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Marcus Pestana Eugnio Vilaa Mendes

PACTO DE GESTO: DA MUNICIPALIZAO AUTRQUICA REGIONALIZAO COOPERATIVA

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GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Governador Acio Neves da Cunha SECRETARIA DE ESTADO DE SADE DE MINAS GERAIS Secretrio Marcus Vincius Caetano Pestana da Silva

Produo, distribuio e informaes: SECRETARIA DE ESTADO DE SADE DE MINAS GERAIS Endereo: Av. Afonso Pena, 2.300 Funcionrios CEP 30130 007 Telefone (31) 3261-7742 FAX (31) 3261-6192 E-mail: [email protected]

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MINAS GERAIS, Secretaria de Estado de Sade. Pacto de gesto: da municipalizao autrquica regionalizao cooperativa. Marcus Vincius Caetano Pestana da Silva e Eugnio Vilaa Mendes. Belo Horizonte, 2004. 80 p. 1. Pacto de gesto Descentralizao. 2. Municipalizao autrquica Regionalizao cooperativa. I. Ttulo. NLM 540

Marcus Pestana1 Eugnio Vilaa Mendes2

PACTO DE GESTO: DA MUNICIPALIZAO AUTRQUICA REGIONALIZAO COOPERATIVA

Belo Horizonte Secretaria de Estado de Sade Dezembro 2004

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Secretrio de Estado de Sade de Minas Gerais. Consultor da Secretaria de Estado de Sade de Minas Gerais.

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SUMRIO1 INTRODUO ...................................................................... 2 A REGIONALIZAO DA ATENO SADE E SUA ARTICULAO COM A DESCENTRALIZAO DOS SISTEMAS DE SERVIOS DE SADE: UMA PERSPECTIVA INTERNACIONAL ............................................ 2.1 O conceito de descentralizao ....................................... 7

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2.2 A avaliao da descentralizao dos sistemas de servios de sade: a importncia do espao mesorregional .............. 13 2.3 Os paradigmas de regionalizao da ateno sade ....... 15

3 A DESCENTRALIZAO DOS SUS E O PARADIGMA DA MUNICIPALIZAO AUTRQUICA ..................................................... 17 3.1 O pano de fundo: a descentralizao poltica brasileira e o federalismo municipal .................................. 17 3.2 O processo de descentralizao do SUS ........................... 20 3.3 As fortalezas e as debilidades da municipalizao autrquica ...................................................................... 4 UMA NOVA FORMA DE DESCENTRALIZAO DO SUS: A REGIONALIZAO COOPERATIVA ............................................... 4.2 Os fundamentos da regionalizao cooperativa ................. 4.2.1 A concepo de rede de ateno sade da regionalizao cooperativa: os sistemas integrados de servios de sade ............................................... 4.2.2 A dinmica da construo das redes de ateno sade .................................................. 24

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4.1 O paradigma da regionalizao cooperativa ....................... 35

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43 4.3 O objetivo da regionalizao cooperativa ........................... 49 4.4 Os princpios da regionalizao cooperativa ....................... 50 4.4.1 A integralidade da ateno sade ........................... 515

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4.4.2 4.4.3 4.4.4 4.4.5 4.4.6 4.4.7 4.4.8 4.4.9

A eqidade ............................................................... A participao social ............................................... A qualidade dos servios ......................................... A eficincia ............................................................ A gesto da demanda .............................................. A responsabilizao inequvoca ................................ O financiamento solidrio ......................................... A endogenia microrregional ......................................

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5 A OPERACIONALIZAO DA REGIONALIZAO COOPERATIVA ............................................ 55 5.1 Os critrios para a regionalizao da ateno sade ....... 55 5.2 A construo da regionalizao cooperativa ...................... 58 5.2.1 Os territrios sanitrios ............................................ 58 5.2.2 A responsabilizao inequvoca dos entes federativos na regionalizao cooperativa ................... 61 5.2.2.1 RESPONSABILIDADES DA UNIO .................................... 61 5.2.2.2 RESPONSABILIDADES DOS ESTADOS ................................... 61 5.2.2.3 RESPONSABILIDADES DOS MUNICPIOS ................................ 62 5.2.3 A modelagem da regionalizao cooperativa .............. 63 5.2.3.1 O MODELO INSTITUCIONAL .......................................... 63 5.2.3.2 O MODELO GERENCIAL .............................................. 64 5.2.3.3 O MODELO LOGSTICO ............................................... 67 5.2.3.4 O MODELO DEMOCRTICO .............................................. 69 5.3 O financiamento ............................................................. 69

5.3.1O financiamento do custeio ....................................... 69 5.3.2 O financiamento dos investimentos ........................... 71 CONCLUSO .................................................................................................. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................... 75 79

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1 INTRODUOA Constituio Federal de 1988 instituiu um federalismo singular ao definir os municpios como entes federativos com competncias tributrias e autonomia poltica e administrativa. E deu as bases para a municipalizao do SUS. A Lei n 8.080/90 consolidou o aparato legal de municipalizao do sistema pblico de servios de sade. Mas foi a NOB SUS/93 editada aps a realizao de uma Conferncia Nacional de Sade que teve como lema A municipalizao o caminho que consolidou esse processo de descentralizao do SUS ao instituir as formas de gesto municipal: incipiente, parcial e semiplena. Se a municipalizao levou a avanos indiscutveis, ela, tambm, gerou problemas srios que no podem mais continuar. preciso reconhecer que a forma de descentralizao pela municipalizao, engendrada pelo SUS, atravs de paradigma da municipalizao autrquica, esgotou-se e necessita de ser repensada. Reconhecer isso est na base das mudanas microeconmicas necessrias para transformar o SUS e faz-lo avanar neste incio de sculo. Parece que essas idias, to solitrias tempos atrs, vo se avolumando e constituindo um movimento em busca de uma regionalizao mais conseqente que permita conciliar o positivo da municipalizao com a construo de outros espaos relevantes para o desenho e operacionalizao das redes de ateno sade em nosso Pas; ou seja, superar o dilema entre a municipalizao autrquica e a regionalizao cooperativa (MENDES, 2001).

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A introduo dos consrcios intermunicipais de sade, ainda que originria da experincia pioneira de Penpolis em 1986, adquiriu uma dimenso nacional a partir da segunda metade dos anos 1990. Contudo, os consrcios no foram concebidos como uma releitura crtica da municipalizao do SUS, mas como uma soluo pragmtica aos problemas de dficits da ateno secundria sade. Foram solues de baixo para cima, realizadas no vcuo deixado pela fragilidade regulatria das Secretarias Estaduais de Sade e atravs de uma lgica eminentemente poltica. Mas, sem dvida, os consrcios intermunicipais de sade foram estimulados pela municipalizao do SUS, sem, contudo, significar uma crtica a esse movimento de descentralizao. Na realidade, acabaram por criar mais um susbsistema pblico de servios de sade, fora das normas do SUS. Foi Oliveira (1995), em sua dissertao de doutorado, que, pela primeira vez, enxergou as fragilidades da municipalizao do SUS. Com base nesse trabalho seminal, Mendes (1998) elaborou uma crtica mais contundente e fundamentada a esse processo de municipalizao do sistema de servios de sade e formulou a concepo de municipalizao autrquica para defini-lo e mostrar suas debilidades. E props, como alternativa, a instituio de sistemas microrregionais de servios de sade. No mesmo ano, o Ncleo de Sistemas e Servios de Sade da Escola de Sade Pblica de Minas Gerais desenvolveu, com apoio da Fundao Kellogg, a proposta do Sistema Microrregional de Servios de Sade do Alto Rio Grande (NCLEO DE SISTEMAS E SERVIOS DE SADE, 1998). interessante notar que essa proposta foi contempornea da poltica pblica mais estruturada de consorciamento municipal em sade, executada pela Secretaria de Estado de Sade de Minas Gerais no Governo Eduardo Azeredo, e se constitua, de fato, numa alternativa para ela.

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A experincia do Alto Rio Grande foi interrompida por um novo governo, mas serviu como um dos insumos para a estruturao, pela Secretaria Estadual da Sade do Cear, do projeto piloto do Sistema Microrregional de Servios de Sade de Baturit (SECRETARIA ESTADUAL DE SADE DO CEAR, 2000a). O modelo desenvolvido em Baturit foi expandido para todas as 21 microrregies cearenses, num processo que teve o apoio do Department for International Development do Reino Unido (SECRETARIA ESTADUAL DE SADE DO CEAR, 2000b). Esse movimento cearense de instituio de sistemas microrregionais de sade, sem a presena de consrcios intermunicipais de sade, teve forte repercusso e foi discutido em muitos foros nacionais e internacionais. A norma federal, entretanto, continuava a ignorar os problemas determinados pela municipalizao autrquica, at que a NOAS 01/2001 acolheu, em seu desenho territorial, os espaos dos mdulos e das regies de sade e props o planejamento regional. A complexidade da norma e a fragilidade de seus fundamentos praticamente anularam a operacionalizao dos novos territrios assistenciais. Mas ficou no ar uma esperana de que os problemas da municipalizao autrquica tinham sido detectados e incorporados na normativa federal, ainda que sem resultados prticos substantivos. O Ministrio da Sade, em trabalho recente, motivado pela discusso do Pacto de Gesto, retomou a discusso de regionalizao da ateno sade (MINISTRIO DA SADE, 2004). Esse trabalho tem o mrito de recolocar, no centro do debate do SUS, a idia de sucesso das experincias de descentralizao dos sistemas de servios de sade que a existncia de um espao organizacional mesorregional, localizado entre as esferas estadual e municipal (MILLS et al., 1990).

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O reposicionamento da regionalizao da ateno sade na agenda nacional estimula o debate democrtico. o que se procura fazer neste texto, de uma forma que no se restringe ao desenho operacional da regionalizao. Ao contrrio, tentase construir uma slida fundamentao para o desenho proposto, a partir das experincias internacionais relevantes nesse campo da descentralizao dos sistemas de servios de sade, at porque a literatura nacional sobre regionalizao da ateno sade, se rica no aspecto da espacializao especialmente em funo das contribuies da geografia poltica dos territrios , dbil nos fundamentos tcnicos da construo e operao das redes assistenciais articuladas territorialmente. O trabalho que se apresenta uma contribuio ao oportuno debate do Pacto de Gesto que se faz em mbito nacional. necessrio promover mudanas mais profundas no SUS que superem o modelo de incrementalismo lento que vem se dando atravs dos ajustes das normas operacionais. hora de uma reforma mais radical. hora de mudar com coragem; mudar para continuar avanando.

