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5PREFÁCIO

BRUNO ALMEIDA

7A IGREJA SIZA VIERA

13A LEITURA

DA CIDADE PELOS SEUS SÍMBOLOS GRÁFICOS

MARGARIDA FRAGOSO

17A LETRA

ENQUANTO OBJECTO DE ESTUDO JORGE DOS REIS

25A POLARIZAÇÃO

DA AMBIGUIDADE HEITOR ALVELOS

29O CIRURGIÃO INGLÊS

EDUARDO CÔRTE-REAL

37MODOS DE “VER”

O ESPAÇO JOÃO PALLA

41FOTOGRAFIA

DE ARQUITECTURA, DEFEITO E FEITIO

PEDRO BANDEIRA

47HISTÓRIAS

DE UMA MALAVASCO PINTO

53NOTAS SOBRE

PROJECTOS, ESPAÇOS, VIVÊNCIAS

LIZÁ RAMALHO E ARTUR REBELO

59DESIGNERS: ENTRE

CÉTICOS E DOGMÁTICOS

DIOGO DANIEL CASAS

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Nascido a vinte e quatro de agosto do mil novecentos e oitenta e nove, na pacata freg-uesia de Caldas de São Jorge, eu, Bruno Filipe Pereira de Almeida, filho de Fernando Gomes de Almeida e Maria Magalhães Pereira, venho por este meio tornar pública uma obra que me car-acteriza, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista existencial.

Actualmente a terminar a Licenciatura em Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, decidi publiciar a presente obra como forma de recordar o per-curso que realizei até então. Este periodo repre-senta, ao mesmo tempo, o final de um cíclo e o início de um outro.

Ao longo da obra serão abordadas diversas questões directa ou inderectamente ligadas ao Design, uma vez que essa é uma das áreas pela qual me interesso mais afincadamente.

PREFÁCIOBRUNO ALMEIDA

Em “TEN AUTHORS, TEN IDENTITIES“ procurei re-unir uma basta colectânea de textos cujos temas abordados são os mais variados assim como os autores que os redigiram. Além de apresentar dez autores diferentes, a presente obra pretende identificar dez identidades.

A escolha dos diferentes temas e autores tem uma relação directa com histórias, contos ou passagens ou experiência pelas quais, ao longo dos últimos quatros anos, tive a oportunidade de tomar conhecimento. Em certa forma estas apre-sentam patentes algumas das premissas pelas quais diariamente guio os meus destinos

Por IDENTIDADE entendemos o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer di-ante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes.

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A igreja para marco de canaveses, é só uma parte de um conjunto religioso que prevê ainda um au-ditório, a escola de catequese e a habitação para o pároco. A visita ao local pré-escolhido tinha-me perturbado profundamente: era um local dificí-limo, com grandes diferenças de cota, sobran-ceiro a uma estrada com muito tráfego. Como se não bastasse, aquela zona estava marcada por edifícios de péssima qualidade. A construção deste centro paroquial é por isso e também a construção de um lugar, em substituição de uma escarpa muito acentuada.

A igreja articula-se em dois níveis: um su-perior, da assembleia, e um inferior, da capela mortuária. Como mostram os percursos de aces-so às duas cotas, trata-se de espaços com car-acterísticas decisivamente diferentes. A capela mortuária é quase a fundação da própria igreja: cria uma cota estável, fixa, para que a igreja possa apoiar-se. Além disso, com os seus muros de granito e o claustro, estabelece a distância em relação à estrada. Esta plataforma habitada devia portanto surgir como uma “natureza con-

A IGREJA SIZA VIERA

struída”. Mas é muito importante também a co-locação, defronte do acesso principal, do centro paroquial e da residência do pároco. Estes vol-umes definem um grande “U” que se contrapõe ao pequeno “u” formado pelas duas torres, a do campanário e a do baptistério. Cria-se, assim, o espaço necessário para o grande volume vertical da fachada. Ao mesmo tempo, toma-se possível uma relação com as construções de pequena es-cala que circundam esta acrópole. Fica, assim, demarcado o adro.

A referência inicial foi uma construção pré-existente, uma residência para a terceira idade, de uma arquitectura correcta e ordena-da, situada na cota superior da escarpa e com uma extensão muito significativa em relação à estrada. A partir deste novo nível, tudo o resto se foi articulando, reagindo à complexidade das construções existentes e permitindo finalmente a criação de um adro, aberto sobre o belíssimo vale de Marco de Canaveses. Esperemos que novas construções não se venham a encostar às péssimas que já lá existem e se mantenha a

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abertura sobre o vale, que é essencial. A própria grande porta da igreja, com os seus dez met-ros de altura, tem razão de existir exactamente em relação a esta vastíssima vista. A entrada faz-se, normalmente, através de uma porta de vidro, debaixo da torre da direita, enquanto a porta grande só é aberta em circunstâncias especiais. Depois do movimento lateral de en-trada, tem-se a percepção de uma janela baixa e comprida, do lado direito, que permite ainda a vista para o exterior. Naquele instante, não se sente a luz difusa que chega das altas aber-turas na parede curva e inclinada, à esquerda: vêem-se, ainda e imediatamente, o vale e as construções em frente. A janela contradiz o ambien-te de recolhimento a que estamos habituados numa igreja e por este motivo gerou polémicas.

O mesmo se deu com a colocação da estátua da Virgem, que é quase tão alta como os fiéis e não está assente em pedestal. Todavia curiosamente, um teólogo, muito esti-mado no Porto elogiou o respeito pelos actuais princípios da liturgia, que acentuam a função de mediação da Virgem entre Deus e os homens e por consequência entre os homens. De facto a es-tátua da Nossa Senhora tem uma posição in-termédia: colocada na extremidade da janela e sujeita a uma luz muito intensa, introduz ao espaço do altar, que quem entra não nota imediatamente. Três degraus elevam o plano da celebração, que conclui com duas portas, pelas quais entra uma luz clara, filtrada por uma alta chaminé. Esta disposição dialoga com o banho de luz sobre as formas curvas dos limites laterais da abside e sobre o espaço

da igreja em geral. A iluminação natural varia com o tempo, dependendo da posição do Sol, e vai desde a projecção do desenho do raio de luz até à ao silêncio da aspersão: um grande intervalo, rigoroso e palpável. A montagem de todos os elementos é, evidentemente, coer-ente. Todavia esta ordem, caracterizada por algumas contradições existentes e desejadas, foi construída de maneira lenta e laboriosa. Não houve ideias pré-definidas, dadas a prio-ri. Aquilo que é agora legível é o resultado da decantação de determinadas ref lexões sobre o espaço, hoje tão difícil, da igreja. Esta dificul-dade é devida a uma série de importantes

alterações na liturgia: pense-se na celebração da missa, que agora encontra o sacerdote virado para a assembleia e já não de costas. Uma tal mudança transforma por completo o carácter da celebração e anula o sentido de or-ganização espacial tradi-cional, nas suas várias formas e na sua lenta e permanente evolução. Ao mesmo tempo, esta nova condição não justifica a interpretação da igreja como auditório. A quase totalidade dos projectos recentes não aprofunda devidamente este as-pecto. Era indispensável,

por conseguinte, uma ref lexão sobre as novas condições, poderíamos dizer funcionais, do espaço da igreja. E no entanto as discussões com os teólogos puseram em evidência a con-tradição que envolve hoje as diversas inter-pretações. Trata-se, por isso, de um programa instável, ainda por resolver. Todavia era evi-dente a necessidade de criar uma projecção do celebrante, uma comunhão com a assembleia, sem que, inevitavelmente, se criasse aquela

O TRAÇADO DO PERCURSO QUE, NO PISO INFERIOR,

LIGA O EXTERIOR À CAPELA MORTUÁRIA É O RESULTADO

DO ESTUDO DAQUILO QUE ACONTECE NESTES

ESPAÇOS

ÁLVARO JOAQUIM DE MELO SIZA VIEIRA NASCEU A 25 DE JUNHO DE 1933 EM

MATOSINHOS TENDO GANHO, EM 1992, O PRÉMIO PRITZKER.

CIZA VIERIA ESTUDOU, ENTRE 1949 E 1955, NA ESCOLA SUPERIOR DE BELAS ARTES DO

PORTO, ONDE LECIONOU ENTRE OS ANOS DE 1966 A 1969, VOLTANDO

POSTERIORMENTE EM 1976

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distância própria de qualquer auditório. Por esta razão propus, para a abside, curvaturas já não côncavas mas antes convexas. E também neste caso não se trata de uma ideia pré-con-cebida, imediatamente derivada da variação da liturgia: é uma intuição, nascida de uma série de exigências, entre as quais a necessidade de conservar a relação entre os objectos e os movi-mentos que fazem parte da celebração.

No espaço em volta do altar existe uma série de elementos que participam no ritual: o ambão, o próprio altar, o sacrário, as cadeiras dos cel-ebrantes e a cruz, os quais lentamente tomaram corpo e definiram depois o espaço, no respeito pelos movimentos, pré-estabelecidos, da missa. Assim a igreja adquiriu forma como uma escul-tura em negativo, na qual se foram estabelecen-do relações de continuidade e de tensão entre as várias partes.

O traçado do percurso que, no piso inferior, liga o exterior à capela mortuária é o resultado do estudo daquilo que acontece nestes espa-ços. Foi determinante, na realidade, o conhe-cimento do significado do funeral na região do Minho. Quando visitei o maravilhoso cemitério crematório do arquitecto holandês Pieter Oud, tive a possibilidade de assistir a uma cerimónia fúnebre. Verifiquei que a atmosfera e a rela-ção das pessoas são decisivamente diferentes do que acontece em Portugal. Aqui, durante o funeral, a família e os amigos íntimos estão muito próximos do defunto, enquanto muitas outras pessoas, vizinhos e conhecidos, seg-uem a uma certa distância, naturalmente com menor dor e emoção. Tomou-se por isso ne-cessária uma sequência de espaços com carac-terísticas diferentes. E também por esta razão pensei num claustro, em que as pessoas vão fumar, conversar ou eventualmente, por que não, tratar de negócios: é uma maneira de re-agir àquele relativo desconforto determinado pelo encontro, tão directo, com o problema da morte. Esta reacção à dor não se encontra, por exemplo, nos funerais na Holanda, durante os quais domina o silêncio total.

Ao claustro segue-se uma primeira galeria, bastante ampla, marcada logo após a porta de entrada, pela parede curva que desce da ab-side. Poucos metros depois abre-se, à esquer-da, uma outra galeria que tem, no fundo, uma janela vertical de onde se pode ver novamente a estrada. Não sei qual a conexão entre esta janela e a janela horizontal do nível superior, mas creio que a posição vertical da que está em baixo, no embasamento é devida à procura da sensação necessária do peso, da gravidade.

O percurso termina na capela mortuária, que comunica com a primeira galeria graças a uma janela horizontal. As pessoas que estão no interior têm, por isso, a percepção das que entram ou saem, exactamente como sucede no nível superior, onde os crentes dispõem da presença da estrada. Depois, ainda na capela mortuária, a chaminé de luz, que sobre o altar, no nível superior, termina aqui com uma aber-tura que permite a vista do claustro. Regressa-se então, uma vez mais, ao ponto de partida, com o rumor da água de uma fonte. No pátio impõe-se com relevo particular a presença de uma escada, que conduz de novo ao nível supe-rior. Neste projecto, a unidade é conferida pe-los percursos que terminam todos no ponto de partida, circularmente. A sensação final é real-mente de um lugar fechado, bem delimitado.

Sempre me impressionou muito o obsessivo convite à meditação que se sente na maior parte das igrejas. Na realidade as aberturas são colo-cadas frequentemente a uma altura tal que não permite que se olhe para o exterior, ao mesmo tempo que a utilização dos vitrais elimina a continuidade e a transparência. Ao contrário, parece-me que as recentes modificações na liturgia contrastam com esta visão de espaço fechado e segregado.

Quando comecei a estudar o programa, de-pressa compreendi o enorme alcance desta ruptura na continuidade secular da tradição. Todavia parece-me que este aspecto não tem qualquer paralelo na vida real da Igreja, na relação entre a Igreja e a sociedade. Por esta

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razão, e não obstante as necessárias adapta-ções, procurei preservar a continuidade com a tradição. Assim, observando atentamente o carácter desta igreja, parece evidente que a sua concepção é substancialmente conser-vadora. Esta intenção emerge com clareza do desenho da planta que na realidade exprime uma rígida axialidade. Contextualmente, a verticalidade do interior é muito forte. Na re-alidade, apesar da nave ser de secção quadra-da, a articulação de determinados elementos, tais como as duas aberturas por trás do altar, dá o sentido de elevação. Diversas discussões viriam a reforçar esta ideia de continuidade com a espacialidade canónica. De resto, os conselhos dos teólogos foram constantes e de-terminantes. Assim, por exemplo, o baptisté-rio, inicialmente colocado ao lado do altar, foi posteriormente desviado para perto da entra-da, para que anunciasse a presença da assem-bleia. Além disso, uma vez que o cortejo dos celebrantes tem de percorrer o eixo longitudi-nal da igreja, tomou-se necessária a presença de uma porta, na parede curva e inclinada. O ritual da celebração exige, evidentemente, de-terminadas opções no tratamento do espaço e na organização dos percursos.

Ao longo de algumas das paredes interiores foi utilizado o azulejo. Era necessário um ro-dapé resistente, que obviasse aos problemas da limpeza e da manutenção. No primeiro mo-mento eu tinha pensado num revestimento em madeira. Mas esta escolha em breve me pare-ceu infeliz, pois teria anulado a verticalidade da parede e sobretudo porque a ref lexão da luz teria sido inadequada. Pensei então no azulejo que, produzido artesanalmente, conserva uma superfície levemente irregular; isso permite ref lexos particulares de luz, enquanto que as juntas, que são deixadas vazias, manifestam uma presença sensível. A continuidade com o reboco e a unidade da cor são cortadas por essa presença e por aqueles ref lexos. Numa primeira fase, o azulejo ladeava toda a igreja; depois, quer pela necessidade da parede curva chegar

até o solo, quer pela problemática solução do seu contacto com as portas, o seu uso foi lim-itado. Um dos objectivos de que se não podia abdicar consistia exactamente em evitar que os pormenores fossem tão evidentes que com-petissem com a estrutura do espaço. Trabalhei intensamente na relação, encontro e transição dos materiais.

O azulejo tem a função de resolver o prob-lema da continuidade, atenuando as rupturas existentes. A maneira pela qual são ligados es-tes três materiais - madeira, azulejo e reboco - é muito especial, e provavelmente há coisas, que não posso descrever, que me surgiram da experiência do espaço, durante a construção. Na capela baptismal tenho intenção de desen-har - no interior da parede do acesso - figuras com cerca de seis metros de altura, deformadas segundo a perspectiva. Estas personagens, que em conjunto representam o baptismo de Cristo, são de uma importância decisiva, neste espaço excepcional, alto e estreito, e serão estilizadas de modo a que não resultem excessivas. Terão uma presença muito forte, num azul escuro ou em preto, de modo a ressaltarem no azulejo branco. Já terminei os desenhos, mas não tive coragem de dar início à realização: tenho ainda necessidade de tempo. Os elementos que devem ser desenhados são ainda muitos. A própria cruz só foi colocada depois da inauguração.

Numa primeira fase tinha pensado numa cruz em madeira, com um trabalho dos contor-nos não muito bem definido e com volumes so-brepostos, que sugeriam a figura de Cristo. De-pois o desenho passou por muitas outras fases, muito mais simplificadas, para se definir, fi-nalmente, numa cruz em que, no encontro en-tre vertical e horizontal, na forma da vertical e nas vibrações da madeira, é imediatamente evidente a presença humana. Quero agora revesti-la com uma lâmina de ouro. A cruz foi colocada numa posição atentamente calibrada, próxima do altar, e com os braços que evitam a colocação longitudinal para se encontrarem, variavelmente, com a luz. A lâmina de ouro

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dará, então, uma maior desmaterialização e, não reivindicando protagonismo, reagirá im-previsivelmente com o espaço.

Voltando ao exterior, nota-se uma presença consistente do granito que, nesta região, é um dos elementos mais importantes na paisagem, quer na Natureza quer na construção. Neste projecto, a plataforma em granito surge como contraponto necessário à leveza e à grande

concisão geométrica do volume branco. Em algumas horas do dia a igreja quase que se desmaterializa: ora parece desaparecer, ora, noutras ocasiões, sobressai quase que vio-lentamente. Era por isso necessária uma base que a prendesse ao solo. Eu já tinha estado no Peru, onde estudara as construções pré-colom-bianas, que deixaram evidentemente a marca em certos volumes tão acentuados.

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ENQUADRAMENTO

Lisboa, como cidade, não é um simples disposi-tivo administrativo ou um mero órgão de serviço público. Lisboa, como cidade, contém uma colos-sal carga histórica e afectiva, até a nível mundial, gerada e acrescentada ao longo dos séculos. Os símbolos gráficos municipais são parte integran-te deste património histórico e cultural da cidade e, por essa razão, requerem uma gestão e coorde-nação extremamente cuidadas.

O município de Lisboa tem recorrido, ao longo dos anos, à comunicação dos seus produtos e ser-viços de uma forma fragmentada, criada por pes-soas diferentes e originando uma grande quanti-dade de ambiguidades visuais. Esta dispersão de comunicações, às vezes contraditórias entre si, confunde o citadino, dificultando a identificação da organização. A ausência de uma estratégia de planeamento e coordenação da imagem da ci-dade é também visível no ambiente visual que se manifesta nas legendas, letreiros e publicidade. Os bons modelos dissipam-se num panorama vi-sualmente degradado e anárquico.

A LEITURA DA CIDADE PELOS SEUS

SÍMBOLOS GRÁFICOS MARGARIDA FRAGOSO

VANTAGENS DE UMA UNIFICAÇÃO Num mundo de enorme concorrência visual da publicidade comercial e política e da agressão visual do corporate design das grandes empre-sas, é fundamental que as cidades procurem uniformizar e dar eficiência visual aos seus sím-bolos. A sua imagem deve ser clara e precisa de forma a que a população reconheça sempre a mesma entidade.

Mas criar uma imagem municipal não pode ser meramente um trabalho criativo que não contemple a história, o presente, os objectivos da instituição. É preciso conhecê-la bem, anal-isar a sua personalidade! Ela deve obedecer ao conceito de imagem coordenada de empresa (corporate identity), que tem como fundamento a sintonia entre a identidade e a imagem. Uma imagem coordenada facilita a comunicação entre os cidadãos e a instituição e promove o respeito pela organização.

Dada a variedade de situações de aplicação dos símbolos gráficos municipais, decorrente mesmo da própria variedade de funções exercidas pela

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entidade municipal, uma correcta realização concreta da imagem coordenada nos seus aspec-tos plásticos exige uma abordagem altamente profissionalizada e um perfeito domínio dos problemas técnicos envolvidos. Não é, portanto, coisa que possa ser deixada ao simples arbítrio e opinião de qualquer responsável camarário, ou ser executada burocraticamente por um qualquer funcionário «jeitoso», no meio de outras tarefas da sua função.

Implica um levantamento exaustivo das situações em que a imagem pode ser aplicada, a natureza dos suportes em que vai ser usada, as escalas, distâncias de observação, técnicas de execução oficinal ou fabril, os custos, modos e estratégias das operações de substituição.

Implica igualmente um estudo da «concorrên-cia» com situações congéneres no País e no es-trangeiro, de forma a evidenciar a sua singulari-dade e, por outro lado, um cuidadoso estudo das referências históricas para evitar anacronismos ou erros factuais.

 REQUISITO DE EFICÁCIA FUNCIONAL

A imagem coordenada de uma instituição não é vazia de intenções ou resultado de simples gosto ou moda ou obrigação legal - destina-se a actuar, a servir uma finalidade, a atingir um objectivo definido. Essa intenção é clara: tornar identi-ficável a presença da instituição municipal aos olhos do público, e dentro deste, com primazia, o conjunto dos munícipes.

