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Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH

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O que é padrão de vida: definição de um objeto para a historiografia do

trabalho.

Nauber Gavski da Silva*

Resumo: A intenção desse trabalho é introduzir o objeto de pesquisa do “padrão de vida” dos

trabalhadores, explorado com maior ênfase em outros contextos historiográficos que não o

brasileiro. São apresentados alguns exemplos dessas abordagens, como o caso estadunidense,

latino-americano, e o clássico debate sobre o caso inglês consolidado nas obras de Thompson

e Hobsbawm, que ainda hoje pauta estudos históricos sobre condições de vida dos

trabalhadores, no qual ficou patente a necessidade de melhorar as ferramentas para a análise

sobre o tipo de vida que as pessoas levavam. A seguir, demonstra-se o percurso do conceito

de padrão de vida no campo da economia a partir dos anos 1960, consolidando-se nos anos

1990 enquanto um novo conceito, chamado de qualidade de vida, e que passa a agregar novos

indicadores para medir o tipo de vida das pessoas, não mais restritos à renda. Em todo caso,

por mais que esta renovação sobre o campo das condições de vida dos trabalhadores tenham

ganho espaço em instituições como a ONU, que passou a comparar a qualidade de vida nos

países a partir do Índice de Desenvolvimento Humano, o padrão de vida parece ainda não ter

se consolidado como objeto historiográfico dos pesquisadores dos mundos do trabalho no

Brasil, salvo uma ou outra exceção. Sugiro que se deva analisar a criação do salário mínimo

entre os anos 1930 e 1940 e acompanhar sua evolução para percebermos a centralidade do

tema na relação entre Estado, patrões e operários nas disputas em torno da economia e da

política.

Palavras-Chaves: Padrão de Vida. Condições de Vida. História do Trabalho.

Abstract: The intention here is to introduce the object of worker’s “standard of living”, much

better studied outside Brazilian historiography. A few examples of this approach are

presented, such as the American, Latin-American and the classic studies about English

context, consolidated in Thompson reviews about the Industrial Revolution (from where we

found out the need to improve our analytic tools to explain the kind of life people used to

have). Then is presented the path followed by that concept in economics from the 1960’s to

* Doutorando em História pela UFRGS, Bolsista CNPq.

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the 1990’s, when it was transformed into a new concept. Now called “life quality”, this notion

embedded indicators to measure the kind of life people had, not anymore restraint to income.

Although this renewed approach had conquered space in institutions such as the United

Nations (comparing life quality among countries through the Human Development Index), the

standard of living seems to be not consolidated as an historical object to worker’s scholars in

Brazil. My suggestion is that we should focus on minimum wage´s creation between 1930’s

and 1940’s. Afterwards, we shall follow its evolution in order to perceive the kernel role

played by the theme in the social relations between State, employers and workers fighting for

political and economical issues.

Keywords: Standard of Living. Life Conditions. Labor History.

Introdução

A intenção desse trabalho é introduzir o objeto de pesquisa do “padrão de vida” dos

trabalhadores, explorado com maior ênfase em outros contextos historiográficos que não o

brasileiro. Inicio com o debate clássico sobre a Revolução Industrial, que tem em Thompson

ainda o referencial para estudos deste tipo. A seguir, demonstro o percurso do conceito de

padrão de vida no campo da economia a partir dos anos 1960, consolidando-se nos anos 1990

enquanto um novo conceito, chamado de qualidade de vida. Pondero ainda os usos

historiográficos do objeto nos Estados Unidos, América-Latina e Brasil. Ao final, sugiro que

se deva analisar a criação do salário mínimo e acompanhar sua evolução para percebermos a

centralidade do tema na relação entre Estado, patrões e operários nas disputas em torno da

economia e da política.

Thompson no Debate Sobre Padrão de Vida da Classe Operária Inglesa

No clássico d’A formação da classe operária inglesa, de 1963, Thompson está

inserido nos debates em torno da “controvérsia em torno do padrão de vida”1. Esse autor

chegou a conclusões sobre a experiência da exploração (baseadas na deterioração das

condições de vida dos trabalhadores na transição do século XVIII para o XIX), que ao lado da

maior opressão política, fora fator determinante de formação da consciência de classe dos 1 THOMPSON, E. P. Exploração. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 32.

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trabalhadores ingleses. Portanto, aí se formaria a classe operária de fato. Thompson resumiu a

polêmica na seguinte pergunta: “o padrão de vida da massa popular subiu ou decaiu entre

1780 e 1830 – ou entre 1800 e 1850?”2.

O debate acadêmico sobre o padrão de vida fora iniciado com a publicação, entre 1913

e 1930, pelo casal de historiadores John Lawrence e Barbara Hammond, de uma obra sobre o

surgimento da classe operária inglesa (The town labourer, 1760-1832) que retomava de certa

forma a abordagem de Engels (The condition of the working class in England in 1844).