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2 A REGIONALIZAO DA ATENO SADE E SUA ARTICULAO COM A DESCENTRALIZAO DOS SISTEMAS DE SERVIOS DE SADE: UMA PERSPECTIVA INTERNACIONAL

2.1 O conceito de descentralizaoH que se precisar bem o que descentralizao porque h entendimentos diversos sobre esse significante e porque a descentralizao no constitui um movimento discreto, mas um processo social cujo ritmo e contedo so estabelecidos pelas determinaes polticas das realidades nacionais. A descentralizao, enquanto processo, no constitui conceito unvoco, articulado como oposto centralizao. Ao contrrio, apresenta-se, na realidade poltica, como unidade dialtica que se exprime, empiricamente, pela convivncia de tendncias de centralizao e descentralizao, ainda que o vetor de maior peso deva ser o descentralizatrio. Torna-se difcil buscar uma conceituao geral que d conta da descentralizao. Entretanto, as tentativas de buscar um significado unvoco para a descentralizao articulam-na com o deslocamento do poder para a periferia das instituies e dos fatos administrativos. Da ser prefervel uma interpretao conceitual referida pela unidade dialtica da centralizao/descentralizao e por uma viso processual que admite que a descentralizao apresenta-se, na prtica social, com graus ou formas distintas.

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Na literatura, aparecem tipologias distintas de graus ou formas de descentralizao, sendo uma das mais abrangentes a que identifica quatro formas de descentralizao (RONDINELLI et al., 1983): desconcentrao, devoluo, delegao e privatizao. A desconcentrao consiste no deslocamento de algumas responsabilidades administrativas para nveis hierrquicos inferiores, dentro de uma mesma organizao, sem a correspondente redistribuio do poder decisrio. A devoluo consiste na transferncia de poder decisrio de uma organizao governamental para outra de nvel subnacional que adquire, assim, autonomia poltica e administrativa. A delegao d-se em outro mbito, envolvendo as relaes entre Estado e sociedade civil, em que o Estado transfere responsabilidades gerenciais para organizaes no governamentais que continuam com financiamento e regulao estatais. Aqui, d-se a desconstruo do espao estatal e o surgimento de entes pblicos noestatais. A privatizao a transferncia de instituies estatais para a iniciativa privada, sob o domnio das regras de mercado. Ela refere-se substituio de entes estatais por organizaes privadas, normalmente sob a forma de venda de ativos estatais. Nos sistemas de servios de sade, a privatizao se d quando se retiram do Estado, ainda que parcialmente, as macrofunes de regulao e financiamento dos sistemas de servios de sade, passando-as ao setor privado. Em quase todos os pases, deu-se a descentralizao dos sistemas de servios de sade. Uma anlise das experincias europias nesse campo mostrou como essas formas se deram em pases distintos (SALTMAN; FIGUERAS, 1997): no Reino Unido e na Sucia, deu-se desconcentrao para regies federais; na Polnia e na Espanha, deu-se a devoluo para os Estados; na Itlia, fez-se a delegao para as Aziendas, empresas pblicas

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com autonomia administrativa e financeira; na Hungria, deu-se a privatizao; no Casaquisto, houve uma descentralizao que no resultou e foi seguida de uma recentralizao. O processo de descentralizao do SUS vem sendo feito atravs da combinao das trs primeiras formas: h uma desconcentrao das Secretarias Estaduais em regionais de sade e de certas Secretarias Municipais de grandes municpios em distritos sanitrios; a devoluo foi realizada atravs, especialmente, da municipalizao de servios nacionais ou estaduais; e a delegao uma prtica rotineira, j que a maior parte dos servios hospitalares e quase um tero dos servios ambulatoriais do SUS so prestados por entes privados lucrativos e no-lucrativos, sob contrato com os rgos gestores.

2.2 A avaliao da descentralizao dos sistemas de servios de sade: a importncia do espao mesorregionalA descentralizao dos sistemas de servios de sade constitui uma tendncia inequvoca no cenrio internacional como contraposio aos modelos centralizados. Mas essa descentralizao, como processo social, apresenta, na sua consecuo prtica, fortalezas e debilidades, havendo, pois, que se buscar uma maximizao das suas fortalezas e uma minimizao das suas debilidades. As fortalezas da descentralizao dos sistemas de servios de sade so: uma maior eficincia alocativa pela influncia dos usurios locais; a inovao e a adaptao s condies locais; uma maior qualidade, transparncia, responsabilidade e legitimidade derivadas da participao da populao no processo de tomada de deciso; uma maior integrao entre agncias

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governamentais e no-governamentais; e melhoria das atividades intersetoriais (MILLS et al., 1990). Por outro lado, as principais debilidades so: um enfraquecimento das estruturas centrais; uma dificuldade de coordenao; o incremento dos custos de transao; a fragmentao dos servios; a ineficincia por perda de economia de escala e de escopo; a escassez de recursos gerenciais; o clientelismo local; e a desestruturao de programas verticais de sade pblica (PRUDHOMME, 1995). Uma avaliao da descentralizao dos sistemas de servios de sade na Europa indica que ela, sempre, traz vantagens e desvantagens, que no possvel estabelecer relaes entre descentralizao e eqidade, que, para haver ganhos de eficincia, no se podem criar deseconomias de escala e que vrias formas de descentralizao aumentam as possibilidades de escolha por parte dos usurios (HUNTER; VIENONEN; WLODARCZYK, 1998). Estudos comparativos da descentralizao dos sistemas de servios de sade, realizados no Chile, na Colmbia e na Bolvia (BOSSERT, 2000), concluram que, no Chile e na Colmbia, houve algum aumento de eqidade e que, nos trs pases, no se podem evidenciar resultados favorveis em relao eficincia e qualidade dos servios. As avaliaes internacionais da descentralizao dos sistemas de servios de sade no indicam resultados definitivos e apontam para a necessidade de se aprofundar os estudos para obter evidncias. Mas apontam, tambm, no sentido de que os processos descentralizatrios sempre apresentaro fortalezas e debilidades e que a questo central est em desenvolver processos de descentralizao dos sistemas de servios de sade que maximizem as suas fortalezas e minimizem as suas debilidades e que minimizem os trade-offs entre eqidade, eficincia, efetividade e qualidade dos servios de sade.

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Para concretizar essa descentralizao tima, uma das propostas mais consistentes est em instituir, entre os nveis estaduais e locais dos sistemas de servios de sade, uma instncia mesorregional (MILLS et al.,1990). A instituio desse nvel mesorregional pode conduzir a uma descentralizao mais racional porque permite compatibilizar o acesso pronto a servios eficientes em funo da escala, efetivos e de qualidade com a proximidade dos problemas locais e da populao.

2.3 Os paradigmas de regionalizao da ateno sadeA regionalizao da ateno sade surgiu aps a Revoluo Russa numa proposta de Semachko. Foi adaptada ao ocidente pelo trabalho seminal de Lord Dawson of Penn (1920), dando origem aos sistemas pblicos de servios de sade de base territorial. Por isso, esses sistemas regionalizados so conhecidos como sistemas dawsonianos. A experincia internacional dominada pelo paradigma da regionalizao autrquica. Nele, a instncia de gesto de um sistema regional de servios de sade exercitada por uma mesorregio sanitria que funciona como financiadora e reguladora do sistema e onde se exercita, inequivocamente, a funo de compra de servios pblicos de sade. Nesse paradigma, o papel dos municpios ou inexiste, ou secundrio, limitando-se a algumas aes de sade pblica. Em alguns pases, a autoridade sanitria regional exercitada por uma regio federal; o caso da Autoridade Sanitria, no Reino Unido, e do County Council, na Sucia. Em outros pases, a autoridade sanitria regional exercida por uma regio estadual, como nos distritos sanitrios canadenses, na Azienda italiana e na experincia espanhola.

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Dessa forma, o ambiente internacional dominado pelo paradigma da regionalizao autrquica, do qual o Brasil fugiu ao optar por uma devoluo municipalizada na organizao do SUS. Assim, nosso Pas um caso singular de organizao municipalista de um sistema pblico de servios de sade, o que fez estruturando o paradigma da municipalizao autrquica somente adotado, em algum momento, pela Finlndia, mas depois abandonado (BENGOA, 1998). No paradigma da municipalizao autrquica, a gesto do sistema de servios de sade, no mbito local, responsabilidade maior dos municpios, ainda que com algumas competncias concorrentes com a Unio e os Estados. Esse modelo organizacional constitui a vertente polar da regionalizao autrquica. Ainda que apresente algumas fortalezas, um sistema que, no limite, transforma cada municpio num sistema fechado, o que leva a deseconomias de escala, fragmentao dos servios e perda de qualidade. Se essa opo propiciou ao SUS vantagens inequvocas, trouxe, junto, enormes desvantagens que o impedem de operar com economicidade e qualidade dos servios e devem ser superadas com urgncia. O momento de superar o paradigma da municipalizao autrquica parece ter chegado.

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3 A DESCENTRALIZAO DOS SUS E O PARADIGMA DA MUNICIPALIZAO AUTRQUICA

3.1 O pano de fundo: a descentralizao poltica brasileira e o federalismo municipalO Brasil um Pas continental, com uma rea de 8,5 milhes de quilmetros quadrados e com uma populao de aproximadamente 180 milhes de habitantes. Alm de extenso, um Pas complexo e muito desigual, onde se manifestam ntidas diferenas econmicas, sociais, culturais, demogrficas e sanitrias entre suas diferentes regies e, dentro delas, entre seus distintos grupos sociais. Isso, por si s, j coloca a imprescindibilidade da descentralizao como viabilizadora das polticas pblicas. Alm disso, constitui um sistema federativo, estruturado em trs nveis poltico-administrativos: a Unio, os Estados e os municpios. O Pas est dividido em 26 estados, Distrito Federal e 5.560 municpios. O federalismo brasileiro especial no quadro mundial porque, aqui, os municpios so entes federativos, com autonomia poltica, administrativa e financeira e com competncias constitucionais e infraconstitucionais bem estabelecidas, e apresentam, entre si, semelhana do Pas como um todo, altssimos diferenciais de tamanho, de populao e de desigualdades socioeconmicas.

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Na Amrica Latina e, muito particularmente, no Brasil, a descentralizao foi introduzida como parte de processos de redemocratizao, uma vez que os regimes autoritrios caracterizavam-se por ser centralizados, burocrticos e excludentes e portadores de intervenes sociais fragmentadas e descoordenadas. A interveno do Estado brasileiro, no autoritarismo, foi crescente e com ampla participao da burocracia militar e civil. As polticas sociais foram construdas e implantadas como decises particularizadas de burocratas e de grupos de interesses (ABRANCHES, 1985). No obstante, algumas iniciativas do regime militar apontavam no sentido da descentralizao: o Decreto-Lei 200, de 1967; o Programa Nacional de Desburocratizao, o Decreto 83.740, de 1979; e o Programa Nacional de Desestatizao, o Decreto 86.215, de 1981. A crise do Estado brasileiro aguou-se nos anos 1980 e expressou-se em quatro dimenses: a crise fiscal, a crise da forma de interveno do Estado na economia, a crise do aparelho de Estado e a crise poltica. A crise fiscal definiu-se pela perda do crdito pblico e por poupana pblica negativa; a crise do modo de interveno estatal, pelo esgotamento do modelo protecionista de substituio de importaes e pelas dificuldades de criar um Estado de bem-estar social no Pas; a crise do aparelho do Estado, pelo enrijecimento burocrtico extremado e pela apropriao clientelista e corporativa das instituies pblicas; e a crise poltica, pelo esgotamento do pacto burocrtico-capitalista que sustentou o regime autoritrio. A resposta da sociedade brasileira crise poltica deu-se com a redemocratizao de 1985 e concretizou-se na Constituio de 1988. A crise fiscal vem sendo superada, mas as crises do modo de interveno na economia e do aparelho do Estado ainda esto por resolverem-se. nesse contexto de redemocratizao e de reforma do Estado brasileiro que a descentralizao adquiriu fora no Pas.

