que

    a participao nas aulas de Educao Fsica leva a criana a respeitar a si e aos

    outros. Silva e Freire (2007), num trabalho inicial, identificaram esta crena no

    discurso de professores. Ela compartilhada tambm por Guimares et al. (2001),

    Nicoletti (2003), Grau e Prat (2003) e Botelho e Grau (2008).

    Tenta-se, dessa forma, legitimar a presena da Educao Fsica na escola e,

    para tal, chega-se a afirmar que nesse componente curricular esto reunidas ascondies mais apropriadas para estimular o desenvolvimento scio-moral dos

    estudantes. Grau e Prat (2003), por exemplo, defendem a tese de que o maior

    interesse dos alunos pelos temas da Educao Fsica e as caractersticas das

    atividades propostas so facilitadores para a construo de valores nas aulas. As

    autoras afirmam que

    el juego, la actividad fsica y el deporte destacan por su carcter vivencial y

    ldico, el gran potencial de cooperacin y superacin que conllevan, la

    cantidad de interacciones personales que generan y la presencia constante

    de conflictos, con lo que se convierten en unas herramientas privilegiadas

    para la educacin en valores (p.113).

    Entretanto, essa viso pode ser utilizada para reforar a crena de que a

    construo de valores nas aulas de Educao Fsica acontece de forma automtica.

    Assim, a frequente presena de conflitos em aula por vezes entendida como

    estmulo para que os alunos busquem solucion-los e, consequentemente,desenvolvam habilidades para o convvio social. Nesse entendimento se negligencia

  • 7/26/2019 Valores EDF

    32/186

    32

    o fato de que, historicamente, essas aulas tem disseminado valores outros, que no

    a cooperao e o respeito ao prximo. Desrespeito, individualismo e autoritarismo

    tambm aparecem nas aulas de Educao Fsica como j comprovaram vrios

    autores, como por Moreira (1988), Bassani, Torri e Vaz (2003).

    O discurso defendido por professores e pesquisadores, embora tenha como

    base o reconhecimento de que toda interveno pedaggica se fundamenta num

    conjunto de valores, quando repetido de forma superficial e acrtica, por vezes tenta

    tratar, de forma simplista, tema que se reveste de uma imensa complexidade. Por

    conseguinte, as afirmaes veiculadas em discurso no so concretizadas no

    cotidiano das aulas.

    Por vezes, embora o professor acredite ou declare ensinar determinado valorpode, a partir de seu exemplo e de suas atitudes, estimular outros. Essa incoerncia

    entre o discurso do professor e a realidade de sua interveno aparece no trabalho

    realizado por Langhout e Mitchell (2008), que investigaram a forma como o

    estabelecimento de regras sem a participao dos estudantes pode gerar o

    desinteresse do aluno pela escola. As autoras verificaram que a professora

    participante acredita realizar um trabalho que estimula o envolvimento dos alunos

    com as atividades acadmicas e que os resultados obtidos so positivos para seusalunos. Entretanto, como evidenciam Langhout e Mitchell (2008), as estratgias

    utilizadas valorizam mais a conduta moral dos alunos que a aprendizagem dos

    conhecimentos propostos e disseminam ideias implcitas que, ao contrrio do pensa

    a professora, desestimulam o envolvimento do aluno com sua aprendizagem.

    Outro estudo que comprova a existncia de incoerncia entre discurso e

    interveno, agora no contexto da Educao Fsica, apresentado por Bassani,

    Torri e Vaz (2003), que realizaram pesquisa etnogrfica, investigando a educao docorpo na escola. Durante a entrevista realizada com a professora que fora

    acompanhada durante o estudo, aparece um discurso no qual se enfatiza que a

    performance dos alunos no est entre os objetivos das aulas, ou seja, a professora

    declara no valorizar o rendimento fsico ou a qualidade da execuo realizada.

    Entretanto, durante as observaes os autores puderam verificar que, a todo o

    momento, ela ridicularizava os meninos que no apresentavam o nvel de habilidade

    motora esperado, que eram comparados s meninas, que tm desempenho

    considerado inferior, na perspectiva da professora.