Outros historiadores e economistas criticaram a perspectiva dos Hammond, afirmando que o

padrão de vida dos trabalhadores ingleses havia aumentado com o advento da Revolução

Industrial3. Dentre outras respostas às críticas aos Hammond, Eric Hobsbawm propôs o

questionamento dos dados das séries estatísticas levantadas por aqueles críticos,

demonstrando que salários e consumo de produtos foram auferidos a partir de dados

empíricos bastante escassos ou duvidosos, além do fato de que tais autores desconsideraram

alguns fatores importantes como o desemprego4.

Por sua vez, Thompson respondeu aos críticos dos Hammond com o que historiadores

espanhóis chamaram de variante da “qualidade de vida”5. Thompson demonstrou que

trabalhar com a ideia de padrão de vida era complicado porque, se por um lado, salários e

artigos de consumo são mensuráveis em estatísticas, por outro alguns aspectos da vida não

são igualmente ponderáveis, tais como alimentação, moradia, saúde, vida familiar, ócio,

educação, lazer, disciplina e intensidade no trabalho. Enquanto que no “padrão de vida” seria

possível medir quantidades, para compreendermos o “modo de vida” é necessária uma

2 Idem. 3 Os principais debatedores foram Sir John Harold Clapham (The economic history of modern Britain, de 1926), Dorothy George (London life in the eighteenth century, de 1930) e Thomas S. Ashton (Industrial Revolution, de 1948, contando com apoio na temática econômica de Walt Whitman Rostow, autor de Ensays on British economy in the nineteenth century, de 1948, e na sociologia de Neil J. Smelser, autor de Social change in the Industrial Revolution, de 1959). Esses autores julgaram a visão dos Hammond (e de Engels) como “catastrófica/pessimista”. Em boa parte sua crítica se dirigia ao trato dos documentos e das provas. Como proposta, esse grupo de autores concedeu atenção especial a um grupo de fontes quantificáveis, na tentativa de eliminar o “subjetivismo” das fontes qualitativas dos observadores diretos. Este fora o primeiro momento em que o debate sobre a situação de vida dos trabalhadores ganhou peso estritamente dentro dos muros ou próximo à academia. Cf: LOPES, José Sérgio Leite. Anotações em torno do tema “condições de vida” na literatura sobre a classe operária. In: SILVA, Luiz Antonio Machado da (org.). Condições de vida das camadas populares. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. (Debates Urbanos: 6). p. 21-58. 4 HOBSBAWM, Eric. O padrão de vida inglês de 1790 a 1850. In: Os trabalhadores: estudo sobre a história do operariado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 72-112.; ___. O debate do padrão de vida: um pós-escrito. Idem, p. 128-133. 5 AIZPURU, Mikel; RIVERA, Antonio. Los proprietarios del trabajo: las nuevas condiciones de vida. In: Manual de historia social del trabajo. Madrid: Siglo Veinteuno, 1994. p. 81-115.

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descrição, e geralmente avaliação de qualidades6. Feita a crítica no capítulo sobre a

Exploração, Thompson enfatizará ao final do segundo volume de A Formação (em Padrões e

experiências) o estudo de artigos de consumo (como alimentação, vestuário e habitação), da

saúde (mortalidade) e a questão da infância (família), em todo caso, sem alijar da sua análise

o papel das macro-estruturas, como a repartição do produto nacional entre as diversas classes.

Desse modo, a partir da perspectiva (nomeada pelos historiadores espanhóis Aizpuru e

Rivera) da “qualidade de vida”, o historiador inglês se preocupou em apresentar uma análise

balizada por procedimentos metodológicos adequados àqueles aspectos, que podem assim ser

resumidos: no caso da alimentação e das bebidas, o autor tratou de apresentar as preferências

gastronômicas populares, bem como as mutações em sua dieta com o abandono do campo em

favor da residência nas cidades; para a questão da moradia, o autor defende que uma análise

qualitativa deve considerar, além do custo da moradia, a densidade, as condições de

abastecimento de água, o saneamento (lixo e esgotos), iluminação, pavimentação, o conforto e

a estética das acomodações, além da ingerência dos patrões e do Estado sobre as moradias

populares, como a delimitação de zonas específicas de residência para cada grupo social;

quanto à saúde, deve-se dedicar atenção à expectativa de vida, taxas de

natalidade/mortalidade infantil, doenças comuns entre cada classe social, efeitos da densidade

populacional e o impacto efetivo da medicina moderna na vida dos trabalhadores; finalmente,

a questão das mudanças no trabalho infantil (de tarefas domésticas para um ritmo fabril) não

poderia pode estar ausente desta avaliação geral sobre as condições de vida dos

trabalhadores7.