As empresas, públicas ou privadas, lutam pela afirmação de uma presença num mercado duramente concorrencial, e têm por isso de bus-car permanentemente formas de visibilidade cada vez mais competitivas no plano visual e da comunicação discursiva. A fusão de empresas cada vez mais frequente, a internacionalização dos complexos empresariais e a saturação do ambiente informacional da sociedade contem-porânea a isso obrigam.

Mas um município não está no mercado. Um município não «concorre», nos termos em que as empresas o fazem. Um município representa uma permanência e uma estabilidade, a sua ima-gem deve ser «securizante» e representativa de valores colectivos e intemporais com os quais a comunidade se identifique e sinta como seus.

A percepção da modernidade, da eficácia da gestão, da capacidade de resposta concreta aos anseios e necessidades dos munícipes deve ser obtida através da «praxis», do bom exercício das funções, da confiança inspirada - e não através das técnicas de persuasão próprias da concorrên-cia empresarial no mercado.

Isso aponta claramente para a necessidade de que a imagem, sobretudo visual, da entidade mu-nicipal não concorra com as imagens projectadas pelo mundo empresarial, antes se afaste comple-tamente delas, e se afirme com unidade.

Assiste-se entre nós à deplorável situação causada pela indisciplina ou desgoverno que permite que no enquadramento do Estado Por-tuguês se multipliquem as imagens privativas de Ministérios e até de Direcções Gerais e orgânicas secundárias. Numa altura em que, até pelo facto de procurar não perder identidade visual dentro da União Europeia, os países mais atentos estão a reforçar os cuidados com a manutenção da uni-dade e força da sua imagem, o que se passa entre nós não pode deixar de causar inquietação.

Do mesmo modo, num tempo em que a con-corrência entre cidades, europeias ou não, tende a agudizar-se, e em que Lisboa se deseja ver como um importante pólo da Fachada Atlân-tica da Europa, parece claro que uma identidade visual forte é essencial. A intervenção do de-signer é fundamental no estabelecimento de um programa de Identidade visual que dignifique os símbolos da cidade, e o espírito do lugar, e que promova a diferenciação e enriquecimento culturais. Espera-se dos responsáveis o reconhe-cimento desta necessidade como urgente.

 

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Ao longo do dia e dos dias, os nossos olhos caval-gam em grande velocidade, pisando as letras que vivem nas palavras. Estas preenchem e sinalizam o nosso quotidiano. Alimentamo-nos de letras até ficarmos de barriga cheia ao fim do dia. “Ler é pastar”1, como nos diz Roland Barthes, uma leitura suculenta, “Nós lemos um texto tal como uma mosca voa no volume de um quarto – com ângulos bruscos, falsamente definitivos, atarefa-dos e inúteis”2, escreve o mesmo autor.

Quando realizamos o acto da leitura, são vários os factores que interagem no processo de descod-ificação e apropriação visual da área onde está o texto. Assim, estabelece-se um conjunto de rela-ções entre quatro elementos. Em primeiro lugar, os Caracteres tipográficos, enquanto célula mais pequena da comunicação escrita. Num segundo lugar, o espaço Branco (onde não existe texto), muita vezes menosprezado por quem desenha o livro. O branco tem um papel fundamental na estruturação e é tão importante como a própria letra num qualquer suporte tipográfico. A lit-eracia é outro aspecto de grande importância

A LETRA ENQUANTO OBJECTO

DE ESTUDO JORGE DOS REIS

quando falamos de leitura. Uma projecto tipográ-fico onde a letra seja usada com displicência e veleidade tenderá, inevitavelmente, a constituir um causador pragmático daquilo que aqui defini-remos por: iliteracia tipográfica provocada. Por último, a Textura, que não é mais do que a man-cha abstracta, onde linhas de texto e entrelinhas (leading) formam diferentes nuances e texturas causadas por dois factores essenciais: o tipo de letra usado pode criar uma textura mais clara ou mais escura e a entrelinha pode, de igual forma, clarear ou escurecer a presença do texto na pá-gina. Vejamos, em profundidade, estes quatro factores em contínua interacção mútua e esta-belecendo relações fundamentais para o nosso confronto com os caracteres tipográficos.

QUADRO DE RELAÇÕES TIPOGRÁFICAS

TEXTURA — Durante todo o dia, identificamos as letras que nos permitem realizar o acto da leitura. Se quantificarmos o tempo que, durante o dia, ocupamos a ler, de forma trivial, variadíssimos su-portes de leitura, verificamos que estamos quase

Passam tão depressa pelas palavras que até podemos pôr em questão: o que é que eles fazem às letras? Vêem-nas? É de tal forma fantástico que alguns julgaram que os grandes não vêem as letras, que lêem as palavras  directa-

mente, sem passar pelas letras. José Morais

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sempre a ler e, assim, a contactar com um sem número de tipos de letra diferentes entre si. Ao vi-vermos em sociedade, e perante a sua organização estrutural, a letra está sempre presente. Estamos, assim, perante situações particulares e específicas de descodificação e literacia no quotidiano.

Lemos sem parar: quando escolhemos o pacote de leite para o pequeno almoço; quando descor-tinamos o número do autocarro que devemos apanhar; quando seguimos uma dada direcção, graças ao painel de sinalética estradística; quando lemos o jornal pela manhã; quando es-colhemos o prato da ementa no restaurante ou quando, mais à noite, lemos as legendas do filme que a televisão nos decidiu oferecer. Em tudo lemos e em tudo somos obrigados a conviver com o tipo de letra, para viver segundo as regras da boa organização social.

Ao nível profissional, e não já vivencial, são muitas as profissões que assentam totalmente na letra enquanto material constante do seu ofício. Escrevemos, lemos e vemos a letra no emprego sem parar e, se paramos para almoçar, no repasto damos por nós a ler, outra vez. Os médicos apro-priam-se dos relatórios dos doentes; os advoga-dos sonham com os decretos lei; os engenheiros e os arquitectos embebem-se nas suas memórias descritivas; o professores curvam a coluna en-quanto carregam pesados livros que escrevem e lêem. Sem a letra, todos estes seriam pó. Se descermos um pouco a escadaria, damos de caras com a senhora secretária que passa todo o dia a escrever mensagens; com a lojista ou a cozinheira que dependem da letra para identificar os produ-tos; com o agente da autoridade que nos escreve um papelinho preso nas escovas do para brisas; no fim, até o operário tem de diferenciar entre a tinta de água e tinta plástica pelo que está escrito na lata de tinta.

As letras sufocam-nos sem as procurarmos. E quando as procuramos? Nos livros concerteza, encontramo-las nos objectos impressos e, as-sim, nos (re)confrontamos com elas num suporte natural que é o objecto livro. Este constitui o lugar geométrico central de utilização da letra.

É precisamente aqui que chegamos ao conceito de textura, baseado na ideia de tecido enunciada por Barthes: “texto quer dizer tecido” 3 enquan-to, “véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido”. Numa outra acepção, “acentuamos (…) no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido – nessa – textura o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas da sua teia” 4.

  LITERACIA — É grande a desresponsabilização por parte daqueles que hoje produzem e con-stroem esses objectos impressos e aí colocam os caracteres para a leitura contínua. Não interessa esmiuçar essas ditas aberrações do mundo im-presso e do mundo do livro actual. Interessa sim balizar escolhas, justificar opções, tendo em con-ta os seus utilizadores. Não vamos aqui e agora, de forma moralista, condenar e apontar, mesmo que indirectamente, essas peças de má legibili-dade, de cegueira ameaçadoras, de furto à fácil compreensão do sentido e semântica do texto, deixaremos a crítica para mais tarde.

O caminho a seguir é, assim, balizado para definir, de forma pragmática, quais os problemas que en-volvem a escolha do tipo de letra para um dado suporte. As características de utilização dessa plat-aforma de leitura obrigam a um trabalho de espe-cificação tipográfica de grande precisão. Perguntas, como sejam: Quem vai ler? Onde vai ler? Quando vai ler? e Como vai ler?, são fundamentais para uma objectiva escolha tipográfica. O que é importante reter é o facto de que os caracteres tipográficos bem utilizados num dado objecto impresso. Contribuem de forma decisiva para uma compreensão plena da mensagem, logo para uma diminuição da iliteracia alvo nesse suporte específico. Quero, assim, sublin-har a dita literacia tipográfica que se encontra nos objectos impressos.

O substantivo literacia imergiu na sociedade portuguesa de forma decisiva, em 1996, com o estudo “A Literacia em Portugal” 5. Aí, o termo literacia foi colocado como “um novo conceito” que “traduz a capacidade de usar as competên-

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cias (ensinadas e aprendidas) de leitura, de es-crita e de cálculo” 6. Chegou-se, assim, a uma definição absoluta que enuncia claramente va-lores distanciados do conceito de analfabetismo, mas também considerada como “um novo tipo de analfabetismo afectando a população que, apesar do aumento das taxas e dos anos de escolariza-ção, evidencia incapacidades  de domínio da lei-tura, da escrita e do cálculo, vendo, por isso, di-minuída a sua capacidade de participação na vida social” 7. Assim, afasta-se da alfabetização por esta última ter uma evidente ligação ao percurso escolar obrigatório. Define então literacia como: “as capacidades de processamento de informação escrita na vida quotidiana” 8.

Esta competência pessoal, usada perante su-portes tipográficos, como sejam tabelas, gráfi-cos, texto, folhetos, baseia-se na generalidade no conceito de literacia, palavra apropriada da língua inglesa. O termo literacy funda os primeiros estudos 9 realizados sobre este tema, onde surge também a definição atrás referida. Mas, perante essas tabelas, textos, sinaléticas e painéis estradísticos, há toda uma dimensão de literacia e iliteracia provocada que con-vém ref lectir. A base do problema está no que defino por tipolinguística: uma ligação, um segmento de recta entre a semântica e a letra, isto é, a escolha e o trabalho com os caracteres tipográficos e as suas capacidades expressivas exigem uma perfeita compreensão do texto por parte do mediador gráfico (designer), no sen-tido de o seu projecto gráfico não ser uma plat-aforma de leitura provocadora de iliteracia, ou que possa agravar os níveis de iliteracia fun-cional que, num país como o nosso, atingem valores insensatos. À instância de mediação, o caminho está aberto para infinitas malfeitorias e aberrações gráficas.

BRANCO — O espaço branco desempenha um pa-pel fundamental na fácil leitura e descodificação da escrita. A entrelinha (leading), particular-mente mal tratada nos nossos livros e documen-tos, constitui um problema a resolver, junta-mente com as opções tipográficas. São vários os

objectos impressos onde o espaço branco não constitui prioridade. Começaria pelos livros, onde razões económicas cantam em coro, deit-ando por terra o espaço perimetral e a entrelinha atrás referida. Os jornais são também um suporte de leitura onde esse objecto invisível e branco não abunda, pelas mesmas razões. Os argumentos da literacia e da legibilidade são agora ainda mais defraudados quando, pensamos nos documentos para preencher (por exemplo a declaração do irs), onde a massa de texto e sua organização confun-dem qualquer criatura.

Jaques Derrida, na sua obra fundamental “Of Grammatology” (recentemente revista e editada pela John Hopkins University Press, num trabal-ho gráfico e tipográfico apurado, de grande rigor e carinho pelo objecto livro), fala-nos da “escrita antes da letra” 10. Partindo deste postulado, va-mos ao encontro do espaço branco como forma de escrita, da ausência de grafismo enquanto men-sagem, enquanto estrutura, plataforma e alcatifa da escrita.

O espaço branco está em crise. Considerado como ausência de conteúdo, o espaço sem graf-ismo é um objecto de trabalho e estudo para os tipógrafos. Se traçarmos um segmento de recta, começando num produto de menor qualidade, para um produto mais caro e de maior qualidade, há um aspecto que vai crescendo ao longo desse percurso: o espaço branco. Assim, este factor acaba por constituir um valor visual, símbolo de inteligência, simplicidade e classe. Por outro lado, a falta de espaço branco é símbolo de vul-garidade e mau gosto.

Keith Robertson envia-nos do Canadá ideias importantes sobre esta questão, quando afirma que “no design gráfico e na arquitectura, a sim-plicidade e a ideia de que menos é mais, gover-nam o gosto”, em design, “o espaço branco tem sido apropriado como um elemento de estética moderna, representando uma classe de produtos mais caros e mais desejados no contexto do con-sumismo moderno” 11.

O espaço branco é um valor no design gráfico dos produtos, é uma incorporação estética no

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sistema do gosto, um reforço de posição social, constantemente reforçando a ideia da diferen-ciação entre bom gosto e mau gosto. Segundo Robertson, “o espaço branco é uma ferramenta expropriada do design moderno para criar um género de valores consensuais – uma certa en-genharia social” 12.

O espaço branco é o vazio, não carrega con-teúdo, como uma imagem ou um texto, com sentido e significado. O texto pode dar sentido, pelo seu contexto, à própria imagem. Mas, o es-paço branco pode também sublinhar ou diminuir a transmissão efectiva da mensagem do texto ou da imagem, através de opções gráficas de empag-inação: aumento e diminuição das áreas brancas, aumento e diminuição do tamanho do corpo da letra, opções de orientação assimétrica.

Mas, no fundo, o que será o espaço branco no objecto impresso? Em termos materiais, podemos considera-lo como uma extravagância, o espaço da página impressa onde se opta por não impri-mir. Em termos conclusivos, o espaço branco rege-se por valores semióticos; a imagem que queremos vender é mais importante que o pa-pel que poderíamos economizar. Numa certa estética, diríamos, burguesa, o espaço branco abunda em catarata, trabalhando para um refina-mento da embalagem. Se a desordem tipográfica é marcadamente definidora de uma classe social mais baixa, o excesso de espaço branco cataliza as classes altas da sociedade. Podemos assim interpretar, desde logo, que um dado objecto impresso “não é para mim”, “não é para a minha classe social”. Se observarmos o mundo das re-vistas femininas, podemos verificar como as mais caras do mercado, com um elevar de ocupação de espaço branco servem como exemplo paradig-mático e francamente notável desta realidade que diríamos tipográfica e social. O branco é o es-paço negativo onde não há imagem, no entanto, esse negativo facilmente se enche de significado.

Na aprendizagem e formação dos designers, o espaço branco ocupa um destacado problema pedagógico sem aparente contestação, isto é, a aprendizagem desse espaço, desse lugar do

grafismo, só pode ser apreendido no retorno aos caracteres móveis Gutenberguianos, onde esse espaço, invisível no computador, é palpável na tipografia (letterpress). O aspecto táctil da tipo-grafia permite uma aprendizagem incontornável, dentro da formação escolar, onde o espaço bran-co tem que ser calculado, e muito importante, tem que ser colocado ou preenchido com mate-rial branco, assim denominado. Provamos, então, que o espaço branco é tão ou mais importante que o grafismo e a letra. Ele concorre para um conjunto de preocupações que estes mediadores gráficos deverão ter na produção de objectos grá-ficos coerentes.

Visto através da lente da história, podemos ob-servar que o espaço branco sempre esteve presente, como um elemento importante para os documentos produzidos. O renascimento marca um momento fundamental na constatação da importância do es-paço branco com o uso da regra de ouro medieval no desenho da página do livro. Esta é só abandonada no século dezanove, aquando da chegada dos va-lores da economia e seu poderio sobre a estética e boa forma do objecto impresso. Esse relevo con-ferido ao espaço branco não pretendia conferir um status social com a paginação gráfica, as razões dessa correcção e detalhe com o branco tinham a ver com uma correcta proporção matemática tão evidente na arquitectura do renascimento. CARACTERES — Diz-nos João de Deus na sua Car-tilha Maternal que “não apresenta os seis ou oito abecedários do costume” 13. A sua preocupação foi encontrar um género tipográfico muito legível e negro, simultaneamente fértil em claros, de modo a ser tipograficamente legível para as crianças. Muitos dos livros escolares e de aprendizagem apresentam gravíssimos problemas tipográficos, levando as cri-anças a rejeitar estes manuais. É no aspecto tipográ-fico que a cartilha maternal continua a ser um refer-ência fundamental para as gerações vindouras. João de Deus desenhou um género tipográfico muito próximo da letra Clarendon 14 que é particularmente indicado para livros infantis. A velha cartilha, se-gundo João de Deus, apresenta um “tipo mais fre-quente, e não todo, mas por partes, indo logo com-

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binando esses elementos conhecidos em palavras que se digam, que se ouçam, que se entendam, que se expliquem; de modo que, em vez de o principi-ante apurar a paciência numa repetição néscia, se familiarize com as letras e os seus valores na leitura animada de palavras inteligíveis” 15.Estabelece-se aqui o desafio de fazer uma análise da letra en-quanto matéria prima (material de trabalho) dos vários agentes da comunicação sripto-multimedial. Será também assumindo a complexidade resultante de uma narrativa sobre a propositada levitação da cegueira causada pelas ilegibilidades gráficas pre-sentes nos media. Traçar uma nova interpretação da tipografia urbana, porque o livro (suporte mais característico) é também um objecto urbano confrontado com a informação electróni-ca, os jogos rítmicos e ciné-ticos das fachadas, a publici-dade enorme e avassaladora. Conscientes deveremos estar de que falar da letra é falar dos objectos comerciais, numa propositada adesão ao vulgar e uma certa permea-bilidade à cultura de con-sumo, para assim converter a tipografia em laboratório, um laboratório de análise tipográfica, na medida em que são as letras que ilus-tram os objectos da arqueo-logia contemporânea.

Plataforma básica dentro de um mosaico complexo que é o grafismo e o design, a tipografia tem sido totalmente omitida e tão pouco conhecida em Portugal, tanto no meio especializado, como, por maioria de razão, do público em geral. Este aspec-to revela-se de muita gravidade, se o observarmos dentro da esfera pedagógica e educativa.

É verdade que o movimento de redescoberta da tipografia e desenho de letra, impulsionado pelo computador, se conseguiu entretanto impor pela coerência das abordagens histórico-estilísticas e

pela plêiade de intérpretes notáveis que veio a revelar ao longo dos anos, contribuindo decidi-damente para um alargamento sem preceden-tes da criação de novos caracteres e o reavivar de uma antiguidade. Contudo, é sintomático verificarmos que, lá fora, todo este panorama é acompanhado em paralelo pela tipografia de caracteres móveis e pelo contínuo renascimento tipográfico. O que uma lacuna como esta signifi-ca para a instância de mediação, em termos da ignorância que traduz, da sua parte, face a esta tecnologia mãe, pode medir-se, se pensarmos que não passou por ela enquanto se formou, e assim nunca teve uma noção cabal do grafismo,

do projecto gráfico e do tipografismo.

A Inglaterra não conheceu o processo de rotura com a tradição tipográfica que se verificou em Portugal, preservando, com maior continuidade, ao longo do século, a sua herança tipográfica do passado, in-cluindo o legado mais antigo e de maior valor material. Esse interesse permanente pela preservação, estudo e prática do património histórico — gráfico inglês encontrou, desde muito cedo, protagonistas alta-mente qualificados, como sejam Alan Kitching, Ken Kempbel ou Phil Baines 16.

A tipografia e a beleza dos caracteres tipográ-ficos, enquanto entidades puramente visuais e quase abstractas, tem uma natureza verdadeira-mente “infecciosa”, que contagia, sem qualquer possibilidade de resistência, tanto o maior amante das artes gráficas sofisticado, mais ar-reigadamente preso à tradição tipográfica, como o cidadão mais desprevenido e menos afecto a estas coisas, algo eruditas, da tipografia. A força da sua comunicação emocional transpõe as distâncias

NUMA CERTA ESTÉTICA, DIRÍAMOS, BURGUESA, O

ESPAÇO BRANCO ABUNDA EM CATARATA, TRABALHANDO PARA UM REFINAMENTO

DA EMBALAGEM. SE A DESORDEM TIPOGRÁFICA

É MARCADAMENTE DEFINIDORA DE UMA CLASSE SOCIAL MAIS BAIXA, O EXCESSO DE

ESPAÇO BRANCO CATALIZA AS CLASSES ALTAS DA

SOCIEDADE.