  • 7/26/2019 Valores EDF

    33/186

    33

    Este distanciamento entre o discurso do professor e a realidade de sua

    interveno pode estar relacionado com uma dificuldade em perceber quais so

    seus prprios valores e em realizar uma leitura crtica da realidade na qual se est

    imerso. A percepo prejudicada permite que os valores permaneam ocultos no

    currculo.

    Alguns estudos tm discutido como os valores, embora sempre presente nas

    interaes sociais entre professores, alunos e demais integrantes da comunidade

    escolar, por vezes so pouco percebidos e fazem parte de um currculo oculto,

    ideia apresentada em 1968 por Jackson (1990) e ampliada por autores da teoria

    crtica do currculo, como Apple e Giroux.

    Apple (1982, p. 127) define o currculo oculto como um conjunto de normase valores que so implcita porm efetivamente transmitidos pelas escolas e que

    habitualmente no so mencionados na apresentao feita pelos professores dos

    fins e objetivos. Outra definio semelhante apresentada por Silva (2002) como

    um currculo constitudo por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem

    fazer parte do currculo oficial, explcito, contribuem, de forma implcita, para

    aprendizagens sociais relevantes (p.78).

    Giroux (2001) afirma que valores e crenas so interiorizados a partir dasregras que normatizam as relaes pessoais na escola e na sala de aula. Assim,

    valores, normas e crenas, geralmente presentes nos cdigos disciplinares, esto

    entre os contedos escolares apresentados aos estudantes, ainda que de forma

    tcita e, como afirma Moreira (2002), por vezes influenciam mais o seu processo de

    socializao que os contedos presentes no currculo explcito.

    Langhout e Mitchell (2008) verificaram que o currculo oculto expressa

    mensagens, inconscientemente produzidas pelos professores, reproduzindo naescola a estrutura de poder e de desigualdade presente na sociedade. As autoras

    identificaram tambm influncias do currculo oculto no comportamento da

    professora acompanhada no estudo. A partir de mensagens implcitas dos demais

    professores se evidencia que ela deve controlar o comportamento de seus alunos,

    ou no ser uma boa professora. Para as autoras, o currculo oculto explica o motivo

    da inconsistncia entre aquilo que a professora acredita fazer por seus alunos e o

    que realmente faz.

    A disseminao do currculo oculto um dos mecanismos utilizados pela

    escola para realizar a funo de reprodutora da sociedade. Tese apresentada em

  • 7/26/2019 Valores EDF

    34/186

    34

    Bourdieu e Passeron (1975) e aprofundada em outras obras de Bourdieu. Em seus

    estudos, Bourdieu procurou compreender os mecanismos que levam produo e

    reproduo da estrutura e da desigualdade social. A partir da anlise do ensino

    universitrio na Frana, Bourdieu (2007a) explica que, ao chegar escola, o aluno

    traz como herana um capital cultural, que influencia seu sucesso escolar, j que a

    formao educacional dos pais influencia o rendimento escolar dos filhos, mais que

    sua condio scio-econmica.

    Contudo, embora desde muito cedo a criana seja influenciada pelo capital

    cultural adquirido, a escola tem grande responsabilidade na reproduo desse

    processo de construo que se inicia fora dela. Assim, Bourdieu (2007b) explica

    como essa instituio tem exercido seu papel, contribuindo para a internalizao dohabitus que, como explica Thiry-Cherques (2006, p.33) constitui a nossa maneira

    de perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a nossa forma de agir, corporal e

    materialmente. O habitus um cdigo comum, construdo socialmente, como um

    conjunto de esquemas implantados desde a primeira educao familiar, e

    constantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetria social restante

    (MICELI, 2007, p. XLII).Ao mesmo tempo, ele uma construo histrica, medida que

    permite a apropriao de disposies, costumes e teorias produzidos ao longo da

    histria humana (BOURDIEU, 2009). Assim, o habituscarrega em si as percepes e

    esquemas que permitem a tomada de decises de forma automatizada sem,

    necessariamente, exigir alguma reflexo.