Em resumo, ele assegura que “é perfeitamente possível sustentar duas posições que, à

primeira vista, parecem contraditórias”. Em geral, “durante o período de 1790-1840, houve

uma ligeira melhoria nos padrões materiais médios. No mesmo período, observou-se a

intensificação da exploração, maior insegurança e aumento da miséria humana”. E uma vez

formada a classe, cerca de 1840, “a maioria da população vivia em melhores condições

[materiais] que seus antepassados cinqüenta anos antes, mas eles haviam sentido e

continuavam a sentir essa ligeira melhoria como uma experiência catastrófica”8.

Os debates posteriores ao texto de A Formação de Thompson no campo econômico,

especialmente sobre a questão do padrão de vida, parecem indicar que esta perspectiva 6 THOMPSON, Exploração, Op. Cit., p. 36-37. Um resumo da posição dos Hammond no debate pode ser visto neste mesmo capítulo de Thompson, entre as páginas 32-34. 7 THOMPSON, Padrões e experiências, Op. Cit., p. 179-224. 8 THOMPSON, Exploração, Op. Cit., p. 38.

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específica, a do foco nas “necessidades” das pessoas, seria a mais correta na avaliação das

condições de vida dos trabalhadores.

Debates na Economia Sobre Padrão de Vida

Durante a década de 1980, o economista indiano Amartya Sen trabalhou, dentre outros

temas, especificamente o significado do conceito de “padrão de vida”. Em 1985, apresentou

suas reflexões nas chamadas Tanner Lectures, posteriormente publicadas pela Universidade

de Cambridge. Suas reflexões sobre a pobreza e padrão de vida se inserem no contexto de

debate nos países ricos pós Segunda Guerra Mundial sobre a “liberdade de querer/desejo”

(freedom of want) dos seus cidadãos9. Como ele assegura, o fim da pobreza virou o grande

tema da política dos países ricos. Não é à toa, portanto, que Thompson se depara, quando

escreve A formação, com as questões sobre melhora ou piora no chamado “padrão de vida” da

nascente classe operária inglesa no final do século XVIII.

Como assegura Geoffrey Hawtorn (introduzindo as palestras de Sen), nos países

democráticos e em desenvolvimento, o tema do “padrão de vida” era, ao lado da segurança

nacional, um dos principais objetos da política nacional desde o fim da Segunda Guerra

Mundial. Em todo caso, os termos técnicos geralmente causavam muita confusão entre os

responsáveis pelas políticas públicas, considerando-se o tema como de difícil definição

conceitual. Como exemplo desse desacordo teórico, Hawtorn cita o debate historiográfico

sobre o padrão de vida da nascente classe operária inglesa, no qual ele conseguia vislumbrar

três perspectivas dentro do grupo dos considerados “pessimistas”: a) E. P. Thompson (para

quem os padrões decaíram com a Revolução Industrial, e para quem a industrialização teria

trazido maiores benefícios se a posse e controle do capital estivessem em outras mãos, ou se

tivesse percorrido um caminho mais parecido com o do “socialismo”); b) os Hammond (mais

agnósticos sobre o curso do padrão de vida em si, mas acreditando que a industrialização teria

trazido maiores benefícios se o governo aliviasse as conseqüências dos cercamentos, e

estabelecesse um salário mínimo para trabalhadores não-especializados e um salário justo

para os qualificados); 3) Von Tunzelmann (para quem a industrialização teria trazido maiores

9 SEN, Amartya. Poor, relatively speaking. Oxford Economic Papers, 35. 1983. p. 153-169. Um resumo quanto à centralidade da preocupação de Sen com a temática da pobreza pode ser conferido em: KERSTENETZKY, Celia Lessa. Desigualdade e pobreza: lições de Sen. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, fev. 2000, p. 113-122.

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benefícios e produzido maior crescimento se não tivesse sido combinada com um largo uso de

capital intensivo)10.

Portanto, considerando-se a imprecisão do termo “padrão de vida”, o economista

indiano Amartya Sen tratou de realizar uma digressão sobre suas aplicações mais antigas nos

textos ocidentais de economia, inauguradas nos século XVII11. Desde estes autores, a

compreensão sobre o padrão de vida mudara muito, mas se manteve, grosso modo, alguns

referenciais teóricos básicos, como a identificação de um alto padrão de vida com a

equivalente posse de mercadorias.

Em todo caso, segundo a proposta de Amartya Sen, devemos ir além da mera

identificação da renda per capita de um país para chegarmos próximos de uma real

compreensão das condições de vida de sua população. A virada analítica proposta por Sen vai

no sentido de problematizar a compreensão vigente na economia desde o século XVII sobre o

que seria o “padrão de vida”: em resumo, não se trata apenas de uma questão de opulência de

mercadorias.