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A descentralizao poltica brasileira ps-regime militar, consolidada pela Constituio de 1988, gerou o fenmeno do federalismo municipal, caracterizado pelo status de membros da Federao concedido aos municpios e pela repartio de recursos da Unio e dos Estados para os municpios. Esse tipo singular de descentralizao poltica conduziu a alguns resultados, analisados por Gomes e Mac Dowell (2000): intensa criao de municpios 1.405 novos municpios, no perodo de 1984 a 1997, um incremento de 34,3% nesse perodo; concentrao dos novos municpios nas regies Sul (405) e Nordeste (402); proliferao de pequenos municpios: dos 1.405 novos municpios, 1.329 (94,5%) tm menos de 20 mil habitantes, 1.095 (78%) tm menos de 10 mil habitantes, e 735 (52%) tm menos de 5 mil habitantes; um percentual enorme de pequenos municpios: 25,4% com menos de 5 mil habitantes, 50% com menos de 10 mil habitantes e 74,8% com menos de 20 mil habitantes; disso decorre que a criao de novos municpios tem sido feita atravs da multiplicao dos pequenos municpios e, especialmente, de micromunicpios, aqueles com menos de 5 mil habitantes; aumento da receita disponvel dos municpios que, em relao da Unio, foi multiplicada por um fator prximo a trs; associao entre receita prpria e tamanho dos municpios: 8,9% nos municpios de menos de 5 mil habitantes, 10,1% nos municpios com menos de 10 mil habitantes, 38,1% nos municpios com 500 mil a 1 milho de habitantes e 55,9% nos municpios de mais de 1 milho de habitantes; forte dependncia dos pequenos municpios de transferncias, especialmente do Fundo de Participao Municipal; transferncia lquida de recursos dos mega e grandes municpios para os pequenos e mdios municpios; em 1996, a receita per capita foi maior nos municpios de menos de 5 mil habitantes (R$ 431,30) que nos municpios de 500 mil a 1 milho de habitantes

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(R$ 307,90) e que nos municpios de mais de 1 milho de habitantes (R$ 405,80); os grandes beneficirios do sistema tributrio redistributivo so os pequenos municpios nos quais vivem apenas 19,6% da populao do Pas; proporcionalmente, os gastos com os Legislativos municipais so maiores do que esses gastos nos estados e na Unio; em 1996, os gastos per capita/ ano com o Legislativo foram maiores nos municpios com menos de 5 mil habitantes (R$ 20,60) que nos municpios de mais de 1 milho de habitantes (R$ 15,60). Os mesmos autores tratam de destruir um mito da literatura municipal brasileira: o de que os municpios menores so aqueles em que est localizada a populao mais pobre. Trabalhando dados do Censo de 1991 eles mostram que os municpios de at 5 mil habitantes esto distribudos em todos os decis de renda, com uma concentrao nos decis cinco, seis e sete, ou seja, na metade superior da distribuio de renda per capita; nos municpios de 5 mil a 10 mil habitantes, a concentrao se d nos decis seis, sete e oito. Este Pas federativo, grande, complexo e desigual e sua forma muito especial de descentralizao poltica atravs da trina federativa o objeto da presente discusso que se faz sobre a regionalizao do SUS.

3.2 O processo de descentralizao do SUSA opo dos constituintes brasileiros pela descentralizao foi inequvoca. No Art. 196 e inciso I da Constituio Federal, declara-se que as aes e servios pblicos de sade integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema nico, organizado de acordo com algumas diretrizes, dentre elas a descentralizao, com direo nica em cada esfera de governo.

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A legislao infraconstitucional, atravs da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1.990, e da Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, reiterou a diretriz da descentralizao e a definiu operacionalmente, protagonizando a municipalizao das aes e servios de sade. Com essa base jurdica, o SUS passou a regular-se, na sua ao cotidiana, atravs de Normas Operacionais Bsicas. Assim, apareceram, consecutivamente, as NOBs Inamps/91, SUS/93 e SUS/96 que tenderam a aprofundar a descentralizao para Estados e, principalmente, para os municpios. A NOB 01/91, ainda editada pela presidncia do Inamps, teve por objetivo fornecer instrues para implantao do SUS, visando, basicamente, operacionalizar a legislao infraconstitucional, e o fez tendo como instrumento o convnio entre a Unio, Estados e municpios. Ela criou a unidade de cobertura ambulatorial, critrios para transferncias de recursos federais para os Estados e municpios e instrumentos de acompanhamento, controle e avaliao, expressando uma ntida cultura inampsiana. Essa norma instituiu o pagamento por produo de servios, transformando os prestadores pblicos em vendedores de servios. Apesar de isso significar um recuo em relao ao Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (SUDS), os municpios apoiaram aquela NOB por perceberem a oportunidade de receber recursos diretamente da Unio sem a intermediao dos Estados. Estava, assim, pavimentado o caminho para a radicalizao da municipalizao dos servios de sade. A NOB SUS-93 - surgida aps a IX Conferncia Nacional de Sade que tinha como lema a municipalizao do SUS institucionalizou as Comisses Intergestores Tripartites e Bipartites, criando, dessa forma, um frum de negociao permanente

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entre as instncias federativas. Alm disso, impulsionou a municipalizao dos servios de sade, atravs da instituio das trs formas de gesto: incipiente, parcial e semiplena, que expressavam, por si mesmas, graus crescentes de devoluo. A NOB 01/96 consolidou a poltica de municipalizao estabelecendo o pleno exerccio do poder municipal da funo de gestor da ateno sade. Essa norma operacional instituiu a gesto plena do sistema municipal e a gesto plena da ateno bsica e redefiniu as responsabilidades da Unio e dos Estados. A municipalizao, que j vinha aumentando tendencialmente, acelerou-se, de tal modo que, ao final de 1996, havia 3.078 municpios habilitados para a municipalizao e, ao fim de 2000, eram 5.398, 98% dos municpios brasileiros. Fica claro que, nesse perodo, a nfase na descentralizao se deu no campo da ateno ambulatorial e hospitalar e sob a forma de devoluo da Unio para os municpios. Houve uma ntida polarizao institucional entre o governo federal, detentor do poder financeiro e normatizador, e os municpios, novos atores sociais que surgiram na cena poltico-sanitria e com capacidade de responder, com agilidade, atravs de Secretarias Municipais de Sade, s demandas organizacionais colocadas pelo Ministrio da Sade. Ao contrrio do que ocorreu nas Aes Integradas de Sade (AIS) e no Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (SUDS), onde a municipalizao foi conduzida pelas Secretarias Estaduais de Sade, no Sistema nico de Sade (SUS), esse processo foi dirigido pelo Ministrio da Sade em relao direta com os municpios. O processo de descentralizao do SUS, atravs da devoluo municipalizada, com forte centralizao do financiamento

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na Unio, e sem a participao primordial dos Estados, em um Pas grande e desigual, consolidou, com a NOB 01/96, o paradigma da municipalizao autrquica. Os problemas da municipalizao autrquica, especialmente a fragmentao e a baixa qualidade dos servios e da gesto dos sistemas, apontaram, na NOAS 01/2001, revista em 2002, para a necessidade de se organizar os espaos territoriais de forma a contemplar, alm dos municpios, os mdulos, as microrregies, as macrorregies e as regies de sade, onde se articulariam as redes assistenciais. J os problemas da gesto do sistema deveriam ser enfrentados atravs das novas formas de habilitao: a gesto plena do sistema municipal e a gesto plena da ateno bsica ampliada. Ao instituir territrios supramunicipais, a NOAS apontava para a necessidade de ganhos de escala e de melhoria da qualidade da ateno. Mas foi uma norma que no pegou, por vrias razes: o foco na gesto da oferta, a concepo hierrquica do sistema, o mau uso dos fundamentos da regionalizao, a extrema burocratizao e a responsabilizao difusa (MENDES, 2003). Como diz o Ministrio da Sade:Os aspectos nucleares da NOAS no se efetivaram ou s aconteceram parcialmente. Dentre eles, podem ser destacados os seguintes impasses: falta de iniciativa pela qualificao das microrregies de sade; pouco interesse dos municpios pela habilitao em gesto plena do sistema municipal; fragilidade dos espaos de negociao e planejamento regional; excesso de instrumentos normativos (PDR, PPI, PDI, Termo de compromisso etc.); discordncias em relao ao papel das esferas de governo; discordncias em relao forma de alocao dos recursos. (MINISTRIO DA SADE, 2004)

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3.3 As fortalezas e as debilidades da municipalizao autrquicaO paradigma da municipalizao autrquica significou um incentivo para a expanso dos servios municipais de sade, dado que o enfoque de gesto da oferta, implicitamente, passou a mensagem de que, para alcanar uma forma superior de gesto municipal se deveria instituir, no territrio municipal, o maior nmero de servios de sade possvel. Esse incentivo implcito, na realidade federativa brasileira onde 75% dos municpios tm menos de 20 mil habitantes, levou a uma extrema fragmentao dos servios de sade, do que decorreram significativas deseconomias de escala e de escopo e, como conseqncia, baixa qualidade dos servios ofertados. Do ponto de vista das relaes entre descentralizao e eficincia, o processo de devoluo municipalizada, com autarquizao dos municpios e sem estruturao orgnica do espao microrregional, est levando ao que, empiricamente, se constatou na Regio Metropolitana de Campinas e que foi denominado de modelo de assistncia municipalista (OLIVEIRA,1995). Neste modelo, o municpio expande a assistncia sade sem nenhuma articulao regional, pulverizando recursos pblicos e gerando brutais ineficincias. Os resultados do paradigma da municipalizao autrquica no SUS so inquestionveis. A AMS/99 mostrou que no perodo 1992/1999 o nmero de estabelecimentos pblicos cresceu 24,9%, enquanto que os estabelecimentos privados tiveram uma reduo de 2,8%. Dentre os servios pblicos em geral com e sem internao , destaca-se a participao dos estabelecimentos municipais que passaram de 69% em 1992 para 92% em 1999. Considerando apenas os estabelecimentos pblicos com internao, a participao da esfera municipal, em

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1999, foi de 70%. No mesmo perodo de 1992/1999, os leitos hospitalares, apesar de terem sofrido uma reduo no seu nmero total, cresceram 3% no setor pblico e tiveram uma reduo de 18,4% no setor privado (IBGE, 2000). O incremento da rede hospitalar pblica merece uma anlise mais aprofundada porque vem se fazendo atravs de hospitais pequenos, conforme se v na Tabela 1. TABELA 1 NMERO DE HOSPITAIS VINCULADOS AO SUS POR TAMANHO, MEDIDO EM NMERO DE LEITOS, BRASIL, 2001.NMERO DE LEITOS at 30 leitos de 31 a 50 leitos de 51 a 100 leitos de 101 a 200 leitos de 201 a 300 leitos de 301 a 500 leitos de 501 a 1.000 leitos mais de 1.000 leitos TotalFonte: Mendes (2002)