    Os valores esto presentes no habitus, constituindo o ethos, definido por

    Bourdieu (2007a, p.42) como um sistema de valores implcitos e profundamente

    interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as atitudes face ao capital

    cultural e instituio escolar. O professor, autoridade estatutria, autorizadosocialmente a exercer o papel de agente na disseminao do ethos e habitus

    escolar. Essa funo exercida pelo professor de forma inconsciente.

    A partir dos conceitos apresentados possvel compreender porque os

    valores no so tratados explicitamente no currculo. Sendo interiorizados de forma

    profunda e de modo implcito, professores (e alunos) geralmente no percebem sua

    presena, um dos motivos da incoerncia entre discurso e interveno. Mesmo

    entendendo que professores e alunos no so apenas receptores de informao,

    mas tambm a produzem e mediam (Giroux, 2001, p.58) e que h professores

    construindo formas diferentes de explicitar no currculo escolar os valores que

  • 7/26/2019 Valores EDF

    35/186

    35

    pretende estimular nos alunos, evidente que o caminho percorrido por esses

    educadores, que procuram atuar de forma intencional e crtica, marcado por

    desafios, contratempos ou dificuldades.

    Mediar a construo de valores no depende apenas da vontade, da

    competncia ou da boa inteno do professor de Educao Fsica. Obviamente,

    inmeras variveis agem nessa construo, variveis que no podem ser

    controladas pelos professores. Alguns professores de Educao Fsica percebem a

    complexidade presente em seu cotidiano, quando se propem a realizar um trabalho

    voltado para a construo de valores, como um dos entrevistados por Baliulevicius

    e Macrio (2006). Shoval, Erlich e Fejgin (2010) tambm relatam que os professores

    participantes no estudo realizado, que eram recm-formados, declaram enfrentargrandes dificuldades para implementar a construo de valores. provvel que

    professores experientes tambm percebam tais dificuldades. Mas, quais so as

    dificuldades percebidas por esses professores? Qual a origem dessas dificuldades?

    Para responder estas questes, elaborei o presente estudo com o objetivo de

    compreender o que dificulta o trabalho de professores que se propem a fazer das

    aulas de Educao Fsica um espao para a construo dos sistemas de valores de

    seus alunos.Entendo que o professor enfrenta inmeras dificuldades ao se propor a

    estimular a construo de valores, dificuldades originrias de uma relao dialtica

    entre exterioridade e interioridade presente na interveno docente. Assim, as

    percepes do professor sobre suas possibilidades de interferncia na construo

    do sistema de valores de seus alunos influencia sua percepo sobre as dificuldades

    enfrentadas e, consequentemente, as prticas adotadas. Ao realizar este estudo

    pretendo explicitar essas dificuldades, compreender sua origem e evidenciar aincoerncia de um discurso simplista que idealiza o trabalho do professor e suas

    possibilidades de interveno.

    Quero argumentar que o professor de Educao Fsica tem priorizado a

    construo de valores morais e, vendo seu trabalho de forma idealizada, assume

    objetivos que s podem ser atingidos a partir de um trabalho coletivo. Defendo a

    tese de que a concepo da Educao Fsica como espao propcio para construir

    valores morais disposio incorporada ao habitus do professor, disposio esta

    que tem por funo gerar uma iluso e, nessa medida, assegurar uma prtica

    reprodutora da sociedade, legitimada pelo prprio professor. Esta iluso pode gerar

  • 7/26/2019 Valores EDF

    36/186

    36

    parte das dificuldades enfrentadas pelos professores ao tentar estimular a

    construo de valores, uma vez que origina conflitos internos ao professor, que nem

    sempre consegue demonstrar coerncia entre o discurso adotado e a prtica

    construda.