Evidentemente, Sen não estava isolado em sua crítica. Sua proposta de nova

conceitualização do padrão de vida fora alimentada por estudos dos teóricos das

“necessidades básicas” e dos “indicadores sociais”, que dedicaram atenção à economia

relacionada a conquistas sociais, indo, portanto, além da análise da renda nacional per capita,

dedicando especial atenção ao tipo de vida que as pessoas levam. Em todo caso, o foco nas

“necessidades básicas” não seria suficiente, segundo Sen. Não pretendo realizar todo o

percurso teórico do autor neste breve artigo, mas antes demonstrar suas conclusões.

A crítica de Sen, incide sobre o papel das mercadorias (e sua utilidade) na definição do

padrão de vida, como vinha sendo realizada desde o século XVII. Na década de 1920, Arthur

Pigou (The economics of welfare, 1920) procurou estabelecer um “padrão mínimo nacional de

renda real” capaz de dar conta de um mínimo de moradia, saúde, educação, alimentação,

10 SEN, Amartya. The Standard of Living (the Tanner lectures). New York: Cambridge University Press, 1987. p. VII-XIV. 11 Observou que a medição estatística do padrão de vida foi inaugurada pelo anatomista e músico britânico Sir William Petty (Political Arithmetik, de 1691). Este calculou a renda nacional (o que hoje chamamos em língua portuguesa de Produto Interno Bruto, ou PIB) para entender as condições de vida dos súditos ingleses, com foco nos aspectos de segurança, felicidade e renda. O método estatístico foi mantido por seus seguidores: Gregory King, François Quesnay, Antoine Lavoisier e Joseph Louis Lagrange, dentre outros. Antoine Lavoisier insistiu na quantificação como forma científica de encerrar disputas de opinião sobre o que seria o padrão de vida. O matemático Lagrange, por sua vez, introduziu em sua perspectiva a substituição de alguns produtos pelo que ele considerava equivalentes, o que possibilitaria a comparação entre práticas de diferentes grupos de consumidores. Lagrange ainda identificou diferentes necessidades de nutrientes para diferentes grupos de pessoas, segundo ocupação profissional, localização e gosto.

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lazer, segurança etc., para todo cidadão, já que chegara à conclusão de que enumerar todos os

aspectos da vida seria impossível. Ou seja, algumas mercadorias poderiam compor o padrão

mínimo aceitável de renda e, logo, do tipo de vida que uma pessoa deveria possuir. Sen

questiona tal perspectiva perguntando se o acúmulo de mercadorias seria o lugar correto para

pararmos na definição do padrão de vida. Tal acúmulo seria o padrão de vida em si? Por que

devemos nos focar (fundamentalmente) na opulência, em vez de com o que as pessoas

conseguem fazer ou ser? Questionamentos muito parecido com a crítica de Thompson aos

“otimistas” do padrão de vida da classe operária inglesa. Como vimos em Thompson

anteriormente, um maior acesso a mercadorias úteis para a vida (seja para nos dar prazer,

atender nossos desejos ou nos garantir possibilidade de escolha) não significa

automaticamente um maior/melhor padrão de vida.

Em alguma medida, esse ataque de Sen à proposta utilitária para a análise econômica se

alimenta na crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria (commodity fetichism): mercadorias

não são mais do que meios para outros fins, ou seja, nosso foco deve ser sobre a forma de

vida que levamos e o que podemos ou não fazer e ser a partir daquele tipo de vida. Em outras

palavras:

A questão principal é a qualidade de vida que uma pessoa pode ter. A necessidade por mercadorias para qualquer conquista de condições de vida pode variar muito com vários elementos psicológicos, sociais, culturais (e outros) contingentes (...). O valor do padrão de vida reside no viver, não na posse de mercadorias, que tem relevância derivativa e variante12.

Daí surge a proposta analítica de Sen sobre funcionamentos e capacidades. Como

exemplo, novamente voltando a Marx, Sen demonstra a importância da “liberdade” enquanto

capacidade na vida das pessoas, para que elas realizem funcionamentos (refletindo os aspectos

da sua condição de vida) como os descritos na Ideologia Alemã: na sociedade livre do futuro

seria possível para a pessoa “fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar de

tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois do jantar, e tudo a meu bel-prazer, sem me tornar

caçador, pescador, pastor ou crítico” 13. A “liberdade” (ser livre, portanto, enquanto uma

capacidade) é apenas uma dentre outras capacidades ponderáveis nas condições de vida de

uma pessoa. No caso da análise de Thompson sobre a formação da classe operária inglesa,

esta capacidade me parece ser um dos marcos explicativos da sua constituição na transição do 12 Idem, p. 25. 13 Idem, nota 18, p. 37.

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século XVIII para o XIX. Relembrando o que vimos anteriormente, a experiência crucial de

formação da classe operária naquele momento teria sido, segundo Thompson, a da alteração

na natureza e intensidade da exploração, ocorrendo simultaneamente a uma maior opressão

política dos trabalhadores, refletindo-se, portanto, na sua percepção na forma de uma piora

nas suas condições de vida.