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históricas, dispensa os códigos ergonómicos de uma aprendizagem tipométrica, atravessa bar-reiras de gosto, de geração, seduz à primeira vista. Coloquemos uma questão pertinente e óbvia para alguns: deverá a tipografia de caracteres móveis continuar? Para mim e para alguns dos meus con-temporâneos, a resposta é muito simples: sim, deve continuar. Contudo, sim, não é suficiente. Para fazer justiça com a tipografia de caracteres móveis, para mostrar a sua mais valia, um peque-no inquérito deve começar, para que todos perce-bamos por que razão deve continuar. Pelo menos até chegarmos a um tempo, em que um programa de instruções tipográficas seja criado para as téc-nicas modernas e que tenha os mesmos valores educacionais e pedagógicos da tipografia tradi-cional de caracteres móveis.

Na procura de algumas graças da tipografia, além dos usuais e antiquados ventos humanistas do fantasma de William Morris, ela é de longe uma pe-dra fundamental, mais importante do que nós pos-samos pensar e certamente válida na progressão do bom design e da boa tipografia. Para muitos es-tudantes, a única época em que eles podem tocar fisicamente a letra e o tipo é durante a sua educa-ção. É por essa altura que eles estão no seu mais

impressionante e intenso acto absorvente de tudo à sua volta: são esponjas. Há uma necessidade de-finitiva de garantirmos a oportunidade de absor-ver e perceber a mecânica da letra, com o objectivo de o design ter método e metodologia no futuro.

A tipografia manual permite aquisição de perí-cia manual e a adopção de impulsos criativos e projectuais. Hoje, a aquisição de perícia manual é o computador. Mas será este, sozinho, capaz de impulsionar uma correcta apropriação de conteú-dos tipográficos e projectuais? Como pode um es-tudante ganhar uma apreciação do corpo de letra e área de texto quando o computador permite um “esticar para caber”, eliminando os problemas? O tamanho da letra e sua medição é outro dúbio problema: que uso tem a medição pelo sistema de ponto ou corpo hoje? (outro tópico de discussão). Mas, enquanto isto continua, os estudantes de-veriam ser alertados para o hábito que tende a vincular-se. Pela aprendizagem e compreensão deste limite inicial, um senso de proporção, forma, equilíbrio e ritmo são frustrados e, com eles, a consideração pela composição. Estamos perante uma tragédia, quase uma ópera de Wagner, uma sinfonia lenta e pesada de Gustav Mahler. Poderia chamar-se: Requiem para a Letra.

NOTAS 1. Barthes, Roland | O Prazer do Texto; Lisboa; Edições 70; 1997.

2. Barthes, Roland | Cit. [1]

3. Barthes, Roland | Cit. [1]

4. a.a.v.v. | Enciclopédia Einaudi nº 11 – Oral/Escrito — Argumentação; Lisboa; incm; 1987.

5. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | A Literacia em Portugal.

6. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | Cit. [5].

7. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | Cit. [5].

8. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | Cit. [5].

9. A Nation at Risk; Cambridge, Mass.; The Nacional Commission on Excellence in Education, USA; 1984.

10. Derrida, Jacques | Of Grammatology; Baltimore, London; The John Hopkins University Press; 1998.

11. Robertson, Keith | On White Space / When Less is More; New York ; Allworth Press; 1994.

12. Robertson, Keith | Cit.

13. Deus, João de | Cartilha Maternal ou Arte de Ler; Porto; Associação de Jardins – Escolas João de Deus; 1876.

14. Clarendon é um tipo classificado como egípcio. Foi editado pela fundição inglesa R. Besley & Co. em 1845. Tem como

principal característica as patilhas rectangulares.

15. Deus, João de | Cit.

16. Phil Baines, Alan Kitching e Ken Kempbel são designers tipográficos com larga experiência em tipografia de

caracteres móveis e uma vasta obra publicada e exposta usando esta técnica.

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O presente texto deriva de uma palestra proferida no âmbito da segunda edição do Ciclo “Interven-ção Artística no Espaço Urbano” ocorrido na Fac-uldade de Belas Artes da Universidade do Porto a 6 de Dezembro de 2006. A solicitação do de-senvolvimento de um discurso em redor da clan-destinidade encontrou no recente projecto de in-tervenção urbana “±” o contexto ideal para uma reflexão sobre o modo como o  espaço público português é, ele mesmo, um espaço clandestino

Numa breve e necessária contextualização, o projecto “±” nasce em 2005, como projecto cur-ricular de investigação por um aluno finalista da licenciatura em Design de Comunicação da Fac-uldade de Belas Artes da Universidade do Porto, Miguel Januário. Mas seria um equívoco consid-erá-lo estritamente como tal. Este contexto cur-ricular funcionou em grande parte como oportuni-dade de estudo aprofundado e fenomenológico de um conjunto de questões sociais e culturais que o aluno em causa ponderava de modo mais vasto, sendo ainda uma oportunidade de aplicação das suas práticas associadas à cultura do graffiti num

A POLARIZAÇÃO DA AMBIGUIDADE

HEITOR ALVELOS

projecto de maior dimensão e longevidade. No en-tanto, o projecto parece derivar em última instân-cia de uma forte vontade de mudança de contex-tos socio-culturais, reafirmando insistentemente a possibilidade de criação e aplicação local de um modelo de intervenção, para já nada português, de “personal politics”.

O espaço público português é, em grande parte e nos últimos trinta anos, auto-regulado e auto-regulador, por oposição a outros espaços públicos que hoje florescem nos grandes centros urbanos internacionais, fortemente regulados por enti-dades e interesses privados, e consequentemente potenciadores de uma efectiva clandestinidade por ruptura de realidades encenadas e patroci-nadas. Estas realizades publico-privadas produ-zem inclusivamente os seus próprios reportórios transgressivos como forma de integração total num universo simultaneamente real e simulado, assegurando a manutenção de um imaginário fortemente polarizado e a construção de narra-tivas ficcionais que acompanham o dia-a-dia do cidadão comum.

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Em contraste com este cenário que, advindo dos grandes centros urbanos (as metrópoles norte-americanas, Londres, Tóquio, São Paulo), cativa inevitavelmente a periferia, no contexto português temos a falência do espaço público, marcado pela ausência de planeamento geral, pelo abandono da sua geografia e história, pelo distanciamento entre as vontades das entidades protagonistas e as efectivas ambições da popula-ção, e pela inexistência de identidades agregado-ras dessa mesma população. Por outro lado, en-contramos uma tradição endémica de tolerância e “laissez-faire”, onde convergem um tempera-mento historicamente fluemático e uma forte, embora quase sempre inconsequente, convicção relativa a liberdades de expressão individual, em grande parte herdada da revolução de 1974, e algo paralela ao Maio de 1968 parisiense. Assim se torna ambíguo falar de intervenção clandes-tina no espaço público, quando o espaço público português surge caótico e ingovernável, a sua geografia discretamente polarizada entre ar-rogância e frustração. Essa mesma ingovernabili-dade é atestada neste projecto “±”, nunca tendo o seu autor sido alvo de qualquer confronto por parte das autoridades, mesmo quando estas as-sistiram a intervenções suas, e apesar da ubiqu-idade e dimensão dessas mesmas intervenções. Deste modo, logo à partida se reconhece que o projecto “±” foi, na sua fase de ubiquidade, uma verdadeira testagem dos limites da intervenção individual em espaços públicos, limites esses que aparentemente permanecem por identificar, de tal forma são flexíveis.

A óptica da ambiguidade está, evidentemente, presente na própria escolha do ícone agregador desta intervenção. O símbolo matemático “±” representa a ideia de aproximação e tolerância, vendo neste contexto o seu significado expandi-do mediante a ideia de coexistência de opostos. Mas mais decisivo que a descodificação inequív-oca do ícone em causa, será o reconhecimento de que se trata de um ícone onde quase tudo pode ser projectado, e foi precisamente essa a razão que antes de mais fundamentou a sua adopção.

Para além desta dimensão projectiva, em que o transeunte é convidado a deambular mentalmente perante um enigma iconográfico, encontramos duas outras dimensões igualmente determinantes: por um lado, a dimensão “vírica” do projecto, fortemente associável a estratégias publicitárias contemporâneas, que colocam determinados re-portórios no imaginário colectivo através de uma sobre-abundância de referências e suportes, fazen-do ainda reverter a seu favor o carácter enigmático que se disseminará enquanto tema de conversas; por outro lado, a dimensão associada ao graffiti hip-hop, que há três décadas se vem alimentando de processos e objectivos análogos (ubiquidade, transgressão, utopia), e que, ironicamente, a própria publicidade tem vindo a mimetizar, quer formal, quer estruturalmente. Julian Stallabrass, aliás, afirma precisamente que o graffiti e a publici-dade aspiram hoje a um mesmo fim: a omnipresença do nome enquanto marca, desprovido de objecto, propósito ou conteúdo. A este conceito, parece-me oportuno acrescentar a ideia de que a marca desprovida de objecto ou aparente propósito am-biciona apresentar-se num “estado de virgindade”, desse modo mais propício a um “enamoramento” por parte do transeunte/utilizador/consumidor. Esse estado revela-se de uma enorme maleabili-dade semântica, conforme atestado em muitas das intervenções deste projecto, garantindo assim uma outra dimensão que é a do enraizamento junto dos nossos referentes sociais e culturais mais comuns.

Após uma primeira fase que poderia apelidar de “ubiquidade silenciosa”, o projecto “mais menos” tem-se desenvolvido segundo modelos mais com-plexos: pela disseminação internacional, à semel-hança de outros projectos estruturalmente análo-gos como os “Space Invaders”, “André the Giant” ou “Banksy”, disseminação esta que permite a tes-tagem de leituras dramaticamente distintas a partir do material original; e pela inclusão de níveis de comunicação agora já bem menos ambíguos, frases quasi-sloganísticas que desenvolvem um discurso de intervenção social, convites a que o cidadão in-dividual sinta em si o poder para fazer a diferença no contexto social em que se insere. Será ainda

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de salientar a forma como os media assinalaram a existência deste projecto, atribuindo-lhe um outro espaço de operação que tem revertido, ele próprio, a favor do reportório original, bem como a existên-cia de propostas de integração do seu reportório icónico e simbólico em espaços de comunicação ofi-cial, como seja a decoração de fachadas. Em ambos os casos, este projecto acompanha a tendência de integração dos seus reportórios em contextos pro-gressivamente consensuais, à semelhança do que sucede com os já referidos projectos de intervenção urbana - Banksy e Giant - que recebem encomendas para criação de capas de discos, edição de monogra-fias, produção de videos, etc.

Será ainda importante assinalar uma outra fr-ente de trabalho do projecto, desconhecida do grande público porque desenvolvida precisamente sem expressão pública, mas que será a dimensão verdadeiramente determinante para uma real validação do mesmo. Trata-se do desenvolvimento de trabalho de campo sobre a experiência fenom-enológica de intervenção pública, no qual o autor tem vindo a recolher e interpretar dados relativos à percepção que os transeuntes têm deste pro-

jecto. Esta vertente do trabalho atesta a seriedade contida no mesmo, testemunhando uma vontade de sintonia com a realidade em que se insere, à margem de modelos de imposição que imperam e permanecem de modo insistente na esfera “oficial” de operação sobre o espaço público.

E aqui talvez se possa, finalmente, reconhecer uma dimensão inequívoca de clandestinidade, ironicamente exemplar perante o nosso espaço pú-blico falido: o modo clandestino, porque discreto e não oficial, como o projecto “mais menos” se tem vindo insistentemente a dedicar a uma auscultação e exposição de desejos, vontades e necessidades dos indivíduos, em total contraste com o modo nada discreto e frequentemente impune como os mecanismos oficiais e institucionais têm vindo a ignorar esses mesmos desejos, vontades e necessi-dades. Não se trata de ceder a visões circunstanciais ou infundadas por via de um qualquer populismo avulso, trata-se da construção de espaços de con-senso e debate - geográficos, mentais, afectivos. Es-tes sim, abandonarão um dia a sua ficção mediática autofágica, e serão um dia verdadeiramente públi-cos, como nunca o foram.

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Porque que é que esta palavra Design aparece sempre sublinhada a vermelho no meu proces-sador de texto?

Se, no séc. XVI, Francisco d\’Hollanda tivesse escrito em word com corrector ortográfico para português a palavra Desenho, que tão esforçada-mente procurava mostrar aos seus leitores, tam-bém daria erro. Desenho era uma novidade com cem anos em Itália. Durante esse século (do fim do séc. XIV ao principio do séc. XVI), o disegno de Cennino Cenini, ainda preso à ideia de registo gráfico, veio a englobar o conceito de projecto.

As propostas de Hollanda, Vasari e Zuccari, entre outros, de definir Desenho constituíam-no como um vasto sistema que albergava uma multi-plicidade de actividades que faziam fé no registo gráfico como modo de atingir o controle formal para os objectos a produzir.

Em Espanha, onde a palavra Dibujo se manteve, ao contrário do nosso Debuxo (curioso, debuxo já não se usa mas não aparece sublinhado), o Diseño adquiriu o significado de Design. Tudo se parece jogar entre os prefixos de e di. Diseg-

O CIRURGIÃO INGLÊSEDUARDO CÔRTE-REAL

no Diseño, Desenho, Design, Dessin soam como semelhantes. Design, na enciclopédia britânica é identificado como verbo, assimilado para o in-glês médio através do francês. Num dicionário da Internet encontro que Designo, em latim, queria dizer: destacar, designar, descrever e definir. O que parece ressaltar destes significados é a sua relação com processos essenciais do pensam-ento humano. Vamos então, tentar, a partir da tradução de Designo, definir Design.

DESTACAR

Da experiência de mundo é possível isolar fac-tos, objectos, formas. Antes de qualquer juízo, a nossa atenção pode focalizar-se, hierarquizar o objecto de uma experiência sensível. (Olho para o écran do meu computador esquecido da chuva que cai lá fora, da estante de livros que está à minha direita, da porta aberta do escritório, do ícone que daria inicio a uma tabela de excel, etc., etc). Sendo eu sujeito a estar no tempo e, conse-quentemente sendo actor, no sentido de praticar acções, poderei categorizar essas acções? Desta-

Considerações sobre a permanência do Conceito de Design ”Dessin (l´art du-) Se compose de trois choses: la ligne, le grain, et le grain fin; de plus, le

trait de force. Mais le trait de force, il n´y a que le maître seul qui done.” Gustave Flaubert

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co, em primeiro lugar que aquilo que procuramos definir é uma acção humana.

Ao colocar esta questão tenho que postular que o humano é actuante. Ou seja, que há um modo de reconhecer o humano que passa pela avaliação do mundo como situação antes e de-pois do movimento (acção) do humano.

Esta premissa geral baseia-se no facto da indissociabilidade do humano e do Tempo que, de uma forma reflexiva, o posiciona. Ao termos inventado a História sabemos que agi-mos com consequências. Ou sabemos que o modo como construímos mundo depende desse siste-ma de causalidade. Agimos e temos tempo para observar as consequências das nossas acções.

O Humano é, então, a possibilidade de o Tempo poder ser aferido como uma multiplicidade de resultados dos quais apenas um foi concretizado. Isto é, obviamente, a construção humana do tempo e nenhum de nós poderá ter outra visão diferente. Agir comporta participar numa linha definida, apenas porque está definida pela sua visibilidade posterior.

O primeiro ponto de vista a partir do qual posso destacar aquilo que procuramos definir é o da Ética. Na construção do Homem mod-erno, sobretudo a partir de Alberti, os aspectos éticos foram sobrelevados. Na construção do humano como ser que projecta recorrendo à técnica e à arte (seria perigoso falar aqui de Es-

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tética), Alberti socorreu-se da Virtude, Virtús dos romanos, Aretê dos gregos. É claro, neste momento, que o primeiro modo de destacar que usarei se prende com a História. Destaco a idade moderna e a idade contemporânea como períodos onde pode ser destacado aquilo que procuramos definir.

Os dois mais importantes tratados de Al-berti: De Pictura (1435) e De Re Aedificatoria (1443-1452) constituem-se como um manual de construção do homem como ser social mais do que como tratados das disciplinas a que se dedicam. A questão central em De Pictura é a representação. Não a representação arbitrária e sensível mas a representação como resultado da adopção de um processo maquínico indes-mentível. Ao De Pictura devemos, primeiro, uma definição de Desenho quando Alberti escreve no início: ”Signum hoc loco apello quicquid in superficie ita insit ut possit oculo conspici”. Este signum é traduzido para seg-no, ao que juntando o prefixo di que indica acção, obtemos disegno. O disegno é, então a acção de produzir sinais — signos. Em segundo lugar, devemos a Alberti a definição e codi-ficação da perspectiva. Embora a ”invenção” perspectiva seja recordada sobretudo pela sua aplicação na Pintura ela comporta mais do que o seu destino pictórico. A perspectiva é a grande máquina do Renascimento porque normaliza a representação. Ao propor um mé-todo rigoroso de representação, mais do que obter verosimilhança para as obras pictóricas, a constuzzione legitima alarga a possibilidade de um mundo a haver através da sua visibili-dade. As tábuas de Urbino, do círculo de Piero della Francesca exemplificam este processo. Outro facto pertinente é o uso da aparelhagem conceptual da geometria euclidiana. Ponto, recta, plano e volume são os elementos da con-strução de um edifício abstracto, hipotético – dedutivo que constrói o mundo artificial. A possibilidade do projecto resulta da aceitação de um protocolo com o universo euclidiano como aquele que é logicamente válido para en-

tender o espaço e aquilo que o povoa. Qualquer criação humana visível pode ser descrita à luz daquela aparelhagem conceptual até porque passa a ser feita com o seu concurso. O Trabalho de Alberti abre a porta ao projec-tista e, sobretudo, ao projectista, que usa re-cursos gráficos para projectar.

Consequentemente destaco de todas as acções humanas, as realizadas desde a idade de Alberti até hoje, que se caracterizam pela ideia de pro-jecto. Dessas destaco, ainda, aquelas que aceit-am o registo gráfico como o lugar onde é possível tornar visível o universo euclidiano.

DESIGNAR

Se aquilo que foi destacado for suficientemente compacto e repetível como experiência posso atri-buir-lhe um nome. Naturalmente que não posso atribuir um nome à experiência de comer pão com queijo e marmelada num fim de tarde de Verão debaixo de uma ramada enquanto os insectos zumbem e os pássaros procuram acomodar-se nas tangerineiras mas posso atribuir o nome queijo que reunirá todas as formas finais de um processo particular de transformar o leite. A possibilidade de designar comporta a possibilidade de operar com conceitos que, ainda que vagos, encontram uma existência provisória num plano lógico.

Ao propor um nome para esta acção das outras destacada faço-o recorrendo a uma palavra de uma língua que não é a minha. Ocorre-me o D. Quixote de Mènard do conto de Borges. Mènard, francês, escreveu, nos anos trinta do século XX, um D. Quixote em tudo igual ao de Cervantes. Sem nunca esclarecer se este outro Quixote brotou da imaginação de Mènard ou foi copiado, Borges, alerta-nos para o facto de, por ter sido escrito por um francês em castelhano clássico e no séc. XX, o livro ser em tudo diferente, embora igual. Escolho então Design. Chegada ao inglês pro-vavelmente por via normanda, a palavra terá ganho o seu sentido projectual pleno sobre-tudo como resultado da querela sobre o Dis-egno encetada no séc. XVI em Itália. No final do séc. XVI, artistas ingleses como Inigo Jones

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DESCREVER

Tendo destacado algo passível de ser designado posso descrevê-lo. De certo modo, descrever implica regressar às razões que provocaram o de-staque e a designação. Ao descrever percorro os limites do destaque para entrar na justificação da designação. A descrição aceita o destaque como limite do seu desenvolvimento. Descrevemos aquilo que foi destacado precedido da sua desig-nação. No entanto, a descrição exige mais. Exige uma formulação de atributos internos que, ainda que provisoriamente, possam justificar tanto o destaque como a designação. Partindo do de-staque, a descrição trata daquilo que é interno ou intrínseco ao destacado/designado. Por outro lado, a descrição de algo designado comporta sempre as limitações do conhecimento sobre aq-uilo que foi destacado.