    3 DEFINIODODESENHO:ESTRUTURA,ACESSRIOSECORES

    Para compreender o que torna difcil a tarefa do professor de Educao Fsica

    de possibilitar a construo de valores em suas aulas entendo que essencial

    buscar uma aproximao com o contexto desse professor, local onde surgem as

    dificuldades que so objeto desse estudo. Dessa forma, escolhi realizar uma

    pesquisa no cotidiano escolar por entender que, como afirma Oliveira (2001), este

    um espao onde professores, alunos, gestores, funcionrios, pais e todos aqueles

    que constituem a comunidade escolar interagem socialmente e constroem um

    universo particular.

    Concordando com Andr (2008), acredito que pesquisar o cotidiano pode

    permitir uma melhor compreenso sobre a forma como a escola influencia o

    processo de construo dos diferentes smbolos culturais, entre eles os valores. Aautora afirma que a realizao de pesquisas mais prximas do cotidiano escolar

    tornou-se mais frequente a partir dcada de 1980, acompanhando a ampliao dos

    estudos que seguem uma abordagem qualitativa de pesquisa em educao, j que a

    proximidade com o cotidiano uma das caractersticas desse tipo de abordagem

    (BOGDAN e BIKLEN, 1994). Assim, o pesquisador que no passado era visto como

    um sujeito de fora, nos ltimos dez anos tem havido uma grandevalorizao do olhar de dentro, fazendo surgir muitos trabalhos em que se

    analisa a experincia do prprio pesquisador ou em que este desenvolve a

    pesquisa com a colaborao dos participantes (ANDR, 2001, p.54).

    Estas pesquisas realizadas no cotidiano escolar tm sido influenciadas pelos

    estudos apresentados por Certeau (1999) sobre a construo do cotidiano. Nestes

    estudos ele argumenta que o homem comum produz formas silenciosas para lidar

    com uma realidade opressora, subvertendo o uso de normas e prticas que lhes soimpostas. Essas formas de ao, denominadas tticas, surgem a partir da

  • 7/26/2019 Valores EDF

    37/186

    37

    criatividade de algum que, embora parea submisso, encontra formas de

    resistncia.

    Assim, investigar o cotidiano procurar por tticas aplicadas pelos sujeitos

    investigados, ultrapassando a pura descrio de informaes e discursos. assumir

    o desafio de mergulhar nestes cotidianos, buscando neles mais do que as marcas

    das regras gerais de organizao social e curricular, outras marcas, da vida

    cotidiana (OLIVEIRA, 2001, p.42). Alm disso, preciso entender que o

    pesquisador tambm parte do cotidiano investigado (FERRAO, 2001).

    Raras so as pesquisas que, ao investigar os valores no Ensino da Educao

    Fsica, apresentam caractersticas semelhantes as desse estudo que apresento, ou

    seja, seguindo uma abordagem qualitativa e que, como tal, se preocupa emcompreender o objeto em seu contexto. Em levantamento realizado em trs bases

    de dados internacionais, identifiquei que o paradigma tradicional de pesquisa

    predominante nos estudos publicados nos ltimos dez anos. Grande parte deles, se

    aproximam da escola para colher uma grande quantidade de dados fornecidos por

    professores e alunos. A partir desses dados, geralmente coletados por intermdio de

    questionrios fechados, os pesquisadores procuram compreender opinies,

    percepes ou crenas dos sujeitos investigados, sem incluir na coleta informaessobre suas aes ou sobre o contexto que produz tais formas de pensamento.

    Exemplo desse tipo de pesquisa aparece em Ebbeck e Gibbons (2003), Behets e

    Vergauwen (2004), Meek e Cutner-Smith (2004) e Guan, McBride e Xiang (2005).

    importante ressaltar que no desconsidero a validade e relevncia desse tipo de

    estudo. Entretanto, entendo que h a necessidade de encontrar outros modos de

    olhar para o fenmeno aqui investigado.

    possvel encontrar estudos que se propem a interferir na realidade daescola, aplicando pesquisas experimentais ou quase-experimentais, na tentativa de

    entender uma possvel relao causa-efeito na construo de valores, como se

    observa em Chen et al. (2008), Gao, Newton e Carson (2008), Leopold e Junio

    (2008) Dean, Adans e Comeau (2010). Entretanto, nesses estudos os autores no

    analisam dados construdos no processo de interveno presente na pesquisa. So

    analisados apenas os resultados da interveno, com a valorizao do produto, em

    detrimento do processo educacional desenvolvido.