NMERO DE HOSPITAIS 2.362 1.406 1.405 849 245 146 47 13 6.473

%36,5 21,7 21,7 13,1 3,8 2,3 0,7 0,2 100,0

O exame da Tabela 1 denota um quadro de extrema irracionalidade: 58,2% dos hospitais vinculados ao SUS tm menos de 50 leitos, e somente 7% apresentam a escala mnima econmica

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de 200 leitos, referida na literatura internacional. Diferentemente do SUS, no Servio Nacional de Sade do Reino Unido, 63,5% dos hospitais tm mais de 300 leitos, e 90,5% dos leitos disponveis esto em hospitais de mais de 200 leitos (POSNETT, 2000) Pior ainda quando se sabe que a rede hospitalar vinculada ao SUS opera com baixa taxa mdia de ocupao dos leitos; em 1995, essa taxa foi de 54%, tendo diminudo para 48% em 1999 (MINISTRIO DA SADE, 2000). A perda de escala, decorrente da municipalizao autrquica, alm de ineficincia, vem junto com baixa qualidade, porque certos servios, como os de ateno hospitalar e de apoio diagnstico e teraputico, para terem qualidade, necessitam de uma base quantitativa (MENDES, 2001). Um dos indicadores mais potentes para medir a qualidade da ateno primria sade o percentual de internaes hospitalares por condies sensveis ateno ambulatorial, um indicador de morbidade hospitalar. Esse indicador capta aquelas condies que so internadas desnecessariamente ou que poderiam ser evitadas na presena de uma ateno primria sade de qualidade (BILLINGS; ANDERSON; NEWMAN, 1996). Estudo feito por Alfradique e Mendes (2002), examinando todas as internaes do SUS no ano de 2001, mostrou que, de um total de 12.426.111 internaes pagas pelo SUS, 3.405.452 foram por condies sensveis ateno ambulatorial. Assim, naquele ano, as internaes por condies sensveis ateno ambulatorial significaram 27,4% do total de internaes; quando se retiraram os partos, que no so condies patolgicas, esse percentual subiu para 33,8%. Essas internaes desnecessrias ou evitveis custaram ao SUS, em 2001, 1,036 bilho de reais do total de 6,675 bilhes

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gastos com internaes, no ano; isso representou um gasto per capita/ano de aproximadamente R$ 6,00, mais da metade do valor do PAB fixo modal. Quando se analisam as internaes por condies sensveis ateno ambulatorial, por tamanho dos hospitais em que ocorreram, verifica-se uma alta concentrao nos hospitais pequenos conforme se v na Tabela 2. TABELA 2 INTERNAES POR CONDIES SENSVEIS ATENO AMBULATORIAL (ICSAA) NO SUS, POR NMERO DE LEITOS DOS HOSPITAIS DE OCORRNCIA DA INTERNAO E POR VALORES PAGOS, 2001.NMERO DE LEITOS at 30 leitos de 31 a 50 leitos de 51 a 100 leitos de 101 a 200 leitos de 201 a 300 leitos de 301 a 500 leitos de 501 a 1.000 leitos mais de 1.000 leitos TotalFonte: Mendes (2002) (*) Internaes por condies sensveis ateno ambulatorial, excludos os partos

% de ICSAA * 55,3 50,7 41,0 29,7 22,1 18,1 14,5 13,6 33,8

% de recursos pagos a ICSAA* 53,7 49,1 36,0 22,3 15,5 13,3 10,7 10,4 24,1

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As internaes por condies sensveis ateno ambulatorial variaram de 55,7% nos hospitais de at 30 leitos a 50,7% nos hospitais de 31 a 50 leitos, a 41,0% nos hospitais de 51 a 100 leitos, para alcanar valores inferiores a 15% em hospitais de mais de 500 leitos. Constatou-se, ento, que, somente a partir de hospitais de mais de 100 leitos, os valores encontrados so inferiores mdia nacional de 33,8%. Observou-se que o percentual de gastos com as internaes por condies sensveis ateno ambulatorial chegou a 55,3% nos hospitais de menos de 30 leitos, a 49,1% nos hospitais de 31 a 50 leitos, a 36,0% nos hospitais de 51 a 100 leitos, caindo para valores iguais ou menores a 15,5% nos hospitais de mais de 200 leitos. A anlise dessas informaes permite inferir que as internaes por condies sensveis ateno ambulatorial no Brasil esto determinadas pela conjuno de dois fenmenos. Primeiro, parte delas se deve baixa resolutividade da ateno primria sade, o que leva a internaes desnecessrias ou evitveis. Segundo, a variao por tamanho de hospitais indica que h uma manifestao clara da Lei de Roemer que diz que, se h leitos hospitalares, eles tendem a ser usados, independentemente das necessidades da populao, um caso particular do princpio mais geral da induo da demanda pela oferta, caracterstico dos sistemas de servios de sade (ROEMER, 1993). Parece ocorrer que os pequenos hospitais, que recebem um nmero determinado de AIHs, vo sempre gast-las, no limite, para cobrir seus custos fixos. Esse fenmeno pode ser denominado de queima de AIHs. Isso mostra que a expanso hospitalar, atravs de pequenos hospitais, provoca brutal ineficincia, sendo parte do problema e no da soluo.

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O caso da Bahia emblemtico: os leitos hospitalares pblicos saltaram de 2.935 em 1990 para 11.340 em 1997; parte significativa desses leitos so municipais; a maioria deles so hospitais pequenos. Muitos hospitais apresentam taxas de ocupao baixas, taxas de permanncia elevadas e baixa atividade ambulatorial, baixa coordenao entre atividades ambulatoriais e hospitalares; e inmeras internaes so realizadas sem encaminhamento ambulatorial (SPAGNOLO, 1998). Mas a fragmentao no se restringe aos hospitais. A Microrregio de Baturit, composta por oito municpios, no Cear, um exemplo emblemtico da fragmentao causada pela municipalizao autrquica: havia hospitais que operavam com uma taxa de ocupao mdia de 22%; havia sete aparelhos de ultrasonografia quando seriam suficientes apenas dois; e havia oito laboratrios de patologia clnica operando em deseconomia de escala e sem controle de qualidade (SECRETARIA ESTADUAL DE SADE DO CEAR, 2000a). Essa situao encontrada na Microrregio de Baturit est longe de constituir uma exceo no SUS, tendendo, muito mais, a aproximar-se de uma regra geral. Pesquisa feita na Microrregio do Alto Rio Grande, em Minas Gerais, tambm composta por oito municpios, mostrou que, em 1998, havia dez pequenos laboratrios de patologia clnica. Nessa microrregio, 80% dos exames foram normais ou negativos, 40% no chegaram aos mdicos que os solicitaram, e todos, sem exceo, apresentaram confiabilidade discutvel porque no foram submetidos a controles de qualidade, internos e externos (NCLEO DE SISTEMAS E SERVIOS DE SADE, 1998). Uma publicao da SAS/Ministrio da Sade prope laboratrios de patologia clnica, de bancada, realizados sem automao, para uma populao em torno de 25 mil pessoas e laboratrios de semi-automao, para uma populao de 25 mil

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a 50 mil pessoas (MINISTRIO DA SADE, 2002). Ainda que isso possa justificar-se em regies de baixa densidade demogrfica e de longas distncias relativas, como ocorre no Norte do Pas, toda evidncia internacional mostra que os laboratrios de patologia clnica devem apresentar grandes escalas de processamento para serem econmicos. Por exemplo, trs laboratrios privados de So Paulo detm 25% do mercado privado daquela cidade e esto buscando avidamente aumentar suas escalas para sobreviverem no mercado (VALOR, 2001). Um bom desenho laboratorial implica a construo de uma rede de laboratrio com a mxima descentralizao da coleta e uma mxima centralizao do processamento, as duas pontas interligadas por eficazes sistemas logsticos, tal como se faz na Secretaria Municipal de Sade de Curitiba (SANTOS et al., 1998). A viso da gesto da oferta das normas operacionais leva a uma lgica poltica de investimentos em servios de sade, onde o importante dispor do maior nmero de unidades de sade no territrio municipal, especialmente os equipamentos de maior visibilidade poltica, os hospitais. Esse processo, na prtica social, est conduzindo, tambm, a uma banalizao da ateno hospitalar, em que os cidados so ludibriados por uma lgica poltica perversa de instituio da oferta local que redunda em hospitais que no tm condies tcnicas para funcionar como hospitais. Uma combinao de enganao e desperdcio, dois predicados indesejveis nos sistemas pblicos de servios de sade. A NOAS SUS 01/02 no responsvel pela fragmentao dos servios de sade, que lhe anterior, mas continua a incentivar implicitamente esse processo quando mantm a viso da gesto da oferta na habilitao, o que um convite implantao de servios nos territrios municipais. Alm disso, ao instituir o

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mdulo assistencial, exigindo que, nesse espao, se ofeream certos exames de patologia clnica, de radiodiagnstico, de ultra-sonografia e de ateno hospitalar em clnica mdica, peditrica e obsttrica, poder levar a um incremento da fragmentao dos servios de sade no SUS, do que dever resultar maior ineficincia e menor qualidade de servios. No que concerne eqidade, uma pesquisa sobre o gasto pblico assistencial federal, em Minas Gerais, mostrou que os recursos esto extremamente concentrados em poucos municpios. Dos 756 municpios examinados, apenas 75 recebiam acima da mdia, sendo 681 (90% do total) municpios perdedores, por estarem abaixo da mdia estadual. Mesmo quando se limpou a polaridade inter-municipal, trabalhando-se com o gasto federal corrigido, a desigualdade intermunicipal e interregional foi muito grande, sendo as regies e os municpios mais pobres os grandes perdedores. O ndice do gasto federal corrigido, que teve um valor mdio estadual, em 1995, de 0,821, variou de 0,948 na Regio Central, uma regio rica, a 0,509 no Noroeste de Minas, uma regio pobre. O que explica a desigualdade no gasto pblico assistencial federal a estrutura concentrada da oferta que se cristaliza no sistema de subsdio oferta vigente. evidente que a fragilidade regulatria das Secretarias Estaduais de Sade, resultado, em boa parte, do paradigma da municipalizao autrquica, as impede de exercitar a funo redistributiva nos espaos estaduais, acentuando o problema (FUNDAO JOO PINHEIRO, 1997). Por fim, a municipalizao autrquica tem gerado, num quadro de restries financeiras grave, uma competio intermunicipal pelos recursos escassos (TEIXEIRA, 2003). Dessa forma, o processo de municipalizao tem gerado mais que cooperao, mecanismos de competio intermunicipais que se

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expressam em disputas distributivas no interior das Comisses Intergestores Bipartites. Em sntese, a descentralizao pela municipalizao autrquica teve fortalezas inquestionveis como constata o Ministrio da Sade:a radicalizao do processo de descentralizao, com a conseqente entrada em cena de inmeros atores envolvidos na formulao e execuo das aes; a democratizao do setor, com ampliao da participao social; a melhoria do acesso s aes e servios, devido expanso da cobertura assistencial, tanto na ateno bsica quanto de servios mais complexos; e o xito no controle de uma srie de doenas evitveis.