Para concluir essa abordagem de Thompson e de Sen, basta afirmar que a proposta

analítica deste último, de crítica ao padrão de vida (PIB per capita) como medidor do tipo de

vida das pessoas, fora incorporada pela ONU, que encomendou a Sen uma nova fórmula de

medição sobre condições de vida, consolidada teoricamente nos debates sobre qualidade de

vida, nos anos 1990. Objetivamente, destes debates surgem o Índice de Desenvolvimento

Humano, utilizado para comparar países, estados, cidades, regiões etc., possuindo três

variáveis que tentam agregar renda, educação e saúde: PIB per capita, anos de educação e

expectativa de vida ao nascer.

Apresentado estes marcos teóricos, quanto ao debate sobre padrão de vida desde os

anos 1950 na historiografia e no pensamento econômico, partimos agora para um balanço

sobre a produção historiográfica sobre o tema nos últimos anos, vislumbrando estudos sobre

os trabalhadores nos Estados Unidos, na América Latina e no Brasil.

Padrão de Vida na Historiografia Estadunidense

Nos Estados Unidos, temos um duplo movimento. Por um lado, há a preocupação em

tomar o “padrão de vida” dos trabalhadores como objeto historiográfico. Por outro, ocorre um

interesse em demonstrar como a questão do custo de vida dos trabalhadores foi central para

políticas estatais desde o final de século XIX, e ganhou mais força com o advento da crise do

capitalismo em 1929 e a ocorrência da Segunda Guerra Mundial.

O historiador Lawrence Glickman publicou em 1993 um artigo no qual tratou da

invenção do “padrão de vida americano” (American Standard of Living/American Standard).

Glickman procurou demonstrar como esse “padrão” fora um artefato ideológico utilizado pela

classe trabalhadora entre 1880 e 1925, baseando-se em argumentos favoráveis ao

estabelecimento de um “salário de homem branco”. Glickman trabalhou, portanto, com

categorias de raça, gênero e política econômica enquanto componentes do núcleo da idéia de

“padrão de vida americano”. Para ele, tal ideologia foi expressão da consciência da classe

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trabalhadora retrabalhada no final do século XIX e início do XX, do que resultou uma “ênfase

no consumismo”. Tal tese é dividida em dois argumentos: 1) pela análise das mudanças no

significado do trabalhado assalariado na cultura da classe operária, observa-se uma aceitação

em fins do século XIX do trabalho assalariado, antes considerado como forma de escravidão:

trabalhadores passam a usar o termo “salários de vida” (living wages) contra o antigo

“salários de escravo” (slave wages), argumentando que o salário de vida deveria lhes

possibilitar manter o “padrão de vida americano”. Tal argumento permitia restabelecer a

distinção entre liberdade e escravidão em uma economia de trabalho assalariado fazendo com

que as necessidades, mais do que a produção, fosse a marca do caráter virtuoso da classe; 2)

esta ressignificação da virtuosidade da classe trabalhadora estadunidense produziu resultados

negativos: como a dicotomia entre masculino e feminino, entre americano e estrangeiro,

brancos e negros. Assim, os operários americanos usaram a ideologia para reclamar direitos,

mas também para excluir outros grupos dos benefícios14.

Já o historiador Thomas Stapleford, a partir de controvérsias recentes sobre política

econômica dos Estados Unidos, tratou de historicizar a produção e uso das estatísticas sobre o

custo de vida estadunidense. Dentre seus objetos, se destacam: o orçamento do governo, o

orçamento doméstico/familiar que delineia padrões de vida considerados “adequados” pelos

governos, e índices de preços ao consumidor (especialmente o IPC e seus antecessores).

Stapleford também tratou do uso de conhecimento econômico pelo Estado federal

estadunidense em sua tentativa de influenciar a produção e a distribuição de recursos

materiais ou financeiros. Ainda demonstrou que estatísticas de custo de vida “tem sido usadas

para julgar disputas salariais, guiar planejamento econômico e decisões políticas, e para

determinar tanto a elegibilidade como os níveis de compensação para programas de bem estar

do governo” federal15. Portanto, o foco do autor foi colocado sobre a criação estatal destes

dados e seu uso político, no que ele chamou de (a partir de Max Weber) “governança

racionalizada”, introduzida no governo federal como resultado de mudanças trazidas pelo

capitalismo industrial, pelas duas Guerras Mundiais e pela Grande Depressão.

14 GLICKMAN, Lawrence. Inventing the “American Standard of Living”: gender, race and working-class identity, 1880-1925. Labor History, 34 (Spring-Summer 1993), p. 221-235. Perspectiva parecida, embora focada no aspecto do “consumismo” estadunidense, pode ser vista em: MOSKOWITZ, Marina. Standard of living: the measure of the middle class in modern America. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2004. 15 STAPLEFORD, Thomas A. The cost of living in America: a political history of economic statistics, 1880-2000. New York: Cambridge University Press, 2009. p. 4.