    O predomnio de pesquisas emprico-analticas no resultado que chega a

    surpreender, do ponto de vista da produo do conhecimento em Educao Fsica,

  • 7/26/2019 Valores EDF

    38/186

    38

    j que a rea, por sua proximidade com as cincias da sade e por sua constituio

    acadmica, tem valorizado o paradigma tradicional de pesquisa. Entretanto, essa

    forma de investigar o objeto de estudo proposto mostra-se incongruente e limitada.

    Portanto, preciso buscar novas formas de fazer pesquisa na rea. Para

    compreender a Educao Fsica na escola preciso lanar mo de mtodos,

    metodologia e epistemologia prprias da pesquisa educacional, na qual tem crescido

    o nmero de investigaes que optam por outras vertentes epistemolgicas

    (Gamboa, 2007). Alm disso, concordando com Silverman e Manson (2003) acredito

    que muitas questes de pesquisa da Educao Fsica, inclusive aquelas que

    problematizam a construo de valores, no podem ser respondidas apenas com a

    aplicao da metodologia quantitativa.Assim como Camir e Trudel (2010) entendo que a pesquisa qualitativa tem

    papel relevante quando procuro entender um fenmeno complexo, como acontece

    com a construo de valores, justificando a necessidade de realizar novos estudos

    sobre o tema, adotando metodologia qualitativa de pesquisa e procurando encontrar

    formas de aproximar o pesquisador do cotidiano escolar.

    3.1 A Construo do meu olhar: a hermenutica como caminho

    Na tentativa de responder as questes que originam este estudo, um dos

    maiores desafios que tenho enfrentado a reconstruo de minhas concepes

    sobre o ato de pesquisar. Meu processo de formao acadmica tem sido

    intensamente marcado pelo modelo cientfico fundado da racionalidade tcnica, que

    tem como grandes marcas a nfase na medio, na fragmentao e na busca pela

    objetividade do pesquisador, que negligencia a complexidade dos fenmenos

    investigados (SANTOS, 1988; GHEDIN e FRANCO, 2008).

    Contudo, a opo por pesquisar objetos de estudo de natureza social, ligados

    ao ensino da Educao Fsica na escola, h algum tempo tem me aproximado de

    um paradigma diferente de cincia, discutido por Santos (1988). Assim, ao

    desenvolver pesquisas numa abordagem qualitativa, venho procurando

    compreender suas caractersticas. Tenho priorizado a investigao do objeto de

    estudo na realidade onde acontece, elemento caracterstico das investigaes que

    adotam a abordagem qualitativa, como explicam Bogdan e Biklen (1994) e Turato(2005). Entrevistas e observaes tm sido as principais formas utilizadas para me

  • 7/26/2019 Valores EDF

    39/186

    39

    aproximar do objeto investigado. No entanto, concepes e prticas originrias num

    paradigma tradicional de pesquisa ainda podem ser percebidas em algumas

    situaes, evidenciando certa incoerncia nas propostas metodolgicas que me

    propunha a aplicar.

    Entendendo que essa incoerncia era resultado de um conflito interno entre

    os dois paradigmas de pesquisa adotados nos estudos que realizava, identifiquei a

    necessidade de repensar minhas concepes e, como proposto em Ghedin e Franco

    (2008), construir um novo olhar sobre a produo do conhecimento cientfico,

    diferenciando percepo de compreenso. Um novo olhar que permita compreender

    uma realidade complexa, cujos significados no se revelam naturalmente, mesmo ao

    observador atento (GHEDIN, 2004).Ghedin e Franco (2008), assim como Ricoeur (2008), entendem que a

    compreenso est diretamente ligada explicao e afirmam que a realizao ou o

    resultado de um trabalho de pesquisa na rea das cincias humanas so a

    consequncia de um processo de explicao, compreenso e interpretao da

    realidade (p.83). Compreender e explicar so termos diretamente interrelacionados.