Mas agrega:os avanos do processo de descentralizao da sade no impediram a conformao de sistemas municipais de sade fragmentados, atomizados e o aprofundamento das desigualdades na oferta e no acesso aos servios, comprometendo a legitimidade do SUS. (Ministrio da Sade, 2004)

necessrio, portanto, avanar, reconhecendo que, no momento, as debilidades da municipalizao autrquica superam as suas fortalezas. Mais uma vez, recorrendo ao Ministrio da Sade:h um significativo consenso em torno da necessidade de adotar novas estratgias ao processo de descentralizao que promovam a integralidade e a eqidade no acesso. A regionalizao, prevista constitucionalmente, constitui uma dessas estratgias, ao induzir a formao de sistemas de sade mais funcionais e relaes intergovernamentais mais cooperativas. (Ministrio da Sade, 2004)

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Parece ter razo quem diz que os movimentos da histria so pendulares. O trao forte de um sistema centralizado de servios de sade, rompido pela reforma sanitria brasileira, deu origem a um movimento de municipalizao autrquica, levando o pndulo para uma contraposio polar. hora de voltar ao ponto de equilbrio, o que significar maximizar as inegveis fortalezas da descentralizao por devoluo municipalizada e, ao mesmo tempo, tratar de minimizar suas debilidades. Isso significar, na prtica social, superar o paradigma da municipalizao autrquica e consolidar, em seu lugar, o paradigma da regionalizao cooperativa.

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4 UMA NOVA FORMA DE DESCENTRALIZAO DO SUS: A REGIONALIZAO COOPERATIVA

4.1 O paradigma da regionalizao cooperativaO paradigma da regionalizao cooperativa prope o reconhecimento de um espao privilegiado, a microrregio de sade, onde os municpios da microrregio sanitria, em associao entre si e com apoio da Unio e da Secretaria Estadual de Sade, faro a gesto das aes de ateno primria e secundria sade. Ao se associarem, os municpios da microrregio devem constituir um sistema microrregional de servios de sade sob a forma de uma rede de ateno sade , com base na cooperao gerenciada, gerando, pela sua ao solidria, um excedente cooperativo. Ademais, a regionalizao cooperativa, ao associar municpios contguos, reconstitui uma escala adequada para a oferta, econmica e de qualidade, dos servios de sade. O paradigma da regionalizao cooperativa assenta-se no princpio da cooperao gerenciada, em que o componente da cooperao dado pela associao intermunicipal e o componente gerencial explicita-se em mecanismos de planejamento, controle e avaliao compartilhados de redes microrregionais de ateno sade. uma forma de organizao dos sistemas de servios de sade que se diferencia de outro modelo,

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internacionalmente proposto e adotado em alguns pases, a competio gerenciada (ENTHOVEN, 1988). O paradigma da regionalizao cooperativa no tem similar na experincia internacional e, por isso mesmo, deve ser construdo, singularmente, em nosso Pas. A regionalizao cooperativa supera uma viso restrita de recorte territorial e da imposio de uma autoridade sanitria regional para apresentar-se como um processo de mudana das prticas sanitrias no SUS, o que implica considerar suas dimenses poltica, ideolgica e tcnica (MENDES, 1995a). A regionalizao cooperativa tem uma dimenso poltica, dado que busca a transformao do SUS, atuando num espao mesorregional, numa situao de poder compartilhado onde se manifestaro diversos interesses de distintos atores sociais. Tem, tambm, uma dimenso ideolgica, uma vez que, ao se estruturar na lgica das necessidades e demandas da populao, implicitamente opta por um modelo de ateno sade contraflexneriano, cuja implantao tem ntido carter de mudana cultural. E tem uma dimenso tcnica que exige a utilizao e, at mesmo, a produo de conhecimentos e tecnologias coerentes com o projeto poltico e ideolgico que a referencia.

4.2 Os fundamentos da regionalizao cooperativa4.2.1 A concepo de rede de ateno sade da regionalizao cooperativa: os sistemas integrados de servios de sade A regionalizao cooperativa dever implicar uma clara opo por uma forma peculiar de conformao das redes de ateno sade, os sistemas integrados de servios de sade. Para isso, fundamental superar a forma vigente no SUS da

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concepo hierrquica de redes de ateno sade e de sua conseqncia, os sistemas fragmentados de servios de sade. A NOAS SUS 01/02 prope a organizao de uma rede funcional regionalizada mdulos assistenciais, microrregies, macrorregies e regies com base em territrios auto-suficientes em ateno bsica sade, em ateno mnima de mdia complexidade (M1), em ateno de mdia complexidade (MC) e em ateno de alta complexidade. Essa proposta decorre de uma viso prevalecente do sistema de servios de sade como estrutura piramidal, organizado por nveis que so hierarquizados por suas complexidades relativas, indo da ateno primria sade, que seria a menos complexa, at a ateno de alta complexidade, que seria a mais complexa. Esse enfoque da ateno sade, intrnseco NOAS SUS 01/02, teoricamente errado, e sua adoo tem, na prtica social, implicaes muito graves. Essa viso piramidal supe que a ateno primria sade menos complexa que os procedimentos definidos como de mdia e alta complexidades. No correto esse suposto. Ou ser mesmo que ofertar uma ateno primria sade de qualidade o que exige uma interao constante com os cidados usurios dos servios, a responsabilizao por sua sade, a utilizao de procedimentos promocionais e preventivos, a resoluo de 85% dos problemas e a coordenao dos fluxos e contrafluxos na rede de servios menos complexo que oferecer servios ditos de mdia e alta complexidades ambulatorial e hospitalar? A ateno primria sade exige um conjunto de conhecimentos, atitudes e habilidades muito mais amplos que aqueles solicitados nos procedimentos de mdia e alta complexidade. A ateno primria sade convoca conhecimentos e habilidades

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nos campos da biologia, da medicina, da psicologia, da antropologia, da sociologia e os utiliza numa perspectiva de intersetorialidade que a torna, inquestionavelmente, muito mais complexa que as aes catalogadas como de mdia e alta complexidade na NOAS SUS 01/02. Os procedimentos considerados de alta e mdia complexidades apresentam, sem dvida, maior densidade tecnolgica, incorporando maior quantidade de tecnologias de produtos, enquanto os procedimentos de ateno primria sade so mais intensivos em cognio. Conseqentemente, aqueles tm maior custo em relao a estes. Portanto, no correto dividir as aes dos sistemas de servios de sade por nveis de complexidade, tal como faz a NOAS SUS 01/02. As aes denominadas de mdia e alta complexidade so mais densas tecnologicamente e mais custosas, mas definitivamente no so mais complexas. Esse enfoque piramidal determina, nos sistemas de servios de sade, conseqncias desastrosas, especialmente quando conduz a uma banalizao da ateno primria sade ao transformar, equivocadamente, as aes mais complexas de um sistema de servios de sade em aes de baixa complexidade. Essa hierarquizao da ateno sade leva a uma representao por polticos, por profissionais de sade e pela prpria populao de uma ateno primria sade como algo muito simples, quase banal. A expresso primria, instituda para marcar o princpio complexssimo do primeiro contacto (STARFIELD, 2002), interpretada, ento, na prtica social, como algo muito simples que pode ser ofertado de qualquer forma e em quaisquer circunstncias. Essa banalizao da ateno primria sade facilita a adoo de estratgias reducionistas do tipo da ateno primria seletiva (UNGER; KILLINGSWORTH, 1986) ou da ateno

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primitiva sade (TESTA, 1989). Nesse sentido, a substituio na NOAS SUS 01/02 da expresso internacionalmente consagrada de ateno primria sade por ateno bsica bastante infeliz e pode estar reforando esse processo reducionista da ateno primria sade. A apresentao da ateno primria sade como ateno bsica de baixa complexidade refora a viso poltico-ideolgica da ateno primria sade como programa destinado a populaes pobres, a quem se oferecem tecnologias simples e de baixo custo (MENDES, 1999). O resultado que a ateno primria sade passa a ser ofertada por equipes de profissionais sem formao fundamentada em sade da famlia; com freqncia esses profissionais passam, exclusivamente, por um curso introdutrio de 40 horas antes de serem incorporados como profissionais de sade da famlia; ela pode ser oferecida em espao fsico improvisado, muitas vezes uma casa alugada e adaptada precariamente para a ateno primria sade; as estruturas desta (recursos humanos e fsicos) no passam por processos rigorosos de certificao peridica; os profissionais podem ser submetidos a relaes de trabalho de extrema precarizao; a gerncia das unidades bsicas de sade entregue, com freqncia, a gerentes de baixa capacitao etc. Tudo isso compe um quadro de banalizao da ateno primria sade em que tudo pode porque um nvel de ateno sem complexidade. Pode, inclusive, como comum ocorrer, oferecer servios sem qualidade populao. Nada disso imaginvel na oferta da ateno de alta complexidade, em que os critrios de certificao, ainda que no-ideais, so mais rigorosos. A viso piramidal tem implicaes negativas, tambm, no sistema de financiamento do SUS. De um lado, pela hegemonia do paradigma flexneriano na prtica mdica; de outro, porque os

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grupos de interesse que se estruturam em torno da ateno primria sade esto menos organizados. Por fim, porque a menor densidade tecnolgica, expressa numa incorporao maior de cognio frente s tecnologias de produto, leva a uma desvalorizao relativa das aes de ateno primria sade, o que refora o ciclo vicioso dos programas de ateno primria seletiva e consolida o desfinanciamento da ateno primria sade no Brasil (MENDES, 2002). Um estudo comparativo das tabelas de pagamento do SUS em relao ao sistema Medicare em Boston, Estados Unidos, mostrou que essa relao variou de 1 para 3 em procedimentos ditos de alta complexidade at 1 para 300 em procedimentos intensivos em cognio, tpicos da ateno primria sade (JANETT, 2002). Essa estrutura perversa de preos relativos no SUS fruto, em boa parte, da desqualificao da ateno primria sade em funo da viso equivocada de sua baixa complexidade. A concepo hierrquica de redes de ateno sade est na base da forma organizacional dos sistemas fragmentados de servios de sade, prevalecente no SUS. H vrias formas para a organizao dos sistemas de servios de sade no mbito microeconmico, mas, contemporaneamente, elas agregam-se em duas opes alternativas: os sistemas fragmentados ou os sistemas integrados de servios de sade (MENDES, 2001). Os sistemas fragmentados de servios de sade so aqueles que se (des)organizam atravs de um conjunto de pontos de ateno sade isolados e incomunicados uns dos outros, com dbil ateno primria sade, e que, por conseqncia, so incapazes de prestar uma ateno contnua s pessoas e de se responsabilizar por uma populao determinada.