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Em resumo, podemos afirmar que a historiografia estadunidense tem tratado de

acompanhar as críticas ao “padrão de vida” enquanto um conceito que supostamente refletiria

de forma real as condições de vida dos trabalhadores. A historicização dos temas relacionados

àquele conceito foi a forma encontrada pelos dois historiadores no trato de um tema que

sofreu alterações em suas ferramentas de análise nos últimos cinqüenta anos.

Padrão de Vida em Estudos Latino-Americanos

Em termos latino-americanos, uma recente revisão da abordagem da temática do

padrão de vida foi realizada por Salvatore, Coatsworth e Challú em um livro com estudos

sobre diversos países e com diversas perspectivas. Eles nos revelam que até pouco tempo a

história dos padrões de vida e desigualdade era apenas descritiva, por falta de fontes para

quantificação. Os primeiros dados sobre o tema foram gerados pelos governos latino-

americanos desde o final do século XIX, mas dados sistemáticos sobre pobreza e distribuição

de renda surgiram apenas na década de 1960. Assim, desde os anos 1990, historiadores,

economistas e cientistas sociais passaram a documentar e analisar as raízes históricas desse

traço. Este livro apresenta parte dos resultados desses esforços16. Aqui, os padrões de vida

aparecem da seguinte forma (explicitamente alimentado pela revisão teórica de Sen): bem

estar físico (“biológico”) através de dados de estatura, que nos remetem à medida da rede de

nutrição da pessoa; o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH ou HDI) aplicado ao

passado; índices de “qualidade de vida”; cálculos de salários reais; mortalidade infantil;

acesso à saúde e educação17. O estudo histórico do bem-estar físico é recente. Provavelmente

foi inaugurado por Le Roy Ladurie e outros, estudando a variação na altura dos soldados.

Hoje (anos 2000) se faz uma “história antropométrica”: a altura do adulto retrata a adequação

da nutrição na sua infância. Um dos desdobramentos mais importantes da historia

antropométrica é a descoberta do declínio na altura dos trabalhadores – isto é, uma

deterioração das condições de saúde e nutrição – com a industrialização dos Estados Unidos e

Europa Ocidental na primeira metade do século XIX, onde os migrantes do campo em busca

16 SALVATORE, Ricardo D.; COATSWORTH, John H.; CHALLÚ, Amílcar E. (eds.). Living Standards in Latin American history: height, welfare, and development, 1750-2000. Cambridge, London: Harvard University Press, 2010. 17 Idem, p. 2.

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de maiores salários na cidade tiveram como “custo” seu bem-estar biológico, reforçando os

argumentos da corrente “pessimista” no debate sobre o padrão de vida do operariado inglês18.

Padrão de Vida na Historiografia Brasileira

Na verdade, os estudos acima citados sobre América-Latina apresentam um artigo

sobre o Brasil, mas não escrito por historiadores. Fora elaborado pelos economistas

Monasterio, Nogueról e Shikida, e versa sobre a variação da altura das pessoas no país e a

possível medição da desigualdade a partir daqueles dados entre 1939 e 1981. Os autores

utilizam Amartya Sen para legitimar o estudo da altura e das políticas públicas como

indicador de bem-estar, na perspectiva do bem-estar físico acima apresentada. Dentre outras

conclusões, os autores observaram uma desigualdade regional nas alturas (indicado

desigualdade regional econômica) mas também observaram um constante aumento da estatura

durante o século XX, apesar de outros dados que demonstram altos níveis de pobreza. Mesmo

durante o repressivo período militar a estatura das pessoas manteve crescimento19.

Um daqueles economistas (Monasterio) realizou um ensaio de história antropométrica

sobre a altura dos trabalhadores gaúchos entre 1889 e 1920, baseando-se em dados retirados

das carteiras de trabalho disponíveis no Núcleo de Documentação Histórica da UFPel20. Neste

trabalho, aplicando análise regressiva (o mesmo método da pesquisa sobre o Brasil acima

citada), o economista analisou onze mil estaturas masculinas, chegando à conclusão de que as

evidências vão contra a visão consolidada de uma elevação no bem-estar dos gaúchos no

período, como conseqüência das políticas sociais (em educação e saúde) adotadas pelo

governo do Partido Republicano Rio-Grandense. Na verdade, “os dados sugerem que não

houve melhoria nas condições biológicas de vida dos gaúchos”. A explicação dessa queda na

altura dos trabalhadores gaúchos no final dos anos 1910 nos remete ao fenômeno antes

descrito por Salvatore, Coatsworth e Challú: 1) foi causada em parte pela crise econômica de

curto prazo que se seguiu ao fim da Primeira Guerra Mundial e; 2) por outro lado é um

fenômeno estrutural que ocorreu em diversos países, nas primeiras fases da industrialização

18 Idem, p. 6. 19 MONASTERIO, Leonardo M.; NOGUERÓL, Luiz Paulo Ferreira; SHIKIDA, Claudio D. Growth and inequalities of height in Brazil, 1939-1981. In: Idem, p. 167-195. 20 MONASTERIO, Leonardo M.; SIGNORINI, Mateus. As condições de vida dos gaúchos entre 1889-1920: uma análise antropométrica. EconomiA, Selecta, Brasília (DF), v. 9, n. 4, p. 111-126, dez. 2008.