    Na cincia tradicional, por vezes eles foram conceituados como aes distintas. No

    entanto, como afirmam Ghedin e Franco (2008), para compreender o sentido dosatos humanos, preciso passar pela explicao. A compreenso resultado,

    inacabado, de um processo de explicao (p. 83).

    Como pesquisadora, busco compreender-explicar as dificuldades que

    enfrenta um professor de Educao Fsica ao estimular a construo de valores de

    seus alunos. Nesse processo, estarei envolvida na interpretao de uma dada

    realidade. Para compreender como se d essa interpretao e, ao mesmo tempo,

    para me compreender como intrprete, busquei o suporte da hermenutica crtica(KINCHELOE e MACLAREN, 2006; RICOEUR, 2008).

    O termo hermenutica tem origem nas palavras gregas hermeneuein e

    hermeneia e significa a arte de interpretar textos (LIMA, 2008). Durante muitos

    sculos ela foi entendida como um mtodo de anlise de textos aplicado, de forma

    predominante, para a interpretao de textos religiosos (exegese) (GADAMER,

    1999; RICOEUR, 2008). A partir dos estudos de Schleiermacher e de Dilthey a

    hermenutica muda seu curso e passa a ser entendida como uma tcnica de

    compreenso passvel de aplicao a toda forma de texto (LIMA, 2008).

  • 7/26/2019 Valores EDF

    40/186

    40

    Mas uma grande transformao da hermenutica acontece com a publicao

    de verdade e mtodode Gadamer (1999) que, tomando como referncia a obra de

    Heidegger, apresenta as bases para uma hermenutica filosfica. Dessa forma, ele

    ressalta que sua inteno, ao apresentar sua teoria, no foi a descrio de um

    conjunto de tcnicas ou mtodos de pesquisa que levem compreenso, mas

    explicitar as condies que permitem que ela acontea (GADAMER, 1999). Ainda

    assim, como afirma Hekman (1990), inegvel a implicao da hermenutica

    filosfica sobre a metodologia da pesquisa nas cincias humanas, medida que

    define uma perspectiva filosfica que revoluciona de tal forma o modo como as

    cincias sociais so concebidas que pe em questo a nossa prpria noo de

    mtodo (p. 145-146). Assim, embora Gadamer (1999) no se proponha a discutirum mtodo para a anlise de textos, ao apresentar suas teoria, influencia opes

    metodolgicas dos pesquisadores e, portanto, interfere nos mtodos escolhidos por

    eles.

    Em seu trabalho Gadamer (1999) argumenta que compreender e interpretar

    so aes interligadas e que no possvel realizar uma interpretao que garanta

    objetividade cientfica, defendida pelas chamada cincias da natureza, j que o

    interprete no algum neutro, mas que carrega consigo um conjunto de crenas evalores, que pertence a uma cultura e que, portanto, est situado historicamente.

    Dessa forma, a interpretao um processo marcado pela subjetividade, no qual

    esto presentes preconceitos, que orientam a compreenso do texto.

    Partindo dessa premissa, busco apoio na hermenutica porque entendo que

    eu, pesquisadora, trago uma srie de conceitos previamente elaborados, que

    influenciam meu olhar ou, nas palavras de Gadamer (1999), estou imersa em

    tradies e perteno histria. Condicionada, possuo crenas e valores queimplicam numa interpretao prvia do problema investigado, ou seja, tenho meus

    preconceitos. Fica evidente, portanto, que a interpretao depende do olhar daquele

    que interpreta (Ghedin e Franco, 2008).

    Mas, se por um lado a existncia de preconceitos pode limitar a validade da

    interpretao, tornando-a superficial e arbitrria, por outro lado ela condio da

    existncia da hermenutica. Hekman (1990) destaca que a