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Contrariamente, os sistemas integrados de servios de sade so aqueles organizados atravs de uma rede integrada de pontos de ateno sade, organizada pela ateno primria sade, que presta uma assistncia contnua a uma populao definida no lugar certo, no tempo certo, na qualidade certa e com o custo certo e que se responsabiliza pelos resultados econmicos e sanitrios relativos a esta populao. Nos sistemas integrados de servios de sade, a concepo de sistema piramidal hierarquizado substituda por uma outra, de uma rede horizontal integrada. Aqui, no h uma hierarquia entre os diferentes pontos de ateno sade, mas a conformao de uma rede horizontal de pontos de ateno sade de distintas densidades tecnolgicas, sem hierarquia entre eles. Numa rede, conforme entende Castells (2000), o espao dos fluxos est constitudo por alguns lugares intercambiadores que desempenham o papel coordenador para a perfeita interao de todos os elementos integrados na rede, e que so os centros de comunicao, e por outros lugares onde se localizam funes estrategicamente importantes que constroem uma srie de atividades em torno da funo-chave da rede, e que so os ns da rede. Nos sistemas integrados de servios de sade, os distintos pontos de ateno sade constituem os ns da rede, mas o seu centro de comunicao est localizado na ateno primria sade. Nesses casos, contudo, no h uma hierarquizao entre os distintos ns, nem entre eles e o centro de comunicao, mas apenas uma diferenciao dada por suas funes de produo especficas e por suas densidades tecnolgicas respectivas. Para desempenhar seu papel de centro de comunicao da rede horizontal de um sistema integrado de servios de sade, a

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ateno primria sade deve cumprir trs funes essenciais: o papel resolutivo, intrnseco sua instrumentalidade como ponto de ateno sade, o de resolver a grande maioria dos problemas de sade da populao; o papel organizador, relacionado com sua natureza de centro de comunicao, o de organizar os fluxos e contrafluxos das pessoas pelos diversos pontos de ateno sade; e o de responsabilizao, o de co-responsabilizar-se pela sade dos cidados em quaisquer pontos de ateno sade em que estejam. A Figura 1 procura ilustrar essa mudana de um sistema piramidal hierarquizado, nos nveis de ateno primria, secundria e terciria sade, para uma rede horizontal integrada, organizada a partir de um centro de comunicao, o ponto da ateno primria sade, representado pelo crculo central. Figura 1: Do sistema piramidal hierrquico para a rede horizontal integrada de servios de sade

APS: ateno primria sade ASS: ateno secundria sade ATS: ateno terciria sade

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A Figura 1 aponta para mudana radical da organizao dos sistemas de servios de sade no mbito microeconmico que no se pode limitar a uma inverso do modelo de ateno, como proposto freqentemente; porque no se trata, apenas, de inverter a forma piramidal, mas de subvert-la, substituindoa por uma outra forma organizacional, de qualidade inteiramente distinta, a rede horizontal integrada de pontos de ateno sade, organizada a partir da ateno primria sade. Assim, sero construdos sistemas integrados de servios de sade, uma forma peculiar de organizao microeconmica, compatvel com a regionalizao cooperativa. 4.2.2 A dinmica da construo das redes de ateno sade As redes de ateno sade, como outras formas de produo econmica, podem ser organizadas em arranjos hbridos que combinam a concentrao de certos servios com a disperso de outros. Em geral, os servios de ateno primria sade, devem ser dispersos; ao contrrio, servios de maior densidade tecnolgica, como hospitais, unidades de processamento de exames de patologia clnica, equipamentos de imagem etc., tendem a ser concentrados (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2000). O modo de organizar as redes de ateno sade define a singularidade de seus processos descentralizadores frente a outros setores sociais. Os servios de sade estruturam-se numa rede de pontos de ateno sade composta por equipamentos de diferentes densidades tecnolgicas que devem ser distribudos espacialmente, de forma tima. Essa distribuio tima vai resultar em eficincia, efetividade e qualidade dos servios. Economia de escala e de escopo, grau de escassez de recursos de maior densidade tecnolgica e acesso aos diferentes

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pontos de ateno sade determinam, dialeticamente, a lgica fundamental da organizao racional dos sistemas de servios de sade. Os servios que devem ser ofertados de forma dispersa so aqueles que no se beneficiam de economias de escala e de escopo, para os quais h recursos suficientes e em relao aos quais a distncia fator fundamental para a acessibilidade; diferentemente, os servios que devem ser concentrados so aqueles que se beneficiam de economias de escala e de escopo, para os quais os recursos so mais escassos e em relao aos quais a distncia tem menor impacto sobre o acesso (MENDES, 2001). As economias de escala ocorrem quando os custos mdios de longo prazo diminuem na medida em que aumenta o volume das atividades e os custos fixos se distribuem por um maior nmero dessas atividades, sendo o longo prazo um perodo de tempo suficiente para que todos os insumos sejam variveis. As economias de escala so mais provveis de ocorrer quando os custos fixos so altos relativamente aos custos variveis de produo, o que comum nos servios de sade. A teoria econmica assume que as relaes entre custos mdios e tamanho de certos equipamentos de sade tendem a assumir uma forma de U. Assim, aumentos de escala implicam fontes adicionais de custos, de tal forma que, alm de um determinado volume crtico, os custos mdios de longo prazo comeam a elevar-se, configurando uma situao de deseconomia de escala. A economia de escala nos servios de sade decorre de vrios fatores: a diviso do trabalho; a alta relao entre custos fixos/custos variveis; a natureza singular das tecnologias de sade, que as torna particularmente sensveis escala (ALBUQUERQUE; CASSIOLATO, 2000); as reservas de capacidade da fora de trabalho ou de outros insumos; e as economias de custo de capital.

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As economias de escopo ocorrem quando uma determinada unidade de sade aumenta a variedade dos servios que oferece; por exemplo, quando um hospital oferece, ao mesmo tempo, servios de internao e ambulatoriais (ALETRAS; JONES; SHELDON, 1997). As economias de escopo so relevantes nas unidades hospitalares. Os hospitais operam com um conjunto complexo de funes inter-relacionadas, e parece adequado colocar diferentes servios dentro de uma mesma unidade hospitalar. H fortes argumentos para criar grandes unidades operacionais que facilitem as ligaes entre especialidades, fortaleam o trabalho multidisciplinar, assegurem o timo uso de equipamentos de alta densidade tecnolgica e dem suporte educao permanente dos profissionais (MCKEE; HEALY, 2000). Um exame da literatura universal identificou, aproximadamente, cem estudos que mostram evidncias de economias de escala e de escopo em hospitais. E esses estudos revelaram que as economias de escala s podem ser encontradas em hospitais de mais de 200 leitos, que o tamanho timo dos hospitais pode estar entre 100 a 450 leitos e que as deseconomias de escala vo se tornar importantes em hospitais de mais de 650 leitos (ALETRAS; JONES; SHELDON, 1997). Uma singularidade dos servios de sade que parece haver uma relao estreita entre escala e qualidade, ou seja, entre quantidade e qualidade. Essa relao estaria ligada a uma crena generalizada de que servios de sade ofertados em maior volume so mais provveis de apresentar melhor qualidade; nessas condies, dentre outras razes, os profissionais de sade estariam melhor capacitados a realizar os servios de sade (BUNKER; LUFT; ENTHOVEN, 1982). Por isso, os compradores pblicos de sade devem analisar o tamanho dos servios e o volume de suas operaes como uma proxy de qualidade.

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Na Holanda, a busca de escala levou regionalizao e concentrao de certos servios de sade. Por exemplo, cirurgias cardacas abertas s podem ser realizadas em hospitais que faam, no mnimo, 600 operaes anuais (BANTA; BOS, 1991); similarmente, nos Estados Unidos, o Colgio Americano de Cirurgies recomendou que as equipes de cirurgia cardacas abertas faam, no mnimo, 150 operaes por ano (AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS, 1984). Uma ampla reviso de evidncia, realizada em 220 estudos que relacionam escala e qualidade, sugere que pode haver ganhos de qualidade com aumento de volume das atividades para alguns servios, mas que essas evidncias so menos significativas quando se faz um ajuste do case-mix dos diferentes servios (SOWDEN; WATT; SHELDON, 1997). Outros estudos encontraram uma relao entre resultados e o volume de atividades dos hospitais, mas no encontraram a mesma relao entre os resultados e o volume de mdicos, sugerindo que o expertise da equipe cirrgica mais importante que a capacidade de cirurgies individuais (MCKEE; HEALY, 2000). Essa busca por eficincia e qualidade tem levado ao incremento do tamanho das unidades de sade, dentro de um movimento mais amplo de instituio de sistemas integrados de servios de sade (MENDES, 2001). E isso tem sido feito pelo processo de integrao horizontal, ou seja, a integrao de unidades de sade que produzem servios similares. Na prtica, a integrao horizontal tem levado a fechamentos de unidades de sade pequenas ou desnecessrias e fuso ou alianas estratgicas de unidades similares. No Reino Unido, bem como na maioria dos pases ricos, h uma crescente concentrao de hospitais (FERGUSON; SHELDON; POSNETT, 1997). O incremento da escala dos hospitais,

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juntamente com uma racionalizao das internaes hospitalares, tem sido responsvel por uma notvel diminuio dos leitos por habitantes, em pases da Europa Ocidental, nas duas ltimas dcadas (EDWARDS; HENSHE; WERNEKE, 1998). Um outro ponto que merece ser analisado, em termos de concentrao de servios de sade, so as fuses de servios. Nos Estados Unidos, as fuses hospitalares tm levado instituio de grandes cadeias hospitalares; isso levou a que 300 grupos empresariais administrassem 50% dos hospitais daquele pas (DOWLING, 1997). Algo semelhante ocorre no campo dos laboratrios de patologia clnica, onde um nico laboratrio, o Quest, faz 1 milho de exames por dia, alcanando 50% desse mercado naquele pas (VALOR, 2001). A necessidade de operar sistemas de servios de sade, com eficincia, efetividade e qualidade, tem levado alguns estudiosos a propor uma escala mnima populacional para se organizar racionalmente esses sistemas. S a partir de uma determinada base populacional, os sistemas de servios de sade poderiam operar com eficincia e qualidade e ratear adequadamente os riscos. Nesse sentido, Bengoa (2001) fala de uma escala mnima de 100.000 a 150.000 pessoas. Essa deve ser a escala mnima de uma microrregio sanitria, o que proposto, tambm, pelo Ministrio da Sade para o SUS (MINISTRIO DA SADE, 2004). Diante dessas evidncias, as redes de ateno sade devem configurar-se em desenhos institucionais que combinem elementos de concentrao e de disperso dos diferentes pontos de ateno sade. Esses critrios de organizao dos sistemas de servios de sade podem apresentar, entre si, trade-offs. Muitas vezes,