A descrição de ”Noruega” é praticamente in-findável, no entanto posso descrever Noruega como um país, europeu, escandinavo cuja capi-tal é Oslo caracterizado pelos seus fiordes cujo regime é monárquico, etc., etc. Quer isto dizer que entre esta descrição sucinta e o mapa do im-perador de Borges, que, desenrolado, cobria ex-actamente todo o império, há uma multiplicidade infinita de descrições mas que todas dependem do destaque e da possibilidade de designação.

Descrever o Design, que, como vimos, designa quase tudo, parece ser tarefa impossível.

Descrever pode ter sido tarefa do Desenho, mas foi, sobretudo tarefa da Literatura.

Recorro a Italo Calvino e à ”Trilogia dos Nossos Antepassados”. Escrita nos anos cinquenta do séc. XX, esta trilogia é constituída pelos livros: ”O Cavaleiro Inexistente”, ”O Barão Trepador” e ”O Visconde Cortado ao Meio”.

O CAVALEIRO INEXISTENTE — PRÓTESES E EXTENSÕES

— O Cavaleiro inexistente é apenas constituído pela sua armadura. Externamente aparenta ser humano mas é apenas a sua ”pele” defensiva. Ele simboliza todas as próteses e extensões do humano. Na armadura do cavaleiro estão simbolizados todos os objectos que em con-tacto ou não com o corpo prolongam as suas

chegaram viajaram para Itália com propósitos semelhantes aos de Hollanda. A querela sobre o primado das artes tinha-se esbatido dando origem às academias del Disegno de Florença e Roma. Que palavra poderia Inigo Jones trazer para Inglaterra que significasse Disegno? As definições de Disegno de Zuccari, ideólogo da Academia de Roma, aproximam-se de um sen-tido globalista e divino. Uma palavra inglesa como drawing não poderia abarcar a multipli-cidade de actividades que o Disegno englobava. Escolho Design, no início do séc. XXI, porque alguém já o fez. Quase em todos os cantos do mundo, a palavra é reconhecida e é aplicada. Neste processo de aplicação viemos a encontrar-nos com a ruptura da demarcação que tinha feito anteriormente. Uso Design para designar (a aliteração é irresistível) factos, objectos e acções que ultrapassaram o registo gráfico e o universo euclidiano. Podemos dizer que a in-stabilidade do humano, criada desde o fim das luzes e do início da idade contemporânea e que se inaugura com o Romantismo, com a desig-nação abrangente de Design, que se assume como um grande sistema interdisciplinar, se pacificará num paradigma semelhante ao criado pelo Desenho para a Idade Moderna. De facto, ao elencarmos, todas as atribuições da palavra Design, reparamos que ela tende a absorver as artes visuais, as engenharias, a arquitectura, a biotecnologia, a ciência, o jogo e, obviamente, a participar decisivamente na criação da ciber-cultura. Em resumo abrupto, o Design, hoje, participa em qualquer construção de mundo ”artificial” sujeito a uma prefiguração a que chamamos projecto. Aquilo a que posso chamar Design com segurança é todo o processo que produz uma representação de algo a produzir. Certas tribos da floresta amazónica não têm uma palavra para ”verde” mas sim, seis palavras diferentes para seis tons de verde diferentes. De certo modo, encontramo-nos no momento em que descobrimos que entre essas ”seis” palavras diferentes há suficientes atributos semelhantes para ”descobrirmos” uma única palavra.

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capacidades. Esta é uma descrição de Design que evoca o seu primeiro destino associado à segunda revolução industrial sob o império da produção em série e de massa. O cavaleiro inexistente é o Ford T ou o Fiat 600 alinha-dos na cadeia de montagem, vazios, mas já humanos. (não posso deixar de sentir prazer quando as escovas da lavagem automática percorrem o dorso da minha Peugeot 505 e até um certo arrepio quando passam pelas cicatrizes dos erros de estacionamento). O Design construiu um Homem contemporâneo inexistente sem a sua armadura de extensões Só a armadura o mantém vivo e consequent-emente humano.

Os santos e os deuses eram reconhecíveis pe-los seus atributos. Na mitologia greco-latina e no conjunto dos santos apostólicos romanos nenhum é, por si só. Um objecto, uma pose, uma indumentária, uma acção culminante são determinantes para a sua representação. A fun-ção comunicativa dos objectos que possuímos

têm o mesmo valor. Não esqueçamos que as representações dos deuses são realizadas por humanos. Basta pensarmos nos quatro evange-listas, sempre acompanhados dos seus entes de estimação. Não se pretende, consequentemente justificar a construção da armadura do homem contemporâneo com um desejo de divinização, mas sim um desejo de atingir os atributos dos deuses criados pelos homens para os reconhec-er. Gregor Samsa, transformado numa enorme barata torna eloquente o cavaleiro inexistente. Intimamente, ainda ele, Gregor Samsa não tem acesso à sua armadura. O conjunto dos objectos e dos espaços que constituíam a sua armadura são-lhe inacessíveis, mais valia que se tivesse tornado incorpóreo como o herói de Calvino. A história de Samsa ilustra quão ajustados ao nosso corpo estão os objectos, quão apertado é o “fato” que julgamos múltiplo e espaçoso. Em Vitruvio encontramos uma possível origem para a história do cavaleiro inexistente e para a incomodidade de Gregor. O conceito de Decor

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constituinte da categoria Venustas, parte da tríade arquitectónica, postulava que a forma se deveria adequar à função comunicativa do edifício. Este conceito dá origem a duas pala-vras em português Decoro e Decoração. Ambas as palavras, no seu uso corrente desvirtuaram a sua origem. No entanto, julgo que o paradigma central do Design industrial ou de Produto é o Decoro. É este decoro que reforça a estreiteza do fato. Os objectos ajustam-se, não só ao corpo, mas sobretudo, ao que pretendemos comuni-car. As cavalgadas do marketing e dos targets transportam o cavaleiro inexistente para toda a parte. A múltipla produção de objectos permite que cada um construa a sua armadura, tornan-do-se cada vez mais invisível substituído pelo sistema de objectos que a si associa. O cava-leiro inexistente simboliza, também, a vaca e o burrinho do presépio do Design: A Ergonomia e a Antropometria. Não é por acaso que a primeira se desenvolve na Guerra e a segunda na crimi-nologia. Poucas actividades humanas esvaziam tanto o humano da sua individualidade. A ar-madura animada de Calvino é correctamente proporcionada e medida e as articulações permitem-lhe um desempenho ergonómico perfeito. Assim o fazem o Homem Invisível de H.G. Wells, Michael Jackson e Stephen Hawkins que são, afinal, a mesma pessoa e exemplares extremos do que pretendemos descrever. O BARÃO TREPADOR — CIBERMUNDO — O jovem barão decide, aos doze anos, passar a viver nas ár-vores e nunca mais por o pé em terra. Assim se passa a sua existência, sempre em contacto com o mundo dos restantes humanos, mas onde os caminhos são mais curtos. Ele é ao mesmo tem-po mensageiro e profeta. Na floresta, que cobre grande parte da Europa ele desloca-se na multi-plicidade dos ramos onde é sempre possível en-contrar uma ligação. Para o Designer o mundo é visto como um incomensurável conjunto de feixes de comunicação. À primeira vista este facto pode parecer resultar da generalização da world wide web. Na verdade, o universo www nasceu com o telégrafo e desenvolveu-se com

a televisão. A www não passa de um telégrafo televisível ou de uma televisão telegráfica. A produção de objectos de comunicação e a atribuição de valor comunicacional a objectos é que criou a possibilidade da web. O telégrafo permitiu a globalização de capitais e mercados. A televisão permitiu a consolidação do Market-ing e da Publicidade. A web não é mais do que a cristalização daquilo que já existia: um fluxo constante de significados no seio do mundo artificial. O Design recria continuamente esses feixes de significados. O projecto conta com eles como parte essencial da sua estratégia. A rep-resentação de algo a produzir é, fundamental-mente, a criação de um feixe de significados. O designer opera, assim, num mundo abstracto de ligações comunicacionais que se realizam nos mais insuspeitos sistemas de objectos. A Design, associamos normalmente, a ideia de Inovação. Esta não passa da reconfiguração de sistemas. Ao encontrar um caminho por entre a míriade das ligações possíveis que os ramos das árvores oferecem (um caminho mais curto que os terrestres) o Barão Trepador, opera num nível diferente do sistema de objectos vigente a que podemos chamar, genericamente, Tradição. Os seus contactos com o mundo não-projectual são pontuais, interferindo e modificando a Tradição, criando tradições provisórias através dos indícios do seu verdadeiro movimento. Quando se recolhe para as árvores, para o pro-jecto, a visão que retém do mundo embaixo é fragmentada, resultante daquilo que é apenas visível por entre os ramos.

Entretanto, o vestígio do resultado da sua aparição, a nova tradição provisória, ganha auto-nomia e movimenta-se lentamente pelos camin-hos da terra. A relação entre o Barão Trepador e os seus conterrâneos é, assim, sempre carregada de surpresas, de novas perplexidades. Embora haja sempre um preço a pagar pelas surpresas o Design encontrou o plano onde operar. O Designer decidiu nunca mais pôr o pé na terra porque não é deste mundo. É do mundo que há – de vir.

O VISCONDE CORTADO AO MEIO —ARTE E CIÊNCIA — O

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visconde, atingido por um tiro de canhão vê-se dividido em duas partes. Esta catastrófica frac-tura separa-o na metade boa e na metade má. A metade má exerce a sua crueldade no governo do seu senhorio provocando a miséria e o terror dos seus súbditos. A metade boa surge depois. A sua bondade provoca também toda a sorte de acidentes e desgraças. Finalmente, por amor de uma donzela, defrontam-se em duelo. Feridos de morte, são salvos por um cirurgião inglês que os consegue recoser.

O Visconde é o Homem da Idade Moderna, in-teiro como projecto, na Renascença, que, neste caso, a pouco e pouco se vai separando em Arte e Ciência. O Desenho tinha criado essa bela ilusão de que um homem completo e íntegro dominaria todos os aspectos do seu devir. Os desastres de Leonardo com a sua máquina voadora indiciavam já que ao segredo do voo das aves não se chegava através do Desenho. Por mais que conhecesse pelo desenho o maquinismo de funcionamento da asa, a diferença de pressão entre a face supe-rior e a face inferior (razão da sustentação) não era visível e, consequentemente indesenhável. Mais tarde, a acção conjugada de Lavoisier e Dal-ton conseguiu reunir a Química, a Matemática e a Física criando um mundo onde o Desenho não podia chegar. No início da Idade Contemporânea, a reacção da Arte surgiu com o Romantismo que desferiu a machadada final separando as duas metades. O artista romântico fechou o seu campo à ciência franzindo o sobrolho às explicações. O início da reunião deu-se através de uma visão do mundo natural que se tornou cultural: a teo-ria da evolução das espécies. A natureza que tinha sido o referente da harmonia e estabilidade formal passava a significar mutabilidade, trans-formação, morte e extinção, adaptabilidade. No final do século XIX o evolucionismo tinha já pen-etrado profundamente na cultura da sociedade da esfera protestante. Em certa medida, refor-çava os aspectos do livre arbítrio. Embora arte e ciência não se tivessem recosido, os primeiros passos foram dados. A Bauhaus resulta de duas interpretações da teoria evolucionista. A de Alois

Riegl, com a sua Kunstvollen (vontade da arte) e Max Nordau com o seu Enfartung (degeneração) criaram condições para que a Bauhaus surgisse como adopção da primeira e reacção à segunda. Esta reacção comportava sobrelevar os aspectos éticos da produção que através da técnica e da ciência se deviam auto justificar na forma.

Apesar deste início cada uma das metades seguiu o seu caminho durante o séc. XX, fazendo maldades e bondades mas sempre incompleta, fa-zendo os súbditos sonhar com a plenitude dos de-sejos de prosperidade e paz que o jovem visconde inteiro tinha augurado.

É sedutor pensar que o cirurgião inglês se chama Design. Parece ser o único capaz de sa-ber tanto da anatomia de uma metade como da outra.Nesta evocação não se pode decidir que é o mau e quem é o bom. Na história de Calvino, o Visconde volta a ser uno e completo embora enriquecido pela experiência do seu tempo de ser dividido.

DEFINIR

Se o cirurgião é o Design, se o mau e o bom são a ciência e a arte, resta saber quem é a donzela que catalisa a união e, também, quem é o sobrinho narrador. O sobrinho é a História, a contínua possibilidade de construir uma linha temporal através da narrativa.

A donzela é o deleite e a possibilidade de per-petuação. É o indefinível presente em cada acção humana. É a possibilidade de uma relação amo-rosa com o mundo que está para além daquilo que seria plausível pensar. É a Venustas vitruvi-ana, a genitrix, o agente catalisador nas novas formas que buscam o tão indesmentível como inexplicável deleite na reprodução sexuada em que os opostos se misturam. Gerar o novo, ainda que participado pelo antigo, é, ainda, a condição essencial para definir Design.

Em Conclusão, para podermos definir o Design poderemos dizer, então e agora que:

O Design é o cirurgião inglês, que, na voz da História, cose pedaços do Homem para que este se possa perpetuar… até nova separação.

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MODOS DE “VER” O ESPAÇO

JOÃO PALLA

Actualmente arquitectos e designers têm dado grande importância ao aspecto conceptual de projecto, nomeadamente na compilação e registo do processo criativo, através de escritos e matéria gráfica. Pela existência do processo é possível para terceiros analisar, comparar e aferir desde o pro-cesso criativo e mental dos primeiros registos até à obra final acabada. Por outro lado possibilita ainda daí poder extrair novas formas de expressão para fins pedagógicos, ou como novo interesse artístico e estético. É porventura interessante verificar que pouco se tem falado da importância do uso da fotografia no trabalho criativo dos arquitec-tos, pois apesar de se apresentar como uma rotina muito generalizada, ferramenta de memória de registo dos espaços, o uso da fotografia pode ser visto como meio de expressão e mediador entre realidade e ficcionado.

É prática corrente dos arquitectos fotografar os locais de intervenção, o terreno ou a paisagem e encontramos amiúde tais representações nas pare-des dos ateliers. A fotografia do local aparece como base de uma fotomontagem onde coexiste a simu-

lação do objecto de arquitectura seja por meio do desenho, seja por meio da reprodução da maqueta ou ainda com a ajuda do CAD – desenho assistido por computador. Este trabalho sobre as fotografias das pré-existências serve estágios diferentes so-bre a concepção do objecto. Por um lado funciona como suporte mental de reconhecimento de uma realidade em que se pretende operar, facilitando o processo de criação, na formação de uma imagem. Depois, serve o arquitecto na medida em que pode testar várias alternativas volumétricas e formais, confrontando-as com a envolvente da paisagem. Por último, pode fornecer ao cliente uma visu-alidade fotográfica com grande proximidade à re-alidade a construir. Estas fotografias ou visualiza-ções funcionam assim como suporte ao processo cognitivo e cognoscitivo.

Verifica-se porém que uma só fotografia se torna insuficiente para a leitura global de espaços ou de paisagens mais vastas, pelo que arquitectos optam com alguma frequência por fotografar os locais em torno de um ponto, com várias tomadas de vista em diferentes direcções e de forma sequencial. É pos-

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teriormente na montagem das fotografias – uma colagem do conjunto das diferentes vistas com mo-mentos de sobreposição – que se obtém uma vista abrangente sobre o local de intervenção. É um pro-cesso de entendimento da realidade do lugar, com o sentido de mapeamento da recolha visual, de apre-ensão global do espaço, servindo de palco a uma série de ensaios possíveis, onde o objecto arquitec-tónico projectado terá de se inserir e de dialogar e onde se pode comparar o antes e o depois.

Para um arquitecto, estas fotografias são vistas enquanto parte do processo criativo de projecto, talvez base de um desenho de representação do ob-jecto, uma colagem de vistas, nunca como objecto acabado, sublimado ou fotograficamente artístico. Existem no entanto casos em que este procedi-mento se aproxima em objecto de criação artística. Veja-se o caso do romeno Iosif Kiraly, arquitecto e artista visual, com a sua série Triaj exposta recente-mente na Fundação Gulbenkian e integrada na Lisboaphoto 2005. Iosif Kiraly toma como premissa esta prática de registo do espaço com a máquina fotográfica para considerar a fotografia com preo-cupações em descobrir a distância enigmática entre a realidade do mundo e as suas projecções. São foto-grafias de espaços urbanos que através de pedaços de informação se constroem adquirindo uma con-tinuidade na leitura espacial, admitindo sobretudo grandes fracturas temporais entre vários pedaços destas imagens. O fotógrafo volta a recuperar a mesma tomada de vista para indicar essa fractura com o tempo; no mesmo arruamento, os passeios apresentam-se com transeuntes que se passeiam ao sol, e no momento seguinte vemos a calçada coberta de neve com pessoas que aparecem agora cobertas funcionando no mesmo conjunto. Iosif Ki-raly captura a presença do espírito envolta, a alma do sítio com as pessoas, os cães e as poças de lama, sem preocupação de uma boa fotografia artística ou para publicação. O objectivo deste projecto iniciado pelos arquitectos e artistas Mariana Celac, Iosif Kiraly e Marius Marcu Lapadat é segundo estes, documentar o conjunto de blocos de apartamentos construídos durante o comunismo na sua relação de transformação ao longo do tempo.

David Hockney lembra que quando observava fotografias, havia algo que não estava, uma abla-ção que ele veio a mostrar que era a própria rep-resentação do tempo. Hockney começa por per-seguir uma visão simultânea de vários aspectos circundantes, querendo ter o domínio do espaço de uma forma livre como tinha no desenho ao que ele chamou de “Desenhos com câmara”. Chegou inclusivamente ao ponto de experimentar estas construções com fotografias durante uma con-versa entre dois amigos onde havia diferentes ex-pressões dos personagens que eram registados em diferentes momentos e a montagem iria incluir as emoções destes “actores” de forma a equiparar-se a uma narrativa visual.

Existem nestas colagens fotográficas quer de Ki-raly quer de Hockney a representação de algo mais que o referente imediato, alia-se uma memória, uma visão que une a vontade de criar a uma von-tade de relembrar, sendo a acção da representação do tempo determinante neste sistema. Se por um lado estas fotografias correspondem a um en-tendimento arquitectónico do espaço, por outro lado, pretendem representar mais do que isso. A possibilidade de uma fotografia de um espaço ganhar significado depende, em parte, da real-ização de uma representação que deve também referir-se a alguma outra coisa. Estas fotografias parecem colocarem-se a dois níveis, o da quali-dade da fotografia como representação do espaço, e o do âmbito da filosofia da comunicação. Parece hoje um dogma a afirmação de Walter Benjamin quando dizia que a fotografia gerou a primeira revolução em relação ao papel da criação artística \”Pela primeira vez a mão se libertou das tarefas artísticas essenciais, no que toca à reprodução das imagens, as quais, doravante, foram reservadas ao olho fixado sobre a objectiva. Todavia, como o olho apreende mais rápido do que a mão desenha, a reprodução das imagens pode ser feita, a partir de então, num ritmo tão acelerado que consegue acompanhar a própria cadência das palavras\”. Nesse sentido, entende-se melhor o papel da foto-grafia na transformação do tempo em espaço e do espaço em tempo.

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Este tipo de representação em Iosif Kiraly é interessante porque resulta de uma procura de novas narrativas capazes de recuperar uma con-sciência crítica das implicações culturais após a mudança política e social na Europa de Leste. É resultado de uma realização já no período capi-talista sobre um cenário visivelmente comunista. Bucareste é ainda hoje em dia percepcionada pe-los seus massivos blocos de habitação construí-dos durante o período de ditadura de Ceaucescu.