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moderna21. Eu mesmo estudei em minha dissertação os aspectos da habitação e alimentação

do operariado em Porto Alegre, dedicando especial atenção às crises alimentares fruto do

encarecimento do custo de vida durante a Primeira República brasileira22.

No Brasil, talvez o primeiro trabalho histórico sobre o tema foi Evolução dos preços e

do padrão de vida no Rio de Janeiro, 1820-1930 – resultados preliminares, de Eulália Maria

Lobo e outros, de 197123. Tal pesquisa se inseria na perspectiva da “história quantitativa”, que

a partir da constituição de um Comitê Internacional de História de Preços em 1930,

possibilitou àqueles estudiosos “usar os preços como indicadores para estabelecer uma

periodização mais objetiva, para estudar a industrialização, o modelo exportador da economia

e a evolução do padrão de vida nessa cidade”24. O foco deste artigo é sobre a movimentação

de preços e seus desdobramentos no resto da economia, o que permitiria demonstrar as

oscilações na inflação em determinadas conjunturas e seu impacto no poder aquisitivo das

pessoas em geral. Esta pesquisa é um exemplo nítido da perspectiva anteriormente

demonstrada que iguala padrão de vida ao acesso a mercadorias. Aqui, padrão de vida aparece

como produto da equação entre custo de vida (uma coleção de mercadorias com preços

variáveis no tempo) e salários (também variáveis no tempo). Outros elementos não foram

considerados.

Quatro anos depois, a dissertação de mestrado em história de Maria Auxiliadora

Guzzo Decca apresentava sob o título de A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São

Paulo (1927-1934) uma perspectiva mais abrangente para o tema das condições de vida dos

trabalhadores25. No estudo ela descreve os elementos que considera componentes daquelas

condições. Suas fontes são relatórios do poder público e jornais variados, onde ela busca

demonstrar: o poder de compra dos salários; a saúde e higiene; o lazer e a educação; a

alimentação; a habitação; e a identidade e organização operária. Acertadamente, a autora

parece alimentar sua perspectiva (implicitamente) a partir da obra clássica de Thompson (A

formação...), embora fique patente a falta de um maior esforço em demonstrar a articulação

teórica daquele autor no trato do tema das condições de vida da classe operária. O trabalho de

21 Idem, p. 124. 22 SILVA, Nauber Gavski da. Vivendo como classe: as condições de habitação e alimentação do operariado porto-alegrense entre 1905 e 1932. Porto Alegre: PPGHIST-UFRGS, 2010. Dissertação de mestrado. 23 LOBO, Eulália Maria Lahmeyer et ali. Evolução dos preços e do padrão de vida no Rio de Janeiro, 1820-1930 – resultados preliminares. Rio de Janeiro, Revista Brasileira de Economia, 25 (4), out./dez. 1971, p. 235-265. 24 Idem, p. 235 e 237. 25 DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo (1927-1934). Campinas: Departamento de História da UNICAMP, 1983. Dissertação de mestrado.

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Decca possui forte caráter descritivo. Em todo caso, o esforço “qualitativo” da autora ofuscou

a possibilidade de levantamento sistemático de dados sobre preços e salários, como realizado

por Eulália Maria Lobo para o Rio de Janeiro. Em vez disso, tais dados foram substituídos por

descrições coletadas em jornais operários do período, como se fossem equivalentes diretos da

realidade. Vale lembrar que o esforço qualitativo de Thompson não se restringia à descrição

das condições de vida. Ele não se eximiu de atuar no debate sobre o padrão de vida, até então

dominado por cálculos sobre o custo de vida e salários. De qualquer forma, a dissertação de

Decca tem o mérito de revelar importantes fontes para o tema proposto nesta tese, como os

relatórios das primeiras pesquisas sobre o padrão de vida da classe operária de São Paulo,

bem como se preocupar com a questão da percepção dos operários sobre suas condições de

vida. Mesmo assim, o padrão de vida não é um objeto privilegiado e tratado com maior rigor

nesta pesquisa.