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um ganho de eficincia e de efetividade, dado por uma maior escala dos servios, pode ser acompanhado pelo exerccio de poder monoplico, com conseqente dano na responsabilizao, ou por dificuldades de acesso, especialmente de grupos mais vulnerveis da populao. Por isso, o arranjo timo de um sistema de servios de sade deve procurar equilibrar esses diferentes critrios (FERGUSON; SHELDON & POSNETT, 1997). O acesso aos servios de sade est em funo de quatro variveis: o custo de oportunidade da utilizao dos servios de sade; a severidade percebida da condio que gera a necessidade de busca dos servios; a efetividade esperada dos servios de sade; e a distncia dos servios de sade. Outras condies sendo iguais, quanto maior o custo de oportunidade, menor a severidade da condio, menos clara a percepo da efetividade e maior a distncia, menor ser o acesso aos servios de sade. Uma reviso sobre o acesso aos servios de sade mostrou algumas evidncias (CARR-HILL; PLACE; POSNETT, 1997): a utilizao da ateno primria sade sensvel distncia, tanto para populaes urbanas quanto rurais; isso particularmente importante para servios preventivos ou para o manejo de doenas em estgios no-sintomticos; h evidncia de uma associao negativa, tambm para servios de urgncia e emergncia; no h evidncia de associao entre distncia e utilizao de servios de radioterapia, de seguimento de cncer de mama; no h associao entre a distncia e a acessibilidade a servios hospitalares agudos. Portanto, o desenho de redes de ateno sade se faz, sobre os territrios sanitrios, combinando dialeticamente, de um lado, economia de escala, de escopo e qualidade dos servios e, de outro, o acesso aos servios de sade. A situao

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tima dada pela concomitncia de economias de escala e de escopo e servios de sade de qualidade acessveis aos cidados. Quando se der como em regies de baixa densidade demogrfica o conflito, entre escala e escopo e acesso, prevalece o critrio do acesso. Assim, do ponto de vista prtico, em algumas regies brasileiras, as microrregies estaro definidas por populaes subtimas; assim, tambm, certos servios operaro em deseconomias de escala e de escopo porque no se pode sacrificar o direito do acesso aos servios de sade a critrios econmicos.

4.3 O objetivo da regionalizao cooperativaO objetivo fundamental da regionalizao cooperativa garantir o acesso pronto dos usurios do SUS a servios de qualidade, ao menor custo social, econmico e sanitrio possvel. Para isso, a regionalizao cooperativa recompe uma escala adequada organizao dos servios de sade ao agregar, num sistema cooperativo, um conjunto de municpios. Alm de garantir uma melhoria na eficincia e na qualidade, especialmente pela via da construo de uma escala adequada, a regionalizao cooperativa pode impactar positivamente a eqidade ao desconcentrar recursos excessivamente articulados em poucos plos estaduais e pode determinar um aumento na satisfao dos usurios reduzindo os custos sociais altssimos (ainda que nunca contabilizados), impostos por grandes deslocamentos dos usurios do SUS para fora de suas microrregies. Agregue-se, a isso, os benefcios psicossociais de uma interiorizao de recursos de maior densidade tecnolgica. Mas o objetivo fundamental garantir o acesso pronto dos usurios a servios de qualidade, ao menor custo social e econmico possvel.

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Mas h outras razes pelas quais o objetivo da regionalizao cooperativa deve ser alcanado: a conjuno do espao subestadual com o espao supramunicipal cria a possibilidade de uma cooperao mais prxima e mais concreta entre a Secretaria Estadual e as Secretarias Municipais de Sade; viabiliza a transio de uma regionalizao poltico-administrativa para uma regionalizao funcional-assistencial; cria uma instncia permanente de negociao e pactuao, viabilizando um sistema de planejamento mais racional e participativo e com maior viso da singularidade microrregional; cria uma base territorial permanente para as programaes pactuadas e integradas; permite, atravs de uma ao cooperativa, ajustar a oferta de servios de sade, seja pela eliminao da sobreoferta, seja pela reduo da suboferta; permite diminuir a presso da demanda por servios localizados nos plos, especialmente nas regies metropolitanas; propicia mecanismos para a superao da fragmentao dos servios e para a instituio dos sistemas integrados de servios de sade; cria uma conscincia de pertencimento microrregional e de endogenia microrregional; fortalece o papel regulatrio das Secretarias Estaduais de Sade; substitui uma atitude de competio intermunicipal, prpria da municipalizao autrquica, pela cooperao intermunicipal e com a Secretaria Estadual de Sade, substituindo uma atitude de cada um por si, por outra, de todos por todos; e permite melhorar a qualidade do controle pblico sobre o sistema de servios de sade.

4.4 Os princpios da regionalizao cooperativaA construo operacional da regionalizao cooperativa ser feita em obedincia a alguns princpios, alm do princpio da descentralizao do SUS que lhe medular:

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4.4.1 A integralidade da ateno sade A integralidade da ateno sade ser garantida atravs do acesso pronto aos servios necessrios que sejam ofertados em diferentes pontos de ateno sade de uma rede horizontal coordenada pela ateno primria sade, ou seja, implica a operao de um sistema integrado de servios de sade. 4.4.2 A eqidade O princpio da eqidade se expressar na igualdade de recursos para necessidades iguais. Isso significar que a distribuio eqitativa dos recursos dever incorporar uma proxy de necessidades que permita dimensionar as desigualdades relativas entre as condies sanitrias e socioeconmicas das populaes dos diferentes municpios e das diferentes regies. 4.4.3 A participao social A participao social ser garantida atravs do controle da cidadania organizada sobre o SUS, nas suas diversas instncias territoriais. Isso envolver Conselhos Locais de Sade, Conselhos Municipais de Sade e Plenrias Microrregionais de Sade e as respectivas Conferncias. 4.4.4 A qualidade dos servios Os servios prestados pelo SUS devem ser de qualidade. Isso significa que devem ser: seguros: evitem injrias aos usurios pela ateno sade; efetivos: prestados com base na melhor evidncia cientfica; oportunos: reduzam as esperas e os deslocamentos desnecessrios; centrados nos usurios: atendam s necessidades e demandas dos usurios; e humanizados: providos numa relao profissional-usurio emptica num ambiente acolhedor.

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4.4.5 A eficincia Os servios devem ser prestados de forma eficiente, o que significa que se deve otimizar o uso dos recursos em funo dos produtos obtidos. 4.4.6 A gesto da demanda O foco da gesto da oferta, consagrado nas Normas Operacionais do SUS, deve ser superado instalando-se um sistema baseado na gesto da demanda. Isso significar que o importante para a gesto dos sistemas de servios de sade no ter servios prprios num territrio poltico-administrativo, mas dar acesso a servios eficientes e de qualidade aos cidados, independentemente de sua localizao e razo social. Do ponto de vista do financiamento, esse princpio se expressar na diretiva o dinheiro segue o cidado. 4.4.7 A responsabilizao inequvoca O SUS dever ter um responsvel inequvoco pela sade da populao, facilmente identificvel. Ao identificar claramente as responsabilidades federativas, os cidados podero se localizar nas agendas da sade, votar com mais conscincia e exercitar melhor o controle social. 4.4.8 O financiamento solidrio Os servios a serem prestados devero ter um financiamento solidrio da Unio, estados e municpios, com responsabilidades bem definidas nas normativas do SUS. 4.4.9 A endogenia microrregional A endogenia um componente bsico da formao da capacidade de organizao social de uma microrregio, e nasce

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como uma reao aos modelos de desenvolvimento regional que colocam nfase maior na atrao e na negociao de recursos externos como condio suficiente para a promoo do crescimento econmico e social de reas especficas. Ao contrrio, num processo de desenvolvimento endgeno, a nfase maior est na mobilizao de recursos latentes na microrregio e se privilegia o esforo, de dentro para fora, para se promover o seu desenvolvimento.

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5 A OPERACIONALIZAO DA REGIONALIZAO COOPERATIVA

5.1 Os critrios para a regionalizao da ateno sadeA regionalizao da ateno sade pressupe a explicitao, num Plano Diretor de Regionalizao (PDR), dos territrios sanitrios. J que os espaos poltico-administrativos dos municpios e do Estado esto dados, h que se definirem, principalmente, os territrios macro e microrregionais. No territrio macrorregional sero exercitadas, auto-suficientemente, as aes de ateno terciria (alta complexidade); no territrio microrregional sero ofertadas, auto-suficientemente, as aes de ateno secundria (mdia complexidade); e no territrio municipal, sero desenvolvidas, no mnimo, as aes de ateno primria sade. Para a elaborao do PDR devem ser levados em conta critrios polticos, culturais e tcnicos de forma equilibrada. Dentre os critrios tcnicos, esto os elementos descritos no desenho de redes de ateno sade, ou seja, as complexas inter-relaes entre escala, escopo, qualidade e acesso e determinadas tecnologias de construo de redes. Infelizmente, a tradio brasileira de supervalorizar os critrios polticos na territorializao. Foi, assim, na experincia

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dos Consrcios Intermunicipais de Sade e tem sido, assim tambm, no desenho de boa parte dos PDRs. As macrorregies e as microrregies sanitrias devero ser recortadas com base numa srie de critrios, analisados em seu conjunto. Esse trabalho envolve dois tempos: um tempo tcnico, onde, a partir dos critrios definidos, chega-se a um esboo de regionalizao do Estado; e um tempo poltico, onde esses critrios tcnicos fundamentaro uma discusso poltica com os diversos atores sociais da arena sanitria estadual, e quando sero feitas modificaes que, consensadas, devem ser reti/ratificadas pela CIB Estadual e pelo Conselho Estadual de Sade. Os critrios principais para a regionalizao da ateno sade so: i. Contigidade intermunicipal: os municpios que compem uma macrorregio ou uma microrregio devem estar prximos e contguos. ii. Subsidiaridade econmica e social: avaliam-se, por este critrio, as cadeias produtivas na microrregio e os fluxos de demanda por servios bancrios, educacionais etc. iii. Escala adequada: o conjunto de municpios deve apresentar uma populao que gere economia de escala na operao da rede de servios de sade; na experincia internacional, esta escala mnima deve ser de 100 a 150 mil habitantes para a microrregio e 500 mil habitantes para a macrorregio (BENGOA, 2001). Em regies de baixa densidade demogrfica possvel que a escala mnima microrregional no seja atingida, em funo da prioridade do acesso aos servios de sade. iv.Herana e identidade cultural: uma microrregio sanitria deve incorporar o critrio da herana e identidade

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cultural, isto , o conjunto de valores atravs dos quais um grupo de municpios se reconhece e se identifica como pertencente a um territrio comum, de modo a transformar-se numa escala adequada. v. Endogenia microrregional: este um critrio que vem emprestado das propostas do planejamento regional (ALBUQUERQUE, 1998) e que implica o esforo e a possibilidade de desenvolver a regionalizao cooperativa num movimento de dentro para fora e de baixo para cima, atravs, principalmente, dos recursos latentes na microrregio. vi. Possibilidade de organizar a regionalizao cooperativa: esta possibilidade dada pela constatao de que h disponibilidade ou potencialidade de recursos para estruturar, cooperativamente, os sistemas de ateno sade na microrregio. vii. Disposio poltica de cooperao: este critrio implica uma disponibilidade inicial da Secretaria Estadual de Sade, dos Prefeitos Municipais e dos Secretrios Municipais de Sade de estabelecerem uma relao entre si para a construo da regionalizao cooperativa que possa gerar um excedente cooperativo. viii. Fluxos assistenciais: devem ser levantados os fluxos assistenciais, especialmente atravs do estudo de origem e destino das internaes hospitalares e das atenes ambulatoriais, o que deve ser feito utilizando-se os sistemas de informaes do SUS. ix. Fluxos virios: deve ser feito um estudo dos fluxos virios, especialmente rodovirios, atravs do uso de mapas com classificao das estradas e dimensionamento das