É pois sobre esta ferida aberta deixada pelo modernismo socialista, pela modernização in-dustrial e pela construção de novas arquitectu-ras anti-modernas, que o autor investiga, pro-curando pistas. Indaga sobre o modo como nos relacionamos com as produções culturais que também assimilaram transformações urbanas. Ele usa este modo de apropriação da fotografia como ferramenta quase convencional para a sua visão crítica, uma vez que o modo como se vê a ci-dade está directamente ligado ao potencial para se criar a mesma. Nos anos 80 o filósofo Vilém Flusser no seu ensaio “Phantom City”, criticava os fotógrafos por estes manipularem a imagem da cidade retirando as pessoas e apresentando-a como desejariam que ela fosse acusando-os de uma atitude anti-humanista. Dizia ele que estas fotografias são documentos de um propósito, da inversão da relação objecto-sujeito. A percepção da cidade ou da arquitectura pode assim não cor-responder à realidade. Embora falemos de foto-grafia como modo de ver o espaço, a fotografia de apresentação de arquitectura actualmente serve na maior parte das vezes o carácter promocional do objecto apresentado, manipulado para uma fotogenia intencional que pouco tem que ver com a obra propriamente dita. A forma como os próprios arquitectos julgam as obras através de fotografia pode ser um engano, havendo muitas obras de qualidade espacial e arquitectónica que não são fotogénicas, logo a questão da sua repre-sentação é um problema que só se dissolve com a percepção do construído. No processo de per-cepção da cidade, Iosif Kiraly não toma como ga-rantidos pré-conceitos sobre imagens arquitec-

tónicas e urbanas, pelo contrário, ajuda a definir instrumentos e uma forma de “ver” concebendo um modelo para compreender e talvez actuar so-bre as complexidades do meio ambiente urbano

Ao arquitecto de hoje impõe-se um novo desafio de “ver” o espaço, dada a cultura emergente dos novos conhecimentos que ocorrem na sociedade. A lógica rectilínea do espaço cartesiano, onde os pontos podem ser mensuráveis nas suas coorde-nadas x, y e z, torna-se obsoleta uma vez que a tecnologia virtual encontrou como adicionar a co-ordenada temporal. A arquitectura e a cidade são agora vistas como um complexo sistema dinâmico e interactivo que se funde a todo o momento; Para Zaha Hadid, o espaço hoje em dia é contrário ao objecto. No seu projecto para o Centro de Arte Contemporânea em Roma, o edifício entrecruza-se com o contexto urbano ganhando uma nova dimensão pública, de fusão ou não distinção entre objecto/edifício e espaço urbano. É o não edifício. Este aspecto de hibridação entre duas entidades aparentemente distintas oferece uma nova con-cepção de espaço e de temporalidade, resultante da densidade polivalente do séc. XXI. É esperado, que esta complexidade seja modelada por proces-sos não lineares, possibilitando ainda novas formas de interpretação do espaço urbano e arquitectura, movendo-se assim para além do estaticismo físico do construído, do espaço fechado ou mesmo de argumentos funcionalistas ou causativos. O tempo, duração e temporalidade parece terem começado a perseguir a retórica de arquitectura. Note-se o caso do projecto do Centro Nacional de Natação para Pequim projecto do gabinete australiano PTW, ac-tualmente o paradigma da imaterialidade, não só no seu aspecto construtivo – espuma simultanea-mente regular e irregular, podendo ser solidificada desde o duro ao macio e do transparente ao opaco – mas também no plano simbólico ou da Cultura imaterial, inserindo-se na filosofia chinesa e nas relações de equilíbrio de Yin e Yang. Ao adaptar-se às condições exteriores, garantindo preocupações energéticas e de iluminação este edifício aproxima-se de um ser vivo capaz de instantaneamente trocar a sua matéria ou imaterializar-se.

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A propósito das exposições Em Obra de Luís Fer-reira Alves e Mundo Perfeito de Fernando Guerra.

No dia 28 de Abril de 2008, por volta das 18 horas, inaugurou na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto a exposição Mundo Perfeito do fotógrafo de arquitectura Fernando Guerra (1970). À mesma hora, na mesma cidade, inaugurou na sede do Jornal de Notícias a ex-posição Princípio e Fim de Um Projecto com foto-grafias de Luís Ferreira Alves (1938) sobre a obra de Eduardo Souto de Moura. Na semana seguinte, Ferreira Alves inaugurou no Departamento de Ar-quitectura da Universidade do Minho, Guimarães, a exposição Em Obra comissariada por mim e acompanhada de um texto da minha autoria inti-tulado “Mundo Imperfeito” 1. Serve esta breve in-trodução para prevenir alguma parcialidade que possa emergir nas linhas que abaixo se seguem. A coincidência da inauguração quase simultânea de três exposições estimulou um debate, ainda que informal, capaz de enfatizar o antagonismo entre: uma cultura analógica e uma cultura digi-tal; entre o propósito condicionado da fotografia

FOTOGRAFIA DE ARQUITECTURA,

DEFEITO E FEITIO PEDRO BANDEIRA

documental de arquitectura e a igual legitimi-dade de uma fotografia interpretativa; ou ainda, entre uma imagem utópica da arquitectura (o mundo perfeito) e uma realidade plena de ruído e imprecauções (mundo imperfeito). Dicotomias à parte (há cores entre o preto e o branco), convém também lembrar que Luís Ferreira Alves e Fer-nando Guerra partilham uma mesma condição – a do fotógrafo dito de “encomenda”, com clientes específicos e compromissos comerciais.

MUNDO PERFEITO

É sabido que a exposição Mundo Perfeito de Fernando Guerra na Faculdade de Arquitectura do Porto cau-sou um certo mal-estar acentuado pela publicação do catálogo com o mesmo nome sob a chancela das Publicações FAUP 2. Esta inquietação que muito pro-vavelmente parte de alguns equívocos, não deixará de expressar um certo cepticismo em relação ao que as imagens de Fernando Guerra possam representar: a excessiva mediatização da arquitectura através da sua imagem fotográfica. Para muitos arquitectos, e em especial para os herdeiros de uma Escola do

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Porto, a imagem fotográfica raramente faz justiça aos edifícios que projectam e idolatram e, algo para-doxalmente, mais raramente denunciam os defeitos das obras que desadoram. Inadvertidamente ou não, as imagens estetizam o inestético.

As fotografias não são simplesmente fiáveis, porque omitem, porque alteram, porque adicionam. Por outro lado, a cultura de “resistência” que sem-pre caracterizou a arquitectura do Porto exige a ma-nutenção de uma certa marginalidade em relação a uma sedução fácil baseada na superficialidade das imagens, mas também em relação aos fenómenos de mediatização tomados por modas e tendências. Isto pode parecer contraditório sabendo de que ar-quitectos falamos. Mas podem verificar que mesmo Álvaro Siza ou Souto de Moura sempre tiveram o pudor de não ter sequer uma página oficial na in-ternet que publicite o seu trabalho. Poder-me-ão dizer que não precisam, é verdade, mas comparati-vamente ao star system são de facto excepção. Se, por um lado, há uma delegação dessa responsabili-dade na iniciativa de outros, por outro lado, há uma certa convicção de que as obras (necessariamente construídas, materializadas) terão que falar por si mesmas numa escala de um para um. Depois, há a relação da Escola do Porto com o desenho, com o esquisso, com o “processo”. Durante décadas, o de-senho era tido como imprescindível para pensar ar-quitectura, reivindicando a relação mais curta entre ideia e obra. Além disso, perseguindo uma tradição beaux-arts, é no esquisso que se afirma a autoria do arquitecto (que raramente dispensa assinar e datar os seus desenhos para a posteridade). Por tradição, a fotografia é vista como algo impessoal, que rara-mente entra no processo de concepção do projecto e que só emerge verdadeiramente no fim, assumida-mente pela lente de outros: “acabada a assistência técnica, a obra permanece ali exposta para o cliente desfrutar, é então altura de chamar o fotógrafo para ver e confirmar” 3. É a relação de desconfiança em relação à fotografia que os arquitectos procuraram esbater estabelecendo relações de confiança com os fotógrafos. Foi assim com os arquitectos mod-ernistas (Mies van der Rhoe com a dupla Hedrich-Blessing; Richard Neutra com Julius Schulman;

Le Corbusier com Lucien Hervé…), foi assim com Fernando Távora, Álvaro Siza e Souto de Moura com Luís Ferreira Alves. E depressa a desconfiança dá lugar à amizade: “segue-se geralmente um almoço em que falamos de tudo, das fotografias, da arquitec-tura, sem cerimónias, frases contundentes que só a amizade consegue segurar e continuar” 4. Nesta rela-ção de proximidade entre arquitecto e fotógrafo, este último tende a tornar-se invisível: “o fotógrafo modernista abdica de qualquer protagonismo para dar visibilidade à arquitectura e, não menos impor-tante, às pretensões discursivas do arquitecto. Este sentido de “encomenda” tornaram durante décadas invisíveis fotógrafos como Schulman ou Ezra Stoller que viam as suas imagens serem publicadas sem re-conhecimento de créditos fotográficos. Esta humil-dade assentava na ideia de que «uma boa fotografia de arquitectura depende (necessariamente) de uma boa arquitectura» 5, o que hoje sabemos ser falso” 6. Uma coisa é certa, essa invisibilidade autoral do fotógrafo abriu caminho para a imagem propagan-dística ou, no mínimo, acrítica. E, neste sentido, a tão discutida “objectividade” fotográfica não passa de um (pre)conceito formal e estético.

A fotografia comercial de arquitectura, depen-dente do cliente-arquitecto, fundou-se sobre este pressuposto de uma fotografia acrítica. Como refere Fernando Guerra, os seus trabalhos são “sempre uma encomenda, uma prestação de serviço” 7. Neste sentido, Guerra terá em primeiro lugar que agradar aos seus clientes, tentando, simultaneamente, im-por uma marca própria, autoral, que eleve o seu tra-balho fotográfico a uma condição “artística”.

Sob esta condição “artística”, e aproximando-se da “nova” fotografia de arquitectura que se vai encomendando lá for a 8, a fotografia não poderá ser um humilde documento fotográfico mas antes “uma mensagem sempre pessoal que pode por vezes ser ficcionada ou quase romanceada” 9.

A procura de Guerra do “momento decisivo”, numa clara referência a Cartier-Bresson, exprime essa vontade de produzir uma imagem que ultra-passe a suposta banalidade e realismo do documen-to fotográfico mais convencional (onde também se insere a fotografia que os arquitectos fazem para

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registar as suas próprias obras, sem grandes pre-tensões, ou intenção de virem a ser publicadas). A ambição “artística” de Fernando Guerra está bem patente no conjunto das suas imagens que, se por um lado exprimem a personalização de um “modo de ver” (caracterizado, por exemplo, pela presença encenada de vultos e sombras ou pelo dramatismo “pós-fotográfico” de alguns céus – uma encenação que entrará algo em contradição com a ideia de “momento decisivo”), por outro lado, essa mesma personalização ou “estilo” tenderá, perversamente, a homogeneizar também o modo como vemos o “estilo” das diferentes arquitecturas: “entre os edifí-cios que fotografa, não se percebe, exactamente, um juízo de valor sobre os conteúdos da arquitectura; an-tes um controlo, ao nível das emoções, que busca ho-mogeneizar todos os registos (…) filtrar todos os pro-jectos pela mesma rede, reduzindo-lhes a espessura própria que os distancia” 10. No seu conjunto, na sua visão “quase romanceada”, o trabalho de Fernando Guerra aproxima-se, perigosamente, da construção fotográfica de uma «arquitectura genérica», para usar o termo de Rem Koolhaas. Este será o motivo mais do que suficiente para que os poucos arqui-tectos ainda comprometidos com um sentido de «arquitectura de autor» abdiquem dos serviços do «autor» Fernando Guerra (teoria dos dois galos na mesma capoeira?).

A julgar pelo número de encomendas, pelo núme-ro de visitas ao site ultimasreportagens.com, serão poucos os arquitectos a resistir à sedução das ima-gens de Fernando Guerra que, melhor que ninguém em Portugal, soube compreender “o poder da mas-sificação e da celeridade do consumo mediático” e compreender “ a imagem como instrumento insub-stituível da difusão cultural” 11. Inteligentemente usando a arquitectura de Siza como “isco” 12, conquistou uma atenção rara dos arquitectos, es-tudantes de arquitectura e, não menos importante, das publicações da especialidade. Fernando Guerra parece ter hoje em dia o monopólio das imagens da arquitectura portuguesa criando uma relação de dependência entre arquitectos e editores que não querem ficar de fora do jogo da mediatização. Os arquitectos não só procuram os seus serviços pelas

imagens, mas por aquilo que elas potenciam em termos de divulgação e reconhecimento. Dir-se-ia que se não foi fotografado por FG+SG é porque não existe 13. Este incómodo é partilhado por muitos e só aqueles arquitectos suficientemente convictos daquilo que fazem (e para quem, de facto, fazem) verdadeiramente ignoram. No mesmo plano do papel ao da página web, boas ou más arquitecturas (tanto faz) partilham o mesmo glamour da obra el-evada à sua condição mediática. Poderá ser por um período efémero (será certamente para a grande maioria), mas esse breve momento de celebração e 15 minutos de fama representará todo o investi-mento do arquitecto, aparentemente crente num “mundo perfeito” – a metáfora ideal para descrever o tempo que muitos veneram demarcado com rigor entre a conclusão da obra e a consequente entrada do cliente. E o preço a pagar: vultos e sombras, como fantasmas, que habitam casas vazias, sem móveis, sem livros, sem saber por onde ir, circulam de ima-gem em imagem sem encontrarem um lugar para apropriar e viver.

MUNDO IMPERFEITO

O tema da exposição Em Obra de Luís Ferreira Alves está nas antípodas do “mundo perfeito”, por isso o subtítulo “mundo imperfeito”. Com isto não se quis expressar qualquer antagonismo entre a prática profissional de Luís Ferreira Alves e Fer-nando Guerra (como já se referiu, Luís Ferreira Alves é também um fotógrafo do “mundo perfeito” encomendado pelos arquitectos 14) mas antes a oposição entre a sedução da arquitectura acabada de inaugurar e o caos ou desleixo que caracterizam arquitectura em obra ou em ruína – procurando-se aqui uma indistinção assustadora simbolicamente representada pelo “princípio” e “fim” da arquitec-tura. Sobre esta exposição escrevi:

“Na exposição Em Obra, Luís Ferreira Alves ofer-ece-nos uma reflexão sobre a arquitectura em fase de construção, ou reconstrução, o que explicará o título da amostra. Um grupo de imagens do Palácio do Freixo exibe sem pudor um património despido, decadente, à espera de atenção. Num primeiro olhar, estas imagens poderiam significar a denúncia de um

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tempo que menosprezou toda a dignidade da arqui-tectura, falamos de um património decadente, dis-funcional, que não lhe foi sequer oferecida a possi-bilidade estética e romântica de se apresentar como “ruína”. Num segundo olhar, estas imagens de uma qualidade estética em si inquestionável, estimulam uma abordagem capaz de exaltar uma beleza oculta mas pronta a emergir. Em Obra é por isso uma men-sagem de esperança a partir das imagens que se re-cusam a ser auto referentes para ser cúmplices de um momento único de transição e expectativa.

Mas há outro nível de cumplicidade entre as imagens e a obra. No que refere à especificidade das imagens do Palácio do Freixo, do Mosteiro de Tibães ou do Liceu de Braga, Luís Ferreira Alves oferece-nos a visão de um património “human-izado”, isto é, um património fragilizado na sua essência mas paradoxalmente próximo de uma condição existencialista e algo absurda. Porm-enores de frescos apagados, objectos estranhos à obra, estruturas expostas, entulho, lixo são ima-gens que perfazem uma ideia de desmistificação do património tornando-o perversamente mais próximo e quotidiano. Mas, paradoxalmente, será isto que legitimará repensar o património como lugar aberto a novos olhares e intervenções; um património dinâmico em transformação.

Todas estas imagens de Em Obra fixam em papel um momento de transformação entre a ruína e a obra terminada. Há um qualquer fascínio inerente a este momento de transição do qual os arquitectos não abdicam, há a exposição de algo que o tempo tornará invisível, mas que não se pretende esquecer. Mas mais do que documentar este momento há tam-bém uma oportunidade de explorar outros sentidos estéticos. Lembro a este propósito as fotografias de Lewis Baltz, da sua série Park City (1980) ou mais recentemente o trabalho desenvolvido por Candida Höfer sobre a Embaixada Holandesa em Berlim pro-jectada por Rem Koolhaas. Neste último caso, ima-gens da Embaixada ainda em obra foram editadas num livro 15 que parece querer enfatizar uma esté-tica que é também arquitectónica e coerente com o sentido de transitoriedade que Rem Koolhaas tem vindo a reclamar para a arquitectura 16.

São fotografias como estas de Luís Ferreira Alves que permitem aceitar a incomodidade provocada pelas obras de modo absolutamente tranquilo. De certa maneira, estas imagens vão mais longe, ao desvendar uma beleza oculta onde à partida não há nada de belo, estão a contribuir para uma domesticação de um cenário que ape-sar de efémero tem cada vez mais impacto. Uma obra acaba e logo outra começa, há transitorie-dade mas também há permanência das obras, há o incómodo mas também há expectativa de que: “Portugal é bom quando estiver acabado” 17, até lá estas imagens representam a bondade possível.

Durante séculos o nosso património arquitec-tónico era, para o bem e para o mal, entendido como um organismo vivo potencialmente sujeito a transformações. De certo modo, o próprio reconhe-cimento de valor patrimonial expressava essa acu-mulação de intervenções que espelham a riqueza e complexidade histórica. Hoje, as políticas de preservação patrimonial têm quase sempre como consequência uma estagnação arquitectónica (difi-cilmente imaginamos Álvaro Siza ter a encomenda que Nasoni teve na Sé do Porto). As imagens de Luís Ferreira Alves devolvem-nos, nem que seja ilusoria-mente, esse sentido de um património dinâmico em suposta transformação, mas oferecem-nos mais do que isso, estas imagens não deixarão de evocar um sentido que quase nos levará a confundir a transito-riedade das obras com a eternidade da ruína, fund-indo o início e o fim da arquitectura”.

MUNDO DIGITAL

A maior parte das fotografias da exposição Em Obra são ampliações de película médio formato 6x7. Mas a revelação química tem um tempo próprio cada vez mais incompatível com as expectativas da “enco-menda”. Os profissionais da fotografia foram passo a passo cedendo ao digital que tecnicamente, a cada dia que passa, acumula pontos de qualidade. Ainda assim, Ferreira Alves, que hoje fotografa ar-quitectura com uma câmara digital Canon EOS-1DS Mark 3 (topo de gama) lamenta-se da qualidade dos céus e das impressões. Fotografar em película, foto-grafar com médio e grande formato é uma garantia

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de qualidade mas que implica uma disciplina e rigor difíceis de serem monetariamente reconhecidas pelo mercado. Fotógrafos como João Armando Ri-beiro ou Luís Oliveira Santos quando trabalham com a fotografia analógica fazem com sorte 10 imagens por dia, depois esperam pela revelação dos labo-ratórios que só existem no Porto ou Lisboa. Paulo Catrica costuma ironizar, sem estar muito longe da verdade, que só para montar o tripé demora duas horas. Quem trabalha com digital sabe que pode fazer 100 fotografias num único dia sem que isso tenha qualquer custo acrescido (não há película, não há laboratório), além de poder verificar o resul-tado na própria obra (e raramente ter de voltar) e sa-ber que quando estiver novamente em estúdio terá uma segunda oportunidade denominada Photoshop que servirá para reenquadrar, corrigir perspectivas, manipular cores, adicionar ou retirar informação, etc. Claro que este tratamento pós-fotográfico tam-bém se pode fazer a partir da película digitalizada, mas há uma “cultura do analógico”, uma cultura

“resistente”, que o desaconselha. Só quem já pas-sou pela revelação e ampliação dos próprios nega-tivos saberá do que estou a falar. Não se entenda isto como um juízo contra a facilidade da manipu-lação digital. A manipulação sempre existiu desde a invenção da fotografia, entenda-se antes que a cultura do analógico valoriza com mais expressão o próprio «acto de fotografar» do que do processo «pós-fotográfico», quanto mais não seja porque os custos da película e da sua revelação nos obrigam a ser mais selectivos com as imagens que fazemos. O digital facilita a displicência do disparo que se tenta compensar quantitativamente. Neste aspecto, o digital é incontinente, é difuso, mas simultanea-mente apresenta-nos a possibilidade de uma ar-quitectura que não conhece limites para chegar à perfeição. A fotografia analógica, condicionada à partida, teve de aprender a viver com os seus erros, com o seu ruído, com o seu próprio envelhecimen-to. Presta-se então à metáfora de uma arquitectura envolta de patine ou solitária como uma ruína.