O anterior estudo de Eulália Maria Lahmeyer Lobo parece ter redundado em uma

publicação de maior fôlego, de 1992. O livro Rio de Janeiro operário, coordenado por Lobo,

retoma temas caros à historiografia marxista, como a natureza do estado, a consciência de

classe, a conjuntura econômica e as condições de vida do operariado do Rio entre 1930 e

1970. De fato, aqui a reflexão de Lobo parece ter recebido o impacto da obra de Thompson

(inserido na polêmica dos “otimistas” vs. “pessimistas”, antes referida), pois o tema do padrão

de vida (antes restrito a custo de vida e salários) agora aparece como condições de vida, assim

descrito: “o termo condições de vida é usado no sentido mais amplo, incluindo saúde,

trabalho, habitação, alimentação, lazer e desenvolvimento cultural”. Ainda, assegura Lobo,

“nossa preocupação não foi de analisar a visão ‘otimista’ e a ‘pessimista’ da evolução das

condições de vida do operariado”, mas “interpretar o movimento operário a partir desse

parâmetro, entre outros”26. Aqui a autora procura apresentar aquelas diversas facetas das

condições de vida do operariado nas diferentes conjunturas econômicas. Em todo caso, o fio

condutor da exposição é baseado “em critérios políticos, sobretudo nos períodos

governamentais, dada a importância atribuída às relações do operariado e do Estado”27. Mas o

interesse da autora pela correlação entre “movimento operário e conjuntura econômica” fez

26 LOBO, Eulália Maria L. (coord.). Rio de Janeiro operário: natureza do Estado, conjuntura econômica, condições de vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Access Editora, 1992. p. 2. 27 Idem, p. 12.

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com que fosse dado um peso importante à conjuntura econômica e às flutuações cíclicas

menores28.

Nestes três estudos, podemos ver como a historiografia brasileira sobre as condições

de vida dos trabalhadores embarca, em um primeiro momento, na perspectiva difundida desde

os anos 1950 na Europa, qual seja, a da preocupação com índices de preços e salários na

determinação de um padrão de vida. Aqui padrão de vida significava o acesso mais ou menos

efetivo a mercadorias disponíveis no mercado em cada momento histórico. Em um segundo

momento, após a publicação da obra de Thompson, vimos que o interesse passou para a

descrição das condições de vida, especialmente através da “fala” dos próprios operários (com

o uso de jornais operários). Em todo caso, o uso de Thompson fora limitado, pois suas críticas

ao padrão de vida enquanto posse de mercadorias não foram explicitamente transpostas à

historiografia brasileira. A seguir, com a consolidação do uso de Thompson nos cursos de

pós-graduação no Brasil na década de 1980, vimos que a apropriação do tema das condições

de vida foi executada com maior rigor, retomando os aspectos descritos por Thompson em

seu clássico A formação29. Em todo caso, o objeto “padrão de vida” ainda não foi

propriamente estudado no Brasil. Com exceção da falecida historiadora Eulália Maria

Lahmeyer Lobo, quem tem realizado tais estudos são apenas os economistas, que

acompanharam de perto os desdobramentos da crítica ao conceito de padrão de vida realizado

por Amartya Sen.

Sugestão de Abordagem do Objeto no Brasil

A inteligibilidade alcançada com a compreensão do percurso do conceito de padrão de

vida nos últimos anos possibilita aos historiadores dos mundos do trabalho abordagens mais

ricas sobre os diversos aspectos das condições de vida dos trabalhadores, tema clássico da

área.

Acompanhando a grande imprensa em Porto Alegre, sabemos que tanto o Estado,

patrões e operários atuavam politicamente em torno do tema do padrão de forma acentuada

28 Idem, p. 3. 29 Hebe Castro demonstra os caminhos percorridos pela historiografia social brasileira desde os anos 1970 e 1980, com a abertura dos cursos de pós-graduação (que apresentou em seu bojo a conseqüente profissionalização dos historiadores e uma crise dos referenciais teóricos até então predominantes). Segundo ela, as três principais áreas desta nova prática histórica foram a história social da família, a história social do trabalho e a história social do Brasil colonial e da escravidão. CASTRO, Hebe. História social. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 45-59.

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desde os anos 1940 até os anos 196030. De certa forma, este período é explicado pelo peso

dado à análise do padrão de vida dos operários em função da criação do salário mínimo, em

debate no país desde os anos 1930. Os responsáveis pela discussão técnica sobre o tema

embarcaram no que havia de mais moderno em termos de pensamento econômico ocidental,

adotando assim a perspectiva do estabelecimento de um salário mínimo que fosse adequado à

compra de um certo número de mercadorias, de acordo com o padrão de vida de cada classe

social.

Portanto, minha sugestão é de que os historiadores dos mundos do trabalho devem

dedicar mais atenção aos debates em torno do padrão de vida e dos reajustes do salário

mínimo, que me parecem ter pautado a agenda política dos anos 1940 aos anos 1960.

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Recebido em Setembro de 2011 Aprovado em Outubro de 2011