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distncias relativas. Isso deve gerar um mapa de fluxos que permite identificar o volume de trfico entre os locais de residncia e de assistncia. x. Estabelecimento das redes com seus ns, suas ligaes e com seus fluxos dominantes e definio da hierarquia da rede com base em trs propriedades dos fluxos: municpio independente, transitividade e municpio no subordinado (NYSTUEN; DACEY, 1961); isso permitir definir os fluxos hierrquicos e os fluxos transversais. Um bom trabalho de regionalizao far emergir as microrrregies sanitrias, algo que, em geral, j existe na realidade econmica e social. Porque a, nesse espao mesorregional de pertencimento econmico, social, cultural e sanitrio, que se constroem redes de relaes intermunicipais e se recupera uma escala necessria ao desenvolvimento econmico e social. Essas regies j existem, no h que cri-las nas pranchetas dos planejadores, muito menos que ignor-las no desenvolvimento das polticas pblicas. Essas microrregies so normalmente referidas pelo rio que as banha, por sua localizao geogrfica ou por sua vocao econmica (por exemplo, Microrregio do Alto So Francisco, Microrregio do Vale do Ao ou Microrregio do Macio do Baturit) e devem constituir um ponto central da organizao da ateno sade do SUS.

5.2 A construo da regionalizao cooperativa5.2.1 Os territrios sanitrios inerente regionalizao cooperativa a dimenso territorial. Mas h que precisar bem a noo de territrio sanitrio (MENDES et al., 1995b).

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H, pelo menos, duas concepes de territrio aplicadas aos sistemas de servios de sade. A primeira toma-o de forma naturalizada como um espao fsico que est dado e est completo; nesta concepo, so os critrios geogrficos que definiro um territrio denominado de territrio-solo. A segunda, coerente com a proposta da regionalizao cooperativa, v o territrio como processo, como um espao em permanente construo, produto da dinmica social onde se tensionam sujeitos sociais postos na arena poltico-sanitria. Uma vez que essas tenses so permanentes, o territrio nunca est acabado, mas, ao contrrio, em permanente construo e reconstruo. Portanto, a concepo de territrio-processo transcende sua dimenso de uma superfcie-solo e s suas caractersticas geofsicas para instituir-se como um territrio de vida pulsante, de conflitos e pactuao de interesses e de projetos. Esse territrio, ento, alm de um territrio-solo , ademais, um territrio poltico, cultural e epidemiolgico. Atores sociais em situao, nesses territrios, podem, pela ao associativa, gerar um excedente cooperativo que torne o SUS mais eficaz, eficiente e democrtico. Na dinmica de um sistema pblico de servios de sade, os territrios so, tambm, espaos de responsabilizao sanitria. Dado o princpio da cooperao gerenciada, necessrio que haja uma definio clara das aes e dos servios de sade que cada territrio ofertar a grupos populacionais adscritos. Isso que marca, na experincia internacional, os sistemas de servios de sade de base populacional ou dawsonianos. Esses territrios sanitrios so, ento, recortados de forma a compatibilizarem-se com os princpios da construo de redes de ateno sade e de se impor uma responsabilizao inequvoca de autoridade sanitria.

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A responsabilizao conseqente ser mais factvel se instituda em territrios que sejam amalgamados por um sentimento de pertencimento coletivo. Por isso, as agregaes territoriais levaro em conta as manifestaes culturais que imprimam e manifestem o sentido de pertencimento. H alguns territrios que esto pr-definidos pela nossa diviso poltico-administrativa: o Pas, os estados e os municpios. Eles devero, certamente, ser considerados como territrios sanitrios. Mas, para se construir redes de ateno sade eficazes, eficientes e de qualidade e com responsabilizao sanitria, h que se considerar outros territrios sanitrios. No espao mesorregional, h que se instituir as microrregies sanitrias, compostas por municpios contguos, e onde se prestaro, concentradamente, os servios de ateno secundria sade ( mdia complexidade). O protagonismo que a microrregio apresenta, na concepo da regionalizao cooperativa, decorre do fato de que, quantitativamente, os servios de ateno primria e secundria sade, somados, respondem por 97% do total de aes de um sistema de servios de sade. Cada um dos municpios dever, no mnimo, prestar os servios de ateno primria sade aos seus cidados. Para que a ateno primria sade se faa eficazmente, nos municpios, h que se definir as reas sanitrias. Esses territrios sero, nas unidades bsicas de sade convencionais, definidos pela sua abrangncia territorial-populacional; quando se opera com o Programa de Sade da Famlia (PSF), as reas sanitrias sero os espaos de abrangncia territorial-populacional de cada equipe do PSF. Impem-se, ainda, espaos maiores de resposta de sade, as macrorregies sanitrias, onde se dar, de forma concentrada,

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a prestao dos servios de ateno terciria sade (alta complexidade). 5.2.2 A responsabilizao inequvoca dos entes federativos na regionalizao cooperativa A regionalizao sanitria dever fazer-se segundo o princpio da responsabilizao inequvoca. Isso significar definir e operar as responsabilidades dos entes federativos de forma que se minimizem os conflitos de competncias e que os diferentes atores sociais do SUS saibam quem responsvel por quais aes, o que fundamental para que o SUS seja um espao de construo democrtica, tal como foi concebido juridicamente. 5.2.2.1 RESPONSABILIDADES DA UNIO As responsabilidades da Unio, atravs do Ministrio da Sade, sero: i. definir as prioridades e diretrizes nacionais e explicit-las no Plano e Agenda Nacional de Sade; ii. co-financiar o sistema, segundo critrios eqitativos; iii. estabelecer normas federais sobre as aes e servios de sade; iv. controlar, auditar e avaliar as aes e servios de sade; v. exercitar a avaliao tecnolgica em sade; vi. articular a cooperao tcnica nacional e internacional; vii. articular a cooperao interestadual. 5.2.2.2 RESPONSABILIDADES DOS ESTADOS As responsabilidades dos estados, atravs das Secretarias Estaduais de Sade, sero: i. definir as prioridades e diretrizes estaduais e explicit-las no Plano e Agenda Estadual de Sade; ii. elaborar, em conjunto com os municpios, o Plano e as Agenda Microrregionais de Sade; iii. co-financiar o sistema, segundo critrios eqitativos; iv. estabelecer normas estaduais sobre

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as aes e servios de sade; v. controlar, auditar e avaliar as aes e servios de sade; vi. exercitar, complementarmente, a avaliao tecnolgica em sade; vii. articular a cooperao tcnica s microrregies e aos municpios; viii. participar das Comisses Intergestores Bipartite; ix. exercitar a gesto da ateno terciria (alta complexidade); x. organizar e operar as centrais de regulao, nos mdulos macro e microrregionais; xi. articular a educao permanente a ser desenvolvida pelos plos regionais. O exerccio da gesto da ateno terciria pelas Secretarias Estaduais de Sade impe-se em funo dos princpios de construo de redes de ateno sade que exigem, como escala mnima para a prestao desses servios com eficincia e qualidade, uma populao de 500 mil habitantes. Alm disso, esse o tamanho populacional que permite fazer o rateio comunitrio, com minimizao de riscos econmicos e sanitrios, desses servios que so muito caros. Uma flexibilizao possvel seria delegar aos municpios de mais de 500 mil habitantes a gesto da ateno terciria, mas s para seus cidados residentes. 5.2.2.3 RESPONSABILIDADES DOS MUNICPIOS As responsabilidades dos municpios, atravs das Secretarias Municipais de Sade, sero: i. definir as prioridades e diretrizes municipais de sade e explicit-las no Plano e Agenda Municipal de Sade; ii. elaborar, em conjunto com a Secretaria Estadual de Sade, o Plano e a Agenda Microrregional de Sade; iii. cofinanciar o sistema, segundo critrios eqitativos; iv. estabelecer normas municipais sobre as aes e servios de sade; v. controlar, auditar e avaliar as aes e servios de sade; vi. participar das Comisses Intergestores Bipartite; vii. participar do Consrcio Pblico Microrregional; viii. exercitar a gesto dos servios

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de ateno primria sade; ix. exercitar, em cooperao com os municpios da microrregio sanitria, a gesto da ateno secundria sade (mdia complexidade); x. integrar-se central de regulao e operar o seu mdulo municipal. 5.2.3 A modelagem da regionalizao cooperativa A modelagem ser feita sobre quatro modelos de gesto: o modelo institucional, o modelo gerencial, o modelo logstico e o modelo democrtico. 5.2.3.1 O MODELO INSTITUCIONAL O modelo institucional ter uma soluo de curto prazo e outra de mdio prazo. No curto prazo, a co-gesto microrregional ser realizada atravs das Comisses Intergestores Bipartites Microrregionais, constitudas pelas representaes regionais das Secretarias Estaduais de Sade e dos municpios das microrregies. Caber, nesse primeiro momento, Comisso Intergestores Bipartite Microrregional a pactuao das aes de ateno secundria (mdia complexidade). No mbito macrorregional sero institudas Comisses Intergestores Bipartites Macrorregionais, com representao estadual e municipais, onde sero pactuadas as aes de ateno terciria (alta complexidade). Enquanto perdurar a existncia exclusiva da co-gesto microrregional pelas Comisses Intergestores Bipartites Microrregionais, os contratos dos municpios da microrregio com os prestadores devero ser realizados em bloco, conforme a programao. Isso se impe para que o poder de barganha dos municpios menores com os prestadores seja reforado.

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No mdio prazo, sero institudos nas microrregies, Consrcios Pblicos atravs da associao de todos os municpios que compem a microrregio, nos termos do Projeto de Lei que se encontra em tramitao no Congresso Nacional, em regime de urgncia. Nesse momento, caber ao Consrcio Pblico Microrregional gerir as aes de ateno secundria (mdia complexidade). Esses consrcios sero constitudos, com exclusividade, pelos municpios da microrregio, sem participao da Unio e do Estado. A constituio dos Consrcios Pblicos no significar a desinstitucionalizao das Comisses Intergestores Bipartites Microrregionais que continuaro a existir como espao de programao e pactuao. Ser fundamental garantir que os Consrcios Pblicos sejam formatados em coerncia com as microrregies sanitrias definidas no PDR estadual e que tenham uma gerncia profissional de alta qualificao, de acordo com normativas a serem definidas pelo SUS. 5.2.3.2 O MODELO GERENCIAL O SUS desenvolveu um sistema gerencial compartilhado que implica a articulao das diferentes instncias federativas. Os principais problemas residem na baixa comunicao horizontal entre esses vrios instrumentos. Esses instrumentos de gesto compart