NOTAS 1. Pedro Bandeira, “Mundo Imperfeito” in cartaz da exposição Em Obra, Guimarães: DAAUM, 2008.

2. Poder-se-á dizer que a edição do catálogo “Mundo Perfeito” provocou um debate interno sobre a política editorial da FAUP.

3. Eduardo Souto de Moura, “Princípio e Fim do Projecto” in catálogo da exposição com o mesmo nome, Porto: Jornal de

Noticias, 2008, p. 3.

4. Eduardo Souto de Moura, idem.

5. Ezra Stoller: Modern Architecture Photographs by Ezra Stoller. New York: Harry N. Abrams, Inc. Publishers, 1990, p.

6. 6. Pedro Bandeira, idem.

7. Fernando Guerra, “Dibujos Visuais” in revista Mais Arquitectura #22, Março 2008, p. 27

8. Ver, a título de exemplo, o trabalho desenvolvido pelo fotógrafo-artista Thomas Ruff sobre a obra de Mies van der Rohe ou de

Herzog & de Meuron, em que a fotografia é assumidamente interpretativa e reconhecida como prática autónoma.

9. Fernado Guerra, idem, p. 29.

10. Ana Vaz Milheiro, “Mundo Perfeito” in Mundo Perfeito: Fotografia de Fernando Guerra. Porto: Publicações FAUP, 2008, p. 21.

11. Nuno Grande, “Foto-Síntese” in Mundo Perfeito: Fotografia de Fernando Guerra. Porto: Publicações FAUP, 2008, p. 14.

12. O destaque que Álvaro Siza tem no site Últimas Reportagens ou no catálogo Mundo Perfeito exprime uma inteligente

política de marketing.

13. Aproveitando a citação de Castello-Lopes “para a maioria das pessoas o que não foi fotografado de certa forma não

existe, ou existe menos” citado por Fernando Guerra, idem, p. 33.

14. O percurso de Luís Ferreira Alves enquanto fotógrafo “oficial” dos arquitectos da Escola do Porto estará, do ponto de

vista estético, distante das imagens de Fernando Guerra, mas não deixará de partilhar a mesma vontade na comunicação

de um mundo “perfeito”.

15. François Chaslin e Candida Höfer, The Dutch Embassy in Berlin By OMA Rem Koolhaas. Rotterdam: NAi Publishers, 2004.

16. Para desenvolvimento deste tema consultar Pedro Bandeira: “Imagens de Rem Koolhaas” in Arquitectura como Imagem.

http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/6878 - www.tinyurl.com/5sc9j3

17. Como ironizavam Jorge Figueira e Luís Tavares Pereira na Revista Unidade #3, 1992.

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Há um princípio bem conhecido, mas não in-falível, que diz: mais vale uma boa síntese que um milhão de análises. A história da arquitec-tura podia bem ser um dos territórios de sentido desta proposição, se ela não anulasse uma boa parte da espessura e fecundidade intrínseca de momentos intersticiais normalmente indecisos.

As sínteses remetem normalmente para mo-mentos e objectos mais estáveis ou mais herói-cos, que assentam numa clareza, essenciali-dade e fortaleza de carácter que os faz por si só marcos distintos, afirmativos e reconhecíveis, ainda que por vezes também fáceis, retóricos e redutores. O facto de vivermos num destes mo-mentos críticos, ao mesmo tempo controversos, prolixos e nebulosos, ou na melhor hipótese, liminares, facilita em certa medida a tarefa de reconhecer os autores, os percursos e os objec-tos singulares. João Mendes Ribeiro é um destes casos. Lentamente, foi acumulando uma obra transversal, de uma coerência extrema, a ponto de ser hoje uma das figuras centrais da arquitec-tura erudita 1 de expressão portuguesa.

HISTÓRIAS DE UMA MALA

VASCO PINTO

A transversalidade da obra de João Mendes Ri-beiro transpõe largamente o campo strictu senso da arquitectura para áreas periféricas como a cenografia, onde é actualmente uma das refer-ências mais sólidas e estimulantes, o desenho de espaços efémeros e expositivos, a arte pública, a instalação e o design, campo só eventualmente “menor” onde vou buscar o objecto metafórico, ou mais propriamente metonímico, desta minha síntese: a mala-mesa de João Mendes Ribeiro. Nesta minha abordagem a uma obra alargada - que vai da reabilitação de espaços e edifícios patrimoniais (Pátio da Inquisição e Laboratório Chimico, ambos em Coimbra) até ao desenho de edifícios/paisagens/objectos/imagens tão im-pressivos e marcantes, como a Casa de Chá em Montemor-o-Velho, o “condutor de espaços” 2 para o castelo de Rivoli, em Turim ou as ceno-grafias para Propriedade Privada e D. João - pode parecer redutor eleger para ponto de partida e de chegada um objecto tão elementar e bem identifi-cado como a mala-mesa. Para esta síntese mínima esta escolha pode parecer irónica ou exagerada,

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mas é, pelo menos convicta e intencional, para não dizer arriscada. Numa obra abrangente como a de JMR, em que nunca deixa de ser perceptível o referencial da arquitectura moderna, e como queria Gropius “do puxador à cidade”, é sedutor ver onde me poderá levar este género de indução crítica, que se permite falar de tudo a partir de muito pouco. Há outra razão para esta escolha, a obra de JMR começa a estar amplamente di-fundida, documentada e comentada, tanto pelo próprio como por terceiros. Começa, por isso, a tornar-se difícil não repetir comentários já fei-tos, na minha mais que provável falta de imagi-nação para encetar caminhos completamente novos. Bom, talvez não seja assim e talvez não esteja tudo dito, e valha a pena esta sincera hom-enagem a um objecto singular, que é, ao mesmo tempo um dos símbolos mais reconhecíveis da obra de JMR e porque não, e a partir de Paisagens Invertidas 3, da própria arquitectura portuguesa.

Se tivesse que resumir numa palavra o trabalho de João Mendes Ribeiro, escolheria a palavra serenidade, sabendo bem, que a serenidade é hoje uma qualidade dúbia, uma espada de dois gumes e um presente envenenado. Duvido que o João alguma vez se importe com isto, na busca incan-sável da beleza, ainda e sempre, essa cintilação de verdade eterna a iluminar o universo da arte. Alexandre Alves Costa tem razão quando refere a obra de JMR, como “escandalosamente artística” e Jorge Figueira acrescenta que “apesar de manter uma ética de arquitecto, sem assumir arrogância e distância de artista… a suprema ironia de JMR - e o João não é um arquitecto irónico – é trazer a artisticidade da arquitectura moderna para cima do palco” 4. Deste emaranhado de razões, fica-nos a ideia de uma vontade de elevação da prática arquitectónica a um ideal de beleza que resvala claramente da arquitectura, enquanto prática de mediação e de cedência, para o território da obra de arte. A cenografia, permite-lhe em parte esse espaço de experimentação e liberdade, mas essa vontade, eventualmente mais rigorosa e me-nos arriscada, não deixa de parte outras obras e projectos de mais grave arquitectura. Para JMR, o

prazer estético voluptas é o nível mais alto a que pode (e deve) aspirar, numa lógica ainda alber-tiana, a obra de arquitectura, depois de estarem atingidos as conveniências de ordem construtiva e programática (necessitas) e a adequação à dig-nidade e conforto da actuação humana (como-ditas). Este apego a uma ordem explicativa de referência clássica e racionalista, ajuda a explicar a filiação de JMR entre a derivação mais miesiana da arquitectura moderna aprendida na Escola do Porto, universo formal que funde com a influên-cia de artistas plásticos, designers e arquitectos contemporâneos de pendor minimalista, como Judd, LeWitt, Morrison, Chipperfield ou Pawson. Daqui a “essencialidade”, “eficácia”, “elegância”, “abstracção” e “alegria” que Manuel Graça Dias 5 infere da obra de JMR e a “neutra excepcionali-dade” que refere Ana Tostões 6. Outras qualidades, que se adivinham, serão a delicadeza e a sensi-bilidade. Entendo-as como uma forma de pro-fundo respeito e quase reverência, pelos espaços e edifícios onde actua, incutindo-lhes uma marca pessoal autêntica e contemporânea, contempo-raneidade entendida como rigor projectual que permite restabelecer a dignidade e o nexo de tem-poralidade na obra de arquitectura.

“Em Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades, num palco vazio, cada personagem transporta uma mala. A mesa oculta transforma-se a partir da mala, cuja súbita metamorfose exercita os movi-mentos dos bailarinos. A mala é também uma caixa que contém dois bancos, utilizados pelas perso-nagens para se sentarem comodamente à mesa. Com estas mesas constrói-se uma longa bancada onde se encena uma espécie de ‘última ceia’, cuja montagem e desmontagem assume a extensão do próprio corpo, condicionando e exacerbando os movimentos dos bailarinos.” 7

A primeira versão da mala-mesa surgiu em 1998, para Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades, coreografia de Olga Roriz para o grande auditório do CCB, retomando a colaboração e cumplicidade de JMR com a Companhia Olga Roriz, que vinha de Propriedade Privada (1996) e Start and Stop Again (1997). Propriedade Privada recriava a

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partir de um conjunto de caixas desdobráveis, uma série de habitáculos modulares, num mo-mento eloquentíssimo de “cenografia como ex-perimentação arquitectónica” e da definição de um “objecto múltiplo” 8, que é sucessivamente exterior e interior, recriando tanto o universo da rua como os espaços íntimos. A urbanidade e conflito de Propriedade Privada, davam lugar em Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades à ex-pressão da “tradição e religiosidade do Portugal profundo” 9, num registo fortemente memorial e autobiográfico. Olga Roriz relembra com entu-siasmo o momento em que “o João apareceu na sala de ensaios com a mala na mão”, que abriu e desmontou, transformando numa mesa, “parecia mesmo a mala de piqueniques do meu pai” 10. Efectivamente, um dos aspectos interessantes da mala-mesa, é que, à parte a surpresa, toda a gente parece já a ter visto nalgum lugar e com uma configuração qualquer, é ao fim e ao cabo a recuperação de um objecto arquetípico, aqui reinventado pelo desenho de JMR. A utilização no espectáculo, perfazia uma longa mesa para um banquete. Nesta versão, a mala funcionava ao alto e era mais alta, desdobrando-se no sen-tido do comprimento e formando uma mesa mais

longa, com tampo mais espesso e apenas quatro pernas, em vez das oito actuais. Do seu interior, surgiam bancos desmontáveis de uma versão que difere ligeiramente da actual pela divisão do as-sento em dois elementos. Olga Roriz reutilizaria posteriormente a mala-mesa em mais três cria-ções: F.I.M. [Fragmentos, Inscrições, Memórias] em 2000 no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, nos momentos I e II de Felicitações Madame de 2005 e em A Sesta, registo videográ-fico e performance produzidos para a representa-ção oficial portuguesa na 11ª Quadrienal de Praga em 2007. A primeira aparição da mala-mesa como suporte expositivo aconteceu em 2001, integrada na mostra Inventário do Património Edificado de Origem Portuguesa, apresentada em El Jadida (Mazagão), Marrocos. Nesta primeira deslocação ao estrangeiro, a mala foi reinterpretada sem bancos de apoio e numa configuração e dimen-sões próximas das actuais. Da versão anterior, divergia apenas no facto de cada elemento dis-por de mais duas pernas ao meio, compensando a maior esbelteza do tampo. Também mais finas, todas as pernas rebatiam agora no sentido da largura da mesa, para quatro caixas, dispostas nas extremidades de cada metade da mala. Na

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exposição de Marrocos, as mesas ficavam dispos-tas em duas linhas simétricas de seis elementos justapostos, dispondo cada uma, de dois candee-iros de secretária que iluminavam painéis trans-portados no espaço interior da mala.

A segunda viagem da mala-mesa, já no modelo actual com oito pernas e dois bancos rebatíveis, foi a Berlim, integrada na exposição Paisagens In-vertidas, promovida pela Ordem dos Arquitectos e apresentada no XXI Congress of World Architecture em 2002, na entourage de um auditório modular e um conjunto de outras caixas-malas para fins específicos. A mesma exposição itineraria em 2003, ano internacional da arquitectura por al-gumas cidades portuguesas. A última digressão internacional da mala-mesa foi à Quadrienal de Praga, em 2007, como suporte da exposição João Mendes Ribeiro -Arquitecturas em Palco/Architec-tures on Stage. A exposição era composta de vinte malas-mesa, integradas num pavilhão de painéis modulares forrados a tela branca. Ao lado, foi construído um pavilhão negro que enquadrava o auditório modular de Paisagens Invertidas, re-utilizado para exibição do filme A Sesta de Olga Roriz, uma fábula, em que personagens com ca-beças de animal encenam um piquenique camp-estre que se socorre das mesmas vinte malas-mesa expostas. Nesta dupla referência, objectual e encenada, a mala-mesa torna-se protagonista, signo e símbolo, verdadeiro emblema metafórico para o trabalho exposto. Vencedora da medalha de ouro para a melhor obra de cenografia, a ex-posição de Praga seguiu para Barcelona, S. Paulo, Lisboa, Porto, Aveiro e Coimbra…

O que tem afinal este objecto de tão especial? Será afinal tão só um produto de design 11, ou seja, uma forma repetível que não implica um lugar es-pecífico, como admiti no princípio? Não será an-tes uma micro-arquitectura de cena ou ainda uma obra de arte? Prefiro deixar esta classificação aberta e referir alguns aspectos pertinentes que podem ajudar a formar juízos sobre a categoriza-ção em causa. Comecemos pelo domínio do con-creto: a mala na sua materialidade e geometria próprias. Construtivamente, há um aspecto que

gostaria de realçar que é um certo sentido de ver-dade, perceptível nas ligações entre as placas que a constituem, claramente assumidas e facilmente inteligíveis. Porque a tentação não é esconder, mas trazer à superfície, qualquer carpinteiro faria facilmente um novo objecto a partir de um modelo fornecido. A escolha do material, o con-traplacado (de bétula), essa “madeira tecnológi-ca”, e a sua clara distinção entre folha e secção, reforça essa identificação, e revela outro aspecto que não é menos importante, o primado da forma (esse lado mais abstracto da realidade) sobre a matéria. Rigor, geometria, escala e proporção são aspectos fundamentais da obra de JMR. Se já se prefigurava na Casa de Chá esta obsessão, a re-centemente inaugurada Casa das Caldeiras, em Coimbra, projectada com Cristina Guedes é, por si só, uma prova cabal nesta matéria. No processo de sedimentação da mala atrás descrito percebe-se claramente este sentido evolutivo, desde a primeira versão para Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades até ao modelo actual, mesmo que isso tenha obrigado a fugir ao modelo arquetípico da mesa, das quatro para as oito pernas. A este respeito, devo acrescentar que a duplicação do número de pernas, dá origem a uma interpreta-ção lógica perfeitamente razoável se se consider-ar que a mesa é composta por duas metades, cada uma com quatro pernas e com a área adequada a um utilizador individual (um por banco). Deste entendimento, deriva o corolário lógico de que o modo correcto de associação entre várias mesas é no sentido da largura (como em Praga e Berlim) e não no do comprimento (Marrocos e A Sesta), or-dem lógica que fica mais indecisa se se considerar o efeito poderosamente dinâmico das imagens e fotografias de A Sesta.

Em termos funcionais, mas também ontológicos, a mala-mesa não foge de um dos conceitos chave em JMR, o de multiplicidade, multifuncionalidade e multioperatividade. Se a cenografia é o reino destes objectos mutantes, que chegam a assumir uma plu-ralidade de formas e identificações, os casos extre-mos são as cenografias para Propriedade Privada, O Bobo e a Sua Mulher Esta Noite na Pancomédia, Uma

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Visitação, D. Juan e, já agora, no sistema de painéis móveis para o CAV (Pátio da Inquisição, Coimbra). Enquanto nos dispositivos de cena mais complexos, os graus de liberdade são muito amplos e intercam-biáveis, permitindo pela acção da luz variações quase infinitas, a mala-mesa limita-se a uma estrita dualidade de acepções, aberto/fechado, ligado/desligado, mesa ou mala. Mais do que dualidade, isto remete para a ideia de bivalência e digitalidade, quando a ideia poética por trás das máquinas e dis-positivos de cena de JMR é francamente analógica, são máquinas encenadas e low-tech, inteligentes e sensoriais, mas intencionalmente primitivas, que não dispensam (antes procuram) a mão humana e remetem para uma temporalidade própria, que é a do espectáculo 12. “São máquinas um pouco tristes, máquinas intermédias” 13.

NOTAS 1. O termo erudito é aqui obviamente uma provocação, como se houvesse um real construído por diferentes ordens de objectos,

desde a arquitectura de autor até aos meros exercícios técnicos, especulativos ou negligentes que determinam, mais do que

aquela, as cidades e o território. Esta oposição entre a “grande” Arquitectura e a “outra” arquitectura é um dos temas implícitos

no retrato da arquitectura portuguesa presente em Paisagens Invertidas.

2. Expressão que se vulgarizou para a projecto de JMR apresentada ao concurso Rizalita Mecanizzata al Castelo di Rivoli e que

aparece tanto no comentário de Susana Ventura em JMR 92.02 – João Mendes Ribeiro Arquitectura e cenografia, XM, 2003,

como no texto introdutório de Ana Tostões para João Mendes Ribeiro – Obras e projectos, ASA, 2003.

3. Exposição Paisagens Invertidas, promovida pela Ordem dos Arquitectos e apresentada no XXI Congress of World

Architecture em 2002, comissariada por Ana Vaz Milheiro e Jorge Figueira.

4. Jorge Figueira, no debate com Manuel Graça Dias e João Luís Carrilho da Graça no Teatro da Cerca de S. Bernardo,

Coimbra, 15-2-2009, organizado no âmbito da apresentação em Coimbra da exposição Arquitecturas em Palco.

5. V.A., JMR 92.02 – João Mendes Ribeiro Arquitectura e cenografia, XM, 2003.

6. V.A., João Mendes Ribeiro – Obras e projectos, ASA, 2003.

7. V.A., João Mendes Ribeiro – Arquitecturas em Palco / Architectures on Stage, Almedina 2007, pág.102.

8. Idem, pág 88 e 98.

9. Mónica Guerreiro, Olga Roriz, Assírio & Alvim, 2007, pág.190.

10. Olga Roriz, na conferência de apresentação da representação portuguesa na Quadrienal de Praga, Teatro D. Maria II,

4-6-2007.

11.A mala-mesa com 2 bancos OR na sua acepção enquanto produto comercial é editada e representada pela marca ZTDA.

12. João Mendes Ribeiro: “Os registos da realidade inscritos no cenário correspondem, normalmente, a um registo temporal

e deliberadamente neutro. Esta neutralidade permite reforçar a ideia de que a representação se centra entre o passado que

todos carregam e o presente do acto teatral”, in Arquitecturas em Palco / Architectures on Stage, 2007, pág.98.

13. Jorge Figueira, Coimbra, 15-2-2009. Diz Jorge Figueira: “O que é interessante no trabalho de JMR é o seu carácter

intermédio. [os objectos de JMR] não são completamente figura e não são completamente fundo. Não são neutrais, nem

disputam a cena. São para-arquitecturas, objectos intermédios.”

14. Arquitecturas em Palco / Architectures on Stage, 2007, pág 101.

15. Referência à exposição Arquitectura: Portugal Fora de Portuga, comissariada por Ricardo Carvalho, de 9 de Março a 9

de Abril na Galeria AEDES-Pfefferberg, Christinenstrasse 18-19, Berlim.

Voltemos à mala e tentemos decifrar a sua personalidade profunda. Mesas desmontáveis sempre existiram e existirão sempre, mas o que suscita todo o significado poético não é tanto a sua portabilidade, mas a sua transmutação numa mala. Fase e oposição de fase: o objecto simbólico da transitoriedade versus o objecto simbólico da convivialidade e da estabilidade. Não me esqueço que a mesa nasceu para um espectáculo sobre “o pulsar do povo português” 14, país de partidas e de “odes marítimas” em que as relações se con-tinuam a fazer teimosamente à mesa. Andamos assim à volta de um “objecto fetiche”, do símbolo de um autor e da metáfora de um país. E se, numa altura em que se volta a falar da internacional-ização da arquitectura portuguesa 15, a contem-poraneidade fosse uma mala de contraplacado?

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NOTAS SOBRE PROJECTOS, ESPAÇOS,

VIVÊNCIASLIZÁ RAMALHO E ARTUR REBELO

«...os espaços multiplicaram-se, fragmentaram-se e diversificaram-se.

Existem de todos os tamanhos e de todas as espécies, para todos os usos e para todas as funções. Viver, é passar de um espaço para outro, tentando o

mais possível não esbarrar.» Georges Perec

PAISAGEM, ENCONTRO, REFERÊNCIA

Já fora de Lisboa, num desvio no caminho, e sem procurarmos nada em concreto, demos com um des-campado e duas barracas. Nesse vazio de vegetação, um pai tinha alinhado computadores obsoletos e televisores velhos. Estes formavam uma estação de trabalho com 5 postos, sem possível ligação à cor-rente eléctrica, para os seus filhos brincarem.

Erraticamente, noutro desvio, encontramos um «a» minúsculo à beira da estrada, na realidade uma peça industrial, ali abandonada. Um «a» verdadeiramente gigante para quem compõe dia-riamente «a»s, com cerca de 9 pontos para texto corrido. Também ele no meio do nada e à beira da estrada, inesperado naquele espaço, um volume contornável, escalável, imponente e bruto.

Noutras pesquisas tivemos igual sorte nos acha-dos. Como o que aconteceu numa incursão à morgue de um conhecido hospital nacional. Percor-rendo os seus corredores sombrios, entrámos numa das mais sinistras câmaras. Definindo a parede, um quadro de giz pregado para o registo da autópsia e, suspensos, um crucifixo e uma serra eléctrica.

É nestas paisagens, nem sempre descampa-das, que encontramos perguntas e respostas para muitos dos projectos que desenvolvemos. São para nós deliciosos espaços, contentores ocupados que nos alimentam num diálogo entre vernacular, insólito, desordem e rigor, grelha, estrutura. Espaços e experiências que contaminam os nossos projectos e a nossa vida. Espaços habitados, interpretados, acasos, levaram-nos a encontrar preciosidades que coleccionamos quando a escala, o material e a propriedade o permitem.

TIPOGRAFIA, MATÉRIA, TEXTURA

Os projectos constroem-se sobre diálogos per-manentes que reenviam sistematicamente ao ol-har crítico do outro. Com o conteúdo do projecto como ponto de partida, procuramos traduções com diferentes doses de interpretação, racio-nalidade e intuição. A envolvência impregna o nosso trabalho, opera associações e por vezes faz-nos integrar realidades e objectos, encon-tros na vida e no projecto, intencionais ou fru-

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tos do acaso. Coisas coleccionadas e analisadas, objectos descontextualizados, transformados, ajustados, desviados, alavancas de uma nova abordagem. Procuramos por vezes conferir ma-terialidade à tipografia, a matéria dos espaços e dos objectos que nos rodeiam.

No cartaz desenhado para a peça de teatro Molly Bloom de James Joyce, utilizamos tipo-grafia recolhida em diversos tecidos. Recor-remos à textura e à forma das letras bordadas para conferir volume às palavras que jorram do interior de Molly.

Esta materialidade foi também explorada na série de cartazes desenvolvidos para a divul-gação da exposição Reunião de Obra 1, como derivação do conceito do projecto. Com en-foque na importância da passagem do projec-to à execução, a tradução visual do evento no cartaz passou pela utilização dos materiais de construção e o desenho do projecto. Tratan-do-se de uma série, fez-se o levantamento sistemático de materiais representativos de cada Reunião de Obra 2, com os quais se pro-curou construir texto.

Na instalação que concebemos para a fachada da Ermida Nossa Senhora da Conceição 3, agora transformada numa pequena galeria, as letras ganham textura; aqui, a tipografia não sugere apenas volume – ela é de facto tridimensional. O conceito desta intervenção centrou-se na anterior função daquele espaço, que passou de local de culto a galeria. Cobrimos a parede da fachada com expressões características de uma oralidade tão religiosa quanto quo-tidiana, evocações nem sempre conscientes de uma divindade omnisciente e omnipresente. Através desta intervenção, tanto expressões como divindade regressam ao local onde antes convergiram, agora no seu imperecível muro. O acabamento do texto composto no tipo de letra Knockout 4 tem a mesma materialidade da fachada (pintada de branco para o efeito), dando a sensação que o texto, como que em-purrado do interior do templo, surge da capela para a rua.

ESCALA, REPRODUÇÃO, PROJECTO TÉCNICO A reprodução de projectos de arquitectura em formatos mais pequenos (como acontece nas publicações) obriga a uma simplificação e um re-dimensionamento das espessuras das linhas.

O desenho técnico do projecto reproduzido num livro chega a sofrer reduções na ordem dos seiscentos por cento. O tratamento do desenho implica que o traço mais fino tenha, para im-pressão em offset, pelo menos 0.5 pontos, indo até aos 0.4 se for computer to plate 5. No processo de impressão serigráfica, utilizado para os car-tazes de rua, a linha mais fina não poderá ter me-nos de 0,71 pontos.

No catálogo que acompanhava a exposição de Raoul De Keyser 6 ref lectimos de uma forma mais incisiva sobre como poderíamos manter uma relação mais próxima entre a real varia-ção das proporções das obras reproduzidas ao longo desta publicação. A amplitude de ta-manhos e escalas entre elas impedia uma óbvia redução proporcional. A solução encontrada assentou num agrupamento de obras de acor-do com a sua dimensão, tendo cada conjunto uma redução correspondente. Na capa, um pormenor de uma das pinturas é apresentado à escala real.

Noutros casos, como no cartaz Boca 7, procu-rando um certo efeito de estranheza e simulta-neamente de proximidade, ampliámos aproxima-damente novecentos por cento a imagem de duas bocas tocando-se levemente. Tanto o conteúdo, como a escala da imagem, reforçaram os diálogos estabelecidos entre esta e a cidade nas paredes, tapumes e janelas cimentadas onde o cartaz foi afixado. Aqui, é o contexto que, por oposição, acrescenta significado à imagem.

LETRA, SIGNO, EDIFÍCIO

Adrian Frutiger refere frequentemente a proximi-dade existente entre a arquitectura e a tipogra-fia. No prefácio do livro sobre a obra do arquitecto Paul Andreu 8, Frutiger menciona esse tema como recorrente na colaboração de ambos para o pro-jecto do Aeroporto de Charles de Gaulle. O seu é

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apenas um exemplo da linguagem comum entre tipógrafos e arquitectos; como refere Félix Studi-nka 9, ambos falam sobre grelhas e estratificação, proporção e estabilidade visível, e como organi-zar o preto e o branco.

Foi também essa proximidade que contribuiu para um I Love Távora inteiramente tipográfico. O evento que publicitou devia o seu nome ao próprio arquitecto Fernando Távora que, enquanto docen-te, concebeu uma t-shirt com estas palavras para que os seus alunos e outros interessados a adqui-rissem. No cartaz, recorremos a caracteres e out-ras peças tipográficas que, como se de edifícios se tratassem, procuram evocar um plano urbanístico onde se pode também ler um coração.

No desenvolvimento de símbolos para identi-dades visuais para arquitectura, tivemos projec-tos em que utilizamos referências ao edifício. Por mera coincidência, dois deles desenhados pelo arquitecto Álvaro Siza: o Pavilhão de Por-tugal, para a Trienal de Arquitectura de Lisboa e o Conjunto Habitacional da Bouça no Porto, para o Atelier da Bouça. Na Trienal, partimos da forma do edifício sendo que durante o processo de investigação experimentamos uma aproxima-ção que traduzisse de forma mais literal a «pala» do Pavilhão de Portugal. Contudo, uma maior abstracção revelou-se mais eficaz: a evocação à existência da pala é feita através de um reforço ao braço do «T», conferindo mais carácter ao sím-bolo. A forma é um híbrido – parte letra, parte edifício – que nasce de uma sugestão da forma do Pavilhão ao integrar igualmente as letras «T» e «L» de Trienal de Lisboa.

A problemática da representação de um edifício em projectos de identidade visual tem particular interesse no caso do Centre Georges Pompidou 10. O símbolo da instituição, inspirado na fachada do edifício onde se destacam as escadas mecâni-cas, foi interpretado em 1977 por Jean Widmer. A primeira proposta apresentada – e recusada – não traduzia literalmente os pisos existentes, procu-rando um equilíbrio próprio. A forma inicial foi então substituída por uma versão menos abstracta do símbolo, reflectindo os 5 pisos reais do edifício.

PERCURSO, INVENTÁRIO, CARTOGRAFIA A nossa foi a penúltima de uma série de onze intervenções no edifício da Casa da Música re-alizadas por designers, arquitectos e artistas portugueses 11. Não incidiu numa das suas salas em particular, mas concentrou-se nos vários espaços e percursos do edifício. Iniciámos duas análises distintas: por um lado, procurámos trajectórias e percursos; por outro, quisemos encontrar uma apreciação emocional das diver-sas salas por parte dos seus visitantes.

Questionámos os trajectos usuais, propondo novas formas de descobrir estes espaços, or-ganizados por ordem alfabética, escala, lota-ção, cor... Inventariámos, classificámos, con-textualizámos; estabelecemos relações entre construído e o habitado. Cartografámos os seus conteúdos e as experiências que propor-cionaram aos seus visitantes, representadas de diversas formas em séries inacabadas de «par-tituras» de dados. Os dados recolhidos foram apresentados sob forma de um livro aberto em cada degrau da escadaria norte da Casa da Música. Parte do conteúdo de cada dupla pá-gina contaminava as paredes e listava as pala-vras obtidas, em questionários aos visitantes 12, para caracterizar cada um dos espaços.

EDIFÍCIO, SIGNO, INTERSECÇÃO Há edifícios que se deixam contaminar literal-mente pelo seu conteúdo: o Pato de Long Island 13 é o ex-libris dessa categoria. Outros podem representar para os designers um espaço incon-tornável na procura de uma marca gráfica, como explica Stefan Sagmeister sobre a imagem que desenvolveu para a Casa da Música 14. Este refere que, por mais que se tentasse afastar do edifício de Koolhaas, todos os seus desenvolvimentos lhe pareciam arbitrários face à forma única deste ed-ifício. Em oposição, a sede da Citröen nos Cam-pos Elísios, projectada por Manuelle Gautrand, é sugerida pela marca gráfica originalmente desen-hada por André Citröen. Em alguns casos, a inter-venção gráfica num espaço pode ser tão essencial que, sem ela, todo o edifício que o proporciona

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NOTAS 1. Série de exposições realizadas pela Ordem dos Arquitectos Secção Regional Norte.

2. À excepção da Reunião de Obra nº1, por se tratar do primeiro evento, recorremos a um elemento generalista.

3. Situada na Travessa Marta Pinto em Lisboa, reabriu como galeria em 2008.

4. Família de tipos desenhada por Hoefler & Frere Jones.

5. Tecnologia de impressão mais moderna que permite passar directamente de um ficheiro criado digitalmente para a

impressão da chapa de offset.

6. LOOCK, Ulrich, Raoul De Keyser, Fundação de Serralves, 2005.

7. Cartaz desenhado em 2004 para o Teatro Bruto, com base numa fotografia original de Marco Maurício.

8. ANDREU, Paul; JODIDIO, Philip; FRUTIGER, Adrian, «A Building, a typeface», Paul Andreu, Architect, Birkhäuser, 2004, 6-7.

9. STUDINKA, Félix, Poster Collection: Typotecture, Typography as Architectural Imagery. Museum fur Gestaltung

Zurich & Lars Muller Publishers, 2002, 5.

10. SMET, Catherine de «Histoire d’un rectangle rayé», Les Cahiers du Musée national d’art moderne, Édition du Centre

Georges Pompidou, 2004, 4-23.

11. Nuno Grande, Ricardo Jacinto, Flúor, Pedro Bandeira, Luísa Cunha, Pedrita, as*, Fernanda Fragateiro, Miguel Palma e

Filipe Alarcão são os autores das outras intervenções.

12. Questionários realizados entre Setembro e Outubro 2007, a 106 visitantes. Foram analisados os seguintes espaços:

Cybermúsica; Entrada; Sala 2; Sala Laranja; Sala Renascença; Sala Roxa; Sala Suggia; Sala VIP; Terraço.

13. VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; BROWN, Denise Scott – Aprendiendo de Las Vegas: El simbolismo olvidado de la

forma arquitectónica. 2ª ed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1982.

14. RAMALHO, Lizá, «Un logo, des locaux», Étapes França nº148, 2007, 52-56.

15. LUPTON, Ellen; MILLER, J. Abbott , «Critical Wayfinding», The Edge of the Millennium,. ed. Susan Yelavich. New York:

Whitney Library of Design, 1993, 220-232.

16. KYES, Zak; OWENS, Mark – Forms of Inquiry: The Architecture of Critical Graphic Design. London: Architectural

Association Publications, 2007.

17. Entre os projectos apresentados, destacamos a interpretação gráfica da capela de Notre Dame du Haut de Le

Corbusier, por Karel Martens e David Bennewith para a Architectural Association emLondres.

perderia; um exemplo disso é a Printshop Veen-man, projectada por Neutelings Riedijk Archi-tects e com intervenção gráfica de Karel Martens.

Tradicionalmente, o designer de comunica-ção – como refere Ellen Lupton 15 – enquadra os espaços, sítios e objectos e torna-os legíveis, funcionando como mediador. A contribuição actual à ref lexão do espaço e da arquitectura por parte de alguns designers esteve patente na exposição Forms of Inquiry 16, cuja itinerân-cia teve início na Architectural Association em Londres em Outubro de 2007. Entre outras

coisas, esta exposição apresentou explorações críticas de vários designers face às problemáti-cas do espaço e da sua representação.17 Apesar de desenharmos para diferentes funções, par-tilhamos a mesma linguagem. É essa linguagem comum que torna possível uma colaboração próxima e um diálogo profundo entre design-ers e arquitectos. É dela que nasce a discussão sobre o interesse mútuo das duas profissões. E é nos territórios partilhados, assim como nas intersecções do espaço urbano, que juntos abrimos novas perspectivas.

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Mesmo aparentemente distantes, o pensamento cético e o design possuem uma relação estreita. De modo que o ceticismo e seu oposto, o dogma-tismo, estão presentes cotidianamente no modo de agir e pensar dos profissionais ligados à ativi-dade de design.

A proposta do artigo é confrontar o design, em suas principais perspectivas, com as bases do pensamento cético, a fim de estabelecer uma relação entre as abordagens de design e suas pos-síveis bases epistemológicas.

Com o passar dos anos, desde sua fundação, o design passou por transformações que al-teraram seu discurso e objetivo inicial, que, em certa medida, reflete seu amadurecimento e seu reconhecimento social, principalmente ao de-ixar de ser uma vanguarda, ou um projeto alter-nativo, e passar a ser absorvido pela empresas e pela sociedade, através da consolidação de um mercado de design.

Essa discussão tem como embasamento a análise de Nuno Portas (1993), sobre as três prin-cipais correntes ou tendências em Design, que,

DESIGNERS: ENTRE CÉTICOS

E DOGMÁTICOS DIOGO DANIEL CASAS

segundo ele, norteiam a formação e a visão da maioria dos profissionais da área sobre a ativi-dade e, consequentemente, as ações projetuais e as políticas desenvolvidas pelos mesmos.

Como suporte e complementação a abordagem de Portas, utilizaremos a reflexão crítica de Nor-berto Chaves (2001) sobre os discursos assumi-dos pelo design no decorrer de sua trajetória, polarizados e contrastados como discurso dos fundadores e discurso do mercado, mas também se referindo a uma terceira corrente pós-moder-na, que, nesse ponto, se diferencia de Portas, e assim expande as perspectivas sobre os rumos da atividade de design.

O pensamento cético, em síntese, pode ser en-carado como a suspensão do juízo, sem aceitar ou negar uma teoria, o que demonstra seu caráter de investigação permanente. O cético pirrônico, conforme Sexto Empírico, também pode propor teorias, mas, no entanto, a diferença entre ele e o dogmático, é que o cético suspende o juízo e con-tinua investigando. Conforme o Dicionário Bási-co de Filosofia (JAPIASSÚ, 1990), por oposição ao

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ceticismo, o dogmatismo é a atitude que consiste em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas e se-guras. Na concepção cética geral, portanto, a es-peculação filosófica daria lugar ao senso comum e à vida prática.

Considerando apenas o que é aceite no senso comum entre os autores de design utiliza-dos que, como vimos, é uma das essências do pensamento cético, a ênfase se dará, então, na abordagem funcionalista relacionada com o discurso dos fundadores da teoria do design, e a abordagem do Styling, adotada pelos agentes do mercado. Essa duas abordagens são aproxi-madas do pensamento cético, através de seus principais expoentes - como Sexto Empírico, Descartes, Hume, Kant entre outros-, e, assim, buscar estabelecer relações epistemológicas das duas principais correntes de design. As outras perspectivas também são indicadas no texto, como concepção sistêmica ou ecológica (Portas) e a pós-moderna (Chaves), porém, sem o mesmo destaque das duas anteriores, por não serem consensuais entre os autores.

Em suma, o presente estudo aborda também a transformação do design no decorrer dos tem-pos, de sua origem até a atualidade, traçando um paralelo com o pensamento cético. Busca contra-star as principais correntes de design, desde a origem funcionalista e mais dogmática, passan-do pelo Styling e pelo pragmatismo em relação ao êxito de mercado. Encerra-se com as correntes mais recentes, como a pós-moderna e o design sistêmico, que, de certa forma, se caracterizam, respectivamente, como uma postura mais cética e mais dogmática em relação ao design.

OS PENSAMENTOS CÉTICO E DOGMÁTICO NO DESIGN Para Lobach (2001), o design pode ser compreendi-do, no sentido amplo, como a concretização de uma ideia em forma de projetos. Para o cético, o conheci-mento do real é impossível à razão humana. Portan-to, o homem deve renunciar à certeza, suspender seu juízo sobre as coisas e submeter toda afirmação a uma dúvida constante. E ser dogmático, consiste

em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas e seguras.

Uma aplicação rápida dos pensamentos acima, em relação aos projetos do design, é o exemplo do walkman, representado pela Figura 01. Ele demonstra o potencial do design no surgimento de novos produtos, utilizando-se do ceticismo metodológico para refutar propostas de produtos que não “resolvem o problema”. Como resultado desse processo, tem-se um produto que resistiu a todas as dúvidas impostas sobre suas quali-dades, sobre o atendimento das necessidades do usuário, aos aspectos técnicos de sua produção e comercialização e, mais recentemente, até mes-mo sobre o seu descarte.

De certa forma, portanto, o designer é cético com relação ao fato de ter alcançado defini-tivamente a melhor forma para uma determi-nada função. Pois, como no exemplo anterior (fig.01), os produtos sempre se transformam para atender uma mesma função, quando não é a própria a função que se altera. Por outro lado, o designer também precisa ser pontualmente dogmático, porque cada produto é uma espé-cie de teoria, ou enunciado, que corresponde a uma resposta considerada verdadeira com rela-ção ao atendimento da necessidade proposta. Nesse sentido, em certos casos, o designer as-sume o pragmatismo dos céticos, considerando certos procedimentos e produtos úteis, apesar de não serem necessariamente “verdadeiros”. Em outros casos, entretanto, assume o dogma-tismo ao mostrar-se convencido de que design é ciência capaz de encontrar a verdade.

Conforme Burdek (1999), todo objeto de design há de ser entendido como resultado de um pro-cesso de desenvolvimento que sempre reflete nas condições sob as quais surgiu: o contexto históri-co, social e cultural, as limitações da técnica e da produção, os requisitos ergonômicos, ecológicos, os interesses econômicos, políticos e até as aspi-rações artísticas.

A partir disso, podemos considerar as constan-tes mudanças sócio-culturais que, com o pas-sar dos anos, mudam as necessidades, gerando

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demandas por novas funções para produtos já existentes e, também, por novos produtos. O designer, como atuante fundamental no sistema de produção e consumo, deve estar atento às mu-danças, visando aprimorar e adequar o sistema sócio-produtivo.

RELAÇÕES ENTRE DESIGN E CETICISMO O ceticismo inspira a atitude crítica e ques-tionadora da filosofia contemporânea, como a relatividade do conhecimento e dos limites da razão e da ciência, que a epistemologia atual trata. Desde a antiguidade, existem os filósofos céticos e os filósofos dogmáticos. Os primeiros se recusam a crer nas verdades estabelecidas, enquanto os segundos defendem as verdades de sua “escola”. No Design, dentro das suas diver-sas abordagens e “escolas”, a atitude cética e a dogmática pode ser utilizada como extremos de uma escala para posicionar o comportamento, ou mesmo o discurso dos profissionais da área. Como vimos, a relação entre design e ceticismo é clara, ao observarmos o desenvolvimento dos produtos, mas, a partir de agora, passaremos a confrontar as diversas “escolas de pensamento”, ou “discursos” de design, com o pensamento cé-tico e a epistemologia.

O DESIGNER FUNCIONALISTA E O DISCURSO DOS FUN-

DADORES — Azevedo (1998) afirma que, para compreender melhor a atividade do design, é preciso observar os movimentos que, ao pas-sar do tempo, incentivaram o homem na busca por novas formas, materiais e métodos. Mas, em essência, a idéia de design surge no mundo quando o homem começa fazer suas ferramentas e objetos. Principalmente antes do século XX, a confecção de um objeto era função do artesão. Mas, com o surgimento da indústria, tornou-se necessário aproximar a atividade do artesão e da máquina, pois era preciso adaptar o processo de construção do objeto, de modo a facilitar sua produção pela máquina. Assim, a partir do mod-elo industrial de produção, o processo de con-cepção do objeto passou a ser entendido como design, ou mesmo, como desenho industrial.

Com origens históricas na Europa Central do primeiro pós-guerra, sobretudo, lançado pela escola alemã Bauhaus, o design assumia um dis-curso essencialmente funcionalista, na medida em que a criação da forma dos produtos deveria traduzir a constituição lógica da produção do ob-jeto e, sobretudo, a lógica da sua função – da uti-lidade, do uso – a que se destinava. O que levou ao desenvolvimento de múltiplos estudos – como a ergonomia - da adaptação dos utensílios e espa-ços ao homem (PORTAS, 1993).

Isso porque, segundo Portas (1993), o designer honestamente funcionalista deve racionalizar a concepção do produto para, acima de tudo, torná-lo mais útil e adaptado, melhor manipu-lável pelo usuário, cujas atividades ou neces-sidades se vão conhecendo pela via científica, e não por questões de marketing, preocupando-se principalmente com o uso imediato do objeto e em melhorar sua utilidade dentro das condições econômicas e técnicas aceitáveis pela indústria.

Conforme Chaves (2001), este é o estágio inicial da emergência do design, aparecendo como uma alternativa a todas as formas prévias de definição da forma dos produtos de uso e do habitat. Em seguida, o design foi englobando praticamente a totalidade da produção material. Dessa forma, o design veio ser a linguagem e a expressão da própria revolução industrial.

Ainda segundo Chaves (2001), o discurso fun-cionalista, não somente segue vivo, como em alguns casos é o único possível, pois, para certos problemas, possui uma eficácia incontestável.  Porém, a relação imaginária que os designers estabeleciam com o “Usuário”, como este sendo uma espécie de ser supremo imaginado a par-tir de um modelo de “Usuário” concebido como imagem e semelhança da utopia intelectual do setor. Este “Usuário” era um ente anatômico e fisiológico carregado de necessidades práticas e objetivas, privado de história e pré-disposições culturais socialmente adquiridas, que não coin-cidia com nenhum setor concreto da população.

Em suma, uma concepção de usuário demasia-damente racionalizada e teórica, idealizada

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a partir de médias antropométricas e neces-sidades fisiológicas, mas que, por muitas vezes, desconsidera aspectos emocionais, psicológicos, culturais e simbólicos. Aspectos esses, que são marcantes no Styling, escola de design subse-qüente nesta análise, mas para o design funcio-nalista tornou-se uma limitação dentro da lógica de mercado que se consolida a partir do segundo pós-guerra.

De certo modo, a corrente funcionalista é que mais se aproxima da postura puramente dog-mática, com fortes influências epistemológicas do Racionalismo e do Positivismo. Isso, porque a ênfase na racionalização do produto, e até mesmo do próprio usuário, aproxima-se do Raciona-lismo, que tem na razão o fundamento de todo o conhecimento possível, e, portanto, somente ela é capaz de conhecer o real. Nesse ponto, em relação ao pensamento cético, a perspectiva funcionalista do design aproxima-se do ceticismo metodológico de Descartes, que, segundo Dutra (2005), é voltado para a compreensão do ceticismo como atitude de duvidar de nossas opin-iões - Cogito, ergo sum -, confiando que aquelas que realmente forem expressão da “verdade” irão resistir a qualquer dúvida e, assim, defender opiniões, teorias e teses ou, conforme os céticos, estabelecer dogmas.

A preferência pela via científica de aquisição de informações corresponde à abordagem Positiv-ista, que pregava a cientifização do pensamento e dos estudos humanos, para obter resultados verdadeiros: claros, objetivos e completamente corretos. O fundador desse movimento, Auguste Comte (1798-1857), acreditava num ideal de neutralidade, isto é, na separação entre o pes-

quisador/autor e seu objeto de pesquisa. A ciên-cia retrataria de forma neutra e clara uma dada realidade a partir de seus fatos, sem recorrer a opiniões e julgamentos do pesquisador.

STYLING NO DISCURSO DO MERCADO — Conforme a análise de Chaves (2001), com o tempo, o design torna-se um instrumento indispensável da socie-dade contemporânea, deixa de ser uma proposta e torna-se uma cultura efetiva, com um mercado concreto, onde existem produtores, distribuidores e consumidores de design. Este metabolismo so-cial da disciplina definiu uma estrutura e conteú-dos bastante distintos dos iniciais. Enquanto, no início, os agentes eram a própria vanguarda da ar-

quitetura e do design, como agentes econômicos diretos, posteriormente, o design é desenvolvido por empresas, corporações e organismos vinculados com o desen-volvimento dos mercados. Então, o discurso do design passa das mãos das vanguar-das às mãos das empresas e, logo, surgem novas razões, novos princípios e novos sentidos para a disciplina.

Este novo discurso de design, segundo Portas (1993), ficou na história com o nome de Styling, com origem na América do Norte, no período entre guerras e, no pós-guerra, na Europa e no Japão, e

corresponde à imagem mais comum que se tem de design na atualidade, que é “a do embeleza-mento de um dado produto para o tonar mais atrativo em termos de venda, ou seja, como fator adicional de competitividade comercial” (POR-TAS, 1993, p.233).

O discurso do Styling quase não tem nenhuma palavra em comum com o discurso inicial. Se-gundo Chaves (2001), neste contexto, a socie-dade virou “mercado”, o usuário tornou-se “con-

A PREFERÊNCIA PELA VIA CIENTÍFICA DE AQUISIÇÃO

DE INFORMAÇÕES CORRESPONDE À

ABORDAGEM POSITIVISTA, QUE PREGAVA A

CIENTIFIZAÇÃO DO PENSAMENTO E DOS ESTUDOS HUMANOS,

PARA OBTER RESULTADOS VERDADEIROS:

CLAROS, OBJETIVOS E COMPLETAMENTE CORRETOS.

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sumidor”, a qualidade de design tornou-se “valor agregado”, produto é “mercadoria”, satisfação de necessidades de uso é “motivação de compra”, racionalidade é “competitividade”. O racional é aquilo que consegue resolver o problema de ingressar no mercado. Esta é a racionalidade da sociedade atual.

O racional não é produzir algo intrinsecamente bom, mas produzir algo que funcione na lógica do mercado. É o discurso da gestão empresarial do design, o discurso do marketing, o discurso pro-mocional das instituições de apoio e desenvolvi-mento da competitividade das empresas. É o que Chaves (2001) chamou de “razão pragmática”, em contraste com os fundadores, que foi por ele rotu-lada como “razão ingênua”, em virtude de excesso de crença na razão e na neutralidade da ciência.

Sendo que o Pragmatismo considera o conhe-cimento humano com um caráter utilitário e op-eracional, isto conduz ao tema da ação, de nossa atuação no mundo, das consequências que ela produz e sua relação com o próprio conhecimen-to. De forma geral, o Pragmatismo americano, principalmente de Dewey, se concentra na tese de que o significado de um conceito reside em sua consequências, e não na forma como o ideal-izamos (DUTRA, 2005).

Esse pragmatismo, de certo modo, aproxima-se do ceticismo pirrônico, que consiste em seguir as manifestações da natureza, os cos-tumes da sociedade em que se vive, isso con-duz também a adotar o significado comum dos termos, sem inquirir a todo o momento sobre o significado real dos termos. O significado que interessa é aquele que é eficiente na comuni-cação e entendimento dos falantes (DUTRA, 2005, p.36-37).

Sob o ponto de vista do Styling, o design “é o in-strumento não da substituição de um produto por outro substancialmente melhor, mas sim da per-suasão do consumidor para substituir os produtos que usa por outros, apenas porque o aspecto é dife-rente” (PORTAS, 1993, p.234).

Volta-se a atenção, portanto, para parâmetros psicológicos principalmente através de estudos

sobre o comportamento do consumidor. Isso propõe no campo filosófico uma retomada do ce-ticismo de David Hume (1711-1776), para quem nossas crenças ou opiniões sobre relações de cau-sa e efeito não são legítimas, no sentido de pos-suírem força de argumento, mas são inevitáveis, em virtude de nossa constituição psicológica (DUTRA, 2005, p.34).

É preciso destacar, ainda, as correntes an-tagónicas do behavorismo e do mentalismo. Para o Behavorismo, o comportamento do hu-mano é regido pelo ambiente, seja esse natu-ral ou social, que abriga os indivíduos huma-nos ou animais. O Mentalismo, em oposição, propõe o comportamento do homem como produto dos processos mentais prévios à ação e internos ao indivíduo, como defende a psicolo-gia cognitiva contemporânea (DUTRA, 2005).   O Mentalismo apoia-se em pontos do ceticismo filosófico, ou melhor, na corrente intelectual-ista, como na filosofia de Kant, que reconhecia a possibilidade de existência dos objetos, ou da coisa-em-si, mas considerava que nós apenas al-cançamos o “fenômeno”, ou seja, o objeto da nossa experiência, decorrente da relação da coisa-em-si, com a nossa estrutura de sensibilidade.

A restrição do objeto ao fenômeno reforça o ceticismo grego, com Agripa e, principalmente, com Enesidemo, que “esforçaram-se para mostrar que os sentidos somente nos revelam a aparência e não a essência dos objetos, em outros termos, que as qualidade sensíveis não pertencem pro-priamente ao objeto, mas apenas impressões sen-tidas pelo sujeito” (VERDAN, 1998, p.97).

O Styling, como corrente de design, apresenta, em suas bases, pontos de convergência com o pensamento cético e o pragmatismo, a partir do momento que desloca a atenção do objeto em si, para o fenômeno do consumo, ou seja, seu inter-esse principal não é configurar o melhor produto, mais sim, aquilo que apresenta os melhores resul-tados em termos de vendas no mercado.

Conforme Chaves (2001, p.27), compreende-se que o empresário deve ser mais que um mero “fabricante”, porque precisa ser um excelente

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comunicador. Deve vender, independente do que e onde, pois o produto, como objeto con-creto, tende a ter sua importância econômica diminuída em relação ao universo imaginário que o rodeia. Nessas condições, os designers tornam-se as “estrelas”, definindo-se pela sua capacidade de inovação estética e simbólica, porque o que vale agora é a incorporação de um elemento de inovação, que proponha um acontecimento atraente para o mercado, sem necessariamente buscar a solução de prob-lemas relacionados às necessidades objetivas do usuário.

O DESIGNER SISTÊMICO E O PÓS-MODERNO — Nuno Portas (1993) apresenta a corrente do design sistêmico - ou ecológico - como terceira principal corrente de pensamento em design. Assim, di-verge da análise crítica feita por Noberto Chaves (2001), que indica como alternativa a corrente pós-moderna em design que, segundo ele, rep-resenta o estágio atual do desenvolvimento cul-tural do Ocidente.

Para Chaves (2001), o design pós-moderno combina valores das elites culturais com deman-das irrenunciáveis do mercado, retendo os va-lores “universais” da disciplina articulados com a cultura do consumo. Para o autor, há uma “razão cínica”, com atributos como irracionalismo, for-malismo, amoralismo, apoliticismo, individu-alismo, narcisismo, oportunismo, entre outros. Isso provocou a hipertrofia da inovação formal que, geralmente, é observada nas áreas lentas ou paralisadas do mercado, onde não é mais possível introduzir inovações radicais.

De certa forma, o design pós-moderno tem grande proximidade com a corrente Styling e, consequentemente, tende a se posicionar mais próxima da atitude cética, do que a corrente do design sistêmico. Segundo Portas (1993), o de-sign sistêmico resulta do alargamento da visão do designer funcionalista. Desse modo, reconecta o design a uma perspectiva que transcende a lógica do produtor e do consumidor ou usuário, pois não se limita ao objeto em si, repensado-o como componente de sistemas mais vastos.

Nessa linha, Manzini (2005) argumenta que o design assume uma abordagem sistêmica, quando a tarefa de desenvolvimento de um novo produto torna-se o ato de projetar o ci-clo de vida inteiro do sistema-produto, o que inclui a pré-produção, produção, distribuição, uso e descarte.

Em última análise, entretanto, a corrente do de-sign sistêmico tem uma proximidade maior com a atitude dogmática e, assim como o design funcio-nalista, apresenta uma argumentação baseada na racionalizaçao do objeto, mesmo reconhe-cendo que “a simples racionalização tecnológica e formal pode ter na base uma irracionalidade de necessidades do ponto de vista da economia do país, dos interesses reais (não fictícios) dos con-sumidores ou do equilíbrio ecológico ou ambien-tal” (PORTAS, 1993, p.238).

A Teoria Geral de Sistemas, uma das principais bases científicas da corrente do design sistêmico, propõe um programa ao mesmo tempo científico e filosófico que, sem abandonar o rigor das ciências clássicas, exige a criação ou o aperfeiçoamento de uma linguagem própria, com esquemas teóri-cos particulares e, até mesmo, de uma particular “visão do mundo”. (JAPIASSÚ, 1990).

Neste ponto, cabe destacar outra contribuição do ceticismo de David Hume para a filosofia e para a ciência, considerando também sua contri-buição para o design, cujo objetivo é determinar os limites da razão lógica e definir o domínio que lhe é próprio, a fim de evitar que ela se perca em problemas insolúveis (VERDAN, 2005). Essa é uma contribuição fundamental, principalmente, para a abordagem sistêmica, no que consiste em definir os limites do sistema-produto. Pois, em última instância, um produto se relaciona com praticamente todos os outros sistemas existentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tradição do design clássico-positivista é in-compatível com o ceticismo moral ou filosófico, porque é alinhada ao dogmatismo científico-pos-itivista. A origem teórica do design é idealista/racionalista e sua prática é funcionalista, como

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decorrência direta da Revolução Industrial, que foi um fenômeno material e social decorrente da matriz ideológica positivista.

Na cultura ocidental, entretanto, o positiv-ismo foi superado pelo liberalismo, promovendo a superação do racionalismo pelo pragmatismo, que uma das expressões possíveis do ceticismo. O percurso que destituiu o racionalismo dando lugar ao pragmatismo foi expresso e percebido na evolução do design no Ocidente.

O imediatismo pragmático, contudo, está sob sus-peição, na medida em que o consumo desenfreado provoca o desperdício dos recursos materiais não renováveis em função da necessidade de renovação simbólica como estratégia de renovação do próprio consumo. Essa situação de calamidade eminente propôs o discurso da sustentabilidade ambiental que envolve o reaproveitamento de matéria prima e a suspensão do abuso sobre os recursos naturais. O design sistêmico, que prevê o planejamento de todo ciclo do produto, da concepção ao des-carte, apresenta-se como a solução possível para garantir a renovação dos recursos de produção e a renovação dos ciclos de consumo, ampli-ando a esfera do consumo simbólico e restring-indo o desperdício de recursos não renováveis. A divisão entre as abordagens do design é, por-tanto, em certa medida, artificial, porque não representa realidades ou categorias totalmente dis-tintas. Essas abordagens diferenciadas assinalam a própria evolução da cultura industrial e pós-indus-trial com relação:

1- A necessidade primeira de atendimento à grande demanda reprimida de consumo de bens industrializados, que vinha como herança da era artesanal;

2- A necessidade posterior de ampliação do consumo, diante da demanda por ampliação dos postos de trabalho e a consequente necessidade de ampliação dos setores produtivos;

3- A necessidade de manutenção e ampliação do consumo e dos postos de trabalho nos setores produtivos, mas sem colocar ainda mais em risco a vida no planeta terra.

O idealismo positivista/racionalista da aborda-gem original foi uma resposta dada à necessidade de se criar uma sociedade industrial que, até então, era inexistente e, portanto, inacessível à experiência, sendo alcançável apenas idealmente ou racionalmente.

O pragmatismo cético, com relação à verdade precedente do projeto sobre a realidade do mercado, como o conjunto de distribuidores e consumidores, decorreu da constatação de que nem tudo que fosse oferecido seria prontamente aceite por uma sociedade já praticamente sacia-da, com relação às demandas objetivas. A visão sistêmica também instaura, por fim, o ceticis-mo, com relação à capacidade da razão clássica em garantir o futuro da sociedade, da cultura e do planeta.

No percurso evolutivo do design, o ceticismo e o dogmatismo expressos entre os profissionais da área pode ser entendido segundo a perspectiva neopirrônica do pensamento cético, que con-sidera ambas as atitudes como comportamento de investigação possíveis, corroborando o ponto de vista mais pragmático, ou seja, adotando a ati-tude que alcance melhores resultados conforme o contexto (DUTRA, 2005), de acordo com os as-pectos econômicos, sociais, culturais e ecológi-cos do momento.

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FICHA TÉCNICA

TÍTULO DESIGN & IDENTIDADE

PESQUISA BRUNO ALMEIDA

1ª EDIÇÃO PORTO, ABRIL 2010

PUBLICADO POR BRUNO ALMEIDA

MORADA RUA FONTE DE BAIXO,4505-686 CALDAS DE SÃO JORGE

ORIENTAÇÃO MÁRIO MOURA

TRABALHO REALIZADO NO ÂMBITO DA DISCIPLINA DESIGN II, FBAUP

WEBSITE WWW.BRUNOALMEIDADESIGN.PT.VU

EMAIL

[email protected]

DESIGN GRÁFICO

BRUNO ALMEIDA

IMPRESSÃO NORCÓPIA

TIRAGEM 1 EXEMPLAR

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